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RELAÇÕES INTERNACIONAIS DEZEMBRO : 2006 12 [ pp. 065-087 ] 065 RECENSÃO Crise em Timor-Leste o que correu mal? Ana Gomes e Adelino Gomes MEU CARO ADELINO, O desafio da R:I é para que conversemos, por esta via epistolar, sobre a crise timo- rense. Embora o tema me seja doloroso, é por certo estimulante dissecá-lo consigo, que tão lúcida, afectiva e profundamente acompanha e percebe Timor. Vale talvez a pena explicar-lhe as razões e circunstâncias que me levaram a Díli entre 20 e 25 de Maio deste ano, no âmbito de uma missão do Parlamento Europeu, e que me permitiu testemunhar um dos picos mais graves da crise. E um dos picos mais penosos de toda a minha «experiên- cia timorense»: o pedido dirigido no dia 24 de Maio pelos quatro mais altos líderes timorenses à comunidade internacional (leia-se Austrália, com Portugal e o resto para compor o ramalhete…) para envia- rem urgentemente um contingente com o objectivo de pôr termo às lutas entre gru- pos de timorenses e restaurar a ordem. Pensei ir a Timor-Leste logo em Abril, mal li, alarmada, as notícias do despedimento de 600 membros das Forças de Defesa de Timor-Lorosae (em qualquer país do mundo, pensei, mandar para casa um terço das Forças Armadas equivale a fomentar uma revolução, no mínimo). E ainda mais alarmada fiquei quando vi pela TV, no final de Abril, imagens dos desacatos do grupo dos «peticionários» e outros manifestantes mesmo à frente do Palácio do Governo, em Díli, perante a impotência da polícia (que, depois apurei, era afinal passividade deliberada). E da carga da FDTL sobre os manifestantes, em Tacitolo, por ordens do primeiro-ministro Mari Alkatiri, que causou um número de mortos logo disputado (e logo instigador de mais conflitualidade e ressentimento). E das imediatas críticas do Presidente da República, Xanana Gusmão, à actuação do primeiro-ministro e das FDTLNão pensei desacompanhada. Do Secreta- riado do PE logo fui contactada por fun- cionários atentos que se inquietavam também com a instabilidade no mais recente membro do Acordo de Cotonou UE ACP (Timor tornara-se finalmente membro no início de 2006) e que me inquiriam se não seria de organizar uma missão o mais rapidamente possível. Dias depois, acentuando-se a controvérsia sobre quantos mortos teriam ficado em Tacitolo (4 ou 60?), é o próprio Mari Alka-

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS DEZEMBRO : 2006 12 [ pp. 065-087 ] 065

R E C E N S Ã O

Crise em Timor-Leste

o que correu mal?

Ana Gomes e Adelino Gomes

MEU CARO ADELINO,

O desafio da R:I é para que conversemos,por esta via epistolar, sobre a crise timo-rense. Embora o tema me seja doloroso, é por certo estimulante dissecá-lo consigo,que tão lúcida, afectiva e profundamenteacompanha e percebe Timor.Vale talvez a pena explicar-lhe as razões ecircunstâncias que me levaram a Díli entre20 e 25 de Maio deste ano, no âmbito de uma missão do Parlamento Europeu, e que me permitiu testemunhar um dospicos mais graves da crise. E um dos picosmais penosos de toda a minha «experiên-cia timorense»: o pedido dirigido no dia24 de Maio pelos quatro mais altos líderestimorenses à comunidade internacional(leia-se Austrália, com Portugal e o restopara compor o ramalhete…) para envia-rem urgentemente um contingente com oobjectivo de pôr termo às lutas entre gru-pos de timorenses e restaurar a ordem.Pensei ir a Timor-Leste logo em Abril, malli, alarmada, as notícias do despedimentode 600 membros das Forças de Defesa deTimor-Lorosae (em qualquer país domundo, pensei, mandar para casa umterço das Forças Armadas equivale a

fomentar uma revolução, no mínimo). E ainda mais alarmada fiquei quando vipela TV, no final de Abril, imagens dosdesacatos do grupo dos «peticionários» eoutros manifestantes mesmo à frente doPalácio do Governo, em Díli, perante aimpotência da polícia (que, depois apurei,era afinal passividade deliberada). E dacarga da FDTL sobre os manifestantes, emTacitolo, por ordens do primeiro-ministroMari Alkatiri, que causou um número demortos logo disputado (e logo instigadorde mais conflitualidade e ressentimento).E das imediatas críticas do Presidente daRepública, Xanana Gusmão, à actuação doprimeiro-ministro e das FDTL…Não pensei desacompanhada. Do Secreta-riado do PE logo fui contactada por fun-cionários atentos que se inquietavamtambém com a instabilidade no maisrecente membro do Acordo de CotonouUE – ACP (Timor tornara-se finalmentemembro no início de 2006) e que meinquiriam se não seria de organizar umamissão o mais rapidamente possível.Dias depois, acentuando-se a controvérsiasobre quantos mortos teriam ficado emTacitolo (4 ou 60?), é o próprio Mari Alka-

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tiri quem me pede que avance imediata-mente – uma voz exterior conhecida pode-ria ajudar a tranquilizar ânimos antes docongresso da FRETILIN, que começava a 17 de Maio. Conversei entretanto com osecretário de Estado dos Negócios Estran-geiros e da Cooperação, João Gomes Cra-vinho. E fiz pontaria para chegar a 20 deMaio – dia do encerramento do congressoda FRETILIN –, não porque tivesse inten-ções de aparecer no dito (não fui lá, nemestava convidada), mas porque ganhei asuspeita de que a partir daí é que as coisaspoderiam começar a correr mal…A colegas seus, que me viram nessa tardeem Díli, no concerto que o ministro dosNE, José Ramos-Horta, organizou improm-ptu frente ao Palácio do Governo para cele-brar a independência e fazer passar umaimagem de normalidade, não contei tudo,mas também não menti: disse que tinhaplaneado estar em Díli no aniversário daindependência, vinha avaliar a situação eaveriguar como poderia o PE acompanharmelhor a assistência da UE a Timor-Leste.Regressei a Díli a 17 de Julho para umaestada de dois dias. Voltei a falar comtodos os principais actores (e meus ami-gos) timorenses. Incluindo Mari Alkatiri,que entretanto deixara de ser primeiro--ministro. Apesar de eu ter pedido aXanana Gusmão que o demitisse em vezde ameaçar demitir-se, no braço-de-ferroprolongado e desgastante entre ambos. E o ter tornado público, no blogue CausaNossa, o que desencadeou a ira e insultosde alguma gente (mais portugueses quetimorenses).Escrevi depois outro texto, onde sublinhoque Mari Alkatiri poderia ser decisivo

para a resolução ou para o agravamentoda crise.Na próxima carta explicar-lhe-ei porquecontinuo a pensar assim. E porque pensoque as eleições em 2007 serão apenas oprincípio da viragem com vista à supera-ção desta crise.ANA GOMES

BRUXELAS, 12 DE OUTUBRO DE 2006

MINHA CARA ANA,

A sua carta, juntamente com o relatório dasua missão a Díli1, dá-nos um quadro dasituação especialmente impressivo. Revejo--me na maior parte das suas observações esubscrevo quase todas as críticas que faz.Receio, aliás, que os pontos de convergên-cia entre nós sejam maiores e mais pro-fundos do que as divergências, frustrandoas expectativas da revista e de muitos dosseus leitores de encontrarem nesta corres-pondência o fragor de uma boa polémica…Aliás, vale a pena indicar, ainda que tele-graficamente, os pontos de análise quepartilho consigo:

• A crise actual foi potenciada por estí-mulos e aproveitamentos do exterior,nomeadamente da Austrália, bem comopor erros cometidos pela ONU, mas porela são responsáveis, antes de tudo, osgovernantes timorenses. Como sus-tenta, se houve um plano para desestabi-lizar Timor-Leste, os actores timorensesdesempenharam na perfeição os papéisque nele lhes haviam sido «atribuídos».

• Mari Alkatiri tem as qualidades que lhereconhece e também os defeitos que lhe aponta. Dentre as qualidades, tam-

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bém eu faço sobressair a seriedade e acompetência técnica. Dentre os defeitos eerros, saliento igualmente os seguintes:

a) querendo controlar Rogério Lobato,acabou dele refém;

b) não investiu num bom relaciona-mento (não num relacionamentomeramente institucional) com XananaGusmão e com a Igreja;

c) lançou as bases de uma política dedesenvolvimento a longo prazo e empe-nhou-se numa transparente, ética emuito prudente gestão dos dinheirosdo petróleo, mas pareceu indiferente àbarriga dos timorenses de hoje;

d) nada fez para atenuar, ao menos, osefeitos devastadores da imagem dearrogância, insensibilidade e autismoque uma total ausência de empatianele agiganta.

Talvez me acompanhe, de resto, noregisto de duas outras características cujaambivalência, num político, tem vanta-gens mas arrasta igualmente alguns peri-gos: a teimosia e o orgulho. A primeira, domeu ponto de vista, levou-o a cometer oerro de não demitir Rogério Lobato logoapós o discurso presidencial de 28 deNovembro de 2002; o segundo, quandoaliado ao mauberismo típico da FRETILIN,fê-lo bater o pé a Camberra na defesa dosinteresses nacionais de Timor-Leste.O meu desacordo consigo tem a ver, prin-cipalmente, com o contraste entre a vee-mência com que aponta estes factorescausais e a leveza, diria despreocupada,com que deixa cair uma ou outra referên-cia, ainda que crítica, a erros e defeitos de

outras figuras ou instituições tão ou maisdecisivas.Por agora, deixe-me apenas reagir aomodo como menciona a «matriz totalitá-ria» da FRETILIN, no seu relatório ao PE, e num artigo que publicou no Courrier Inter-nacional, de 14 de Julho deste ano.Não consigo deixar de me sentir tocadopela história da FRETILIN. Pelo seu pas-sado de luta pela independência. Pelosacrifício da vida que no seu seio fizerammuitas dezenas – repito, muitas dezenas –de jovens dirigentes, vários deles antigosestudantes em Lisboa. Pela persistênciados que resistiram até ao fim, tão incrivel-mente corajosos.Custa-me ver a FRETILIN tratada como se deum bando de oportunistas ou de candidatosa ditadores se tratasse. A gesta timorensefoi escrita por milhares de camponeses, de religiosos, de funcionários, de jovens.Ninguém pode apresentar-se como o donoda resistência. Nem mesmo os guerrilhei-ros. Nem mesmo uma figura que a Ana eeu tanto admiramos: Xanana Gusmão.Mas se algum partido esteve nela sempre,desde o princípio até ao fim; se algum par-tido perdeu nela os seus melhores militan-tes, esse partido chama-se FRETILIN. Essemesmo que, conquistada a independên-cia, em eleições livres observadas por peri-tos internacionais, recebeu um mandatodo povo para governar.Pode discutir-se – como faz e eu subs-crevo – a transformação na secretaria, o queé criticável, do mandato para a Constituinteem mandato para o Governo Constitucio-nal. A diferença esmagadora de votos nãodeixa dúvidas, contudo: a FRETILIN erapara os timorenses, nos anos que se segui-

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ram ao termo da ocupação indonésia, o partido que representava, acima de todosos outros, a ideia mesma da independência.Escrevi, como reparou, «era», e não, «é».Parece-me claro que a governação de Alka-tiri e os confrontos deste ano terão provo-cado um desgaste da sua imagem nocoração da cidadania timorense. Só sabe-remos, porém, a extensão desses danosapós um acto eleitoral, de novo livre e denovo escrutinado pela comunidade inter-nacional.Deixe-me notar-lhe, a propósito, que estasobservações são de igual modo válidas paraXanana. Sendo ainda, penso, a figura quemaior consenso reúne no país, quanto doseu muito e merecido prestígio não alienouele nestes últimos meses, devido à formano mínimo errática (outros dirão, estranha-mente confusa) como geriu a crise?Não posso deixar de ressaltar o espantocom que testemunhei no terreno a insis-tência diria sôfrega com que, em plenacrise, gente que me merece respeito recla-mava pela dissolução do Parlamento, istoé, por eleições antecipadas. E o descon-forto (para não escrever a tristeza descon-fiada) com que acompanhei, dia após dia,semana após semana, a nula preocupaçãoda Presidência da República, da Igreja e damaioria da oposição em preservar sinaisde respeito democrático essenciais paraque os dois actos eleitorais de Maio (legis-lativas e presidenciais) viessem a ser dis-putados de forma serena.Na próxima carta, se estiver de acordo,podemos falar destas figuras e institui-ções. De Xanana, de Ramos-Horta, daIgreja e, já agora, da oposição. É que, afi-nal, e ao contrário do que todos os seus

adversários prometiam, o afastamento deAlkatiri não fez regressar nem a paz àsruas, nem a concórdia aos espíritos, nem anormalidade democrática ao país.ADELINO GOMES

LISBOA, 13 DE OUTUBRO DE 2006

CARO ADELINO,

Cá estou, de Díli, como prometido, a ripos-tar à sua carta de 13 de Outubro. Já lá vão 17dias e ainda vou resistir mais um ou dois,antes de responder a todos os desafios quenela me lança. Em relação à minha últimavisita, em Julho, mete-se pelos olhos den-tro, logo à chegada, que a segurança aindaé prioridade – um novo e extenso campo dedeslocados abancou mesmo junto à veda-ção do aeroporto. Aí tiveram lugar há diasconfrontos que determinaram o encerra-mento do aeroporto e se saldaram em mor-tes (e, suspeito, duas baixas na delegaçãodo PE em que me integro). Na cidade, entreo Hotel Timor e o porto, estrategicamente,continua outro acampamento. As autori-dades querem persuadir os deslocados aretornar aos seus bairros antes de as chu-vas começarem. Há um programa deincentivos (ajuda para reabilitação decasas, apoio alimentar, etc…), e tanto oGoverno como o PR desenvolvem iniciati-vas de reconciliação e apaziguamentoespecialmente dirigidas aos jovens dosgangs responsáveis pelos distúrbios. Cor-rem boatos de que estão a ser pagos, aosabor da conveniência de quem os espalha(coronéis indonésios, majores australia-nos, um irmão de Alkatiri…).Díli está com pouca gente nas ruas. Tudoparece mais parado, degradado – mas será

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impressão minha, porque o belíssimo edi-fício vermelho-escuro do antigo quartelportuguês/futuro museu está agoramurado pela Ensul, ao menos escondendoo entulho no interior; também a amuradajunto ao mar está a ser reconstruída; e opavimento da praça frente ao Palácio doGoverno está a ser levantado (bem podiamlá meter um relvado…). Com fulgormesmo, só o matagal que cresce no ter-reno ao lado, onde tempos de vacas gor-das e gente com sentido de Estado um diahão-de conjugar-se para implantar aEmbaixada de Portugal, prevista desdeque o terreno nos foi cedido em 2001…Mas entretanto vou tentar explicar-lheporque me ponho tão leviana (ou tãosevera, depende da perspectiva) quandoaludo à «matriz totalitária» da FRETILIN, a ponto de o chocar, a si que se habituou aadmirar a luta tenaz pela independênciaque a FRETILIN conduziu e o sacrifícioheróico de milhares de timorenses quepor ela deram as vidas.Também eu me habituei a admirar e a res-peitar a FRETILIN, o seu passado, os seusmortos, os seus corajosos militantes elíderes, a sua clarividente determinação e flexibilidade táctica. E talvez por issomesmo me tenha doído mais o confrontocom um outro lado, um lado sombrio, pri-mário, inflexível, prepotente – totalitário émesmo a palavra – da FRETILIN.No meu artigo do Courrier Internacional de14 de Julho contei por alto como foi.Escrevi então: «Já em 2001 Mari Alkatirinão conseguia conter a tentação totalitá-ria: em plena campanha eleitoral, vanglo-riava-se de que a fretilin ia ganhar com85% dos votos; e os seus apoiantes amea-

çavam os adversários de ir varrer ruas (na altura protestei junto de Alkatiri; comoreagiria se só tivesse 60%?) Enganei-mepor pouco – a fretilin teve 57,37% dosvotos».O que não contei é que essa descoberta foipor mim feita numa volta, em férias, pelointerior do país em Agosto de 2001, duassemanas antes das primeiras eleições livresque os timorenses conheceram, para aAssembleia Constituinte. Andei pelo Leste,fui visitar os sobreviventes do massacre deKraras, falei com padres, madres, velhosartesãos, camponeses jovens e idosos, estu-dantes e professores sem escolas, empre-gados e sobretudo desempregados, mães,avós e netas, veteranos, gente que escara-funchava freneticamente sal-gema perto deLaga e pagava taxa ao L7 para poder venderumas míseras latas na estrada, quadros daFRETILIN e apoiantes dos outros novos par-tidos. Em Venilale, Viqueque, Lospalos,Tutuala, Lautém, Com, Baucau, Laleia,Manatutu. Depois desandei para Oeste efalei com outros tantos em Ermera, Gleno,Maubara, Liquiçá. Já falava indonésio e issoajudou a conversar mais e melhor com mui-tos, informalmente.Voltei para Díli desconcertada, pre-ocupada. E por isso logo procurei osecretário-geral da FRETILIN, na alturachief minister do «governo-sombra» tute-lado pela UNTAET. Num encontro em suacasa disse a Mari Alkatiri como me pare-ciam negativos os efeitos da propagandatriunfalista e arrogante de muitos quadroslocais da FRETILIN, a Leste e Oeste, queameaçavam quem não apoiasse o partido.Lembro-me de lhe ter dito que era umadesastrosa receita à la Suharto: o povo

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poderia ser analfabeto, mas estúpido é quejá tinha provado que não era e, perantemétodos intimidantes, funcionava ao con-trário… A FRETILIN arriscava-se a ter umaamarga surpresa se este tom e esta atitudenão fossem imediatamente corrigidos,sendo que o exemplo devia vir do topo.Mari Alkatiri mostrou desconforto, negouque aquela fosse a mensagem do partido.Mas não comentou quando lembrei assuas próprias palavras dias antes, espar-ramadas na imprensa local e internacio-nal, sobre o mínimo de 85 por cento que aFRETILIN ia obter…Convém lembrar, Adelino, que os hojechamados partidos da oposição, nessaaltura, não tinham expressão e muitomenos organização que pedissem meçasà FRETILIN: Xanana Gusmão pressionaraMário Carrascalão, Ramos-Horta, Las-sama, Mariano Sabino, Xavier do Amarale outros que se haviam destacado naresistência mas não eram FRETILIN, paraque formassem partidos alternativos,para que houvesse um embrião de realoposição, para que a FRETILIN não ficassesozinha a brincar às democracias. A FRE-TILIN ia obviamente ganhar aquelas elei-ções e com grande vantagem sobre osincipientes partidos rivais. Eu, pelo que vie ouvi naquelas férias, estou absoluta-mente convencida de que a FRETILIN nãoteve uma muito mais alta votação (por-ventura não chegando aos vangloriados85 por cento) porque o povo, na sua infi-nita sabedoria, lhe penalizou a jactância ea atitude intolerante.Deixo para a conversa sobre o PresidenteXanana Gusmão as implicações do textoconstitucional aprovado pela FRETILIN.

Com uma marca de dominação evidente.Desnecessária. E contraproducente – comose está a ver.Na governação desde 2002, o balanço daFRETILIN é, creio eu, globalmente positivo(atente-se, por exemplo, no sistema desaúde a funcionar, como Timor-Lestenunca teve). Mas essa é a minha opinião,baseada na noção que tenho do ciclópicodesafio que é construir o Estado a partir dozero e das cinzas. Será que o crê a maioriados timorenses? Uma maioria que não viua sua vida melhorar (e a maior parte con-tentava-se com tão pouco…), antes pelocontrário, se sentiu agredida pela carestiainduzida pelo dólar e não só, pelo desem-prego generalizado e pela suspeita(mesmo que infundada) de que líderes efamiliares se estariam a «governar». Paranão falar da insegurança desde Abril desteano… A obsessão de controlo centraliza-dor que tolheu a contracção de emprésti-mos e depois a execução orçamental (detanto se temer a indigesta corrupção,mata-se à fome o doente) também tem, nofundo, uma marca totalitária. E essa foitambém a imagem que passou da governa-ção de um primeiro-ministro da FRETILIN,com uma aparência fria, insensível, dis-tante e por vezes até agressiva.Não vou elaborar agora sobre os factores – e os actores – que precipitaram a gravecrise que Timor-Leste ainda atravessa, ape-sar da mudança de governo. Há responsá-veis em vários graus certamente. Mas denenhuma outra organização esperavam ostimorenses (e esperava eu) melhor avalia-ção, melhor julgamento, melhor pondera-ção dos riscos e consequências do que da FRETILIN. Na perspectiva dos interesses

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da nação independente de Timor-Leste.Nenhum dos factores que desencadearam aactual crise, e ainda menos o Congresso davotação de braço no ar, ajudaram a recom-por a percepção popular sobre a FRETILIN:para muitos, o partido da Resistência tor-nou-se o partido dos funcionários. Mas oteste será nas eleições legislativas em Maiode 2007. Tudo vai depender de o actualGoverno – que é da FRETILIN, mesmo sechefiado por Ramos-Horta – começar a darrapidamente aos timorenses a sensação deque, a par da restauração da segurança e daordem, a economia vai reanimar, vai haveremprego, casa, comida. Quem ainda con-trola a FRETILIN (e, portanto, nos bastido-res o Governo) é Mari Alkatiri. Serásobretudo ele quem vai decidir o que faz aFRETILIN: olhar para a frente ou insistir-seno desforço?Forças militares estrangeiras estão hoje denovo em Timor-Leste e a soberania do paísestá obviamente cerceada, não se sabe porquanto tempo. Forças solicitadas portodas as autoridades timorenses. Por pro-posta do primeiro-ministro e secretário--geral da FRETILIN. Que preferiu chamarforças estrangeiras a demitir-se mesmonesse dia. Há, no mínimo, um falhanço degovernação que a FRETILIN deve assumir,por muitos sucessos que também tenha aaverbar a seu crédito.Eu ainda espero da FRETILIN humildade,reconhecimento dos erros, vontade epaciência para ouvir o povo. Por respeitopor aqueles que deram a vida, sacrifi-cando-se pela Pátria livre que a FRETILIN

sempre prometeu.ANA GOMES

DÍLI, 31 DE OUTUBRO DE 2006

CARA ANA,

É bom receber notícias directas da «fabu-losa ilha». A ilha verde e vermelha queAlberto Osório de Castro tão bem descre-veu, num relato com quase um século masque nos tange as mesmas cordas de misté-rio, fascínio e algum assombro sempreque a ela regressamos.Sabe que há muito tempo (julgo que pormeados dos anos 90) tinha prometido amim mesmo que, como jornalista, nãoescreveria nem mais uma linha sobreTimor, assim se realizasse um referendode autodeterminação no território.Considerava eu, então, que a quase obses-são (do meu ponto de vista justificada his-tórica e moralmente) que nos levava aacompanhar Timor como se da actuali-dade nacional se tratasse deveria acabarnaquele dia. Porque, dentro ou fora daRepública da Indonésia, os timorensescortariam também nesse momento os fiosconcretos que os ligavam desde 1512 aPortugal. Finalmente donos do seu des-tino, tinham o direito a serem felizes ouinfelizes, mas eles próprios, sem a pre-sença tutelar, mesmo que traduzida emdespachos jornalísticos, da velha potênciamalai.Fosse qual fosse o resultado, insisto, o referendo abriria um capítulo decisivoda vida daquele povo. Do anterior, cir-cunstâncias históricas (o PREC) e profis-sionais (repórter na RTP) haviam-me feitotestemunha no terreno, ligando-me inten-samente a ele.O terreno é para o jornalismo – aprendi noagitado Verão de 1975 – o mesmo que o«ver claramente visto» camoniano. A pre-ciosa mais-valia que esta disciplina oferece

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aos contemporâneos, dispersos por miloutras tarefas ou/e divididos por múltiplose quantas vezes antagónicos interesses.Afinal, está à vista, não deixei de escreversobre Timor. Mas continuo a acreditar nanecessidade de ir ao terreno, regular-mente, para captar sinais que de outromodo nos escapam e podem revelar-seessenciais na descodificação do que, aolonge, nos parece indecifrável.Isto para lhe dizer quanto a invejo por aíestar neste momento e quão redobrada vaiser a atenção que prestarei às novas de quese fará mensageira.Antes da réplica à sua carta, deixe-me apa-nhar a boleia da sua agenda aí. Vi que seencontrou já com a oposição, e por issotalvez o meu pedido chegue um tanto atra-sado. Mas estou certo de que a questãoaflorou nos vossos encontros. E podesempre voltar a ela, nas trocas informaisde impressões que o autêntico fórumromano que é o átrio do Hotel Timor aindalhe vai proporcionar até ao fim da missão.O que é que tem feito a oposição? Quepensa ela do que se passa hoje em Timor?Que saídas vê? Sobretudo: que contributosério deu, ao longo desta arrastada elamentável crise, para a sua resolução?Há muito que penso ser dramático o fossoentre os líderes da resistência e a novageração. Convenci-me de que situaçõescomo a que o país vive agora favoreceriama emergência de novos rostos, quiçá até,de um novo discurso no espaço público –ou aquilo que, embora exíguo, pode consi-derar-se de algum modo o espaço públicotimorense.Julgo que nada disso aconteceu. A menosque uma outra realidade se esteja a viver num

plano que nos escapa (expresso-o comoautocrítica: receio que o nosso – dos políti-cos, cooperantes, jornalistas portugueses –desconhecimento quase generalizado dotétum nos deixe à margem de importantessubtilezas do processo político).É fácil culpar a actual liderança pela faltade novos líderes. Como antes foi colocardisso o ónus no colonialismo português,no colonialismo indonésio, na ONU.Embora justas, estas críticas devem seralargadas aos outros actores. E dentreestes, não apenas aos históricos. Por issolhe peço que numa das próximas cartaspartilhe comigo e com os leitores o pontode vista que recolheu dos políticos maisnovos. Interessa-me saber em particular,como adivinha, o que pensam disso esobre a crise os homens do Partido Demo-crático, em quem Xanana tanto apostou.Tudo isto me serve de passagem para aquestão que aprofunda na carta de hoje eque tem a ver com a «matriz totalitária» daFRETILIN. O que conhecemos da históriados primeiros anos da guerrilha só o con-firma. Xanana Gusmão, em boa hora, fez adenúncia. A Comissão de Acolhimento,Verdade e Reconciliação constituiu umbom pretexto para que a catarse dessesanos de chumbo se estendesse a todo opovo e, também, aos outros partidoshistóricos. Nunca mais esquecerei osmomentos de grandeza humana que teste-munhei, nos três dias da sessão, em Díli,em Dezembro de 2003.A Ana lembra a arrogância totalitária pas-seada por todo o Timor, nas eleições de2001, pela FRETILIN, nisso bem represen-tada, negativamente, pelas declaraçõesinaceitáveis de Alkatiri.

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Eu poderia, talvez, para atenuar a negridãodo quadro, recorrer às cores da sempreútil contextualização: tratava-se das pri-meiras eleições livres, num país saído de24 anos de ocupação militar, contra a qualum partido, chamado FRETILIN, se distin-guira, acima de todos os outros.A sua carta acrescenta, porém, um con-junto de dados de facto do período pós--independência, que só acentuam atendência para um controlo centralizadorde cariz totalitário do lado do partido nopoder. Também aqui outra coisa me nãoresta, pois, que não seja concordar consigo.Lembrado da votação do braço no ar e daeleição de Rogério Lobato para Vice-Presi-dente, claramente provocatória, naquelecontexto, volto a encontrar-me consigo naideia de que Mari Alkatiri teria prestadoum enorme serviço ao Estado timorense e também à FRETILIN se tivesse tomado a iniciativa de demitir-se, por aqueles dias.Termina aqui a minha concordância. A sua avaliação de responsabilidadescoloca a FRETILIN no principal lugar entreos culpados. Porque, diz, ela não ponderousuficientemente os «riscos e consequên-cias» da crise de Abril-Maio, «na perspec-tiva dos interesses da nação independentede Timor-Leste».Voltaremos certamente ao tema quandoabordarmos os papéis de Xanana, Horta eIgreja na crise (e de Taur Matan Ruak, jáagora). Mas eu tendo a concluir exacta-mente o contrário. Que nesse particular aFRETILIN assumiu um comportamentoglobalmente positivo. E direi mesmoexemplar.É verdade que quando decidiu finalmenteentrar em Díli, para apoiar Alkatiri, em

Junho, a FRETILIN não trazia os 100 ou 150mil timorenses com que o então primeiro--ministro gostava de esgrimir, ameaçador,sempre que o lado contrário aparecia comos seus 200, 500, dois mil apoiantes dapraxe a exigir-lhe a demissão.Mas não duvidemos de que – por mais quea sua capacidade mobilizadora esteja atin-gida – a FRETILIN poderia ter incendiado opaís, assim a sua liderança quisesse. Nãolhe faltaram os pretextos. Nem sequer asrazões, à luz de um meridiano direito deresposta, tantas as provocações de que foialvo.A FRETILIN cometeu vários erros graves.Atrás deixei a minha concordância comalguns que lhe aponta. Não se lhe podeassacar, porém, nem de perto nem delonge, a principal responsabilidade da crise.A certa altura do pico da contestação derua – e por aqui me fico, oferecendo-lhe apassagem para a análise da actuação deXanana e, eventualmente, da Austrália –dei por mim a pensar que só faltava pedir--se à FRETILIN que fizesse hara-kirihistórico-político: que desistisse de serGoverno; que desistisse de ser o partidomaioritário; e que entregasse tudo isso, seilá, ao major Tara, ao lado de quem vi umdia Xanana, de pé sobre o tejadilho docarro de um filho seu, Nito, falar a ummilhar de manifestantes vindos do Oestedo país (loromonu).Em Díli, ainda hoje, como está certamentea comprovar, milhares de cidadãos dor-mem todas as noites em campos improvi-sados. No aeroporto, no Colégio D. Bosco,nas Canossianas, em frente da ONU, nojardim público entre o Hotel Timor e asinstalações da tropa australiana, no porto.

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Porque correm risco de vida se o fizeremnas suas casas. São, todos ou quase todos,oriundos do Leste do país (lorosae).Uma parte dos timorenses encontra-se,pois, sequestrada há meses no seu própriopaís. Por outra parte dos timorenses. Ape-sar da presença de forças armadas e poli-ciais australianas, neozelandesas, malaiase portuguesas.Pois bem, apenas por uma vez, e de formapacífica, os cidadãos lorosae desceram aDíli para protestarem. Não sei quantospartidos de países democráticos, em situa-ção parecida, teriam actuado com a pon-deração e a contenção da FRETILIN e dasua liderança.ADELINO GOMES

LISBOA, 31 DE OUTUBRO DE 2006

CARO ADELINO,

Apetecia-me trocar de papéis, armar-meem repórter, e relatar o que vi, senti ededuzi do nosso dia de hoje. Nosso, dadelegação do PE em que me integro. Quesaiu às oito da manhã do Hotel Timorpelas montanhas acima, em direcção aMaubisse, com curta paragem em Aileu,para meter ou verter águas e dois dedos deconversa com locais.Apetecia-me descrever o esplendor da pai-sagem: Díli espraiada a nossos pés pri-meiro; o imponente recorte de Ataúro,suspenso da neblina, no meio do mar; ascurvas e contracurvas a revolverem-me oestômago da estrada estreita e esburacada,os cumes sempre verdes de frondosasárvores e bambus, as buganvílias queencadeiam o olhar, as ribeiras secas, osbúfalos nos arrozais repousantes dos vales

e por fim a magia majestosa de Maubisse,com o Ramelau limpidamente recortado aoeste e um desfiladeiro montanhoso a sula sugerir que, se olharmos intensamente,ainda vemos o Índico (o que não é o caso,porque atrás daquelas gargantas há mais50 quilómetros de montanhas…).Soubesse eu contar o eco emoliente dosventos que se cruzam pelo vale imenso noterraço da Pousada… Mas poderia talvezfalar do novo hospital/maternidade distri-tal em construção, que estará a funcionarjá no início de 2007, integralmente finan-ciado pela UE. E do actual – a diminutaclínica dos tempos indonésios, onde falá-mos com os jovens médicos e enfermeirascubanas, de olhos reluzentes pelo bemque fazem, apesar da dureza do quoti-diano que suportam, a recordar-me asduas extraordinárias jovens professorasportuguesas que encontrei, montanhasadiante, em Ainaro, em 2000. E noregresso a Díli, o Emanuel Jardim Fernan-des a perguntar: «Mas não há gadonenhum, então não podiam ter distri-buído umas cabeças para pastar por estesmontes e vales? Sempre era um rendi-mento que se dava a esta gente…».E depois poderia fazer uma síntese do queapreendemos (e aprendemos), já regressa-dos a Díli, no contentor do general TaurMatan Ruak (ilha frigorífica no calorpesado da tarde em Taci-Tolo) e já pelanoite dentro, no quartel da missão daONU. E, por fim, evocar as lagostas gre-lhadas com que nos batemos, no restau-rante balinês da praia, ao lado doconcorrido Carlos, a provar que os expa-triados teimam em fintar a insegurançadas últimas semanas em Díli.

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Mas ainda vou ter de dormir alguma coisa,amanhã partimos às 7 para Baucau. Porisso só me posso dar ao luxo de lhe man-dar uns parágrafos para esgotar o temaFRETILIN (que é, de facto, inesgotável),reagindo às suas observações em que sediz discordante de mim.E vou valer-me do que ouvi hoje, do Sr. Abrantes, project-manager pela UE do hos-pital em construção em Maubisse, do Sr. Abel que conduzia o nosso jipe, dasjovens com quem conversei em portuguêse indonésio em Aileu, dos operários deMaubisse e do general.Todos eles, de uma maneira ou outra,sublinharam que este governo «do senhorHorta» tinha de fazer alguma coisa pelopovo, que o povo visse como tal, para apa-ziguar o conflito e para os orang kecil (os«pequenos») – reganharem confiança nosorang besar («os grandes»).O general disse isso – que este Governo,que é da FRETILIN, tem de mostrar obra aopovo, obra que o povo meça na melhoriada sua vida (primeiro segurança, depoisemprego, mesmo que precário). E dissemais: contou que no auge do impasse emJunho, depois do ultimato do PresidenteXanana para que o primeiro-ministro sedemitisse, ponderara com a FRETILIN, emBaucau, as seis opções que havia (ele jáinteriorizou por completo a lógica discur-siva dos militares…) e no final, apesar doprecedente perigoso que se criaria, acon-selhara o primeiro-ministro «a resignar»,sublinhando a vantagem para a FRETILIN

de novo fôlego, novas energias, para a pre-paração das eleições de 2007.No início da conversa, nos factores de pre-cipitação da crise – um conflito político,

e não étnico, sublinhou – o general elen-cou quatro: 1) problemas políticos malresolvidos ou não resolvidos entre ostimorenses nos últimos trinta e um anos;2) interesses múltiplos, internos e exter-nos; 3) choque de personalidades entre osvários grupos de timorenses; 4) má gestão(«há outros factores, mas é claro que ogoverno também tem culpa: a má gestão,o radicalismo, o controlismo»).Elaborando um pouco mais sobre o ter-ceiro factor, o general identificou três gru-pos (cada qual com a sua mentalidade)que estão a aprender a conviver com oschoques que suscitam: 1) os do mato,como ele, frontais e ferreamente discipli-nados para sobreviver; 2) os exilados, namaior parte marcados pelos países africa-nos onde viveram, «nessa altura todos emregime totalitário, de partido único, umamaneira de ser diferente»; 3) os «de cá dedentro», obrigados a desenvolver duplapersonalidade para sobreviver, convi-vendo/colaborando com os ocupantes etrabalhando para a Resistência.Meu caro Adelino, a que vem isto tudo?Serve para lhe dizer, concorrendo consigo,que há uma grande, mítica FRETILIN

– aquela que ganhou as eleições em 2001,apesar da campanha desastrosa, e aquelaque ganhará as próximas eleições, por muitoque militantes e apoiantes se arrepelem comos erros e omissões na governação – que éfeita de três FRETILINS, com os inerenteschoques de mentalidades dos três gruposidentificados pelo general Matan Ruak.Desde 2001 tem prevalecido a do grupodos exilados. Legítima e logicamente: é,tecnicamente, o mais preparado para agovernação. Mas é também o mais dis-

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tante do que sentem, sofrem e pensam osoutros grupos – não só no partido, nasociedade em geral (recorde que quem sebateu sempre pela reinserção social e oreconhecimento honorífico dos veteranosfoi o Presidente Xanana; e o problemaainda não está resolvido pelo Governo…).Por isso o esforço de inclusão social deviaser maior, imperativo. Mas esse esforçono primeiro governo constitucional falhou(por muito boas e por muito más razões).E a verdade é que o Estado não se constróisem o envolvimento, a corresponsabiliza-ção do resto das FRETILINS e do povo (queinclui os representantes da oposição – eum dos aspectos mais deprimentes de quesó agora tomei consciência foi o desprezoa que o governo de Mari Alkatiri votou oParlamento timorense, estimulando temorreverencial nos deputados da FRETILIN e airresponsabilidade dos partidos e deputa-dos da oposição).Claro que a interacção/tensão entre as trêsFRETILINS existiu sempre e fez-se sentirsobretudo nos momentos de crise. Comoa que determinou a extraordinária conten-ção (estou de novo de acordo consigo) quea FRETILIN exibiu nas manifestações con-tra os tais dois mil manifestantes antigo-verno (se bem que não foi fácil arrebanharos três ou quatro milhares que vieram doLeste a Díli, muitos até dando vivas ao Pre-sidente Xanana e muitos à espera da pro-messa de missa no retorno…). E nisto nãoretiro até o crédito a Mari Alkatiri – umhomem muito inteligente e patriota, queterá caído em si ao compreender que ostais 200 mil não afogariam apenas a opo-sição em Díli – afogariam o país (ouincendiariam, como diz você).

Também posso concordar consigo quandovocê enaltece a FRETILIN na contenção dostimorenses lorosae que desceram a Díli,ofendidos pelos ataques aos seus conterrâ-neos (atenção, nos campos de deslocadosde Díli não dormem só lorosae).Mas, meu caro Adelino, a FRETILIN tam-bém tem de assumir pesadas responsabili-dades no empolamento da estigmatizaçãolorose/loromunum, hoje com gravíssimasconsequências que vão levar tempo acurar. Bem sei que uma parte da FRETILIN

procura agora espalhar que foi Xanananum discurso em Março que amplificou adivisão lorosae/loromunu – ainda estou aaveriguar que repercussões no povo efecti-vamente teve esse discurso ou outros pos-teriores.Mas quem contribuiu para essa artificialdivisão foi também o Governo, ao deixararrastar sem solução a crise dos peticioná-rios (que alegavam discriminação contraos loromunus nas FDTL), até à aberração dea resolver abruptamente com o despedi-mento de um terço das Forças Armadas – oque em qualquer democracia seria receitapara queda do governo, no mínimo, egolpe de Estado em muitos países domundo. E não foi o perigoso psicopata queMari Alkatiri teve e manteve como ministrodo Interior, que se valia do superequipa-mento da Polícia (cortesia da cooperaçãoaustraliana e britânica…) para competircom as Forças Armadas que dizia domina-das pelos lorosae (foi um homem dele, Abí-lio Mesquita, que comandou o ataque àcasa do general Taur, foram as forças deleque atacaram as FDTL em Maio). Não eraRogério Lobato – o homem que a FRETILIN

de Alkatiri tentou içar a Vice-Presidente,

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depois, provocatoriamente, como vocêdiz – que se armava em chefe das «forçasarmadas dos loromunus», atiçando assim aconflitualidade lorosae/loromunu?Nunca esteve em causa o hara-kiri da FRETILIN, a desistência de governar, a entrega do poder aos majores Tara ouReinaldo. E que outros partidos timoren-ses têm quadros suficientes com capaci-dade para governar o país, em alternativa?Em causa sim estava a necessidade de umagovernação mais inclusiva. E para isso erapreciso o hara-kiri de parte do grupo FRE-TILIN do exílio. De quem não tinha maiscondições políticas para governar – dequem tinha, por erro, omissão, mácomunicação – alienado o apoio do Presi-dente, da Igreja e de boa parte do povo.Como eu vi em Maio e disse, a 24 dessemês, a Mari Alkatiri e a todos os dirigentesda FRETILIN que encontrei então.E tanto assim era, que assim foi: apenastrês membros do Governo Alkatiri foramsacrificados: primeiro foi o ministro daDefesa. Depois o do Interior. E por fim, oprincipal responsável pela crise na percep-ção geral, por boas e más razões: o próprioMari Alkatiri. O resto está lá tudo, noGoverno Horta: os ministros-chave conti-nuam a ser da FRETILIN do exílio. A pro-curar cumprir os planos e as directivas deAlkatiri, mas sob o estilo hiperdialogantede Ramos-Horta.E em Timor-Leste, hoje, do PresidenteXanana, passando por Horta, aos seusministros, aos quadros e apoiantes daFRETILIN, o povo nas montanhas e povoa-dos, todos torcem por que o governogoverne. Governe melhor. Governe que seveja. Que o povo sinta. Governe a infor-

mar, consultar e co-responsabilizar tam-bém os partidos da oposição e a Igreja.Para que diminua a conflitualidade entreos grandes. E os pequenos o sintam. Paraque haja eleições livres, pacíficas. Para quea FRETILIN ganhe. Mas não por muitomenos do que em 2001.Como me dizia, retumbante, um dos meusinterlocutores de hoje em Maubisse, con-fesso incondicional da grande FRETILIN, o partido da Resistência: «A FRETILIN

ganha sempre. Mas se for o Sr. Mari,mesmo com este governo a dar de comerao povo, ganha à rasquinha. Mas se for oZé Guterres, ganha 100 por cento.»Claro que lhe retorqui que com 100 porcento não haveria democracia em Timor--Leste.ANA GOMES

DÍLI, 1 DE NOVEMBRO DE 2006

CARA ANA,

Pensei, a certa altura da sua descrição – viva, colorida, de excelente recorte jorna-lístico… – que a delegação do ParlamentoEuropeu ia acabar, algures lá para a mon-tanha, no refúgio de Reinaldo.Compreendo a resposta do primeiro--ministro, quando me disse, numa entre-vista recente, que enquanto houver umapossibilidade de evitar tiros, essa possibi-lidade deve ser explorada. Entendo a justi-ficação pastoral da ida do bispo XimenesBelo e, até, que a ONU lhe tenha posto àdisposição um helicóptero. Mas ninguémme soube justificar ainda a razão pela qualaltos representantes da Justiça, da ONU edo contingente australiano (neste caso opróprio general Slater) hão-de ter longa-

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mente negociado com o oficial fugitivo.Para no fim lhe ouvirem dizer, ufano, aosmedia, que só se entregará quando…entender por bem.Quem representa Reinaldo? Os militarespeticionários? Mas esses não são repre-sentados por Salsinha? Os descontentesdas Forças Armadas? Mas quantos sãoeles? Os 17 ou 20 que o acompanharam,mais os dois ou três outros majores? Ou –e então sim, começo a compreender, mastudo se tornará, nesse caso, mais obscuroe preocupante – Reinaldo desempenhou//desempenha apenas uma função instru-mental num plano mais vasto e a mais altonível urdido para manter sob pressão opoder do Estado (Governo, Forças Arma-das, Justiça)?Abomino teorias da conspiração. Devodizer-lhe, inclusivamente, que até àdemissão de Mari Alkatiri, quase tudo mepareceu meridianamente claro e condu-zido, do lado presidencial, com sensibili-dade, prudência e respeito pelas regrasconstitucionais: a declaração de emergên-cia; o crescendo do tom presidencial naexigência de mudanças drásticas na gover-nação; e mesmo o ultimato feito porXanana ao ainda primeiro-ministro e àFRETILIN, naquela comunicação ao país atodos os títulos extraordinária (o adjectivoé intencional: o essencial do que nela secontinha ia muito para além do domínioda razão, pairando, como tive ocasião decomentar no Público, nas altas esferas, sóreservadas a raros, da identificação abso-luta do líder com o povo, «o amado povosofredor»).Ao contrário de muitos companheiros dejornada da resistência timorense, que fica-

ram escandalizados com o que lheouviram dizer nesse discurso, repito,extraordinário, pareceu-me perceber queXanana assumia nele o risco de parecerantidemocrata porque considerava estarem causa a sobrevivência do próprioEstado democrático.Tal interpretação levou-me a retirar gravi-dade às deferências, abraços e cumplicida-des públicas do Presidente com osmajores rebeldes, as quais, pelo contrário,me pareceram como relevando da consa-bida capacidade de Xanana para, distin-guindo o essencial do acessório, nãohesitar em parecer ceder neste para alcan-çar aquele, salvando ao mesmo tempo opovo e o país de escaramuças desgastantese inúteis.A crise, apesar dos custos políticos ehumanos que acarretara o seu excessivoprolongamento, parecia ter sido sustida atempo. Na linha do que foram aspromessas públicas e era, julgo, a convic-ção generalizada, convenci-me de que coma resignação de Alkatiri e a sua substitui-ção por José Ramos-Horta, a calma regres-saria à rua e as instituições do Estadoretornariam, progressivamente, à normali-dade. E de que, para lá do desafio delicadoque estes oito meses iam representar paraHorta (um passo em falso e lá se afunda-vam as legítimas ambições que alimenta,nos planos interno e externo), a oportuni-dade era única para que o tira-teimas elei-toral da próxima Primavera constituísseuma vez mais um exemplar exercício depoder popular em democracia.Assim não tem acontecido. Reinaldo fugiue permanece armado na montanha; grupos rivais confrontam-se nas ruas da

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capital; a intolerância étnica continua aobrigar a viver fora de casa mais de 100 milpessoas.Ao mesmo tempo, assistimos à consolida-ção da presença militar da Austrália nopaís, fora da cadeia de comando das NaçõesUnidas. Isto enquanto pequenos-grandessinais apareciam de que elementos do con-tingente australiano começavam a compor-tar-se como se de uma força de ocupação setratasse.Fiz-me eco de alguns desses comporta-mentos.Apesar de absolutamente confirmados(por uma das principais vítimas, TaurMatan Ruak, que ocupa, não por acaso, omais alto posto da hierarquia das ForçasArmadas timorenses), tais comportamen-tos não provocaram, da parte do Presidenteda República e comandante-supremo dasForças Armadas, qualquer tomada de posi-ção pública. Ou sequer privada.Alkatiri abandonou o Governo, saiu o rela-tório da Comissão Especial Independenteda ONU (que todos prometeram respei-tar), mas a crise continua.Como se não fosse Alkatiri que importasseafastar, mas a FRETILIN. Já. Mesmo antesdas eleições. E apesar da presença militare policial internacional, das garantias deuma justiça imparcial e justa para os cri-mes cometidos, e de um apoio técnicoconsiderável por parte das Nações Unidaspara que os actos eleitorais que se aproxi-mam decorram com respeito pelos direi-tos de todas as partes envolvidas.Julgo que ainda teremos pelo menos maisuma oportunidade para esgrimir argumen-tos. Direi então, espero, quanto admiroXanana Gusmão, a quem considero (olha a

novidade…) a figura de referência máximada independência timorense. Mas porqueo continua a ser, mais se estranha o seucomportamento, no mínimo errático, aolongo da crise. E o silêncio (tambémmediático: nem uma declaração aos jorna-listas, nem uma entrevista) com que ruido-samente vai sublinhando muitos destesepisódios. Abrindo margem para todas asespeculações, para todas as suspeitas,mesmo as mais ofensivas.Fico a aguardar, ansioso, a sua resposta.Esperando que dos contactos entretantopor si mantidos aí, alguma nova luz possafinalmente vislumbrar-se, ao fundo dodesesperante túnel da crise timorense.ADELINO GOMES

LISBOA, 2 DE NOVEMBRO DE 2006

CARO ADELINO,

Estou no confortável lounge do aeroportode Bali, embalada por música de fundo deflauta e pingos de água, à espera da liga-ção para Singapura. Saímos de Díli noavião da Merpati à hora. Daqui escreve-mos, o Emanuel Jardim Fernandes e eu,uma carta ao ministro Luís Amado. Graçasà Internet, já lá está. Sugestões/recomen-dações de acção (que isto de «deputar»fez-se também para incentivar os gover-nos).Neste caso, na sequência do apoioexpresso pela nossa delegação do PE àrecente resolução do Parlamento timo-rense, adoptada a 26 de Outubro, no sen-tido de se assegurar comando unificado,sob a égide da ONU, para as forças inter-nacionais, militares e policiais, em Timor--Leste. Uma posição parlamentar de

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pressão contra a carta enviada peloprimeiro-ministro Ramos-Horta ao secre-tário-geral das NU aceitando o comandoaustraliano (mas não só o p-m – veja-se ocomunicado em inglês do gabinete deste,emitido a 27 de Outubro, citando o vice--primeiro-ministro e vice-presidente daFRETILIN, Estanislau da Silva, reafir-mando o «full support for Australian andNZ troops»).Em encontros com todos os nossos inter-locutores, incluindo o Presidente e o pró-prio primeiro-ministro («vintage Horta»…)percebeu-se que se procura agora espaço erespaldo para recuar nas concessões dadita carta. A ideia é negociar um acordotripartido – Timor-Leste, Austrália eONU – idealmente incluindo um papelpara o que resta das FDTL (que, se conti-nuam encurraladas, também se poderãotornar mais um factor de instabilidade).Na sede da missão da ONU confirmou-seque até ao lavar dos cestos é vindima. E deu para ver que ali (e em Nova York…)também se saliva pelo braço-de-ferro comCamberra. Que Portugal e «países afins»se cheguem à frente, portanto! (Já agora: aIndonésia está no Conselho de Segurançae é um óbvio aliado. Só se, de todo, nãosoubermos tocar guitarra…).Tentarei agora responder às questões queo Adelino me pôs na sua segunda carta.Começo pelo papel da Igreja Católica. A Igreja é indubitavelmente um pilar fun-damental da sociedade timorense, apesarde o povo, na realidade, continuar a sermais animista do que católico. A Igrejateve um papel fundamental na Resistên-cia – ninguém contribuiu mais para uniros timorenses contra o ocupante indonésio.

A Igreja manteve a principal estrutura daResistência no interior do aparelho deEstado indonésio em Timor-Leste e pô-laao serviço da Resistência, em apoio e arti-culação com a guerrilha, as FALINTIL.A Igreja tem, por tudo isso, uma legitimi-dade histórica de intervenção política esocial, que vai muito para além do seupapel espiritual. Isso qualquer governantede Timor-Leste deveria saber, respeitar, eaté aproveitar. Foi tudo isso que a lide-rança desta FRETILIN sugeriu em palavras,mas não fez realmente. Embarcou numbraço-de-ferro contraproducente e arro-gante com a Igreja, quando obrigou osseus estabelecimentos de ensino e profes-sores a pagarem impostos. Num país quenão tinha escolas a funcionar!… E onde oque a Igreja fazia, evidentemente aprovei-tava ao povo, evidentemente aproveitavaao Estado, logo devia aproveitar politi-camente ao Governo, incapaz de se lhesubstituir de imediato a criar estruturasalternativas de educação e ocupação dosjovens. Depois foi a crise das aulas de Reli-gião e Moral em 2005, por um mal--entendido que podia ter sido evitado sehouvesse real comunicação com a Igreja –bastava agarrar no telefone e falar regular-mente com D. Basílio, consultá-lo, ouvi--lo, e desse modo até co-responsabilizar aIgreja nas decisões da governação. E tudose complicou ainda mais, desde o banhode sangue que Rogério Lobato quasedesencadeou face à manifestação demilhares de pessoas diante da residênciaepiscopal de Díli. Esta direcção da FRETI-LIN nada aprendeu com aquele momentoà beira do precipício: manter a partir daliRogério Lobato no Governo era afrontar a

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Igreja. Que desde então avisava que eleestava a comprar armas por fora e a armarcivis…Para perceber o que é a Igreja timorense,há ainda outra dimensão: é preciso ir aBaucau e visitar os distritos do Leste. E verpara além das missas a abarrotar. Ver quetoda a actividade económica significativapor lá, por incipiente que seja, se deve àiniciativa, aos investimentos e financia-mentos da Diocese, a fomentar o empre-endedorismo e a exploração dos recursose capacidades locais. Da recolha do camipara exportação para a Indonésia à Gráficade Baucau, da Pousada de Baucau, à agên-cia do BNU/CGD, das linhas telefónicas aoabastecimento de electricidade (final-mente só este ano a cobrir mais de seishoras por noite), à extraordinária Car-pintaria de Baucau (que emprega já 30timorenses, faz formação, desenha omobiliário escolar que fabrica e já temcontratos para fornecer estruturas desofás para Darwin) – tudo isto se devendoà acção de D. Basílio do Nascimento e dosseus assistentes, contra a inacção, a buro-cracia paralisante, a má-vontade e porvezes o boicote do Governo de Díli. Tam-bém não poderia ser de outra forma – naobsessão centralizadora do governo deMari Alkatiri, o administrador do distritode Baucau (um alto quadro da FRETILIN,evidentemente), tinha apenas no orça-mento 800 dólares americanos para gastaranualmente…Uma sua outra questão, Adelino, respei-tava aos partidos da oposição – o que pen-sam da crise, qual tem sido a suacontribuição, quais as alternativas quepropõem. Mas, meu caro Adelino, os par-

tidos da oposição não têm sido apenasmenorizados pelos políticos, jornalistas eanalistas portugueses, como você diz. Eles– e o Parlamento timorense onde têmassento – têm sido escandalosamentemenorizados por todos: pela FRETILIN,pelo Governo e até pelo Presidente daRepública (e, como eu já disse, eles nãoexistiriam se não fosse o Xanana incenti-var-lhes a criação, para que houvessebases para construir a democracia).Mas custa muito chegar a Díli e ouvir,diante de deputados e funcionários do PE

não-portugueses, o rol de atitudes desqua-lificantes a que foram votados o Parla-mento e, logo, os partidos da oposição.Dou-lhe só mais uns exemplos significati-vos: o ex-primeiro-ministro só foi ao Par-lamento uma vez por ano, para discutir oOrçamento de Estado e proibia os minis-tros de se deslocarem para o mesmo efeitoàs comissões parlamentares (Ramos--Horta já está a ter prática diferente, disse-ram-nos). Está ciente de que o Parlamentotimorense, em violação da Constituição,nunca foi até hoje ouvido nem achadosobre a decisão de convidar tropas estran-geiras a entrar no país?Claro, quando se menoriza, desresponsa-biliza-se e incentiva-se mesmo a irrespon-sabilidade.E no entanto há gente de extraordináriaqualidade e responsabilidade nos princi-pais partidos da oposição. Gente quepoderia estar perfeitamente a trabalharcom a FRETILIN, no Governo ou no Parla-mento, como já trabalhou, arriscando avida, na Resistência.É triste ouvir Mariano Sabino, que é secre-tário-geral e chefe da bancada parlamen-

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tar do segundo maior partido, o PartidoDemocrático, queixar-se de que apesardos pedidos insistentes dos deputadosainda não lhes foram sequer enviados ostextos dos acordos bilaterais assinadoscom os países fornecedores das forçasestrangeiras hoje estacionadas em Timor--Leste. O jovem Mariano Sabino que euconheci em Jacarta, em 1999, de boina àChe Guevara, aguerrida e inteligente-mente a defender um Timor independentecontra os integracionistas, em colóquios edebates com militares, políticos e jornalis-tas indonésios. O jovem Mariano Sabino,que um dia vai ser primeiro-ministro deTimor-Leste (anote!). O jovem MarianoSabino que em 1999 não falava nem umapalavra de português e, hoje, passadosseis anos, mantém toda a conversa com adelegação do PE na nossa língua. Ficodoente quando alguns insinuam que agente do PD, da geração que a ocupaçãoindonésia impediu de aprender portu-guês, é «antiportuguesa» ou antilínguaportuguesa. Se é (e não é, realmente) aculpa é nossa, que não nos chegámos àfrente para os ajudar a vencer a diminuiçãoda língua.É triste, finalmente, ouvir um homem res-peitado, como o Eng.º Mário Carrascalão,líder do PSD, que foi um grande governa-dor de Timor – indonésio, mas reconheci-damente sempre a proteger e a ajudar opovo – dizer «considero uma vergonhahaver tropas estrangeiras no Timor-Lesteindependente, mas é graças a elas que euainda estou vivo».Vamos à sua última questão.Quem representa Reinaldo, por que senegoceia com ele, por que é protegido e

até visitado pelo bispo Belo? Por que nãose prende um homem que desafia ostensi-vamente o Estado e assassinou soldados,segundo prova um filme da TV austra-liana?Alfredo Reinaldo («Reinado», como porvezes surge na imprensa, é «nome deguerra») liderou um punhado de homensquando desertou das FDTL, em protestocontra «o massacre» de Taci Tolo, a 28 de Abril, quando as FDTL atacaram os«peticionários» da FDTL, por ordens deMari Alkatiri (na véspera, a Polícia haviafalhado no cumprimento da ordem dadaao ministro do Interior de impedir a mani-festação, infiltrada de «Colimaus 2000» eoutros gangs, de atacar o Palácio doGoverno; as FDTL já foram exoneradas do«massacre» pelo Relatório da Comissão deInquérito da ONU, mas ainda há gente queouviu o dia e noite de tiroteio e que pensaque ele existiu).Depois, a 23 de Maio, enquanto dava umaentrevista à SBS australiana, Reinaldo dei-xou-se filmar a disparar – e matar – algunssoldados das FDTL em Fatuhai. A fanfarro-nice valeu-lhe passar de rebelde, porven-tura com uma justa causa, ao estatuto decriminoso. Um estatuto que o mitifica aosolhos dos gangs de jovens que enxameiamDíli e hoje se apuram no apedrejamento eno arco e flecha (num país de 60 por centoda população com menos de 18 anos, e 80por cento desses jovens sem emprego,escola ou entretenimento). Para eles Rei-naldo é um herói, o «Rambo» timorense.Mas não é só para eles – Reinaldo, que éoriginário de Aileu e agora estará algurespara essas bandas, está protegido pelapopulação, como em Maubisse, Same e

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Alas, onde já esteve. Porque ele também setransformou no herói dos loromunus, agoraque esta desgraçada clivagem se criou ecavou. Ele ousou pegar em armas, supos-tamente para os defender – esse é o mitoque se espalhou entre a população doOeste, que sabe que as discriminações nas FDTL alegadas pelos «peticionários»tinham fundamento.Como eu disse à imprensa portuguesa emfinais de Maio, Reinaldo era um actorsecundário. Mas o prolongamento da crise– e a resistência de Alkatiri a demitir-seprolongou-a e agravou-a – deu-lhe relevo,criou-lhe uma aura mítica. A nós, delega-ção do PE, também chocou, como o chocaa si, Adelino, que ele continue a monte e afanfarronar, guardado por militares aus-tralianos, visitável pelo brigadeiro MickSlater (entretanto retirado à pressa porCamberra) ou pelo bispo Belo (por enco-menda do governo da FRETILIN). Mas,como nos foi dito pelo Presidente, P-M e pela ONU, ele hoje é menos perigosono esconderijo protegido, do que no meiode um centro populacional (como os Salsi-nhas, Taras e Railos que à solta, acantona-dos com grupos de peticionários estão emLiquiçá, Ermera e Gleno). É menos peri-goso do que na prisão de Becora, de ondefugiu com evidente conivência australiana.A sua presença em Díli, mesmo na cadeia,só instigaria mais os gangs de jovens quesão hoje a principal causa da insegurançaem Díli (muitos pagos para beber e atacar,como no tempo das milícias indonésias – énatural que os integracionistas ressabiadosde 1999, do lado de lá da fronteira, estejamtambém a aproveitar a situação, valendo-sedos velhos métodos).

A detenção de Reinaldo em meados deJulho, efectuada pelos australianos, mascom intervenção da GNR, desencadeouuma onda de ataques e insultos escritospor toda a Díli contra a GNR e contra Por-tugal precisamente porque se espalhara orumor de que era esta última quem o tinhaprendido. A ministra Ana Pessoa diz que oacompanhamento dele e dos grupos depeticionários acantonados por militares ehelicópteros australianos é encarado pelapopulação como menos para efeitos decontrolo e mais para protecção. Será assimpara muita gente da FRETILIN e do Leste.Mas não é assim que é visto pela maioriada população de Díli e do país, hoje cata-logada de loromunu. E a verdade é que hojetodos temem que se/quando o AlfredoReinaldo for de novo preso, se descontro-lem os protestos dos jovens e das popula-ções do Oeste. Onde, devido à desgraçadaclivagem lorosae/loromunu, a FRETILIN hojenão ousa (ou não pode) levantar a cabeça.É o banho de sangue que, como lhe sugeriuRamos-Horta, todos querem e sabem que épreciso evitar. E ninguém como o Presi-dente Xanana o pode fazer, porque ninguémcomo ele conhece o «amado povo sofredor».Ninguém como Xanana tem trabalhado esabe trabalhar para evitar mais conflitos aoseu povo. Por meios que, muitas vezes, nós,malais, não podemos entender e que obvia-mente não se enquadram nos procedimen-tos de um Estado de Direito. Mas a verdadeé que ainda não há um Estado de Direitoconsolidado em Timor-Leste, como estacrise demonstra (e em Portugal, depois de30 anos de democracia, também não trope-çamos todos os dias em flagrantes atropelosao Estado de Direito?).

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Esta sua questão permite ir, de facto, aofundo do problema. A crise começou poreclodir como sendo de segurança, degene-rou em crise política e revelou uma gravís-sima crise social. Que a governação deMari Alkatiri, por muito eficaz e estrutu-rante do Estado e dos proventos do Estadoque tenha sido, ignorou totalmente. Por-que a elite dos exilados na direcção daFRETILIN, por extraordinárias que fossemas suas intenções e competências, nãotinha a essencial «ligação às massas».Ramos-Horta, o hiperdialogante, foi delonge quem mais se esforçou por aganhar, naquelas investidas que semprefoi fazendo, por montes e vales, man-dando matar búfalos para conviver com osaldeões. Mas o Presidente Xanana tem-na,entranhadamente, como ninguém – e porisso, embora uma parte o assobiasse, ogrosso lorosae da manifestação da FRETI-LIN em Junho também lhe deu vivas. EmTimor, muitas vezes, o que parece não é.Respondo deste passo a uma sua outraquestão: foi profundamente estúpido – mesmo do ponto de vista da FRETILIN –impor-se uma Constituição que esvazioude poderes o Presidente da República,mais ainda do que a do modelo original, a nossa. Isso reabriu o fosso entre Xananae certos quadrantes da FRETILIN, sobre-tudo no exílio, que nunca digeriram real-mente que ele tivesse autonomizado asFALINTIL, pondo-as sob o arco aglutina-dor de toda a Resistência que era o Conse-lho Nacional da Resistência Timorense. Já foi um castigo convencê-lo a candida-tar-se em 2002. Porque ele sabia que cadavez que acontecesse um problema e elenão interviesse, cerceado pelos limites

constitucionais, o povo interrogar-se-ia,não compreenderia e acusá-lo-ia de inac-ção, de deixar deteriorar a situação. É oque acontece agora com muita gente – oPSD, por exemplo, faz-lhe essa acusação.Eu não isento Xanana de erros nesta crise,por exemplo, o de se deixar aparecer comRailos (e faço a mesma leitura do Adelinorelativamente à sua aparente cumplicidadepara com os desertores/peticionários). O seu principal erro é o de descurar a ima-gem pública, a imagem que passa paraalém de Timor-Leste, para o exterior. Elenão tem ninguém que fale com os jorna-listas, que lhes explique o que anda a fazere porquê. Da última vez que jantei em casadele, em Julho, fiquei abismada com o quedesconhecia do que se dizia dele, do quelhe era atribuído por esse mundo fora (nospin a máquina da FRETILIN é imbatível).Mas no fundo, o que interessa ao Presi-dente Xanana não é o que se pensa dele cáfora. A sua estratégia é dirigida para «oamado povo sofredor». Sabe o seu povo àbeira do abismo, por via desta perversãoestigmatizante dos lorosae/loromunus e dofalhanço das forças de segurança e ordemnacionais. Precisa de fazer tudo paraimpedir um banho de sangue. Tem de oconseguir. No fim de contas, Xanana é oliurai dos liurais. E isso é muito maisdeterminante do que ser Presidente daRepública.Reparo agora que já lhe respondi também,desta penada, às outras questões. Esmiu-çar mais o que penso de personagenscomo Xanana, Ramos-Horta, Mari Alka-tiri, conduzir-me-ia talvez a entrar pelafuturologia. E o presente em Timor-Lesteainda está muito, muito complicado. Pre-

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firo acompanhar antes os próximos capí-tulos, com interesse, atenção e cuidado.Como o Adelino põe sempre nas entrevis-tas, reportagens e artigos que vai publi-cando sobre Timor-Leste. Não sei quandolá volto. Mas lê-lo a si, para ir seguindoTimor, já é meio caminho andado.ANA GOMES

BALI, 4 DE NOVEMBRO DE 2006

CARA ANA,

Eu bem avisei, no início: o estralejar dapolémica iria passar ao largo desta corres-pondência, tão agradável e esclarecedorapara mim. O que não quer dizer, comotentarei evidenciar um pouco mais àfrente, que coincidam as partes cheia evazia que vemos do copo desta crise.Comungo das numerosas críticas quedirige à direcção da FRETILIN. O exemplodo que se passou por estes dias no Parla-mento Nacional impressiona pelas pulsõesantidemocráticas que dele ressumbram.Também a acompanho no olhar sobre aIgreja Católica. Ou melhor: sobre a parteda Igreja que, não por acaso, vai buscarcomo exemplo de acção pastoral e a quemo poder de Estado deve esforçar-se por tercomo parceira e não por adversária (e semque isto signifique, antes pelo contrário,qualquer desculpa pela lamentável actua-ção da hierarquia – D. Basílio incluído – nacrise de 2005).E sobre Xanana, como me parece terficado claro na minha carta anterior.E até sobre certos elementos da oposição.Ainda que aqui eu tenda a valorizar nãoaquilo de que estes se queixam, masaquilo que, mesmo com razões de queixa

contra o partido maioritário e mesmo con-tra o Presidente, deviam ter feito e nãofizeram.A oposição, minha muito cara amiga, tevefalta de comparência nesta crise. E quandofalou/actuou, melhor teria sido que setivesse mantido calada/quieta. Ou eumuito me engano (e como gostava de meenganar!) ou os jovens dirigentes da resis-tência, como Mariano Sabino, inexistiramonde deviam ter marcado presença: no ter-reno das confrontações – o político e osocial.Claro que lhes assistia o direito de denun-ciar erros e abusos do poder maioritário.Mas o mesmo arreganho e a mesma cora-gem com que durante a ocupação soube-ram estar junto dos seus concidadãos, diae noite, fossem quais fossem os riscos,deviam ter eles empenhado mal viram(certamente muito antes de nós, cá fora)que o choque de personalidades no inte-rior da liderança fazia resvalar o país parauma perigosa crise política e social.Era aqui que se impunha (teria sido a suagrande oportunidade de afirmação geracio-nal) uma presença didáctica, preocupadaem distinguir o essencial do acessório. E absolutamente intransigente em tudo oque dissesse respeito a questões de identi-dade nacional. Denunciando erros e ceguei-ras e não procurando (como me pareceu nocaso do PD, precisamente) cavalgar a ondada crise em proveito partidário.Dizia eu que se me afigura muito acen-tuada a diferença de perspectivas com quedecompomos o copo da crise timorense.Onde a Ana nele vê três quartos cheios deerros de Alkatiri e um quarto de todos osoutros factores causais, incluindo Xanana,

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Ramos-Horta e o elemento externo, eutendo a ver esses mesmos três quartos decopo prenhes de responsabilidades dosactores internos – Alkatiri, direcção daFRETILIN, Xanana, José Ramos-Horta,Governo, F-FDTL, hierarquia católica, Par-lamento – e o restante quarto compostopelo elemento externo. Mais do que even-tuais aliados entre os actores internos,considero que os interesses estrangeirossouberam aproveitar os erros, choques depersonalidade, ambições e irresponsabili-dades dos actores internos.Presumo que os nossos anfitriões já hámuito esgotaram o espaço reservado paraesta troca de correspondência. Tenhopena de não ter tido a capacidade de sín-tese para que nesta carta coubessem tam-bém observações sobre a questão cultural,tão desprezada mesmo agora que a «per-versão estigmatizante dos lorosae/loro-monu» explode. Gostava igualmente dejuntar apreciações detalhadas sobre as res-ponsabilidades de cada um dos actoresque acima referi. Custa-me, sobretudo, atéporque acabo de o nomear, não poderexplicar, sem margem para equívocos, porque é que – ao contrário da maioria dosnossos analistas e apesar de várias críticasque também lhe faço – admiro a coerênciaideológica (sim: ideológica) de JoséRamos-Horta e o considero um extraordi-nário político timorense, cujo falhanço àfrente do actual governo, se acaso aconte-cer, será dramático para o futuro do país.Mas não me autorizo a despedir-me semdizer, perante si, perante os leitores e tam-bém perante os timorenses que eventual-mente nos leiam, o que mais me intriga emais me dói nesta crise.

Intriga-me a ausência de sentido de Estadoda liderança timorense.Intriga-me que os homens e mulheres quesouberam perdoar aos inimigos maiscruéis se mostrem incapazes de ultrapas-sar divergências entre irmãos e compa-nheiros de luta.Intriga-me que nem sequer o tentem seria-mente.Dói-me ver que homens e mulheres quearriscaram o conforto, a vida pela digni-dade do seu povo, lancem sobre essemesmo povo sementes de discórdia, agora,precisamente agora que a independênciaeconómica gerada por recursos financeirossem precedentes se juntava à independên-cia política tão duramente conquistada.Dói-me a falta de grandeza tão flagrante einesperadamente demonstrada por aque-les que escreveram das mais belas páginasde inteligente heroicidade nas lutas deautodeterminação do nosso tempo.Termino juntando-me a si na convicção deque o povo timorense se encontra à beirado abismo e que por isso cabe a Xanana – «liurai dos liurais» – o papel decisivo deimpedir que uma divisão trágica (acompa-nhada ou não de banho de sangue) ocorrano país.Permita-me apenas que alargue esse papele estenda essa responsabilidade aosoutros actores históricos do processo delibertação. Os de dentro e os de fora; os daguerrilha e os da cidade; os católicos, osprotestantes, os animistas e os agnósti-cos, que também foram bastantes einfluentes; o mais alto estratego e o maisignaro pé-descalço maubere.Desejavelmente legitimados, já na pró-xima Primavera, pelo voto popular. Cons-

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N O T A S

1 Por razões de espaço, não se publica esterelatório. No entanto, ele pode ser consultadona versão electrónica deste debate, colocadano website do IPR – UNL (www.ipri.pt).

ciente. Mas para valer, sejam quais foremos resultados.

PS: Vejo, horas depois de ter escrito estaúltima carta, que Xanana escreveu hojemesmo um artigo no Jornal Nacional Diário,de Timor-Leste, em resposta ao últimocomunicado do CCF. Além do ineditismoda iniciativa, há a substância do que diz. O artigo continua amanhã e fica de fora,portanto, do «raio de acção» desta troca decorrespondência. Mas para além de regis-

tar, com agrado, o fim do «ruidoso silên-cio» de que o acusei atrás, deixe-me assi-nalar que fiquei impressionado com aforça de vários dos argumentos presiden-ciais. Mesmo que veiculados através deuma linguagem que roça por vezes a gros-seria. Mostrando como, realmente, algose rompeu, quiçá para sempre, entrevelhos camaradas da resistência indepen-dentista. ADELINO GOMES

LISBOA, 5 DE NOVEMBRO DE 2006