o 'fausto' de goethe/sokurov e o universo llansol - caderno fausto(letra e)

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    .........................................................

    FAUSTO

    DEJOHANN WOLFGANG GOETHE

    em traduo de

    JOO BARRENTO(Relgio d'gua, 2 ed. 2013)

    Fragmentos lidos pelos actoresDIOGO DRIA |MANUEL WIBORG |ELSA BRUXELAS

    na Letra E do Espao Llansolem 6 de Julho de 2013

    antecipando a projeco do filmeFAUST

    deAleksandr Sokurov

    (2011)

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    Goethe - Sokurov - Llansol:A utopia do Humano ou a magnificao do Feminino

    ... o segredo da Busca que no se acha.

    Fernando Pessoa, Primeiro Fausto (Fragmento X)

    primeira vista, poder parecer estranha a busca de relaes entre umassunto clssico da esfera do mito, como o de Fausto, e um universo tocentrado na imanncia do quotidiano ou em sentidos outros para aHistria, como o da Obra de Maria Gabriela Llansol. Mas no foi tantoa busca de ligaes, que podero parecer remotas, entre o universoLlansol e a matria de Fausto o que nos levou a aproximar os dois. Foi

    antes o filme, recentemente exibido numa sala de Lisboa, do russoAleksandr Sokurov, feito a partir da obra clssica de Goethe (e que iremosmostrar e comentar na Letra E do Espao Llansol). O que Sokurov faz aoapropriar-se do texto de Goethe tem, isso sim, muitas afinidades comaspectos determinantes do projecto llansoliano de revoluo da estticanarrativa e de revisitao da problemtica do Humano. O filme deSokurov uma adaptao muito livre do grande clssico da literatura,mas ao mesmo tempo muito prxima de alguns ncleos da histria tal

    como ela tratada por Goethe, em especial na primeira parte da suatragdia a do pequeno mundo preenchido pela matria amorosacentrada na figura de Margarida, esplendorosamente tratada pelocineasta; a reconstituio dos ambientes medievais de onde emana omito; as ambiguidades e subtilezas, mas tambm o grotesco e aimpotncia da figura de Mefistfeles; a explorao do substrato utpicoque subjaz a toda a aco, consubstanciado nos dois files maiores domito de Fausto desde as origens no sculo XVI: o desejo (e o tabu) do

    conhecimento e a entrega ao princpio doprazer.

    Ora, aquilo que interessou a Sokurov (e que ele de facto vai buscar aGoethe, mais do que s origens medievais do mito) o sentido universal

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    desta matria: subsumir numa figura e na sua eterna nostalgia, e de umaforma mais crua e menos filosfica do que em Goethe, toda aproblemtica da humana gerao. este tambm o projecto dohumano fora da trama dos poderes, que sustenta grande parte da Obra deLlansol desde O Livro das Comunidades. Noutro lugar defini j esseprojecto como uma bio-cracia, qualquer coisa como uma aisthesisuniversalis sob o signo, no do tempo da histria e das suas figuras(porque 'chegou o momento de sair da Histria e ir viver no mundo deseiscentos milhes e anos'), mas do 'H' e de uma 'restante vida'transposta para o plano total, csmico, do Ser. O filme de Sokurov desta perspectiva, quer na insuportvel beleza, transfigurada pelaanamorfose e pela luz, do rosto de Margarida, quer finalmente na grandecena da montanha, com os seus ecos de busca infinita e de impossvelrealizao (ao Para onde? de do eco da voz de Margarida responde aFausto com o seu: Para mais longe). No filme do russo, o excesso da

    matria pura, das sensaes, da brutalidade da vida, transforma-se, emmomentos chave, na matria etrea, mas ainda e sempre humana, dapaixo. Em Goethe, a questo tem dois momentos. O primeiro, daaspirao sem limites, depois de selado o pacto com o Diabo (que nofilme no se chama Mefistfeles, mas Maurcio, e um agiota):A minh'alma, curada a sede de saber, / Abrir-se- agora a toda a provao,/ E no mais ntimo de mim quero viver / O destino de toda a humanagerao; / Em esprito abarcar alturas, profundezas, / Encher o peito de

    alegrias, tristezas, / E assim meu ser ao seu Ser alargar, / Para no fim,como ela, soobrar.Depois, na fala final, antes da morte, o da utopia visionada de um mundomais humano:Esta a ideia que havemos de aceitar, / Esta do sbio a supremaverdade: / S quem dia aps dia a conquistar / Merece a vida e a sualiberdade. / E assim passam, em perigos sobre-humanos, / Crianas,homens, velhos, duros anos. / Visse eu esse bulcio efervescente, / P'ra

    solo livre pisar com livre gente! / A um momento tal ento diria: /Suspende-te, tu que s to belo! / O rasto dos trabalhos e dos dias, / Nemeternidades podem apag-lo. / No antegozo de to feliz evento /Desfruto agora do supremo momento.

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    Se olharmos agora, por um lado para a ideia, por outro para o planoesttico do filme de Sokurov, tornar-se-o evidentes alguns paralelos comM. G. Llansol, o seu mundo e os processos inovadores da sua escrita. Domesmo modo que Llansol dir que se situa fora da literatura,igualmente se poderia afirmar que Sokurov est fora das formasdominantes do cinema: Llansol afirma uma textualidade contra anarratividade reinante, e para isso a sua escrita ter de recorrer sobretudos potencialidades sensveis e imagticas da linguagem; por seu lado,Sokurov transformar os seus planos cinematogrficos em telas de umabeleza quase irreal, atravs do recurso anamorfose e transfigurao(Fausto e Margarida esta, apesar do seu recorte mais singelo e nocomplexo so mutantes, a sua verdadeira natureza a da metamorfosecontnua); no podendo filmar, como diz, a matria filosfica abstracta doFausto, levado a encenar teatralmente, a pintar cenas em movimento.

    Entre o cinema asctico de filmes anteriores, como Me e Filho ou Pai eFilho, e o ornamental, de A Arca Russa, o Fausto de Sokurov explora emcambiantes vrias uma esttica da composio visual e da sensualidadeplstica, sem naturalismos, mas com todos os sentidos (at os cheiros, ecom o brumor da msica em pano de fumo) a emanar da tela, numcasamento em que o classicismo dos meios no rejeita as maissofisticadas tecnologias para obter estes resultados.No plano das ideias, os paralelos so vrios, e poderiam resumir-se em

    alguns tpicos mais evidentes: a explorao de um reverso da luz comum llansoliana (a que elachama tambm o senso normativo: Os Cantores de Leitura, 222),estando esta luz sempre presente, em aspectos diversos do quotidiano que,quer o filme, quer os textos de Llansol trazem a primeiro plano; a insero frequente de cenas fulgor no turbilho do acontecer,epifanias de beleza, aparies da pura matria sensvel, sem metafsica,que no filme emergem, tanto do corpo (rosto) de Margarida (a mulher, o

    princpio do feminino), mltiplo e finito, como do espao csmicoilimitado do grande mundo dos glaciares da montanha, e em Llansolpodem saltar de qualquer experincia quotidiana;

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    a busca da pujana do Vivo muito para alm do orgnico , e doHumano para alm da Histria dos homens , que alimentam Fausto,Sokurov e Llansol. Nesta, o momento mais visvel deste projecto o dasduas trilogias, Geografia de Rebeldes e O Litoral do Mundo,enquanto o Fausto de Sokurov se insere tambm numa tetralogia quecomea por explorar o tema do Poder e dos seus mecanismos no planohistrico, entre Lenine (em Taurus), Hitler (em Moloch) e Hirohito (em OSol), para desembocar na utopia concreta da superao desses poderespor meio da afirmao da eterna insatisfao do indivduo; chega-se assim afirmao do poder do desejo (que abre horizontessem fim) contra o mero desejo de poder (que cerceia as possibilidades deuma humanidade plena); no filme de Sokurov e nos textos de Llansol assistimos a uma tentativade anulao do tempo, com a consequente espacializao de cenas eplanos;

    em ambos, no ritmo do filme e nas constantes sadas do real do textode LLansol, torna-se evidente uma vertigem do alucinatrio que lana oespectador e o leitor para insuspeitadas e por vezes assustadoras zonas doSer (Llansol lembra muitas vezes que no h escrita sem medo, e que necessrio sair da luz comum e entrar na metanoite, a zona de riscoindissocivel de toda a criao).

    O lugar ltimo do encontro possvel destes dois transgressores poder ser,

    ainda na esteira de Goethe, o do Eterno Feminino como objecto decisivode uma busca que coloca no lugar do valor de troca, que rege os destinoshumanos na Histria, o valor do Eros, categoria na qual convergem, emGoethe, como em Llansol e Sokurov, o Amor e a beleza, o dom poticoe a mais radical liberdade de conscincia (em Inqurito s QuatroConfindncias encontramos oAnjo de Eros, cuja funo defender-se dono-ser). O poder dizer ao momento de vivncia plena, puramanifestao da imanncia, Fica, tu que s to belo!, constitui, segundo

    o filsofo Ernst Bloch, a mais rigorosa utopia do ser, figura suprema dainquietao e do desejo que move o mundo, em Fausto ou nas figurasdos livros de Llansol, que 'criam' seres futuros que no so projecesimaginrias, mas apenas necessidades insuficientes, a que tambm chamo

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    reais no-existentes (Onde Vais, Drama-Poesia?, 198). Com o seu sentidoapurado do concreto, Goethe encerra o Fausto com as linhas, de registoprofano e espinosista: O Indescritvel / Realiza-se aqui. / O EternoFeminino / Atrai-nos para si. Para Llansol, o horizonte ltimo da suaespiritualidade imanente o do sexo (de ler/escrever) sem gnero, espciede anima mundi ou energia que tudo faz vibrar. Nela, isso que nosatrai para si mas no necessariamente para cima, j que aqui tudo sepassa na ordem da imanncia, ou do seu reverso ainda e sempre sensvel.Mas o Eterno Feminino, ou a estrita experincia da Mulher (Margarida eHelena de Tria) no Fausto tem tambm a sua correspondncia emLlansol naquilo a que, inspirada no mstico sufi Ibn' Arabi, chama amagnificao do feminino (Finita, 193), fornalha na qual os homenscairo para se sublimarem (Livro de Horas II, 256). Estamos muito paraalm da oposio dos sexos, no campo de uma androginia universal emque o feminino chamado a tornar-se esprito (Livro de Horas II, 68).

    este o sopro ideal que anima a paisagem da utopia concreta, da atopia eda ucronia do filme de Sokurov e do universo Llansol.

    Joo Barrento16 de Junho 2013

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    I

    PRELDIO NO TEATRO

    [...]ODIRECTOR:

    Por hoje, de palavras j basta,215 Aco o que agora quero ver!

    Enquanto torneais a prosa gastaCoisas mais teis podem acontecer.

    De que serve falar da inspirao,Se ao pusilnime ela nunca aparece?220 Se de poetas a vossa condio,

    a poesia que comandar merece!

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    Sabeis bem do que ns carecemos,Um trago forte tudo o que queremos;Preparem sem demora essa poo

    225 Que o que hoje no se fizer, amanh ser vo,Nem um dia vamos desperdiar.E agora j a vossa decisoO possvel pela trana h-de agarrar,Para depois o no deixar escapar

    230 E prosseguir, que essa sua misso.

    Bem sabeis como os nossos empresriosPem em cena o que lhes passa pela cabea;Por isso, no poupemos nesta peaNem mquinas, nem truques, nem cenrios.

    235 Usemos as duas luminrias,

    Em estrelas sejamos generosos,Que no falte gua, fogo, montes rochosos,Nem to-pouco aves e alimrias.Vamos abrir-vos neste humilde barraco

    240 A perspectiva de toda a Criao,Seguindo em ritmo certo o curso eterno,Do Cu para a Terra e desta para o Inferno.

    cd

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    PRLOGO NO CU

    [...]MEFISTFELES:

    J que outra vez, Senhor, a ns desceste,Para saber o que h por c de novo,E como sempre com bons olhos me viste,Assim me vs agora entre o Teu povo.

    275 Perdo, que altos discursos no sei ter,E pela assembleia vou ser escarnecido;

    Meu tom pattico far-te-ia rir,Se o riso no tivesses j esquecido.De sis e mundos nada sei nem direi;

    280 Que os homens se atormentam, disso sei.

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    O pequeno deus do mundo no mudou,Desde o dia primeiro mui singular ficou.Viveria melhor, se no fosse enganadoPelo lampejo da luz com que o haveis dotado;

    285 Razo lhe chama, e serve-lhe afinalPara ser mais bicho que qualquer animal.Parece-me, perdoe-me Vossa Graa,Uma dessas cigarras que esvoaa,Pernilonga, armada em saltito,

    290 Entoando na erva sempre a mesma cano.Se ao menos se ficasse pelo prado!Mas quer meter o nariz em todo o lado!

    OSENHOR:S tens notcias dessas para me dar?

    Vens c acima s para recriminar?295 No h na Terra nada do teu agrado?

    MEFISTFELES:Senhor, no h! Est tudo num tal estadoQue metem d os homens nesse vale de misrias:J nem aos pobres me apraz fazer pilhrias.

    OSENHOR:Conheces Fausto?

    MEFISTFELES: O Doutor?

    OSENHOR: Meu criado!

    MEFISTFELES:300 De modo estranho esse louco Vos serve!

    No da Terra o que ele come e bebe.

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    Fervilha nele a febre da distncia,Vive meio consciente da loucura;Pede as mais belas estrelas sua nsia,

    305 Do mundo os maiores prazeres procura,E nem o que mo tem, nem a distnciaSatisfazem esta alma insegura.

    OSENHOR:Se certo que hoje me serve em confuso,Em breve eu o trarei claridade.

    310 Verdeja a rvore, e sabe o horteloQue flor e fruto ho-de vir com a idade.

    MEFISTFELES:Vai uma aposta? Eu Vos digo, em verdade,

    Que o haveis de perder! Basta eu poderConduzi-lo bem minha vontade.

    OSENHOR:315 Enquanto na Terra ele viver

    No te impeo de o tentares convencer.A porfia no Homem segue caminhos tortos.

    MEFISTFELES:Fico-Vos muito grato, pois os mortosSo coisa que nunca me interessou.

    320 A faces frescas e ss antes me dou.Com cadveres no quero ter nenhum trato:Sou como o gato correndo atrs do rato.

    OSENHOR:

    Pois bem, fars como entenderes!Afasta ess'alma da fonte original325 E leva-a, se venc-la puderes,

    Para os escuros caminhos do mal.

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    E envergonhar-te- esta evidncia:Um homem bom, contra a cegueira instante,Escolhe o caminho certo em conscincia.

    MEFISTFELES:330 Aceito! O fim no est distante.

    A minha aposta deixa-me confiante.Se meu intento alcanar finalmente,Permitireis que exulte em alto brado.Ele h-de comer p, e de bom grado,

    335 Como minha prima, a famosa Serpente.[...]

    cd

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    II

    [Da Primeira Parte]

    NOITE

    Num quarto gtico, acanhado e de abbada alta,Fausto, inquieto, sentado banca de trabalho.

    FAUSTO:

    Aqui estou eu: Filosofia,355 Medicina e Jurisprudncia,E para meu mal at TeologiaEstudei a fundo, com pacincia.

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    E reconheo, pobre diabo,Que sei o mesmo, ao fim e ao cabo!

    360 Chamam-me Mestre, Doutor, sei l qu,E h dez anos que o mundo me vLevando atrs de mim a eitoFiis discpulos a torto e a direito E afinal vejo: nosso saber nada!

    365 de ficar com a alma amargurada.Sei mais, claro, que todos os patetas,Mestres, doutores, escribas e padrecas;Nem escrpulos nem dvidas eu temo,E no receio nem Inferno nem demo

    370 Mas no me resta rstia de alegria,Nem me iludo com v sabedoria,Nem creio que tenha nada a ensinar

    humanidade, que a possa salvar.Tambm no tenho bens nem capitais,

    375 Nem glrias ou honras mundanais.At um co desta vida fugia!Por isso me entreguei magia,Para ver se por fora da menteTanto mistrio se abre minha frente;

    380 Para que no tenha, com o fel que suei,

    De dizer mais aquilo que no sei;Para conhecer os segredos que o mundoSustentam no seu mago mais fundo,Para intuir foras vivas, sementes,

    385 E largar as palavras indigentes.[...]

    Horror! Estou ainda encarcerado,

    Neste maldito antro abafado.400 At a luz celestialSe turva ao entrar pelo vitral!Por pilhas de livros limitado,

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    Que o p recobre e as traas roem,E at ao tecto abobadado

    405 S papel, que fumos corroem; minha volta h caixas, redomas,Instrumentos j no cabem mais,Quinquilharias ancestrais este o teu mundo? Um mundo lhe chamas?

    410 E ainda estranhas que o coraoNo peito se te aperte angustiado?E que uma dor assim sem razoDa vida te traga apartado?Em lugar da viva Natura,

    415 Das criaturas por Deus criadas,Cercam-te a podrido mais escura,

    Bichos mortos e humanas ossadas.[...]

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    DIANTE DAS PORTAS DA CIDADE

    Grupos de passeantes de todas as camadas sociais,saindo da cidade.

    Fausto e Wagner.

    FAUSTO:Do gelo livres esto rio e represa,Pelo doce e vivo olhar da Primavera;

    905 No vale o verde esperana, a sorte espera,E o velho Inverno, tomado de fraqueza,Para as agrestes montanhas se retira.E da manda apenas, j distante,Em gros de gelo chuva que no perdura

    910 E se perde pelo prado verdejante;Mas j o Sol o branco no atura,Por toda a parte irrompe vida e foraE ele a tudo d cor, tudo remoa;

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    Est nua ainda de flores a campina915 Por isso o povo em festa ele ilumina.

    Volta-te e olha do alto deste montePara a cidade que tens tua frente.J vai saindo pela porta ensombradaUm mar de gente garrida e animada.

    920 Todos saem para o sol e seu calor,Festejando o regresso do Senhor.Ressuscitaram hoje eles tambm:De casas baixas com quartos abafados,De ofcios em que todos so refns,

    925 Da opresso de empenas e telhados,De ruas estreitas, apertos e encontres,Da noite das igrejas, veneranda,Saram todos para a luz que o cu manda.

    Olha! Olha s como estas multides930 Enchem, ligeiras, os campos e jardins,

    Como no rio, largo e comprido, legiesSo embaladas em alegres bergantins!Cheia de gente, quase a afundar-se, prenha,L vai a ltima barca a deslizar.

    935 E at mesmo nos carreiros da montanhaH vestes coloridas a brilhar.

    J sinto a aldeia em todos seus rudos, o cu do povo a entrar-me pelos ouvidos,Grandes, pequenos, que d gosto v-lo:

    940 Aqui, sim, sou homem, aqui posso s-lo!

    WAGNER:Senhor Doutor, convosco passear uma honra, e muito me aproveita;

    Mas eu nunca viria aqui parar,Pois o que rude jamais me deleita.945 Rabecas, gritos e jogos de bola,

    tudo o que mais posso detestar;

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    Toda esta gente, possessa, se rebola,E depois diz que festa, que cantar.

    O povo junta-se em crculo sua volta.

    VELHO CAMPONS: sem dvida uma boa coisaPodermos ver-vos neste dia;

    995 A vs, que nunca nos faltastesAntes, nas horas da agonia!Muitos dos que hoje aqui esto vivosFoi vosso pai que os arrancou fria dos febres ardentes,

    1000 Quando com a peste acabou.Ento j vs, ainda moo,

    Os enfermos eis visitar;Muitos mortos se viam sair,Mas vs conseguistes escapar,

    1005 Passando das provas a pior;A quem salva ajuda o Salvador.

    TODOS:Ao grande sbio vida e sade,

    Para que muitos anos nos ajude!

    FAUSTO:Venerai a bondade divina,

    1010 Que ajuda e a ajudar ensina.

    Continua o seu caminho com Wagner.

    WAGNER:Calculo o que tu sentes, grande homem,Ao ver o povo assim prestar-te preito!Muito feliz deve ser quem

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    De seus dotes tira tal proveito!1015 Mostra-te o pai o seu rebento,

    Gente pergunta, acorre, avana,Pra a rabeca, queda-se a dana.Tu passas, e em alas v-los,Atiram os barretes ao vento,

    1020 E por pouco no caem de joelhos,Como se passasse o Sacramento.

    FAUSTO:Uns passos mais, at pedra, a descansarDa nossa longa peregrinao.Quanta vez, s, para aqui vim meditar,

    1025 Entregue ao jejum e orao.Cheio de esperanas, firme na f,

    Pensava conseguir do Pai Celeste,Com mos erguidas, lgrimas e atSuspiros, o fim daquela peste.

    1030 Este aplauso que hoje sobre mim caiSoa-me a escrnio. Ah, se tu pudessesLer na minh'alma, e ver que filho e paiNo foram dignos de louvores como esses!Meu pai foi homem bom, de porte estranho,

    1035 Que honestamente, mas sua maneira,A Natureza e sua sacra esferaEstudava com quimrico empenho;Ele e o grupo dos iniciados,Ensaiando velhos receiturios,

    1040 Na sua negra cozinha encerradosProcuravam fundir os contrrios.E o vermelho Leo, o pretendente

    Ousado, em banho tbio foi casado Flor-de-Lis, e o par, em fogo ardente,1045 De alcova em alcova transmutado.

    Em espectro colorido ento surgia

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    A jovem rainha no cristal.Era o remdio: os doentes morriamE ningum perguntava quem escapou do mal.

    1050 E assim fomos ceifando nestes casaisE montes com as drogas infernaisMais vidas do que a prpria epidemia.A muitos o veneno eu prprio fui servir:Eles morreram, e eu fiquei para assistir

    1055 Ao louvor dos assassinos neste dia.[...]

    cd

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    GABINETE DE TRABALHO (I)

    Fausto e Mefistpfeles

    FAUSTO:Como te chamas?

    MEFISTFELES: Mesquinha a questo

    Para quem to pouco a palavra preza,Para quem, longe de toda a iluso,1330 Procura a essncia s da Natureza.

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    FAUSTO:No vosso reino, meu caro, l-se em geralNo nome a essncia, tal e qual.Pelos ttulos vos conhece quem queira:Deus das moscas, do mal, pai da mentira.

    1335 Est bem, quem s ento?

    MEFISTFELES: Da fora uma parcela

    Que sempre quer o Mal e o Bem faz nascer dela.

    FAUSTO:Esse enigma, como o hei-de interpretar?

    MEFISTFELES:

    Eu sou o Esprito que s sabe negar!E com razo: tudo o que nasce e vs

    1340 digno apenas de morrer outra vez.Melhor seria, pois, nada nascer.Assim, tudo o que no vosso dizer pecado, runa, em suma, o Mal Esse o meu elemento original.

    FAUSTO:1345 Tu dizes-te uma parte, e eu inteiro te lobrigo!

    MEFISTFELES:Singela a verdade que te digo.Se esse pequeno e nscio mundo, o Homem,Geralmente por um todo se toma Eu sou parte da parte que a princpio tudo era,

    1350 Uma parte da treva que a luz gera,A luz altiva que agora, em acesa luta, Noite-me o primado disputa;Mas em vo, pois embora esforada,

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    Ela aos corpos permanece agrilhoada.1355 Dos corpos irradia, beleza aos corpos d,

    Um corpo basta para travar-lhe a jornada;E a minha esperana que, no tarda nada,Tambm ela com os corpos morrer.

    FAUSTO:Conheo agora tua ilustre misso!

    1360 Como no que grande no tens mo,Tentas a tua sorte c em baixo.

    MEFISTFELES:E mesmo a, sabe Deus, o diacho![...]

    cd

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    GABINETE DE TRABALHO (II)

    Fausto e Mefistpfeles

    FAUSTO:1675 Que tens tu, pobre diabo, para me dar?

    O esprito de um homem, no seu alto aspirar,

    Algum da tua laia o compreenderia?Tens tu comida da que no sacia? [...]O divino prazer da glria ansiada

    1685 Que, como meteoro, se esvai nos ares?Mostra-me o fruto podre antes que o colha,E rvore que todo o dia reverdea!

    MEFISTFELES:

    Tal incumbncia fcil se me antolha,E no temo dar-te riqueza dessa.1690 Mas h um tempo, amigo, vai por mim,

    Em que s queremos paz e boa mesa.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    FAUSTO:

    Se um dia, acomodado, na cama da preguiaMe deitar, que esse seja o meu fim!Se um dia a tua lisonja me cegar,

    1695 A ponto de parar minha porfia,Se com gozos me puderes enganarQue seja esse o meu ltimo dia!Queres apostar?

    MEFISTFELES: Aceito!

    FAUSTO: Ento est dito!

    Se alguma vez ao momento disser:1700 Fica, tu que s to belo!

    Sers ento livre de me prender,Afundar-me-ei sem agravo nem apelo!Que se oua ento o sino derradeiro,Cesse o servio que aceitei de ti,

    1705 Pare o relgio e caia o ponteiro,E que chegue o meu tempo ento ao fim!

    MEFISTFELES:Pensa bem! Ns no o esqueceremos.

    [...]

    FAUSTO:No tenhas medo, que eu no quebro o pacto!

    Toda a minha fora, e a nsia que me d, o que prometo neste acto.A excessiva soberba enfatuou-me,

    1745 Sou como tu, e vejo-o com clareza.

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    O sublime Esprito desdenhou-me, minha frente fecha-se a Natureza.Quebrado foi o fio do pensamento,Enoja-me todo o conhecimento.

    1750 Nas profundezas da sensualidadeIrei apaziguar paixes ardentes!Que em vus mgicos densos e envolventesAs maravilhas se me abram sem idade!Lancemo-nos no turbilho do tempo,

    1755 No ritmo dos acontecimentos!Alternem a dor e o prazer,E tambm, como melhor puderem,Fracassos e vitrias ento:S se homem no delrio da aco.

    MEFISTFELES:1760 Nem medida nem fim tem vosso agir.

    Em todo o lado podereis petiscar,De passagem qualquer coisa apanhar:Que vos faa proveito o que vos aprouver.Mas deitai mo de tudo, sem nada perder!

    FAUSTO:

    1765 V se me entendes: no falo de prazer. vertigem me entrego, gozo pungente,dio amoroso, dor reconfortante.A minh'alma, curada a sede de saber,Abrir-se- agora a toda a provao,

    1770 E no mais ntimo de mim quero viverO destino de toda a humana gerao;Em esprito abarcar alturas, profundezas,

    Encher o peito de alegrias, tristezas,E assim meu ser ao seu Ser alargar,1775 Para no fim, como ela, soobrar.

    [...]

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    III[MARGARIDA]

    RUA (I)

    Fausto. Margarida, passando.

    FAUSTO:2605 Minha bela senhora, poderia

    Eu oferecer-vos meu brao e companhia?

    MARGARIDA:Bela no sou, muito menos senhora,E para casa posso bem ir sozinha.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    Desembaraa-se dele e afasta-se.

    FAUSTO:Meu Deus, como a moa bonita!

    2610 Nunca vi nada assim na minha vida.A virtude e o decoro que tem,A par daquele arzinho de desdm!Os lbios rubros, a frescura da face, quadro que uma vida se no esquece.

    2615 Tocou-me bem fundo o coraoO modo como os olhos pe no cho;E aquele tom brusco e de pudor mesmo um achado encantador!

    Entra Mefistfeles.

    FAUSTO:Ouve, quero aquela moa, e para j!

    MEFISTFELES:

    2620 Qual delas?

    FAUSTO: Acabou de passar!

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    MEFISTFELES:Aquela ali? Vem do padre. V l,Que dos pecados acabou de a livrar!Passei bem perto do confessionrioE vi que um anjo inocente

    2625 Que por nada se foi a confessar.Sobre ela no tenho poder.

    FAUSTO:Mais de catorze anos deve ter.

    MEFISTFELES:J falas como o Joo Conquistador,Que quer desfrutar de toda a flor

    2630 E imagina que no h-de haver

    Honra e favor que no possa colher;Mas as coisas nem sempre so assim.

    FAUSTO:Mestre Decncias, deixai-me vs a mimEm paz com costumes e leis!

    2635 De uma vez por todas vos quero dizer:Se esta doce figura de mulher

    Esta noite em meus braos no dormir, meia-noite voltamos a ser dois!

    MEFISTFELES:S realista, deixa as fantasias!

    2640 Preciso pelo menos quinze diasS para apurar a hora de intervir.

    FAUSTO:Tivesse eu sete horas de vagar,E do diabo no ia precisarPara tal criaturinha seduzir.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    MEFISTFELES:

    2645 At pareceis um francs a falar.Mas, por quem sois, no vos agasteis:Com tais pressas, que gozos esperais?Esse prazer nem se pode compararAo outro, se antes preparares

    2650 Com toda a gama de preliminaresA boneca, para a deixar bem a ponto,Como de Itlia ensina tanto conto.

    FAUSTO:Tenho apetite de qualquer maneira.[...]

    RUA (II)

    Fausto. Mefistfeles.

    FAUSTO:3025 E ento? Est para breve? A coisa avana?

    MEFISTFELES:

    Ora bravo! J estais a arder?No tarda nada, a Margarida vossa. tarde, na vizinha Marta, a ireis ver:A mulher a perfeita companheira

    3030 Para este servio de alcoviteira![...]

    cd

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    JARDIM

    Margarida pelo brao de Fausto.

    FAUSTO:Conheceste-me, anjo do meu corao,Quando h pouco no jardim entrei?

    MARGARIDA:3165 No vistes? Pus logo os olhos no cho.

    FAUSTO:E perdoas a liberdade que tomei?E o que se permitiu minha ousadiaQuando da igreja saas no outro dia?

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    MARGARIDA:

    Era a primeira vez, fiquei perturbada;3170 Ningum tinha nada que me apontar.

    E pensei: Ser que ele viu no teu andarQualquer coisa imprpria ou mais ousada?Parece que ao primeiro olharUma moa como eu decidiu namorar.

    3175 O que me deu, confesso, no sei,Para logo em mim achardes s favor;S sei que comigo me zangueiPor convosco me no poder zangar.

    FAUSTO:Meu amor!

    MARGARIDA: Posso?

    Colhe um malmequer e comea a arrancar as folhas,uma a uma.

    FAUSTO:

    Que isso? Um ramalhete?

    MARGARIDA:3180 s um jogo.

    FAUSTO: Qual?

    MARGARIDA: No troceis! Ide!

    Desfolha o malmequer, murmurando.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    FAUSTO:Que murmuras?

    MARGARIDA (a meia-voz): Bem-me-quer, mal-me-quer

    FAUSTO:Oh, anjo em figura de mulher!

    MARGARIDA (continuando):Bem-me-quer mal bem mal-me-quer

    (Arrancando a ltima folha, num grito de pura alegria.)

    Bem-me-quer!

    FAUSTO: Minha vida! um divino orculo

    3185 O que essa flor te diz: que ele te quer bem!Entendes o que isso , que ele te quer bem?

    Pega-lhe nas mos.MARGARIDA:

    Sinto um calafrio!

    FAUSTO:No estremeas! Deixa que este olharE o calor desta mo te digam

    3190 O que inefvel :A entrega total e o sentirUm xtase que tem de ser eterno!

    Eterno, sim! Seu fim seria desespero.Um fim no! No, sem fim!

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    O QUARTO DE MARGARIDA

    MARGARIDA (fiando, sozinha):

    Paz no tenho j,3375 Corao de chumbo,

    Nada neste mundoMa devolver.

    Ausente o amigo,

    Tudo um jazigo,3380 O mundo , sem ele,Amargo qual fel.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    O meu pobre tinoEst desatinado,Minha pobre alma

    3385 Feita em mil bocados.

    Paz no tenho j,Corao de chumbo,Nada neste mundoMa devolver.

    3390 A ver se ele vem janela estou,Saio de minha casa,Atrs dele vou.

    O seu porte altivo,3395 A nobre figura,

    Sorriso nos lbios,Nos olhos ternura;

    E nas suas palavrasQue encanto no vejo!

    3400 O toque da mo

    E, ai!, o seu beijo!

    Paz no tenho j,Corao de chumbo,Nada neste mundo

    3405 Ma devolver.

    O meu seio s quer

    Sentir seus abraos;Ah, pudesse eu t-loSempre nos meus braos,

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    3410 Beij-lo atEu mais no poder,Inda que em seus beijosEu fosse morrer!

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    O JARDIM DE MARTA

    Margarida. Fausto.

    MARGARIDA:Agora tenho de ir.

    FAUSTO: Ah, eu bem queria

    Repousar um instante no teu seio,

    Meu peito contra o teu, a alma em enleio!

    MARGARIDA:3505 Se eu dormisse sozinha, podes crer,

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    Logo noite te abriria o ferrolho;Mas s vezes ela no prega olho,E se nisso nos fosse descobrir,Era a minha morte, j te digo!

    FAUSTO:3510 Meu anjo, descansa, no h perigo.

    Toma este frasco! Trs gotas basta prNa sua bebida, ao deitar,E ela mergulha no mais fundo torpor.

    MARGARIDA:O que eu no fao s para te agradar!

    3515 S espero que no lhe faa mal!

    FAUSTO:E eu ia fazer uma coisa tal?

    MARGARIDA:Olho para ti, e fico sem saberO que me leva a seguir-te a vontade;Por ti j tanto fiz que, na verdade,

    3520 Pouco mais me resta ainda fazer.

    (Sai.)

    Entra Mefistfeles.

    MEFISTFELES:A macaquinha, foi-se?

    FAUSTO:

    Outra vez a espiar?

    MEFISTFELES:Ouvi tudo, sem perder pitada.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    O Senhor Doutor deixou-se catequizar;Espero que a lio seja bem aproveitada.

    3525 Toda a moa est sempre interessadaEm ver se a antiga moda respeitamos.E pensam: se ele cede aqui, j o apanhamos!

    FAUSTO:s um monstro que no vComo esta alma pura e bela,

    3530 Cheia da sua f,Que para elanica salvao, qual santa se torturaCo'a ideia de perder o homem que adora?

    MEFISTFELES:

    Tu, supra-sensvel amante sensual,3535 Deixares-te levar por uma donzela!

    FAUSTO:Aborto de sarcasmo do fogo infernal!

    MEFISTFELES:E ler fisionomias com ela:

    Ao p de mim fica assim indefesa,O meu disfarce de mistrio lhe sinal;

    3540 Sente que sou um gnio com certeza,Talvez at o esprito infernal.Ento, esta noite?

    FAUSTO: E que te importa a ti?

    MEFISTFELES:Tambm me d um certo gozo a mim!

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    IV

    [Segunda Parte / II Acto]

    LABORATRIO

    ao estilo da Idade Mdia: aparelhos volumosos,de difcil manipulao, para fins fantsticos.

    WAGNER (junto da fornalha):

    Que sismo este, tenebroso,6820 Que os negros muros faz tremer?A espera deste caso espantosoMuito mais no pode durar.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    J clareia o fundo do poo,E j no centro do balo

    6825 Se acende o mais vivo carvo: um carbnculo brilhanteNo escuro chispando, reluzente.E agora a luz branca que cega!Desta vez no o vou perder!

    6830 Meu Deus, a porta est a ranger!

    MEFISTFELES (entrando):Salve! Eu venho em paz, sossega!

    WAGNER (com medo):Bem-vindo estrela que guia esta hora!(Baixinho.)

    Mas suspendei-me fala e hlito agora,Que a obra sublime chega ao fim esperado!

    MEFISTFELES (mais baixo):6835 E qual ?

    WAGNER (ainda mais baixo): Um homem est a ser gerado.

    MEFISTFELES:Um homem? E que parelha amorosaMetestes vs no forno fumarento?

    WAGNER:Deus nos livre dessa moda ranosaDa procriao! Farsa sem tento!

    6840 O ponto frgil de onde a vida nasceu,A doce fora que da alma cresceuPara dar e receber, forma tomar,O prximo e o distante assimilar,

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    Essa, do pedestal foi apeada;6845 Se fera nisso inda volpia dada,

    J o Homem, que dotado a valer,Mais alta origem no futuro h-de ter.(Voltado para a fornalha.)J brilha! Vede! Agora h esperanasDe, a partir de centenas de substncias,

    6850 E por mistura que isso que conta! Compor lentamente a humana matriaNuma retorta bem fechada,Correctamente destilada,E assim a Obra em silncio se acaba.(Voltado para a fornalha)

    6855 Est quase! A massa agita-se, mais clara,E a minha f cresce, no pra:

    Os arcanos da natureza celebradosNs ousamos co'a razo experimentar,E o que ela organicamente criava,

    6860 Ns fazemos cristalizar.

    MEFISTFELES:Quem muito viveu, muito conheceu.O mundo para ele no tem segredos.

    No meu priplo j me aconteceuVer povos inteiros cristalizados.

    WAGNER (at agora dando sempre ateno retorta):6865 Sobe, lampeja, o volume redobra,

    No tarda, e est pronta a Obra.Parece louca a ideia, ao comear;Mas vamos rir-nos do acaso doravante,

    E um crebro to brilhante a pensar6870 Produzir um dia um ser pensante.(Observando a retorta, maravilhado.)Ecoa o vidro, actua a fora pura,

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    Turva-se, aclara, desta vez que !Vejo j uma fina figura,Um homenzinho delicado, de p.

    6875 Que queremos ns, que quer o mundo mais?Eis o arcano revelado!Se a este eco ouvido dais,Vereis que som articulado.

    HOMNCULO (na retorta, para Wagner):Ento, pap, que tal? Custou, mas vim!

    6880 Venha de l aquele grande abrao!Mas no apertes de mais, seno estilhao.As coisas so feitas assim:No basta o universo s naturais,Fechado o espao das artificiais.

    (Para Mefistfeles.)6885 E tu c ests, magano, meu padrinho

    Na hora certa. Muito obrigadinho!Foi o destino que para c te fez vir;Enquanto c estiver tenho de agir;Por mim, comeo j a trabalhar,

    6890 E tu s o homem para me ajudar.

    cd

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    V

    [IV Acto]ALTA MONTANHA

    Picos recortados, de penhascos agrestes.

    MEFISTFELES:Ora a isto que eu chamo andar!Mas diz-me l: que triste ideia esta de vires aterrar

    10070 No meio de horrenda penedia?Conheo-a, mas no nesta parte do mundo,Porque em tempos j foi do inferno o fundo.

    FAUSTO:Muito gostas tu de lendas simplrias!J ests novamente a inventar histrias.

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    MEFISTFELES (em tom srio):

    10075 Quando o Senhor dos cus e eu sei porqu Nos baniu dos ares para as profundezasOnde um fogo eterno ao centro se vQue inflama tudo o que h nas redondezas,Ficmos ns, se bem que iluminados,

    10080 Em posio incmoda, apertados.Puseram-se os diabos a tossir,Todos de cima e de baixo a assoprar;O cheiro e o cido de enxofre encheuO inferno, e o gs que a se acumulou

    10085 Fez estalar a crusta do mundo redondo,Por mais espessa que fosse, com grande estrondo.E a terra inteira nova forma assume:

    O que antes era fundo agora cume.E nisto que se funda a s doutrina

    10090 De que o que est em baixo est em cima.Pois daquele poo ardente e opressorFugimos pr'o imprio livre do ar.Um segredo aberto bem guardado,E s mais tarde aos povos revelado.

    FAUSTO:10095 Mudas, solenes, o que estas pedras so,

    No quero saber de origem nem razo.Quando a si mesma a natura se formou,A terra assim perfeita arredondou,C'os picos, c'os abismos se alegrou,

    10100 Rocha a rocha, monte a monte ligou,As colinas, tranquila, modelando

    Que, suaves, pr'o vale vo descendo.E a alegria de quanto verde e cresceDe desvairadas histrias no carece.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    MEFISTFELES:10105 Isso o que pensa e cr a vossa gente;

    Mas quem l esteve sabe que diferente.Eu estava l quando o abismo fervia,Em torrentes de fogo avolumavaE o martelo de Moloch batia,

    10110 Forjando as rochas, e o monte chispava.Estranhas moles cobrem ainda este cho;Quem nos diz como a foram parar?O filsofo no tem explicao:Est a a rocha? Pois a fique ento!

    10115 E ns matamos a cabea a pensar. O povo simples, esse compreendeuE em sua crena a no sofre abalo;H um saber antigo que s seu:

    milagre? O diabo pode explic-lo.10120 O andarilho sabe porque cr

    Ser Pedra ou Ponte do Demo o que v.

    FAUSTO: digno de registo, com certeza,Ver como o diabo olha pr'a natureza.

    MEFISTFELES:Natureza o que , e eu no me meto!

    10125 Mas podes crer: tem sempre o nosso dedo!Ns somos gente p'ra obras colossais:Violncia, convulses vs os sinais?Mas pede a transparncia que eu me abra:No te agradou nada na nossa obra?

    10130 Em vastos espaos viste at agoraAs riquezas do mundo e a sua glria.Mas, insatisfeito como s,Nenhum desejo inda ters?

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    FAUSTO:

    Se tenho! E um projecto imenso.10135 Adivinha.

    [...]

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    VACTO

    ESPAO ABERTO

    [...]FAUSTO:

    H um pntano aos ps do monte,11560 Empesta o conquistado espao;

    Drenar o charco importante,A ltima grande obra que fao.

    A muitos milhes abro espao e 'speranaDe viver livres, se no em segurana.11565 Campos verdes, frteis; homens, rebanho,

    Logo felizes em nova terra ponho,

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    Bem instalados na encosta do outeiroQue erguer soube, enrgico, um povo inteiro.C dentro um paraso a terra nossa;

    11570 Que suba l fora a mar furiosa,E se, violenta, tentar abrir brecha,Em comum esforo acorre o povo e a fecha.Esta a ideia que havemos de aceitar,Esta do sbio a suprema verdade:

    11575 S quem dia aps dia a conquistarMerece a vida e a sua liberdade.E assim passam, em perigos sobre-humanos,Crianas, homens, velhos, duros anos.Visse eu esse bulcio efervescente,

    11580 P'ra solo livre pisar com livre gente!A um momento tal ento diria:

    Suspende-te, tu que s to belo!O rasto dos trabalhos e dos dias,Nem eternidades podem apag-lo.

    11585 No antegozo de to feliz eventoDesfruto agora do supremo momento.[...]

    CHORUS MYSTICUS

    Tudo o que passa12105 smbolo s;

    O que no se alcanaEm corpo aqui est;O indescritvelRealiza-se aqui;

    12110 O Eterno-FemininoAtrai-nos para si.

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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    Imagens de Ilda David' (da edio portuguesa de Fausto)Fotogramas: do filme de Aleksandr Sokurov Faust(2011)

  • 7/22/2019 O 'Fausto' de Goethe/Sokurov e o universo Llansol - Caderno Fausto(Letra E)

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