receita de beleza, américa economía brasil outubro 2012

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EMPREENDEDORISMO INOVAÇÃO 40 AméricaEconomia Outubro, 2012 Como a ex-empregada doméstica Zica montou uma empresa que dá poder às mulheres de cabelos crespos David Cornejo, de Santiago A Beleza Natural surgiu por uma necessidade pessoal. No começo da década de 1980, Heloísa “Zica” Assis busca- va uma fórmula para tratar de seu cabe- lo ondulado. Os pentes não lhe serviam. Ela fez alguns cursos para cabeleirei- ros e testava em parentes e conhecidos uma fórmula que proporcionasse cabe- los com cachos bem definidos. Em 1993, finalmente chegou à fórmula desejada e patenteou o produto como Super-Rela- xante. Na época, Zica, com três filhos, trabalhava como empregada doméstica e seu marido era taxista. A trajetória da empreendedora seguiu na contramão do que se imaginava em um país onde a dis- criminação contra negros e pardos mani- festa-se ainda hoje em frases como “ele tem um cabelo ruim”. Para tirar partido do invento, Zica de- cidiu montar um salão de beleza. “Não existiam produtos para cabelos crespos no Brasil, nem se pensava nesse seg- mento como um bom negócio. Por is- so, os bancos não se interessaram em fi- nanciar”, comenta Zica. Sem uma linha de crédito, a solução foi que o marido da empreendedora vendesse o táxi para fi- nanciar o salão, batizado de Beleza Na- tural, aberto no popular bairro da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. O atendi- mento começava às 8 da manhã. Não demorou muito para que a fama do pro- duto se espalhasse e as primeiras clien- tes começassem a chegar às 5 da manhã. O projeto cresceu e hoje conta com 11 salões, 1,5 mil funcionários, uma fábri- ca que produz 250 toneladas mensais do Super-Relaxante e 80 mil clientes por mês. A história empreendedora da Be- leza Natural é tão singular e, ao mesmo tempo, tão atrelada ao atual momento da economia brasileira, que os acadêmi- cos do Coppead/UFRJ (Instituto de Pós- -Graduação e Pesquisa em Administra- ção da Universidade Federal do Rio de Janeiro) Maribel Carvalho Suarez, Vic- tor Manoel Cunha de Almeida e Letícia Casotti, em parceria com o antropólogo Hy Mariampolski, analisaram no estudo “Expanding From the Base of the Pyra- mid” (“Expandindo a Partir da Base da Pirâmide”) como a empresa cresceu com clientes de classe baixa do Brasil. O MITO ORIGINÁRIO A inventora do Super-Relaxante fundou a empresa com três sócios: seu marido Jair Conde, seu irmão Rogério Assis e Receita de beleza Zica (de branco), criadora da fórmula para cabelos crespos, optou por deixar a gestão com Leila e os sócios Conde (à esq.) e Assis 40_EMP_BELEZA NATURAL.indd 40 9/27/12 12:07 PM

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EMPREENDEDORISMOInovação

40 américaEconomia Outubro, 2012

Como a ex-empregada doméstica Zica montou uma empresa que dá poder às mulheres de cabelos crespos David Cornejo, de Santiago

ABeleza Natural surgiu por uma necessidade pessoal. No começo da década de 1980, Heloísa “Zica” Assis busca-

va uma fórmula para tratar de seu cabe-lo ondulado. Os pentes não lhe serviam. Ela fez alguns cursos para cabeleirei-ros e testava em parentes e conhecidos uma fórmula que proporcionasse cabe-los com cachos bem definidos. Em 1993, finalmente chegou à fórmula desejada e patenteou o produto como Super-Rela-xante. Na época, Zica, com três filhos, trabalhava como empregada doméstica e seu marido era taxista. A trajetória da empreendedora seguiu na contramão do que se imaginava em um país onde a dis-criminação contra negros e pardos mani-festa-se ainda hoje em frases como “ele tem um cabelo ruim”.

Para tirar partido do invento, Zica de-cidiu montar um salão de beleza. “Não existiam produtos para cabelos crespos no Brasil, nem se pensava nesse seg-mento como um bom negócio. Por is-so, os bancos não se interessaram em fi-nanciar”, comenta Zica. Sem uma linha de crédito, a solução foi que o marido da empreendedora vendesse o táxi para fi-nanciar o salão, batizado de Beleza Na-tural, aberto no popular bairro da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. O atendi-mento começava às 8 da manhã. Não demorou muito para que a fama do pro-duto se espalhasse e as primeiras clien-tes começassem a chegar às 5 da manhã.

O projeto cresceu e hoje conta com 11 salões, 1,5 mil funcionários, uma fábri-

ca que produz 250 toneladas mensais do Super-Relaxante e 80 mil clientes por mês. A história empreendedora da Be-leza Natural é tão singular e, ao mesmo tempo, tão atrelada ao atual momento da economia brasileira, que os acadêmi-cos do Coppead/UFRJ (Instituto de Pós--Graduação e Pesquisa em Administra-ção da Universidade Federal do Rio de Janeiro) Maribel Carvalho Suarez, Vic-tor Manoel Cunha de Almeida e Letícia

Casotti, em parceria com o antropólogo Hy Mariampolski, analisaram no estudo “Expanding From the Base of the Pyra-mid” (“Expandindo a Partir da Base da Pirâmide”) como a empresa cresceu com clientes de classe baixa do Brasil.

O mitO OrigináriOA inventora do Super-Relaxante fundou a empresa com três sócios: seu marido Jair Conde, seu irmão Rogério Assis e

Receita de beleza

Zica (de branco), criadora da fórmula para cabelos crespos, optou por

deixar a gestão com Leila e os sócios Conde (à esq.) e Assis

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a cunhada Leila Vélez. Sem a possibili-dade de obter crédito bancário, os qua-tro contribuíram com suas economias.

Apesar da sociedade, Zica é a inspi-ração. “Ela é a imagem da empresa. As clientes querem ser como ela”, afirma Maribel, coautora do artigo. Seu exem-plo de superação é um ponto-chave em um projeto no qual 70% de suas funcio-nárias são ex-clientes.

Os sócios começaram a atender fami-liares, amigos, e o boca a boca logo os fez investir em mais salões para cobrir a demanda por serviços para cabelos cres-pos. “Tínhamos uma ideia clara de que a empresa transformaria a vida de muitas pessoas, como se pudéssemos ver a au-toestima e a confiança desenvolvida nas

perfeito complemento ao estilo de Zica. Ela trabalhou na franquia de fast-food desde os 14 anos e chegou a gerente aos 19. Desde então, aperfeiçoou-se no Co-ppead, na Universidade de Columbia e de Harvard. “Leila está encarregada da parte estratégica, pensa o contexto e as relações de negócios; Zica é a liderança e a inspiração para os funcionários e clien-tes”, comenta Maribel.

AutOestimA em cOtAsO serviço da Beleza Natural atende não apenas às necessidades de alisamento de cabelos. Também oferece espaços de convivência para as clientes com menor poder aquisitivo, que encontram um oá-sis em contraponto à dura vida em su-

leza Natural. A empresa resolveu a difi-culdade ao permitir o parcelamento da despesa. “A capacidade de pagamento é muito importante, porque o serviço não é barato. As consumidoras voltam a cada mês ou 45 dias, então pagar em parcelas é bom porque elas conseguem gerenciar o dinheiro”, explica Maribel.

Com uma base de clientes arraigada em setores populares, a questão central é: continuar crescendo nesse segmento ou expandir de olho em outro público? Para Maribel, a empresa deve continuar ali, dado o crescimento do poder aquisi-tivo desse público. “É um mercado mui-to grande, e o que eles conhecem melhor. Muito mais que outras empresas”, acres-centa a acadêmica.

Zica e Leila experimentaram mudan-ças em sua base de clientes. Mas nem os salões para homens (que finalmen-te fecharam), nem o denominado VIP Room, no qual por um valor extra é pos-sível evitar a espera, tiveram bons resul-tados. Também contrataram um CEO externo em 2008, o que, de acordo com os sócios, levou à perda de parte da iden-tidade da Beleza Natural. Por isso, Leila retomou o cargo em 2011. No ano pas-sado, a empresa chegou a um lucro de US$ 60 milhões.

“Creio que o Brasil tem um grande potencial para continuar trabalhando na base da pirâmide,” afirma Leila. Para a CEO, mais que um serviço para uma de-terminada raça ou classe social, trata-se de um serviço para mulheres de cabelos crespos. Público que, segundo suas es-timativas, representa cerca de 70% das mulheres do Brasil. E Leila tem razão na aposta. No fim do mês passado, a Secre-taria de Assuntos Estratégicos da Presi-dência da República divulgou um estu-do que mostra que quase 80% da nova classe média brasileira é composta por negros – público-alvo da Beleza Natural.

Hoje, Zica ostenta uma cabeleira solta e os nós que a atormentavam há 20 anos não existem mais. “Quando temos boa vontade, as coisas acontecem de manei-ra natural. Os obstáculos apenas nos for-talecem”, comenta.

pessoas trabalham na fábrica

e nos salões da Beleza Natural

1,5 mil

Foto

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gaçã

o

pessoas”, acrescenta Zica. Uma vez que a empresa começou a

crescer, um elemento chave foi a expe-riência de Rogério e Leila, que desde a adolescência trabalharam no McDo-nalds. Dali saiu o conceito de proces-sos padronizados na Beleza Natural. “O McDonald’s nos demonstrou que é possí-vel transformar um serviço de beleza em uma linha de produção, operada por vá-rias pessoas especialistas, como uma li-nha de montagem”, comenta Leila. Hoje, os salões padronizam atividades que vão desde como manuesear uma escova até o trato com as clientes. Outra ideia em-prestada da franquia americana é a pos-sibilidade de ascender de cabeleireira a gerente de um salão.

Leila é a atual CEO da empresa e um

as comunidades. Na “linha de monta-gem”, as frequentadoras do salão passam por diferentes mãos e salas. Lá, além de compartilhar experiências, contam com vídeos educativos e bate-papos que vão desde como criar os filhos a como en-frentar uma entrevista de trabalho, uma situação em que a discriminação e os es-tereótipos podem constituir um verda-deiro obstáculo. “É uma experiência de dignidade, de autoestima. Um grande ponto é compreender que o consumidor da base da pirâmide é diferente de um de classe alta e que não só tem menos di-nheiro, mas também busca uma experi-ência de consumo diferente”, afirma Ma-ribel sobre os serviços complementares.

A baixa renda da clientela para consu-mir o serviço foi um problema para a Be-

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