rebeldia
DESCRIPTION
Conto de Pedro Miguel GonTRANSCRIPT
Rebeldia
Estava a ser um dia perfeitamente normal. Até que a meio da manhã teve uma daquelas súbitas dores abdominais que requeria reacção pronta. Tinhase levantado para fazer uma pausa no trabalho e passava diante da porta da casa de banho quando sentiu o sinal. Ainda foi à cozinha como era seu objectivo, bebeu um copo de água, mas depois rendeuse e foi mesmo para a casa de banho.
O serviço foi rápido. Seguido de um alívio tonificante. Mas ao puxar o autoclismo começou a exasperação que lhe arruinou o dia. Finda a descarga do autoclismo ficou a boiar na água cristalina um pequeno e roliço cagalhotito. Olhou altivo aquela insolência no fundo da sanita e puxou mais uma vez o autoclismo. Mas o dito cujo não arredou pé. Ele, a princípio, fingiu não ver. Antes procedeu como era hábito, lavou minuciosamente as mãos, lavou a cara, refez a perfeição do penteado. Posto isto, lançou uma ponta do olho ao insolente, tentando controlarse, e pensando para consigo, «Olham’ este!».
Não podia sair da casa de banho por haver ainda, ali, aquela prova iniludível de um processo natural que não fazia parte do conjunto estético assinado pelo arquitecto Toino e o decorador Toinão. Estava preso entre a inaceitável sujeição à singularidade de um cagalhotito e a impossibilidade de prosseguir sem eliminar a singularidade. Por isso, quando
O Perigo na Ponta da Esferográfica
18
estava pronto para sair da casa de banho, só lhe restando rever aquele último apontamento, voltou a puxar o autoclismo. Fêlo de olhos fechados, inspirando uma serenidade zen, soltandose assim do drama real. Tentava não impacientarse com o resultado. Quando voltou a abrir os olhos, logo que o barulho de enchimento do autoclismo parou, a presença singular mantinhase. Nesse instante um surto de impaciência sacudiuo e erradicou definitivamente a compostura zen.
De dentes em riste nos lábios franzidos voltouse para o cagalhotito e declaroulhe guerra. Não sabia com quem se havia metido! Tirou voltas e voltas de papel higiénico e espetouo em cima do inimigo. Cobriuo completamente. E puxou o autoclismo. Não havia a mínima hipótese de sobrevivência com tal peso de papel molhado a envolvêlo. Já sacudia as mãos uma na outra com o prazer do trabalho bem feito quando o cagalhotito voltou a aparecer à tona do líquido. Ia tendo uma crise de nervos.
Aquela singularidade anódina estava a impedilo de sair da casa de banho. O trabalho iria ficar atrasado. Não podia ser! Pensava furiosamente num modo de aniquilar aquela entidade quando tocou a campainha. Tinha o piaçá pronto para desfeitear um golpe mortal no dito cujo, mas suspendeuse.
Foi abrir a porta, trémulo. Tal como pressentira, não podia ser visita mais inoportuna.
«’Tão cunhado!? Tudo bem?», atirou o outro, e entrou por ali a dentro.
«Meu caro. Não podias ter vindo em pior altura», devolveu Entrásguico com a leve esperança que aquelas palavras pudessem ser significativas para o outro. O cunhado investiu com o cigarro no desespero de Entrásguico,
«Como te disse», atalhou o cunhado, «arranjei a solução ideal. Encontrei um comprador para a tua casa. Tudo se irá resolver!»
O Perigo na Ponta da Esferográfica
19
«Um comprador para a minha casa? Mas eu não quero vender! Que estás a dizer?»
«Mas se não vendes, como me arranjas o dinheiro?»«Hum! Não vou vender a minha casa!»«Não te preocupes. É uma boa solução.»«Tu estás louco! Eu não vou vender a minha casa!»«Anda! Vai atender o telefone e não te preocupes.»O telefone tocava irritantemente frenético desde que o
cunhado chegara. Como um alarme de aviso. Mas o absurdo da conversa desviarao desse cuidado cultivado e obsequioso de acolher as solicitações do mundo educado. Atendeu e encon trou do outro lado um chato preocupado com uma sondagem.
Entretanto o cunhado foi à casa de banho. Regressou à sala no instante em que Entrásguico desligava o telefone.
«Não sei se sabes, mas tens um submarino na tua retrete.»
A cara de desespero de Entrásguico era muito eloquente, mas, passado um torcido instante, resolveu acrescentar,
«É o problema que estava a tentar resolver.»«Ah! Já percebi porque vim em má altura.»Entretanto voltou a tocar a campainha. O rosto de Entrás
guico expressou uma espécie de embolia furiosa,«Quem será agora?»«É o comprador», respondeu o cunhado.«Qual comprador?»«Como te disse, encontrei quem te compre esta casa num
instante. Acho que a proposta é razoável. Pelo menos já me podes emprestar o dinheiro.»
«Tu deves estar a delirar. Eu não vou vender a minha casa!»
«Mas se não vendes, como me arranjas o dinheiro?»«Isso, a mim, não me interessa.»
O Perigo na Ponta da Esferográfica
20
O cunhado fora inteligente o suficiente para conduzir a discussão enquanto se dirigia para a porta, e abriua. Um fulano de meiaidade com boina basca esperava do outro lado.
«Entre, senhor comprador», disse o cunhado.Mais aterrador que alguém absolutamente desconhecido
entrar em sua casa era ter o inimigo entrincheirado na casa de banho; mas verdadeiramente criminoso era ter de passar pelas duas aflições ao mesmo tempo. Imerso num deses pero inqualificável, Entrásguico encontravase dividido entre a necessidade de impedir a entrada do comprador no apartamento e o receio maior que este entrasse na casa de banho.
O homem entrou ligeiro na aparência e pesado no andar,
«Então esta é a casa?»«É», disse o cunhado.«Acho que veio ao engano porque eu não estou disposto
a…»«Ò Entrásguico! Pelo amor de deus! Deixa o senhor
comprador dar uma vista de olhos!»«Cunhado! Tu estás louco! Louco! Eu não quero vender
a minha casa!»«Mas se não vendes, como me arranjas o dinheiro?»«Olha a minha cara de preocupado!»Aproveitando a discussão dos outros dois, o comprador
vistoriou o apartamento como lhe convinha, tomando todo o tempo que quis. E quando já dera a análise por terminada os outros dois ainda digladiavam os mesmíssimos argumentos como dois robôs encravados. O arbítrio da reentrada do comprador na sala espoletou em Entrásguico uma tirada diferente,
«Saiam! Façam o favor de sair!»«Mas…»«Nem mas, nem meio mas. Saiam!»
O Perigo na Ponta da Esferográfica
21
O cunhado saiu visivelmente descontente, partilhando com o comprador uma agressividade cheia de honras feridas.
Entrásguico ficara extenuado de tanto lutar contra o absurdo. Sentiase como se estivesse a viver de cabeça para baixo. Devia ser essa a razão por que sentia uma finíssima dor de cabeça que lhe cortava na oblíqua o sossego, desde o parietal direito ao ouvido esquerdo. Trancada a porta, regressou à sua sala de trabalho e sentouse. Suspirou fundo. Pegou na caneta e na papelada para retomar o fio à meada. Começava a ler as últimas linhas que escrevera quando se lembrou do inimigo na casa de banho. Levantouse de um pulo.
Na casa de banho esperava o horror dos horrores. Algo nunca visto. Um delito natural de produção própria ainda era suportável; agora, uma singularidade produzida por outrem na sua sanita era um insulto. Um ultraje. Um impropério aromático de longa duração. Espumou de desacerto. Porque não puxara o homem o autoclismo? E, automaticamente, puxouo. Mas os dois sorridentes cagalhotitos não desandaram.