a dimensão política do pensamento de josé de alencar (1865...

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Rogério Natal Afonso A dimensão política do pensamento de José de Alencar (1865-1868) Liberalismo e escravidão nas cartas de Erasmo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social na Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em História Social das Relações Políticas. Orientação: Profª. Drª. Márcia Barros Ferreira Rodrigues. Vitória 2013

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  • Rogrio Natal Afonso

    A dimenso poltica do pensamento de Jos de Alencar (1865-1868)

    Liberalismo e escravido nas cartas de Erasmo

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria Social na Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Histria Social das Relaes Polticas.

    Orientao: Prof. Dr. Mrcia Barros Ferreira Rodrigues.

    Vitria 2013

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Afonso, Rogrio Natal, 1969- A257d A dimenso poltica do pensamento de Jos de Alencar

    (1865-1868). Liberalismo e escravido nas cartas de Erasmo / Rogrio Natal Afonso. 2013.

    153 f. : il. Orientadora: Mrcia Barros Ferreira Rodrigues. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal

    do Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais. 1. Alencar, Jos de, 1829-1877. 2. Escravido Brasil. 3.

    Brasil - Histria - Imprio, 1822-1889. I. Rodrigues, Mrcia Barros Ferreira. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.

    CDU: 93/99

  • Rogrio Natal Afonso

    A dimenso poltica do pensamento de Jos de Alencar (1865-1868)

    Liberalismo e escravido nas cartas de Erasmo

    Dissertao apresentada ao Mestrado em Histria Social das Relaes Polticas na

    Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para Obteno do

    Grau de Mestre em Histria Social.

    COMISSO EXAMINADORA

    ___________________________________________________________________Profa. Dra. Mrcia Barros Ferreira Rodrigues

    Universidade Federal do Esprito Santo (orientadora)

    Profa. Dra. Maria Cristina Dadalto

    Universidade Federal do Esprito Santo (membro titular)

    ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. Thiago Lima Nicodemo

    Universidade Federal do Esprito Santo (membro titular)

    Prof. Dr. Jorge Luiz do Nascimento

    Universidade federal do esprito Santo (membro externo)

    Vitria,______ de _______________ de 2013.

  • Agradeo a todos que me ajudaram na construo deste trabalho.

    A minha famlia.

    Aos professores; todos.

    A minha orientadora, em particular.

    Aos amigos que me fizeram sugestes e crticas.

    queles que dedicaram um pouco de seu tempo me ajudando.

    E a Deus...

  • RESUMO

    Partindo dos textos que compem uma srie de cartas abertas de Jos de Alencar,

    endereadas ao Imperador D. Pedro II e a alguns entes polticos da administrao

    do Estado, escritas entre 1865 e 1868, busca-se discutir a defesa paradoxal entre a

    formao de uma sociedade liberal dentro de um pas de economia agroexportadora

    sustentada pela mo de obra escrava.

    Tomaremos o texto de Alencar como um discurso poltico ideolgico das elites

    presentes na corte imperial. Entendemos a dimenso ideolgica do discurso poltico

    de Alencar no sentido marxista de corte gramsciano, ou seja, como uma concepo

    de mundo que perpassa desde o discurso comum at formas mais elaboradas de

    discurso filosfico. A partir da, buscaremos compreender o modo de vida, as

    representaes polticas e as formas de dominao presentes no perodo sob a tica

    do pensamento poltico conservador de Jos de Alencar, dando nfase a anlise de

    sua defesa do liberalismo e da escravido.

    PALAVRAS CHAVE: Poltica, discurso, liberalismo, escravido.

  • ABSTRACT

    Based on the texts that make up a series of open letters addressed to Jos de

    Alencar to Emperor D. Pedro II and some political entities of state administration and

    written between 1865 and 1868 seek to discuss the defense of the paradox between

    a liberal society within a country agro-export economy sustained by slave labor.

    .

    We will take the text of a speech Alencar as ideological political elites present at the

    imperial court. We understand the ideological dimension of political discourse of Jos

    de Alencar in the sense of cutting Gramscian Marxist; as a world view that permeates

    from the common speech even more elaborate forms of philosophical discourse.

    From there, we will seek to understand the way of life, political representations and

    forms of domination present in the period from the perspective of political speech of

    Jos de Alencar, emphasizing the analysis of his defense of liberalism and slavery.

    KEYWORDS: politics, speech, liberalism, slavery.

  • LISTA DE IMAGENS

    FIGURA 1 Fac-smile da segunda edio das cartas ao Imperador.....................183

    FIGURA 2 Fac-smile da primeira edio das Cartas os povo..............,...............184

    FIGURA 3 Folha de rosto da edio das Cartas ao Marqus de Olinda..............185

    FIGURA 4 Pgina do Dirio do Rio de Janeiro registrando a abolio...............186

  • SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................................10

    1. A TRAJETRIA POLTICA DE ALENCAR...........................................................22

    1.1 PRIMEIROS ANOS..............................................................................................24

    1.2 VIDA NA CORTE..................................................................................................27

    1.3 MILITNCIA POLTICA.......................................................................................34

    1.4. LTIMOS ANOS.................................................................................................49

    2. CONJUNTURA POLTICA DO II REINADO.........................................................55

    2.1 UMA VISO GERAL............................................................................................56

    2.2 O ESTADO DA ARTE DA IMPRENSA NO OITOCENTOS............................... 64

    2.3 SOBRE AS ELITES NO PODER........................................................................ 70

    2.4 INTELECTUAIS E OPINIO PBLICA................................................................77

    3. LIBERALISMO E ESCRAVIDO NAS CARTAS DE ERASMO.......................... 82

    3.1 LIBERALISMO E ESCRAVIDO..........................................................................82

    3.2 LIBERALISMO E ESCRAVIDO: O MODELO BRASILEIRO..........................86

    3.3 AS CARTAS DE ERASMO...................................................................................95

    3.3.1 AO IMPERADOR.............................................................................................103

    3.3.2 AO POVO; AO REDATOR DO DIRIO DO RIO DE JANEIRO......................121

    3.3.3 AO MARQUS DE OLINDA; AO VISCONDE DE ITABORAHY.....................133

    3.3.4 NOVAS CARTAS AO IMPERADOR...............................................................138

    4. CONSIDERAES FINAIS.................................................................................162

  • 5. BIBLIOGRAFIA....................................................................................................174

    6. ANEXOS..............................................................................................................183

  • INTRODUO

    O Brasil do sculo XIX, com a chegada da famlia real nos primeiros anos at, e

    particularmente, o perodo imperial, caracterizado por um desenvolvimento

    econmico, social e poltico intenso e relativamente acelerado, se comparado a

    outras naes da Amrica Latina (COSTA, 1999). Tal desenvolvimento se deve a

    construo de um projeto poltico para o pas que, deixando de ser uma colnia de

    Portugal, necessitava afirmar sua nova identidade - agora como uma nao

    independente - tanto interna quanto externamente. O processo tem incio com a

    transferncia para a cidade do Rio de Janeiro do Prncipe Regente D. Joo VI, a

    famlia real portuguesa e sua Corte em 1808, gerando um considervel aumento na

    populao residente e a consequente transformao da cidade, com a construo

    de escolas, museus, teatros, faculdades e, dentre outras novidades, a imprensa.

    A emancipao poltica em 1822 mantm o sistema monrquico ainda sob a casa

    de Bragana, com D. Pedro I agora pelo modelo constitucional, tendo por base as

    ideias liberais importadas da Europa iluminista. A presumida liberdade que o pas

    vem a construir, garantida na constituio outorgada pelo governante, j encontra

    um terreno poltico e econmico bastante diverso daquele onde surgiu o liberalismo

    europeu, tendo por base a agricultura de produtos de exportao assentada na

    escravido - tanto a lavoura tradicional aucareira do nordeste como as novas e

    prsperas plantaes de caf do Vale do Paraba dependiam do escravo. O Brasil,

    logo depois da emancipao politica em 1822, possui uma das maiores populaes

    escravas da Amrica e tambm a maior populao de afrodescendentes livres no

    continente (MATTOS, H., 2000), a quem no eram concedidos os direitos polticos

    de cidado. E uma minoria, tida como aristocrtica, dominava, assentados seus

    privilgios nas relaes que possuam com a coroa uma administrao do Estado

    de modelo conservador, com D. Pedro e a herana do absolutismo portugus.

    Liberalismo e conservadorismo convivem ento na sociedade brasileira em

    formao como os dois lados de uma realidade complexa e contraditria. Liberal, no

    sentido de que as lideranas que surgem se mobilizaram nesse sentido para

  • justificar a separao da metrpole, e ao mesmo tempo conservador, por precisar

    manter a escravido e a dominao do senhoriato (NOVAIS, 1996).

    Para a manuteno da organizao do Estado, a monarquia refora os laos j

    seculares do estamento portugus presentes desde a colnia, criando tambm

    inspirado na tradio portuguesa o modelo brasileiro de nobreza, de gentleman;

    este emerge como um segmento, que se solidifica na figura do intelectual: morador

    da cidade, bacharel em direito (tambm alguns poucos mdicos, raros engenheiros

    e matemticos), filho do fazendeiro ou do comerciante enriquecido, filho do

    funcionrio portugus fixado no Brasil, neto e bisneto dos donos da terra, e

    representante ltimo das famlias que viriam compor esta elite da terra, garantindo

    uma continuidade na estabilidade poltica. Observa-se assim, com a absoro

    destes elementos pelo Estado, um crescimento de algumas cidades porturias e

    principalmente no Rio de Janeiro onde se instala a Corte, e o consequente

    desenvolvimento de uma burocracia especializada, necessria administrao do

    reino. Um conjunto de instituies, baseadas no modelo portugus quando no

    copiadas integralmente de seus pares em Lisboa de funcionalismo pblico, para

    uma monarquia de moldes absolutistas que recebe poucas adaptaes no Brasil

    (FAORO, 2004).

    Boris Fausto, em sua Histria do Brasil (FAUSTO, 2001) defende certa estabilidade

    no perodo, sustentada pelo desenvolvimento das cidades e o aumento de pessoas

    com nvel superior. Costa (1999) afirma que os ncleos urbanos mais importantes,

    em sua maioria, estavam ao longo da costa brasileira, coincidindo com os principais

    portos exportadores, e o desenvolvimento destes tem por conta de sua localizao

    caractersticas especficas das ideias trazidas da Europa pelos jornais e livros que

    chegam pelos portos. Nas demais reas o crescimento urbano era limitado,

    prevalecendo a grande propriedade rural. Mas, com as faculdades de direito em So

    Paulo e Recife sendo construdas na primeira metade do oitocentos, o processo de

    composio de uma intelectualidade local j tem incio tendo como palco os ncleos

    urbanos. Tal perodo marcado tambm pelo desenvolvimento da imprensa, onde

    as ideias liberais so proclamadas aos quatro ventos pelos diversos jornais e

    pasquins, que surgem e desaparecem todos os dias (BAHIA, 1990); os homens que

    se formam de uma maneira integral, certo - naquele novo cotidiano iro,

  • inspirados em um perodo recente de administrao j dissemos, moldado no

    estamento portugus - desenvolver certa predileo pelo cargo pblico e pelas

    letras. Segundo Faoro (2004), o funcionrio pblico que se forma um dos

    responsveis diretos seno o nico tecnocrata pela reorganizao (reinveno)

    do antigo modelo no novo pas. Leitores dos jornais e ao mesmo tempo formadores

    de opinio, estes homens so os comentadores e partcipes do desenvolvimento

    poltico e econmico das cidades, enquanto inspirados pelas ideias liberais que j

    tomam corpo por aqui. Estes homens, que tem acesso informao e fazem de sua

    prxis um elemento transformador da sociedade (GRAMSCI, 1976), alguns sendo

    sustentados pelo abrao do cargo pblico, outros escrevendo para os jornais, onde

    apresentam e defendem suas ideias (liberais ou no) para os outros homens - que

    vem a constituir uma opinio pblica, representada pelos vidos leitores desses

    mesmos jornais.

    Isto posto, destacamos que essa dissertao que tem como tema o liberalismo no

    Brasil e sua relao com a escravido no perodo do segundo reinado, apresenta

    como seu objetivo geral discutir as dificuldades de implantao deste sistema

    poltico - o liberalismo - em uma sociedade dominada por uma elite assentada na

    economia agroexportadora, baseada na mo de obra do escravo, percebendo como

    paradoxal esta relao, entendendo ser o liberalismo uma doutrina poltica que tem

    por base a defesa da liberdade individual nos campos poltico, econmico religioso e

    intelectual, conquistada por meio de lutas da sociedade civil contra o absolutismo do

    Estado caracterstico do Antigo regime na Europa. Acreditamos, com Gramsci

    (1989), que o discurso que sustenta tal relao e tenta justifica-la mediado entre as

    elites e o povo por meio dos intelectuais. Portanto, cabem aqui mais algumas

    questes: qual era a viso dos intelectuais sobre a relao entre liberalismo e

    escravido no Brasil? Os intelectuais comungariam com tais ideias? Elas esto

    presentes em seu discurso?

    Nossa dvida fundamental, a qual a pesquisa busca explicar : ser que estes

    intelectuais, que se formam nas primeiras faculdades de direito do Brasil, filhos de

    fazendeiros, comerciantes, muitos dos quais ligados direta ou indiretamente

    economia agroexportadora baseada no trabalho escravo, assumiram o discurso

    liberal? Estaria este discurso presente em suas representaes e em seus textos?

  • Para tanto, nosso objetivo especfico ser analisar o trabalho de um intelectual do

    perodo e uma parte de sua produo: Jos de Alencar.

    Dessa forma, partimos da seguinte hiptese: por meio de um discurso poltico

    conservador vinculado as propostas ideolgicas das elites escravocratas,

    disseminado pelos jornais e panfletos do perodo, que os intelectuais construram

    uma imagem paradoxal do liberalismo para o Brasil no segundo reinado.

    Para construirmos nossa narrativa histrica, tomamos como fonte para analisarmos

    nossa hiptese, as cartas de Erasmo: Um conjunto de cartas abertas, publicadas

    sob a forma de folhetins no perodo de 1865 a 1868, dirigidas ao Imperador e a

    vrios outros entes polticos. Nossa hiptese de que, neste texto, possamos

    identificar a tentativa de Alencar sustentar uma viso liberal para o desenvolvimento

    poltico e econmico da nao, ao mesmo tempo em que faz uma defesa da

    manuteno do sistema escravista no Brasil, o que nos faz crer que exista uma

    postura liberal/conservadora como modelo ideolgico a ser construdo pelas elites

    atravs de alguns setores da imprensa. Buscaremos nas cartas polticas de Alencar

    indcios da sustentao de um discurso liberal que tambm apresenta caractersticas

    conservadoras, e admite (e reafirma) a manuteno da escravido no Brasil. Para

    tanto, nos propomos a uma anlise de todo o texto das cartas, em uma perspectiva

    hermenutica, baseada nos princpios da anlise do discurso. Como sustenta

    Iiguez (2005) a anlise de discurso, como aparentemente possa parecer, no

    uma rea restrita da lingustica, e comporta contribuies de vrias reas de estudo.

    Ao mesmo tempo, considerando que uma das caractersticas da histria poltica

    renovada, segundo Remond (2003), ser um ponto de convergncia de diversas

    disciplinas como a sociologia, a lingustica, o direito, dentre vrias outras, o que lhe

    possibilita um ganho analtico consistente e consolida sua natureza interdisciplinar, a

    anlise de discurso apresenta-se como um caminho consistente para a abordagem

    de textos polticos do perodo. Neste caso, nossa pesquisa busca entender a relao

    do modelo de liberalismo poltico implantado no Brasil com a escravido, e se a

    justificao para tal discurso est presente nos textos de intelectuais do perodo,

    tendo como fonte o texto das Cartas Polticas de Jos de Alencar.

    Nossa pesquisa se justifica pela necessidade de entender a dimenso poltica do

  • segundo reinado por meio de uma fonte impressa que teve grande circulao no

    perodo de nosso recorte, e que pode criar uma inter-relao entre os pontos

    descritos. Na anlise do texto de um dos mais importantes intelectuais do perodo,

    Jos de Alencar - poltico atuante, jornalista, romancista e dramaturgo -

    conseguimos um elo entre intelectuais, imprensa e elites, e a confluncia desses

    partidos no projeto ideolgico de construo da nao (GRAMCI, 1989). Tais

    elementos so comunmente tomados em separado. Com Alencar, nas cartas de

    Erasmo temos um intelectual que usa do seu texto literrio/jornalstico1 em uma

    mdia alternativa no momento, para se dirigir a segmentos da elite poltica e

    econmica na Corte no Rio de Janeiro. Essa confluncia, portanto, a prpria

    ao do objeto enquanto veculo de comunicao.

    A discusso historiogrfica sobre nosso tema apresenta estudos por vezes

    coincidentes, por vezes conflitantes. Bosi (1988) afirma que o paradoxo entre

    liberalismo e escravido no existiu no Brasil no perodo que se segue

    Independncia e vai at os anos centrais do Segundo Reinado (BOSI, 1998, p. 05).

    O autor tambm afirma que para entender a articulao do liberalismo pregado e

    assumido no Brasil com o regime escravagista necessrio compreender o modo

    de pensar das classes polticas dominantes no imprio a partir da independncia.

    Neves (2001) sustenta que o liberalismo no Brasil se alavanca a partir da revoluo

    vintista em Portugal, que vem propondo reformas que pudessem garantir ao

    indivduo direitos de cidadania e liberdade de expresso, e buscando o fim do

    despotismo como uma soluo para o imprio. O movimento, segundo a autora,

    assimilado sem dificuldade pelos elementos das elites poltica e intelectuais no

    Brasil. A proposta era buscar o novo, mas sem abrir mo dos antigos privilgios

    econmicos.

    Para Gorender (2002) os princpios liberais levados adiante pelos comerciantes e

    plantadores visava o direito de ter uma representao no estado, fora das limitaes

    impostas pela poltica colonial que terminaria com o processo de independncia. Tal

    1 Antnio Cndido (1999) sustenta ser uma das caractersticas do perodo (segundo reinado) a

    influncia do texto literrio nos jornais, que temos vrios exemplos em Machado de Assis, Jos de

    Alencar, Joaquim Nabuco, Capistrano de Abreu, para citar alguns.

  • processo, segundo ele, tem inicio com a abdicao em 1831. Este autor afirma que

    o liberalismo europeu defende o trabalho livre, mas lembra tambm que o prprio

    Adam Smith no era contra a escravido nas colnias. Ou seja, o liberalismo

    europeu, segundo um de seus mais importantes representantes, j nasce sob esta

    contradio. O autor lembra que, mesmo com a Revoluo Francesa tendo

    decretado a libertao dos escravos em suas colnias francesas, Napoleo

    restabelece a escravido oito anos depois. Apesar da pregao pela liberdade na

    Europa, nas colnias a poltica praticada no era a mesma. O que nos leva a

    entender melhor a relao liberalismo/escravido no Brasil.

    Entendemos ento que no processo de formao do Estado Imperial Brasileiro,

    havia diferentes leituras e objetivos para o uso do liberalismo, ligadas a interesses

    especficos. Por um lado, como enfatiza Mattos (1987), a ao do grupo conservador

    no imprio seguia no sentido da construo de monoplios, uma continuidade do

    praticado no perodo colonial, enfatizando as relaes de dominao sustentadas

    pela coroa. Costa (1999) identifica certa originalidade no movimento poltico liberal

    brasileiro do perodo, tentando interpreta-lo como uma figura hbrida, onde os

    elementos conservadores permanecem e so amalgamados com as prticas liberais

    aceitas, estruturando as instituies e a viso de mundo pelas elites dominantes,

    sustentados pelas classes intermedirias que se desenvolvia nas cidades mas que,

    ao mesmo tempo, viam no sistema agroexportador baseado na escravido uma

    dificuldade para o desenvolvimento do capitalismo. Por outro lado, Carvalho (2007)

    chega a subestimar o aspecto liberal, sustentando haver um pensamento

    conservador dominante, sendo a conciliao entre as correntes de pensamento e os

    partidos a poltica da coroa, com o intuito de administrar interesses e evitar conflitos.

    Bosi (1988) sustenta ainda que o trfico se apoia, por vezes, nas prprias

    autoridades a quem cabia fazer cessar o trfico. So homens ligados a

    administrao e a poltica que mantm o controle terras, do caf e dos escravos, o

    que faz com que uma defesa da escravido seja a proposta corrente. Nesse

    aspecto, Prado (2001) concorda que com a produo organizada sob a explorao

    do trabalho escravo, sendo muito lucrativa at ento, dificilmente teria por parte da

    elite qualquer movimento estimulando o seu trmino.

  • O liberalismo poltico proposto para o Brasil apresenta assim caractersticas

    diversas, conforme os interesses dos diversos grupos das elites polticas e

    econmicas no poder. Mattos (1987) enxerga no grupo conservador, representado

    pelos senhores, traficantes de escravos e grandes comerciantes, um pensamento

    contrrio s ideias liberais e a favor da centralizao poltica. A anlise do sistema

    econmico agroexportador brasileiro no perodo Imperial tambm nos revela as

    muitas contradies da sociedade escravista do sculo XIX: o liberalismo econmico

    e o aumento do fluxo de escravos para o Brasil, a defesa da liberdade e o

    incremento da escravido, o desenvolvimento do consumo e a pobreza. Tmis

    Parron (2008) sustenta que durante o sc. XIX toda a defesa do trfico e da prpria

    escravido como uma instituio se sustentaram em ideias liberais. medida que,

    na Europa, o sistema econmico pregava um livre mercado com o trabalho livre, nas

    Amricas a escravido permanecia forte em pases como os Estados Unidos, em

    Cuba e no Brasil. Emilia Viotti (1999) sustenta para o perodo uma viso hbrida,

    onde os elementos conservadores presentes no Brasil servem como um equilbrio a

    prticas e ideias liberais que poderiam tomar formas mais radicais se acaso

    atingissem grupos da populao; estruturando dessa forma as instituies e a viso

    de mundo dos principais agentes polticos no poder no perodo, dando ao liberalismo

    aqui sua caracterstica cor local. Dessa feita, entendemos que o liberalismo

    representa distintos interesses da sociedade brasileira e caracteriza-se

    diversamente nas diferentes regies do pas, e um dos agentes mais importantes na

    divulgao de tais ideias e praticas justamente a imprensa, que muito se

    desenvolve no perodo como arena de debates de polticos e intelectuais.

    Concordando com Bosi (1988), que afirma que o paradoxo entre liberalismo e

    escravido foi somente verbal, que o liberalismo simplesmente no existiu enquanto

    uma ideologia dominante. Segundo ele, o que dominou em todo esse perodo no

    Brasil foi um iderio de fundo conservador. Um conjunto de normas jurdico-polticas

    capazes de garantir a propriedade fundiria e a escravido negra at o seu limite. E

    em nosso entender, essa ideologia era difundida por meio dos intelectuais, nos

    veculos de comunicao do perodo como os panfletos, pasquins e jornais em

    geral.

  • Portanto, nosso objetivo aqui, para testar nossa hiptese, estudar as formas do

    discurso poltico em meados do sculo XIX, analisando o texto jornalstico/literrio

    de Jos de Alencar nas Cartas de Erasmo. Acreditamos que Alencar usava seu

    texto como um meio para difundir, fortalecer e consolidar a ideologia das elites

    presentes na corte imperial, suas representaes e as formas de dominao

    presentes no perodo. Alencar toma do discurso liberal alguns princpios para

    sustentar a ideologia de grupos vinculados a uma proposta de conservadorismo

    poltico, em que a manuteno dos privilgios desta aristocracia bem como a

    continuidade da escravido no Brasil so seus pontos principais.

    A pesquisa se fundamenta, tambm, na premissa de que a proposta de Alencar era

    a de criar um modelo (segundo ele, melhor) para a sociedade. De tal maneira,

    podemos design-lo o texto, as cartas de Erasmo - como um discurso ideolgico.

    Um conceito formulado por Chau (revendo Gramsci) nos ajuda de forma elucidativa:

    Fundamentalmente, a ideologia um corpo sistemtico de representaes e de normas que nos 'ensinam' a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerncia ideolgicas nascem de uma determinao muito precisa: o discurso ideolgico aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferena entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lgica da identificao que unifique pensamento, linguagem e realidade para atravs dessa lgica, obter a identificao de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto , a imagem da classe dominante. (CHAUI, 1997. p. 03)

    Dessa feita, entendemos a dimenso ideolgica do discurso poltico, construdo por

    meio das cartas de Erasmo, no sentido marxista de corte gramsciano, ou seja, como

    uma concepo de mundo que perpassa desde o discurso comum at formas mais

    elaboradas de discurso filosfico. Nesse sentido, as cartas de Erasmo sero

    tomadas como pea de anlise enquanto uma dimenso do discurso de Alencar

    como ator poltico de seu tempo, para uma discusso sobre a relao entre

    liberalismo e escravido no Brasil. Gramsci (1989) nos mostra que os intelectuais se

    formaram historicamente em associao com as elites econmicas. Seu papel,

    dentro dos diversos partidos2 a de organizao e disseminao da ideologia.

    Alencar, por meio de seu texto, busca criticar a administrao vigente e sua relao

    2 Entendendo partido no sentido mesmo que Gramsci o determinou. GRAMSCI, Antnio.

    Intelectuais e a Organizao da Cultura. So Paulo: Civilizao Brasileira, 1989.

  • com a coroa, por meio de recriminaes a poltica econmica, a administrao da

    guerra do Paraguai, ao descaso dos polticos, e em nosso caso quanto s

    propostas para o fim da escravido.

    Buscamos nos textos de Gramsci o referencial terico que acreditamos nos

    apresenta uma melhor adequao a proposta metodolgica aplicada, de uma

    discusso hipottico-dedutiva dos textos que se seguem. Gramsci nos fornece um

    material terico que - como ele mesmo comenta em sua organizao inicial para a

    escritura dos cadernos - so apontamentos, sem uma ligao serial linear, mas que

    podem nos fornecer uma base terica rica conquanto estejam mesmo permitindo-se

    uma interpretao mais heterodoxa das fontes.

    Gramsci prope uma viso ampliada do conceito de Estado em que a relao entre

    sociedade civil e sociedade poltica dialtica. A sociedade civil o lugar da luta de

    classes pela hegemonia, e junto com a sociedade poltica um dos fatores que a

    constituem. O Estado um elemento aglutinador e, como tal, formado pela

    diversidade de instituies da sociedade civil. uma combinao de fora e

    consenso, fazendo parecer que os caminhos traados pelo Estado sejam vistos

    como consensuais pela maioria, expressos pela opinio pblica em seus diversos

    rgos (GRAMSCI, 1999). Neste conceito ampliado de Estado, a sociedade poltica

    a definio de uma esfera na qual se situam os mecanismos de coero e

    dominao como o aparato policial-militar e a burocracia, e a sociedade civil, que

    formada pelas organizaes responsveis pela elaborao e difuso das ideologias,

    como a escola, a igreja, os partidos polticos, os sindicatos, as organizaes

    profissionais e a mdia. A cultura, para Gramsci, est relacionada com a

    transformao da realidade, atravs de uma busca e consequente conquista de uma

    conscincia superior, onde cada indivduo precisa conseguir compreender o seu

    valor na sociedade (GRAMSCI, 1976). dessa forma que se d a passagem do

    momento corporativo ao momento tico-poltico, da estrutura superestrutura. Isto

    expresso por Gramsci atravs do seu conceito ampliado de poltica, a "catarse". O

    momento em que a esfera dos interesses corporativos e particulares eleva-se ao

    nvel da conscincia universal, e as classes conseguem elaborar um projeto para

    toda a sociedade atravs de uma ao coletiva. Assim, sair da passividade, para

    Gramsci, deixar de aceitar a subordinao que o sistema capitalista impe a

  • alguns estratos da populao. Nesse processo, que dialtico, podemos observar

    um Alencar, em sua posio de aristocrata, mas ao mesmo tempo como um

    intelectual - um elo para a divulgao das ideias da elite e a sociedade como um

    todo que opta pela reafirmao de valores tradicionalmente aceitos, reafirmando

    um modelo adequado que deve perpetuar-se, tanto para a famlia como para a

    administrao pblica, por meio da divulgao de suas ideias em um veculo de

    comunicao, em detrimento das transformaes que acusa como degradadoras

    dos valores; temos aqui a prpria constituio do bloco histrico. a partir destes

    conceitos, formulados por Gramsci, que buscamos encontrar uma melhor

    compreenso do texto de Alencar.

    No primeiro captulo, nosso trabalho apresenta uma sucinta biografia de Jos de

    Alencar, tentando situar em sua trajetria os interesses e as escolhas polticas nas

    quais estava inserido e o contexto a que se referia e de certa forma pretendia

    criar.

    No segundo captulo, buscamos mostrar a conjuntura poltica do segundo reinado,

    junto ao processo de formao das elites e intelectuais, bem como da imprensa no

    Brasil. A diviso, aparentemente estanque, tem como elemento agregador a prpria

    biografia de Alencar. Ali, se buscam esmiuar os elementos formadores do

    intelectual Alencar apresentados anteriormente, e como ele se apresenta em seu

    campo de batalha:

    . A conjuntura poltica do perodo, junto a alguns elementos relevantes que so

    tomados pela crtica feroz de Alencar.

    . A imprensa -, seus primeiros anos no Brasil - na qual Alencar milita como crtico e

    jornalista, sendo este o seu veculo principal de divulgao de ideias.

    . As elites que disputam o poder no perodo e tem nos intelectuais seu ponto de

    ligao com as camadas populares.

    . E os intelectuais em si, que comeam a se formar nesse perodo no pas,

    influenciados pelas ideias liberais vindas da Europa, e mesmo em parte

    compartilhada com os grupos no poder. Alencar se apresenta como um intelectual

    surgido em uma das primeiras escolas de direito do pas, no Largo de So

    Francisco, portanto compartilhando de uma relao direta com os outros elementos

  • da elite local que estava se formando.

    Estes elementos apresentados, a opinio pblica, a imprensa e as elites formam, em

    um conjunto, o arcabouo do que seria o campo de atuao do intelectual Alencar, e

    a proposta de pontuar o estado da arte em que se apresentam tais segmentos

    pode nos auxiliar na construo de um retrato mais ntido da superestrutura

    (GRAMSCI, 1999) no recorte.

    No terceiro captulo, analisaremos as Cartas de Erasmo, dando nfase s propostas

    de Alencar sobre o problema da escravido no perodo. No nosso objetivo

    debater (ou defender) as questes do trfico, do abolicionismo e das reaes em

    oposio dos diversos grupos envolvidos nas questes, mas, a partir da

    investigao da fonte apresentar a questo sob uma tica especfica, a de Jos de

    Alencar como um ator poltico do perodo, e seu modelo de representao poltico e

    ideolgico para o Brasil, se ou no influenciado pelos ideais do liberalismo.

    Para tanto, apresentamos uma breve exposio do pensamento de seus principais

    representantes na Europa, com o intuito de comparar uma possvel similaridade com

    o texto das cartas.

    No quarto e ltimo captulo nos reservamos a um conjunto de consideraes finais,

    com vistas a uma compreenso do que foi apresentado.

    As fontes usadas na pesquisa so: As cartas de Erasmo, publicadas semanalmente

    no perodo de 1865 a 1868 e vendidas pelas ruas da Corte do Rio de Janeiro. A

    publicao3 com a qual trabalhamos foi organizada por Jos Murillo de Carvalho e

    contm as seguintes edies:

    . Ao Imperador, Cartas de Erasmo, de 1865; no caso, a segunda edio, de 1866;

    . Uma carta Ao Redator do Dirio (do Rio de Janeiro) de 1865;

    . Ao Povo, Cartas Polticas de Erasmo de 1866, acompanhadas das cartas Ao

    Marqus de Olinda, 1866 e Ao Visconde de Itabora, Carta de Erasmo Sobre a

    3 ALENCAR, Jos de, Cartas de Erasmo / Jos de Alencar ; organizador, Jos Murilo de Carvalho.

    Rio de Janeiro : ABL, 2009.

  • Crise Financeira, tambm de 1866;

    . Ao Imperador, Novas Cartas Polticas de Erasmo, de 1867-68.

    Tambm foram de grande auxlio s biografias4 pesquisadas e a bibliografia

    composta de obras especializadas, e baseadas em recentes pesquisas e em textos

    de consolidado valor. Uma das finalidades da histria conhecer melhor os

    sistemas de representao das sociedades, passando pela literatura e filosofia, e

    sempre atentando para a produo intelectual (REMOND, 2003). Com as cartas de

    Erasmo nos apropriamos de um texto criativo, coerente e esteticamente belo, o que

    s vem facilitar o trabalho interpretativo. Frente a isto, aqui temos o Alencar no

    comeo da vida pblica, se consolidando tanto como artista como um poltico

    atuante na Corte - um intelectual. Um Alencar que tem muito a nos dizer sobre o

    perodo.

    4 MENEZES, Raimundo de. Jos de Alencar: literato e poltico. 2a. Ed. Rio de Janeiro, livros tcnicos e

    cientficos, 1965. NETO, Lira. O inimigo do rei: uma biografia de Jos de Alencar, ou, a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. So Paulo. Globo, 2006. RODRIGUES, Antnio Edmilson Martins. Jos de Alencar: O poeta armado do Sculo XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.

  • 1. A TRAJETRIA POLTICA DE ALENCAR

    um homem de valor, porm, muito mal educado!

    D. Pedro II, referindo-se ao Alencar.

    Partindo para um esboo sobre a vida de Alencar, preferimos trabalhar com uma

    biografia crtica, buscando enfatizar o agente poltico em detrimento do artista. Mas

    no podemos deixar de ressaltar ser o poltico Jos de Alencar tambm um dos

    maiores representantes das letras do Brasil no oitocentos. Ele, ao lado de Machado

    de Assis, Castro Alves, Gonalves Dias e alguns outros no to notrios, tem seu

    trabalho caracterizado pela construo de um projeto de modernizao e a

    constituio de uma identidade para o Brasil. O desenvolvimento tecnolgico,

    cientfico, intelectual promovido na Europa era, em seu entender, um modelo para o

    mundo civilizado, e o Brasil no poderia ficar fora de to significativo projeto.

    A proposta de nossa biografia se d na medida em que a pesquisa busca enfatizar

    Jos de Alencar enquanto poltico. O escritor consagrado deixado por um

    momento de lado, em detrimento dos rumos a que as questes relativas histria

    poltica so colocados. No caso aqui, a histria da literatura somente um apndice.

    Tendo tambm em mente as advertncias deixadas por Remond (2003) sobre o uso

    da narrativa factual e subjetivista, eminente na biografia de notveis, que cruzavam

    o perigoso caminho de avaliar um perodo pelos olhos de um homem apenas

    caracterstica da histria poltica recriminada j pela Escola dos Annales -

    buscamos pelo caminho biogrfico integrar o Alencar aos diversos agentes polticos,

    a fim de desenhar um retrato mais consistente do perodo, mas sempre nos

    acautelando quanto a direo seguida. Neto (2006) e Menezes (1965) sustentam tal

  • proposta, afirmando que o temperamento reservado de Alencar fator determinante

    para a anlise de seu texto que, no caso das Cartas de Erasmo, apresenta

    caractersticas que transitam entre o romantismo literrio e um jornalismo crtico,

    como poderemos ver mais adiante. Pocock (2003), justificando uma proposta

    biogrfica, comenta que se [temos de ter] uma histria do pensamento poltico

    construda sobre princpios autenticamente histricos, precisamos ter meios de

    saber o que um autor estava fazendo quando escrevia, ou publicava um texto

    (POCOCK, 2003, p.28). Ainda na corrente citao, explica que em ingls coloquial

    perguntar o que um autor estava fazendo o mesmo que perguntar o que ele

    pretendia, ou seja, o que estava tramando ou o que pretendia obter. Quais

    seriam as intenes de tal autor quando da escritura de seu texto? Quais as suas

    pretenses com tal trabalho? (POCOCK, 2003, p.28). Philippe Levilain (2003) indica

    o fim da dcada de 1980 como o momento do florescer da biografia na Frana,

    havendo esta sendo reabilitada no meio universitrio ainda na dcada de 1960 e j

    na dcada de 1980 ultrapassa as fronteiras do pas. Michael Winock (2003) nos

    lembra da emergncia de pesquisas sobre os intelectuais e suas ideias no sculo

    XX, bem como a sua importncia para a difuso de modelos polticos, que tem

    atrado ateno de inmeros pesquisadores. Com Jos de Alencar, ampliamos o

    horizonte da pesquisa dos intelectuais no Brasil at meados s sculo XIX, onde

    est nosso recorte temporal.

    J existem biografias consistentes sobre o Alencar. Destaco o trabalho beneditino de

    Raimundo de Menezes (1965), Jos de Alencar, literato e poltico, que recolheu

    desde documentos pessoais at fotografias e caricaturas do perodo, mas que tenta

    no traar uma crtica ao trabalho de Alencar, sendo um texto predominantemente

    factual. para aonde me remeto, como uma fonte bsica do estudo, e que

    determina a linha mestra da descrio, mas me apoiando tambm em alguns outros

    textos5. Ressaltamos aqui que nosso recorte ir enfatizar tambm o contexto das

    relaes sociais que so (ou podem ser) determinadas pelo texto.

    5Outras biografias so: MAGALHES, Raimundo Jr. Jos de Alencar e sua poca. So Paulo. Ed.

    Lisa, 1971. ; FILHO, Luiz Viana. A vida de Jos de Alencar. So Paulo: Ed. UNESP/Salvador: Edufba, 2008 e NETO, Lira. O inimigo do rei: uma biografia de Jos de Alencar, ou, a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. So Paulo. Globo, 2006.

  • 1.1 PRIMEIROS ANOS

    No dia 1 de Maio de 1829, em uma pequena casa no stio Alagadio Novo, na vila

    de Nossa Senhora da Conceio de Messejana, periferia de Fortaleza, provncia do

    Cear, nasce Jos Martiniano de Alencar Filho. Seu pai, um padre que h pouco

    deixara a batina para se envolver na poltica6, junto com D. Brbara de Alencar, sua

    me, o irmo Tristo de Alencar e o tio Leonel Pereira de Alencar, foi figura de

    destaque na revoluo pernambucana. Um revolucionrio liberal exaltado pr-

    repblica, que posteriormente foi eleito deputado constituinte para o congresso

    lusitano7. Alencar mantinha relaes prximas com os liberais de Minas Gerais e de

    So Paulo, como o Padre Jos Bento e com Custdio Dias.

    Os (chamados) rebeldes de Pernambuco eram militares de alta patente,

    comerciantes, senhores de engenho e, sobretudo, padres (calcula-se em 45 o

    nmero de padres envolvidos). Apesar de ter em suas linhas elementos do povo e

    escravos, no era uma revoluo que pudesse ser chamada de popular. Antes,

    tentava afirmar a dominao de alguns grupos de elite local. Sobe forte influncia da

    maonaria, que disseminava as ideias liberais entre seus grupos, os rebeldes

    proclamaram uma repblica independente que inclua, alm de Pernambuco, as

    capitanias da Paraba e do Rio Grande do Norte, chegando com Alencar at o

    Cear. O movimento chega a controlar o governo durante dois meses. Alguns de

    seus lderes, inclusive padres, foram fuzilados; Alencar consegue o perdo.

    (CARVALHO, 2002)

    Com a abdicao, havendo o Senador pelo Cear, Joo Carlos Augusto de

    Oeynhausen e Gravenburg, marqus de Aracati, acompanhado D. Pedro I em sua

    volta a Portugal, declara o senado a vacncia de sua cadeira. O nome de Jos

    Martiniano, o pai, indicado em lista trplice entregue a apreciao da Regncia-

    6 Um padre longe da igreja. Menezes (1965) cita em nota que no foram encontrados os registros de

    Alencar na arquidiocese de Fortaleza. 7 O pai de Alencar, poltico ativo e um dos participantes do movimento republicano proclamado no

    Cear em 1817, j forneceria uma sedutora monografia. Preferimos aqui, em funo da metodologia exigida e dos limites da pesquisa, buscar uma anlise coerente apesar de firmada em caminhos mais sintticos.

  • trina. Aprovado, toma posse em 02 de Maio de 1832. A vida na corte do Rio de

    Janeiro o esperava, mas no por muito tempo. Em 23 de agosto de 1834 nomeado

    presidente da provncia do Cear, e retorna terra natal com a famlia. Passados

    alguns anos de uma administrao exemplar, com a renncia do Regente Feij

    com quem mantinha agora relaes prximas - foi exonerado do cargo. Alencar e

    Feij, desde o golpe de estado de 1832, em que se reuniam nas sesses do Partido

    Moderado, j admitiam certa cumplicidade de ideias.

    A famlia deixa o Cear e ruma novamente corte em meados de 1838, onde o

    Alencar reassume sua cadeira no senado. O pequeno Jos de Alencar, ento com

    11 anos, passa a frequentar o colgio elementar.

    O pai de Jos de Alencar, o senador Jos Martiniano de Alencar, figura chave no

    processo de maioridade de D. Pedro II. Enquanto orador oficial do Senado faz um

    discurso, durante a coroao e sagrao do imperador no Pao da cidade, clamando

    ao povo e a divina providncia para que iluminem o futuro monarca (SCHWARCZ,

    1998). Com a posse de D. Pedro II nomeado, logo a seguir, presidente do Cear.

    Toma a administrao da provncia por alguns meses, mas depois de enfrentar

    algumas revoltas populares, deixa o governo e retorna Corte em 1841. Neste

    ponto, o senador Alencar - agora cooptado pelo Estado - provavelmente j estava

    bem distante das ideias que proclamava nos movimentos revolucionrios.

    Jos de Alencar, o filho, tem no Cear - d'onde passa a infncia nessas idas e

    vindas - a vida tranquila do interior. Ali encontra as imagens que o seguiram pela

    vida inteira e ajudaro a criar as representaes para uma nao nova, esplndida,

    como tudo o mais que havia a sua volta naquele momento.

    Alencar desembarca em So Paulo em maio de 1843. Um mirrado rapazola de

    catorze anos. Vem completar os exames preparatrios. (MENEZES, 1965, p.49). A

    falta de livrarias e gabinetes de leitura e a dificuldade de comunicaes com a

    Europa torna o acesso aos livros uma dificuldade, j naquela poca. Os livreiros, em

    sua maioria, se estabelecem no Rio de Janeiro, e vendem majoritariamente ttulos

    em ingls visto a quantidade de residentes ingleses - e francs, e alguns romances

    adaptados e traduzidos, mas ainda pouco material (RENAULT, 1976)

  • Alencar uma figura que passaria despercebida em qualquer local. Alto, magro,

    moreno, de culos. De jeito acanhado; at mesmo silencioso. No frequentava as

    tabernas ou sales, o que produzia certo estranhamento no s dos colegas da

    repblica, mas nos estudantes em geral. Durante o Imprio, como os cursos

    regulares de medicina, direito e engenharia ainda no se proliferassem no perodo,

    tais escolas no se configuravam apenas como um centro de produo de uma

    cultura intelectual no Brasil. Eram, antes, espaos para uma consolidao do poder

    nas mos de uma elite citadina que comeava a se sobressair (COSTA, 1999). A

    frequentao s escolas de Direito era a antessala necessria ao jovem que

    buscava a ocupao em algum cargo pblico. A criao de cursos de nvel superior

    tambm busca a criao de um funcionalismo que possa assumir os cargos da

    burocracia do Estado. Tambm uma parte da formao da Corte, e uma carreira

    possvel dentro de um escasso mercado de trabalho.

    Durante o perodo do curso os estudantes bagunavam a cidade promovendo

    reunies, serenatas e bebedeiras, num tributo a Lord Byron8, em noitadas

    satanistas. Quando Alencar se transfere para So Paulo esse Byronismo est na

    moda (MENEZES, 1977, p. 50); os estudantes saem pelas ruas blasfemando contra

    a vida e o amor, de capa e cabeleira 9, virando a vida de pernas para o ar. Alencar

    nunca foi dado a esses arroubos da juventude, preferindo levar uma vida mais

    absorta em seus pensamentos.

    Em 1846 Alencar se matricula na Academia. Ali tem suas primeiras experincias

    jornalstico-literrias onde funda, junto a alguns colegas primeiranistas, a revista

    semanal Ensaios Literrios. Em comeos de 48, depois de tirar frias em Fortaleza e

    no stio Messejana, embarca para a cidade de Olinda, onde se matricula no 3 ano

    do curso Jurdico. A companhia de Alencar ali so os passeios pelas ruas solitrias e

    a biblioteca do mosteiro de So Bento, onde funcionava o curso, e aonde tem

    acesso a exemplares dos cronistas coloniais. No fica ali por muito tempo, voltando

    8 Poeta romntico ingls que veio a morrer na primeira metade do sc. XIX. 9 A expresso, recolhida por Menezes de um comentrio de Brito Broca, est indefinida. Parece remeter aos juristas ingleses e americanos modelos para esta juventude da elite da corte, portanto de usarem perucas como um smbolo de poder. Renault (1976) indica a partir de uma fonte de 1816 - que cada profisso recorre a determinado tipo de cabeleira, como forma de distino.

  • posteriormente para So Paulo. Alencar comea j a sentir os primeiros sintomas da

    doena que o acompanharia at o fim da vida, e o clima do Nordeste possivelmente

    seria um alivio para a tuberculose.

    Por fim, consegue se formar em Direito em 1849 (na turma de 50) na Faculdade de

    Direito do Largo de So Francisco. So Paulo uma cidadezinha de terceira ordem,

    tristonha e brumosa: no possui cerca de 12 a 14 mil almas, se tanto (MENEZES,

    1965, p. 60). O espao dividido entre os estudantes, grupo ento numerosssimo,

    e o resto, como diziam. Meretrizes, gente pobre nos cortios, alguns emigrantes

    que vinham tentar a vida fora do campo e artistas mambembes que buscavam levar

    alegria para ali. Carvalho (2007) sustenta que a escolha por So Paulo e Olinda para

    o estabelecimento dos cursos de Direito foi uma maneira de unificar os laos entre

    as elites dispersas pelas vrias regies, para posteriormente associa-las a Corte.

    Alencar no foge a regra e muda-se para o Rio de Janeiro, cidade mais promissora

    economicamente, onde comea a trabalhar como praticante no escritrio de

    advocacia do Dr. Caetano Alberto Soares, um dos mais procurados, chegando a

    representar em certas ocasies a Casa Imperial. Alencar trabalha ali por quatro

    anos, onde se inicia nos estudos mais ridos do Direito, mas no esquece o

    jornalismo.

    1.2 VIDA NA CORTE

    Em 09 de agosto de 1853 Alencar comea a trabalhar, a convite de um amigo, na

    redao do jornal Correio Mercantil - chamado o grande jornal das ideias liberais -

    com a obrigao de promover mudanas em sua estrutura que viessem a torn-lo

    um pouco mais popular. Era tido como um abrigo dos letrados e o mais importante

    dos dirios da Corte a poca. At 1852, o Correio Mercantil era um dos jornais

    cariocas com eventual tiragem em francs (MENEZES, 1965). Alencar passar a

    analisar os acontecimentos da semana no rodap da primeira pgina da revista

    hebdomadria Pgina Menor, publicada sempre aos domingos. No sculo XIX, tais

    revistas - em formato de folhetins - j so comuns na imprensa nacional.

  • O trabalho de Alencar era reunir diversos assuntos, com uma escrita leve e que

    chamasse a ateno do pblico. Agora, mesmo avesso a festas e sales de baile -

    como o do Cassino Fluminense, famoso ponto de encontro onde fluam amizades e

    intrigas, liberais e conservadores conversavam serenamente; com seu jeito sisudo, o

    jovem e acanhado jornalista comea a frequentar a sociedade a procura de ideias e,

    tambm, de amigos.

    Alencar sabia, como bom jornalista, que por vezes seria preciso no s relatar os

    fatos, mas tambm cri-los; o caso do desfile de carnaval. Desde 1854 a polcia

    probe a prtica do entrudo10 no carnaval. Em 1855, um grupo de folies animados

    por jornalistas do Correio Mercantil, em sua maioria, resolve por na rua um carnaval

    diferente, com desfile de banda de msica, carros alegricos e cavaleiros, nos

    moldes do carnaval de Veneza. A moda de peras italianas pelos teatros da cidade

    faz com que o estranhamento seja menor pela populao, j familiarizada com os

    tipos da comdia italiana como arlequins e colombinas. Alencar, acompanhando o

    ento coronel Polidoro da Fonseca11 e Muniz Barreto, proprietrio do Correio

    Mercantil, vai ao Pao da Quinta da Boa Vista convidar a famlia imperial para o

    desfile, que viria a passar tambm no Largo do Pao. Seria o primeiro destes

    desfiles a se apresentar no Rio de Janeiro. O imperador comparece e aprecia o

    espetculo. D. Pedro II, poucos anos mais velho que Alencar, reconhece naquele

    filho de padre um pouco da convico e do ativismo do velho senador Alencar.

    Porm, o fato de Alencar assumir-se a favor do imprio no quer dizer que morria

    de amores por D. Pedro II.

    Em 1855, devido a alguns desentendimentos com a direo do jornal, abandona o

    Correio Mercantil e sua coluna Ao correr da pena, que um sucesso na poca,

    voltando a militar na advocacia por algum tempo. Em outubro do mesmo ano

    assume os cargos de gerente e redator-chefe do Dirio do Rio de Janeiro com a

    10 O entrudo era uma festa popular oriunda de Portugal. Significa literalmente introduo e remonta antigas prticas pags. Carnaval de rua que, desde os tempos da colnia, vem sendo proibido pelas autoridades constitudas devido aos constantes excessos do povo. Ver, por exemplo, DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro. Rocco, 1997. 11 Os Fonseca eram uma famlia, alm de influente, vasta nos quadros do exrcito. Podemos citar desde alguns heris da guerra do Paraguai at o grupo que sustenta Deodoro na proclamao da repblica. Ver, para um melhor esclarecimento, nota em CARVALHO, Jos Murilo de, A formao das almas: o imaginrio da repblica no Brasil. So Paulo, companhia das letras, 1990. p. 144.

  • tarefa de reerguer o ento decadente jornal (o primeiro jornal dirio surgido no Rio

    de Janeiro12) alavancando suas vendas. J era, naquele momento, um jornalista com

    certo renome e seus textos sugerem influncias de autores europeus. O modelo

    civilizacional francs - e isto de comum acordo com a grande maioria dos bacharis

    que frequentavam a corte - eram de seu agrado e como muitos outros redatores do

    perodo, foi dele tambm um divulgador. o afrancesamento da sociedade

    carioca, que se manifestava tambm no uso da linguagem pelos jornais. Alencar

    grande apreciador de Lamartine, e leitor de Balzac e Voltaire desde os tempos da

    academia em que passava as tardes junto ao dicionrio de francs.

    Nos fins de 1854 vem ao Rio de Janeiro, em frias das funes de cnsul geral na

    regio da Sardenha, na atual Itlia, o poeta Domingos Jos Gonalves de

    Magalhes - futuro visconde de Araguaia. Traz consigo os originais do poema A

    confederao dos Tamoios; obra que, dizia ele, revolucionaria as letras nacionais.

    Grande amigo de D. Pedro II, este manda imprimir uma edio do poema na

    conhecida tipografia de Paula Brito13, em rica encadernao, o que j era um motivo

    para que o proclamado poema fosse lido. O assunto gira em torna das lutas dos

    Tamoios com portugueses em meados do sculo XVI no litoral fluminense e paulista,

    exaltando o quanto podia as figuras histricas do perodo. As crticas foram

    unnimes, o poema era segundo comentadores do perodo, como Alexandre

    Herculano e Gonalves Dias uma grande decepo. Alencar, oculto pelo

    pseudnimo Ig14, investe criticamente sobre o poema classificando-o de medocre,

    em uma srie de oito cartas publicadas em sua coluna no Jornal. Seria este o

    primeiro debate substancioso sobre literatura travado no Brasil, e, de certa forma, a

    primeira querela envolvendo o artista e o imperador.

    12 Interessante lembrar que o Dirio do Rio de Janeiro chega a ser apontado como subversivo por

    Jos Bonifcio, que manda averiguar o teor do escritos incendirios ali publicados em 1822(COSTA, 1999. p.71). No Dirio seriam publicados artigos contrrios monarquia constitucional. Alencar era assumidamente um conservador. 13 Paula Brito editor e dono de tipografia, um conhecido ponto de encontro de intelectuais e polticos do perodo. Mulato, de origem pobre assim como Machado de Assis, mais um indicativo de que nas letras nacionais a poltica de segmentao racial era mais amena. 14 Menezes comenta em uma nota que, tendo o Imperador 'esquecido' de convidar o Alencar para a leitura da Confederao dos Tamoios em seo no gabinete imperial, este viria a se tornar um crtico ferrenho de Magalhes. Nos parece um reducionismo; a implicncia do Alencar no chega a tanto e sua capacidade como escritor e poltico mostra bem sua capacidade.

  • A carta aberta comum na imprensa do perodo. Um comentador coloca suas

    opinies, de maneira direta e sbria, com o intuito de publicitar um assunto. Um

    debate aberto; por vezes uma provocao. E o direito de resposta era concedido

    prontamente. O assunto, se tornado interessante, era esperado pelos leitores.

    A maior parte das crticas se refere gramtica e a metrificao. O poeta Arajo

    Porto-Alegre, cognominado O amigo do poeta, sai em defesa de Magalhes.

    Alencar rebate e, a esta altura, Ig no seria mais um desconhecido. Porto-Alegre

    chega a transparecer que a peleja do Alencar no seria contra o preterido poeta,

    mas um ataque indireto ao seu protetor: D. Pedro II. Alguns outros aparecem pelas

    pginas do jornal, apoiando tropegamente poema e poeta. Alencar segue firme e o

    imperador assume a pena sob o codinome de Outro amigo do poeta. Escreve seis

    artigos que Alencar responde com airosidade. O imperador pede a opinio favorvel

    de alguns amigos sobre o poema, mas nem as crticas encaminhadas por Gonalves

    Dias e Alexandre Herculano conseguem convencer D. Pedro II do contrrio, que

    Magalhes no era to bom assim. Torna-se ento uma guerra pblica de teimosos.

    Alencar, no mesmo ano, rene em livro as cartas publicadas sobre A confederao

    dos tamoios. No ano seguinte, Magalhes publica uma segunda edio do poema

    que D. Pedro II promove, agora chegando a pagar a publicao de duas tradues

    para o idioma italiano da obra. O imperador incentiva a pesquisa e publicitao de

    trabalhos que enfatizam essa mitologia romntica do indigensmo, mas no significa

    que esteja preocupado com a esttica literria. Suas razes esto mais prximas do

    campo poltico, como tambm o seria com sua relao com o instituto histrico e

    geogrfico, ao qual era o maior patrocinador. Era o momento de solidificar os

    smbolos da nova nao e o indigensmo, alm de tudo, se caracteriza por ser um

    movimento antilusitano (ROMANCINI, 2007).

    Sobre o texto de Magalhes, o pblico aparentemente se cansa da peleja, e Alencar,

    como redator do jornal, precisa procurar matria mais interessante e a contenda se

    dissipa no tempo. Mas esta seria a primeira de uma srie de desavenas

    envolvendo o Imperador e Alencar.

    Em dezembro de 1856 Alencar termina seu primeiro livro, distribudo para os leitores

    do Dirio do Rio de Janeiro como um presente no Natal. No ano seguinte publica o

  • primeiro folhetim15 de O guarani, no Dirio, e depois em livro, organizado em quatro

    volumes; e os primeiros captulos de A viuvinha em folhetim. O sucesso de O

    guarani tamanho que vrias portas so abertas para o escritor. neste ano que

    Alencar ingressa no teatro, com sua pea: O Rio de Janeiro, verso e reverso; em

    novembro estreia com O demnio familiar e, ainda em dezembro do mesmo ano, a

    comdia O crdito. A sociedade apresentada nos palcos do Rio de Janeiro, para

    Alencar, no seria aquela que ele via nas ruas. Seu modelo era a sociedade

    francesa. Comenta assim em uma crnica:

    () a verdadeira comdia, a reproduo exata e natural dos costumes de uma poca, a vida em ao no existe no teatro brasileiro. No achando pois em nossa literatura um modelo, fui busc-lo no pas mais adiantado em civilizao, e cujo esprito tanto se harmoniza com a sociedade brasileira; na Frana. Fui feliz; o pblico ilustrado foi mais benvolo do que eu esperava e merecia; O Demnio Familiar, escrito conforme a escola de Dumas Filho, sem lances cedios, sem gritos, sem pretenso teatral, agradou. (MENEZES, 1977. p. 135)

    No exposto, entendemos que Alencar buscava um modelo melhor, segundo ele,

    para a sociedade carioca. O modelo francs, de certa forma j impregnado na

    sociedade da Corte, agora validado pela arte e aplaudido pelo grupo. Tal modelo,

    como afirma, no estava na literatura dramtica nacional. A vida em ao no existe

    no teatro. A questo : qual seria essa vida que Alencar buscava? A das ruas

    imundas do Rio de Janeiro, dos escravos que recolhiam os dejetos na cidade, da

    incipiente indstria nacional? Certamente no.

    A pea de maior aceitao pblica O demnio familiar, e a mais divulgada de

    suas comdias. Machado de Assis em um artigo qualifica a pea O demnio

    familiar como um retrato da famlia brasileira no perodo, com sua caracterstica

    segundo ele paz domstica. O texto circula tambm em verso impressa, com uma

    dedicatria imperatriz D. Teresa Cristina, o que chega a ser considerado uma gafe

    de Alencar, sendo a personagem principal o referido demnio familiar, um moleque

    chamado Pedro, assim como D. Pedro II (e tambm D. Pedro I ?). Na estreia do

    espetculo no Teatro do Ginsio comparecem D. Teresa e D. Pedro II, que chega a

    se irritar com os olhares maliciosos e risadas do pblico a cada travessura do

    15

    Alencar estava - de certa forma - na vanguarda da mdia. O folhetim foi uma inveno de Gustave Planche, no decnio de 1820 na Frana, introduzindo uma forma diferenciada narrativa do romance. Era um modelo que agradou e ajudou a construir popularidade para Alencar. Ver CNDIDO, Antnio. Literatura e Sociedade. 9. Ed. Rio de Janeiro. Ouro sobre Azul. 2006. p. 43.

  • escravo no palco. Segundo esse autor, se origina da, e no do episdio da

    Confederao dos Tamoios, as diferenas entre o imperador e Alencar. De qualquer

    forma, no se pode deixar de ver Jos de Alencar como um implicante.

    Em 30 de maio de 1858, no teatro do Ginsio Dramtico, estreia a comedia As asas

    de um anjo. Depois da terceira apresentao pblica, o texto proibido pelo chefe

    de polcia. Alencar vem a pblico, atravs do Dirio, questionar a arbitrariedade e

    apresentar sua defesa. Questiona como um espetculo aprovado anteriormente pela

    censura (apresenta-las anteriormente aos censores era o procedimento padro)

    poderia ser logo depois proibido. Diz o autor ter se baseado em uma pea de

    Alexandre Dums Filho sobre uma prostituta; j tendo sido o espetculo

    apresentado no mesmo teatro semanas a fio, sendo assim bem conhecida do

    pblico. Apresenta ali seus argumentos e motivos, repetindo que no entende como

    um texto que, ele mesmo admite, adaptado de um romance europeu a dama das

    camlias - que apresenta j a poca relativo sucesso de pblico no teatro, pde ser

    censurado. ali que Alencar entende, da pior maneira, que a sociedade carioca de

    ento no aceita ser confrontada com uma caracterizao to realista de seus

    costumes. Havia assuntos ainda difceis de discutir. interessante nos determos um

    pouco aqui, para analisar o confronto do autor com a censura. Alencar se sente

    intimamente ofendido com a proibio, e parte para sua defesa pblica, fazendo o

    que sabe fazer: mobilizar a opinio pblica atravs do jornal...

    Em 28 de junho de 1858, Alencar pblica no Dirio do Rio de Janeiro um artigo que

    viria a ser uma espcie de direito de defesa a censura do espetculo16.

    interessante no sentido de que podemos ter uma viso ampla da censura praticada

    pelas instituies pblicas no perodo imperial. inicia a carta indicando o seu

    direito e dever como escritor. Alencar se diz indiferente a punio e explica que tal

    somente servir para excitar a curiosidade pblica, por isso vem a pblico

    defender-se apenas por que se diz um defensor da moral e no quer manchar sua

    imagem aceitando passivamente a (afirma) injustia. No pretende fugir a punio e

    afirma que se quiser dar-lhe maior publicidade, tenho ainda um meio, a imprensa,

    16

    Artigo transcrito na seo ensaios literrios em ALENCAR, Jos de. Teatro completo. Rio de Janeiro. Servio Nacional de Teatro, 1977. As referncias entre aspas so todas do artigo

  • que no est sujeita censura policial. A pea, conta, havia sido liberada por meio

    de despacho especfico pela polcia em 25 de maio e pelo Conservatrio Dramtico

    ainda em janeiro, o que j indica uma contradio. Dentre as causas estipuladas

    pela lei para a proibio de espetculo teatral estavam: o ataque s autoridades

    constitudas, o desrespeito religio, e a ofensa moral pblica que, no entender do

    jornalista, seria o motivo da proibio.

    Alencar afirma ter pensado bastante na reao que o pblico teria sobre o tema, e

    afiana ter se baseado em obras dramticas filhas da chamada escola realista que

    vem de Paris e que tm sido representadas em nossos teatros, sende ele mesmo

    um dos espectadores. Mas, sustenta, esqueci-me que o vu que para certas

    pessoas encobre a chaga da sociedade estrangeira, rompia-se quando se tratava de

    esboar a nossa prpria sociedade (ALENCAR, 1977, p. 227). Afirma que o pblico

    da Corte, assistindo a A dama das Camlias ou s Mulheres de Mrmore, cada

    um toma Margarida Gauthier e Marce so apenas duas moas um pouco

    estravagantes, mas quando se transpe a questo para o Brasil em As asas de um

    anjo, o espectador encontra a realidade diante de seus olhos, e espanta-se sem

    razo de ver no teatro, sobre a cena, o que v todos os dias na rua e nos passeios.

    Mas, o que seria imoral? O que motivaria tal ato da polcia? Alencar explica que

    imoralidade o ato que a moral reprova. Alencar se defende dizendo que sua inteno

    era a preteno de mostrar uma lio para os pais de famlia sobre a necessidade

    de cuidarem da educao moral de seus filhos, de constiturem-se enquanto famias.

    Sustenta que em sua tese no h a uma s personagem que no represente uma

    ideia social, que no tenha uma misso moralizadora. No ele quem nos

    apresenta, diz, a prpria sociedade. E as instituies pblicas criam um

    impedimento para que o grupo possa comfrontar sua realidade; mais uma barreira

    constrda, como podemos observar, entre o povo (rebelde, inculto, imoral) e a elite,

    que s observa isso de sua cadeira ou camarote, estando distante de tudo.

    Alencar se desgosta com aquilo e abandona, logo depois, o Dirio do Rio de Janeiro

    e a dramaturgia (pelo menos, por enquanto), voltando a se dedicar ao Direito e a seu

    trabalho como advogado no escritrio do Dr. Caetano Alberto. E agora com clientela

    vasta. Ao longo do perodo imperial, com a estabilidade da economia e um maior

  • (ainda pouco) desenvolvimentos das cidades aparecem outros caminhos para o

    trabalho que no somente a burocracia, mas a grande maioria dos profissionais

    liberais no consegue manter-se. Apesar do desenvolvimento da advocacia, do

    magistrio, da medicina, do jornalismo, muitos destes profissionais liberais o caso

    de Alencar encampam duas profisses ao mesmo tempo como forma de

    sobrevivncia ou de esperar ser alcanado pelo brao sedutor do emprego pblico.

    Para Neto (2006) a produo literria de Alencar no est desvinculada de sua

    personalidade, um tanto depressiva, e afastada da vida noturna da capital, lugar

    comum para polticos e jornalistas - vrios deles conhecidos por Alencar, que

    preferia a tranquilidade de sua propriedade na periferia onde recebia alguns poucos

    amigos. Ali entre seus livros, dedicava-se a leitura de cronistas e historiadores e a

    pesquisa sobre a histria poltica dos sculos XVIII e XIX. Tais leituras teriam levado

    Alencar a um aprofundamento de sua reflexo crtica sobre a realidade brasileira e

    os padres de comportamento da sociedade e das instituies que a constituem, e

    da famlia burguesa em particular.

    1.3 MILITNCIA POLTICA

    Em dezembro de 1858, quando Nabuco de Arajo assume o cargo de Ministro e

    Secretrio de Estado dos Negcios da Justia trata logo de promover uma reforma

    interna neste, e o nome de Alencar lembrado para uma diretoria de Seo na

    Secretaria de Estado dos Negcios da Justia. Depois de alguns meses no cargo,

    solicita a um amigo do partido conservador, o ento conselheiro Eusbio de Queiroz,

    uma melhoria em seu cargo. Em maio de 1859 seu pedido aceito e, agora como

    consultor, recebe o ttulo de conselheiro com seus 30 anos. Comea o gosto pela

    poltica que estava desde sempre, segundo Alencar, em sua famlia. No mesmo ano

    que entra para o ministrio nomeado professor de direito mercantil do Instituto

    Mercantil no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, publica vrios trabalhos jurdicos de

    reconhecido valor que alcanam segundas e terceiras edies, o que prova que o

    texto de Alencar era procurado e lido; que conseguiu sucesso como autor ainda em

    sua juventude (algo dificilmente alcanado mesmo hoje).

  • A poltica, assim dizia o Alencar, era como uma religio em sua famlia, e o desejo

    por uma cadeira na Assembleia j latente. Mas em sua primeira candidatura, em

    1856, para uma cadeira de deputado geral pela provncia do Cear, na primeira

    eleio por distritos, no eleito na ocasio (ALENCAR, 2009). Em 15 de maro de

    1860 tem outro desgosto, falece o velho senador Alencar, seu pai. Talvez a ltima

    chance de associao aos quadros do Partido liberal. No ms seguinte, comea

    uma correspondncia com amigos no Cear j no intuito de buscar uma candidatura

    para deputado. Em novembro, e ainda trajando luto17, embarca para Fortaleza onde

    busca amigos e correligionrios para iniciar sua campanha pelo partido conservador

    nas periferias da capital cearense. Com a quantidade limitada de eleitores pela

    legislao vigente, em poucos dias consegue-se conversar com um significativo

    percentual de eleitores. Apesar de seu pai ser um grande nome do partido liberal e

    mesmo Alencar sendo o redator-chefe do Dirio do Rio de Janeiro, folha

    declaradamente liberal, o partido no sugeriu uma filiao ou a possibilidade de

    concorrer a algum cargo pblico, fato que ser lembrado posteriormente com certa

    amargura. Talvez, com os liberais, Alencar pudesse exercitar melhor sua ojeriza por

    D. Pedro II, que j era manifesta a poca. Talvez, pelo mesmo motivo, o partido no

    o desejasse em suas linhas. A to falada homogeneidade de pensamento entre

    liberais e conservadores se aplica aqui, onde algum que pudesse desagradar o

    imperador seria um filho sem pai. O que Alencar j sabia era que se no

    conseguisse apoio de alguma liderana poltica de um lado ou de outro -

    provavelmente no seria eleito. Foi o que aconteceu no primeiro pleito. Alencar

    ento se apadrinha de Eusbio de Queiroz e, com o apoio deste e do grupo

    conservador, eleito para a Cmara em 1861.

    Os principais partidos do perodo, o liberal e o conservador, apresentavam algumas

    diferenas importantes. O professor Bonavides consegue uma caracterizao

    abrangente para o perodo de nosso recorte:

    17 O traje de luto para meados do sculo XIX era conservado por um tempo relativamente grande,

    quando se tratava de um familiar prximo. Porm, pode ter funcionado como uma ferramenta

    importante na construo de um personagem para sua campanha poltica. Ele praticamente um

    desconhecido no Cear. preciso mostrar-se como cristo, bom filho, etc.

  • Os liberais do Imprio exprimiam na sociedade do tempo os interesses urbanos da burguesia comercial, o idealismo dos bacharis, o reformismo progressista das classes sem compromissos diretos com a escravido e o feudo.

    Os conservadores, pelo contrrio, formava o partido da ordem, o ncleo das elites satisfeitas e reacionrias, a fortaleza dos grupos econmicos mais poderosos da poca, os da lavoura e pecuria, compreendendo plantadores de cana-de-acar, cafeicultores e criadores de gado. (BONAVIDES, 2000, p.491)

    Tambm Ilmar Mattos (1987) afirma que a diferena entre Luzias e Saquaremas j

    estava demarcada desde as revoltas liberais do perodo regencial. Porm, como os

    partidos polticos ainda no havia desenvolvido suficiente fora enquanto instituio

    e ainda no haviam desenvolvido sua configurao atual, geralmente os interesses

    pessoais (e as ideias) determinavam as aes dos polticos. Jos Murillo de

    Carvalho (2007) sustenta a posio dos magistrados tipicamente centrados no

    partido conservador, tanto quanto o clero no partido liberal, tendo o grupo dos

    militares preferido manter certa neutralidade e, por fim, um grupo ascendente de

    profissionais liberais formando a ala ideolgica do Partido Liberal e o ncleo do

    Partido Republicano do Rio de Janeiro (CARVALHO, 2007, p. 225). Nas cartas,

    Alencar sustenta que era do comrcio portugus e aderncias que o partido

    conservador tirava principalmente sua fora e os recursos com que sustentava a

    luta. e mais adiante afirma que o partido conservador servia-se da indstria para

    subir (...) (ALENCAR, 2011, p.63). Em sua quase totalidade estes homens eram

    representantes de uma sociedade patriarcal, europeizada, escravagista e machista.

    Tais homens partilhavam desse universo cultural que, inclusive, os caracterizava

    independente do partido a que estavam filiados. E quantas vezes tais interesses no

    se confundiam com a vontade do imperador - figura maior, que muitos queriam

    agradar e poucos tinham coragem de desagradar. Bonavides (2000), citando Rui

    Barbosa, diz que os dois partidos, na prtica, se resumiriam em um s: o partido do

    poder. Faoro (2004) tambm sustenta que, no segundo reinado, a partir de 1836, a

    histria poltica brasileira se resumiria aos dois grandes partidos: o liberal e o

    conservador. . A conciliao foi algo como uma orientao, um acordo intrapartidrio

    ou mesmo uma coligao, e no outro partido. A liga, que tida como a associao

    geradora do partido progressista, foi uma organizao primria dessa liderana, que

    tem seu trmino com a deposio de Zacarias de Gis em 1868, tendo seus filiados

  • se rearranjado entre liberais e conservadores. As discusses entre as diferenas

    ideolgicas dentro dos partidos excedem a pretenso deste trabalho. O que

    modestamente se sustenta aqui que a filiao partidria se dava, a princpio, no

    como resultado de um aceite pelo ator poltico da base ideolgica do partido se

    que houvesse uma. O partido conservador, por exemplo, nunca chegou a escrever

    um manifesto ou coisa que o valha mas a suas necessidades pessoais, suas

    pretenses sociais e para seu favorecimento econmico. Para efeito geral,

    acompanharemos a anlise de Carvalho:

    A complexidade dos partidos se refletia naturalmente na ideologia e no comportamento poltico de seus membros, dando s vezes ao observador desatento a impresso de ausncia de distino entre eles. Um exame, embora sumrio, de alguns problemas cruciais enfrentados pelos polticos do Imprio pode, no entanto, mostrar tanto as divergncias interpartidrias como intrapartidrias. (CARVALHO, 2007, p. 219)

    Em Janeiro, ao se realizarem as eleies secundrias, Jos Martiniano de Alencar

    Filho eleito pelo 1 distrito (tendo, segundo um comentrio seu, obtido tambm 30

    votos dos cerca de 220 eleitores liberais) no Cear, junto a outros seis candidatos de

    seu partido. Em 23 de maio inicia seus trabalhos na corte. O cargo de deputado

    um importante comeo para a vida pblica:

    Apesar de eleitos por um perodo de quatro anos, frequentemente conseguiam ser reeleitos para vrias legislaturas ou detinham importantes cargos administrativos. Muitos encontraram na Cmara um caminho fcil para o Senado e o Conselho de Estado. Assim como os conselheiros de Estado e os senadores, os deputados pertenciam a uma rede poltica de clientela e patronagem, que utilizavam tanto em seu prprio benefcio quanto no de seus amigos e protegidos. (COSTA, 1999, p. 141)

    Ainda sobre o assunto, uma interessante anotao de Tavares Bastos em seu dirio

    pessoal nos ilustra bem a posio de clientela a que os deputados estavam

    submetidos. Referindo-se ao fim de setembro 1869, comenta sobre uma reunio dos

    senadores liberais autorizando Zacarias de Gis a prosseguir negociaes sobre o

    oramento com Cotegipe, ministro da Marinha. Ao redigir a informao, refere-se

    aos senadores que compe uma frao do partido denominada progressista critica

    ou ceticamente - como os nossos chefes (ABREU, 2007, p.122). Disto podemos

    deduzir, e ainda segundo o depoimento de Costa, que Alencar tambm no

  • nenhum heri do Brasil. Quer o cargo pblico como uma segurana, que garanta

    uma rede de relacionamentos necessria a permanncia nesta periferia da elite,

    com vistas a uma posterior promoo.

    Quando do incio dos trabalhos, todos os olhares estavam postos sobre Alencar.

    Romancista e dramaturgo j famoso, jornalista respeitado, filho de importante

    Senador que chegara a orador do Senado na coroao do Imperador; a casa estava

    cheia de expectativa para a fala inicial. No calor da hora a emoo lhe sobe a

    cabea. O discurso proferido, to aguardado, foi um grande fiasco, com momentos

    de indeciso e certa disfemia. aos poucos que a palavra lhe vai acontecendo, vai

    achando seu lugar na tribuna durante o mandato. Os argumentos, a rplica sempre

    pronta, o exerccio parlamentar vai construindo o personagem poltico Jos de

    Alencar que chega a ser um dos mais respeitados oradores da cmara. A

    humilhao nos primeiros dias arranha um pouco do orgulho e da habitual

    arrogncia do escritor, para depois se constituir em um aprendizado decisivo do

    poltico.

    Em 13 de maio de 1863 dissolvida a Cmara. Alencar, sentindo a doena, faz

    algumas viagens de repouso fora do Rio de Janeiro. De volta Corte, passa a morar

    na Tijuca e diminui o ritmo da produo literria, atendendo a conselhos mdicos. Ali

    conhece aquele que viria a ser um grande amigo, o mdico Dr. Thomaz Cochrane18,

    de quem posteriormente toma a filha em casamento, Georgiana Augusta Cochrane.

    Em 1865 nasce seu primeiro filho, Augusto.

    De temperamento arredio, dado mesmo a solido, com a dedicao ao trabalho

    redobrada agora pela necessidade de sustentar uma casa; no sendo um associado

    do Instituto Histrico e Geogrfico, no sendo frequentador assduo de sales ou da

    livraria do Paula Brito como outros literatos, vai desligar-se ainda das poucas

    relaes sociais que tem. Fecha-se na famlia e para si. o ano em que publica as

    primeiras cartas de Erasmo, dirigidas ao Imperador.

    18

    Que no o Almirante Cochrane; militar contratado por D. Pedro I para massacrar rebeldes revolucionrios pelo Brasil afora.

  • Em novembro de 1865 comeam a aparecer nas livrarias do Rio de janeiro uma

    srie de cartas abertas, publicadas sempre as teras-feiras, endereadas ao D.

    Pedro II e assinadas com o pseudnimo de Erasmo, mas logo se soube que o autor

    era o deputado Alencar. A procura pelos folhetins era imensa. Havia quem

    esperasse a chegada de um vendedor pelas ruas para adquirir seu exemplar19. O

    prprio imperador no deixava de estar atento a cada nova carta; era como mais um

    sucesso literrio. Publica tambm, em 1866, Os partidos, em formato de livro, mas

    discutindo as mesmas questes e de forma menos informal.

    As cartas continham um conjunto de denuncias sobre as irregularidades na poltica e

    no procedimento tico dos polticos. Falam do poder moderador, da situao

    financeira do pas; no h assunto que escape ao jornalista. Posteriormente,

    enderea outra carta, esta ao Visconde de Itabora, ex-Ministro dos Negcios e da

    Fazenda, uma carta sobre a crise financeira, em que tece vrios elogios a este, e

    mais uma, endereada ao Marqus de Olinda. De julho a agosto publica uma srie

    de cartas ao povo20. Alencar se coloca sempre, e antes, como um pensador da

    poltica. Algum que observa e indica um caminho para a nao, e sua condio de

    jornalista decisiva passa isso. Deve-se ter em conta que um pensador poltico

    algum que observa contextos, comportamentos e instituies e a partir de disputas

    retricas em torno de tais conceitos, e que busca criticar o poder institudo e as

    justificativas que este toma para continuar no poder.

    Alguns fatos so modelares para mostrar o desinteresse de Alencar pela sua

    valorizao enquanto uma personagem social, preferindo ser identificado enquanto

    escritor. Prefere as letras e a tranquilidade de seu recanto vida social que poderia

    ter na Corte. Um exemplo disto o episdio da condecorao. Em 1867 o Alencar,

    por decreto imperial, agraciado com o oficialato da Ordem da Rosa, pelos

    relevantes servios prestados s letras no pas. Um agrado da parte de D. Pedro II,

    feito sem que houvesse uma solicitao ou concurso. A poltica de condecoraes

    19 o depoimento de Barros Pimentel, que demonstra como o o folhetim foi um meio importante de

    divulgao no perodo.

    20 As cartas sero analisadas em captulo a parte.

  • basicamente a mesma dos ttulos nobilirquicos brasileiros: formas de cooptao de

    elementos da elite para o partido do Imperador. Nos anos finais do imprio, D.

    Pedro II agraciaria vrios fazendeiros com a ordem da Rosa pela iniciativa destes

    em libertar seus escravos (NOVAIS, 1997). Alencar, sem um motivo aparente,

    recusa a condecorao publicamente, solicitando ao redator do Jornal do Comrcio

    que publicite sua deciso. mais uma alfinetada em D. Pedro II que, a princpio,

    busca trazer Alencar para seu grupo mais prximo. A caminhada na carreira poltica

    vai se tornando complicada com tais atitudes de intransigncia, pelo menos para

    algum dentro do partido conservador que almeja seguir adiante.

    Em 1868 est frente do governo o gabinete liberal presidido por Zacarias de Gis e

    Vasconcelos. Por conta de alguns desentendimentos entre Zacarias e o marqus de

    Caxias, j tomado como um heri por sua atuao na guerra do Paraguai, D. Pedro

    II impelido pela imprensa a tomar algum lado na rinha, e cai o gabinete. Sobem

    ento os conservadores, sob a chefia do visconde de Itabora. O nome de Alencar

    proposto para o Ministrio da Justia e, sob o espanto de muitos, aprovado pelo

    imperador. D. Pedro estaria tentando amarrar uma ponta da corda que tinha s

    mos no pescoo do teimoso literato? Alencar reluta num primeiro momento, mas

    depois de seu ego ter sido acariciado por algumas visitas de partidrios, como o

    baro de Muritiba e o Conselheiro Paulino de Souza - falando em nome do Futuro

    presidente do Conselho -, resolve por bem aceitar o cargo. O ministrio, apelidado

    gabinete-bomba, toma posse em 16 de julho. composto por, alm da figura do

    Presidente do Conselho e Ministro da Fazenda o Visconde de Itabora, Joaquim

    Rodrigues Torres; Paulino Jos Soares de Souza como Ministro do Imprio; Jos de

    Alencar, Ministro da Justia; Jos Maria Paranhos, o visconde do Rio Branco,

    Ministro dos Estrangeiros; Joo Maurcio Mariani Wanderley, o baro de Cotegipe,

    Ministro da Marinha; Manoel Vieira Tosta, o visconde de Muritiba, Ministro da Guerra

    e Joaquim Anto Fernandes Leo, Ministro da Agricultura, Comrcio e Obras

    Pblicas. A ascenso dos conservadores um fato consumado. Alencar , alm de

    tudo, o ministro mais jovem do gabinete, mas aos olhos do Imperador no era um

    inexperiente. D. Pedro II parece no se importar com a presena do autor das

    Cartas de Erasmo; antes, se comporta como um admirador da obra de Alencar.

    Mudanas h, mas nem tanto. As figuras de Rodrigues Torres e Paulino que

  • segundo Ilmar Mattos (1987) seriam o brao forte da chamada trindade saquarema

    - por tanto tempo estiveram a frente do poder, retornam agora com a

    responsabilidade de reorganizar a casa. Ao mesmo tempo, e at como uma forma

    de equilbrio de foras, D. Pedro II tambm tinha seu jeito de se resguardar das

    presses exercidas pelas elites no poder e da influncia de seus associados e

    apadrinhados. Em muitos momentos, leva a liderana do gabinete homens sem

    propriedades, lideres com ascendncia humilde, portanto no diretamente atrelados

    aos interesses de grupos poderosos, desatados dos laos familiares ou

    patronagem com fazendeiros e comerciantes ligados ao trfico e a exportao,

    como Saraiva, Zacarias, o Visconde de Ouro Preto, o marqus de Paran, entre

    outros. Eles, que estariam mais prximos ao imperador, seriam tambm uma ultima

    barreira de conteno dos movimentos em prol da diminuio dos poderes da

    monarquia (COSTA, 1999). O movimento republicano s toma corpo em 1873 e

    adiante, mas as rusgas que o poder moderador incita no parlamento j se fazem

    presentes. Alencar no ministrio trabalha com o afinco que sempre d a seus

    afazeres. Isso no uma novidade. No ano de 1868 publica tambm O systema

    representativo, obra em que discute o processo eleitoral como a base de um

    governo representativo. Nem seria tambm uma novidade o ministro colecionar

    desafetos no perodo em que est no cargo. Deputados, colegas ministros, oficiais

    no esto livres do temperamento singular de Alencar.

    As relaes do imperador com seu ministro da justia so cordiais, porm

    complicadas. Alencar reclama que D. Pedro II em tudo se intromete mais tarde dir

    que um hbito deste e tambm dos outros ministros nos assuntos do Estado. s

    vezes, como um menino curioso que de tudo quer saber, outras vezes, como um pai

    zeloso que se preocupa com seus filhos sendo maltratados pelo ministro, chegado

    em alguns casos extremos a lembrar de que ele o imperador, e quem manda na

    casa (MENESES, 1977). Um dos hbitos de D. Pedro o envio de bilhetes para o

    ministro. So comentrios, questes relevantes (ou no), indiscries e

    apontamentos que constantemente acompanham os despachos de Alencar.

    Algumas vezes se diz preocupado com a imprensa e os assuntos gerais, em outras

    solicita informaes sobre processos de funcionrios pblicos e sobre o andamento

    das eleies. Alencar no faz por menos, redigindo tambm os seus bilhetes, em

  • tom cordial e respeitoso, mas sempre como um embate de foras, tentando

    demarcar seu campo de atuao ou impor limites ao outro. No esta uma prtica

    do restante do grupo, que na acomodao burocrtica a que o partido conservador

    se acostuma acaba deixando reverter uma formula antiga para o imperador, que

    recostado na condio que lhe permitia o poder moderador, apesar de dizer que

    deixa a mquina andar, ainda reina, governa e administra (FAORO, 2004). A

    tambm o fato de que D. Pedro II prefere morar no pao de So Cristvo ao Pao

    da cidade, e os ministros precisavam cavalgam at l duas vezes na semana para

    os despachos, coisa que Alencar abomina - considera uma perda de tempo - alm

    de reclamar das futilidades que so obrigados a discutir no lugar de tomar o tempo

    com alguma providncia importante para o pas, como os rumos da Guerra do

    Paraguai.

    Certa feita o imperador encaminha, preocupado, um bilhete pedindo esclarecimentos

    de notcias vinculadas nos jornais sobre o recrutamento de (in)voluntrios para a

    guerra do Paraguai pelo pas afora. A priso para recrutamento era uma realidade e

    por vezes usada como uma forma do partido da situao desaparecer com

    elementos da oposio. Com tal pretexto, so escolhidos no perodo

    propositalmente os indivduos simpatizantes do partido liberal. Alencar, dias depois,

    encaminha circular tentando normalizar as coisas e coibir abusos por parte dos

    presidentes das provncias e autoridades policiais que usavam de tal artifcio para

    uma faxina poltica no eleitorado. As preocupaes do imperador se

    fundamentavam nestas aes correntes, como bem sugeria em outro bilhete onde

    dizia: (...) eu sei infelizmente o que so as eleies entre ns., buscando sempre

    providen