rebeldia

6
Rebeldia Estava a ser um dia perfeitamente normal. Até que a meio da manhã teve uma daquelas súbitas dores abdominais que requeria reacção pronta. Tinha-se levantado para fazer uma pausa no trabalho e passava diante da porta da casa de banho quando sentiu o sinal. Ainda foi à cozinha como era seu objectivo, bebeu um copo de água, mas depois rendeuse e foi mesmo para a casa de banho. O serviço foi rápido. Seguido de um alívio tonificante. Mas ao puxar o autoclismo começou a exasperação que lhe arruinou o dia. Finda a descarga do autoclismo ficou a boiar na água cristalina um pequeno e roliço cagalhotito. Olhou altivo aquela insolência no fundo da sanita e puxou mais uma vez o autoclismo. Mas o dito cujo não arredou pé. Ele, a princípio, fingiu não ver. Antes procedeu como era hábito, lavou minuciosamente as mãos, lavou a cara, refez a perfeição do penteado. Posto isto, lançou uma ponta do olho ao insolente, tentando controlarse, e pensando para consigo, «Olha-m’ este!». Não podia sair da casa de banho por haver ainda, ali, aquela prova iniludível de um processo natural que não fazia parte do conjunto estético assinado pelo arquitecto Toino e o decorador Toinão. Estava preso entre a inaceitável sujeição à singularidade de um cagalhotito e a impossibilidade de prosseguir sem eliminar a singularidade. Por isso, quando

Upload: pedro-miguel-gon

Post on 26-Mar-2016

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Conto de Pedro Miguel Gon

TRANSCRIPT

Rebeldia

Estava a ser um dia perfeitamente normal. Até que a meio da manhã teve uma daquelas súbitas dores abdominais que requeria reacção pronta. Tinha­se levantado para fazer uma pausa no trabalho e passava diante da porta da casa de banho quando sentiu o sinal. Ainda foi à cozinha como era seu objectivo, bebeu um copo de água, mas depois rendeu­se e foi mesmo para a casa de banho.

O serviço foi rápido. Seguido de um alívio tonificante. Mas ao puxar o autoclismo começou a exasperação que lhe arruinou o dia. Finda a descarga do autoclismo ficou a boiar na água cristalina um pequeno e roliço cagalhotito. Olhou altivo aquela insolência no fundo da sanita e puxou mais uma vez o autoclismo. Mas o dito cujo não arredou pé. Ele, a princípio, fingiu não ver. Antes procedeu como era hábito, lavou minuciosamente as mãos, lavou a cara, refez a perfeição do penteado. Posto isto, lançou uma ponta do olho ao insolente, tentando controlar­se, e pensando para consigo, «Olha­m’ este!».

Não podia sair da casa de banho por haver ainda, ali, aquela prova iniludível de um processo natural que não fazia parte do conjunto estético assinado pelo arquitecto Toino e o decorador Toinão. Estava preso entre a inaceitável sujeição à singularidade de um cagalhotito e a impossibilidade de prosseguir sem eliminar a singularidade. Por isso, quando

O Perigo na Ponta da Esferográfica

18

estava pronto para sair da casa de banho, só lhe restando rever aquele último apontamento, voltou a puxar o autoclismo. Fê­lo de olhos fechados, inspirando uma serenidade zen, soltando­se assim do drama real. Tentava não impacientar­se com o resultado. Quando voltou a abrir os olhos, logo que o barulho de enchimento do autoclismo parou, a presença singular mantinha­se. Nesse instante um surto de impaciência sacudiu­o e erradicou definitivamente a compostura zen.

De dentes em riste nos lábios franzidos voltou­se para o cagalhotito e declarou­lhe guerra. Não sabia com quem se havia metido! Tirou voltas e voltas de papel higiénico e espetou­o em cima do inimigo. Cobriu­o completamente. E puxou o autoclismo. Não havia a mínima hipótese de sobrevivência com tal peso de papel molhado a envolvê­lo. Já sacudia as mãos uma na outra com o prazer do trabalho bem feito quando o cagalhotito voltou a aparecer à tona do líquido. Ia tendo uma crise de nervos.

Aquela singularidade anódina estava a impedi­lo de sair da casa de banho. O trabalho iria ficar atrasado. Não podia ser! Pensava furiosamente num modo de aniquilar aquela entidade quando tocou a campainha. Tinha o piaçá pronto para desfeitear um golpe mortal no dito cujo, mas suspendeu­se.

Foi abrir a porta, trémulo. Tal como pressentira, não podia ser visita mais inoportuna.

«’Tão cunhado!? Tudo bem?», atirou o outro, e entrou por ali a dentro.

«Meu caro. Não podias ter vindo em pior altura», devolveu Entrásguico com a leve esperança que aquelas palavras pudes­sem ser significativas para o outro. O cunhado investiu com o cigarro no desespero de Entrásguico,

«Como te disse», atalhou o cunhado, «arranjei a solução ideal. Encontrei um comprador para a tua casa. Tudo se irá resolver!»

O Perigo na Ponta da Esferográfica

19

«Um comprador para a minha casa? Mas eu não quero vender! Que estás a dizer?»

«Mas se não vendes, como me arranjas o dinheiro?»«Hum! Não vou vender a minha casa!»«Não te preocupes. É uma boa solução.»«Tu estás louco! Eu não vou vender a minha casa!»«Anda! Vai atender o telefone e não te preocupes.»O telefone tocava irritantemente frenético desde que o

cunhado chegara. Como um alarme de aviso. Mas o absurdo da conversa desviara­o desse cuidado cultivado e obsequioso de acolher as solicitações do mundo educado. Atendeu e encon trou do outro lado um chato preocupado com uma sondagem.

Entretanto o cunhado foi à casa de banho. Regressou à sala no instante em que Entrásguico desligava o telefone.

«Não sei se sabes, mas tens um submarino na tua retre­te.»

A cara de desespero de Entrásguico era muito eloquente, mas, passado um torcido instante, resolveu acrescentar,

«É o problema que estava a tentar resolver.»«Ah! Já percebi porque vim em má altura.»Entretanto voltou a tocar a campainha. O rosto de Entrás­

guico expressou uma espécie de embolia furiosa,«Quem será agora?»«É o comprador», respondeu o cunhado.«Qual comprador?»«Como te disse, encontrei quem te compre esta casa num

instante. Acho que a proposta é razoável. Pelo menos já me podes emprestar o dinheiro.»

«Tu deves estar a delirar. Eu não vou vender a minha casa!»

«Mas se não vendes, como me arranjas o dinheiro?»«Isso, a mim, não me interessa.»

O Perigo na Ponta da Esferográfica

20

O cunhado fora inteligente o suficiente para conduzir a discussão enquanto se dirigia para a porta, e abriu­a. Um fulano de meia­idade com boina basca esperava do outro lado.

«Entre, senhor comprador», disse o cunhado.Mais aterrador que alguém absolutamente desconhecido

entrar em sua casa era ter o inimigo entrincheirado na casa de banho; mas verdadeiramente criminoso era ter de passar pelas duas aflições ao mesmo tempo. Imerso num deses pero inqualificável, Entrásguico encontrava­se dividido entre a necessidade de impedir a entrada do comprador no aparta­mento e o receio maior que este entrasse na casa de banho.

O homem entrou ligeiro na aparência e pesado no andar,

«Então esta é a casa?»«É», disse o cunhado.«Acho que veio ao engano porque eu não estou disposto

a…»«Ò Entrásguico! Pelo amor de deus! Deixa o senhor

comprador dar uma vista de olhos!»«Cunhado! Tu estás louco! Louco! Eu não quero vender

a minha casa!»«Mas se não vendes, como me arranjas o dinheiro?»«Olha a minha cara de preocupado!»Aproveitando a discussão dos outros dois, o comprador

vistoriou o apartamento como lhe convinha, tomando todo o tempo que quis. E quando já dera a análise por terminada os outros dois ainda digladiavam os mesmíssimos argumentos como dois robôs encravados. O arbítrio da reentrada do comprador na sala espoletou em Entrásguico uma tirada diferente,

«Saiam! Façam o favor de sair!»«Mas…»«Nem mas, nem meio mas. Saiam!»

O Perigo na Ponta da Esferográfica

21

O cunhado saiu visivelmente descontente, partilhando com o comprador uma agressividade cheia de honras feridas.

Entrásguico ficara extenuado de tanto lutar contra o absurdo. Sentia­se como se estivesse a viver de cabeça para baixo. Devia ser essa a razão por que sentia uma finíssima dor de cabeça que lhe cortava na oblíqua o sossego, desde o parietal direito ao ouvido esquerdo. Trancada a porta, regressou à sua sala de trabalho e sentou­se. Suspirou fundo. Pegou na caneta e na papelada para retomar o fio à meada. Começava a ler as últimas linhas que escrevera quando se lembrou do inimigo na casa de banho. Levantou­se de um pulo.

Na casa de banho esperava o horror dos horrores. Algo nunca visto. Um delito natural de produção própria ainda era suportável; agora, uma singularidade produzida por outrem na sua sanita era um insulto. Um ultraje. Um impropério aromático de longa duração. Espumou de desacerto. Porque não puxara o homem o autoclismo? E, automaticamente, puxou­o. Mas os dois sorridentes cagalhotitos não desandaram.