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anistiapolticaejustiadetransio

revista

Governo Federal Ministrio da Justia Comisso de Anistia

Conselho Editorial Antnio Manuel Hespanha (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra - Portugal), Bruna Peyrot (Consulado Geral - Itlia), Carlos Crcova (Universidade de Buenos Aires - Argentina), Cristiano Otvio Paixo Arajo Pinto (Universidade de Braslia), Dani Rudinick (Universidade Ritter dos Reis), Daniel Aaro Reis Filho (Universidade Federal Fluminense), Deisy Freitas de Lima Ventura (Universidade de So Paulo), Eduardo Carlos Bianca Bittar (Universidade de So Paulo), Edson Cludio Pistori (Memorial da Anistia Poltica no Brasil), Ena de Stutz e Almeida (Faculdades de Vitria), Flvia Carlet (Projeto Educativo Comisso de Anistia), Flavia Piovesan (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo), Helosa Starling (Universidade Federal de Minas Gerais), Jaime Antunes da Silva (Arquivo Nacional) , Jessie Jane Vieira de Sousa (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Joaquin Herrera Flores (Universidade Pablo de Olavide Espanha), Jos Reinaldo de Lima Lopes (Universidade de So Paulo), Jos Ribas Vieira (Pontica Universidade Catlica do Rio de Janeiro), Marcelo Dalms Torelly (Coordenador-Geral), Maria Aparecido Aquino (Universidade de So Paulo), Paulo Abro Pires Junior (Presidente), Phil Clark (Universidade de Oxford Inglaterra), Ramon Alberch Fugueras (Arquivo Geral da Catalua - Espanha), Rodrigo Gonalves dos Santos (Comisso de Anistia), Sandro Alex Simes (Centro Universitrio do Estado do Par), Sean OBrien (Universidade de Notre Dame - Estados Unidos), Sueli Aparecida Bellato (Comisso de Anistia)

REVISTA ANISTIA POLTICA E JUSTIA DE TRANSIO Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Ministro da Justia Tarso Genro Secretrio-Executivo Luiz Paulo Teles Barreto Presidente da Comisso de Anistia Paulo Abro Pires Junior Vice-presidente da Comissso de Anistia Sueli Aparecida Bellato Coordenador Geral da Revista Marcelo D. Torelly

As opinies contidas nos textos desta revista so de responsabilidade exclusiva de seus autores, no caracterizando posies ociais do Ministrio da Justia, salvo se expresso em contrrio. As fotos contidas nesta edio foram obtidas junto Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, ao Arquivo do Senado Federal, ao Arquivo Nacional e aos acervos da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia e do Memorial da Anistia Poltica no Brasil. Agradecemos ao International Center for Transitional Justice, ao Ministrio Pblico Federal e Biblioteca do Ministrio da Justia por suas contribuies a este volume. Os nomes contidos na capa desta edio so de anistiados polticos pela Comisso de Anistia e constituem uma justa homenagem e todos que lutaram pela democracia no Brasil

Conselho Tcnico Aline Sueli de Salles Santos, Ana Maria Guedes, Ana Maria Lima de Oliveira, Andr Amud Botelho, Daniela Frantz, Eduardo Miranda Siu, Egmar Jos de Oliveira, Elza Carolina de Oliveira Martini, Henrique de Almeida Cardoso, Joaquim Soares de Lima Neto, Jos Carlos M. Silva Filho, Juvelino Jos Strozake, Kelen Meregali Model Ferreira, Luana Andrade Bencio, Luciana Silva Garcia, Marcia Elayne Berbich de Moraes, Mrcio Gontijo, Mrcio Rodrigo P.B. Nunes Cambraia, Marina Silva Steinbruch, Marleide Ferreira Rocha, Muller Luiz Borges, Narciso Fernandes Barbosa, Paula Danielli Rocha Nogueira, Paulo Abro Pires Junior, Prudente Jos Silveira Mello, Roberta Camineiro Baggio, Roberta Vieira Alvarenga, Roberto Flores Reis, Rodrigo Gonalves dos Santos, Sueli Aparecida Bellato, Tatiana Tannus Grama, Vanderlei de Oliveira, Vincius Marcelus Rodrigues Nunes, Virginius Jos Lianza da Franca, Vanda Davi Fernandes de Oliveira.Projeto Grco Ribamar Fonseca

Nesta edio, trabalharam como revisores dos textos aprovados para publicao os Conselheiros Tcnicos e Editoriais abaixo colacionados: Daniela Frantz, Elza Carolina de Oliveira Martini, Flvia Carlet, Kelen Meregali Model Ferreira, Marcelo D. Torelly, Rodrigo Gonalves dos Santos, Sueli Aparecida Bellato, Tatiana Tanns Grama, Vanda Davi Fernandes de Oliveira

Revista Anistia Poltica e Justia de Transio / Ministrio da Justia. N. 1 (jan. / jun. 2009). -- Braslia : Ministrio da Justia , 2009. Semestral. Esta a primeira edio deste ttulo. ISSN 2175-5329 1. Anistia, Brasil. 2. Justia de Transio, Brasil. I. Brasil. Ministrio da Justia (MJ). CDD 341.5462 Ficha catalogrca elaborada pela Biblioteca do Ministrio da Justia

Reviso Final Alessandro Mendes Capa inspirada no trabalho original de AeMHardyVoltz

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APRESENTAO

As reconstrues democrticas so um dos maiores legados do Sculo XX. Desde a vitria dos aliados sobre o Eixo na Segunda Guerra Mundial, passando pelas experincias autoritrias da Amrica Latina, a queda do bloco comunista e as transies ps-coloniais na frica e sia, pudemos ver, literalmente, centenas de pases abandonarem modelos autoritrios e opressivos e passarem a construir uma vasta gama de tipos de democracia. Dessas variadas experincias, tiram-se variadas lies, e talvez a mais importante delas que, matizes ideolgicas a parte, a democracia e o Estado de Direito no so valores discutveis na atualidade. A combinao da certeza de que a democracia e o Estado de Direito esto acima das vontades e paixes ideolgicas, com o fato incontornvel de que cada povo possui meios de vida e culturas prprios, que enseja a grande riqueza5

FONTE: ARQUIVO NACIONAL E SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDNCIA DA REPBLICA

do debate que esta Revista passa a trazer semestralmente ao Brasil. Os estudos sobre Justia de Transio combinam o expertise de variadas reas do conhecimento para analisar como os pases migram de um regime poltico para outro, mais notadamente (embora no exclusivamente) como promove-se a mudana de um regime no democrtico para um regime democrtico. O prprio termo Justia de Transio, datado da dcada de 1990, e, portanto, posterior a muitas das transies que analisa, um pouco produto de algumas certezas que a comunidade internacional pde chegar, aps os horrores que vivenciou. Reete a necessidade de uma compreenso complexa dos fenmenos, que no procure as divises, mas sim as continuidades. Que no separe o Direito local e o Direito Internacional como se duas coisas distintas fossem,6

que no confunda o Direito Positivo com o Direito Legtimo,

e que, sobremaneira, comprometa-se com a preservao da dignidade humana acima de qualquer outro valor. Esta revista, a primeira em lngua portuguesa a dedicar-se exclusivamente ao tema das transies polticas, procurar sempre trazer o que h de mais recente nos estudos sobre o tema, publicando pesquisas, relatrios e documentos sobre as conguraes que assumem as polticas de verdade e memria, de reparao, de justia e de reformas das instituies nos mais diversos locais, como forma de, a um s tempo, cotejar a experincia brasileira, ensejando seu aprofundamento democrtico, e contribuir para a divulgao de prticas exitosas empreendidas no pas. Neste primeiro volume, com contribuies oriundas de diversos pases, temos a oportunidade de apresentar um dossi sobre o que justia de transio, uma entrevista com o Coordenador-Adjunto para as Amricas do International Center for Transicional Justice (ICTJ), o relatrio sobre a matria emitido pelo Secretrio-Geral das Naes Unidas para o Conselho de Segurana da entidade, o Parecer do ICTJ sobre a questo dos crimes de lesa-humanidade e a possibilidade de anistia e prescrio dos mesmos, e ainda uma srie de estudos focais sobre a Anistia e seus desdobramentos no Brasil. Ainda, trazido a pblico o primeiro material ocial sobre o Memorial da Anistia Poltica no Brasil, a ser inaugurado no prximo ano em Belo Horizonte, em parceria com a7

Universidade Federal de Minas Gerais. O processo de audincias pblicas, reunies setoriais e eventos especiais que vm discutindo este empreendimento, que marca de forma indelvel o amadurecimento de nossa democracia, seguiro ainda durante todo o semestre. Esperamos que a Revista Anistia Poltica e Justia de Transio possa contribuir para a contnua expanso que esta rea de estudos vem experimentando, na certeza de que o debate pblico a alma da democracia, e que apenas pela depurao continua de saberes e experincias que se poder, efetivamente, melhorar e estruturar as polticas pblicas que visam superar toda e qualquer forma de autoritarismo, explcita ou velada, que ainda possa pairar sobre o regime democrtico que pretendemos sempre melhorar.

Braslia, agosto de 2009 30 anos de luta pela Anistia no Brasil

Tarso GenroMinistro da Justia

Paulo Abro Pires JuniorPresidente da Comisso de Anistia

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SUMRIO12 PREFCIO JUSTIA DE TRANSIO NO BRASIL: O PAPEL DA COMISSO DE ANISTIA DO MINISTRIO DA JUSTIA ENTREVISTA PARA UM PANORAMA GLOBAL SOBRE A JUSTIA DE TRANSIO: JAVIER CIURLIZZA RESPONDE DOSSI: O QUE JUSTIA DE TRANSIO? PROMOVENDO A JUSTIA TRANSICIONAL EM SOCIEDADES PS-CONFLITO PAUL VAN ZYL JUSTIA TRANSICIONAL E A POLTICA DA MEMRIA: UMA VISO GLOBAL ALEXANDRA BARAHONA DE BRITO DOCUMENTOS A JUSTIA PENAL E O TRATAMENTO DE UM CONFLITO SEM FIM: A FRANA E O TRMINO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1944-2009) ALAIN BANCAUD ESPECIAL: MEMORIAL DA ANISTIA POLTICA DO BRASIL ARTIGOS ACADMICOS ARQUIVOS, ANISTIA POLTICA E JUSTIA DE TRANSIO NO BRASIL: ONDE OS NEXOS? GEORGETE MEDLEG RODRIGUES OS REFLEXOS DA JUDICIALIZAO DA REPRESSO POLTICA NO BRASIL NO SEU ENGAJAMENTO COM OS POSTULADOS DA JUSTIA DE TRANSIO ROBERTO LIMA SANTOS E VLADIMIR BREGA FILHO

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DEMOCRACIA E ANISTIA POLTICA: ROMPENDO COM A CULTURA DO SILNCIO, POSSIBILITANDO UMA JUSTIA DE TRANSIO RODRIGO FERRAZ DE CASTRO REMGIO

203 O PERDO E A RECONCILIAO COM O PASSADO EM HANNAH ARENDT E JACQUES DERRIDA ANTNIO LEAL DE OLIVEIRA 228 AS REPARAES POR VIOLAES DE DIREITOS HUMANOS EM REGIMES DE TRANSIO LUCIA HELENA ARANTES FERREIRA BASTOS 250 DIREITO MEMRIA COMO EXIGNCIA TICA UMA INVESTIGAO A PARTIR DA HERMENUTICA FILOSFICA DE HANS-GEORG GADAMER MARIANA PIMENTEL FISCHER PACHECO 272 OS MLTIPLOS SENTIDOS DA ANISTIA DANYELLE NILIN GONALVES 296 JUSTIA DE TRANSIO E INTEGRAO REGIONAL: O DIREITO MEMRIA E VERDADE NO MERCOSUL ANDR VERETA NAHOUM E JULIANA CARDOSO BENEDETTI 319 DOCUMENTOS

320 O ESTADO DE DIREITO E A JUSTIA DE TRANSIO EM SOCIEDADES EM CONFLITO OU PS-CONFLITO RELATRIO S/2004/616 DO SECRETRIO-GERAL AO CONSELHO DE SEGURANA DA ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS 352 PARECER TCNICO SOBRE A NATUREZA DOS CRIMES DE LESA-HUMANIDADE, A IMPRESCRITIBILIDADE E A PROIBIO DE ANISTIA JUAN MNDEZ E GILMA TATIANA RINCN COVELLI INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE 395 NORMAS EDITORIAIS11

PREFCIO

JUSTIA DE TRANSIO NO BRASIL:O PAPEL DA COMISSO DE ANISTIA DO MINISTRIO DA JUSTIA

Desde a redemocratizao, em consonncia com o que zeram diversos pases do mundo, o Brasil passou a adotar medidas variadas para lidar com o acervo autoritrio que fora impregnado em suas instituies e prticas pblicas e, igualmente, com o legado de violaes perpetradas em tal perodo em nome do Estado. Maior exemplo de tal esforo no h que o chamamento de uma Assembleia Constituinte, que permitiu ao pas alterar o ncleo normativo e axiolgico de sua matriz organizacional, de modo participativo e cidado. Entre a Lei de Anistia de 1979 e o atual momento, decorreram trinta anos. Nesse perodo, uma srie de aes de Estado e da sociedade civil buscaram a feitura de Justia em suas mais variadas formas. Neste ano de 2009, em que lanada esta Revista, muito mais que lembrar e celebrar os trinta anos da expedio de uma lei em si, celebram-se os trinta anos do nascedouro de uma nova fase da democracia brasileira, oriunda da luta social por democracia e justia. A Justia Transicional um ramo altamente complexo de estudo, que rene prossionais das mais variadas reas, passando pelo Direito, Cincia Poltica, Sociologia e Histria, entre outras, com vistas a vericar quais processos de Justia foram levados a cabo pelo conjunto dos poderes dos Estados nacionais, pela sociedade civil e por organismos internacionais para que, aps o Estado de Exceo, a normalidade democrtica pudesse se consolidar. Mais importante, porm, a dimenso prospectiva desses estudos, cuja aplicao em polticas pblicas de educao e justia serve para trabalhar socialmente os valores democrticos, com vistas incorporao pedaggica da experincia de rompimento da ordem constitucional legtima de forma positiva na cultura nacional, transformando o sofrimento do perodo autoritrio em um aprendizado para a no-repetio. Nesse sentido, parece altamente propcio aproveitar o momento em que lanada a primeira edio desta Revista para discutir, sucintamente, o papel que a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia vem cumprindo nesse contexto histrico. Destacando-se a complementaridade e a inter-relao existente entre as polticas pblicas desenvolvidas no Ministrio da Justia e aquelas levadas a cabo12

por outros rgos do Governo Federal, dos governos estaduais e da prpria sociedade civil.

PLENRIO DA COMISSO DE ANISTIA REUNIDO NO PALCIO DA JUSTIA, EM BRASLIA FONTE: COMISSO DE ANISTIA

RELAES INSTITUCIONAIS E DESENVOLVIMENTO DO DEBATE TRANSICIONAL NO BRASILPara alm de seu papel precpuo na implementao da poltica de reparao aos perseguidos polticos, a Comisso de Anistia tem procurado integrar esforos com os projetos Direito Memria e Verdade, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, Memrias Reveladas, da Casa Civil da Presidncia da Repblica, Memorial da Resistncia, do Governo do Estado de So Paulo, com as iniciativas da Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados, com as aes da Procuradoria da Repblica de So Paulo, com uma extensa rede de universidades pblicas e privadas no fomento pesquisa e desenvolvimento do tema, com partidos polticos e governos comprometidos com a histria e, principalmente, deslocando o mximo de sua institucionalidade para dar visibilidade s iniciativas realizadas pela sociedade civil organizada: entidades nacionais e internacionais de direitos humanos e de representao de diversos setores sociais, como a Unio Nacional dos Estudantes, a Associao Brasileira de Imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil e, especialmente, com as associaes e diferentes movimentos dos perseguidos polticos, anistiandos e anistiados do pas, civis e militares. Ainda, num esforo complementar ao empreendido pelo Ministrio das Relaes Exteriores e pelas cpulas do Mercosul, a Comisso de Anistia vem buscando aproximar horizontes com outros pases da Amrica Latina e do mundo. Importa referir a realizao, em novembro de 2008, no Arquivo13

Nacional do Rio de Janeiro, do I Encontro das Comisses de Reparao e Verdade da Amrica Latina, que reuniu representantes de nove pases do continente responsveis por medidas transicionais, num esforo indito de intercmbio de experincias e formao de uma agenda comum. Em parceira com a Agncia Brasileira de Cooperao do Ministrio das Relaes Exteriores e com o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, a Comisso de Anistia tambm tem efetivado amplo programa de intercmbio de informaes e experincias, bem como de capacitao e articulao, com agentes estatais e da sociedade civil de diversos pases. Tal esforo permitiu uma signicativa insero brasileira no cenrio internacional, com atividades de transferncia e recebimento de expertise realizadas, at agora, na Venezuela, Frana, El Salvador, Estados Unidos, Argentina, Portugal, Espanha, Colmbia e Reino Unido. Por m, a Comisso de Anistia tem procurado fomentar o debate pblico sobre os quatro grandes temas-chave da Justia de Transio: (i) a reforma das instituies para a democracia; (ii) o direito memria e verdade; (iii) o direito reparao e; (iv) o direito ao igual tratamento legal e Justia. O fomento ao debate pblico tem tornado cada vez mais transparente o funcionamento do processo de reparao, e o produto dos debates historicamente acumulados sobre a reforma das instituies que violaram direitos humanos no passado hoje um dos carros-chefe do Ministrio da Justia, com a consolidao do Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania (Pronasci), que alterou signicativamente o paradigma do trabalho com segurana pblica no pas. A realizao, em 31 de julho de 2008, do primeiro debate pblico no mbito estatal sobre os limites e possibilidades para o processamento dos crimes de lesa-humanidade ocorridos durante o Estado de Exceo no Brasil, atendendo ampla demanda da sociedade civil trazida a esta Comisso, desinterditou um tema antes tratado como tabu. A partir das mais recentes aes interpostas no sistema judicial e do conjunto de discusses tidas no Ministrio da Justia, amplos setores sociais e da imprensa nacional passaram a se manifestar sobre a questo, desembocando na proposio de uma Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental pela Ordem dos Advogados do Brasil junto ao Supremo Tribunal Federal, para que se manifeste sobre a juridicidade da interpretao dada por alguns setores anistia concedida em 1979, como se esta contemplasse crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes de Estado em evidente desvio de suas atribuies. Concomitantemente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, rgo autnomo da Organizao dos Estados Americanos, analisa a mesma matria em caso relacionada a Guerrilha do Araguaia. Nos ltimos vinte anos a Corte j decidiu pela obrigao estatal de investigar crimes de seus agentes durante perodos de alterao da normalidade democrtica no Peru, Paraguai, Colmbia, Guatemala e El Salvador, responsabilizando os perpetradores. Em sentido similar manifestaram-se diversos tribunais constitucionais nacionais das Amricas, entre14

eles Argentina, Chile, El Salvador, Panam e Peru.

EFETIVAO DO DIREITO ANISTIA E REPARAO ECONMICAO direito a reparao dos perseguidos polticos ampara-se no artigo 8 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, posteriormente regulamentado pela Lei n 10.559, aprovada por unanimidade no Congresso Nacional no ano de 2002. Verica-se facilmente o enorme decurso de tempo entre a garantia constitucional do direito e a regulamentao de sua implementao. Somando-se a isso o prprio reconhecimento estatal tardio do prejuzo causado a uma srie de brasileiros no perodo que se estende de 1946 e 1988 (tempo de abrangncia da lei), percebe-se facilmente a necessidade de uma rpida efetivao desses direitos, de modo a que seja possvel a reparao moral e o usufruto da reparao econmica pelo anistiado ainda em vida. Entre os anos de 2001, quando foi posta em funcionamento por meio de medida provisria, e 2007 quando inicia-se uma nova gesto, a Comisso de Anistia recebeu 57 .637 requerimentos, dos quais 29.079 haviam sido apreciados. Mantido tal ritmo de apreciao e desconsiderada a entrada de novos requerimentos, os trabalhos para apreciao de processos em primeiro grau chegariam a termo apenas no ano de 2016. Com vistas a viabilizar uma maior celeridade, a Comisso contratou 35 novos funcionrios, criou novas turmas de julgamento e passou a contar no mais com 18, mas sim com 22 conselheiros. Ainda, toda a estrutura administrativa da Comisso foi reformulada, com a extino, fuso e criao de setores mais ecientes, acompanhada de uma restruturao dos meios de trabalho e ampliao da rea fsica ocupada. Graas a essas medidas, foi possvel a apreciao de 10.424 requerimentos em 2007 e 9.275 requerimentos em 2008, ou seja, em apenas dois anos apreciaram-se 19.699 requerimentos. Um notvel incremento em relao as primeiros seis anos da Comisso (2001-2006), quando foram apreciados um total de 26.781 casos. Houve ainda signicativa elevao do nmero de julgados em nvel recursal, saltando de 153 casos em 2006 para 383 em 2008. Uma das grandes diculdades encontradas pela Comisso de Anistia para a justa efetivao do direito reparao era a assimetria existente entre os valores reparatrios percebidos por diferentes anistiados, que tiveram processos analisados por variados rgos judiciais e da administrao pblica no perodo anterior criao da Comisso de Anistia no Ministrio da Justia. So dois os grandes grupos de perseguidos polticos que a lei n 10.559 reconhece. O primeiro composto dos perseguidos polticos em sua acepo mais clssica: o cidado violado em suas liberdades pblicas e em sua integridade fsica. O segundo composto daqueles demitidos dos empregos, a maioria em greves, durante o regime ditatorial.15

AUDINCIA PBLICA DA RESPONSABILIZAO DOS TORTURADOS OUTUBRO/2008 FONTE: COMISSO DE ANISTIA CRDITO: ISAAC AMORIM

Para os primeiros, a lei oferece uma indenizao menor, em parcela nica com teto de R$ 100 mil. Para os segundos, a lei destaca uma indenizao vitalcia e mensal, com valor correspondente ao salrio que teria, com as progresses na carreira e tambm com pagamento retroativo no tempo at 1988. Isso faz com que as origens econmicas de cada um determinem seu quantum indenizatrio, perpetuando por meio da anistia as desigualdades sociais, tornando as duas medidas reparatrias muito discrepantes. Somente h equidade quando os primeiros, no curso de sua perseguio, tambm perderam empregos ou quando os segundos sofreram leses da mesma gravidade que os primeiros. Em situaes-extremo, encontramos pessoas brutalmente violadas em sua dignidade percebendo indenizao innitamente menor que as daqueles que perderam vnculos laborais em determinado momento, mesmo que se recompondo posteriormente. Para minorar essa situao de iniquidade, o colegiado da Comisso de Anistia promoveu um primeiro ajuste no campo interpretativo da lei: tem aplicado o princpio da razoabilidade e da adequao das indenizaes aos valores de mercado atuais para o segundo grupo. Tal entendimento minorou um dos grandes problemas estruturais da Lei n 10.559/2002, qual seja, a eternalizao das diferenas de classe que incorre nas reparaes aos perseguidos. Um segundo ajuste necessitaria ser realizado: o de maior valorizao reparatria aos perseguidos do primeiro grupo, tarefa essa que16

somente o Congresso Nacional poderia promover com uma alterao legislativa.

Outro procedimento adotado pela Comisso com vistas a celerizar seus trabalhos e diminuir discrepncias foi a criao de grupos de trabalho administrativo especcos e sesses temticas para o debate conjunto das questes jurdicas relevantes para cada categoria organizada com demandas junto ao rgo, permitindo solues homogneas, cujas gradaes se devem a diferenas fticas, e no interpretativas, dando concretude ao princpio republicano do igual tratamento. O fato que discrepncias permanecem existindo, pois, por mais esforo que a Comisso empenhe, algumas distores tem origem no prprio texto legal. At o presente momento, a Comisso j concedeu a declarao de anistiado (reconhecimento da condio de perseguido poltico) a 30.967 pessoas, tendo ainda concedido algum tipo de reparao econmica a 10.578 destas. Do total de 64.151 requerimentos hoje existentes na Comisso, ainda restam 16.389 por serem apreciados. No restam dvidas hoje sobre a importncia histrica dos processos de reparao aos perseguidos polticos para o restabelecimento do Estado de Direito. Tal processo no apenas devolve a normalidade ao sistema jurdico, que tem seu ramo civil fortemente ancorado no princpio de que quem causa dano repara, como, e sobremaneira, permite a reconciliao moral do Estado com seus cidados. A anistia representa, neste caso, o pedido ocial de desculpas do Estado brasileiro por ter perseguidos aqueles cidados que tinha obrigao de proteger, contribuindo, dessa maneira, para a consolidao de uma cultura da legalidade, em que ningum privado de seus direitos sem o devido processo, e aqueles que tm seus direitos violados, por fora de lei, so reparados. Com o avano da poltica reparatria, o grande desao da Comisso de Anistia passou a ser como permitir que a experincia em curso fosse socializada para o maior nmero de brasileiros possvel, armando a democracia e prevenindo o esquecimento. Para tanto, passou a desenvolver polticas pblicas de educao e memria.

EDUCAO E MEMRIA: UM OLHAR PARA O FUTURO DO BRASILTodas as sesses da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia so pblicas e acessveis a qualquer cidado. Inobstante, a realizao das mesmas no Palcio da Justia em Braslia torna seu acesso signicativamente restrito. Boa parte dos anistiandos no possuem recursos nanceiros para deslocarem-se at Braslia e acompanharem seus julgamentos, e igual argumento torna-se ainda mais fundamentado quando aplicado ao grosso da cidadania.17

Se do ponto de vista individual o processo de reparao representa o resgate da dignidade humana maculada durante os perodos de exceo, do ponto de vista coletivo ele representa um acerto de contas da nao com seus cidados. Assim sendo, o processo de reparao torna-se um momento mpar na construo da histria e da identidade nacional. A centralidade de todas as sesses de julgamento em Braslia impedia a plena realizao dessa dimenso pblica da anistia e, nesse sentido, foi institudo em abril de 2008 o projeto das Caravanas da Anistia. por meio das Caravanas que o princpio da reconciliao nacional tem ganhado ampla concretude. As caravanas j foram acolhidas por universidades, escolas, sindicatos, cmaras municipais, assembleias legislativas, tribunais de justia, assentamentos rurais, sindicatos, palcios de governo estaduais, entidades representativas como a ABI, a OAB Nacional em seu Congresso anual, a CNBB, a UNE, ocupando ainda a gora em seu sentido mais literal: a praa pblica. Em cada Caravana so resgatadas histrias locais e seus personagens, so prestadas homenagens aos que lutaram, so feitas as reparaes devidas. Hoje, com as Caravanas da Anistia, podemos chegar a todos os cantos do pas, identicando os milhares de perseguidos annimos e pedindo desculpas pblicas e ociais, tal como ocorre com os perseguidos notrios, que tm seus processos acompanhados pela imprensa. Passados mais de 45 anos do golpe que rompeu com a ordem Constitucional e democrtica, apenas agora o Brasil pediu desculpas famlia do presidente deposto Joo Goulart, numa sesso histrica com mais de dois mil presentes no Congresso da Ordem dos Advogados do Brasil. Esses so, para o Brasil, momentos histricos de efetivao da justia restaurativa e da recomposio e preservao da memria ptria. Com essas atividades, a Comisso de Anistia j visitou 15 estados da Federao, realizando 26 conjuntos de sesses de julgamento. A dimenso pblica das Caravanas ganha relevo especialmente para a juventude, que no vivenciou os anos de represso. A mensagem levada para os jovens e estudantes a de que a democracia nunca um processo acabado, mas sim um processo aberto e, portanto, permanentemente sujeito a avanos e retrocessos. Essa percepo permite inserir o jovem como protagonista na histria nacional, como agente da construo do processo democrtico. Vericando os danos que a arbitrariedade causou cidadania, refora-se uma cultura democrtica e republicana de respeito s leis e participao poltica na tomada de decises. Num dos mais emblemticos exemplos do signicado das Caravanas para o povo, devemos referir passagem da Comisso pela regio de So Domingos do Araguaia, em junho ltimo. Os cidados locais julgavam-se esquecidas pelo Estado e puderam, em meio a muita emoo, superar as18

lembranas e pesadelos dos maus-tratos e injustias sofridos ouvindo pessoalmente do Ministro

de Estado da Justia um pedido de desculpas. Desde ento, descobriram que sua histria um patrimnio da histria de nosso pas e que, como todos os brasileiros, possuem direitos. Outra importante iniciativa da Comisso de Anistia que tambm visualizvel no caso do Araguaia a preservao da memria oral. Em trs incurses regio, foram colhidos mais de 300 depoimentos que servem no somente de instruo aos processos administrativos de reparao, mas tambm como preservao da histria. Ainda, a colheita de testemunhos permanece como ao prioritria da Comisso, sendo levada a cabo regularmente nas sesses de julgamento em que o anistiado se faz presente e tambm em aes especcas, integrantes de nossos projetos de memria. Todo esse processo vem gerando um acervo de valor democrtico indelvel. Os requerimentos de anistia arquivados junto ao Ministrio da Justia apresentam a histria dos regimes de exceo no Brasil desde o ponto de vista dos perseguidos polticos. Neles esto registrados seus objetivos, seus ideais polticos, suas lutas e suas utopias, bem como o tratamento estatal a eles conferido. Ainda, centenas de imagens, vdeos, livros e documentos foram trazidos aos autos ou produzidos pela Comisso de Anistia, seja como forma de instruo processual, seja como registro de suas atividades julgadoras e educativas. Todo esse patrimnio da democracia brasileira ser disponibilizado ao pblico em um grande centro de memria e documentao: o Memorial da Anistia Poltica no Brasil. Rene-se nesse acervo os documentos com a expresso viva dos perseguidos polticos do Brasil. O pas ter dois grandes acervos: o acervo ocial do Estado, sistematizado pelo projeto Memrias Reveladas, sob responsabilidade do Arquivo Nacional, e um outro acervo, do Memorial da Anistia, contando a histria do ponto de vista no ocial, vista pelos olhos daqueles que no passado tiveram suas vozes caladas: os perseguidos polticos. Da que o Memorial, por si s, constitua um instrumento de reparao histrica. No exato momento em que essas palavras so escritas, um antigo prdio da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, recebe reformas, e uma equipe interdisciplinar trabalha para que, no prximo ano, seja entregue a sociedade brasileira este marco da maturidade da democracia brasileira. O Memorial da Anistia, para o qual foi dedicada uma seo especial desta primeira edio da Revista, representa a contribuio ltima que a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e com a Prefeitura de Belo Horizonte, com apoio de dezenas de entidades e associaes civis, d consolidao de polticas de memria para o Brasil. O Memorial, em conjunto com as demais polticas19

CARAVANA DO ARAGUAIA FONTE: AGNCIA PAR, LUCIVALDO SERRA

pblicas empreendidas pelo Governo Federal e por governo locais, sinaliza a entrada do Brasil em um quadrante histrico novo, no qual a democracia um processo em curso e o passado pode ser encarado com orgulho e altivez por uma sociedade que aprende com seus prprios erros. O Memorial da Anistia gurar, ao lado de outras iniciativas locais, como o Memorial da Resistncia do Governo do Estado de So Paulo e outros centros em fase de implementao dos estados da federao, bem como de uma innidade de outros memoriais, museus, centros de documentao e monumentos cvicos existentes ao redor de todo o mundo, no hall de uma grande rede internacional de memria poltica da consolidao democrtica e da20

luta contra o autoritarismo e as tiranias.

A REVISTA ANISTIA POLTICA E JUSTIA DE TRANSIOA Revista Anistia Poltica e Justia de Transio, com edies semestrais, ser um espao privilegiado para o debate de todas as polticas pblicas de justia e cidadania acima referidas, e de todos os desdobramentos e diculdades existentes para a implementao da Justia em perodos ps-represso. Ser ainda um espao privilegiado para o intercmbio de experincias locais e internacionais, e um espao de publicizao de documentos e informaes atinentes ao tema. A Comisso de Anistia espera, com a iniciativa de publicar este peridico, ampliar o nmero de atores participantes na construo do processo de consolidao da democracia no Brasil e do estabelecimento de valores universais de respeito a cidadania e aos direitos humanos. Nesses 30 anos de luta pela anistia no Brasil, que esteja explcita a mais importante transformao que o conceito de anistia adquire: antes, tinha-se a ideia de um perdo que o Estado autoritrio concedia aos que ele mesmo designou como criminosos polticos. Na democracia, o conceito de anistia deve ser outro: o Estado no mais perdoa, ele pede desculpas e cumpre seu dever de reparao.

Braslia, agosto de 2009, 30 anos de luta pela Anistia no Brasil.

Paulo Abro Presidente da Comisso de Anistia

Sueli Aparecida Bellato Vice-Presidente da Comisso de Anistia

Marcelo D. Torelly Coordenador-Geral da Revista

Roberta Vieira Alvarenga Secretria-Executiva da Comisso de Anistia

Conselheiros da Comisso de Anistia

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FONTE: ARQUIVO NACIONAL E SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDNCIA DA REPBLICA

ENTREVISTA

JAVIER CIURLIZZA PARA UM PANORAMA GLOBAL SOBRE A JUSTIA DE TRANSIO

O DIREITO REPARAO AMPLAMENTE RECONHECIDO NO DIREITO INTERNACIONAL COMO CRITRIO BSICO DE RESTITUIO DE DIREITOS E DE RESTAURAO DA CONFIANA CVICA DAS VTIMAS NAS INSTITUIES DEMOCRTICAS E NO PRPRIO ESTADO.

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Os processos de justia de transio em todo o mundo adquirem diferentes contornos. Desde 2001, o International Center for Transitional Justice, organizao privada sem ns lucrativos sediada em Nova Iorque, vem atuando para a promoo de medidas transicionais em dezenas de pases.Na Amrica Latina, possui projetos na Colmbia, Guatemala, Mxico, Nicargua, Panam, Paraguai e Peru, e vem estabelecendo parcerias com a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, com vistas ao desenvolvimento da temtica transicional no pas. Aps visitar o Brasil a convite da Comisso de Anistia, participando de conferncias em So Paulo e Braslia e acompanhando a realizao da 22 Caravana da Anistia na Universidade Federal de Uberlndia (MG) e o lanamento do Projeto Memrias Reveladas da Casa Civil da Presidncia da Repblica, o Diretor-Adjunto para as Amricas e Coordenador do Escritrio do ICTJ em Bogot, Javier Ciurlizza, gentilmente aceitou dar a entrevista abaixo ao Coordenador Geral do Conselho Editorial da Revista Anistia Poltica e Justia de Transio,24

na qual busca estabelecer um panorama do atual estado da arte da Justia de Transio no continente americano e no Brasil. Javier Ciurlizza advogado formado pela Pontifcia Universidade Catlica do Peru, da qual foi coordenador do Instituto Democracia e Direitos Humanos, e mestre em Direito pela Universidade de Warwick (Reino Unido). Foi Secretrio-Executivo da Comisso de Verdade e Reconciliao e Chefe de Gabinete do Ministro da Justia do Peru, onde ainda atuou como Ocial de Chancelaria para o processo de extradio do Ex-Presidente Alberto Fujimori. J assessorou projetos de Justia Transicional no Paraguai, Qunia, Indonsia e Libria, com nfase nas Comisses de Verdade e no estabelecimento de processos judiciais por violao dos direitos humanos. Marcelo Torelly: O sculo XX foi marcado por uma srie de transies de regimes autoritrios para a democracia. Desde as transies Ps-II Guerra Mundial, passando pelas transies ps-coloniais na frica e sia, pelas transies dos regimes militares do Cone Sul da Amrica, chegando as transies dos pases do antigo bloco sovitico referindo apenas algumas, exemplicativamente. possvel obter algum aprendizado desde processos to diversos? Javier Ciurlizza: A transio como fenmeno poltico teve expresses diversas de um pas para outro, conforme o contexto internacional e as condies particulares de

cada um. Em geral, pode-se dizer que um dos temas que teve de ser abordado e resolvido em todas essas transies foi o dos arranjos institucionais necessrios para enfrentar um legado de abusos contra os direitos humanos, alm da cultura autoritria que propiciou ou tolerou esse tipo de crime. O que mudou nos ltimos trinta anos foi o fato de que as transies j no se resolvem somente por meio de um pacto poltico entre setores especcos ou de um mero acordo de paz, mas tambm pela via do enfrentamento jurdico, poltico e tico s consequncias das ditaduras e dos conitos armados. Em particular, adquirem maior relevncia os direitos que as vtimas do passado autoritrio tm de saber o que ocorreu e de obter as reparaes correspondentes, alm de que os responsveis pelos referidos crimes sejam punidos de acordo com a lei. Entende-se hoje que, para garantir que o passado no se repita, preciso enfrentar os desaos da justia transicional de forma sria e responsvel. MT: Na Amrica Latina, experimentamos na segunda metade do sculo passado diversos tipos de governos repressivos e experincias de instabilidade institucional, e pudemos ver diversos modos de transio. O ICTJ atuou em diversos pases da regio, como auxiliar e observador destes processos, possvel estabelecer paralelos entre as transies latino-americanas? Quais os principais xitos e falhas? JC: Na maioria dos pases da Amrica do Sul, entre os anos 1960 e 1970, alcanaram o poder ditaduras militares que atuaram

no contexto histrico da Guerra Fria, com o propsito declarado de combater o comunismo e defender os valores da civilizao ocidental e crist. Esses objetivos foram traduzidos, sabemos com certa preciso nos dias atuais, em prticas de guerra suja e violaes sistemticas de direitos humanos sob a doutrina da segurana nacional. A restaurao democrtica em todos esses pases implicou revisar o passado. Em alguns, como na Argentina e no Chile, foram criadas comisses da verdade que revelaram um passado de terror. Em outros, como Brasil e Uruguai, optou-se por leis de anistia que cobriram esses crimes com um vu de esquecimento. Mas em todos os pases nos quais o ICTJ interveio ou cujas experincias foram por ele estudadas, as demandas por verdade, justia e reparao no cessaram, nem sequer em meio a conjunturas muito adversas. Um denominador comum dos processos de justia de transio na Amrica Latina sua longa durao, com retrocessos e avanos. Por outro lado, o sistema interamericano de direitos humanos desenvolveu ampla jurisprudncia relacionada s obrigaes internacionais dos Estados, que no podem ser ignoradas como forma de interpor obstculos condenao penal dos perpetradores, pois isso implicaria em violao ao Direito, incluindo-se a a aplicao das leis de anistia, da prescrio e da coisa julgada. MT: Atualmente, no Brasil, existe um grande debate sobre as polticas de reparao individual aos perseguidos25

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polticos, questionando-se sobretudo a existncia de um direito a essa reparao. Nas experincias que voc e o ICTJ puderam acompanhar, qual o papel do processo de reparao na consolidao de uma democracia ps-perodo autoritrio? JC: O direito reparao amplamente reconhecido no direito internacional como critrio bsico de restituio de direitos e de restaurao da conana cvica das vtimas nas instituies democrticas e no prprio Estado. A reparao, alm de ser um direito individual de cada vtima, condio necessria para a restaurao da justia e para a cura das feridas deixadas pela violao aos direitos humanos. , em suma, uma forma de restabelecer a igualdade perante a lei, que foi quebrada pelo crime, seja na forma26

tortura ou outras violaes graves aos direitos humanos. A experincia internacional demonstra que processos de consolidao democrtica sem reconhecimento de responsabilidades do passado enfrentam srios problemas e afetam, no longo prazo, a estabilidade democrtica e a governabilidade dos pases. MT: Nesse sentido, e como forma de resgate histrico, a Comisso de Anistia brasileira tem procurado levar os julgamentos dos processos de reparao para os locais onde se deram as perseguies, enfrentando publicamente o debate da reparao e resgatando a memria poltica local das violaes. Voc pde acompanhar uma destas sesses de julgamento.

de desaparecimento forado, assassinato,

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Como avalia uma iniciativa desta natureza? JC: O trabalho da Comisso de Anistia muito importante em termos de reconhecimento da histria do Brasil e de sensibilizao de toda a sociedade, principalmente os jovens, com relao a tudo o que aconteceu. Os debates pblicos das Caravanas so muito ilustrativos da discusso atual no Brasil acerca das responsabilidades pelos crimes cometidos em tempos de ditadura. Fiquei muito impressionado com a enorme participao de estudantes e jovens escutando aqueles que foram perseguidos polticos e sofreram graves privaes em seus direitos. No uma comisso de verdade propriamente dita, mas est construindo um precedente muito importante no Brasil no que diz respeito pertinncia e relevncia de descobrir e discutir o passado, ao mesmo tempo em que proporciona dignidade s vtimas no exerccio de seus direitos. MT: Ainda no debate da memria poltica, podemos vericar que pases como Chile e Argentina construram museus e centros culturais para a memria das ditaduras, recentemente o Governo do Estado de So Paulo inaugurou o Memorial da Resistncia e o Governo Federal brasileiro anunciou a inaugurao, em 2010, de um Memorial da Anistia Poltica no Brasil na cidade de Belo Horizonte. Qual deve ser a funo de espaos como esses? Quais os cuidados necessrios para que o estabelecimento de polticas para a memria enquanto mecanismo de fortalecimento da democracia no

se transforme em aes de imposio de uma histria ocial? JC: A descoberta da verdade em relao ao que aconteceu a base da memria histrica dos pases que tiveram perodosde atrocidades e arbitrariedade. A memria no um exerccio individual no qual algum diz o que sabe, mas sim um processo cultural, educativo e poltico de estabelecimento de consensos sobre a identidade nacional. Os memoriais ou espaos de recordao tm grande relevncia, mesmo quando so os nicos mecanismos com os quais um pas pode contar para relatar os acontecimentos. De certa forma, um memorial materializa a identidade do processo que se quer descrever e constitui poderosa ferramenta educativa para aqueles que no esto a par ou no tiveram notcias sobre o que ocorreu. H diversos tipos de memorial, como o que lembra o genocdio no Camboja, ou parques inteiros, tal qual o da Memria, na Argentina. O processo pelo qual se concretiza um memorial to ou mais importante que o resultado. Um memorial que no reita as opinies de diversos setores pode ser visto como uma aposta poltica particular, um espao que no reita a opinio das vtimas pode ser ignorado ou menosprezado precisamente por aqueles que desejariam ser representados no monumento ou espao pblico. MT: possvel inferir uma ligao entre o esclarecimento dos fatos histricos e a atribuio de responsabilidades? possvel falar de justia sem verdade ou de verdade sem justia? Como conciliar esses valores numa transio?27

JC: Na poltica, sempre possvel optar pela verdade e deixar a justia de lado, ou at mesmo conduzir processos judiciais que no contribuam com a verdade. No entanto, as lies internacionais so claras o suciente para indicar que qualquer uma dessas opes contraproducente para os direitos das vtimas e para a sade democrtica dos pases. Verdade implica responsabilidade, pois se tratam de atos concretos produzidos por alguns seres humanos que feriram outros seres humanos. No so aes da natureza que possam ser explicadas a partir das cincias naturais. Por sua vez, a justia em sua dimenso integral requer que em seu resultado se expresse a verdade mais abrangente possvel, sem que se constituam meros rituais jurdicos sem contedo. As sociedades que enfrentaram seu prprio passado com maior xito so aquelas que souberam combinar de forma eciente uma revelao mais ampla da histria e dos crimes com a plena atuao da justia penal. MT: Optar por promover justia no pode ser um caminho mais perigoso? A promoo de justia no um fator de desestabilidade, negocivel durante a concretizao das transies polticas? JC: Durante muitos anos, pretendeu-se apresentar a justia como valor importante, porm inalcanvel, principalmente em nome da governabilidade, da estabilidade ou da segurana nacional. Tentou-se virar a pgina com leis de anistia ou o impedimento de aes judiciais. A experincia nos mostra que em todos os pases da Amrica Latina onde28

e avanou. No Chile, por exemplo, a lei de anistia imposta pela ditadura de Pinochet em 1979 foi nalmente declarada sem aplicao h pouqussimo tempo pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O mesmo aconteceu no Peru aps a queda do regime de Fujimori. Na Argentina, as leis da devida obedincia e ponto nal alm dos , indultos que beneciaram os militares, foram declaradas nulas, e hoje mais de 800 militares enfrentam processos por violaes aos direitos humanos. Dito isto, a verdade que possvel instaurar processos judiciais, pois no se trata de julgar cada uma das pessoas que estiveram envolvidas, e sim deixar de lado a hiptese de que a justia produz instabilidade. Pelo contrrio: est provado que a impunidade corri as bases do Estado de Direito e afeta a essncia da democracia. MT: Foi referido o papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA em casos como o do Chile, qual tem sido o papel dos poderes judicirios nacionais neste processo? JC: Na Amrica Latina, foram os governos, os poderes executivos, que estimularam a criao de comisses de verdade e o estabelecimento de medidas de reparao. Os poderes judicirios caram fora do cenrio de justia transicional. Isso mudou substancialmente no perodo recente. As cortes supremas e constitucionais de diversos pases tm hoje papel eminente e central nos processos de justia de transio, avaliando leis de impunidade, decretando a inconstitucionalidade da justia militar e protegendo os direitos das vtimas

isso foi tentado, a justia recuou

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verdade, justia e reparao. Inclusive em um pas em pleno conito armado, como a Colmbia, so os rgos judiciais os que tm contribudo para o avano no reconhecimento dos direitos das vtimas e na luta contra a impunidade. Esse protagonismo do judicirio saudvel, considerando que os processos de justia transicional no devem depender de conjunturas polticas ou das preferncias dos governantes que estejam momentaneamente no poder, e sim fazer parte de uma poltica pblica especca e sustentada. Existem pases nos quais ainda h muito a se fazer, como Mxico, El Salvador, Guatemala e Honduras, enquanto que em outros h problemas de ecincia e alocao de recursos. MT: O protagonismo da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos de omisso estatal nacional no enseja um conito entre o ordenamento jurdico interno e o ordenamento internacional? JC: No acredito que exista um conito entre direito internacional e direito interno. Devemos entender que a ordem jurdica uma s e as relaes entre tratados e leis internas regem-se pelos princpios de hierarquia e competncias estabelecidas pelas prprias constituies. H um princpio de direito internacional que diz que os Estados no podem utilizar sua legislao interna como desculpa para descumprir obrigaes internacionais, e esse foi o critrio bsico da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao decretar a nulidade das leis de anistia, ordenar o julgamento dos responsveis e dispor sobre

a adoo de medidas de reparao s vtimas. Entretanto, a verdade que os Estados ainda detm funo central nas polticas de direitos humanos, j que a comunidade internacional no pode substituir as funes soberanas de desenvolvimento de polticas pblicas, porm essas devem ser congruentes com as obrigaes que os estados assumiram de forma voluntria. MT: Das experincias internacionais recentes de transies para a democracia, quais possuem elementos que podem ser considerados modelos? JC: Os pases possuem histrias e condies muito diferentes entre si, por isso, no possvel falar em modelos no sentido de exemplos perfeitos que possam ser reproduzidos de maneira integral. Da mesma forma, no existe pas no mundo que possa dizer que superou todos os desaos relacionados verdade, justia e reparao. No obstante, podemos falar de algumas experincias positivas e de alguns casos que podem ser ilustrativos daquilo que pode ser feito quando h vontade, capacidade e recursos disponveis. Talvez o exemplo mais importante seja o dos casos em que cou entendido que preciso avanar de forma simultnea, embora sem pressa e com muita sabedoria, nos diversos mbitos da justia de transio. Tal experincia demonstra que as iniciativas que somente focam um dos direitos mencionados tendem a ser fracas e insustentveis ao longo do tempo. A integralidade , portanto, a primeira lio a ser considerada.Traduo do Espanhol realizada pelo Conselheiro Tcnico Mrcio Rodrigo Penna Borges Nunes Cambraia

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O OBJETIVO DA JUSTIA TRANSICIONAL IMPLICA PROCESSAR OS PERPETRADORES, REVELAR A VERDADE SOBRE CRIMES PASSADOS, FORNECER REPARAES S VTIMAS, REFORMAR AS INSTITUIES PERPETRADORAS DE ABUSO E PROMOVER A RECONCILIAO

Organizadores: Jos Reinaldo de Lima Lopes Jos Ribas Vieira Marcelo D. Torelly Paulo Abro Pires Junior

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PROMOVENDO A JUSTIA TRANSICIONAL EM SOCIEDADES PS-CONFLITO1Paul Van ZylVice-presidente do International Center for Transitional Justice Professor da New York University School of Law (Estados Unidos)

INTRODUOPode se denir a justia transicional como o esforo para a construo da paz sustentvel aps um perodo de conito, violncia em massa ou violao sistemtica dos direitos humanos. O objetivo da justia transicional implica em processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparaes s vtimas, reformar as instituies perpetradoras de abuso e promover a reconciliao. O que foi mencionado anteriormente exige um conjunto inclusivo de estratgias formuladas para enfrentar o passado assim como para olhar o futuro a m de evitar o reaparecimento do conito e das violaes. Considerando que, com frequncia, as estratgias da justia transicional so arquitetadas em contextos nos quais a paz frgil ou os perpetradores conservam um poder real, deve-se equilibrar cuidadosamente as exigncias da justia e a realidade do que pode ser efetuado a curto, mdio e longo prazo. No decorrer da ltima dcada, o campo da justia transicional se ampliou e se desenvolveu em dois sentidos importantes. Em primeiro lugar, os elementos da justia transicional passaram de uma aspirao do imaginrio expresso de obrigaes legais vinculantes. O direito internacional, particularmente na aplicao a ele dada em organismos como o Tribunal Europeu dos Direitos1 Este artigo foi publicado pela primeira vez em Bryden, A. and Hanggi, H. (eds.), Security Governance in Post-Conict Peacebuilding (DCAF: Genebra, 2005). Agradecemos ao Centro Internacional para a Justia de Transicional (ICTJ) por gentilmente autorizar sua distribuio em portugus pela Revista Anistia Poltica e Justia de Transio. A traduo do texto foi feita pelo Ministrio da Justia, com base na verso em espanhol fornecida pelo ICTJ, e revisada pela Conselheira Tcnica Vanda Davi Fernandes de Oliveira.

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Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Comit de Direitos Humanos, evoluiu com o passar dos ltimos vinte anos at o ponto em que atualmente existem padres claros relativos s obrigaes dos estados a respeito da forma de enfrentar as violaes dos direitos humanos, bem como proibies, como no caso das anistias gerais quando se trata de crimes internacionais. Isso foi amparado pela raticao por mais de cem pases da criao da Corte Penal Internacional (ICC, na sigla em ingls), que reforou as obrigaes existentes e criou novos padres, j que se exije que cada signatrio responda de maneira adequada s violaes dos direitos humanos, sob pena de defrontar-se com uma ao legal por parte da Corte. Em outubro de 2000, quando o Secretrio Geral da ONU apresentou ao Conselho de Segurana um relatrio em que se expunha pela primeira vez o foco das Naes Unidas sobre as questes da justia transicional, criou-se um acordo importante. um desenvolvimento extremamente relevante tanto em termos operativos quanto normativos. Em segundo lugar, o fortalecimento da democracia em muitos lugares do mundo, em especial na Amrica Latina, sia e frica e o surgimento de organizaes cada vez mais sosticadas da sociedade civil tm contribudo para fundar as instituies e a vontade poltica necessria para confrontar um legado de violaes dos direitos humanos e conseguir que as polticas se traduzam em aes. A ateno que se tem prestado s questes da justia transicional, assim como o comprometimento com esses assuntos, se v reetida na atribuio de mais recursos e na preocupao internacional pela construo da paz ps-conito. Isso requer intervenes continuadas por parte de atores nacionais e internacionais, em diferentes nveis. necessrio coordenar, integrar e ajustar diligentemente cada elemento ao adequado apoio poltico, operativo e econmico dado por uma srie de partes interessadas. As estratgias da justia transicional devem ser consideradas como parte importante da construo da paz, na medida em que abordam as necessidades e as reclamaes das vtimas, promovem a reconciliao, reformam as instituies estatais e restabelecem o estado de direito. Este estudo explorar mais profundamente as mltiplas formas em que a justia transicional pode contribuir construo da paz ps-conito. O texto comear com um esboo dos elementos-chave da justia transicional e uma discusso de seus objetivos e impactos. Depois disso sero explicadas as formas em que a justia transicional pode contribuir na construo da paz. Vale ressaltar ainda que as estratgias da justia transicional quase sempre tero um impacto signicativo sobre estes esforos, a relao entre estes dois propsitos tem sido incrivelmente pouco investigada, tanto na teoria como na prtica. impossvel tratar dessas questes detalhadamente neste espao, mas indicaremos vrias formas em que a construo da paz ps-conito e a justia transicional se inter-relacionam, na esperana de estabelecer uma agenda para pesquisas posteriores. Nesse sentido, o texto ir articular importantes lies extradas de diversos exemplos prticos de implementao de estratgias da justia transicional, e com base neles sero feitas sugestes para os formuladores de polticas a respeito da forma33

de desenvolver mecanismos mais efetivos da justia transicional que, por sua vez, contribuam criativamente na construo da paz ps-conito.

OS ELEMENTOS-CHAVE DA JUSTIA TRANSICIONALComo apontado anteriormente, a justia transicional implica em processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, conceder reparaes s vtimas, reformar as instituies perpetradoras de abuso e promover a reconciliao2. Nesta seo se analisar cada um desses elementos em maior detalhe.

JUSTIAJulgar os perpetradores que cometeram graves violaes dos direitos humanos uma parte crtica de qualquer esforo para confrontar um legado de abuso. Os julgamentos podem servir para evitar futuros crimes, dar consolo s vtimas, pensar um novo grupo de normas e dar impulso ao processo de reformar as instituies governamentais, agragando-lhes conana3. No entanto, importante reconhecer que os sistemas da justia penal esto desenhados para sociedades em que a violao da lei constitui a exceo e no a regra. Quando se trata de violaes generalizadas e sistemticas que envolvem dezenas ou centenas de crimes, os sistemas da justia penal simplesmente no so sucientes. Isso se deve ao fato de que o processo da justia penal deve demonstrar um comprometimento minucioso com a equidade e o devido processo legal com a necessria implicao de uma designao signicativa de tempo e recursos4. Tambm importante destacar que o reconhecimento da incapacidade estrutural dos sistemas da justia penal para enfrentar as atrocidades em massa no deve ser interpretado como uma

2 Essa denio da justia transicional deriva em grande parte da articulao por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos das obrigaes legais de um Estado aps um perodo de graves violaes dos direitos humanos, no Caso Velzquez Rodriguez, Corte Interamericana de Direitos Humanos (Srie C) (988). Este documento foi referendado em grande parte pelo Relatrio do Secretrio sobre o estado de direito e a justia transicional nas sociedades ps-conito (3 de Agosto 2004). 3 Veja, por exemplo, Roht-Arriaza, N. (ed.) Impunity and Human Rights in International Law and Practice. Oxford University Press: Oxford, 1995). 4 A Corte Penal Internacional para a Antiga Iugoslvia emprega mais de 1100 pessoas e tem gasto mais de 500 milhes de dlares desde a sua criao em 1991. Desde essa data conseguiu menos de 20 condenaes denitivas. A Corte Penal Internacional para Ruanda tem funcionado durante aproximadamente 7 anos, conta com um oramento de 100 milhes de dlares por ano e conseguiu menos de 10 condenaes denitivas. Parece pouco provvel que a Corte Especial de Serra Leoa possa condenar mais de 30 pessoas no decorrer de seus primeiros trs anos de funcionamento. Os Paineis para Crimes Srios em Timor-Leste tm condenado indivduos (antes das apelaes) at a data e no provvel que dobrem essa cifra ao longo do tempo restante de funcionamento. Ver van Zyl, P Unnished business: South Africass Truth and Reconciliation Commission, Bassiouni, C. (ed.), Post-Conict ., Justice (2004).

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deslegitimao do papel do julgamento ou da pena no processo de encarregar-se dos crimes do passado. Apesar dos seus altos custos e progresso lento, os dois tribunais ad hoc para a antiga Iugoslvia e Ruanda tm feito contribuies importantes ao desenvolvimento progressivo do direito penal internacional. O estabelecimento da Corte Penal Internacional (ICC) teria sido mais complicado, seno impossvel sem eles5. A importncia dos julgamentos de Nuremberg ou do julgamento de Slobodan Milosevic no deve ser diminuda pela ideia de que os processados representarem apenas uma pequena frao do nmero total de indivduos penalmente responsveis. Os julgamentos no devem ser vistos somente como expresses de um anseio social de retribuio, dado que tambm desempenham uma funo vital quando rearmam publicamente normas e valores essenciais cuja violao implica em sanes. Os processos tambm podem auxiliar a restabelecer a conana entre os cidados e o Estado demonstrando queles cujos direitos foram violados que as instituies estatais buscam proteger e no violar seus direitos. Isso pode ajudar a reerguer a dignidade das vtimas e diminuir seus sentimentos de raiva, marginalizao e afronta. No entanto, importante reconhecer e aceitar que o julgamento s pode, em todos os casos, ser uma resposta parcial no processo de enfrentar a violao sistemtica dos direitos humanos. A esmagadora maioria das vtimas e dos perpetradores de crimes em massa jamais encontraro a justia em um tribunal e, por isso, faz-se necessrio complementar os julgamentos com outras estratgias.

A BUSCA DA VERDADE importante no somente dar amplo conhecimento ao fato de que ocorreram violaes dos direitos humanos, mas tambm que os governos, os cidados e os perpetradores reconheam a injustia de tais abusos. O estabelecimento de uma verdade ocial sobre um passado brutal pode ajudar a sensibilizar as futuras geraes contra o revisionismo e dar poder aos cidados para que reconheam e oponham resistncia a um retorno s prticas abusivas. As comisses de verdade do voz no espao pblico s vtimas e seus testemunhos podem contribuir para contestar as mentiras ociais e os mitos relacionados s violaes dos direitos humanos. O testemunho das vtimas na frica do Sul tornou impossvel negar que a tortura era tolerada ocialmente e que se deu de forma estendida e sistemtica. As comisses do Chile e da Argentina refutaram a mentira segundo a qual os opositores ao regime militar tinham fugido desses pases ou se escondido, e conseguiram estabelecer que os opositores desapareceram e foram assassinados

5 Ver Dieng, A., International criminal justice: from paper to practice A contribution from the International Criminal Tribunal for Rwanda to the establishment of the International Criminal Court, Fordham International Law Journal vol. 25, no. 3 (Maro 2002), p. 688-707; Hulthuis, H., Operational Aspects of Setting Up the International Criminal Court: Building on the Experience of the International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia Fordham International Law Journal vol. 25, no.3 (Marzo 2002), pp. 708-716.

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por membros das foras militares em desenvolvimento de uma poltica ocial6. Dar voz ocial s vtimas tambm pode ajudar a reduzir seus sentimentos de indignao e raiva. Ainda que seja importante no exagerar a respeito dos benefcios psicolgicos do poder de se expressar, e de saber-se ser inexato armar que o testemunho sobre os abusos sempre catrtico, o fato de reconhecer ocialmente o sofrimento das vtimas melhorar as possibilidades de confrontar os fatos histricos de maneira construtiva. As comisses da verdade tambm ajudam a proporcionar e dar mpeto transformao das instituies estatais. Ao demonstrar que as violaes dos direitos humanos no passado no constituram um fenmeno isolado ou atpico, as comisses podem melhorar as opes daqueles que, dentro ou fora de um novo governo, desejam implementar reformas reais para assegurar o fomento e a proteo dos direitos humanos. Por outro lado, no examinar ou identicar as instituies perpetradoras de abuso pode permitir-lhes continuar com as prticas do passado e, ao mesmo tempo, consolidar seu poder e aumentar a desconana e o desapontamento entre os cidados comuns.

REPARAOConforme o direito internacional, os estados tm o dever de fornecer reparaes s vtimas de graves violaes dos direitos humanos. Essa reparao pode assumir diferentes formas, entre as quais se encontram a ajuda material (v.g. pagamentos compensatrios, penses, bolsas de estudos e bolsas), assistncia psicolgica (v.g. aconselhamento para lidar com o trauma) e medidas simblicas (v.g. monumentos, memoriais e dias de comemorao nacionais). Frequentemente, a formulao de uma poltica integral de reparaes um tanto complexa, do ponto de vista tcnico, como delicada, da perspectiva poltica. Os incumbidos de formular uma poltica de reparaes justa e equitativa tero que decidir se necessrio estabelecer diferentes categorias de vtimas, e se convm fazer distines entre uma vtima e outra. Por exemplo, tero de resolver se possvel ou desejvel proporcionar distintas formas e quantidades de reparao s vtimas que padeceram diferentes tipos e graus de tortura, e se ser utilizada a avaliao de meios socioeconmicos para diferenciar entre vtimas ricas e pobres. Cada deciso tomada tem signicativas implicaes morais, polticas e econmicas7. A denio do status de vtima uma questo central na concesso de reparaes. necessrio decidir se as reparaes sero direcionadas somente s vtimas de violaes graves dos direitos humanos, tais como torturas, assassinatos e desaparies, ou se tambm devem ser dadas6 CONADEP (Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas), Nunca Ms: Informe de la Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas de Argentina (Farrar Straus & Giroux: New York, 1986); Informe de la Comisin de Verdad y Reconciliacin de Chile, traduo de Berryman, P (University of Notre Dame Press: Notre Dame, 99). .E. 7 Ver Gibney, M., When Sorry Isnt Enough: The Controversy Over Apologies and Reparations for Human Injustice, Human Rights Quarterly (2001), p.01.

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reparaes a uma classe mais ampla de vtimas, como por exemplo, aqueles que sofreram uma discriminao racial sistemtica ou que perderam suas terras e propriedades. Uma poltica de reparaes justa e sustentvel no deve gerar nem perpetuar divises entre as vrias categorias de vtimas. Ao mesmo tempo, deve ser factvel e realista desde a perspectiva econmica8.

REFORMAS INSTITUCIONAISPara confrontar as atrocidades em massa preciso ainda que s vezes esse processo no seja suciente para punir os perpetradores estabelecer a verdade sobre as violaes e reparar as vtimas. Nesse sentido, imperioso mudar radicalmente, e em alguns casos dissolver, as instituies responsveis pelas violaes dos direitos humanos9. Nesse sentido, os governos recm estabelecidos so responsveis, mas as comisses da verdade tambm tm um papel importante. No geral, as comisses da verdade esto habilitadas para fazer sugestes em seus relatrios nais a respeito das medidas legais, administrativas e institucionais que devem ser tomadas para evitar o ressurgimento dos crimes sistemticos do passado. Os governos tambm devem considerar a possibilidade de adotar programas de depurao e sameamento administrativo visando assegurar que as pessoas responsveis pelas violaes dos direitos humanos sejam retiradas dos cargos pblicos, alm de evitar que voltem a empregadas em instituies governamentais. A remoo das pessoas que violaram os direitos humanos de cargos que implicam conana e responsabilidade constitui uma parte importante do processo para estabelecer ou restaurar a integridade das instituies estatais. Esses programas tambm podem contribuir para estabelecer a responsabilidade no penal por violaes dos direitos humanos, particularmente em contextos nos quais resulta impossvel processar todos os responsveis10. Devem tambm ser cuidadosos na proteo do processo das pessoas investigadas. Ainda, estes processos devem ser dirigidos somente aos responsveis de violaes dos direitos humanos, e no aos opositores do novo regime ou a quem tenha pontos de vista e crenas diferentes.

8 Ver Pasqualucci, J.M., Victim Reparations in the Inter-American Human Rights System: A Critical Assessment of Current Practice and Procedure Michigan Journal of International Law (Fall 1996), pp.-58; Roth-Arriaza, N., Reparations, Decisions and Dilemmas, Hastings International and Comparative Law Review, vol. 27, no. 2 (Winter 2004), pp.57- 219; Roth-Arriaza, N., Victims on Transitional Justice: Lessons from the Reparation of Human Rights Abuses in the Czech Republic, Human Rights Quarterly vol.7, no.2 (Maio 2005 ), pp.392-495; Mazrui, A.A., The Truth Between Reparation And Reconciliation: The Pretoria-Nairobi Axis Buffalo Human Rights Law Review vol.10 (2004), pp.3, 14; Magarrell, L., Reparations for Massive or Widespread Human Rights Violations: Sorting Out Claims for Reparations and the Struggle for Social Justice, The Windsor Yearbook of Access to Justice vol.22 (2003), pp. 85-98. 9 Aolain e Campbell referem-se necessidade de uma certa mudana institucional: No contexto ps-transio, as violaes dos direitos humanos que antes eram negadas podem ser reconhecidas (um processo que pode ser fomentado se os atores no estatais, anteriormente dedicados violncia, reconhecem sua culpa). Pode-se descrever esse processo como uma antinomia entre o reconhecimento e a negao. O reconhecimento dessas falncias prepara o caminho para uma mudana institucional signicativa ou transformativa Aolain, F . .N., Campbell, C., The Paradox of Transition in Conicted Democracies Human Rights Quaterly vol. 27, no.1 (Fevereiro 2005), pp. 172-213. , 10 Ver Szczerbiak, A., Dealing with the Communist Past or the Politics of the Present? Lustration in Post-Communist Poland, Europe-Asia Studies vol. 54, no.4 (Junio 2002), pp.553-572; Flournoy, M.A., Dealing with Demons: Justice and Reconciliation, The Washington Quarterly, vol. 25, no. 4 (Outono 2002), pp. 111-123. Para exemplos de depurao, ver Kritz, N.J., Coming to Terms with Atrocities: A Review of Accountability Mechanisms for Mass Violations of Human Rights, Law and Contemporary Problems vol. 59, no. 4 (Outono, 1996), p.139.

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RECONCILIAOO conceito de reconciliao importante e seu histrico relativamente controverso. Em alguns contextos, as vtimas se opem reconciliao porque a relacionam com o perdo obrigatrio, a impunidade e o esquecimento. Em muitos pases da Amrica Latina, os responsveis de violaes dos direitos humanos, especialmente os lderes militares associados aos regimes ditatoriais, invocaram, de forma cnica, o conceito de reconciliao para evadir a responsabilidade por seus crimes. Se a reconciliao for compreendida dessa forma, ento deve rejeitar-se com justa causa. Entretanto, importante considerar outra concepo de reconciliao. Nas sociedades que superam perodos de atrocidades em massa e conito generalizado, so frequentes as profundas suspeitas, os ressentimentos e as inimizades. Quase sempre essas divises continuam na etapa ps-conito e geram o potencial para o retorno da violncia e o ressurgimento das violaes dos direitos humanos. Isso particularmente verdade nos casos em que os conitos assumem uma dimenso de identidade na qual categorias tais como religio, lngua, raa ou etnicidade so utilizadas para semear a diviso e justicar as violaes dos direitos humanos. Essas divises no desaparecem magicamente sob uma nova ordem democrtica nem

surpreendente que se tenha dedicado to pouca anlise interseo entre a justia transicional e a construo da paz ps-conito. Quando apropriadamente compreendida, a justia transicional olha tanto para o futuro quanto para o passado

sanam necessariamente com o passar do tempo. Em alguns casos, a aritmtica eleitoral da democracia pode exacerbar as divises apontadas quando concedem todo o poder poltico a um grupo tnico majoritrio e assim deixam vulnervel e marginado um grupo minoritrio. Para superar as divises se requer um acordo constitucional que oferea proteo e segurana adequadas aos grupos vulnerveis. Os lderes, dentro e fora do governo, tero de tomar medidas proativas para demonstrar que a democracia est a servio de todos os cidados, que a paz atribui dividendos substanciais a todos, e que a diversidade pode ser uma fonte de fortaleza mais do que de conito11.

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11 Ver Boraine, A., A Country Unmasked ( 2000), pp.340-378; Feher, M., Terms of Reconciliation, Hesse, C., Post, R. (eds.), Human Rights in Political Transitions: Gettysburg to Bosnia (1999), pp325-328; Huyse, L., Reconciliation After Violent Conict: A Hand book (International Institute for Democracy and Electoral Assistance, (2003), pp.10-33; Huyse, L., Justice after Transition: On the Choices Successor Elites Make in Dealing with the Past, Law & Social Inquiry no. 20 (1995), pp. 51-78.

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Se a reconciliao deve ser aceita, no pode reduzir-se a ignorar o passado, negando o sofrimento das vtimas ou subordinando a exigncia da prestao de contas e a reparao a uma noo articial de unidade nacional.

JUSTIA TRANSICIONAL NA CONSTRUO DA PAZ PS-CONFLITO surpreendente que se tenha dedicado to pouca anlise interseo entre a justia transicional e a construo da paz ps-conito. Quando apropriadamente compreendida, a justia transicional olha tanto para o futuro quanto para o passado. Uma das razes crticas pelas quais enfrentamos os abusos do passado a de garantir que no se repitam, tal como se reete no ttulo do relatrio nal da comisso da verdade argentina: Nunca Mais Entretanto, . o compromisso com a preveno no a nica justicativa para confrontar esse passado, dado que um foco instrumental das atrocidades sempre estaria submetido reivindicao dos direitos das vtimas e pe sob julgamento se dito foco poria em perigo as perspectivas de paz. O que foi anteriormente ressaltado no se pode denir em termos de direito e de tica, mas tambm serviria de incentivo para que os perpetradores e tiranos interessados em evadir sua responsabilidade obstaculizassem os processos de paz at que lhes fossem outorgadas as garantias necessrias. importante aceitar que h tenses entre paz e justia no curto prazo e que em alguns casos difceis prudente e justicvel adiar as demandas da justia visando obter o trmino das hostilidades ou a transio a uma ordem democrtica. No entanto, esses reclamos da39FONTE: ARQUIVO NACIONAL E SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDNCIA DA REPBLICA

justia no devem diferir indenidamente, no s pelo efeito corrosivo que isso poderia ter sobre os esforos por construir uma paz sustentvel, mas tambm porque faz-lo signicaria aumentar a grave injustia que as vtimas j padeceram. As estratgias da justia transicional devem fazer parte integral de qualquer esforo por construir uma paz sustentvel, mas em algumas circunstncias, possvel que a paz e a justia no sejam completamente compatveis em curto prazo. No caso em que a justia dira, devem fazer-se grandes esforos para assegurar que se mantenha a possibilidade de conseguir uma prestao de contas em mdio ou longo prazo e que se implemente grande parte da agenda da justia transicional em curto prazo. Na seguinte seo so expostas algumas formas em que a justia transicional e a construo da paz ps-conito se cruzam. Centra-se nas formas em que as estratgias da justia transicional possam ampliar os esforos de construo da paz, reconhecendo, no obstante, que em algumas circunstncias esse esforo no perfeitamente complementar.

DIAGNSTICO DO PROBLEMAO desenvolvimento de uma estratgia de construo da paz ps-conito deve estar alicerado em um rigoroso exame das causas, da natureza e dos efeitos do conito prvio. Frequentemente, as comisses da verdade se encontram em uma posio vantajosa para empreender esse tipo de estudo, pois prestam especial ateno ao testemunho e s circunstncias atuais das vtimas das violaes, examinando os indivduos e as instituies responsveis pelas violaes dos direitos humanos. Grande parte das comisses coletou volumosa evidncia de milhares de fontes diferentes. Sobre essa base conseguem gerar um retrato exaustivo das violaes durante o perodo que foram encarregadas de investigar. As comisses da verdade tambm analisam as causas sociais, estruturais e institucionais do conito e as violaes dos direitos humanos. Por sua vez, elas tm capacidade de esclarecer o que aconteceu, no s em casos individuais, mas tambm no contexto mais amplo que possibilitou essas violaes. Essa funo diagnstica pode ajudar a identicar as causas fundamentais do conito e a examinar o papel que os atores externos e no governamentais tm cumprido em exacerbar e manter o conito. Nessa base, podem fazer sugestes mais efetivas e aliceradas a respeito das medidas que podem ser tomadas para atacar essas causas ou reduzir a capacidade dos atores opressores para perpetuar o conito. Essas recomendaes podem ser extraordinariamente teis para os indivduos envolvidos na criao e na execuo de estratgias de40

construo da paz ps-conito.

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CONSTRUO DO ESTADO E REFORMA INSTITUCIONALOs conitos tm efeitos desastrosos sobre as instituies estatais e por isso preciso um cuidadoso processo de reconstruo e reforma uma vez cessadas as hostilidades. As comisses da verdade e os programas de depurao podem dar uma contribuio importante para a construo do Estado e para a reforma institucional mediante sugesto das seguintes medidas: Identicao das instituies que devem ser reformadas ou eliminadas; Apresentao de propostas para assegurar que sejam reformados o mandato, a capacitao, a dotao de pessoal e as operaes das instituies especcas a m de garantir sua operao efetiva e de promover e proteger os direitos humanos; Saneamento de rgos, removendo os responsveis de corrupo ou de violaes dos direitos humanos das instituies estatais. Por meio de audincias pblicas, as comisses da verdade tambm podem direcionar a ateno governamental e pblica a instituies especcas, tais como os meios de comunicao, as prises, as instituies prestadoras de servios de sade e as instituies judiciais, servindo assim de catalisador do debate sobre a funo que essas instituies cumpriram no passado e as medidas que devem ser tomadas no futuro para incrementar sua efetividade e sua capacidade para promover e proteger os direitos humanos

REMOO DOS VIOLADORES DOS DIREITOS HUMANOS DOS CARGOS POLTICOSO empenho da justia transicional permite aos cidados compreender melhor as causas, a natureza e os efeitos das violaes dos direitos humanos. Alm disso, esclarecem e elucidam a questo da responsabilidade a respeito dessas violaes. A presena em altos cargos governamentais de pessoas direta ou indiretamente responsveis das violaes generalizadas ou sistemticas dos direitos humanos constitui um fator de predio a respeito do ressurgimento ou a continuao do conito. Ao contrrio, a remoo das mencionadas pessoas de seus cargos pode ser um aporte vital para a construo da paz ps-conito. No Afeganisto, o relatrio intitulado Um chamado justia elaborado pela Comisso Independente Afeg para os Direitos Humanos, baseado na opinio de mais de seis mil afegos residentes no pas ou em comunidade de refugiados, reconheceu como uma sria ameaa proteo dos direitos humanos o fato de que os perpetradores de graves violaes41

continuassem ocupando cargos importantes no governo central e nos governos locais12. Esse relatrio exige uma iniciativa propensa investigao das nomeaes presidenciais a m de garantir a competncia e integridade desses indivduos. A investigao de antecedentes para vericar a integridade determinaria se o candidato a um cargo foi responsvel por atos de corrupo ou por violao dos direitos humanos. Ainda que seja muito cedo para determinar se esse empenho ter sucesso, sabe-se que ele nem sequer constaria na agenda se no houvesse sido realizado um processo de pesquisas direcionadas a identicar as atitudes das pessoas a respeito das violaes passadas dos diretos humanos. Assim, uma iniciativa da justia transicional conseguiu incorporar questes de reforma poltica agenda nacional de uma maneira que aumentou as possibilidades de uma exitosa construo da paz ps-conito.

FORMAS DE TRATAR OS DANOS S VTIMAS E FORAR A RECONCILIAOSegundo Bigombe, Collier e Sambanis13, os danos consequentes do conito so um motivo signicativo do retorno aos desentendimentos nas sociedades ps-conito. Portanto, as estratgias de construo da paz devem procurar a implementao de um conjunto de polticas de destensionamento imediatamente aps o conito com vistas a diminuir o sentimento de raiva e afronta. O julgamento dos responsveis de violaes dos direitos humanos pode reduzir o desejo de vingana das vtimas, sempre e quando seja justo e cumpra com os padres internacionais. As comisses da verdade podem proporcionar s vtimas um lugar seguro para expressar a raiva, oferecendo-lhes, concomitantemente, um reconhecimento ocial do sofrimento delas14. Os programas de reparao podem fornecer recursos e servios muito necessrios s vtimas que sofreram perda, direta ou indiretamente, como consequncia das violaes dos direitos humanos. A juno dessas polticas pode auxiliar a combater os sentimentos de raiva, abandono e marginalizao que experimentam as vtimas e as comunidades nas quais habitam. Os julgamentos e as comisses da verdade tambm podem ajudar a dissolver os mitos perigosos que servem para prolongar a sensao de dano e a alimentao de futuros conitos. Em muitas situaes ps-conito, lderes sem escrpulos tentam criar e disseminar mitos sobre as vtimas e os perpetradores em que se alega que os membros de seu grupo (tnico/lingustico/religioso etc.) so vtimas inocentes e que os membros de outros grupos so todos culpveis dos atos os quais so acusados. Esses mitos so sempre inexatos, de maneira histrica, e perpetuam

12 Comisso Independente Afeg para os Direitos Humanos, Um chamado justia: Consulta nacional sobre as violaes dos direitos humanos no Afeganisto (2005), URL www.aihrc.org.af. 13 Bigombe, B., Collier, P Sambanis, N., Policies for Building Post-Conict Peace, Journal of African Economies vol.9, n 3, p.336. .,

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14 Ver Stahn, C., Accommodating Individual Criminal Responsibility and National Reconciliation: The UM Truth and Commission for East Timor, American Journal of International Law (2001), pp. 952 -966.

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as relaes conituosas entre grupos. Os tribunais podem demonstrar, por exemplo, que nem todos os srvios apoiavam a Milosevic ou que alguns hutus salvaram muitos tutsis na poca do genocdio em Ruanda. Isso pode ajudar a destruir os esteretipos explorados pelos polticos tnico-nacionalistas para obter apoio, o que quase sempre conduz ao conito.

DIREO DO DOMNIO DE GRUPOSOutro fator de risco signicativo, que serve como comeo ou retomada do conito, se d quando um grupo homogneo, tnico, lingustico ou religioso, opere com competncia no sentido de monopolizar o poder poltico e econmico. Essas situaes podem exacerbar-se ainda por determinados sistemas eleitorais que outorgam o poder s maiorias sem um sistema apropriado de freios e contrapesos. Um programa de sucesso na construo da paz ps-conito ter de incluir medidas polticas, legais e sociais que protejam contra a minoria das maiorias15. As comisses da verdade podem auxiliar na criao de uma conscincia nacional a respeito das inseguranas, da marginalizao e da vitimizao das minorias, bem como fornecer propostas de polticas para assegurar que os seus direitos estejam devidamente protegidos. A proviso de reparaes para os membros de grupos minoritrios que sofreram violaes de direitos humanos pode lhes dar a segurana de que a maioria os reconhece como cidados portadores de direitos. De maneira similar, o julgamento dos perpetradores responsveis de crimes contra as minorias pode colaborar com o aumento da conana nas instituies estatais. As propostas de reformas institucionais apresentadas pelas comisses da verdade podem fazer referncia importncia de uma adequada representao das minorias em instituies tais como a polcia, o exrcito e o judicirio, a m de gerar a conana nessas instituies por parte das minorias.

REFORMA DO SETOR DE SEGURANAA juno do julgamentos daqueles que carregam a maior responsabilidade pelas violaes dos direitos humanos, com um programa de depurao diligentemente desenhado e uma comisso da verdade que documente de forma robusta e minuciosa as violaes dos direitos humanos, pode contribuir signicativamente com a reforma dos servios da polcia, exrcito e inteligncia. O processo de reforma do setor de segurana na frica do Sul viu-se imensamente fortalecido pelas revelaes de violaes diante da Comisso da Verdade e Reconciliao e pela remoo de cargos de muitos funcionrios importantes cujos crimes foram desvendados. A sada desses indivduos foi decisiva para a transformao do ethos nessas instituies e a restaurao da conana nelas. O processo de transformao do setor de segurana, que passou de fonte opressora e de conito a uma srie de instituies de protao aos indivduos e defesa de seus direitos, recebeu um mpeto adicional com15 Para um debate interessante do consenso entre comunidades e as relaes entre Etnias na reconstruo das democracias, ver: Hislope, R., Ethnic Conict and theGenerosity Moment, Journal of Democracy (1998), pp. 140-153. Ver, por exemplo, Horowitz, D.L., Ethnic Groups in Conict (University of California Press: 1985). Ver tambm Price, R., Race and Reconciliation in the New South Africa, Politics and Society (19 97), pp. 149- 178.

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A juno do julgamentos daqueles que carregam a maior responsabilidade pelas violaes dos direitos humanos, com um programa de depurao diligentemente desenhado e uma comisso da verdade que documente de forma robusta e minuciosa as violaes dos direitos humanos, pode contribuir signicativamente com a reforma dos servios da polcia, exrcito e inteligncia.

o estabelecimento de instituies da justia transicional aps o Apartheid16. Em evidente contraste, os militares da Indonsia (e, em menor grau, integrantes da polcia) conseguiram evadir-se de qualquer tipo de investigao ou prestao de contas pelas violaes dos direitos humanos cometidos entre 1965 e 1966 que continuam ainda hoje. O vu de silncio que rodeia o assassinato de centenas de milhares de supostos comunistas na dcada de 1960, a ausncia de qualquer tipo signicativo de prestao de contas a respeito de crimes ocorridos emTimor-Leste (desde 1975 at a culminao em 1999) e as violaes continuadas no restante de Indonsia se relacionam com o fato de que as Foras Armadas de Indonsia (TNI)17 no foram responsabilizadas. Enquanto no se

iniciar um processo genuno de prestao de contas e busca da verdade, as Foras Armadas de Indonsia continuaro sendo fonte de conito e instabilidade nesse pas. No Haiti, parte vital da construo da paz ps-conito o estabelecimento de uma fora de polcia efetiva, convel e legtima. A extino do exrcito haitiano fez com que a polcia seja indispensvel para combater o crime, manter a ordem pblica e proteger os direitos humanos. Infelizmente, h bases para a suspeita de que antigos membros do exrcito, muitos deles responsveis por corrupo e violaes de direitos humanos, se inltraram na Polcia Nacional do Haiti (HNP). Se essa situao no for corrigida, deteriorar tanto a ecincia operacional da polcia quanto a sua credibilidade e legitimidade18. O mandado da Misso de Estabilizao das Naes Unidas em Haiti tem autoridade para investigar os membros da Polcia Nacional a m de garantir que os responsveis de corrupo, violaes dos direitos humanos e outros tipos de m conduta sejam demitidos. No entanto,

16 Ver, por exemplo, Vale P Security and Politics in South Africa. The Regional Dimension (Lynne Rienner: Boulder, 2002). Ver tam., bm Jackson, T., Kotze, E., Management and Change in the South African National Defence Force: A Cross-Cultural Study, Administration and Society (2005), pp.168-198. 17 Ver, por exemplo, Honna, J, Military Politics and Democratization in Indonesia (Routledge: 2000); Chandra, S., Kammen, D., Generating Reforms and Reforming Generations Military Politics in Indonesias Democratic Transition and Consolidation, World Politics (2002), pp. 96- 136. 44 18 Ver Lane C., Cop Land [Haitian Police Remain Vulnerable to Inuence of Corrupt Leaders], The New Republic (1997).

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a organizao de qualquer programa de depurao e saneamento administrativo no pode centrarse exclusivamente na forma de excluir os responsveis de violaes dos direitos humanos. Os incumbidos de arquitetar um sistema para remover indivduos de instituies crticas tambm tm de considerar o mandato, a composio e a estrutura de governo dessas instituies. No Haiti, revelou-se que h uma grande incerteza a respeito do tamanho real da HNP em parte por causa , do fato de que os ociais da polcia no so registrados como devem nem so fornecidas a eles identicaes ociais. Nesse sentido, remarca-se a necessidade de estabelecer cdigos internos de conduta e mecanismos de superviso ecazes. Assim, a depurao serviu como a ponta da lana do programa de reforma institucional. Um processo de depurao ecaz pode servir de catalisador para uma srie fundamental de reformas que no se centrem exclusivamente na conduta passada dos atuais ociais da polcia, mas que contribua para assegurar que a polcia participe de forma adequada na construo da paz ps-conito19.

IMPLEMENTAO DE PROGRAMAS DE DESARMAMENTO, DESMOBILIZAO E REINTEGRAOOs programas de Desarmamento, Desmobilizao e Reintegrao (DDR) constituem parte essencial de muitas estratgias para a construo da paz ps-conito. As instituies da justia transicional, de maneira especial os tribunais e os esquemas de depurao, tero um impacto signicativo sobre a maioria dos programas de DDR. O fato de um tribunal com jurisdio sobre as pessoas responsveis por violaes de direitos humanos manifestar que tenciona julgar energicamente a todos os perpetradores, incluindo os participantes em programas de DDR, poderia desanimar signicativamente as pessoas que consideram entregar as armas. Por outro lado, se a todos os participantes em programas de DDR oferecida imunidade jurdica absoluta, ento a probabilidade de que participem aumentaria (se no existir interveno de outros fatores). Ambos os cenrios so indesejveis por distintas razes. Um tribunal no pode julgar a todos os responsveis de violaes generalizadas dos direitos humanos e, por tal motivo, no conveniente dissuadi-los a parar sua movimentao com base em ameaas de julgamento pouco realista. De outra forma, outorgar uma anistia geral nos casos de graves violaes dos direitos humanos a m de promover a desmobilizao vai contra o direito internacional e gerar ressentimento considervel nas comunidades de vtimas. Tambm promover a ideia de impunidade, o que poderia contribuir com o reinicio das hostilidades20. Obviamente h formas mais sutis de estruturar a relao entre os programas de DDR e os tribunais. Por exemplo,

19 Ver Ahmed, S., No Size Fits All: Lessons in Making Peace and Rebuilding States, Foreign Affairs (2005), pp. 162 - 169; Galleguillos, N., Re-establishing Civilian Supremacy Over Police Institutions: An Analysis of Recent Attempted Reforms of the Security Sector in Chile, Journal of Third World Studies (2004), pp. 57-77. 20 Young, G.K., Amnesty and Accountability, U.C. Davis Law Review (Janeiro, 2002), pp. 427-482. 45

FONTE: ARQUIVO NACIONAL E SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDNCIA DA REPBLICA

a Comisso para a Recepo, a Verdade e a Reconciliao (CRTR, na sigla em ingls) em Timor-Leste utilizou um enfoque especialmente inovador para promover a reintegrao de perpetradores de crimes mais leves permitindo a eles apresentar-se, revelarem seus crimes e acordarem o incio d