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Revista de Educao Pblica

Ministrio da Educao Ministry of Education

UFMTReitora Chancellor

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Federal University of Mato GrossoGeraldo Incio Filho (UFU-MG), Uberlndia/MG, Brasil Helosa Szymanski (PUCSP), So Paulo/SP, Brasil Jaime Caiceo Escudero (Universidad de Santiago de Luiz Augusto Passos (UFMT), Cuiab/MT, Brasil Maria Laura Puglisi Barbosa Franco (PUCSP), So Mariluce Bittar (UCDB), Campo Grande/MS, Brasil Margarida Louro Felgueiras (Universidade do Porto), Portugal Marlene Ribeiro (UFRGS), Porto Alegre/RS, Brasil Pedro Ganzelli (UNICAMP), Campinas/SP, Brasil Rubn Cucuzza (Universidad Nacional de Lujn) Lujn, Vera Maria Nigro de Souza Placco (PUCSP), SoPaulo/SP, BrasilConselho Cientfico Scientific Council

Maria Lcia Cavalli NederVice-Reitor Vice-Chancellor

Chile) Santiago, Chile

Francisco Jos Dutra SoutoCoordenador da EdUFMT EdUFMTs Coordinator

Paulo/SP, Brasil

Marinaldo Divino RibeiroConselho Editorial Publishers Council

Bernardete Angelina Gatti Fundao Carlos Chagas,So Paulo/SP, Brasil

Provncia de Buenos Aires, Argentina

Celso de Rui Beisiegel USP, So Paulo/SP, Brasil Christian Anglade University of Essex,Essex, Inglaterra

Denise Jodelet EHESS cole des Hautes tudesen Sciences Sociales, Paris, Frana

Maria das Graas Martins da Silva (UFMT),Cuiab/MT, Brasil Educao, Poder e Cidadania Education, Power and Citizenship

Florestan Fernandes In Memoriam Francisco Fernndez Buey Universitat PompeoFabra, Espanha

Jean Hbette UFPA, Belm/PA, Brasil Maria Ins Pagliarini Cox UFMT, Cuiab/MT, Brasil Martin Coy Univ. Tubingen, Tubingen, Alemanha Michel-Louis Rouquette Universit Paris Descartes,Boulogne, Frana

Michle Tomoko Sato (UFMT), Cuiab/MT, BrasilEducao Ambiental Environmental Education

Eugnia Coelho Paredes (UFMT), Cuiab/MT, BrasilEducao e Psicologia Education and Psychology

Moacir Gadotti USP, So Paulo/SP, Brasil Nicanor Palhares S UFMT, Cuiab/MT, Brasil Paulo Speller UFMT, Cuiab/MT, BrasilConselho Consultivo Consulting Council

Filomena Maria de Arruda Monteiro (UFMT),Cuiab/MT, Brasil Cultura Escolar e Formao de Professores School Culture and Teacher Education

Elizabeth Figueiredo de S (UFMT), Cuiab/MT, BrasilHistria da Educao History of Education

Alessandra Frota M. de Schueler (UERJ) Rio de ngela Maria Franco Martins Coelho de Paiva Bala(Universidade de vora), vora, Portugal Aumeri Carlos Bampi (UNEMAT/Sinop) Sinop/MT, Brasil Bernardete Angelina Gatti (PUCSP) So Paulo/SP, Brasil Clarilza Prado de Sousa (PUCSP) So Paulo/SP, Brasil Claudia Leme Ferreira Davis (PUCSP) So Paulo/SP, Brasil Jacques Gauthier (Paris VIII-Frana) Frana, Paris Denise Meyrelles de Jesus (UFES) Vitria/ES, Brasil Elizabeth Madureira Siqueira (IHGMT), Cuiab/ MT, Brasil Francisca Izabel Pereira Maciel (UFMG), Belo Horizonte/MG, Brasil Janeiro/RJ, Brasil

Marta Maria Pontin Darsie (UFMT), Cuiab/MT, BrasilEducao em Cincias e Matemtica Education in Science and Mathematics

Revista de Educao Pblica Avenida Fernando Corra da Costa, n. 2367, Boa Esperana, Cuiab-MT, Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Educao, sala 49. CEP: 78.060-900 Telefone: (65) 3615-8466 Homepage: E-Mail: [email protected]

ISSN 0104-5962

Revista de Educao Pblica

2010R. Educ. Pbl. Cuiab v. 19 n. 40 p. 201-384 maio/ago. 2010

Copyright: 2010 EdUFMT Publicao do Programa de Mestrado e Doutorado em Educao da Universidade Federal de Mato Grosso Avenida Fernando Corra da Costa, n. 2367, Boa Esperana, Cuiab/MT, Brasil CEP: 78.060-900 Telefone: (65) 3615-8431 Homepage: Misso A Revista de Educao Pblica tem por misso a divulgao de conhecimentos cientficos voltados rea de Educao. Visa fomentar e facilitar o intercmbio de pesquisas produzidas dentro desse campo de saber, em mbito regional, nacional e internacional. A exatido das informaes e os conceitos e opinies emitidos so de exclusiva responsabilidade dos autores. Os direitos desta edio so reservados EdUFMT Editora da Universidade Federal de Mato Grosso. Disponvel tambm em: proibida a reproduo total ou parcial desta obra, sem autorizao expressa da Editora. EdUFMT Avenida Fernando Corra da Costa, n. 2367 - Boa Esperana. Cuiab/MT CEP: 78060-900 Homepage: E-Mail: [email protected] Fone: (65) 3615-8322 / Fax: (65) 3615-8325. Indexada em: BBE Bibliografia Brasileira de Educao (Braslia, INEP). SIBE Sistema de Informaes Bibliogrficas em Educao (Braslia, INEP). IRESIE ndice de Revistas de Educacin Superior y investigacin Educativa UNAM Universidad Autnoma del Mxico CITAS Latinoamericana en Ciencias Sociales y Humanidades CLASECoordenador da EdUFMT: Marinaldo Divino Ribeiro Editora da Revista de Educao Pblica: Ozerina Victor de Oliveira Editora Adjunta da Revista de Educao Pblica: Mrcia Santos Ferreira Secretria Executiva: Dionia da Silva Trindade Reviso de texto: Elisabeth Madureira Siqueira Editorao: To de Miranda Periodicidade: Quadrimestral

Catalogao na FonteR454 Revista de Educao Pblica - v. 19, n. 40 (maio/ago. 2010) Cuiab : EdUFMT, 2010, 184 p. Anual: 1992-1993. Semestral: 1994-2005. Quadrimestral: 2006ISSN 0104-5962 1. Educao. 2. Pesquisa Educacional. 3. Universidade Federal de Mato Grosso. 4. Programa de Ps-Graduao em Educao. CDU37.050z

Correspondncia para envio de artigos, assinaturas e permutas: Revista de Educao Pblica, sala 49, Instituto de Educao/UFMT Av. Fernando Corra da Costa, n. 2367, Boa Esperana, Cuiab/ MT CEP: 78.060-900

Comercializao: Fundao Uniselva / EdUFMT Caixa Econmica Federal / Agncia: 0686 Operao: 003 / Conta Corrente 550-4 E-mail: [email protected] Assinatura: R$55,00 Avulso: R$20,00

Projeto Grfico original: Carrin & Carracedo Editores Associados Av. Senador Metello, 3773 - Cep: 78030-005 Jd. Cuiab - Telefax: (65) 3624-5294 www.carrionecarracedo.com.br [email protected]

Este nmero foi produzido no formato 155x225mm, em impresso offset, no papel Suzano Plen Print 80g/ m, 1 cor; capa em papel triplex 250g/m, 4x0 cores, plastificao fosca em 1 face.Composto com os tipos Adobe Garamond e Frutiger. Tiragem: 1.000 exemplares Impresso e acabamento: Bartira Grfica e Editora S/A.

SumrioApresentao ................................................................................. 209 A democratizao da educao em tempos de parcerias entre o pblico e o privado .......................................................... 215Vera Maria Vidal PERONI

O financiamento da Educao estatal no Brasil: desafios para sua publicizao ..................................................... 229Nicholas DAVIES

Ensino Superior noturno no Brasil: democratizao do acesso, da permanncia e da qualidade ............ 247Joo Ferreira de OLIVEIRA Mariluce BITTAR Jandernaide Resende LEMOS

Democratizao da Educao, Universidade e Movimentos Sociais ................................................................... 269Heloisa Salles GENTIL

Educao Superior, democratizao e incluso social: Brasil e Argentina ......................................................................... 287Maria de Ftima Costa de PAULA

Aspectos a serem considerados na implementao da Lei 10.639/03 nas escolas de Mato Grosso........................................ 305Maria Lcia Rodrigues MLLER

Polticas educacionais brasileiras, Neoliberalismo e ps-modernidade: uma anlise da perspectiva dos Professores do Ensino de Geografia ................................................319Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula LOPES Taciana Mirna SAMBRANO

Os processos de avaliao institudos na Educao Superior e os processos de tomadas de deciso: significados, sentidos e efeitos .. 345Elizeth Gonzaga dos Santos LIMA

Para onde decola o pas e a Universidade brasileira? .................. 355Luiz Augusto PASSOS

Normas para publicao de originais .......................................... 376 Permutas e doaes....................................................................... 380 Ficha para assinatura da Revista de Educao Pblica ............... 383

ContentsPresentation .................................................................................. 209 The democratization of education in times of partnerships between public and private .......................................................... 215Vera Maria Vidal PERONI

The finance of state Education in Brazil: some challenges for its publicization .......................................... 229Nicholas DAVIES

Night Higher Education in Brazil: democratization of access, permanence and quality ...................... 247Joo Ferreira de OLIVEIRA Mariluce BITTAR Jandernaide Resende LEMOS

Democratization of Education, University and Social Movements................................................ 269Heloisa Salles GENTIL

Higher Education, democratization and social inclusion: Brazil and Argentina ................................................................... 287Maria de Ftima Costa de PAULA

Aspects to be considered in implementing the Law 10.639/03 schools of Mato Grosso ................................................................ 305Maria Lcia Rodrigues MLLER

Brazilian educational policies, Neoliberalism and postmodernity: an analysis of the perspective of the Geography teachers........... 319Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula LOPES Taciana Mirna SAMBRANO

The processes of evaluation instituidos in the Superior Education and the processes of decision taking: meanings, felt and effect ....... 345Elizeth Gonzaga dos Santos LIMA

To where will the country and the brazilian University take-off? .... 355Luiz Augusto PASSOS

Directions for originals publication ............................................ 376 Exchange and donation................................................................ 380 Subscription form ........................................................................ 383

ApresentaoA Revista de Educao Pblica, regularmente, dedica uma edio apresentao dos trabalhos que se destacaram no Seminrio Educao (SEMIEDU). O referido Seminrio, evento tradicional no estado de Mato Grosso, com dezessete anos de histria, teve incio no ano de 1992, no Instituto de Educao da Universidade Federal de Mato Grosso, sob a coordenao do Programa de Ps-Graduao em Educao (PPGE). Anualmente so tratadas temticas de relevncia poltica, cultural, social e cientfica, de forma a divulgar e socializar as pesquisas realizadas no mbito da universidade, bem como responder s inquietaes e necessidades da sociedade. Nessa perspectiva, a presente edio da Revista de Educao Pblica discute polticas educacionais, tema central do Seminrio Educao realizado em novembro de 2009. Essa atividade acadmica foi organizada pelo Grupo de Pesquisa em Polticas Educacionais e Trabalho Docente (GEPDES), sob coordenao da Profa. Maria das Graas Martins da Silva e pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Cincias da Natureza (EDUCIN-MT), sob coordenao da Profa. Tnia Maria Lima Beraldo. A escolha da temtica Polticas educacionais: cenrios e projetos sociais deu-se pela necessidade de evidenciar as formulaes e aes do poder pblico no campo social, reportando aos seus investimentos, gesto, destinao de polticas sociais, interesses e foras em questo, organizao e participao da sociedade civil, marco jurdico, resultados alcanados, anlise das relaes poltico-econmico-sociais, entre outros. Tais aspectos traduzem, enfim, um compromisso social, um projeto social, o que esteve no centro das discusses ento realizadas. Em especial no campo da educao, o debate abordou os pontos de tenso e as interferncias entre o nvel macro (as polticas governamentais) e o micro (a instituio escolar, o gestor, o professor, o aluno etc.). Estimulados pelas discusses realizadas nas conferncias e mesas-redondas, os Grupos de Trabalho (que totalizaram 18), ao abordar questes especficas, protagonizaram relatos de pesquisas e debates tericos. Entendemos, pois, que os textos publicados nesta edio refletem, de certa forma, a riqueza e o entrecruzamento de temticas que se apresentaram to vivamente no Seminrio Educao 2009, o que nos permite, orgulhosamente, d-los a conhecer a um pblico mais ampliado. A Revista inaugura o debate com o artigo de Vera Maria Vidal Peroni, intitulado A democratizao da educao em tempos de parcerias entre o pblico e o privado. A autora ancora-se em dados de pesquisas sobre as redefinies do papel do Estado no contexto da reestruturao capitalista para analisar as parcerias entre o pblico e o privado na educao. O foco de sua ateno so as parcerias entre escolas pblicas e o setor privado, particularmente o Instituto Ayrton Senna. As

reflexes do destaque a um duplo movimento de mudanas na relao pblico/ privado: 1) alterao da propriedade pela passagem do estatal para o pblico no estatal ou privado; 2) permanncia da propriedade estatal, porm regulada pela lgica de mercado que passa a reorganizar os processos de gesto, resultando no que alguns autores chamam de quase-mercado. Para desenvolver as anlises, a autora estabelece relaes entre esse tipo de iniciativa e as polticas neoliberais que defendem a ideia de Estado Mnimo, bem como com a terceira via, vertente terica que, por considerar o Estado ineficiente, defende a sua reforma, tendo o mercado como parmetro de qualidade. Em suma, as reflexes desenvolvidas questionam parcerias no apenas pela passagem do estatal para o pblico no estatal ou privado, mas tambm pelo fato de que se constituem em projetos que restringem as possibilidades da escola organizar suas atividades com a necessria autonomia e de promover a gesto democrtica, pois a gesto escolar tende a ser monitorada por agente externo. Em O financiamento da educao estatal no Brasil: desafios para sua publicizao, Nicholas Davies examina alguns desafios para a publicizao do financiamento da educao estatal em nosso pas. Parte de discusses sobre a apreciao da natureza do Estado e de suas polticas para, em seguida, abordar os percalos desse financiamento. As anlises desenvolvidas explicam que os mesmos esto relacionados, em grande parte, ao carter privatista do Estado, revelado, por exemplo, pelo privilegiamento da poltica fiscal/econmica e no das polticas ditas sociais, que incluem a educao. O autor relaciona os percalos a diversas questes: perda de recursos provocada pela inflao, sonegao fiscal, criao de impostos com o nome de contribuies; no cumprimento dessa exigncia constitucional pelas diferentes esferas de governo (federal, estadual e municipal) e sua impunidade; fragilidade na atuao dos rgos fiscalizadores; desigualdade de recursos disponveis para a educao nas trs esferas de governo; significado e implicaes dos fundos, que apenas redistribuem, entre o governo estadual e as prefeituras, uma parte dos impostos j constitucionalmente vinculados MDE, com base no nmero de matrculas no ensino fundamental regular (FUNDEF) ou na educao bsica (FUNDEB). Na perspectiva de atenuar esses e outros problemas do financiamento da educao, o autor considera que uma soluo seria a priorizao das polticas ditas sociais, e no da poltica fiscal/econmica em favor do capital e/ou da burocracia estatal, possibilitando o aumento de recursos para a rea social. Outra medida seria uma reforma tributria em favor das regies, estados e municpios mais pobres. Por fim, seria fundamental o controle social sobre as verbas vinculadas educao, uma vez que, sem este controle, as verbas, mesmo aumentadas, podem ser dilapidadas pelo desperdcio, corrupo e tantos outros males da gesto da coisa pblica.

O artigo Ensino superior noturno no Brasil: democratizao do acesso, da permanncia e da qualidade, de autoria de Joo Ferreira de Oliveira, Mariluce Bittar e Jandernaide Resende Lemos, d evidncias do alto nvel de excluso econmica e de seletividade social no Brasil, em termos do acesso e permanncia na educao superior. Para desenvolver as anlises dos autores partem de uma breve retrospectiva desse nvel do ensino no pas e mostram que tem ocorrido ampliao das matrculas e adoo de programas governamentais que visam favorecer o acesso, a exemplo do Fundo de Financiamento ao Estudante de Ensino Superior (FIES) e do Programa Universidade Para Todos (PROUNI). Todavia, o acesso ainda bastante restrito: apenas 13,9% da populao, na faixa de etria de 18 a 24 anos, se encontram matriculados em algum curso de graduao, sendo que o maior nmero de matrculas vem ocorrendo em instituies privadas, no horrio noturno. As reflexes apresentadas remetem ao entendimento de que o trip acesso, permanncia e qualidade da oferta continua sendo uma lacuna nas polticas pblicas de educao superior. Os autores sustentam que no contexto da globalizao se faz necessrio compreender se o acesso e a realizao de tais cursos contribuem efetivamente para a democratizao da educao superior, de forma a propiciar maior incluso social dos estudantes trabalhadores e, consequentemente, melhoria da sua qualidade de vida. Heloisa Salles Gentil no artigo intitulado Democratizao da educao, universidade e movimentos sociais parte de discusses sobre a democratizao da educao para colocar em pauta as relaes entre a universidade e os Movimentos Sociais (MsSs). A universidade conceituada pela autora como uma instituio social e, como tal, tem entre suas funes o trabalho no sentido da manuteno da sociedade, mesmo que seja uma instituio fundada sob a gide da autonomia. Os movimentos sociais so conceituados como organizaes da sociedade civil em busca de transformaes sociais. As reflexes so orientadas pela busca de respostas para a seguinte questo: o que faz com que os Movimentos Sociais procurem as Universidades ou, sob outro ngulo, que as Universidades se coloquem a servio de interesses dos MsSs? Para desenvolver as anlises em torno desta questo, a autora busca amparo na concepo gramsciana de Estado e na concepo de movimentos sociais apresentadas na atualidade por Manuel Castells e Alberto Melucci. O Estado entendido, portanto, como a sociedade poltica mais a sociedade civil, que por sua vez concebida como arena de confrontos, onde se decide a hegemonia. nessa arena que atuam os movimentos sociais e a universidade a fim de conquistar hegemonia. Se a universidade deseja contribuir com a tarefa de democratizao da educao ela no pode restringir sua atuao a simples partilha de conhecimentos com grupos sociais menos favorecidos. Antes disso, segundo a autora, preciso reconhecer que a cincia moderna no capaz

de expressar verdades nicas e absolutas; existem outras formas de conhecimento que precisam ser inseridas nos dilogos. Assim, possvel produzir novas formas de produo de conhecimento e promoo da proclamada educao democrtica. Maria de Ftima Costa de Paula discute Educao Superior, Democratizao e Incluso Social: Brasil e Argentina por meio da comparao de dados relacionados com acesso e permanncia no ensino superior. O panorama apresentado revela diferenas e semelhanas nas polticas educacionais de ambos os pases. Dados da educao superior da Argentina, quando comparados aos do Brasil, revelam um quadro menos excludente em vrios aspectos. No entanto, apesar das diferenas, em ambos os sistemas a educao superior reproduz as desigualdades sociais, j que os estudantes das classes dominantes tm mais chances de se graduarem, em especial nos cursos de maior prestgio social, que oferecem melhores oportunidades no mbito do mercado de trabalho. J os estudantes provenientes das classes desfavorecidas social e economicamente enfrentam restries diversas que limitam as possibilidades de acesso aos cursos de graduao. Considerando a complexidade dos problemas educacionais na Amrica Latina, a autora considera a necessidade da reforma da educao superior estar articulada reestruturao da educao pblica fundamental e mdia, no sentido do alcance da qualidade. Destaca tambm a necessria articulao com reformas sociais que conduzam a uma melhor distribuio de renda. A seu ver, apenas dessa forma criam-se situaes para que os filhos das classes trabalhadoras tenham condies de acesso e permanncia nas instituies educativas, sendo, nesse caso, possvel falar em polticas educacionais democrticas. No artigo Aspectos a serem considerados na implementao da Lei 10.639/03 nas escolas de Mato Grosso, Maria Lcia Rodrigues Mller, com base em resultados de pesquisas sobre relaes raciais em escolas de Mato Grosso, discute a implementao da Lei 10.639/2003, que modificou o art. 26 da LDBN e tornou obrigatria para todas as escola brasileiras a adoo de contedos referentes Histria da frica, Histria do negro no Brasil e da cultura afrobrasileira. O texto inicialmente reflete sobre as desigualdades sociais entre brancos e negros, em especial as raciais manifestas na educao; na sequncia, expe os resultados de pesquisas e atividades de formao continuada para professores, tendo como objetivo a implementao da Lei 10.639/2003; por fim discorre sobre questes que considera pertinentes para futuros estudos de avaliao e anlise das formas de implementao da citada Lei nas escolas de Mato Grosso. A autora ressalta que, no processo de implantao, no bastam definies tcnicas, devendo-se considerar a dimenso poltica e cultural da realidade. Alm disso, destaca a necessidade de considerar nos estudos os atores envolvidos e a cultura organizacional das escolas, muitas delas resistentes discusso sobre os processos escolares de discriminao contra o alunado negro.

Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula Lopes e Taciana Mirna Sambrano, em Polticas educacionais brasileiras, Neoliberalismo e ps-modernidade: uma anlise da perspectiva dos professores do Ensino de Geografia, examinam a introduo do iderio neoliberal e ps-moderno na poltica educacional brasileira a partir da reforma do aparelho de Estado ocorrida na dcada de 1990. Tal estudo tem por base pesquisa realizada sobre as prticas, discursos e posies adotadas por professores de Geografia da rede pblica de ensino do estado de So Paulo sobre os efeitos das reformas realizadas no ensino, alm das prticas e formas de resistncia frente a tais polticas. Os resultados da pesquisa mostram a penetrao do iderio neoliberal e ps-moderno nas respostas dadas pelos professores de formao mais recente; alm disso, evidenciam falta de criticidade de grande parte dos professores, que no identificam o Estado Neoliberal desobrigar-se das tarefas educacionais de sua responsabilidade. No geral, conclui, as falas demonstram que os docentes sofrem influncia da referida ideologia, embora indiquem aes de resistncia, motivo para que se considere as suas respostas ambguas ou contraditrias. Elizeth Gonzaga dos Santos Lima, no texto Os processos de avaliao institudos na educao superior e os processos de tomadas de deciso: significados, sentidos e efeitos, questiona os processos de avaliao institudos nas universidades, sustentando-se nos resultados de pesquisas sobre o Programa de Avaliao da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. A avaliao e as tomadas de deciso constituram a base do seu estudo, que aponta para a importncia de se fortalecer a participao dos sujeitos no desfecho da avaliao, provocando novas reflexes e revigorando as tomadas de deciso. Alm disso, destaca a necessidade de que o processo de avaliao tambm seja avaliado para garantir o seu aperfeioamento e qualidade. No texto final que se apresenta, Para onde decola o pas e a Universidade Brasileira?, Luiz Augusto Passos trata da afirmativa de que o pas (e, por consequncia, as universidades) decolaram na perspectiva da emancipao, crescimento e democratizao. O autor comea sua reflexo tomando as questes seguintes: decolagem de onde e para onde?; para quem e contra quem? Tais perguntas so movidas pela leitura da realidade, que indica que as melhoras proporcionadas para os setores populares so infinitamente menores s dirigidas aos setores dominantes. O segundo movimento do texto incide sobre o Processo de Bolonha, o qual sinaliza que a realidade brasileira est tensionada por um movimento expressivo de fora do pas, onde se tranam demandas e ajustes nas polticas das grandes agncias brasileiras de controle das polticas de governo e pblicas, mostrando o panorama complexo da presumvel decolagem. Com base em pesquisas publicadas nos anais da 32 Reunio Anual da ANPEd 2009 (GT Formao dos Professores e de Polticas de Educao Superior), Luiz Augusto Passos indaga: que decolagem essa, que deixa oferta aleatria mbitos

imprescindveis ligados aos aspectos formativos? Amparado na premissa de que no haver Universidade formadora sem democracia direta, encerra o texto com a afirmativa de que a nica perspectiva capaz de salvar-nos a que opta pela causa da democracia popular, aquela que abre espaos para os movimentos sociais, os protagonistas de mudanas e transformaes. Por fim, importa registrar que a apresentao dos textos, para ns, foi o mesmo que desfrut-los, razo porque acreditamos que os leitores podero contar com fecundo material para inspirar e subsidiar suas pesquisas. Profa. Dra. Tnia Maria Lima Beraldo Coordenadora do Seminrio de Educao/UFMT/2009 Profa. Dra. Maria das Graas Martins da Silva Coordenadora Adjunta do Seminrio de Educao/UFMT/2009

A democratizao da educao em tempos de parcerias entre o pblico e o privadoThe democratization of education in times of partnerships between public and privateVera Maria Vidal Peroni1

ResumoEste artigo tem o objetivo de analisar as parcerias pblico-privadas na educao e trazer elementos da terceira via e terceiro setor como parte importante do debate, assim como apresentar algumas implicaes das parcerias para a gesto democrtica, isto , como a lgica de mercado como parmetro de eficincia passa a ser incorporada pela gesto pblica e as consequncias para as polticas educacionais.Palavras-chave: Estado e poltica educacional. Pblico/privado na educao bsica. Gesto democrtica.

AbstractThis paper aims to analyse on the publicprivate partnerships in education and to bring elements from the third way and third sector as an important part of this debate, and to present some consequences of the partnerships for democratic management, that is, how the logic of market as a parameter of efficiency is incorporated by public management, and the consequences of this fact on the educational policies.Keywords: State and educational policy. public/private in basic education. Democratic management.

1

Vera Maria Vidal Peroni professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com experincia na rea de Educao, nfase em Poltica Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado e poltica educacional, poltica educacional brasileira, financiamento da educao, descentralizao da educao e poltica educacional. E-mail: [email protected] R. Educ. Pbl. Cuiab v. 19 n. 40 p. 215-227 maio/ago. 2010

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Polticas Educacionais: Cenrios e Projetos Sociais

E o que foi feito preciso Conhecer para melhor prosseguir (Milton Nascimento. O que foi feito dever)

Este artigo trata da relao entre o pblico e o privado na educao, com base em pesquisas realizadas na ltima dcada sobre as redefinies do papel do Estado neste perodo particular do capitalismo. A minha trajetria no tema iniciou com a tese de doutorado As redefinies no papel do Estado no Brasil dos anos 1990 e se desenvolveu com um grupo nacional, que desde 2004 vem estudando o pblico/privado na educao. Iniciamos com o Programa Dinheiro Direto na Escola PDDE, programa do governo federal que vinculou o recebimento da verba por parte das escolas pblicas criao de um CNPJ, tornando-as, assim, pessoas jurdicas de direito privado. Analisamos seus impactos para a gesto democrtica nas diferentes regies (PERONI, ADRIO, 2007). O Programa foi criado no mesmo perodo que o Plano Diretor da Reforma do Estado (1995), idealizado por Bresser Pereira, ento Ministro, que j repassava praticamente todas as polticas sociais para as organizaes sociais, no mais ficando como propriedade estatal, deslocando-as para o chamado pblico no estatal. Atualmente, estamos pesquisando outra forma de relao entre o pblico/ privado em educao, na qual no se muda a propriedade, isto , a escola continua sendo pblica, mas com parcerias com o setor privado. Estudamos o Instituto Ayrton Senna, por ser uma instituio nacional que faz parcerias com sistemas pblicos em todo o pas, mas atualmente em diferentes estados ocorrem muitas outras parcerias. As redes ou compram material pronto do sistema privado ou compram legislao, projeto poltico-pedaggico de assessoria ou o pacote inteiro. No caso das parcerias, no muda a propriedade, que permanece sendo pblica, mas o privado determina a sua atuao, como acontece com o Instituto Ayrton Senna, que apresenta um pacote com atribuies que vo desde o prefeito at o secretrio de educao, o diretor de escola, o professor, o aluno, o pai do aluno, definindo, assim, os rumos da educao pblica. Neste sentido, questionamos os prejuzos para a construo da gesto democrtica no pas. Destacamos, portanto, um duplo movimento de mudanas na relao pblico/ privado que redefinem o papel do Estado: a primeira a alterao da propriedade, na qual h a passagem do estatal para o pblico no estatal ou privado; j na segunda permanece a propriedade estatal, mas passa a haver a lgica de mercado, reorganizando os processos, principalmente de gesto, o que alguns autores tm chamado de quase-mercado. Estes movimentos no ocorrem apenas na rea da educao, mas nas polticas sociais de uma maneira geral. Essa situao agravada, pois historicamente no

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A democratizao da educao em tempos de parcerias entre o pblico e o privado

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Brasil no tivemos a universalizao de direitos sociais. Nos anos 1980, aps dcadas de ditadura, os movimentos sociais em geral e vinculados educao em particular passaram a lutar pela democratizao da sociedade e por direitos sociais materializados em polticas. A Constituio de 1988 materializa em parte este processo, como, por exemplo, a perceptiva de universalizao da educao bsica, os processos de incluso, a passagem da educao infantil, da assistncia social, para a educao. A luta pela democratizao da sociedade tambm era parte do processo de democratizao da educao. Nesse sentido, a gesto democrtica um fim e no apenas um meio, j que no se verifica simplesmente uma mudana na concepo de gesto, que passaria da tecnocrtica, vinculada aos preceitos do Fordismo e Toyotismo, para a gesto democrtica. Entendemos que a ideia de gesto democrtica parte do projeto de construo da democratizao da sociedade brasileira. Nesse sentido, a eleio para diretores era e importante no apenas para que os dirigentes educacionais sejam eleitos pelos seus pares e pela comunidade, mas tambm porque a eleio um processo de aprendizagem. E a eleio dos diretores e a participao no Conselho Escolar so processos de construo da democracia, tanto para comunidade escolar, quanto para a comunidade em geral, porque a participao, depois de muitos e muitos anos de ditadura, caminha atravs de um longo processo de construo. Portanto, uma questo central o papel da educao nesse processo, a educao como um todo e no apenas a educao pblica. Assim, uma das perdas ocorreu quando ficou estabelecido que a gesto democrtica seria apenas para o ensino pblico. A ideia que todos precisamos construir uma sociedade democrtica, ento, por que apenas os alunos da escola pblica deveriam aprender a ser democrticos? Entendemos que na prtica que se aprende a conviver numa sociedade democrtica, j que essa aprendizagem ocorre no dia-adia da participao em processos de correlao de foras. Enfim, a expectativa do processo de democratizao, aps tantos anos de ditadura, era de que se avanasse na materializao de direitos sociais, em universalizao da educao, acesso, qualidade, incluso, autonomia entendidas como democratizao. Mas, ao mesmo tempo, em nvel internacional, o capitalismo vivia uma crise e as suas estratgias de superao: neoliberalismo, reestruturao produtiva e globalizao, principalmente as globalizaes financeiras, redefiniam o papel do Estado e reduziam direitos materializados em polticas. Ento, ao mesmo tempo em que lutamos muito, na Amrica Latina, para conquistar os nossos direitos, o resto do mundo vivia na contramo disso, pois j vinha ocorrendo a perda de direitos, principalmente porque a globalizao, a reestruturao produtiva e o neoliberalismo redefiniram o papel do Estado. A reestruturao

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produtiva modificou a relao do papel do Estado, assim como a globalizao, mas, principalmente o neoliberalismo, pois este faz uma crtica democracia. Para essa teoria, o cidado, atravs do voto, decide sobre bens que no so seus, gerando conflitos com os proprietrios, o que visto como uma forma de distribuio de renda. Hayek (1983) denuncia que a democracia faz um verdadeiro saque propriedade alheia. E, como em muitos casos no se pode suprimir totalmente a democracia (voto, partidos), o esforo para esvaziar seu poder. Hayek (1983) analisa ainda que a inflao uma das grandes responsveis pela crise atual do capitalismo, e que ocorre geralmente em um contexto de democracia, no qual os polticos tm que atender s demandas dos eleitores, desestabilizando a economia e gerando, assim, o desemprego (PERONI, 2003). Para o neoliberalismo, portanto, no h uma crise do capital, mas do Estado, com o diagnstico de que esse Estado gastou demais, atendeu demanda dos eleitores, e por isso se endividou e gerou a crise fiscal. E, para superar o problema, prope o Estado mnimo, tanto da execuo quanto da coordenao da vida em sociedade, passando o mercado a ser parmetro de eficincia e qualidade. O que vai trazer profundas consequncias para o que estamos estudando: gesto democrtica e parcerias entre o pblico e o privado. O neoliberalismo defende claramente o Estado mnimo, a privao de direitos, penalizando a democracia por consider-la prejudicial aos interesses do mercado. J a Terceira Via se coloca entre o neoliberalismo e a antiga social democracia, que tambm tinha como parmetro os direitos sociais, ainda que no mbito do capitalismo. A Terceira Via no rompe o diagnstico de que o Estado culpado pela crise, no levando em considerao as mudanas e questes estruturais prprias do capital e do capitalismo. Conforme Giddens (2001), um dos grandes intelectuais da Terceira Via, que inclusive assessorou o presidente Tony Blair: [...] os neoliberais querem encolher o Estado; os social-democratas, historicamente, tm sido vidos para expandi-lo. A Terceira Via afirma que necessrio reconstru-lo. (GIDDENS, 2001, p. 80):O papel do Estado para com as polticas sociais alterado, pois com este diagnstico duas so as prescries: racionalizar recursos e esvaziar o poder das instituies, j que instituies democrticas so permeveis s presses e demandas da populao, alm de serem consideradas como improdutivas, pela lgica de mercado. Assim, a responsabilidade pela execuo das polticas sociais deve ser repassada para a sociedade: para os neoliberais atravs da privatizao (mercado), e para a Terceira Via pelo pblico no-estatal (sem fins lucrativos) (PERONI, 2006, p. 14).

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Portanto, o diagnstico o mesmo, mas com estratgias diferentes: o neoliberalismo prope o Estado mnimo, privatiza e passa tudo pelo mercado; a Terceira Via prope reformar o Estado, argumentando que ele ineficiente e, portanto, sua reforma ter como parmetro de qualidade o mercado, atravs da administrao gerencial, fortalecendo sua lgica de mercado dentro da administrao pblica. E, tambm, repassando para a sociedade tarefas que at ento eram do mercado. No caso brasileiro esta proposta materializou-se atravs do Plano Diretor da Reforma do Estado, em 1995 (BRASIL, 19995), proposto por Bresser Pereira que, assim como o ento presidente Fernando Henrique Cardoso, so intelectuais orgnicos da Terceira Via. No Plano de Reforma do Estado no Brasil (1995), as polticas sociais foram consideradas servios no exclusivos do Estado e, assim sendo, de propriedade pblica no estatal ou privada. As estratgias de reforma do Estado no Brasil so: a privatizao, a publicizao e a terceirizao. Terceirizao, conforme Bresser Pereira, o processo em que transfere para o setor privado os servios auxiliares ou de apoio. A publicizao consiste na transferncia para o setor pblico no estatal dos servios sociais e cientficos que hoje o Estado presta. (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 7). O conceito de publicizao significa transformar uma organizao estatal em uma organizao de direito privado, pblica, no estatal. (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 8). O Plano tem alguns elementos do neoliberalismo, principalmente quando apresenta a privatizao como uma das estratgias, mas tambm da Terceira Via, quando prope como estratgia a publicizao, que a parceria com o terceiro setor. Em trabalho anterior, j questionvamos a existncia de aspectos obscuros na passagem das polticas sociais para o pblico no estatal no Plano Diretor da reforma do Estado:[...] como ser essa parceria? O que significa ser assegurado pelo Estado e viabilizado pelo mercado? No momento em que no fica claro quem financia, questionamos: como se pode afirmar que est assegurado pelo Estado? Assegurado para quem? Para todos? Para os que podem pagar? Qual ser o papel do Estado em se tratando de polticas sociais, pois observamos, nos documentos e declaraes, que o financiamento e a regulao estaro por conta da sociedade. Isso nos permite concluir que o Estado est querendo passa para a sociedade tarefas que deveriam ser suas, principalmente no mbito de polticas sociais. (PERONI, 2003, p. 63).

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Alm disso, as polticas sociais, no Plano (BRASIL, 1995) so entendidas como atividades competitivas e podem ser controladas no apenas atravs da administrao gerencial, mas tambm e, principalmente, atravs do controle social e da constituio de quase-mercados. (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 8). O termo quase-mercado utilizado pela Public Choice, que uma corrente da teoria neoliberal, como afirma Reginaldo Moraes (2001):O funcionamento da ordem de mercado visto como um paradigma, um modelo de funcionamento para outras instituies sociais. Assim a pretenso destes analistas [neoliberais] descobrir quais as regras constitucionais que, no plano das decises coletivas (no-mercado), mais se aproximam da perfeio exibida por essa ordem (a do mercado). o que chamam de economia constitucional, uma nova teoria do contrato social, que proporcione uma reconstruo da ordem social e poltica (MORAES, 2001, p. 49).

Como, para a teoria neoliberal no o capitalismo que est em crise, mas o Estado, a estratgia defendida sua reforma, para diminuir sua atuao e, assim, superar a crise. O mercado que dever superar as falhas do Estado, portanto, a lgica do mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, para que ele possa ser mais eficiente e produtivo. A Teoria da Eleio Pblica, corrente neoliberal conhecida como Public Choice, faz uma anlise econmica da poltica2. O ponto de partida de discusso da Escola que a economia e a poltica de um pas so inseparveis. A ideia chave a de que o paradigma da ao humana, em todas as dimenses, passa pela relao de troca, pelo jogo de interesses. Isso tanto um pressuposto como uma prescrio, no sentido de que a Escola trabalha para que todas as relaes tenham a relao de troca como modelo (BUCHANAN et al. 1984). Para Hayek (1983), a democracia totalitria, j a Terceira Via afirma que precisamos radicalizar a democracia, democratizar a democracia e a participao da sociedade civil. Mas o que significam essa democracia e essa participao? Questionamos: que concepo essa de participao, quando a sociedade civil chamada muito mais a executar tarefas do que a participar das decises e do controle social? E a democratizao, seria apenas para repassar tarefas que deveriam ser do Estado? A sociedade civil acaba se responsabilizando pela execuo das polticas sociais em nome da democracia.2 O seu principal terico James Buchanan, tambm conhecida como Escola de Virgnia, pois se constituiu no Instituto Politcnico da Universidade de Virgnia na dcada de 1950.

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E ainda tem-se a falsa ideia de que a sociedade civil est participando, quando, na realidade, suas instituies representativas, como sindicatos, movimentos sociais e partidos, esto sendo arrasados como parte da estratgia neoliberal (PERONI, 2006b). Wood (2003) comenta acerca da sociedade civil neste perodo particular do capitalismo:Sociedade civil constitui no somente uma relao inteiramente nova entre o pblico e o privado, mas um reino privado inteiramente novo [...]. Ela gera uma nova diviso do trabalho entre a esfera pblica do Estado e a esfera privada da propriedade capitalista e do imperativo de mercado, em que a apropriao, explorao e dominao se desligam da autoridade pblica e da responsabilidade social enquanto esses novos poderes privados dependem da sustentao do Estado por meio de um poder de imposio mais concentrado do que qualquer outro que tenha existido anteriormente. (WOOD, 2003, p. 217-218).

Destaca ainda, o mencionado autor, que o conceito de democracia em uma sociedade sob a hegemonia do capitalismo no pode ser visto em abstrato, pois afinal: o capitalismo que torna possvel uma forma de democracia em que a igualdade formal de direitos polticos tem efeito mnimo sobre as desigualdades ou sobre as relaes de dominao e de explorao em outras esferas. (WOOD, 2003, p. 193). Essa anlise de Elen Wood encaminha as discusses de como, neste perodo particular do capitalismo, por um lado avanamos na to batalhada democracia, mas, por outro, h um esvaziamento das polticas sociais, principalmente destas como um direito universal. Aumentou, portanto, a separao entre o econmico e o poltico, historicamente presentes no capitalismo (PERONI, 2007).

Consequncias para a gesto democrticaO neoliberalismo e a Terceira Via tambm tm profundas implicaes na gesto, porque introduzem a ideia de quase mercado, conceito partilhado tanto pelo neoliberalismo quanto pela Terceira Via. Entendemos que est vinculado ao diagnstico de crise do neoliberalismo, partilhado pela Terceira Via, de que o Estado no mais o coordenador porque ele ineficiente, passando o mercado a ser padro de qualidade. Como j analisamos em trabalho anterior (PERONI, 2003), no Brasil os empresrios propem participar ativamente da elaborao das polticas educacionais, influenciando mais as polticas do que gerindo diretamente as escolas:

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[...] os empresrios sabem muito bem que no podem cuidar melhor das escolas do que o governo ou ao invs do governo. Esta no sua responsabilidade, sua misso e muito menos sua inteno.A participao do empresrio , contudo, extremamente importante. Alm de familiariz-lo com o trato das questes da educao e da escola, complementa a ao do governo, queimando, em defesa de seus prprios interesses econmicos, etapas do processo de otimizao do ensino brasileiro (grifo nosso) (Oliveira, Castro, 1993, p.6).

Ainda conforme documento do Instituto Herbert Levy, a educao tem como fim a competitividade empresarial:[...] numa poca em que o saber se transformou na mola mestra de todo o processo produtivo, qualquer esforo para melhorar a competitividade nacional tende ao fracasso se a mquina geradora deste saber, que o sistema educacional, no apresentar uma eficcia compatvel com as exigncias da nova era. (idem, p. 6).

Outro documento que merece destaque nesse sentido o memorando (CAS 1997) do Banco Mundial para o Brasil3, indicando que o pas deve aumentar o tempo de instruo e qualidade do ensino, e, em contrapartida, a instituio vai exigir uma melhor definio nas contas nos nveis nacional e subnacional, um aumento da participao do setor privado e da sociedade civil na educao e no melhor gerenciamento das escolas.(BANCO MUNDIAL, CAS 1997, p. 124, grifo nosso). O argumento dos empresrios e organismos internacionais, para influenciar nas polticas educacionais, parte do diagnstico de que a crise est no Estado, que ineficiente, e, como j vimos, o mercado deve compensar suas falhas assumindo no interior do prprio aparelho de Estado a lgica mercantil, via gesto gerencial, e repassando as polticas sociais para o mercado, atravs da privatizao total ou com parcerias.

3

O Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) organizam documentos especficos para cada pas que tome seus emprstimos. Esses documentos, conhecidos pela sigla CAS (Country Assistence Strategy), no caso do Banco Mundial, e pelo nome de Country Paper, no caso do BID, descrevem a estratgia dos Bancos para os emprstimos, alm de planos para as reformas econmicas ou ajustes estruturais e projetos de investimentos (agricultura, infra-estrutura, reforma agrria, meio ambiente, educao, sade). Esses documentos permaneceram, durante anos, em sigilo (sendo para uso oficial) e, apenas em 1997, aps longa batalha poltica, vieram a pblico, por um pedido da Rede Brasil, encaminhado atravs do deputado Ivan Valente Cmara dos Deputados.

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Na educao observamos esse processo em vrios programas educacionais, nos quais o governo apenas repassa alguns recursos para que a sociedade efetive, por exemplo, o Programa Brasil Alfabetizado, que paga uma pequena bolsa e qualquer pessoa pode se alfabetizar. Num municpio do Rio Grande do Sul, no Programa Federal Brasil Alfabetizado, o SESI fazia a formao dos professores e as aulas ocorriam em um Centro de Tradies Gachas - CTG, numa igreja e num galpo de reciclagem. Ou seja, para que a alfabetizao ocorresse foi preciso a boa vontade de cidados ou da igreja, ou do galpo, ou do CTG que, por diferentes motivos polticos ou filantrpicos, participaram do processo. Assim, a pessoa, ou tem que ser aliada ou ao CTG, ou a igreja, ao galpo de reciclagem, para ter o direito alfabetizao, mesmo sendo um direito constitucional e obrigatria, independente da idade. A creche comunitria outro exemplo. No municpio de Porto Alegre esses professores tm contratos precrios. Conforme pesquisa de SUSIN (2009), nas creches estudadas o motorista, a merendeira etc. ganham mais que a professora. Por no haver plano de carreira, no h critrios claros de progresso funcional. Ento, paga-se o salrio de acordo com a proximidade clientelstica; o problema que as creches, apesar de privadas, sobrevivem com dinheiro pblico. Outra questo relevante o critrio de ingresso das crianas, tambm no definido publicamente, porque h o compromisso com a gesto democrtica. Outro exemplo a pesquisa atual mencionada, que estuda a parceria entre o Instituto Ayrton Senna IAS e sistemas pblicos de educao. Analisamos o IAS por ter uma grande atuao nacional. uma organizao no governamental, sem fins lucrativos, fundada em novembro de 1994, cuja meta principal trabalhar para criar oportunidades de desenvolvimento humano crianas e jovens brasileiros, em cooperao com empresas, governos, prefeituras, escolas, universidade e ONGs (http://senna.globocom/institutoayrtonsenna/). No caso do municpio estudado no Rio Grande do Sul, a parceria ocorreu de 1997 at 2006, quando, aps consulta, a comunidade escolar definiu a sua no continuidade. A parceria tinha como objetivo inicial corrigir o fluxo escolar dos alunos das sries iniciais do Ensino Fundamental, mas, no decorrer do processo, ampliou sua atuao para a gesto escolar e de sistema, inclusive com um cadastro prprio das informaes relativas educao, o Sistema Instituto Ayrton Senna de Informaes (SIASI). As escolas enviavam os dados para a Secretaria Municipal que os repassava ao SIASI. O municpio pagava uma taxa para colocar os dados neste sistema. Assim, dados sobre o desempenho dos alunos, frequncia dos alunos e professores e o cumprimento das metas dos alunos e dos professores eram repassados mensalmente e, portanto, os sistemas pblicos foram monitorados de perto pelo setor privado, para avaliar se estavam cumprindo as metas estabelecidas nos contratos.

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Outra questo importante que o material vem pronto, o professor precisa apenas executar. O IAS parte do diagnstico de que os professores no so capazes de planejar suas aulas, como podemos verificar na argumentao de Viviane Senna:Os materiais so fortemente estruturados, de maneira a assegurar que um mesmo professor inexperiente, ou com preparao insuficiente como o caso de muitos professores no Brasil seja capaz de proporcionar ao aluno um programa de qualidade, com elevado grau de participao dos alunos na sala de aula, na escola e na comunidade. (SENNA, 2000, p. 146).

importante mencionar tambm a renncia de receitas. As empresas repassam dinheiro para o Instituto Ayrton Senna e deixam de pagar impostos para repassar o dinheiro para o IAS. Alm de volumosas doaes, como ocorreu no Seminrio Educao Pblica de Qualidade para um Brasil Melhor, no 7 Frum Empresarial de Comandatuba:Em um momento onde a emoo tomou conta de todos, empresrios doaram a quantia de R$ 5.770.000,00 ao Instituto Ayrton Senna e LIDE EDH, em apenas 10 minutos de seminrio. Este valor recorde absoluto entre todas as edies do evento e ser utilizado em projetos para a recuperao do ensino pblico nos quatro cantos do Pas. Somente um empresrio, que preferiu o anonimato, doou R$ 600 mil. http://www.forumdoriassociados.com.br/noticias.asp4.

Outra questo importante o controle social, por ser uma instituio privada, conforme abordamos em texto anterior:[...] em consulta ao Tribunal, constatei que, se as dificuldades de controle do repasse pblico para as Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIP) grande, dado o volume de dados, a fiscalizao da renncia de receitas ainda maior. Existe apenas um setor do TCU em Braslia, a Secretaria de Macroavaliao Governamental (Semag), que analisa essas contas, mas apenas alguns casos so escolhidos para uma avaliao mais ampla com equipes multidisciplinares, [...]. (PERONI, 2006a, p. 128).

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Acesso em 15 de julho de 2008.

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Enfim, so muitas as questes e principalmente as consequncias para a gesto e para a democratizao da educao. Vivemos num perodo democrtico, mas est naturalizada a ideia de que no mais possvel a universalizao de direitos sociais e tambm que o parmetro de qualidade est no mercado. Neste sentido, as parcerias do sistema pblico de educao com o Instituto Ayrton Senna materializam bem a proposta, tanto do pblico no estatal, pois assim que o Instituto se considera, quanto do quase-mercado, pois o sistema pblico acaba assumindo a lgica de gesto proposta pelo setor privado. Questionamos o que significa o sistema pblico abrir mo de suas prerrogativas de ofertar educao pblica de qualidade e comprar um produto pronto, desde o currculo escolar, j que as aulas vm prontas e os professores no podem modificlas, at a gesto escolar ser monitorada por um agente externo, transformando os sujeitos responsveis pela educao em burocratas que preenchem muitos papis (PERONI, 2008). O que, inclusive, contraria a LDB, no que se refere gesto democrtica da educao:Art. 14. Os sistemas de ensino definiro as normas da gesto democrtica do ensino pblico na educao bsica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princpios: I - participao dos profissionais da educao na elaborao do projeto pedaggico da escola; II - participao das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. Art. 15. Os sistemas de ensino asseguraro s unidades escolares pblicas de educao bsica que os integram progressivos graus de autonomia pedaggica e administrativa e de gesto financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro pblico. (BRASIL, 1996).

Reivindicamos direitos sociais universais, porm a questo : quem tem o dever de assegur-lo? Entendemos que o poder pblico tem esse dever, mas para o neoliberalismo e a Terceira Via, o Estado no deve mais ser o executor, repassando essa tarefa, ou para o setor privado ou para o pblico, chamado no estatal, que o terceiro setor. As duas propostas acabam retirando os direitos j conquistados ou em processos de materializao. Portanto, avanamos mais na legislao do que no processo de implementao. Ressaltamos que o foco do debate no pode ser a oposio sociedade civil versus Estado, j que se trata de um processo de correlao de foras polticas em uma sociedade de classes. Portanto, a anlise da relao entre pblico e o

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privado mercantil, j que a proposta educativa do UNIBANCO no a mesma de movimentos sociais, como o MST ou de sindicatos, como o Projeto Integrar, do Sindicato dos Metalrgicos, e tantas propostas de luta por educao como parte da democratizao da sociedade. Entendemos que so projetos societrios em disputa (PERONI, 2009). Conclumos destacando, tambm, que a democratizao deve ser entendida como a no separao entre o econmico e o poltico, mas como a materializao de direitos e igualdade social.

RefernciasBRASIL, Ministrio da Administrao e Reforma do Estado (MARE). Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado. Braslia: 1995. BRASIL. Lei n. 394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educao Nacional. Braslia-DF: 1996. BUCHANAN, James; MCCORMICK Robert; TOLLISON, Robert. El analisis economico de lo politico: lecturas sobre la teoria de la eleccin publica. Madrid: Instituto de Estudios Economicos, 1984. GIDDENS, Antony. A Terceira Via: reflexes sobre o impasse poltico atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 2001. HAYEK, Friedrich. O caminho da servido. Rio de Janeiro: Livraria O Globo, 1983. MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo: De onde vem, para onde vai? So Paulo: SENAC, 2001. (srie Ponto Futuro, 6). OLIVEIRA, Joo Batista Arajo; CASTRO, Cludio de Moura (Orgs.). Ensino Fundamental & Competitividade Empresarial uma proposta para ao de governo. So Paulo: Instituto Herbert Levy, 1993. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90 crise e reforma. Via http://www.mare.gov.br/reforma, 3 jun., 1997. PERONI, Vera Maria Vidal. Poltica educacional e papel do Estado no Brasil dos anos 90. So Paulo: Xam, 2003. _______. Mudanas na configurao do Estado e sua influncia na poltica educacional. In: PERONI, V. M. V.; BAZZO, V. L.; PEGORARO, L. (Org.) Dilemas da educao brasileira em tempos de globalizao neoliberal: entre o pblico e o privado. Porto Alegre: EdUFRGS, 2006.

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Referncias Virtuaishttp://www.forumdoriassociados.com.br/noticias.asp http://senna.globocom/institutoayrtonsenna/) http://www.ufrgs.br/faced/peroni

Recebimento em: 04/04/2010. Aceite em: 09/04/2010.

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O financiamento da Educao estatal no Brasil: desafios para sua publicizaoThe finance of state Education in Brazil: some challenges for its publicizationNicholas Davies1

ResumoEste trabalho pretende oferecer um panorama de alguns desafios do financiamento da educao, particularmente da educao oferecida pelos governos. Sero abordados os seguintes aspectos: (1) a vinculao constitucional de recursos mnimos para a educao estatal, (2) o impacto da poltica fiscal/econmica do Governo Federal sobre as receitas vinculadas MDE, (3) o no cumprimento dessa exigncia constitucional pelas diferentes esferas de governo (federal, estadual e municipal) e sua impunidade, (4) o papel desempenhado pelos rgos fiscalizadores (os Tribunais de Contas) dessa aplicao, (5) a desigualdade de recursos disponveis para a educao nas trs esferas de governo, (6) o significado e implicaes do FUNDEF e do FUNDEB.Palavras-chave: Financiamento da educao. Legislao educacional. Brasil.

AbstractThis paper aims at providing a synthetic overview of some of the old and new challenges of education financing in Brazil, particularly that offered by governments. The following aspects will be dealt with: (1) the constitutional obligation of a minimum investment of tax revenue in State education, (2) the impact of the federal government fiscal/ economic policy on revenue linked to the maintenance and development of education (MDE), a concept with a specific legal meaning, (3) the non-compliance of said constitutional requirement by different levels of government (federal, State and municipal governments) and its non-punishment, (4) the role of inspecting bodies in this enforcement and, in particular, the varied interpretations of the law by the Audit Offices (bodies in charge of checking governments accounts), (5) the inequality of funds for education between the different levels of government (federal, state and municipal), (6) the meaning and implications of FUNDEF (The Fund for Maintenance and Development of Basic Schooling and Valorisation of Teaching Personnel) and FUNDEB for education in State and municipal governments and particularly for reducing the inequalities of funds between governments.Keywords: Education finance. Educational legislation. Brazil.

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Professor associado II da Faculdade de Educao Universidade Federal Fluminense. Doutor em Sociologia pela USP So Paulo, com tese sobre o pblico e o privado em educao. Investiga sobre o financiamento da educao , h 10 anos. bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, publicou, entre outros, Fundeb: a redeno da educao bsica (Autores Associados, 2008), Legislao educacional federal bsica (Cortez, 2004), O financiamento da educao estatal: novos ou velhos desafios? (Xam, 2004), O Fundef e as verbas da educao (Xam, 2001). Telefone: (21) 2717 9908. E-mail: [email protected] R. Educ. Pbl. Cuiab v. 19 n. 40 p. 229-245 maio/ago. 2010

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1. IntroduoEste texto pretende examinar de forma sinttica alguns desafios para a publicizao do financiamento da educao estatal no Brasil. Iniciamos com uma breve apreciao da natureza do Estado e de suas polticas e, em seguida, comentamos os percalos deste financiamento, como: 1) o impacto da inflao, sonegao fiscal, criao de impostos com o nome de contribuies, e da poltica fiscal/econmica do Governo Federal sobre as receitas vinculadas manuteno e desenvolvimento do ensino (MDE); 2) o no cumprimento dessa exigncia constitucional pelas diferentes esferas de governo (federal, estadual e municipal) e sua impunidade; 3) o papel desempenhado pelos rgos fiscalizadores dessa aplicao e, em particular, as variadas interpretaes adotadas pelos Tribunais de Contas sobre o clculo das receitas e despesas vinculadas MDE; 4) a desigualdade de recursos disponveis para a educao nas trs esferas de governo; 5) o significado e implicaes do Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magistrio (FUNDEF) e do Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da Educao (FUNDEB). Obviamente, tambm poderiam ser explorados muitos outros aspectos igualmente importantes, como o financiamento pblico s instituies privadas de ensino, atravs de mecanismos como iseno fiscal, emprstimos a fundo perdido, subsdios, salrio-educao, crdito educativo, Fundo de Financiamento ao Ensino Superior (FIES), o Programa Universidade para Todos (PROUNI), mas o limite de nmero de pginas impe uma seleo de apenas alguns. Antes de examinar tais aspectos, fundamental ter clareza sobre o carter do Estado brasileiro, que condiciona as polticas em geral, inclusive as educacionais. Ao contrrio do que dizem a Constituio e as autoridades, o Estado, ou o Poder Pblico, no esto a servio da coletividade, do bem comum, da sociedade, de todos, do Brasil. Numa sociedade desigual, capitalista ou no, o Poder Poltico atravessado por essa desigualdade. No s a reflete, como tende a ser instrumento de reforo dela. No faltam exemplos disso. A poltica fiscal/econmica, por exemplo, sempre privilegia, em maior ou menor grau, os interesses do capital, e no do trabalho. Isso ainda mais grave nos pases capitalistas dependentes, como o Brasil, em que os explorados e os oprimidos de todo tipo so pouco organizados e mobilizados para fazer valer seus interesses. Os nmeros do oramento indicam

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isso claramente. O Governo Federal gasta muito mais com juros e amortizao da dvida pblica (em outras palavras, com os bancos) do que com programas sociais, como o Bolsa-Famlia. Um exemplo a Lei de Responsabilidade Fiscal, que, entre outras coisas, limita os gastos com pessoal, mas no com o pagamento de tais juros e amortizaes. Entretanto, o Estado reflete no s tais interesses dominantes, mas tambm as contradies sociais (as lutas abertas ou ocultas) entre exploradores/privilegiados e explorados/oprimidos e por isso levado, at por razes de legitimao, a atender aos interesses dos explorados/oprimidos. Nesse sentido, as polticas estatais/governamentais podem adquirir certo carter pblico ao contemplar os interesses dos explorados. As polticas sociais so exemplos deste potencial pblico (bastante varivel) das polticas estatais/governamentais. Tal potencial ou dimenso pblica, por sua vez, depende da correlao de foras das classes populares/exploradas e das classes dominantes. Assim, se as classes populares/ exploradas estiverem organizadas e mobilizadas e se as classes dominantes ou os aparelhos burocrticos estiverem desorganizadas, ou se virem sem condies de negar concesses s classes populares, estas ltimas podero extrair do Estado uma parcela maior da riqueza social por ele extorquida na forma de impostos. Isso explica, pelo menos em parte, a constituio do chamado Estado de BemEstar Social em pases da Europa Ocidental, que significou a criao de direitos sociais e a expanso dos benefcios sociais. Este aspecto estrutural foi agravado pelo neoliberalismo, que procurou congelar e/ou reduzir gastos na rea dita social (sade, educao, saneamento bsico etc.), privatizar setores estatais mercantilizveis e, ao mesmo tempo, ampliar gastos pblicos para o pagamento de juros e amortizao da dvida estatal e de setores estratgicos para a ordem burguesa (Judicirio, militares, segurana pblica, Fazenda). As polticas educacionais refletem as desigualdade e contradies. O Governo Federal , embora detentor de uma maior fatia da arrecadao na comparao com Estados e Municpios, nunca se props a oferecer o ensino obrigatrio (inicialmente o ensino primrio e depois o fundamental) para todos, deixando tal responsabilidade a cargo de Estados e Municpios, geralmente menos privilegiados do que o Governo Federal . Isso explica a extrema desigualdade, existente ainda hoje, na educao oferecida pelas trs esferas de governo e que no foi/ser atenuada significativamente pelo FUNDEF, nem pelo FUNDEB.

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2. A vinculao de recursos e os seus percalosA vinculao constitucional de impostos , provavelmente, o aspecto mais importante da discusso sobre o financiamento da educao estatal. Sua histria composta de altos e baixos. Inserida pela primeira vez na Constituio Federal (CF) de 1934, obrigava a Unio (o Governo Federal) e os Municpios a aplicarem no mnimo 10% da receita de impostos na educao, sendo que os Estados e Distrito Federal, 20%. Entretanto, logo esta vinculao foi suprimida pela Constituio imposta pela ditadura de Getlio Vargas, em 1937, s sendo restabelecida, aps o fim da ditadura varguista, pela CF de 1946. Vinte anos depois, no entanto, a ditadura militar instalada em 1964 iria suprimir novamente essa obrigatoriedade, com a Constituio elaborada em 1967 por um Congresso dcil ditadura. Embora a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, restabelecesse a vinculao de 20% da receita tributria no caso dos Municpios, as demais esferas de governo (federal e estadual) deixaram de ser obrigadas a aplicar um percentual mnimo dos impostos em educao, desvinculao esta apontada como uma das razes para a deteriorao da educao pblica no perodo e o consequente favorecimento da iniciativa privada. O restabelecimento da vinculao s foi acontecer em 1983, com a Emenda Constitucional do Senador Joo Calmon, que fixou o percentual mnimo de 13%, no caso da Unio, e 25%, no caso dos Estados, Distrito Federal e Municpios. A CF de 1988 manteve o percentual dos Estados, Distrito Federal e Municpios, porm ampliou o da Unio, de 13%, para 18%. As Constituies Estaduais de 1989 e as Leis Orgnicas dos Municpios, de 1990, por sua vez, ou mantiveram os percentuais da CF de 88 ou ampliaram-nos para 30% (So Paulo, por exemplo) ou 35% (Mato Grosso). interessante observar a coincidncia quase total entre a vinculao (1934-37, 1946-1967, 1984 at hoje) e perodos relativamente democrticos e a desvinculao e perodos autoritrios (1937-45, 1964-85), o que permite inferir que a democratizao da educao estatal, no sentido de garantia constitucional do seu financiamento, parece guardar estreita relao com a existncia de certa liberdade de expresso da sociedade. No entanto, preciso lembrar que nos democrticos anos 90 muitos governos conseguiram reduzir o percentual mnimo fixado nas Constituies Estaduais e Leis Orgnicas, sem falar na desvinculao parcial e provisria promovida por iniciativa dos governos federais de 1994 at hoje. Quando o percentual no foi alterado por emenda constitucional ou Aes Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs), movidas pelos governantes, estes contaram com a interpretao dos TCs, de que o percentual mnimo era o fixado na CF, no o maior da Constituio Estadual, como foi o caso dos TCs de Mato Grosso, Piau, e Rio de Janeiro.

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Entretanto, o avano dessa vinculao foi e minado por uma inflao astronmica (antes de 1994), uma sonegao fiscal gigantesca (permanente), facilitada pela corrupo generalizada dos rgos fiscalizadores, e por manobras fiscais ou medidas de poltica fiscal/econmica dos governos. O Governo Federal, por exemplo, vem diminuindo a proporo da receita total destinada educao mediante artifcios, como a criao ou ampliao de contribuies que, por no serem definidas juridicamente como impostos, no entram no cmputo dos recursos vinculados MDE. Um exemplo recente foi a Contribuio Provisria sobre Movimentao Financeira. Outra medida prejudicial foi a desvinculao (provisria!), por emendas constitucionais, de 20% dos impostos e contribuies em mbito federal, para constituir em 1994 o Fundo Social de Emergncia, posteriormente transformado em Fundo de Estabilizao Fiscal (FEF), que subtraiu dezenas de bilhes de Reais da educao. interessante observar que o Art. 212 da CF (que fixa os percentuais mnimos) no foi alterado, mas o volume de recursos (pelo menos em termos proporcionais) para a educao acabou sendo diminudo por tais emendas constitucionais, inseridas no Ato das Disposies Constitucionais Transitrias. Tambm a educao de Estados, Distrito Federal e Municpios foi prejudicada pelo Fundo Social de Emergncia e pelo FEF em consequncia da diminuio da receita do FPE (Fundo de Participao dos Estados) e FPM (Fundo de Participao dos Municpios), ambos formados por dois impostos federais (Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados) e destinados aos Estados, Distrito Federal e Municpios, na proporo de 21,5% (FPE) e 22,5% (FPM) da receita total. Embora o FEF tenha sido extinto em dezembro de 1999, a educao em mbito federal continuou sendo prejudicada, pois em maro de 2000 foi aprovada nova Emenda Constitucional (EC) criando a Desvinculao de Receita da Unio (DRU), que reproduziu parte da Emenda do FEF e desvinculou 20% dos impostos federais, o que significou concretamente que o Governo Federal s continuou sendo legalmente obrigado a aplicar 14,4% da receita de impostos em MDE, e no 18%. O prejuzo continuou at 2007, com a aprovao da EC 42, iniciativa do governo Lula, prejuzo este que continuaria at 2011, em consequncia da prorrogao da DRU pela EC 56, em dezembro de 2007, tambm promovida pelo governo Lula. Com a EC 59, sancionada em novembro de 2009, a DRU deixar de desvincular recursos da educao, inicial e parcialmente em 2009 e definitivamente em 2011. De qualquer maneira, o prejuzo causado por estas desvinculaes ter sido de dezenas de bilhes de reais, de 1994 a 2011. Alm destes prejuzos, a educao tem sido prejudicada pelo fato de muitos governos no aplicarem o montante vinculado MDE. Em mbito federal, Jacques Velloso registra que a emenda Calmon foi flagrantemente violada desde

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seu estabelecimento em 1983, em vez dos 13% a Unio aplicou apenas 4,4% da sua receita de impostos. O oramento para 1984, por sua vez, previa despesas em MDE correspondentes a algo em torno de apenas 5% da receita de impostos da Unio (VELLOSO, 1988b, p. 360). No Estado do Rio de Janeiro, os estudos que realizei sobre os gastos em MDE, tanto do governo estadual quanto de 15 prefeituras, constatou o no cumprimento da exigncia de aplicao do percentual mnimo. Por exemplo, o governo estadual deixou de prever mais de R$600 milhes em MDE, em 1997 (DAVIES, 2000), assim como a prefeitura do Rio deixou de aplicar mais de R$4 bilhes devidos legalmente em MDE, de 1998 a 2005 (DAVIES, 2006).

3. A pouca confiabilidade dos rgos fiscalizadoresA fragilidade da vinculao agravada pelo fato de os rgos encarregados de fiscalizar as contas dos governos (os Tribunais de Contas e o Poder Legislativo) e de velar pelo cumprimento das leis (os Ministrios Pblicos) terem eficcia e/ou confiabilidade limitadssima, para no dizer nula. Os Tribunais de Contas (TCs) so rgos auxiliares do Poder Legislativo e so dirigidos por conselheiros nomeados segundo critrios polticos, a partir de acordos entre o executivo e os representantes do povo (deputados e vereadores). Isso significa que as contas dos governos tendem a ser avaliadas principalmente ou quase exclusivamente segundo critrios de afinidade entre os TCs e os governos, no necessariamente de acordo com a lei ou normas tcnicas, muitas vezes (talvez quase sempre) utilizadas seletivamente. Alm dessa pouca confiabilidade, os TCs adotam as interpretaes mais variadas sobre o que consideram receitas e despesas vinculadas MDE, muitas vezes divergentes do esprito e mesmo da letra das disposies legais. Em estudo que iniciamos em 1998 sobre os procedimentos adotados pelos TCs de todos os Estados brasileiros (so 26 tribunais estaduais, um do Distrito Federal e 6 municipais) e que estamos atualizando para 2009, constatamos muitas diferenas e divergncias entre eles, que tm resultado em diminuio dos recursos vinculados MDE. O TC de Mato Grosso, por exemplo, aceita que o percentual mnimo estadual seja de 25%, embora a Constituio Estadual estipule 35% e a LDB determine que o percentual mnimo o fixado nas CEs. Tambm o TC de Mato Grosso, estranhamente, vem aceitando, desde 2004, a excluso do imposto de renda dos servidores estaduais da base de clculo do percentual mnimo, adotada pela Secretaria Estadual de Fazenda. Tal excluso diverge das orientaes do MEC, da Secretaria do Tesouro Nacional e de todos os Tribunais de Contas, cujos procedimentos analisei at hoje.

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Outra divergncia significativa est no clculo das receitas que devem ser computadas como acrscimos ao mnimo, como as oriundas de convnios, salrioeducao e ganhos (a diferena positiva entre a contribuio e a receita) com o FUNDEF ou o FUNDEB. Enquanto alguns TCs verificam se tais receitas so acrescidas ao montante correspondente ao percentual mnimo, calculado com base apenas na receita de impostos, outros aceitam ou aceitaram incorretamente a sua incluso na base de clculo, como os do Municpio e do Estado do Rio de Janeiro. Tambm constatamos divergncia nas interpretaes dos TCs sobre o que consideram despesas legais em MDE. No Municpio do Rio de Janeiro, os gastos com os aposentados, equivalente a cerca de 40% do total despendido com o pessoal da educao, tm sido computados pela prefeitura como MDE e aceitos, pelo menos por vrios anos, pelo TCM, o mesmo acontecendo com o TC de Mato Grosso. Entretanto, alguns TCs (Par, Maranho e Paraba) adotam uma interpretao contrria, a correta a nosso ver, uma vez que os aposentados no mais contribuem para manter e desenvolver o ensino, finalidade a que se destina o percentual mnimo. Os gastos com os inativos vm crescendo de modo acelerado e representam, em alguns Estados, de 30 a 40% dos gastos com todo o pessoal da educao, o que significa concretamente a diminuio de recursos legais para as demais despesas da educao, dificultando, assim, a manuteno e, sobretudo, a expanso da educao estatal, pelo menos com base no percentual mnimo. As irregularidades na classificao das despesas em MDE tm sido tantas que dois especialistas no assunto (Velloso e Melchior) dedicaram longas pginas discusso e definio menos imprecisa delas e o captulo dos recursos financeiros na LDB de 1996, reservando dois extensos artigos para definir, nos Art. 70 e 71, o que so e no so despesas em MDE. Porm, apesar do avano legal, persistiram alguns problemas, pois a despesa com os inativos no est explicitada em nenhum dos artigos, permitindo-se que governos e TCs adotassem as interpretaes que mais lhes conviesse. Mesmo a pormenorizao das despesas admissveis como MDE, num documento legal no resolveria um problema aparentemente insolvel: a maquiagem contbil. Por exemplo, um governo pode lanar na documentao contbil uma despesa como se fosse da educao, mas que de outro setor. Ou, ento, na sua prestao anual de contas, declarar como gastos o montante empenhado em MDE, porm no exerccio seguinte cancelar uma parte destes empenhos. Embora estudiosos do assunto estejam atentos para essa questo um exemplo o parecer 26, de dezembro de 1997, do Conselho Nacional de Educao - muitos TCs no parecem fiscalizar essa manobra contbil. Um problema adicional que, mesmo quando os TCs adotam procedimentos corretos de verificao das receitas e despesas vinculadas MDE, os seus

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pareceres, na prtica, no tm nenhuma fora de lei, pois, segundo o art. 31 da Constituio Federal, podem, no caso das contas municipais, serem derrubados por 2/3 dos vereadores. Ora, como a relao entre os governantes e os chamados representantes do povo de toma l, d c, ou, em outras palavras, troca de favores, tais representantes tendem a aprovar as contas, mesmo quando elas foram rejeitadas pelos TCs. Embora a CF preveja a interveno nos Estados e Municpios que no cumpram a lei, o ex-senador Joo Calmon, em depoimento prestado Comisso Parlamentar de Inqurito, instalada em 1988 para averiguar a aplicao do percentual mnimo, informava que isso nunca teria acontecido, embora a violao fosse generalizada. Se os TCs e os rgos legislativos no so confiveis, resta o Ministrio Pblico, incumbido, segundo o Art. 127 da CF, da defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis. A minha experincia no Rio de Janeiro no tem sido animadora, pois desde 1997 encaminhei mais de 20 denncias contra o governo estadual e 15 prefeituras e at hoje a nica resposta que tenho a de que o processo encontra-se em exame ou aguardando resposta do governo denunciado. Poderamos pensar que tamanha morosidade se explicaria por excesso de trabalho do Ministrio. Entretanto, como ele demonstra bastante agilidade em outros casos, sobretudo quando os seus interesses corporativos ou dos governantes esto em jogo, podemos supor que o excesso de trabalho uma hiptese remotssima.

4. A desigualdade de recursos entre os governosA discusso sobre o financiamento da educao estatal no ficaria completa se no relacionasse as responsabilidades educacionais das diferentes esferas de governo (o Governo Federal, o do Distrito Federal, os 26 governos estaduais e os de 5.564 municpios) com a sua disponibilidade de recursos. Desde a Independncia brasileira, em 1822, at hoje, sempre houve uma grande discrepncia entre essas responsabilidades e a disponibilidade de recursos dos governos. O governo central, por exemplo, embora detentor de uma maior parcela das receitas governamentais, nunca assumiu constitucionalmente a obrigao de oferecer educao bsica toda populao, deixando-a a cargo dos Estados e Municpios, geralmente menos privilegiados do que o governo central. O que mais chama ateno nessa questo a enorme desigualdade de recursos legalmente disponveis em cada esfera de governo e tambm entre governos de uma mesma esfera (no mbito dos Municpios e dos Estados) e suas responsabilidades, mesmo com a redistribuio tributria promovida pela CF de 1988 em favor

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dos Estados e Municpios e com certa equalizao de recursos para o ensino fundamental no mbito estadual, promovida pelo FUNDEF desde 1998, e para a educao bsica, pelo FUNDEB, desde 2007 (comentados mais adiante). A distribuio do salrio-educao, baseada na estimativa do FNDE para 2007, confirma essa enorme desigualdade entre as regies e Estados. A receita por matrcula variou do mnimo de R$12, no Maranho, ao mximo de R$238, no Distrito Federal.

5. Uma polmica equivocada: mais recursos X sua melhor utilizaoUma polmica equivocada e antiga ope, de um lado, os que defendem mais verbas e, de outro, os que advogam sua melhor aplicao, argumentando que elas j so suficientes. Um exemplo dessa polmica so os projetos de lei para o Plano Nacional de Educao (PNE), encaminhados em 1998, um pelo MEC e o outro por entidades da sociedade civil, sobretudo sindicatos de profissionais da educao, reunidos no Congresso Nacional de Educao (CONED), em Belo Horizonte, em novembro de 1997. O projeto do MEC previa uma srie de metas para 10 anos, porm, estranhamente no definia aumentos dos gastos governamentais. Por ele, bastaria a aplicao do percentual mnimo dos impostos e a racionalizao no uso dos recursos para a consecuo das metas, porm em nenhum momento estimou os custos de tais metas e o montante de recursos necessrios. Embora seja verdade que a diminuio ou eliminao dos desperdcios dos governos possibilitaria um volume significativo de recursos adicionais para o cumprimento de tais metas, era pouco provvel a concretizao das metas do MEC apenas com o uso judicioso dos recursos constitucionalmente vinculados educao. Se at hoje as prticas dos governantes tm deixado muito a desejar em termos do uso judicioso desses recursos, por que razo mudariam a partir do Plano? Como o Plano no apontava elementos concretos que permitissem esperar a aplicao correta e racional dos recursos, as suas metas careciam de fundamentao por no definirem a origem estatal dos recursos adicionais para a sua realizao. Isso talvez se explique porque o Governo Federal, na poca, seguindo o receiturio neoliberal, via a educao como responsabilidade de todos e no apenas do Estado (tido como incompetente e ineficiente), o que significa transferir famlia, aos meios de comunicao de massa, s organizaes no governamentais, leigas ou confessionais e ao da iniciativa privada, papis crescentes na oferta da educao que seriam de responsabilidade estatal. Ao contrrio do MEC, o Plano das entidades participantes do CONED, autointitulado Proposta da Sociedade Brasileira, previa aumento significativo (10% do PIB) dos recursos pblicos ao longo de dez anos. Ora, conforme o noticirio revela

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diariamente, no basta aumentar os recursos, pois eles podem ser dilapidados pelos governantes e pela mquina estatal, devido m gesto, superfaturamentos e tantas outras prticas ilcitas. Em outras palavras, o simples aumento dos recursos no resultar necessariamente no atendimento das metas quantitativas e qualitativas do plano, uma vez que a corrupo, o desperdcio, a burocratizao e tantos outros males podem consumir grande parte do aumento das verbas. Ou seja, o financiamento tanto uma questo quantitativa (mais recursos) quanto qualitativa (sua melhor utilizao). A propsito, o Plano sancionado por FHC em 2001 (em vigor at o final de 2010) no previa aumento de recursos em consequncia dos vetos presidenciais, at hoje no derrubados por Lula, nem por sua base aliada (eficiente para outras coisas), criando, assim, um plano que no plano, pois no definiu a origem dos recursos para a consecuo das metas. Em outras palavras, o plano se tornou mera retrica.

6. O FUNDEF: desenvolvimento do ensino ou redistribuio da misria?Criado pela Emenda Constitucional n. 14 e regulamentado pela Lei 9.424, em dezembro de 1996, o FUNDEF vigorou de 1 de janeiro de 1998 a 31 de dezembro de 2006. Apesar de prometer desenvolver o ensino fundamental e valorizar o magistrio, no trouxe recursos novos para o sistema educacional brasileiro como um todo, pois apenas redistribuiu, em mbito estadual, entre o governo estadual e os municipais, uma parte dos impostos j vinculados MDE, antes da criao do FUNDEF, com base no nmero de matrculas no ensino fundamental regular (EFR) das redes estaduais e municipais. A consequncia dessa lgica que os ganhos de alguns governos significaram, ao mesmo tempo, a perda para outros, uma vez que o dinheiro novo (a complementao federal) para o sistema educacional como um todo foi insignificante. Essa mesma lgica se aplica ao FUNDEB. O princpio bsico do FUNDEF foi o de disponibilizar um valor anual mnimo nacional por matrcula no ensino fundamental de cada rede municipal e estadual, de modo a possibilitar o que o Governo Federal considerasse suficiente para um padro mnimo de qualidade, nunca definido, embora previsto na Lei 9.424. Como o nmero anual de dias letivos de 200 e o mais alto valor mnimo anual fixado, para 2006, foi de R$ 730,38 (para a 5 a 8 sries da zona rural e educao especial nas zonas rural e urbana), isso significou R$ 3,65 por dia letivo, por aluno, para cobrir todos os custos da educao fundamental! Embora o FUNDEF seja uma iniciativa do Governo Federal, foi minscula e decrescente (em termos percentuais e reais) sua contribuio guisa de complementao para

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os FUNDEFs estaduais que, formados por 15% de alguns impostos (ICMS, FPE, FPM, IPI-exportao e compensao financeira da Lei Complementar 87/96) do governo estadual e dos municipais existentes em cada Estado, no conseguissem alcanar este valor mnimo. Em 2006, a complementao, de cerca de R$ 300 milhes, correspondeu a menos de 1% da receita nacional, de R$ 35,6 bilhes. Alm de dar uma contribuio irrisria, o Governo Federal (tanto na gesto de FHC quanto na de Lula) no cumpriu o artigo da lei do FUNDEF, que estabelecia o critrio de clculo da sua complementao. Essa irregularidade, reconhecida no relatrio do GT criado pelo MEC em 2003 (BRASIL. MEC, 2003), significou que ele deixou de contribuir com mais de R$ 12,7 bilhes, devidos de 1998 a 2002. Como essa irregularidade continuou no governo Lula, de 2003 a 2006, a dvida do Governo Federal para com o FUNDEF, de 1998 a 2006, deve ter superado R$ 25 bilhes! verdade que essa complementao, ainda que ilegal e muito aqum das possibilidades financeiras do Governo Federal e das necessidades educacionais da populao, contribuiu para diminuir a misria de recursos educacionais dos Municpios e Estados mais pobres do Brasil (sobretudo de alguns do Nordeste), assim como a redistribuio de recursos do FUNDEF, entre o governo estadual e os municipais, promoveu uma reduo das desigualdades de recursos dentro de cada Estado (porm, no de um Estado para outro). Entretanto, estes pontos positivos precisam ser vistos com cautela, pois, tendo em vista a forte tradio patrimonialista e privatista do Estado brasileiro e o baixo grau de organizao, conscientizao e mobilizao da sociedade, no h nenhuma garantia de que os recursos extras, trazidos pela complementao ou pela redistribuio em mbito estadual, tenham sido canalizados, na mesma proporo, para a melhoria da remunerao dos profissionais da educao e das condies de ensino. A propsito do percentual mnimo de 60% para a remunerao dos profissionais do magistrio no ensino fundamental, a suposio da legislao e de seus autores era que isso garantiria a valorizao, nunca definida, nem no FUNDEF, nem no FUNDEB. Se entendermos valorizao, sobretudo, como melhoria salarial, a suposio bastante equivocada. Os comentrios a seguir valem tambm para o FUNDEB, com a nica diferena de que os 60% se destinam a profissionais do magistrio na educao bsica. Um que at hoje o MEC no divulgou qualquer estudo, demonstrando que este mnimo resulta na valorizao. um equvoco tambm, porque os dois fundos tomam como referncia apenas uma parte dos recursos vinculados, no a totalidade deles. No FUNDEF, um grande nmero e percentual dos impostos ficavam de fora. No FUNDEB isso diminui, mas mesmo assim uma boa parte continua de fora (todos os impostos municipais e 5% de todos os impostos que compem o FUNDEB).

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Outro equvoco que, como o mecanismo dos fundos idntico, ou seja, os ganhos de uns governos significaro perdas para outros, na mesma proporo, com exceo daqueles onde a complementao superar as perdas nesta redistribuio. Assim, como a receita dos governos que perderem ser inferior contribuio que fizeram para os dois fundos, 60% sero calculados sobre uma receita menor e, portanto, as possibilidades (legais, pelo menos) destes governos melhorarem os salrios sero nulas ou remotas. S aqueles que ganharem tero mais condies objetivas de melhorar os salrios, o que no significa que o faro. Por fim, os governos podem comodamente se limitar aos 60%, transformando o mnimo em mximo, como de sua predileo nestes casos.

7. FUNDEB: a redeno da educao bsica?Uma alternativa ao FUNDEF foi apresentada por um grupo de deputados do PT (Partido dos Trabalhadores), atravs da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 112, em 1999, criando o FUNDEB (BRASIL. Cmara dos Deputados, 1999), com o discurso de que iria corrigir muitos dos problemas do FUNDEF, e foi includa no programa do governo Lula, em 2002. Esta proposta sofreu muitas alteraes at ser encaminhada Cmara dos Deputados, como a PEC n. 415, em junho de 2005, posteriormente modificada pela Cmara e tambm pelo Senado, sendo finalmente promulgada como a Emenda Constitucional n. 53, em dezembro de 2006. As diferenas bsicas do FUNDEB em relao ao FUNDEF so: 1) composto por um nmero maior de impostos estaduais e federais transferidos a governos estaduais e prefeituras; 2) o percentual maior, de 20%, e no de 15%, como no FUNDEF; 2) todas as matrculas iniciais da educao bsica as municipais na educao infantil (EI), ensino fundamental regular (EFR) e no ensino fundamental na educao de jovens e adultos (EJA) e as estaduais no EF, ensino mdio (EM) e EJA - so consideradas na distribuio dos recursos e no apenas as do EFR, como no FUNDEF; (3) o Governo Federal far uma complementao para garantir que o valor mnimo nos FUNDEBs estaduais alcance o mnimo nacional; 4) pelo menos 60% do FUNDEB se destinariam remunerao dos profissionais do magistrio da educao bsica, ao contrrio do FUNDEF, que previa, atravs da Lei n. 9.424, pelo menos 60% do FUNDEF para a remunerao dos profissionais do magistrio no ensino fundamental.