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Quadrimestral v.2 - Junho 2009 Publicação do Instituto Estudos Direito e Cidadania (IEDC) 4 Versão eletrônica da revista está disponível em www.iedc.org.br/reid

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Quadrimestralv.2 - Junho 2009

Publicação do

Instituto Estudos Direito e Cidadania (IEDC)

4

Versão eletrônica da revista está disponível em

www.iedc.org.br/reid

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2 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

Revista Internacional de Direito e Cidadania / Instituto Estudos Direito e Cidadania – v.2, n. 4, Junho 2009. – Erechim, RS : Habilis, 2009. v. ; 18 x 26cm

Quadrimestral

ISSN 1983-1811 1. Direito 2. IEDC C.D.U.: 340

REID é uma publicação quadrimestral (junho, outubro, fevereiro) do Instituto de Estudos de Direito e Cidadania (IEDC).Os artigos e resenhas enviados a REID são submetidos ao Conselho Editorial, que se reserva o direito de sugerir ao autor modi-ficações de forma, com o objetivo de adequar o artigo às dimensões da revista ou ao seu padrão editorial e gráfico. A publicação

de um artigo não exprime endosso do Conselho a todas as afirmações feitas pelo autor.No que se refere aos direitos autorais, a Revista REID utiliza a licença Creative Commons 2.5 para a publicação de seus artigos.

Isso significa que os artigos podem ser copiados e distribuídos, contanto que atribuído crédito à Revista.

COORDENAÇÃOInês Virgínia Prado SoaresSandra Akemi Shimada Kishi

CONSELHO EDITORIALAdilson Paulo Prudente do Amaral FilhoAdriana Zawada MelloBlanca Lozano CutandaBruno Campos SilvaCarlos Alberto de SallesChristian CourtisDaniel SarmentoEvanson Chege KamauEverson Paulo FogolariFabiana SaenzFlávia PiovesanGeisa de Assis RodriguesGerd WinterJoão Bosco Araújo Fontes Jr.Joaquim Herrera FloresJosé Roberto Pimenta OliveiraJohn Bernhard KlebaJuliana Santilli

Ligia Maria Rodrigues CarvalheiroMarcelo Buzaglo DantasMarcus Orione Gonçalves CorreiaNelson Nery JuniorOscar VilhenaPaulo Affonso Leme MachadoRebecca PurdomRenata Porto AdriSérgio Salomão ShecairaSolange Teles da SilvaTullio ScovazziUendel UgattiVirgílio Afonso da SilvaWalter Claudius Rothenburg

EDITORAÇÃODarcy Rudimar VarellaLigia Maria Rodrigues Carvalheiro

Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath CRB 10/1278

www.iedc.org.br www.habiliseditora.com.br

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3Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

SUMÁRIO

Sumário

5COLABORADORES

7MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES Bruno Campos Silva

17DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADESCULTURALESDavid José Geraldes Falcão

31NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DAS PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICASDouglas Fischer

39EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAISEwerton Teixeira Bueno

45UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA DITADURA BRASILEIRA Gabriela Freire Kühl de Godoy

55ACESSO A DOCUMENTAÇÃO GOVERNAMENTAL E DIREITO À MEMÓRIA E VERDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE LEIInês Virgínia Prado Soares

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4 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

Sumário

63A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DEENFRENTAMENTO PELAS CIDADESIvan Carneiro Castanheiro

79CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHOIvam Gerage Amorim

97SEGURANÇA ALIMENTAR NA ERA BIOTECNOLÓGICAJoão Carlos de Carvalho Rocha

109TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIROJosé Renato Martins

135DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL Juliana Santilli

151O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA:O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAISLuis Manuel Fonseca Pires

165A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUMMaria Garcia

171A LEI 11.794/2008 – A CRUELDADE CONTRA OS ANIMAISPaulo Affonso Leme Machado

Discussão

175FLORESTAS E JARDINSFernanda Alves Vieira

177CRIMINALIDADE DO PODER, POLÍCIA E IMPUNIDADEPaulo Queiroz

179COLÓQUIO “LA EVOLUCIÓN DE LA ORGANIZACIÓN POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DE AMÉRICA DEL SUR”Marcelo Figueiredo

Resenha203LES THINK TANKS: CERVEAUX DE LA GUERRE DES IDÉES, DE STEPHEN BOUCHER E MARTINE ROYOPedro Guimarães Pires

205NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

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5Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

COLABORADORES

BRUNO CAMPOS SILVAAdvogado em Belo Horizonte-MG e Brasília-DF. Associado a Zambiazi Advogados e Consultores, em Belo Horizonte-BH. Professor convidado do curso de pós-graduação lato sensu em Direito Ambiental, da Universidade de Piracicaba-SP, UNIMEP. Especialista em Direito Processual Civil pelo CEU de São Paulo.

DAVID JOSÉ GERALDES FALCÃOLicenciado em Direito; Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca; Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca; professor de Direito da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal); Coordenador da li-cenciatura em Solicitadoria e da pós-graduação em Solicitadoria de Execução da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal).

DOUGLAS FISCHERProcurador Regional da República na 4ª Região, professor de Processo Penal.

EWERTON TEIXEIRA BUENOTécnico Administrativo e estagiário do Ministé-rio Público Federal, além de acadêmico de direito da Universidade São Francisco.

FERNANDA ALVES VIEIRAAdvogada especialista em Direito Ambiental pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba; Ex-consultora jurídica da SUPRAM - Superintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável TM/AP, ligada ao COPAM – Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais.

GABRIELA FREIRE KÜHL DE GODOYEstudante de Direito da PUC-SP.

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARESProcuradora da República em São Paulo, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universida-de Católica de São Paulo, Especialista em Direito Sanitário pela UNB e Presidente do Instituto de Estudos Direito e Cidadania – IEDC. Pesquisa-dora em nível de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

IVAN CARNEIRO CASTANHEIRO2º Promotor de Justiça de Americana, Mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP e Coor-denador da Área de Habitação e Urbanismo, do C.A.O. Cível e de Tutela Coletiva, do Ministério Público do Estado de São Paulo.

IVAM GERAGE AMORIMAdvogado. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Ambiental pela UNIMEP/ Piracicaba. Estagiário no An-derson, Coe & King, LLP Attorneys at Law em Baltimore (Maryland), Estados Unidos.

JOÃO CARLOS DE CARVALHO ROCHAProcurador Regional da República na 4a. Região, Mestre em Direito pela PUC/RS, autor do livro Direito ambiental e transgênicos: princípios fundamentais da biossegurança (2008).

Colaboradores

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6 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

JOSÉ RENATO MARTINSDoutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito Consti-tucional pela Universidade Metodista de Pira-cicaba – UNIMEP. Professor de Direito Penal nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Professor de Direito Penal na Faculdade de Direito das Faculdades de Campinas – FACAMP. Coordenador do Curso de Direito Campus Taquaral da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Advogado e Ex-Delegado de Política de Carreira do Estado de São Paulo.

JULIANA SANTILLIPromotora de Justiça, do Ministério Público do Distrito Federal, sócia-fundadora do Instituto Socioambiental (ISA), mestre em Direito pela Universidade de Brasília e doutoranda pela PUC-PR. Autora do livro “Socioambientalismo e novos direitos” (Editora Peirópolis/ISA/IEB, 2005).

LUIS MANUEL FONSECA PIRESMestre e Doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP. Juiz de Direito em São Paulo.

MARCELO FIGUEIREDOLivre-docente pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(PUC/SP) e Diretor da Faculdade de Direito da PUC/SP.

MARIA GARCIALivre-Docente pela PUC-SP. Professora de Direito Constitucional, Direito Educacional e Biodireito Constitucional na PUC-SP. Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-SP. Procuradora aposentada do Estado de São Paulo. Ex-Assistente Jurídica da Reitoria da USP. Membro-fundador e atual Diretora Geral do IBDC. Membro da CoBi do HCFMUSP e do IASP. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. (Cadeira Enrico T. Liebman).

PAULO AFFONSO LEME MACHADOProfessor na Universidade Metodista de Piraci-caba. Autor do livro Direito Ambiental Brasileiro (16. ed.). Professor Convidado na Universidade Ecológica de Bucareste (Romênia) – 2008. Prê-mio Internacional de Direito Ambiental “Eliza-beth Haub” (1985).

PAULO QUEIROZProfessor (UniCEUB) e Procurador Regional da República.

PEDRO GUIMARÃES PIRESEstudante de Direito da Universidade Federal de Sergipe.

Colaboradores

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7Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009

MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

RESUMO: O presente trabalho foi concebido no sentido de traçar importantes considerações acerca do meio ambiente e da cultura em nosso país. Para tanto, esboçamos algumas digressões e reflexões que, sem dúvida alguma, levam ao preciso (rectius: escorreito) raciocínio das estruturas de um verdadeiro Estado Constitu-cional brasileiro. Não deixamos de adentrar aos aspectos inerentes ao procedimento que levou à concepção da legislação federal concernente às mudanças impostas à nossa língua oficial, além do mais, afirmamos ser a língua importante elemento fundamental da cultura. Em arremate, lançamos algumas considerações para se atingir o real desiderato do Estado Democrático de Direito, sem cogitar na implementação de um reprochável Estado de Exceção. Palavras-chave: Meio ambiente. Cultura. Lín-gua portuguesa. Estado Democrático de Direito. Constituição. Informação.

ABSTRACT: This study was designed to outline important considerations about the environment and culture of our country. For this, we outli-ned some digressions and reflections which, undoubtedly, led to the precise reasoning of the structures of a genuine Brazilian constitutional state. We didn’t forget to enter the aspects of the proceeding that led to the design of federal legislation concerning the changes imposed on our language; moreover, we affirm that the

* Advogado em Belo Horizonte-MG e Brasília-DF. Associado a Zambiazi Advogados e Consultores, em Belo Horizonte-BH. Professor convidado do curso de pós-graduação lato sensu em Direito Ambiental, da Universidade de Piracicaba-SP, UNIMEP. Especialista em Direito Processual Civil pelo CEU de São Paulo.

Bruno Campos Silva*

Artigo

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8 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009

SILVA, B. C.

language is an important fundamental element of culture. Lastly, we launched some considera-tions to achieve the real goal of the democratic state under the rule of law, not even pondering the implementation of a reprehensible State of Exception. Keywords: Environment. Culture. Portuguese Language. Democratic State under the rule of Law. Constitution. Information

1. Meio Ambiente e Constituição

Consabido por todos que o meio ambiente adquiriu sua efetiva proteção, a partir do tecido constitucional de 1988 (ex vi do art. 225), Ca-pítulo VI.

Falo aqui em “tecido” constitucional, pelo simples fato de que a Constituição deverá ser interpretada e concretizada com a conjugação sistêmica de variados preceitos, regras, regra-mentos (como queiram alguns), princípios (con-jugar, de forma efetiva, aquele previsto no art. 170, VI), postulados normativos como defende o ilustre Prof. Humberto Ávila.1 O tema é vasto, rendendo até mesmo livros a respeito do assunto, o que, também não se afigura o escopo central do presente trabalho.

A nossa Constituição é muito maltratada, nem mesmo os fundamentos (ex vi do art. 1º) e objetivos (ex vi do art. 3º) da República Fede-rativa são respeitados em sua plenitude, apenas e tão-somente de maneira paliativa, bem como suas garantias (ex vi do art. 5º) e o piso vital mínimo (ex vi do art. 6º), todos inerentes a salva-guardar o meio ambiente; doa a quem doer.

Eis as perfeitas colocações do mestre Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello: “(...) À vista deste panorama, ainda incipiente, mas desde logo preocupante, é difícil prenunciar, nestes umbrais do próximo milênio, o que seus albores reservam para a sobrevivência da democracia e, muito mais, portanto, para as possibilida-des dos países subdesenvolvidos acederem às condições propiciatórias de uma democracia

substancial. É que os subdesenvolvidos têm sido e são, naturalmente, meros piões no tabu-leiro de xadrez da economia e, pois, da política internacional; logo, por definição, sacrificáveis para o cumprimento dos objetivos maiores que movem as peças. (...) Talvez se possa concluir, apenas, que as condições evolutivas para aceder aos valores substancialmente democráticos, como igualdade formal, segurança social, respeito à dignidade humana, valorização do trabalho (todos consagrados na bem concebida e mal-tratada Constituição Brasileira de 1988), ficarão cada vez mais distantes à medida em que os Governos dos países subdesenvolvidos e dos eufemicamente denominados em vias de desenvolvimento – em troca do prato de lentilhas constituído pelos aplausos dos países cêntricos – se entreguem incondicionalmente à sedução do canto da sereia proclamador das excelências de um desenfreado néo-liberalismo e pretensas imposições de uma idolatrada economia global. Embevecidos narcisisticamente com a própria ‘modernidade’, surdos ao clamor de uma popu-lação de miseráveis e desempregados, caso do Brasil de hoje, não têm ouvidos senão para este cântico monocórdio, monolítica e incontrasta-velmente entoado pelos interessados”.2

Com as brilhantes observações do mestre administrativista, pode-se chegar à conclusão que sempre defendemos, ou seja, sem a íntegra valorização do trabalho humano, sem salário dig-no, sem saúde digna, sem moradia digna e segu-ra, resumindo sem a concreta operacionalização do texto constitucional; o meio ambiente irá, com toda certeza, sucumbir debaixo de nossos olhos, ou como dizia o poeta e cantor Caetano Veloso (“Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, e, acrescento, debaixo dos nossos também!).

Em outra oportunidade, demonstramos tal indignação fazendo, inclusive, alusão ao poeta e cantor Renato Russo, em sua música “Que País É Este?”.

Importante digressão é que, nos idos da ditadura militar, fervilhavam intensos movimen-tos culturais.

1 Teoria dos princípios– da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7ª Ed., SP: Malheiros, 2007.2 “A democracia e suas dificuldades contemporâneas”. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coordenadoras). Revista

Internacional de Direito e Cidadania/Instituo Estudos Direito e Cidadania – v. 1, n. 4, Outubro 2008. – São Paulo, SP: Habilis, 2008, p. 62.

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9Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009

MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

Chega de mentiras ou adoção de medidas paliativas, o mundo precisa de uma mudança com atitude radical (com utilização do bom senso e transparência), logicamente, sem engessar o desenvolvimento, como pretendem alguns ou vários.

2. Cultura e Constituição

A Cultura em nosso país é tratada em tópico especial, ou melhor, na Seção II, do Capítulo III, de nossa Constituição (ex vi dos arts. 215 e 216).

Entretanto, não vislumbramos, ainda, qualquer interesse real e concreto em prol de sua efetiva proteção.

Um país aculturado, com certeza, dominá-vel ou já dominado! E naquela época, do regime militar, as informações eram decotadas, para atenderem apenas aos interesses dos dominantes, com o devido respeito.

Percucientes as observações do mestre Prof. Paulo Affonso Leme Machado: “A demo-cracia nasce e vive na possibilidade de informar-se. O desinformado é um mutilado cívico. Haverá uma falha no sistema se uns cidadãos puderem dispor de mais informações que outros sobre um assunto que todos têm o mesmo interesse de conhecer, debater e deliberar.”3

A Cultura implica em variadas perspec-tivas, as quais deverão ser de igual forma e qualidade preservadas pela Sociedade e Poder Público, s.m.j..

É claro que nosso país possui uma enorme diversidade cultural, o que, a toda evidência, deverá ser respeitada.

A própria Constituição traz em tópico apro-priado, como dito anteriormente, a afirmação de sua proteção, bem como indica implicações para possíveis e concretas transgressões.

O meio ambiente (e nele, com toda lógi-ca, a Cultura), segundo nosso entendimento, afigura-se direito fundamental à sobrevivência e convivência.

A informação transparente, idônea e des-garrada de interesses escusos consubstancia-se num dos principais alicerces de nossa Cultura.

E mais, as peculiaridades de nossa Cultura exigem respeito e proteção.

Afirma o mestre alemão Prof. Peter Häber-le: “No âmbito constitucional, os feriados per-tencem a uma tríade de ‘elementos de identidade cultural do Estado constitucional’. Ela consiste em feriados, hinos nacionais (sobre isso a recente monografia do autor de 2007) e bandeiras nacio-nais (a respeito também o livro: Nationalflaggen als bügerdemokratische Identitätselemente und internationale Erkennungsymbole, 2008).

Em alguns países, as bandeiras, os hinos, e os feriados nacionais são vivenciados ‘con-juntamente’ de forma intensiva num único dia. O Estado constitucional aberto necessita de elementos culturais de base. Cultura é o ‘húmus’ de toda sociedade aberta. Ela é que lhe confere ‘fundamento e motivos!’. Sem cultura, o homos politicus ficaria sem chão. O economicismo de nossos dias não fornece sustentação interna, mesmo que uma economia eficaz continue a ser tão importante. Por isso, é importante que uma teoria constitucional, entendida como ciência da cultura, se ocupe monograficamente desses temas citados e literalmente os ‘vincule’. (...) Tais dias da Constituição não podem ser, de forma alguma, teoricamente sobre-estimados: eles servem à possível identificação do cida-dão com seu Estado constitucional nacional, à conscientização de seus valores e à sustentação interna da sociedade aberta. A ciência também deveria contribuir para o êxito de tais aconteci-mentos, como através de grandes preleções de estudiosos do Estado ou seminários conjuntos com estudantes”.4

A partir do momento em que a Constitui-ção afirma a valorização do trabalho humano e um de seus fundamentos, qual seja, a dignidade humana, todo cidadão tem direito a esse bem dotado, como dito alhures, de peculiaridades próprias, que, afinal de contas, convergem às diretrizes do Estado Democrático de Direito.

3 Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p.50.4 Constituição e cultura – o direito ao feriado como elemento de identidade cultural do estado constitucional. Tradução de Marcos Augusto Maliska

e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, xii do prefácio à edição brasileira.

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10 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009

SILVA, B. C.

Em relação à efetiva proteção da Cultura e da língua portuguesa em suas diversidades, imperioso destacar primoroso trabalho elaborado pela insigne Profa. Inês Virgínia Prado Soares: “A cultura é o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange também as artes e as letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. Dentre os traços integrante da cultura, a lingua-gem é um dos mais significativos, não somente para a presente e as futuras gerações como para a compreensão da humanidade em sua trajetória na terra.

A linguagem, forma de expressão estrei-tamente ligada à liberdade e à essência da vida humana, pode ser tratada no plano jurídico como bem cultural viabilizador de direitos humanos e como vetor do patrimônio cultural imaterial. Nesse sentido, a utilização da língua é exercício dos direitos culturais lingüísticos, contrapartida dos direitos de liberdade de expressão e comuni-cação e materialização do bem cultural intangível (forma de expressão).

Em razão disso, a língua é elemento funda-mental da diversidade cultural e, portanto, não se pode falar em direitos culturais lingüísticos e em direito fundamental ao patrimônio cultural lingüístico sem considerar o acolhimento, pelo ordenamento jurídico, do respeito à língua ma-terna e do reconhecimento direito da comunidade de se expressar de acordo com os valores que afirmam sua identidade cultural”.5

3. Cultura e a língua portuguesa – breves, porém relevantes comentários

A Cultura e a língua oficial de nosso país, ou seja, a portuguesa (ex vi do art. 13, caput, da CF/88), são bens tutelados pela Constituição.

Aproveitando o percuciente raciocínio da insigne Profa. Inês Virgínia Prado Soares, se se

tratarmos a língua portuguesa como elemento fundamental da diversidade cultural, então, já adiantamos que esse mesmo elemento integra fundamentos e objetivos de nossa República, portanto, sua alteração como, aliás, aconteceu, via acordo para integração entre países, não seria viável nem por emenda constitucional, uma vez que agride, com o devido respeito às opiniões contrárias, a própria forma federativa do país, constante do rol das cláusulas pétreas de nossa Constituição (ex vi do art. 60, § 4º, I).

Essa é a nossa singela, porém necessária opinião.

Não somos avessos à diversidade cultural existente em nosso país, somente não concor-damos, com o procedimento (rectius: trâmite), com que foram conduzidas e empreendidas as alterações ortográficas de nossa gramática.

Outro ponto merecedor de destaque é que a informação em nosso país, infelizmente, ainda, está longe de sua transparência, tanto é verdade, que, inúmeras pessoas com altos níveis de formação, ainda, vacilam em seus escritos, divulgando, o que, diríamos, “a má digestão de uma verdadeira manipulação”.

Incertezas, ainda, permanecerão, o que, traz insegurança jurídica a todo país, levando-se em consideração a má técnica legislativa conduzida pelo legislador, em sua desregrada legiferância!

As regras ortográficas empreendidas esca-pam ao conteúdo deste singelo estudo.

Parece, ao que tudo indica, confundirem o desenvolvimento da língua portuguesa com a integração do país.

Isso implica diversidade cultural, social, econômica, histórica, meio ambiente, e, diga-se de passagem, todos os países que entabularam o acordo, transformando-o em texto legal, en-frentam sérias dificuldades em toda diversidade mencionada, s.m.j..

E as audiências públicas (verdadeiro momento de exercício da cidadania) abertas à comunidade científica jurídica e aos demais cientistas da área específica?

5 “Cidadania cultural e direito à diversidade lingüística: a concepção constitucional das línguas e falares do Brasil como bem cultural”. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coordenadoras). Revista Internacional de Direito e Cidadania/Instituo Estudos Direito e Cidadania – v. 1, n. 1, Junho 2008. – São Paulo, SP: Habilis, 2008, p. 84.

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11Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009

MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

E isso, com certeza, atinge diretamente nossa Federação, nossa Soberania!

Não estamos aqui, querendo colidir opinião com exímios conhecedores de nossa língua ofi-cial (v.g., o ilustre Prof. Dr. Evanildo Bechara), mas apenas fomentar salutar debate jurídico a respeito de temática importantíssima ao fortale-cimento do Estado Democrático de Direito.

4. Algumas digressões e reflexões em relação à transição de nossa justiça no Estado Democrático de Direito

Cumpre colacionarmos bela passagem eri-gida pelo ilustre Prof. Celso Lafer, em dezembro de 1981, quando da elaboração do posfácio da grandiosa obra “A condição humana”, de Hannah Arendt: “Em The Human Condition Hannah Arendt apresenta uma das mais brilhantes e originais análises da natureza, do mecanismo, da complexidade, do «pathos» e do significado da ação. Esta análise está a serviço da esperança de democracia, que é a sua mensagem maior, pois, neste livro, Hannah Arendt mostra como ação, palavra e liberdade não são coisas dadas, mas requerem, para surgirem, a construção e a manutenção do espaço público. A liberdade é um «a fortiori» da auto-revelação humana no seio de uma comunidade política no qual existe espaço público. A vocação da liberdade, que as-segura o espaço público, exige, por isso mesmo, coragem para expôr o ser em público – coragem que nunca faltou a Hannah Arendt e sem a qual também não se constrói democracia. Esta é a sua lição: uma lição de criatividade intelectual e coragem política, das mais oportunas na presente conjuntura brasileira.”6

Para algumas importantes digressões (nos idos das imposições autoritárias), lançamos mão da preciosa obra dos ilustres Profs. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco: “Vista na perspec-tiva do tempo, a Constituição de 1937 não foi

apenas um texto autoritário, como tantos outros que marcaram a nossa experiência constitucio-nal. Foi, também, uma grande frustração insti-tucional, como assinalou Waldemar Ferreira em palavras que, possivelmente, terão sido as mais adequadas para traduzir o que aconteceu com o estado de poder da ditadura Vargas, palavras que, por isso mesmo, merecem transcrição, ainda que extensa: ‘Desenhou-se complexamente o mecanismo do que se batizou – de Estado Novo. Não puderam os seus artífices, por isso mesmo, pô-lo em funcionamento. Não passou a carta de 1937 de engodo, destinado, pura e simplesmente, a disfarçar regime ditatorial em toda a amplitude do conceito. Destituída de sinceridade, aquela carta teve existência apenas no papel. Eis por-que o seu organismo político nunca se armou. Tudo quanto nela se planejou foi mera fantasia. Não passou de cometimento demasiadamente longo para que se pudesse haver como simples tentativa; mas caracterizou-se como documento inapto, tardiamente desfeito, posto que inicial-mente malogrado, para que se pudesse haver como Constituição, que assim indevidamente se qualificou. (...).

Não chegou a carta de 1937, em verdade, a adquirir foros constitucionais. Não os alcançou por faltar-lhe o alento que somente lhe poderia ter vindo de ter sido elaborada pelo povo brasileiro. Não resultou da observância e aprimoramento dos princípios constitucionais pelos quais ele sempre se orientou e se regeu. Não surgiu dele, exprimindo-lhe as aspirações e sentimentos ní-tida e tradicionalmente democráticos.

Pelo contrário, ela se desfechou sobre ou contra ele.

Não ganhou corpo porque, já se disse, e em reiterar nada se perde, ele não chegou a homologá-la com o seu voto, expresso em ple-biscito procrastinado e nunca realizado: ela lhe foi imposta pelas forças armadas, ou com o seu assentimento silencioso de cúmplices’”.7

Em continuação às nossas digressões (em relação à Constituição de 1946 – pós-Estado Novo), para após delinearmos algumas reflexões,

6 Hannah Arendt, A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer, 10ª Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 352.

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12 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009

SILVA, B. C.

importante, ainda, utilizarmos o escorreito po-sicionamento dos precitados constitucionalistas: “(...) Debruçando-se, igualmente, sobre o seu texto, outra não é a conclusão a que chegou Mi-guel Reale, para quem a Constituição de 1946, conquanto mereça louvores pelos seus acertos – e. g., a melhor distribuição das competências entre a União, os Estados e os Municípios, a fixação de diretrizes gerais de ordem econômi-ca ou educacional, e o significativo avanço em delinear, além dos direitos políticos, também os direitos sociais -, nem por isso há de ser poupada de críticas quanto ao que ele chamou de quatro graves equívocos daquele documento político, a saber: a) o enfraquecimento do Executivo, dei-xado à mercê do Legislativo; b) o fortalecimento do Legislativo, mas num quadro normativo anacronicamente reduzido às figuras da lei cons-titucional e da lei ordinária; c) a criação de óbices à intervenção do Estado no domínio econômico, o que era incompatível co a sociedade industrial emergente; e, por fim, d) a adoção do pluralismo partidário, sem limitações nem cautelas, o que levou ao surgimento da ‘política estadual’ e à criação de ‘partidos nacionais’ de fachada, cujas siglas escondiam meras federações de clientelas ou de facções legais”.8

E, ainda, citando pensamentos dos mes-tres Paulo Bonavides e Paes de Andrade: “(...) Julgando-a, favoravelmente, no entanto, Paulo Bonavides e Paes de Andrade destacam, desde logo, que a Constituição de 1946 recuperou com decisão o princípio federativo, que praticamente desaparecera sob a Carta de 1937, com a entrega do governo dos Estados a prepostos do poder central. No plano das liberdades, em geral, ob-servam que aquela Carta declarou, solenemente, inviolável a liberdade de consciência e de crença, assim como livre o exercício de cultos religiosos, ressalvados os que fossem contrários à ordem pública e aos bons costumes. Mais, ainda, deixou assente que as liberdades e garantias indivi-duais, de resto declaradas mais amplas do que as constantes, exemplificativamente, no corpo da Constituição, não poderiam ser cerceadas por

qualquer expediente autoritário, razão por que a aprovação do estado de sítio fora reservada, com exclusividade, ao Congresso Nacional, compos-to, novamente, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. No que toca ao Legisla-tivo e ao Judiciário, espezinhados sob a Carta de 1937, o texto democrático de 1946 buscou devolver-lhes a dignidade, pelo respeito às suas tradicionais prerrogativas e uma equilibrada partilha do poder político, apesar da opinião em contrário dos que entendem que esse modelo acabou desequilibrando a balança em favor do Legislativo e gerando, mais tarde, fricções que colaboraram para a erosão daquela lei fundamen-tal. A criação de partidos políticos, em princípio, foi declarada livre, vedando-se, no entanto, a organização, o registro e o funcionamento de partidos ou associações cujo programa ou ação contrariasse o regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem”.9

Nestes breves rascunhos de nossa história, não titubeamos em fazer referência ao impor-tante estudo do insigne Prof. Marcelo Neves: “(...) Estabelecido que a constitucionalização simbólica como alopoiese do sistema jurídico é um problema típico do Estado periférico, cabe, por fim, uma breve referência exemplificativa ao caso brasileiro. Em trabalho anterior já propus uma interpretação da experiência constitucional brasileira como círculo vicioso entre instrumen-talismo e nominalismo constitucional. Não é este o local para uma nova abordagem interpretativa do desenvolvimento constitucional brasileiro. Aqui interessa considerar, em traços gerais, como apoio empírico da argumentação prece-dente, a função hipertroficamente simbólica das ‘Constituições nominalistas’ brasileiras de 1824, 1934, 1946 e 1988. Conforme já afirmei no item anterior de maneira genérica, não se nega, com isso, que as ‘Constituições instrumentalistas’ de 1937, e 1967/1969 tenham exercido funções simbólicas: a primeira, p. ex., através da declara-ção dos direitos sociais, que atingia apenas uma pequena parcela da população; os documentos

7 Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 172.8 Idem, p. 173.9 Idem, p. 174.

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MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

constitucionais de 1967/1969, mediante as de-clarações de direitos individuais e sociais não respaldadas na realidade constitucional. Mas, em ambos os casos, desvinculava-se, a partir de dispositivos da própria ‘carta política’ ou de leis constitucionais de exceção, o chefe supremo do executivo de qualquer controle ou limitação jurídico-positiva. A legislação constitucional, casuisticamente modificada de acordo com a conjuntura de interesses dos ‘donos do poder’, tornava-se basicamente, então, simples instru-mento jurídico dos grupos políticos dominantes, atuava como uma ‘arma’ na luta pelo poder. O que distinguia fundamentalmente o sistema de relação entre política e direito era, portanto, o ‘instrumentalismo constitucional’, de maneira alguma a constitucionalização simbólica”.10

Antes de prosseguirmos, imperioso tra-çarmos algumas considerações de cunho expli-cativo.11

Com relação ao texto constitucional, “Constituição nominalista” (adotando constru-ção do Prof. Marcelo Neves, com forte emba-samento nas idéias de Loewenstein), seria uma carta com dispositivos contrários ao autoritaris-mo, entretanto, ainda, com tendências a fortes influências de determinados grupos resistentes a concretas mudanças.12

Mais uma vez, utilizamos o lúcido enten-dimento do ilustre Prof. Marcelo Neves: “(...) A constitucionalização simbólica de orientação social-democrática e restabelecida e fortificada com o texto constitucional de 1988. Com o esgotamento do longo período de ‘constitucio-nalismo instrumental’ autoritário iniciado em 1964, a identificação simbólica com os valores do constitucionalismo democrático deixou de ser relevante politicamente apenas para os críticos do antigo regime, passando a ser significativa também para os grupos que lhe deram sustenta-

ção. À crença pré-constituinte na restauração ou recuperação da legitimidade estava subjacente um certo grau de ‘idealismo constitucional’. O contexto social da Constituição a ser promul-gada já apontava para limites intransponíveis à sua concretização generalizada. Nada impedia, porém, uma retórica constitucionalista por parte de todas as tendências políticas; ao contrário, parece que, quanto mais as relações reais de poder afastavam-se do modelo constitucional social-democrático, tanto mais radical era o discurso constitucionalista.

Suposto que, diante da exigência de dife-renciação funcional e de inclusão na sociedade moderna, é função jurídica da Constituição institucionalizar os direitos fundamentais e o Estado de bem-estar (Cap. II.1.3.D.a), não cabe-riam restrições ao texto constitucional, no qual as declarações de direitos individuais, sociais e coletivos são das mais abrangentes. Também quanto à prestação, seja no que se refere ao es-tabelecimento de procedimentos constitucionais para a solução jurídica de conflitos (due process of law) ou à previsão de mecanismos específicos de regulação jurídica da atividade política (Cap. II.1.3.D.b e c), o texto constitucional é suficien-temente abrangente”.13

E, ainda: “(...) O problema surge no plano da concretização constitucional. A prática política e o contexto social favorecem uma concretização restrita e excludente dos dispositivos constitucio-nais. A questão não diz respeito apenas à ação da população e dos agentes estatais (eficácia), mas também à vivência dos institutos constitucionais básicos. Pode-se afirmar que para a massa dos ‘subintegrados’ trata-se principalmente da falta de identificação de sentido das determinações constitucionais. Entre os agentes estatais e os setores ‘sobreintegrados’, o problema é ba-sicamente de institucionalização (‘consenso

10 A constitucionalização simbólica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007, p. 177-178.11 Cumpre-nos, esclarecer o fenômeno da alopoise adotado por Marcelo Neves, baseado no modelo de Teubner, “a alopoise implica, em primeiro

lugar, a não-constituição ou o bloqueio generalizado do entrelaçamento hipercíclico dos componentes sistêmicos (ato, norma, procedimento e dogmática jurídicos). Mas pode significar algo mais: a não-constituição auto-referencial de cada espécie de componentes sistêmicos. Nesse caso, as fronteiras entre sistema jurídico e ambiente social não só se enfraquecem, elas desaparecem”. (Op. cit., 147-148)

12 Verificar os comentários tecidos por Jürgen Habermas a respeito da obra do Prof. Marcelo Neves: “O problema de Hegel [as diferenças percebidas entre o ‘conceito’ e a ‘realidade existente’ do Estado] retorna de outra maneira, quando consideramos aquelas sociedades em que a letra imaculada do texto constitucional não é mais do que a fachada simbólica de uma ordem jurídica imposta de forma altamente seletiva”. (Em referência ao presente livro.)

13 A constitucionalização simbólica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007, p. 183-184.

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SILVA, B. C.

suposto’) dos respectivos valores normativos constitucionais. Nessas condições não se constrói nem se amplia a cidadania (art. 1º, inciso II) nos termos do princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput), antes se desenvolvem relações concretas de ‘subcidadania’ e ‘sobrecidadania’ em face do texto constitucional”.14

E arremata com a acuidade que lhe é pe-culiar: “Os problemas de heterorreferência são inseparáveis das questões concernentes à auto-referência do sistema jurídico ao nível constitu-cional (cf. item 3 deste capítulo). O bloqueio per-manente e generalizado do código ‘lícito/ilícito’ pelos códigos ‘ter/não-ter (economia) e ‘poder/não-poder’ (política) implica uma prática jurídi-co-política estatal caracterizada pela ilegalidade. Quanto à constitucionalidade, as dificuldades não se referem apenas à incompatibilidade de certos atos normativos dos órgãos superiores do Estado com dispositivos constitucionais, como, p. ex., no caso do uso abusivo das medidas provisórias pelo Chefe do Executivo; o problema não se restringe à ‘constitucionalidade do direito’, mas reside antes na ‘juridicidade da Constituição’, ou seja, na (escassa) normatividade jurídica do texto constitucional”.15

Em introdução à relevante obra do mestre Prof. Friedrich Müller, destaca o ilustre Prof. Peter Naumann: “(...) Deve-se chamar a atenção ao fato de que estrutura da norma designa como conceito operacional o nexo entre as partes con-ceituais integrantes de uma norma (programa da norma – âmbito da norma) e não, e.g., as relações entre os pontos de referência da teoria tradicional do direito (como ser e dever ser, suporte fático e conseqüência jurídica norma e conjunto de fatos). Os elementos estruturais mencionados atuam conjuntamente no trabalho efetivo dos juristas de um modo ao qual se atribuía normatividade. Normatividade não significa aqui nenhuma força normativa do fático, tampouco a vigência de um texto jurídico ou de uma norma jurídica. Ela pressupõe a concepção – a ser explicitada mais

tarde – da norma como um modelo ordenador materialmente caracterizado e estruturado. Nor-matividade designa a qualidade dinâmica de uma norma assim compreendida, tanto de ordenar à realidade que lhe subjaz – normatividade concre-ta – quanto de ser condicionada e estruturada por essa realidade – normatividade materialmente determinada. Com isso a pergunta pela relação entre direito e realidade já está dinamizada no enfoque teórico e a concretização prática é con-cebida como processo real de decisão”.16

As precitadas digressões e reflexões re-tratam a inconteste justiça transitória em nosso Estado Democrático de Direito.

Importante destacar que a verdade e me-mória afiguram-se imprescindíveis ao resgate, e, ao mesmo tempo, à afirmação de direitos constitucionais que, em certo momento, foram indevidamente coarctados, na época do AI-5 (AI – Ato Institucional), tanto assim, que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) teceu relevan-tes comentários incisivos em relação à época do regime ditatorial.17

A memória e a verdade são necessárias à manutenção de toda uma reação efetiva para mu-danças estruturais em nosso Estado de Direito.

Tais digressões importam em revolver fatos históricos embutidos na memória de todo cida-dão brasileiro, que, presenciou, diante do AI-5, a suspensão de direitos constitucionalizados (v.g., habeas corpus) e prisões indevidas.

Agora, para tecermos importantes digres-sões e reflexões, convém trazer à baila repor-tagem de Tamis Parron: “A ditadura terminou há 20 anos e parece ser uma página virada da história brasileira. Parece, mas não é. O regime militar botou o país de pernas para o alto, tanto no bom quanto no mau sentido, e provocou mudanças de fôlego que ainda hoje fazem toda diferença no nosso dia-a-dia. Parou no conges-tionamento? Lembre que foram os militares que consolidaram o modelo de transporte baseado

14 A constitucionalização simbólica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007, p. 184.15 Idem, p. 184-185.16 Teoria estruturante do direito; tradução Peter Naumann, Eurides Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 15.17 Notícias STF, Sexta-feira, 16 de Janeiro de 2009. “O impacto do AI-5 no Brasil no Supremo“, www.stf.jus.br. Verificar importante obra da ilustre

Profa. Maria Fernanda Salcedo Repolês Quem deve ser o guardião da constituição? Do poder moderador ao Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.

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MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS DIGRESSÕES E REFLEXÕES

no carro, iniciado por Juscelino Kubitschek. Ligou a televisão e ficou orgulhoso da qualidade de técnica da produção brasileira? Atente para o impulso que os governos autoritários deram para o setor. Fica indignado cada vez que o presidente Lula assina uma Medida Provisória? Não esqueça que as MPs são o velho decreto-lei militar repaginado.

É difícil apontar uma área da vida brasileira que não tenha sofrido influência dos governos militares. Afinal, foram 21 anos de poder exer-cido com mão pesada. Em alguns setores, no entanto, as pegadas do período estão mais claras. Dívida externa, política de terras, distribuição de renda, indústria automobilística e produção de energia são bons exemplos disso.

Todo balanço da ditadura acaba sendo negativo – afinal, foram anos de repressão e vio-lência, em que a vontade dos governados contou menos que a dos governantes. Mas o tempo já permite separar o joio do trigo, admitindo ações positivas em algumas frentes.

É tarefa delicada. No campo minado das paixões que o período desperta, defensores e críticos até hoje trocam farpas. Mas se os gover-nos militares lançaram os fundamentos da pós-graduação brasileira, de outro lado estimularam a criação indiscriminada de cursos privados. Se geraram condições para o crescimento, deixaram de distribuir rendas”.18

Isso implica afirmar que tanto o meio ambiente como a cultura foram diretamente conspurcados pelo regime militar.

Na realidade, precisamos refletir em como operacionalizar (rectius: concretizar) os diversos princípios e preceitos erigidos em nossa Consti-tuição, sob pena de relegarmos a oblívio o Estado Democrático de Direito.19

Em sua primorosa obra, destaca o mestre Prof. Peter Häberle: “(...) Ao rememorarmos o recente reconhecimento feito pelo consagrado poeta alemão Günter Grass de uma vida em

mentira em relação a sua atuação nas fileiras das tropas SS da Alemanha nazista por um lado (uma vez que ele foi visto durante vários anos como a ‘consciência da Nação alemã, tão maior foi a decepção de seus leitores e admiradores há dois anos – dentre os quais figura também o autor) e o trato dos Estados Unidos da América para com a cultura indígena outrora destruída por outro lado, teremos então o seguinte resultado: a verdade é um tema da humanidade e ao mesmo tempo um tema de toda e qualquer pessoa na totalidade de sua precária existência individual. Assim, a ver-dade permanece um tema para todas as ciências – sobretudo para uma ciência da cultura com-preendida como uma teoria constitucional com ‘weltbürgerlicher Absicht’ (intuito cosmopolita), pela qual o autor luta desde 1982”.20

Assim, em reflexão às bem laçadas pala-vras do mestre alemão, tanto a memória como a verdade permanecem latentes no âmago de cada cidadão brasileiro.

5. Conclusão

Em arremate ao exposto, sem memória e verdade, todo cidadão brasileiro por mais ignaro que seja, carregará dentro de si um verdadeiro e, ao mesmo tempo, inconcebível “Estado de Exceção”.21

Tal constatação poderá trazer abalos irre-mediáveis ao meio ambiente e à cultura de nosso país, enfim, ao próprio Estado Democrático de Direito.

Memória e Verdade, título da presente co-letânea traduz importante temática, ainda, pouco explorada pelos juristas da atualidade.

Portanto, é uma honra compartilhar de mais um momento histórico em nosso país. Muito obrigado a todos!

18 “A cara e a coroa”. Ditadura no Brasil – tudo sobre o regime militar de 1964 a 1985– especial 40 anos do AI-5. Aventuras na História – tiragem reeditada, 2008, p. 77.

19 Ver importante digressão e reflexão do mestre Prof. Peter Häberle, em sua primorosa obra “Os problemas da verdade no estado constitucional – Wahrheitsprobleme im Verfassungsstaat”. Tradução de Urbano Carvelli. Porto Alegre: Safe, 2008, p. 99-103.

20 Idem, p. 12-13.21 Ver relevante obra de Giorgio Agaben, in Estado de exceção; tradução de Iraci D. Poleti. 2ª Ed., São Paulo: Boitempo, 2007 (Estado de sítio).

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16 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 7-16, junho/2009

SILVA, B. C.

6. Referência bibliográfica

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ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradu-ção de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7ª Ed., São Paulo: Malheiros, 2007.

BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. “A democracia e suas dificuldades contemporâne-as”. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coordenadoras). Revis-ta Internacional de Direito e Cidadania/Instituo Estudos Direito e Cidadania – v. 1, n. 4, Outubro 2008. – São Paulo, SP: Habilis, 2008.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferrei-ra. Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2008.

COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2008.

HÄBERLE, Peter. Constituição e cultura – o direito ao feriado como elemento de identidade cultural do estado constitucional. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

________Os problemas da verdade no estado constitucional – Wahrheitsprobleme im Verfas-sungsstaat. Tradução de Urbano Carvelli. Porto Alegre: Safe, 2008.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Ma-lheiros, 2006.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocên-cio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2008.

MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Tradução de Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tri-bunais, 2008.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbó-lica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007.

PARRON, Tamis. “A cara e a coroa”. Ditadura no Brasil – tudo sobre o regime militar de 1964 a 1985 – especial 40 anos do AI-5. Aventuras na História – tiragem reeditada, 2008.

REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Quem deve ser o guardião da constituição? Do poder moderador ao Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.

SOARES, Inês Virgínia Prado. “Cidadania cultural e direito à diversidade lingüística: a concepção constitucional das línguas e falares do Brasil como bem cultural”. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shi-mada (Coordenadoras). Revista Internacional de Direito e Cidadania/Instituo Estudos Direito e Cidadania – v. 1, n. 1, Junho 2008. – São Paulo, SP: Habilis, 2008.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias STF, Sexta-feira, 16 de Janeiro de 2009. “O impacto do AI-5 no Brasil no Supremo”, www.stf.jus.br.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

*Licenciado em Direito; Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca; Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca; professor de Direito da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal); Coordenador da licenciatura em So-licitadoria e da pós-graduação em Solicitadoria de Execução da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal).

RESUMO: O artigo aborda a estreita ligação entre a tutela da diversidade cultural e a digni-dade da pessoa humana. O autor defende que a dignidade é o fundamento dos direitos humanos. Com base numa argumentação filosófica o texto demonstra que a proteção das identidades cultu-rais é consequencia da dignidade.Palavras-chave: Direitos Humanos. Dignidade. Diversidade cultural. Identidade cultural.

ABSTRACT: The article approaches the narrow linking between the guardianship of the cultural diversity and the dignity of the human being. The author defends that dignity is the foundation of the human rights. Based on a philosophical ar-gument the text shows that the protection of the cultural identities is a consequence of dignity.Keywords: Human rights. Dignity. Cultural diversity. Cultural identity.

1. Introdución

Para comprender si existe un motivo para la protección de las diversas identidades culturales es necesario partir de un análisis de la condición del hombre como ser social. “El punto de par-tida adecuado para examinar si la demanda de protección de las diferencias culturales resulta

David José Geraldes Falcão*

Artigo

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FALCÃO, D. J. G.

justificada ha de situarse en la constitución social del ser humano”1.

1.1. El hombre como ser social y dialógico

Para Aristóteles un ser humano que fuese capaz de vivir fuera de la sociedad sería una bestia o un dios2.

El ser humano es un organismo complejo que vive en contacto con otros seres también complejos. Tenemos una vida social en la cual mantenemos relaciones significativas con otras personas. El hecho de que el hombre esté cons-tituido por una dimensión relacional es más que una evidencia que, sin embargo, ha sido subrayada a lo largo de los años.

Con todo, no es una llamada de atención sobre esta evidencia lo que pretendemos. Lo que, en realidad, es importante en este punto es poner de relieve que solamente podemos comprender al hombre a partir de su dimensión social, y que es a partir de la inclusión de la dimensión relacional del hombre en su estructura ontológica cuando podemos lograr alcanzar tal comprensión.

Para Charles Taylor, “un rasgo crucial de la vida humana es su carácter fundamentalmente dialógico. Nos convertimos en agentes plena-mente humanos, capaces de comprendernos a nosotros mismos, y por tanto de definir nuestra identidad, a través de la adquisición de ricos lenguajes humanos(...) Definimos nuestra iden-tidad siempre en diálogo”3. Es en esta capacidad de dialogar, característica de los seres humanos, donde reside la clave de su dimensión social. La palabra sirve para manifestar lo conveniente y lo dañoso, lo justo y lo injusto, y es una caracterís-tica exclusiva del hombre4.

La sociedad es producto del carácter rela-cional del hombre y de su apertura a los demás, una vez que su capacidad dialógica implica un vasto número de interlocutores. A su vez, es a través de la sociedad como el hombre puede obtener la realización de sus necesidades y, además, la realización de sus fines pasa por una conexión con otros hombres en el seno de un determinado grupo social.

La formación de la identidad individual se alcanza, no sólo con relación a los otros (una vez que no tendría sentido hablar de identidad si no existiesen otros hombres), sino también a través de la ayuda de los otros (que transmiten los “ítems” que constituyen la identidad). El ser humano se desarrolla, por tanto, en el seno de un determinado grupo social concreto, con el cual comparte determinados patrones culturales. Asi-mismo, la “definición de la identidad individual envuelve siempre la referencia a una comunidad que la define”5.

Llegamos a una primera conclusión: el hombre alcanza su realización en el seno de un grupo social caracterizado por determinadas pautas culturales comunes.

La argumentación, hasta ahora presentada no nos permite, todavía, obtener una respuesta a la pregunta: ¿Existe motivo para la protección de las identidades culturales?

Si añadimos a la afirmación de que el hom-bre solamente alcanza su realización en el seno de un determinado grupo social caracterizado por patrones culturales comunes, la máxima de que el hombre debe ser respetado de forma incon-dicional (como fin y nunca como medio, como aportó Kant6), podemos razonar lo siguiente: si el ser humano debe ser respetado de forma in-

1 Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en Persona y Derecho, nº 38, 1998, p. 120.

2 Esta formulación se encuentra en su obra Política:Cfr.Aristóteles, Política, I, 2, edición bilingüe y traducción de J. Marías y M. Araujo, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 4.

3 Cfr. Charles Taylor, “The Politics of Recognition”, en A. Gutmann, Multiculturalism. Examining the Politics of Recognition, Princeton, Princeton University Press, 1994, pp. 32-33.

4 Para Aristóteles “la razón por la cual el hombre, es, más que una abeja o cualquier animal gregario, un animal social es evidente: la naturaleza, (...), no hace nada en vano, y el hombre es el único animal que tiene palabra” y añade que “(...) la palabra es para manifestar lo conveniente y lo dañoso, lo justo y lo injusto (...)”- Cfr. Aristóteles, Política, edición bilingüe y traducción de J. Marías y M. Araujo, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 4.

5 Cfr. Charles Taylor, Sourses of the Self, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p. 36.6 Cfr. Immanuel Kant, Fundamentación de la Metafísica de las Costumbres, edición de Luis Martínez de Velasco, 11ª ed., Madrid, Espasa-Calpe,

1995, p. 104.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

condicional, hay que, a su vez, respetar el grupo social en el cual se integra, una vez que, es en el seno de ese grupo social donde el hombre se realiza. “En el momento en que el hombre es concebido como ‘ser de cultura’, (...), animal social por naturaleza, el respeto del individuo no puede dejar de abarcar el respeto de la cultura que le constituye”7.

El hombre, como hemos visto, debe ser respetado de forma incondicional. Pero, otra cuestión surge: ¿Cuál es el fundamento de ese deber de respeto incondicional?

Antes de aportar nuestra posición en cuanto al asunto clave de este ensayo, es ineludible contestar a esta pregunta, una vez que, en su con-testación reside la base de la argumentación, que a su vez, nos permitirá obtener una repuesta a la pregunta principal, la de sí deben las identidades culturales ser protegidas.

El fundamento de ese deber incondicional de respeto del hombre es su dignidad. O en otras palabras la dignidad se traduce en la legitimidad del hombre para exigir un respeto incondicional de su persona.

Resulta pertinente dedicar una atención especial a la problemática de la dignidad huma-na. Problemática en el sentido de que se discute mucho, por un lado, si se puede hablar de una dignidad humana universal o, si se trata de una expresión conceptualmente interpretable y, por lo tanto, relativa. Y, por otro lado, si constituye, de hecho, el fundamento de los derechos hu-manos.

1.2. Sobre la dignidad humana

En los últimos años el sentido de concien-cia de respeto hacia la dignidad de la persona humana ha adquirido un relieve importante. Prueba de tal relieve, es la multiplicación de de-claraciones, conferencias, pactos que reconocen los derechos básicos de la persona y que crean

medidas en el sentido de protegerlos y, al mismo tiempo se instituyen organismos internacionales con el intento de reaccionar a los atentados contra esos mismos derechos.

Este movimiento de toma de conciencia de la importancia que representa el respeto por la dignidad humana, ha adquirido su momento principal al final de la segunda Guerra Mundial. La humanidad trataba de iniciar una nueva era, en que la convivencia entre pueblos se basase en el respeto de la dignidad. Por lo tanto procedían los Estados en la Conferencia de San Francisco de 1945, al aprobar la resolución de “preservar a las generaciones venideras del flagelo de la guerra (...), a refirmar la fe en los derechos fundamen-tales del hombre, en la dignidad y el valor de la persona humana, en la igualdad de derechos de hombres y mujeres (...)”.

Sin embargo, en los tiempos que corren es evidente la paradoja alrededor de la idea de dignidad humana. Mucho se recurre a ella y, al mismo tiempo, se atenta mucho contra esa dignidad. Por ello creemos que el gran reto para este inicio de siglo es el de instrumentar procedimientos eficaces para una protección de los derechos humanos. Por lo tanto, como subraya Norberto Bobbio “no se trata tanto de saber cuáles y cuántos son estos derechos, cuál es su naturaleza y su fundamento, si son derechos naturales o históricos, absolutos o relativos, sino cuál es el modo más seguro para garantizarlos, para impedir que, a pesar de las declaraciones solemnes, sean continuamente violados”8.

No obstante, sin las referidas declaraciones o pactos solemnes, sería muy difícil desarrollar una conciencia de respeto hacia la dignidad hu-mana. La Declaración Universal de los Derechos del Hombre, constituye un marco imprescindible en la historia contemporánea en este sentido. Su texto alude a una dignidad humana de carácter universal9. Ha sido el culminar de un largo pro-ceso de luchas, no siempre pacíficas, reivindica-

7 Cfr. Emilio Lamo de Espinosa, “Fronteras Culturales”, en Culturas, Estados, Ciudadanos. Una aproximación al multiculturalismo en Europa, Madrid, Alianza, 1995, p. 42.

8 Cfr. Norberto Bobbio, “Presente y Porvenir de los Derechos Humanos”, en Anuario de Derechos Humanos, nº1, Madrid, 1981, p. 9.9 “Considerando que el reconocimiento de la dignidad inherente a todos los miembros de la familia humana y de sus derechos iguales e inalienables

constituye el fundamento de la libertad, de la justicia y de la paz en el mundo”; “Todos los seres humanos nacen libres y iguales en dignidad y en derechos”, en la Declaración Universal de los Derechos del Hombre, adoptada y proclamada por la Asamblea General de la ONU en la resolución 217-A (III) de 10 de Diciembre de 1948, respectivamente del preámbulo y del artículo 1.

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FALCÃO, D. J. G.

ciones, sufrimientos y que, a su vez, ha robado la vida a muchos seres humanos.

Actualmente, y como antes nunca, se reclaman y exigen valores como la libertad y la igualdad, el derecho a la vida, entre muchos otros10. Todas estas exigencias tienen un funda-mento casi exclusivo en la dignidad de la perso-na. Vivimos en una época en la que la apoteosis verbal y documental de la dignidad humana es una realidad, ya que no su praxis.

Los ataques teóricos a los derechos huma-nos han sido perpetrados, fundamentalmente, por diversas doctrinas filosóficas, de las cuales destacan, por su mayor vehemencia, el exis-tencialismo, el estructuralismo, o las doctrinas relativistas. El existencialismo sostiene que el hombre es un ser para la muerte, un condenado a la libertad, y por lo tanto un absurdo; a su vez, los estructuralistas declaran que la muerte del hombre es ineludible y se acerca ; los relativistas sostienen que a diferentes culturas conciernen di-versas formas de concebir la naturaleza humana y de proporcionarle una tutela adecuada. Por lo tanto, no existirían principios valorativos o una moral crítica universales y válidos para todas las culturas pues a distintas culturas conciernen distintas formas de concebir valores morales.

En lo que concierne a los ataques, en térmi-nos prácticos llevados a cabo contra la dignidad humana, podemos decir que se registran muchos y muy evidentes. Echando una simple mirada a las normas de países considerados desarrollados, constatamos que existen normas que legitiman, por ejemplo, la pena de muerte. En cuanto a

situaciones concretas, y aún más indiscutibles, podemos enumerar un sinfín de escenarios que complementan nuestra idea. Por ejemplo, en el mundo musulmán las mujeres siguen siendo víctimas de legislaciones de otras épocas. Son, a su vez, consideradas ciudadanas de segunda clase donde, aparte de otros, les privan del derecho de voto (aunque, por ejemplo, en Kuwait voten). Otros ejemplos como el de los Laogai11 en China o el de los genocidios sufridos por los bosnios de exYugoslavia y por los tutsis de Rwanda que, a su vez, han conducido a la creación del Tribunal Penal Internacional y del Tribunal Penal para Rwanda12, ilustran bien algunas de las innume-rables faltas de respeto por la dignidad humana.

En opinión de Robert Spaemann, los ataques a la dignidad humana en el mundo con-temporáneo, resultan de la configuración de la propia civilización, que a pesar de sus progresos presenta “una poderosa tendencia a la completa eliminación de la idea misma de dignidad”13. La búsqueda de la verdad exige siempre esfuerzo y compromiso. Y, resulta más fácil y cómodo el abandono de cualquier responsabilidad que implique esa búsqueda. La manera de pensar actual está corrompida por la idea de lo prác-tico. Mientras siga este panorama “el abolengo radical de todos y cada uno de los componentes de nuestra estirpe seguirá viéndose sometido a las ambigüedades de un comportamiento que, a la par, ensalza y envilece”14.

Acabamos de referir, obviamente, los as-pectos más perversos y negativos de la realidad contemporánea. Realidad donde, a pesar de todo,

10 “La efemérides de 1948 se encuentra cortejada y sostenida por todo un cúmulo de manifestaciones y acontecimientos: movimientos en defensa de la igualdad mujer-varón y de todo el tipo de minorías; promoción pública de los disminuidos físicos y mentales; declaración de los derechos de la mujer, del niño, de la familia y del joven, con sus respectivos años internacionales..., y un nutridísimo etecétera, que resultaría casi interminable”. Cfr. Tomás Melendo & Lourdes Millán-Puelles, Dignidad: Una Palabra Vacía?, Navarra, EUNSA, 1996, p. 16.

11 Laogai significa reforma a través del trabajo. En China la idea de rehabilitación esta siempre presente. La rehabilitación mental del individuo recluso constituye uno de los fundamentos de su política de encarcelamiento. Las prisiones son muchas veces campos de trabajo forzado, los Laogai. Desde su creación en la China maoísta de los años 50, se estima que por lo menos 50 millones de chinos hayan sido condenados a vivir en esos campos. Actualmente, se calcula que 6 a 8 millones de personas, incluso mujeres y niños, aún sufren en los Laogai. Las informaciones sobre este sistema de prisión son muy escasas, las autoridades niegan su existencia, los únicos datos disponibles son los testimonios de exreclusos.

12 En 1993 y 1994 la ONU ha creado, respectivamente el Tribunal Penal Internacional y el Tribunal Penal para el Rwanda. El primero con sede en Haya, y el segundo en Arusha, Tanzania, Kigali, la capital del Rwanda y Nairobi. El reto del TPI seria el de juzgar los crímenes cometidos en exYugoslavia desde 1991. A su vez, el TPR tenía el reto de juzgar los crímenes perpetrados en el Rwanda durante el año de 1994. Con todo, la eficacia de estos tribunales, ha sido contestada desde su creación. En primer lugar, porque los Estados son desresponsablizados de la obligación de buscar, prender y juzgar en sus tribunales internos a los autores de los crímenes. El segundo motivo deriva del hecho de que los Estados no presten a los tribunales internacionales auxilio material y financiero suficiente. En el TPR los procesos apenas han sido iniciados en Diciembre de 1996. En Julio de 1997, el TPI había realizado 76 acusaciones, al paso que el TPR había hecho lo mismo.

13 Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en Persona y Derecho, nº19, 1988, p. 30.14 Cfr. Tomás Melendo & Lourdes Millán-Puelles, Dignidad: ¿Una Palabra Vacía?, Navarra, EUNSA, 1996, p.26.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

existen paralelamente referencias positivas del respeto y enaltecimiento de la dignidad humana, como también hemos planteado.

A lo largo de estas últimas líneas, nos hemos referido reiteradamente al término dig-nidad. Resulta, a su vez, imprescindible, en este contexto, aclarar su concepto y fundamento.

1.2.1 Sobre el concepto y el fundamento de la dignidad

No resulta fácil conceptuar y fundamentar, exhaustivamente, la idea de dignidad a través de una simple definición, pues, “ante los intentos de definición, la doctrina no tiene el menor recelo en confesar que el término se le escapa, que las formulaciones generales son insatisfactorias, que la dignidad es una noción con un cuerpo semántico relativamente poco preciso”15.

Lo que pretendemos en este subapartado es intentar analizar el significado de la idea de dignidad y demostrar la conexión que existe entre la misma y los derechos humanos, o sea, que es a través del respeto de los derechos básicos del individuo que se traduce la mejor manera de respetar las exigencias de la dignidad.

Realizaremos un balance de aportaciones de algunos destacados autores sobre lo que es la dignidad y cuál es su razón de ser, terminando con nuestra propia postura sobre lo que puede significar dignidad.

En una primera acepción, la idea de dignidad, nos remite casi inmediatamente a la existencia de algo valioso intrínseco a todos los seres humanos que no entra en el campo de lo disponible por parte de otras personas o por los poderes públicos y, como explica Amuchastegui, “permite calificar como inhumanos- y lógica-mente inmorales- los comportamientos aten-

tatorios contra ese algo especialmente valioso característico de la humanidad”16.

Aunque se puedan encontrar alusiones a la idea de dignidad humana en los pensamientos antiguo y medieval17, es Kant el que ha conceptu-ado, por primera vez de forma rigurosa, la idea de dignidad. Sin embargo, antes de avanzar con los análisis de las aportaciones Kantianas y de otros autores con bastante relevancia, procedemos a una explicación de los distintos significados que la idea de dignidad puede asumir y que pueden plantear algunos problemas.

Dignidad representa un término vago, una vez que resulta difícil determinar su alcance, o sea, determinar cuales son los límites de la pro-tección, como es por ejemplo el caso de no poder establecerse con rigor a partir de qué duración una pena de privación de la libertad constituye un atentado contra la dignidad. Este hecho, al cual se añade una pluralidad de interpretaciones que se han dado a la idea de dignidad, contribuye al un escepticismo de muchos autores sobre una posibilidad de encontrar un denominador común, un consenso que pueda tener un papel importante en Derecho e incluso de convertirle en una ex-presión destituida de contenido18. Por ejemplo, muchas veces se utiliza la palabra dignidad no solo para seres humanos; cuando se afirma que determinada postura política ha atentado contra la dignidad de determinado Estado; o, cuando se habla de la dignidad de la profesión de juez. En determinados casos, “se recurre a la idea de dignidad para destacar la existencia en esas distintas realidades de una propiedad valiosa que merece algún tipo de protección pues contribuye a dotarles de sentido”19.

En realidad, nuestra opinión es que la idea de dignidad desempeña un papel fundamental

15 Cfr. Jesús González Pérez, La Dignidad de la Persona, Madrid, Civitas, 1986, p.111.16 Cfr. Jesús González Amuchastegui, Autonomía, Dignidad y Ciudadanía: Una Teoría de los Derechos Humanos, Valencia, Tirant lo Blanch, 2004,

p. 417.17 En el pensamiento estoico, estaba presente la idea de dignidad. Se caracterizaba como un ideal al cual los seres humanos se podían acercar siem-

pre que usasen sus capacidades racionales en su vida. En el pensamiento cristiano medieval, en Tomás de Aquino, se destaca la idea de dignidad en especial como la capacidad de los seres humanos de conocer y seguir las leyes divinas naturales y universales. Para profundizar este asunto Cfr. Gregorio Peces-Barba, La Dignidad de la Persona desde la Filosofía del Derecho, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas, Madrid, Dykinson, 2002.

18 Semejante razonamiento presenta Eusebio Fernández García cuando afirma que “(...) la frecuencia en el uso del concepto dignidad humana o dig-nidad de la persona y la contundencia de los argumentos que la utilizan va acompañada de una patente imprecisión, hasta el punto de que se corre el riesgo de convertirla en una expresión casi vacía de contenido”. Cfr. Eusebio Fernández García, Dignidad Humana y Ciudadanía Cosmopolita, en Instituto de Derechos Humanos “Bartolomé de las Casas”, nº 21, Madrid, Dykinson, 2001, pp. 18 y 19.

19 Cfr. Jesús González Amuchastegui, op. cit., p. 420.

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en el campo de la moral y del derecho o, por lo menos lo debería desempeñar en el caso de este último. Con el objetivo de aligerar la tendencia escéptica actual en cuanto al significado del tér-mino “dignidad” y, además de intentar demostrar que puede existir un denominador común en lo que concierne a esta idea, hemos recurrido a los planteamientos de Gewirth20 que, a su vez, procede a la quiebra del concepto de dignidad en dos. El primero empírico y el segundo intrínseco y absoluto. En cuanto al primero, se refiere a cua-lidades tales como la compostura, el respeto o la confianza, características en las que se manifiesta la personalidad de determinado individuo. En esta acepción dignidad no es más que un rasgo relativo y circunstancial y puede o no estar pre-sente en la persona. En suma, no constituye una característica universal del individuo. Por otro lado, en cuanto al segundo concepto, dignidad será aquella característica intrínseca al individuo y, a su vez, absoluta, y refleja una igualdad entre todas las personas. Gewirth define la segunda acepción de dignidad como un determinado valor perteneciente a todos los humanos como tales de una forma igual, estando constituido por determinados aspectos intrínsecamente valiosos de los seres humanos, y se presenta como “un rasgo necesario –no contingente- de todos los seres humanos, permanente e inalterable, no transitorio ni intercambiable”21.

Hecha esta breve distinción, pasamos a continuación al análisis de un conjunto de de-finiciones del termino dignidad proporcionado por distintos autores. Empezamos por Kant, que como hemos señalado anteriormente, ha sido el primer autor en conceptuar de forma rigurosa dignidad.

1.2.1.1. La dignidad según KantKant en su obra Fundamentación de la

Metafísica de las Costumbres, define digni-dad de la siguiente forma: “En el reino de los

fines todo tiene o bien un precio o bien una dignidad. Aquello que tiene un precio puede ser sustituido por algo equivalente; en cambio, lo que se encuentra por encima de todo precio y, por tanto, no admite nada equivalente, eso tiene una dignidad. Aquello que se refiere a las inclinaciones y necesidades del hombre tiene un precio de mercado; aquello que, sin suponer una necesidad, se conforma a cierto gusto, es decir, a una satisfacción producida por el simple juego, sin fin alguno, de nuestras facultades, tiene un precio de afecto; pero aquello que constituye la condición para que algo sea fin en sí mismo, eso no tiene meramente un valor relativo o preciso, sino un valor interno, esto es, dignidad”22. De la definición Kantiana, deducimos que toda la persona humana es merecedora de respeto in-condicional y consideración, una vez que ostenta un valor interno, la dignidad, que la torna única e insustituible, constituyendo la condición para que el hombre sea fin en sí mismo. O, con otras palabras, el hombre es un fin en sí mismo porque posee una dignidad. Añadiendo a esta afirmación la segunda fórmula del imperativo categórico Kantiano, que dice, “Obra de tal modo que uses a la humanidad tanto en tu persona como en la persona de cualquier otro siempre a la vez como fin, nunca meramente como medio”23, obtene-mos un refuerzo de la idea de que toda persona es merecedora de respeto. O sea, siendo el ser humano el fin, ningún otro fin puede legitimar un tratamiento a un ser humano incompatible con esa misma naturaleza de fin que todos poseemos. El ser humano es siempre sujeto y nunca objeto. Así, Kant afirma que “(...) en el orden de los fi-nes, el hombre (y con él todo ser racional) es fin en sí mismo, es decir no puede nunca ser utilizado sólo como medio por alguien (ni aun por Dios), sin al mismo tiempo ser fin; que, por tanto, la humanidad, en nuestra persona, tiene que sernos sagrada, es cosa que sigue ahora de suyo, porque el hombre es el sujeto de la ley moral, por con-siguiente, también de lo que es en sí santo, de lo que permite llamar santo a todo lo que esté de

20 Cfr. Alan Gewirth, “Human Dignity as the Basis of Rights”, en Michael J. Meyer y William A. Parent (eds.), The Constitution of Rights. Human Dignity and American Values, Ithaca and London, Cornell University Press, 1992, pp. 11 y 12.

21 Ibidem, p. 12.22 Cfr. Immanuel Kant, op. cit., p. 112.23 Ibidem, p. 104.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

acuerdo con ello. Pues esta ley moral se funda en la autonomía de su voluntad libre (...)”24. En esta citación se plasman las aportaciones básicas del significado kantiano de dignidad. En primer lugar, la vinculación del carácter del ser humano como fin en sí mismo con su racionalidad. En segundo lugar, la conexión entre la sacralidad de los seres humanos con su condición de sujetos morales con autonomía y capaces de imponerse restricciones morales.

Por otro lado, los seres humanos, sean cua-les sean sus actos, nunca pierden su capacidad de actuación moral, siendo que no se puede juzgar a las personas solamente por sus actos. Como explica Kant25 existe el sujeto moral y el sujeto empírico que no coinciden exhaustivamente el uno con el otro, no que sean dos sujetos distin-tos, pero que el sujeto moral es el sujeto en su rectitud. O sea, el sujeto moral no debe quedar reducido a sus expresiones empíricas; como ex-plica con claridad Javier Muguerza, ni siquiera al peor criminal se le podría reducir a sus conductas evidentes, una vez que éstas no posibilitan una percepción de las motivaciones y intenciones más ocultas, hecho que constituye una fuerte razón para seguir considerándole sujeto moral, fin en sí mismo26.

Concluyendo, Kant reconoce en todos los seres humanos la presencia de algo intrínseco y valioso, que no tiene precio, en definitiva de una dignidad, hecho que constituye la condición para que todo ser humano sea un fin y nunca un medio.

1.2.1.2 La dignidad humana (aportaciones relevantes)

En una línea de razonamiento semejante a la kantiana, Charles Taylor sostiene que “La po-

lítica de la dignidad igualitaria se basa en la idea de que todos los seres humanos son igualmente dignos de respeto (...) lo que se destaca como valioso es un potencial humano universal, una capacidad que todos los seres humanos compar-ten. (...) Este potencial (...) es lo que asegura que toda persona merece respeto. Más aún, nuestro sentido de la importancia de tal potencialidad tiene un alcance tan vasto que llegamos a exten-der esta protección incluso a personas que por alguna circunstancia son incapaces de realizar su potencial de modo normal-por ejemplo, personas discapacitadas o en coma-”27. En la aportación kantiana y en la de Taylor, constatamos que el denominador común reside en el hecho de que el ser humano posee una cualidad que le hace merecedor de respeto. Kant la define como “un valor interno”, mientras que Taylor hace alusión a un “potencial humano universal”.

Para Martínez-Pujalte, “la dignidad huma-na radica en la capacidad de entender y de querer, y, en consecuencia, de conocer la moralidad de los actos y de actuar moralmente”28.

La cualidad de seres inteligentes y dotados de voluntad es, ineludiblemente, aquella que nos distingue de los demás seres no humanos. Esa cualidad se traduce en la capacidad de juzgar y proceder moralmente y, a su vez, “siendo ésta la diferencia esencial entre el hombre y los seres no humanos, debe ser también el motivo de la peculiar dignidad humana”29. Sin embargo, el profesor Pujalte, siguiendo las enseñanzas de Jesús Ballesteros30, sostiene que al fundamentar la dignidad humana apenas en el carácter de autoconsciencia y libertad del hombre, se puede correr el riesgo de exclusión de miembros de la familia humana que no tengan tales característi-cas31. Para salvaguardar este problema, Martínez-Pujalte32, recurre al concepto de “potencialidad”

24 Cfr. Immanuel Kant, Crítica de la Razón Práctica, Trad. de Emilio Miñana y Villagrasa y Manuel García Morente, Madrid, Espasa-Calpe, 1975, p. 184.

25 Ibidem, pp. 126 y 127.26 Cfr. Javier Muguerza, “La alternativa del Disenso. En torno a la Fundamentación Ética de los Derechos Humanos” en Javier Muguerza y otros, El

Fundamento de los Derechos Humanos, Madrid, Debate, 1989, p. 49.27 Cfr. Charles Taylor, “The Politics of Recognition”, en A. Gutmann, Multiculturalism. Examining the Politics of Recognition, Princeton, Princeton

University Press, 1994, pp. 41 y 42.28 Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto,

Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 92.29 Ibidem.30 Cfr.Jesús Ballesteros, “Derechos Humanos: ontología versus reduccionismos”, en Persona y Derecho, nº 9, 1982.

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empleado por Conklin33. Para Conklin “la humanidad común a todas las personas es su potencialidad”, una vez que, “cada persona es una potencialidad abierta en el proceso de llegar a ser”34. Concluye Martínez-Pujalte que la digni-dad humana tiene su fundamento en la “potencia-lidad de ser autoconsciente y libre”, siendo que “el atributo que basta para identificar al hombre concreto como portador de tal dignidad no es la presencia real y efectiva de las capacidades o habilidades correspondientes a un desarrollo psicológico normal, sino la potencialidad, en definitiva a todo hombre, incluso si todavía no ha nacido o si por razones fisiológicas se halla pri-vado fácticamente de tales habilidades”35. Para comprender perfectamente lo que significa “po-tencialidad” y, a su vez, constatar que pertenece a todos los hombres, no debemos “confundir las habilidades características con la racionali-dad radical de la que aquellas surgen, lo cual el doctor Anthony Kenny ha caracterizado como el poder de adquirir poderes. Es esta racionalidad radical lo esencial en el hombre y no creo que haya ningún motivo para negar su presencia en ningún tipo de animal humano. Este poder de adquirir poderes racionales, por supuesto, puede ser impedido por factores fisiológicos; pero aun cuando estas circunstancias que impiden sean innatas no tenemos ningún derecho a concluir la ausencia de racionalidad esencial. El creti-nismo debido al funcionamiento defectuoso de la glándula tiroides por mucho tiempo supuso imbecilidad irremediable. Existen otras condi-ciones semejantes, una incapacidad congénita para metabolizar fenilananina que diagnosticada fácilmente puede ser tratada adoptando una dieta libre de esta sustancia; un error congénito en el metabolismo del cobre que no se haya descubier-to puede conducir a una concentración venosa

de cobre en el sistema nervioso; y así sucesiva-mente. Algunas de estas condiciones pueden ser tratadas y el daño de las capacidades racionales ser evitado; otras, hasta este momento, escapan a nuestro desarrollo médico, como el síndrome de Down (mongolismo). Acerca de éste último hay una gran cantidad de falsa información; muchas de las víctimas de este síndrome pueden desarrollar sus capacidades racionales más allá de lo que en otros tiempos pudiera hacerlo un enfermo no tratado. Pero en cualquier caso no descubriremos ningún tratamiento si adoptamos la política de abortar niños diagnosticados antes de nacer con síndrome de Down, o envenenán-dolos o dejándolos morir de hambre después de nacer, política adoptada por muchos doctores ingleses. La imposibilidad de alterar la cons-titución genética responsable del defecto no es relevante; otros defectos genéticos igualmente inalterables son bastante compatibles con un completo desarrollo intelectual si se adopta el régimen adecuado”36.

Para Robert Spaemann, la dignidad huma-na es siempre “la expresión de un descansar-en-sí-mismo, de una independencia interior, y no como una compensación de debilidad, (...), como una expresión de fuerza, (...). Sólo el animal fuerte nos parece poseedor de dignidad, pero sólo cuando no se ha apoderado de él la voracidad. Y también sólo aquel animal que no se caracte-riza fisonómicamente por una orientación hacia la mera supervivencia”37. Según Spaemann la dignidad constituye un bastarse a sí mismo. Sin embargo, una dignidad que sea fundamentada en una supremacía de los miembros de nuestra espe-cie, no nos distinguirá de los demás seres vivos, una vez que estos también se consideran fines en sí mismos. “No necesita ninguna demostración el hecho de que algo es para sí mismo su propio

31 Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto, Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 92.

32 Cfr. Ibidem. 33 Cfr. William E. Conklin, In Defense of Fundamental Rights, Alphen, Sijthoff & Noordhoff, 1979. 34 Cfr. William E. Conklin, op. cit., p. 199, en Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en op. cit.,

p. 91.35 Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto,

Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 93.36 Cfr. Peter Geach, “El hombre es “animal racional”: acerca de una definición”, Ponencia presentada a las XXV Reuniones Filosóficas organizadas por

la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Navarra, Pamplona, 1988, p. 6, en Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en op. cit., pp. 92 y 93.

37 Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en Persona y Derecho, nº19, 1988, p. 18.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

y último fin y que no puede ser convertido por otro en un mero medio para un fin totalmente extraño. El ratón es también un fin último para sí mismo, pero esto no es así para el gato. Y que un hombre pagaría cualquier precio para vivir no es para el león ningún motivo para dejarle con vida. Todos los intentos de entender únicamente de este modo el carácter de fin en sí mismo del hombre-que el hombre es la realidad terrena más alta para el hombre, el fin más alto para sí mismo- no aciertan con el concepto específico de dignidad humana”38. El hombre es un fin en sí mismo y no apenas un valor para sí mismo. Y, solamente desde este punto se puede conferir al concepto de dignidad una dimensión ontológica. La cuestión que surge es la siguiente: ¿”dónde reside entonces la distinción de principio entre el carácter de fin en sí mismo de todo lo que es y el carácter específico de fin en sí mismo que señala-mos como dignidad humana inviolable?”39.

La distinción, como explica Spaemann, reside en el hecho de que únicamente los seres humanos poseen la capacidad de comprender las relaciones teleológicas en las cuales están externamente implicados. O con otras palabras, el hombre tiene la capacidad de no encerrarse solamente en su propio ser. “El hombre no remite necesariamente todo el entorno a sí mismo, al propio deseo; puede también caer en la cuenta de que él mismo es también entorno para otros. Precisamente en esta relativización del propio yo finito, de los propios deseos, intereses y objeti-vos, se dilata la persona y se hace algo absoluto. Se hace inconmensurable. Puede ponerse a sí mismo en servicio de algo distinto de sí, hasta el sacrificio del mismo”40. El ser humano es un fin en sí mismo absoluto, pues está dotado de una moralidad potencial y, como tal, le corresponde la dignidad humana.

Sin embargo, la afirmación de que todos los hombres comparten una dignidad, no significa que todos compartan el mismo grado de digni-dad. O sea, hay disconformidades. Spaemann clasifica estas disconformidades en constitutivas

y personales. Las primeras son expresión de una responsabilidad que determinados individuos tienen ante los demás, constituyen una dignidad específica. “Hay una dignidad del funcionario, del juez, del profesor, del maestro”41. En este caso concreto la dignidad se puede perder. Por otro lado, las disconformidades personales tienen como fundamento el diferente grado de moralidad de los seres humanos. El hombre “(...) cuanto más entregado a su deseo o fijado en sus intereses, cuanto menos distanciado esté de sí mismo, tanto menos dignidad posee”42.

Después de esta reunión de significativas aportaciones acerca del concepto de dignidad, parece claro que la más importante ha sido la kantiana. Todas las otras han seguido su línea de razonamiento añadiendo, a su vez, un apéndice u otro.

Para concluir, es imprescindible hacer un resumen de las partes más significativas de lo que se ha dicho, a través del cual intentaremos que el concepto de dignidad quede, a pesar de su complejidad, aclarado.

Kant en Fundamentación de la Metafísica de las Costumbres escribió que la dignidad humana es un valor interno. Una cualidad que torna a la persona única e insustituible siendo, a su vez, lo que constituye la condición para que la persona sea fin en sí misma y, por lo tanto mere-cedora de un respeto incondicional. Para Charles Taylor la dignidad es producto de un potencial humano universal compartido por toda la familia humana. Y es con base en este potencial que todo el hombre merece ser respetado. En semejante línea de razonamiento, Martínez-Pujalte sostiene que la clave para comprender el concepto de dignidad reside precisamente en su fundamento. Martínez-Pujalte, para fundamentar la dignidad añadió a las características (racionalidad y vo-luntad), que distinguen a los humanos de los no humanos y que les permite juzgar moralmente, el término potencialidad (la posibilidad de venir a ser autoconsciente y autónomo), salvaguardando

38 Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 20.39 Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 22.40 Ibidem.41 Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 23.42 Ibidem.

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de este modo a las personas que por determinada razón no poseen tales características, confiriendo al concepto de dignidad un carácter universal. Finalmente, Spaemann sostiene que la diferencia entre el carácter de fin en sí mismo de todo ser vivo y, el carácter específico de fin en sí mismo que se señala como dignidad humana reside en el hecho de que el ser humano posee una mora-lidad potencial.

Todas estas aportaciones nos permiten avanzar con una definición de dignidad humana. Dignidad humana será aquella cualidad que nos hace merecedores de un respeto incondicional y nos confiere el estatuto de fin en nosotros mismos en razón de nuestra racionalidad y voluntad potencial, que a su vez, nos permiten actuar moralmente.

1.2.2 Dignidad: el fundamento de los derechos humanos

“Considerando que el reconocimiento de la dignidad inherente a todos los miembros de la familia humana y de sus derechos iguales e inalienables constituye el fundamento de la libertad, de la justicia y de la paz en el mundo” (…) y “Todos los seres humanos nacen libres y iguales en dignidad y en derechos”43: En estos dos trechos de la Declaración Universal de los Derechos del Hombre se hace alusión a una dignidad humana universal. Los derechos del hombre son compartidos igualmente por toda la familia humana, una vez que todos comparten una cualidad común, la dignidad. “Una funda-mentación típica, y bastante acertada, para los derechos humanos (...) es que tenemos derechos porque como seres humanos tenemos lo que a veces se ha denominado como ‘la dignidad humana’ “44.

El concepto de dignidad potencial, no indi-ca inmediatamente un determinado y específico

derecho humano. Sin embargo, es la razón de ser de lo que puede llamarse derechos humanos, que deben ser vistos como un medio de actualización de la dignidad.

La dignidad, no es más que el criterio a través del cual se atribuyen “(...) unos derechos que, a título de derechos humanos, se asignan al hecho mismo de ser hombre, independientemen-te de cualidades tales como el rango social, la fuerza física, intelectual o moral, las virtudes y talentos por los que los hombres difieren unos de los otros, y la elevación de esos derechos al rango de principios fundamentales de la legislación y del orden social”45.

El principio de la dignidad humana juega un papel determinante a la hora de fundamentar todos los derechos humanos.

La deducción lógica que puede llevarse a cabo del principio de la dignidad es simple y, como afirma Amuchastegui, “es que todos y cada uno de los seres humanos son valiosos en sí mismos, gozan de un carácter único, insusti-tuible e incomparable, disfrutan de una dignidad que, como Kant decía, no tiene precio, pues no tiene equivalente y no es susceptible de racional intercambio. En esta idea han insistido todas las teorías de los derechos humanos, y todas aquellas concepciones morales de signo individualista que hacen de la separabilidad e independencia moral de las personas un elemento nuclear de las mismas”.46

La única forma de impedir que los indivi-duos sean tratados como medio es a través de la garantía de un conjunto de derechos, los derechos humanos. La dignidad, implica un conjunto de atributos que confieren a todos los miembros de la familia humana un estatuto especial que debe de ser garantizado, o sea, todos los seres humanos tienen derecho a ser titulares de dere-chos humanos porque solamente así se pueden satisfacer las exigencias de la dignidad. O, como afirma Muguerza, el primer derecho humano al

43 Cfr. Declaración Universal de los Derechos del Hombre, adoptada y proclamada por la Asamblea General de la ONU en la resolución 217-A (III) de 10 de Diciembre de 1948, respectivamente del preámbulo y del articulo 1.

44 Cfr. Juha-Pekka Rentto, “Crepúsculo en el Horizonte de Occidente ¿El ocaso de los Derechos Humanos Universales?”, en Persona y Derecho, nº38, 1998, p. 173.

45 Cfr. E. Levinas, Entre Nous. Essais sur le penser-a-l´autre, Paris, Bernard Grasset, 1991. (Trad. de J., L., Pardo: Entre Nosotros. Ensayos para pensar en el otro, Valencia, Pre-Textos, 2001, p. 243).

46 Cfr. Jesús González Amuchastegui, op. cit., p. 432.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

cual aspiramos es el de ser sujetos de derechos humanos47.

Otra cuestión, que resulta importante su-brayar es la de los límites que implican el prin-cipio de la dignidad humana a las actuaciones de terceros y de los propios Estados.

1.2.3 Límites impuestos por la dignidad con relación a terceros

El objetivo de los derechos humanos, es el de funcionar como instrumento “para im-pedir que se prive a los individuos de ciertos bienes con el argumento de que ello beneficia (...) a otros individuos, a la sociedad en con-junto o a una entidad supraindividual”48. O sea, si se reconocen determinados derechos a los seres humanos siguiendo el principio de la dignidad inviolable de la persona, hay que obligatoriamente reconocer que existe una determinada esfera del individuo que nunca puede ser afectada, incluso en aras del bien común.

El Estado y los demás entes públicos, de-berán abstenerse de cualquier medida contraria a la dignidad. No podrá promulgar normas, dictar actos, emitir juicios, condicionar la actividad humana que no se coadunen con la dignidad de la persona.

Por otro lado, el Estado no solo tiene el deber de respetar la dignidad sino el de protegerla activamente, impidiendo los atentados de los particulares, adoptando las medidas apropiadas para evitarlos o, castigándolos con los medios proporcionales y suficientes.

Por lo tanto, el Estado no puede legislar contra las facultades o derechos que se asignan al individuo en virtud de su dignidad. Además de que el Estado al legislar esté limitado por determinados bienes de los individuos, los cuales no pueden ser violados, tendrá que, igualmente respetar determinadas formalidades, que repre-sentan exigencias de la seguridad jurídica y de

exclusión de la arbitrariedad. El hecho de sean requisitos formales, no implica que estén priva-dos de relevante carácter moral. Como ejemplos de algunos requisitos formales que deben tener las normas que regulan las conductas humanas: la estabilidad, claridad, universalidad o la irre-troactividad de algunas de ellas.

Por otro lado, la seguridad jurídica exige un reconocimiento a todas las personas de la posi-bilidad de acudir a una instancia para defenderse de las violaciones de determinados derechos e intereses. O en otras palabras el reconocimiento del derecho a la tutela judicial efectiva.

Lo que hemos pretendido demostrar a lo largo de estos últimos apartados es el papel pre-ponderante que asume el principio de la dignidad no solo en la estructuración de determinado modelo institucional, sino igualmente como fundamento de los derechos humanos.

En definitiva, el principio de la dignidad humana pretende, “(...) una vez establecidos cuáles son los bienes básicos de los que todos los individuos deben poder gozar, proteger dichos bienes frente a las políticas agregativas y ma-ximizadoras del bienestar que justifican infligir sacrificios a algunos individuos en beneficio de la maximización de ese bienestar general”49.

No obstante dado que el concepto de dig-nidad no indica inmediatamente un determinado y específico derecho humano, una cuestión pertinente puede surgir en este ámbito es la siguiente: ¿Cómo se conocen los derechos hu-manos que corresponden al hombre en función de su dignidad?

1.2.4 Como conocer los derechos humanos que corresponden al hombre en función de su dignidad.

Hemos sostenido que el punto de partida de todo es el reconocimiento del hombre como ser digno, en la acepción Kantiana, siempre como un fin en sí mismo. La forma a través de

47 Cfr. Javier Muguerza, “La alternativa del Disenso. En torno a la Fundamentación Ética de los Derechos Humanos”, en Javier Muguerza y otros, El Fundamento de los Derechos Humanos, Madrid, Debate, 1989, p. 50.

48 Cfr. C. S. Nino, Ética y Derechos Humanos. Un Ensayo Sobre Fundamentación, Barcelona, Ariel, 1989, p. 262.49 Cfr. Jesús González Amuchastegui, op. cit., p. 433.

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la cual se conocen unos derechos que resultan de exigencias para una vida digna es, como explica John Finnis50, la razón práctica. Es con base en el conocimiento de los bienes esenciales, que se manifiestan determinantes en el desarrollo del ser humano como ser digno, que podemos comprender cuales son los derechos humanos básicos.

“La experiencia ética del bien supone algún grado mínimo de conocimiento de la esencia de las cosas con las que nos manejamos, y en particular, de la esencia humana. De otro modo, ella estaría funcionando sobre la nada. Pero de cualquier manera, nos parece que la facultad hu-mana que cumple el rol activo en el conocimiento de “lo justo” es el razonamiento práctico (que parte de un deber ser) y no el especulativo (que parte del ser)”51. Para conocer si algo es justo hay que constatar si realiza un bien esencial de la persona52. Los derechos humanos no son más que la concreción de estos bienes.

En los tiempos que corren, tropezamos con un problema real que consiste en la no-fijación de límites en el catálogo de los derechos huma-nos, en su “inflación” que podría conducir a la destrucción del concepto mismo de derechos humanos. Confundiendo realidad con deseo, se crean derechos a partir de las pretensiones más arbitrarias. “Detrás de esta inflación de preten-siones subjetivas se encuentra una confusión entre las nociones de deseo y de derecho. Se pasa inadvertidamente del primero al segundo sin preguntarse antes si estamos frente a un bien realmente debido en justicia a la persona. Pensemos, por ejemplo, en el “derecho al hijo”, a menudo invocado para reclamar un acceso ilimitado a las técnicas de procreación artificial, aún cuando éstas impliquen un alto sacrificio de vidas embrionarias, o lleven a generar niños sin padres biológicos conocidos”53.

Asimismo, la inclusión de las pretensiones más arbitrarias en el catálogo de los derechos

humanos conduce a que su concepto se vacía de un contenido racional. Como explica Roberto Andorno, para algunos autores, la clave para impedir esta inflación, reside en la exigencia del cumplimiento de requisitos formales. O sea, para que se establezca el tránsito de la pretensión al derecho, es necesario que esa pretensión tenga un determinado titular, un objeto preciso y po-sible, y sea imputable a una o más personas con obligación de respetarla54.

A lo largo de las últimas páginas nos hemos apartado un poco del tema principal, el de si de-ben las identidades culturales ser protegidas. Nos encontramos ahora en condiciones de regresar a él con la pretensión de presentar una posición final. Pero no sin antes recapitular en qué punto de la situación nos encontrábamos.

Hemos visto que la sociedad no es más que el resultado del carácter relacional del hombre y de su capacidad dialógica y que esa capacidad implicaba un vasto número de interlocutores. A su vez, a través de esa sociedad el hombre podría obtener la realización de sus necesidades y, además, la realización de sus fines pasará por una conexión con otros hombres en el seno de un determinado grupo social.

Igualmente, subrayamos que la formación de la identidad individual se alcanzaba, con relación a los otros y a través de la ayuda de los otros. El ser humano se desarrolla, por tanto, en el seno de un determinado grupo social concreto, en el cual comparte determinados patrones cultu-rales, en él alcanzaba su realización. Pero, seguía la pregunta: ¿Deben las identidades culturales ser protegidas?

1.3. Posición adoptada

No ha sido en vano que nos hemos dedi-cado durante algunas líneas a conceptuar y a fundamentar la dignidad humana. La contesta-ción a la pregunta que titula este capítulo pasa

50 Cfr. John Finnis, Natural Law and Natural Rights, Oxford, Clarendon Press, 1980, p. 59 y ss.51 Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en “Persona y Derecho”, nº 38, 1998, p. 43.52 Cfr. John Finnis, Natural Law and Natural Rights, Oxford, Clarendon Press, 1980, p. 36.53 Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en op. cit., p.45.54 Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en op. cit., p. 46. A este mismo respecto, Andorno sugiere,

para un estudio más profundo de la cuestión, los autores: Jean Rivero, Les Libertés Publiques, Tome 1, Les Droits de l´Homme, Paris, PUF, 1995; Guy Haarscher, Philosophie des Droits de l´Homme, Editions de l´Université de Bruxelles, 1993.

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DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD: FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE LAS DIVERSAS IDENTIDADES CULTURALES

precisamente por la idea de dignidad tal como la hemos definido.

Asimismo, cabe decir lo siguiente: el hombre alcanza su realización en el seno de un determinado grupo cultural. Añadiendo a esta aserción la idea primordial de dignidad humana, aquella según la cual el hombre es merecedor de un respeto incondicional, concluimos que ese respeto incondicional del hombre se extiende a la cultura donde este logra su realización55. La afirmación de que el hombre es un ser digno y de naturaleza social nos conduce a una conclusión: las identidades culturales deben ser, en realidad, protegidas, porque, si no fuera así, la propia dig-nidad (esa cualidad que permite exigir un respeto incondicional) del hombre quedaría dañada.

Después de constatar que la protección de las identidades culturales resulta una exigencia de tutela de la dignidad humana, puede surgir la cuestión de sí existe en la argumentación presentada una falacia naturalista.

La contestación es negativa. No se alega que se deduzca un deber de respeto de las demás culturas, solo porque existen patrones culturales compartidos por diversos seres humanos56. En realidad, lo que se pretende aclarar es que el ser humano se realiza en el seno de su cultura, y que añadiendo a esta afirmación aquella exigencia de respeto incondicional, en que precisamente consiste la dignidad, se deduce un derecho de todo hombre a la protección de su cultura.

La protección de las identidades culturales surge como consecuencia de la exigencia de la dignidad de los hombres que las componen. Esto es, no estamos en la presencia de un derecho de las propias culturas. Las culturas segregadas de los seres humanos no son nada más que abstracciones. “No existiría, por tanto, (...), un deber ético o jurídico alguno de protección de las tradiciones culturales, más que en la medida en que esas tradiciones son compartidas por los miembros del grupo social (...). El deber ético y jurídico surge tan sólo, en esta esfera, de la existencia de un derecho de los individuos que forman el grupo social a la protección de su iden-tidad cultural; pero no es posible reivindicación alguna de esa tutela al margen del derecho que a ella ostentan los miembros del grupo”57.

Para algunos autores el derecho a la protec-ción de la identidad cultural es, en realidad, un derecho individual y no colectivo. Los derechos humanos -argumentan- únicamente pueden ser atribuidos a sujetos dotados de una potencialidad moral. Solamente el hombre dispone de esta cualidad. Solamente éste es persona moral y jurídica58. No parece tampoco correcto a muchos hablar de derechos humanos colectivos cuyos titulares sean grupos culturales. Si así fuera, sería como conferir una independencia a los propios grupos culturales, con relación a los individuos que los constituyen59. La solución para una idó-nea protección de los grupos culturales no pasa

55 Cfr. nota 33. 56 En una línea semejante de razonamiento, el profesor Martínez-Pujalte sostiene, que a propósito de la afirmación de la protección de las identidades

culturales “No hay (...) falacia naturalista de índole alguna. La tesis formulada no consiste en afirmar que de la existencia de diferentes grupos culturales, y de la pertenencia del ser humano a esos grupos, se infiera un deber de respeto a esas diversas culturas”. Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en “Persona y Derecho”, nº 38, 1998, p. 125. A este propósito Juan José Sebreli, en una crítica al relativismo cultural, sostiene que “El relativismo cultural incurre en esta falacia de deducir el juicio normativo del juicio fáctico, el deber ser del ser, al justificar toda norma ética, cualquiera que fuera, por el mero hecho de ser aceptada por la mayoría de una comunidad. Si toda ética está justificada por formar parte de una identidad cultural, el error y la maldad no tienen lugar, y parecería que los hombres hicieran siempre lo que debieran hacer”. Cfr. Juan José Sebreli, El Asedio a la Modernidad: Crítica del Relativismo Cultural, Barcelona, Ariel, 1992, p. 71.

57 Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en op. cit., pp. 126 y 127.

58 “Una crítica conceptual de los derechos colectivos tendría que demostrar que nadie que no sea un actor moral puede ostentar en realidad un derecho”-Cfr. R. Baubok, “Justificaciones liberales para los derechos de los grupos étnicos”, en Fundamentos 1, volumen dedicado a “Soberanía y Constitución”, Instituto de Estudios Parlamentarios Europeos, Oviedo, 1998, p. 173.

59 Sin embargo, como explica Martínez-Pujalte “Desde un punto de vista técnico-jurídico, resulta evidente que el ordenamiento necesita siempre de un sujeto a quién asignar la titularidad e imputar el ejercicio de los derechos. Por ello cuando, para una mayor facilidad del tráfico, el ordenamiento jurídico desea adscribir la titularidad a un ente colectivo (una asociación, vg.), lo personifica: es decir, trata a ese ente colectivo como si fuese una persona, atribuyéndole subjetividad jurídica; y haciendo recaer sobre el ente colectivo como tal los efectos de las personas que integran los órganos sociales, y que son quienes realmente ejercitan los derechos y obligaciones de la sociedad”. Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en op. cit., p. 129. La atribución de derechos a entidades colectivas no pasa de una mera cuestión de funcionalidad de ordenamiento jurídico mismo. Sin embargo, y como queda claro en la enseñanza de Pujalte, los reales titulares de los derechos son las personas que componen esas entidades colectivas. En última instancia, la atribución de derechos a entes colectivos no es más que un “artificio” con el fin de facilitar el ejercicio de los derechos de sus miembros.

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FALCÃO, D. J. G.

por la atribución de derechos colectivos.Para realizar una adecuada protección de

las identidades culturales existen dos vías, como explica Martínez-Pujalte: “Asegurar la igualdad de derechos de los individuos pertenecientes a la minoría con los del grupo mayoritario y, por otro lado, proteger la diferencia, es decir, tutelar adecuadamente las peculiaridades culturales específicas del grupo minoritario”60.

En las dos situaciones, nos enfrentamos con una situación de protección de derechos individuales. Si se imputan derechos colectivos a los grupos culturales quedando la persona in-dividual en segundo plano, se arriesga a que las culturas se sobreponga a la condición humana individual”61.

Dado que la protección de las identidades culturales, tiene su razón de ser, como hemos expuesto, en la dignidad humana, las pautas cul-turales contrarias a la dignidad humana quedan, asimismo, excluidas de esa protección, una vez que, en nuestra acepción la dignidad representa un bien universal en sus aspectos primordiales.

Parece necesario seguir insistiendo en una unidad del género humano. Y, que esta unidad se traduce por esa peculiar característica del hombre, la dignidad. En realidad, la concreción de la exigencia de respeto incondicional univer-sal pasa por la tutela de los derechos humanos elementales. Las culturas que rechacen esta idea, ellas mismas no merecen respeto alguno.

Para concluir, podemos añadir que hemos intentado desarrollar una argumentación que se sitúe entre la perspectiva liberal-individualista (que parte del individuo abstracto y aislado de las dimensiones culturales y sociales) y la

culturalista (que sostienen un predominio de las tradiciones culturales sobre la libertad indivi-dual). De hecho, el hombre no es un ser acul-tural ni asocial. Se desarrolla en el seno de un determinado grupo social concreto compartiendo determinadas pautas culturales. Sin embargo, no se puede olvidar que son los seres humanos los que crean las culturas y que sin ellos, no pasarían de meras abstracciones. Nos parece, por lo tanto, el culturalismo, un ejercicio poco coherente pues antepone la cultura al hombre62.

Finalizando, lo que importa retener es lo siguiente:

En primer lugar, que es en la capacidad dialógica del hombre donde radica la clave de su dimensión social y es por la implicación de esta capacidad de diversos locutores por lo que nace un determinado grupo social. En segundo lugar, que es en el seno de un determinado grupo social concreto, caracterizado por pautas culturales específicas, donde el hombre logra su desarrollo y realización. En tercer lugar, que agregando la máxima de que el hombre debe ser respetado de forma incondicional (en lo que se traduce la dignidad humana) a la realidad de que éste logra su realización en el seno del grupo cultural al que pertenece, podemos concluir que el respeto de su grupo cultural deriva de la exigencia del respeto por el propio hombre. Por último, si la protección de las identidades culturales se fundamenta en la dignidad humana, las pautas culturales adver-sas a la dignidad humana quedan excluidas de esa protección. Pues, la dignidad representa un bien universal en sus aspectos primordiales, y su concreción pasa por la tutela de los derechos humanos básicos.

60 Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en op.cit., p. 130.

61 Para los defensores del relativismo existen tradiciones culturales que son incompatibles con los derechos del hombre, siendo, a su vez, más importantes y superiores que cualquier condición humana. “Si se me ocurre reprocharle a un nacionalista serbio el genocidio cometido sobre los bosnio-musulmanes, me contestará que, como occidental, no puedo comprender las insondables particularidades de la cosmovisión serbio-ortodoxa (la cual, al parecer, legitima el exterminio de civiles indefensos, siempre que se trate de “perros turcos”), y que, al intentar imponerle mi concepción de los derechos humanos, incurro en pecado de imperialismo cultural”-Cfr. Francisco J. Contreras Peláez, “Tres Versiones del Relativismo Ético-Cultural”, en Persona y Derecho, nº38, 1998, p. 71.

62 A propósito del culturalismo, Martínez-Pujalte, advierte que “puede convertirse fácilmente en un caldo de cultivo de la intolerancia, y conducir a un particularismo que excluya toda comunicación recíproca entre las diversas culturas, imposibilitando así una sociedad auténticamente intercultural, es decir, una sociedad caracterizada por la convivencia e integración armónica entre las diferentes culturas”-Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en op. cit., p. 133.

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NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DAS PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS

RESUMO: O presente trabalho pretende ana-lisar o tratamento que vem sendo conferido à Lei 9.296/96, considerando o quanto aduzido pela Teoria Garantista. Defende-se a tese de que, não servindo esta apenas à proteção de in-teresses pessoais, deve o processo hermenêutico buscar o conteúdo da norma, sopesando os fins constitucionais de proteção à determinados bens jurídicos e de proteção ativa a interesses da so-ciedade e dos investigados, sob pena de incorrer no assim denominado garantismo hiperbólico monocular.Palavras-chave: Teoria Garantista. Interesses pessoais. Direitos fundamentais. Direito à impu-nidade. Interceptação telefônica

ABSTRACT: The present work intends to analyze the handling that has been given to the law n. 9,296/96, considering the much brought forward by the Guarantee Theory. It defends the thesis that, as it serves not only to protect personal interests, the hermeneutic process must also search the content of the rule, taking into account the constitutional goals of protection of certain legal goods and of active protection of interests of the society and of the ones being

Douglas Fischer1

1 Procurador Regional da República na 4ª Região, professor de Processo Penal.

Artigo

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FISCHER, D.

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investigated, under penalty of incurring into the so called hyperbolic monocular guarantism.Keywords: Guarantee theory. Personal interests Fundamental rights. Right to impunity. Telepho-ne interception.

Expressando sua opinião a respeito da interpretação que os tribunais vêm dando à Lei 9.296/96 sobre a possibilidade ou não de reitera-das prorrogações de interceptações telefônicas, nobre advogado publicou recentemente artigo (Boletim IBCCrim n. 194, janeiro de 2009) intitulado “½ calabresa, ½ garantia fundamen-tal”. Em síntese, defendeu os seguintes pontos de vista: a) a Lei 9.296 possui nítido caráter garantista; b) por conta de decisão superveniente do STF (nos autos de denúncia oferecida com base no Inquérito de competência originária nº 2.424), perdeu o sentido elogio que tecera anteriormente noutro escrito à decisão profe-rida no famoso e histórico (sic) julgamento do STJ (6ª Turma, por maioria) no HC nº 76.686 (09.09.2008), precedente no qual restou consig-nado de forma expressa que as interceptações telefônicas só podem ser efetuadas no prazo de 15 dias prorrogável uma única vez por mais 15 dias; c) segundo compreendera, pela decisão do STJ, pareciam sido colocados os “pingos nos i´s” (sic), afastando-se abusos frequentemente cometidos pelas autoridades perscecutórias; d) que incorreu em equívoco a Corte Suprema ao entender – contra legem – desnecessária a trans-crição de todas as escutas telefônicas, bastando se conceda à defesa cópia dos áudios; e) que a lei foi feita para trinta dias, e não meses ou anos ininterruptos de interceptações; f) por fim, que o evidente desconforto desmonstrado pelos ministros mais antigos e experientes (sic) da Corte seja suavizado e as garantias fundamentais voltem a ter o tratamento que vinha lhe sendo dispensado pelo Supremo Tribunal Federal em seus últimos julgados.

Não há pretensão alguma de “colocar pin-gos nos i´s”, mas, dentro de um panorama dialé-

tico, tentar demonstrar o equívoco do raciocínio do nobre jurista, tanto pelo prisma da (segundo cremos) melhor interpretação da Constituição, bem como dos reais precedentes anteriores do Supremo Tribunal Federal.

Já de algum tempo tem-se difundido no âmbito jurídico que, na aplicação do Direito Penal e do Direito Processual Penal, devam ser observados ao máximo os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Estamos de acordo integralmente com tais premissas. Mas insisti-mos que há alguns equívocos nas premissas e conclusões que se têm tomado com fundamento em ideais garantistas, incorrendo-se – não raras vezes – no que temos denominado de garantis-mo hiperbólico monocular, hipótese diversa do sentido proposto por Luigi Ferrajoli.

Se é possível definir de forma bastante sin-tética e inicial, a tese central do garantismo está em que sejam observados rigidamente os direitos fundamentais (também os deveres fundamentais, dizemos) estampados na Constituição 2. Normas de hierarquia inferior (e até em alterações cons-titucionais) ou então interpretações judiciais não podem solapar o que já está (e bem) delineado constitucionalmente na seara dos direitos (e de-veres) fundamentais. Embora eles não estejam única e topicamente ali, convém acentuar que o art. 5º da Constituição está inserto em capítulo que trata “dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Assim, como forma de maximizar os fundamentos garantistas, a função do hermeneuta está em buscar quais os valores e critérios que possam limitar ou conformar constitucionalmen-te o Direito Penal e o Direito Processual Penal.

Não temos dúvidas: a Constituição Federal brasileira é garantista e assenta seus pilares nos princípios ordenadores de um Estado Social e Democrático de Direito. Mas a teoria garantista não existe apenas para proteção de interesses individuais. Como bem salienta José Luis Martí Mármol, “el paradigma constitucional incluye asimismo, según Ferrajoli, los siguientes grupos de derechos fundamentales: derechos políticos

2 Aliás, compreendido na íntegra há se ver que “derecho garantista establece instrumentos para la defensa de los derechos de los indivíduos frente a su eventual agresión por parte de otros indivíduos y (sobre todo) por parte del poder estatal”. Gascón Abellán, Marina. La Teoria General del Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.21.

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NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DAS PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS

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(o de autonomia pública), derechos civiles (o de autonomía privada), derechos liberales (o de libertad) y derechos sociales”3 (grifos e destaques nossos).

Se a Constituição é o ponto de partida para (também) a análise (vertical4) do influxo dos princípios fundamentais de natureza penal e processual penal, decorre daí que o processo hermenêutico não poderá se assentar sobre fór-mulas rígidas e pela simples análise pura (muito menos literal) dos textos dos dispositivos legais (inclusive da própria Constituição). Há se buscar o conteúdo da norma, sua essência.

Na linha dos próprios fundamentos basi-lares do garantismo, não se afigura difícil com-preender que vemos a Constituição ocupando uma função central no sistema vigente (sem gerar um panconstitucionalismo), podendo-se dizer que seus comandos se traduzem como ordenadores e dirigentes aos criadores e aos aplicadores (intérpretes) das leis (aí incluída a própria Constituição, por evidente). Como sa-lienta Maria Fernanda Palma, “a Constituição que define as obrigações essenciais do legislador 5 perante a sociedade. Ora, esta função de pro-tecção activa da Sociedade configura um Estado não meramente liberal, no sentido clássico, mas promotor de bens, direitos e valores”6. Nessa linha, compreendemos também deva ser a inter-pretação do próprio conteúdo dos dispositivos constitucionais.

Para nós, significa que a compreensão e de-fesa dos ordenamentos penal e processual penal também reclamam uma interpretação sistemática dos princípios, regras e valores constitucionais para tentar justificar que, a partir da Constituição Federal de 1988, há realmente novos paradigmas influentes em matéria penal e processual penal.

Diante de uma Constituição que preveja, explícita ou implicitamente, a necessidade de proteção de determinados bens jurídicos e de proteção ativa dos interesses da sociedade e dos investigados e/ou processados, incumbe o dever de se visualizar os contornos (integrais, e não monoculares, muito menos de forma hiperbólica) do sistema garantista.

Têm-se encontrado muitas e reiteradas ma-nifestações doutrinárias e jurisprudenciais com simples referência aos ditames do “garantismo penal”, sem que se compreenda, na essência, qual a extensão e os critérios de sua aplicação. Em muitas situações, ainda, há distorção dos reais pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral dos seus postulados). Daí que falamos que se tem difundido um garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico, evidenciando-se de forma isolada a necessidade de proteção apenas dos direitos dos cidadãos que se vêem proces-sados ou condenados 7. Da leitura que fizemos, a grande razão histórica para o surgimento do pensamento garantista (que aplaudimos e concordamos, insista-se) decorreu de se estar diante de um Estado em que os direitos funda-mentais (notadamente os individuais) não eram minimamente respeitados, especialmente diante do fato do sistema totalitário vigente na época. Como sintetizado por Paulo Rangel8, a teoria do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso alternati-vo do direito nascido na Itália nos anos setenta por intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma conseqüência da evolução histórica dos direitos da humanidade que, hodiernamente, considera o acusado não como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo

3 El fundamentalismo de Luigi Ferrajoli: um análisis crítico de su teoria de los derechos fundamentales, In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005 p. 384

4 Como diz Maria Fernanda Palma, “a Constituição pode conformar o Direito Penal porque funciona como uma espécie de norma fundamental autorizadora do Direito ordinário, assumindo um papel hierarquicamente superior“. PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina, 2006, p. 16.

5 Dizemos nós: também todos os demais Poderes e órgãos do Estado.6 PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina,2006,p.106-7.7 Noutras palavras, Perfecto Andrés Ibáñez destaca que se deve analisar a existência atualmente de um “garantismo dinámico, que es el que tras-

ciende el marco deo proceso penal y también el de la mera garantía individual de carácter reactivo para ampliarse al asegurarmiento de otros derechos e de los correspondientes espacios hábiles para su ejercicio”. Garantismo: Uma teoria Crítica de La jurisdicción. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.60.

8 “O clone da inquisição terrorista“, in http://jusvi.com/artigos/1319 , acesso em 21.nov.2008.

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FISCHER, D.

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Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo, em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente punitivo). Segundo a fórmula garantista, na produção das leis (e também nas suas interpretações – e aqui há a contestação objetiva do nobre advogado) seus conteúdos materiais devem ser vinculados a princípios e va-lores estampados nas Constituições dos Estados Democráticos em que vigorem. É dizer: todos os direitos fundamentais equivalem a vínculos de substância, que, por sua vez, condicionam a validez da essência das normas produzidas (e também nas suas aplicações), expressando, ao mesmo tempo, os fins aos quais está orientado o denominado Estado Constitucional de Direito 9. Em sua construção, as garantias são verdadeiras técnicas insertas no ordenamento que têm por finalidade reduzir a distância estrutural entre a normatividade e a efetividade, possibilitando-se, assim, uma máxima eficácia dos direitos funda-mentais (todos os grupos de direitos fundamen-tais) segundo determinado pela Constituição10. Para Ferrajoli, o sistema garantista tem pilares firmados sobre dez princípios fundamentais que, ordenados, conectados e harmonizados sistemicamente, determinam as “regras do jogo fundamental” de que se incumbe o Direito Penal e também o Direito Processual Penal11.

Parece bastante simples constatar que a Teoria do Garantismo se traduz em verdadeira tutela daqueles valores ou direitos fundamentais cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do Direito Penal. Vale dizer: quer-se estabelecer uma imunidade – e não im(p)unidade - dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da

pessoa do imputado e também a proteção dos interesses coletivos 12.

Assim, se todos os Poderes estão vincula-dos a esses paradigmas – como de fato estão -, especialmente é o Poder Judiciário quem têm o dever de dar garantia também aos cidadãos (sem descurar da necessária proteção social) diante das eventuais violações que eles virem a sofrer. Exatamente por isso que Miguel Carbonell refere que “en el modelo del Estado social los poderes públicos dejan de ser percibidos como enemigos de los derechos fundamentales y comienzan a tomar, por el contrario, el papel de promotores de esos derechos, sobre todo de los de caracter social”13.

Deste modo, a sujeição do juiz à lei não mais é - como sempre foi pelo prisma positi-vista tradicional - à letra da lei (ou mediante sua interpretação meramente literal) de modo acrítico e incondicionado, senão uma sujeição à lei, desde que coerente com a Constituição vista como um todo.

Em nossa compreensão (integral) dos pos-tulados garantistas, o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (in-dividuais e sociais), há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e segurança, evitando-se a impunidade. O dever de garantir a segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito, e, em sendo o caso, da punição do responsável.

Vencidas as considerações prefaciais (mas essenciais, pensamos), adentremos no mérito da crítica traçada pelo trabalho ora contestado.

9 FERRAJOLI, Luigi.Derechos y Garantias,La ley Del más débil. 4ed.Madrid:Trotta, 2004, p. 152.10 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias,La ley Del más débil.4 ed.Madrid: Trotta, 2004, p. 25.11 FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 93. Nas palavras de Ferrajoli, “el modelo garantista

[…] presenta las diez condiciones, límites o prohibiciones que hemos identificado como garantías del ciudadano contra el arbitrio o el error penal: según este modelo, no se admite ninguna imposición de pena sin que se produzcan la comisión de un delito, su previsión por la ley como delito, la necesidad de su prohibición y punición, sus efectos lesivos para terceros, el carácter exterior o material de la acción criminosa, la imputabilidad y la culpabilidad de su autor y, además, su prueba empírica llevada por una acusación ante un juez imparcial en un proceso público y contradictorio con la defensa y mediante procedimientos legalmente preestablecidos “ FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 103-4.

12 FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p.271.13 CARBONELL, Miguel. La garantia de los derechos sociales em la Teoria de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del Garantismo: rasgos prin-

cipales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.179.

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NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DAS PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS

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De fato, feita a interpretação literal do disposto no art. 5º da Lei 9.296, procederia a crítica de que seria impossível a interceptação telefônica durar mais de 30 dias (uma prorro-gação apenas). Mas – e isso é cediço desde os bancos da universidade – a interpretação menos recomendável é a literal.

Há se convir que, se mantido o entendi-mento de que seria apenas possível uma prorro-gação das interceptações telefônicas, somente se garantirá a possibilidade de investigação por 30 dias mediante a interceptação telefônica. Passa-do o lapso temporal matemático, se conferiria verdadeira imunidade aos delinquentes para continuarem na senda dos crimes. Estamos de acordo que a interceptação telefônica deva ser decretada de modo excepcional, com parcimônia e – mais importante – mediante a fundamentação necessária diante do caso concreto. Há excessos eventuais, não se nega. O que não se pode aceitar é querer fazer prevalecer uma inversão lógica de premissas para inviabilizar a investigação criminal.

Com máximo respeito ao entendimento dos eminentes Ministros do STJ que decidiram o caso invocado, não fizeram a melhor inter-pretação segundo cremos. Para quem analisar o caso concreto (não apenas a ementa !), fácil verificar que tratava de graves crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro (dentre outros) praticados anos a fio por delinquentes da upper class, com estrondosos e deletérios efeitos em detrimento da sociedade. Não há se olvidar que as renovações de interceptações telefônicas – todas deferidas judicialmente – encontravam suporte fático devidamente relatado (ao menos assim pensamos): os crimes continuavam sendo perpetrados e era necessária a permanência das investigações. Mais: face à natureza dos crimes apurados (e como praticados), a escuta telefô-nica era imprescindível para a investigação. A excepcionalidade da medida era evidente. Todas as prorrogações foram fundamentadas, mesmo que de modo conciso algumas delas.

Prosseguindo, impende ressaltar que o entendimento consignado pelo STF no Inquérito 2.424 (“Operação Huricane”), cuja competência decorria do fato da imputação de fatos delitivos

(parcialmente recebidos) a ministro do STJ (art. 102, I, ´c ´, CF) não é novo, nem alterou qual-quer compreensão anterior. Há muito o Supremo Tribunal Federal vem entendendo ser possível a renovação das escutas telefônicas.

Como bem referiu o Ministro Gilmar Mendes no julgamento do RHC nº 88.731-SP (unânime, publicado no DJ em 02.02.2007), “a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento segundo o qual as interceptações telefônicas podem ser prorroga-das desde que devidamente fundamentadas pelo juízo competente quanto à necessidade para o prosseguimento das investigações. Precedentes: HC nº 83.515/RS, Rel. Min. Nelson Jobim, Ple-no, maioria, DJ de 04.03.2005; e HC nº 84.301/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, una-nimidade, DJ de 24.03.2006”.

Ainda: enquanto o precedente histórico invocado foi tomado por maioria pela Egrégia 6ª Turma do STJ, é importante informar que o entendimento (unânime) da 5ª Turma do STJ continua sendo no sentido de que a “intercep-tação telefônica não pode exceder 15 dias. To-davia, pode ser renovada por igual período, não havendo restrição legal ao número de vezes para tal renovação, se comprovada a sua necessidade” (HC n. 116.482/SP, Relator Ministro Arnaldo Es-teves Lima, 5ª Turma, unanimidade, julgado em 04.12.2008, publicado no D.J. em 02.02.2009).

Sobre a desnecessidade de transcrição de todos os conteúdos das interceptações telefôni-cas, nenhuma novidade também. Em incidente anterior nos mesmos autos do Inquérito nº 2.424 (Medida Cautelar no HC nº 91.207, em que a autoridade coatora era o Ministro do STF Cezar Peluso, julgado em 06.06.2007 e publicado no DJ em 21.09.2007), assentou a Corte Suprema por seu plenário (o competente para apreciar o habeas corpus) ser “desnecessária a juntada do conteúdo integral das degravações das escutas telefônicas realizadas nos autos do inquérito no qual são investigados os ora Pacientes, pois bastam que se tenham degravados os excertos necessários ao embasamento da denúncia ofere-cida, não configurando, essa restrição, ofensa ao princípio do devido processo legal (art. 5º, inc.

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FISCHER, D.

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LV, da Constituição da República”. O acerto da decisão decorre da circunstância (elementar) de que, no processo penal constitucional vigente, o que se deve garantir ao investigado ou réu é saber (sem fórmulas kafkanianas) quais as provas produzidas contra ele. A prova encontra-se na gravação feita e autorizada judicialmente. Para fazer a imputação, o titular da ação penal deverá utilizar unicamente as mesmas provas disponi-bilizadas para a defesa. Se eventualmente na pretensão acusatória houver a omissão de dados relevantes, estar-se-á permitindo à defesa – de posse dos conteúdos integrais das intercepta-ções - contradite o pleito. Isto é contraditório, ampla defesa e devido processo legal Querer que se degrave todo o conteúdo (muitas partes até irrelevantes) é quiçá – com a maxima venia - pretender unicamente fazer volume antecipado de folhas de processo e ensejar a demora na apu-ração dos fatos (quiçá para atingir ulteriormente a prescrição retroativa, instituto ímpar brasileiro, sem precedentes nos ordenamentos jurídicos comparados e democráticos).

Compreendemos que a interpretação (sis-têmica e não meramente literal) ratificada pelo STF acerca da possibilidade de ultrapassagem dos prazos de 30 dias nas interceptações telefô-nicas, desde que imprescindíveis e devidamente fundamentadas, e da desnecessidade de degrava-ção de todas as interceptações se coadunam com os princípios basilares da Carta da República e não arrostam, por si só, abstratamente, direitos fundamentais individuais.

Como extraído do próprio pensamento garantista, não se pode olvidar que também há direitos coletivos e deveres individuais. Nesta linha, se os direitos fundamentais dos investiga-dos devem ser preservados, insistimos que eles não são absolutos. Podem ser relativizados se presente(s) no caso concreto outro(s) valor(es) constitucional(ais) relevante(s) em sopesamen-to. É a decantada questão da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em

sentido estrito), se bem compreendida. Há se ter em mente que, se o Estado não pode agir com excessos injustificados (não pode mesmo !) em detrimento do cidadão (übermassverbot, segundo expressão de Canaris – ou também hodiernamen-te denominado de garantismo negativo), também não pode deixar de considerar que há imperativos constitucionais que obrigam o Estado proteger a sociedade das práticas delitivas.

Valendo-se dos ensinamentos do Ministro Gilmar Mendes, não há se olvidar que, tratando o tema dos direitos fundamentais e dos deveres de proteção14, já restou por ele assentado que “os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção [...], expres-sando também um postulado de proteção [...]. Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção: [...] (b) Dever de segurança [...], que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas; [...] Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de pro-teção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental. [...]”. É o que se tem denominado – esse dever de proteção – de garantismo positivo.

Quando falamos em garantismo penal in-tegral é a isso que estamos nos referindo: a con-jugação do garantismo positivo e do garantismo negativo 15. E não só este último, que, aplicado isolada e muitas vezes ampliadamente, se traduz no que denominamos de garantismo hiperbólico monocular.

14 MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Brasília: Revista Jurídica Virtual, vol. 2, n. 13, junho/1999. Também em Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, Núm. 8, 2004, p. 131-142.

15 Como destaca Carbonell, há muito é este o entendimento expresso (mas não difundido na íntegra) de Ferrajoli. A propósito, vide La garantia de los derechos sociales em la Teoria de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.179.

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NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL À IMPUNIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DAS PRORROGAÇÕES DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS

37Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 31-37, junho/2009

Também imperativo constitucional (art. 144, caput, CF), o dever de garantir segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito, e, em sendo o caso, da punição do responsável. Neste diapasão, perfeitas nova-mente as considerações de Miguel Carbonell ao assentar que “la obligación de proteger significa que el Estado debe adoptar medidas destinadas a evitar que otros agentes o sujetos violen los derechos sociales, lo que incluye mecanismos no solamente reactivos frente a las violaciones [...], sino también esquemas de carácter preventivo que eviten que agentes privados pudean hacerse

com el control de los recursos necesarios para la realización de um derecho” 16.

Diante do exposto, não concordamos com a idéia da prevalência indiscriminada – pri-ma facie – somente de direitos fundamentais individuais sobre os demais direitos, valores, princípios e regras constitucionais, sem qualquer sopesação e, sobretudo, diante de interpretação literal e gramatical. Se assim for, valorizando-se e difundindo-se apenas e parcialmente a teoria garantista – o que denominamos de garantismo hiperbólico monocular -, melhor deixar de lado a proposta de ½ calabresa, ½ garantia fundamental e pedir desde já uma inteira com sabor único de impunidade.

16 Id. Ibidem., p. 194.

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EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

RESUMO: O presente artigo investiga a efeti-vidade das normas constitucionais que dispõem sobre direitos sociais. Cumpre, desde já, a adver-tência de que não analisamos exaustivamente o rol dos direito sociais inseridos na Constituição. Desse modo, limitamos-nos a abranger os direi-tos sociais de maneira bastante genérica, apenas para proporcionar ao leitor uma melhor compre-ensão do tema que ora nos entretém. Palavras-chave: Direitos Sociais. Constituição Federal de 1988. Efetividade das normas. Juris-pruência e doutrina.

ABSTRACT: The present article investigates the effectiveness of the constitutional rules that deal on social rights. It should be warned now that we have not thoroughly analyzed the list of social rights inserted in the Constitution. Thus, we limited ourselves to comprehend the social rights rather generically, only to provide to the reader a better understanding of the subject that now holds our attention.Keywords: Social rights. Federal Constitution of 1988. Effectiveness of rules. Jurisprudence and doctrine.

O vocábulo efetividade, segundo Antônio Houaiss, corresponde, entre outros significa-dos, ao “caráter, virtude ou qualidade do que é efetivo, faculdade de produzir um efeito real, capacidade de produzir o seu efeito habitual, de funcionar normalmente”1. Guardando se-melhança com esses significados, a efetividade

Ewerton Teixeira Bueno*

* Técnico Administrativo e estagiário do Ministério Público Federal, além de acadêmico de direito da Universidade São Francisco.

Artigo

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BUENO, E. T.

da norma jurídica é a sintonia adequada entre as suas previsões genéricas, abstratas e impessoais e o fato social que ela se propõe a normatizar, em outras palavras, há efetividade quando o juízo hipotético dever ser se identifica com o ser da realidade fática. Destarte, uma norma pode ser mais ou menos eficaz perante dada sociedade, mas não pode ser mais ou menos jurídica perante o direito. Ou determinada regra é norma jurídica, consequentemente, exigível; ou não, e, por isso, alheia ao ordenamento jurídico.

As normas que veiculam direito social não fogem a essa regra e, apesar de topograficamente se localizarem no ápice do sistema jurídico – na Constituição Federal - por uma série de fatores, essas normas nem sempre conseguem atingir a sua plena efetividade. Não por acaso Pablo Verdú afirmou “tanto é assim que se pode perceber nos textos fundamentais sintomas de incongruência com a realidade social”2. Desse modo, grande é a importância de se aferir se os comandos emergentes das normas direitos sociais atingem ou não os limites razoáveis de eficácia.

Observando efetividade dessas normas à luz da sociedade brasileira, concluímos que se por um lado a Constituição Federal prevê inúme-ros direitos prestacionais, por outro lado, ainda existe um grande hiato entre essas previsões le-gais e a realidade social dos seus destinatários.

Nesta quadra, é possível elencar certos fatores preponderantes para a ineficácia dos direitos sociais no Brasil.

Segundo José Reinaldo de Lima Lopes3 a sociedade brasileira, em seu desenvolvimento normal, não foi capaz ainda de ver a con-cretização dos direito sociais porque a nossa tendência sempre fora a de compreender, en-quanto cidadãos, que os direitos sociais não são propriamente direitos e que, por isso, carecem de força social bastante para serem respeitados naturalmente como as demais leis. Diante desse problema, propõe que a única possibilidade

frente tal descompasso seria a discussão judicial desses direitos.

Com efeito, diversas ações judiciais foram propostas com o fito atribuir os direitos sociais aos seus titulares - sobretudo o direito à saúde e à educação – mesmo assim, ainda prepondera no judiciário a carga acentuadamente política atribuída às normas de direitos sociais, enqua-dradas entre as normas programáticas.

Outro fator que, sem dúvida, contribui para a ineficácia das normas de direitos sociais é, por vezes, a ausência de leis infraconstitucionais que concretizem os preceitos constitucionais.

Em contrapartida, a vanguarda progres-siva da doutrina considera que, nesses casos, incumbe ao judiciário dar concretização a esses “normas constitucionais incompletas”, porque o princípio inserido no artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal, considera que as normas definidoras dos direitos e garantias sociais têm aplicação imediata. Neste passo, Fábio Kon-der Comparato preleciona que “apesar de seu elevado grau de abstração, os princípios são normas jurídicas e não simples recomendações programáticas, ou exortações políticas. Mais ainda trata-se de normas jurídicas de eficácia plena e imediata, a dispensar a intermediação de regras concretizadoras. Provocado ou não pelas partes, o juiz está sempre autorizado a aplicar diretamente um principio ao caso trazido ao seu julgamento, por forçado disposto no parágrafo 1º do art. 5 da Constituição.”4.

Numa interpretação literal do alutido dispositivo constitucional é possível inferir que as normas de direitos fundamentais devem ser aplicadas imediatamente, irradiando os seus efeitos nas situações subjetivas que normatizam, obrigando o Legislativo, Executivo e o Judici-ário, a desenvolverem meios, dentro de suas funções Constitucionais, para tornarem eficazes os direitos individuais e sociais fundamentais. Pondera Juraci Mourão

5 que apenas a forma de

1 Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, ed. Objetiva, 2001, p.1102.2 Verdú, Pablo Lucas, A luta Pelo Estado de Direito. 2007. Rio de Janeiro., ed. Forense. p., 53. 3 José Reinaldo de Lima Lopes, A Efetividade dos Direitos Econômicos, Culturais e Sociais, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São

Paulo, ed. Método., p. 103-1044 Fábio Konder Comparato, O Papel do Juiz na Efetivação dos Direitos Humanos, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São Paulo, ed.

Método., p. 22.

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EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

realizar isso é que varia, inferindo, em síntese, que pelo Legislativo a efetivação se dá pela criação de leis que pormenorizem os preceitos constitucionais, pelo judiciário, a efetivação se dá caso a caso diante dos fatos levados ao co-nhecimento do juiz.

Recorrendo ao direito comparado, resgata-mos julgado do em que o Tribunal Constitucional Alemão consignou o entendimento de que: “O princípio do Estado social contém uma ordem de conformação endereçada ao legislador (cf. BverfGE 50, 57 [108]). Este o obriga a pro-videnciar uma harmonização das contradições sociais (cf. BverfGE 22, 108 [204]). Além disso, ele determina que o Estado ofereça assistência social a indivíduos ou grupos que, em razão de suas circunstâncias pessoais de vida ou des-vantagens sociais, se encontram impedidos de alcançar o seu desenvolvimento pessoal ou social (cf. BverfGE 45, 376 [387]). Como o legislador vai realizar essa tarefa é, na ausência de uma concretização mais precisa do Estado social, [exclusivamente] de sua alçada (cf. BverfGE 1, 97 [105]; jurisprudência consolidada).

6”

Em verdade, ainda que não exista lei que viabilize o gozo imediato desses direitos, é dever do Estado através do Executivo ou Judiciário procurar, dentro dos seus limites, sanar as omis-sões do Legislativo, tendo como premissa base o princípio constitucional da máxima efetividade, principio este, que orienta os aplicadores da Lei Maior para que interpretem as suas normas em ordem a otimizar-lhes a eficácia, sem alterar o seu conteúdo.

Contudo, vale lembrar a advertência feita por José Eduardo Faria de que o entendimento que ainda hoje prevalece é que “sem a devida regulamentação” por meio de uma lei comple-mentar, esses direitos e essas prerrogativas têm vigência formal, mas são materialmente inefi-cazes7”, uma vez que não são capazes de gerar

vínculos de direitos subjetivos. Nessa esteira, boa parte da jurisprudência ainda considera que, diante da omissão do Legislativo, não é dado ao o juiz, arvorando-se em legislador, criar o direito novo para caso concreto, sob pena de violar o princípio da independência dos poderes. O mes-mo autor conclui que “a magistratura brasileira tem desprezado o desafio de preencher o fosso entre o sistema jurídico vigente e as condições reais da sociedade, em nome da “segurança jurídica” e de uma visão por vezes ingênua do equilíbrio entre os poderes autônomos.8”.

Neste sentido, já decidiu o Superior Tri-bunal de Justiça:

“(..) inexiste direito certo se não ema-nado da lei ou da constituição. normas meramente programaticas protegem um interesse geral, mas não conferem aos respectivos beneficiarios o poder de exi-gir a sua satisfação antes que o legislador cumpra o dever de complementa-las com a legislação integrativa. no siste-ma juridico-constitucional vigente, a nenhum orgão publico ou autoridade e conferido o poder de realizar despesas sem a devida previsão orçamentaria. recurso conhecido e provido e cassada a segurança. decisão por maioria.”9

Dessa postura jurisprudencial resulta um grande entrave para a eficácia dos direitos sociais que, se aplicados com os mesmos mé-todos utilizados para a interpretação dos direitos individuais, - de origem manifestamente liberal - terão a sua aplicabilidade seriamente restringida. Com efeito, a estrutura liberal do Estado não é o ambiente mais adequado para que floresçam os direitos sociais10. Porquanto é fundamental para a efetividade dos direitos sociais que o ju-diciário se desprenda das amarras do liberalismo clássico, onde o juiz fora completamente alheio

5 Constituição e Democracia, Estudos em Homenagem ao Professor J.J. Gomes Canotilho, editora Malheiros, A Administração da justiça e o Estado Social, São Paulo, 1ºedição, 2006, p. 390.

6 Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, Coletânea original: Jügen Schwabe, Organização e introdução: Leonardo Martins, publicação: Konrad-Adenauer-Stiftung E.V., 2005, Montevideo, Uruguay, p. 835.

7 Faria, José Eduardo Faria, Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, editora Malheiros, 1ºedição, São Paulo, 2005., p 99. 8 Nas palavras de José Reinaldo de Lima Lopes “basta dizer que os novos direitos sociais só podem ser adequadamente compreendidos a partir de

uma perspectiva social e pública, não individual e nem mesmo corporativista” José Eduardo Faria, ob., p. 111.9 Pesp 57614 / RS10 Pablo Verdú. Ob. Cit., p.59.

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BUENO, E. T.

às questões sociais. Urge, neste momento, uma mudança radical na postura adotada pelo Poder Judiciário em prol da prevalência do Estado Social Democrático de Direito instituído com o advento da Constituição Federal de 1988. Não sem razão, o professor Juraci Mourão Lopes Filho afirma11 que a inadequação da postura processual do juiz à Constituição é a mais danosa ofensa e a mais degradante incongruência que pode se dar dentro de um sistema jurídico, pois representa um velado e constante flagelo à norma constitucional. É preciso haver uma consciência institucional e de cada membro isoladamente quanto ao seu papel na sociedade e no Estado. Muitas vezes, ideologias reinantes por força do labor de forças sociais que não comungam das mesmas aspirações da Constituição obnubilam a visão do órgão de justiça sobre sua própria figura, frutificando um desalinhamento entre Judiciário, Constituição e sociedade.

No entanto, essa mudança de visão não ocorre sem obstáculos, sobretudo porque a Constituição de 1988 é uma Constituição plural que defende valores às vezes antagônicos. A professora Fayga Silveira Bedê, pondera que “esse antagonismo estrutural que se verifica no bojo da Constituição é também fruto da própria evolução que vem sendo perpetrada a partir da superação do velho paradigma liberal em prol de um projeto superior, de caráter humanizante, emancipatório e dignificante da pessoa humana, que é o Estado Social do bem-estar preconização pela Constituição Federal de 1988. É bom que se diga que neste mote não há qualquer contradição. Com efeito, o simples reconhecimento de que o modelo econômico adotado traduz certo grau de hibridismo, resultado direto de sua natureza compromissária, não desautoriza a inferência de que a Constituição Federal de 1988 assumiu, em suas linhas gerais, uma postura ideológica defina, que guarda consonância com o Estado Social – ao qual deve subsumir o Estado de Direito12”.

Ressalte-se, ainda, que no Estado De-mocrático de Direito o dever de proteção do ordenamento jurídico cabe a todos indistinta-mente, sobretudo num país onde vige, ao lado do concentrado, o controle difuso de constitucio-nalidade das leis, cabe precipuamente ao Poder Judiciário a proteção diuturna da Constituição Federal. Canotilho aduz que: “o juiz participa na política porque desempenha um papel consi-derado adequado para assumir a cumplicidade de partilhar os valores e interesses dos grupos e indivíduos que, perante ele, revindicam direitos e posições prestacionais negados ou bloqueados pelos decisores políticos-representativos13”

Destarte, no Estado Democrático de Di-reito, cumpre ao Estado-Juiz impor obrigações de fazer ao Estado-Administração quando este omitir-se em cumprir os seus deveres constitu-cionais. Em casos análogos, o juiz não estará indo além de suas funções jurisdicionais, mas tão somente levando a efeito o seu mister cons-titucional, aplicando o direito ao caso concre-to14. Fábio Konder Comparato aduz, de forma brilhante, que: “é incabível alegar que, em tais situações, Judiciário nada tem a fazer, pois os direitos sociais só se concretizam mediante a implementação de políticas públicas, que entram na competência exclusiva do Poder Executivo. A alegação é descabida, porque o que o titular do direito social violado pede ao juiz, não é obviamente a implementação de um programa de ação governamental, mas sim a satisfação de um interesse próprio da parte, fundado em direito fundamental. E isto o Judiciário não pode se recusar a dar ao jurisdicionado, sob pena de denegação de justiça15.

Felizmente já temos sinais, embora tími-dos, de uma mudança na postura jurisprudencial. O Ministro Celso Melo reconheceu que, se por um lado não é atribuição do Poder Judiciário a formulação e a implementação de políticas públicas, “tal incumbência, no entanto, embora

11 Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, editora Malheiros, 1º edição, São Paulo, 2005., p.367.12 Limite do Imponderável ou Direitos Sociais como Limites ao Poder Reformador, Ob. cit., p. 111.13 Canotilho, José Joaquim Gomes, Estudos Sobre os Direitos Fundamentais, ed. Revista dos Tribunais, 1º edição brasileira, 2º edição portuguesa,

São Paulo, 2008, Ob., cit.,p. 268.14 Já asseverou José Afonso da Silva: (..) “as normas programáticas condicionam a atividade discricionária da Administração, bem como a atividade

jurisdicional“. Eficácia das Normas Constitucionais. P. 175.15 Fábio Konder Comparato, O Papel do Juiz na Efetivação dos Direitos Humanos, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São Paulo,

ed. Método., , cit., p. 25.

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43Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 39-43, junho/2009

EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a efi-cácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional,

ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.16”

Vale, por fim, relembrar a máxima exarada por Luiz Roberto Barroso: o Direito existe para realizar-se. O Direito Constitucional - leia-se social - não foge a este designo17.

16 Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°45.17Luiz Roberto Barroso, O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas, 8ºedição, ed. Renovar., p. 84.

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45Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 45-53, junho/2009

UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA DITADURA BRASILEIRA

RESUMO: O objetivo do presente artigo é trazer uma reflexão jurídica a respeito da Ditadura no Brasil, tendo como base o caso Herzog, em que o juiz Márcio Moraes demonstrou de maneira exemplar como os magistrados podem aplicar efetivamente o Direito mesmo em uma conjun-tura política em que este permanece ignorado. A sentença trouxe à tona institutos jurídicos como o da responsabilidade objetiva do Estado, que continuava vigente à época, sendo sua utilização plenamente cabível. A partir disso, uma breve análise baseada no Direito Constitucional e no Direito Penal leva à conclusão de que à época os crimes de tortura, assassinato e crimes sexuais cometidos eram completamente reprováveis e puníveis do ponto de vista jurídico, mesmo na vigência dos Atos Institucionais, e de que a in-terpretação dada à Lei de Anistia é extremamente questionável. Por fim, ressalta-se a importância da sociedade e dos juristas no processo no con-cernente à justiça de transição, permitindo o conhecimento da verdade e o reconhecimento dos erros para evitar que marcas tão vergonhosas e perenes como as da Ditadura voltem a macular a história do Brasil.Palavras-chave: Ditadura; Herzog; Brasil; Di-reito; juristas; Lei de Anistia; verdade.

ABSTRACT: The aim of the present article is to bring a legal reflection regarding the Dictator-ship in Brazil, having as base the Herzog case, where the judge Márcio Moraes demonstrated laudably how the magistrates can effectively

Gabriela Freire Kühl de Godoy*

*Estudante de Direito da PUCSP

Artigo

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GODOY, G. F. K.

apply the Law in a politics outlook where it remains ignored. The verdict brought to light legal means as the state’s strict liability, which were still effective at that time, being its use completely possible.

From that point, one brief analysis based on the Constitutional law and the Criminal law leads to the conclusion that, back to that days, crimes such as torture, murder and sexual crimes were completely reprehensible and punishable from the legal point of view, even under the effectiveness of the Institutional Acts, and that the interpretation given to the Amnesty Law is extremely doubtful. Finally, it is highlighted the importance of the society and the jurists in the process concerning the transition justice, allowing the knowledge of the truth and the recognition of the mistakes in order to prevent that such shameful and everlasting marks as of the Dictatorship would come back to stain the history of Brazil.Keywords: Dictatorship; Herzog; Brazil; Law; jurists; Amnesty Law; truth.

1) A função Poder Judiciário, como Poder Independente, no processo de abertura política

O presente artigo objetiva ressaltar a im-portância dos juristas, e, sobretudo do Direito, no contexto político do período de transição marcado pelo fim da ditadura e a volta do re-gime democrático. Dessa forma, se buscará demonstrar que exercer uma carreira jurídica não significa uma aplicação meramente mecanicista de normas jurídicas. Um verdadeiro jurista deve estar apto a fazer interpretações sistemáticas e principiológicas das normas, sob pena de tra-zer conseqüências extremamente deletérias à sociedade.

O caso do jornalista Vladimir Herzog foi emblemático no que se refere à missão do Poder Judiciário no contexto político, merecendo, por isso, abordagem mais detalhada. Primeiramente, oportuno lembrar que em 1965, um ano após o golpe militar de 1964, por meio do Ato Institu-cional nº 2 os Juízes Federais de Primeiro Grau

foram nomeados diretamente pelo Presidente da República, depois de escolhidos pelo Ministro da Justiça do governo militar, o que demonstra a preocupação do governo da época em que as decisões lhes fossem favoráveis. Apenas por volta de 1973 passaram a ocorrer novamente concursos para juízes federais.

Nesse contexto, em 25 de outubro de 1978, quando se completavam exatos três anos da mor-te do jornalista Vladimir Herzog, o juiz Márcio José de Moraes assinou uma sentença única na vida política do país, evidenciando a possibili-dade de independência do Poder Judiciário e o dever que este tem de aplicar o Direito, inclusive para fazer com que a Administração Pública res-ponda pelos seus atos. Aliás, é essa justamente a função de tripartição dos poderes proposta por Montesquieu, qual seja, a de que, por meio de um sistema de freios e contrapesos, haja harmo-nia entre Executivo, Legislativo e Judiciário de maneira que nenhum dos Poderes ultrapasse a sua representatividade pública e usurpe o Poder na defesa de interesses particulares.

Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi preso e veio a falecer no mesmo dia nas depen-dências do DOI CODI (Destacamento de Opera-ções de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna- órgão encarregado de investigar e obter confissões dos pretensos envolvidos no processo de dissidência política).

O jornalista em tela foi procurado pelo DOI CODI e comprometeu-se, para não ser preso instantaneamente, a comparecer no dia seguinte às dependências do referido órgão. Em razão disso, na época, o governo insistiu na tese de que Herzog teria se apresentado voluntariamente ao DOI CODI e ali teria se suicidado. A versão apresentada era totalmente absurda e não con-seguiu ludibriar os mais próximos do falecido, ou mesmo a população.

Ficou de tal maneira evidente que o jor-nalista fora exterminado pelo dentro de um órgão governamental que o caso gerou grande divulgação e comoção popular. Uma semana após a morte de Herzog oito mil pessoas se concentraram na catedral da Sé em São Paulo para um ato ecumênico, manifestação essa fun-

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damental à época, caracterizando a iminência da ruptura de anos de silêncio da população, numa demonstração pública de desaprovação popular aos desmandos do governo militar.

Feitas essas breves considerações fáticas, interessante analisar os argumentos utilizados pelo juiz Márcio Moraes que, brilhantemente, em sentença em que figuravam como autores a esposa e os filhos de Herzog, não somente de-clarou a responsabilidade da União pela morte do jornalista, como também mandou instaurar inquérito policial para que se apurasse a res-ponsabilidade dos torturadores, o que não foi feito até hoje.

Para caracterizar a responsabilidade da União o juiz em tela ressaltou que os princípios da Constituição Federal de 1967 ainda estavam vigentes, apesar dos atos institucionais que res-tringiam sobremaneira a liberdade das pessoas.

Dessa maneira, permanecia em vigor o disposto no artigo 37, inciso XXII, parágrafo sexto da Constituição Federal de 1967, o qual dispunha expressamente que:

“as pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualida-de, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso nos casos de dolo ou culpa”.

Assim, o fato de se estar sob o manto de um governo ditatorial à época da morte do jornalista não afastava a responsabilidade objetiva do Esta-do. Ou seja: para a caracterização da União como responsável juridicamente pela morte de alguém no interior de um órgão governamental bastava que houvesse um nexo de causalidade entre o dano, qual seja, a morte e a presença do jornalista no local, sendo prescindível a prova de culpa, negligência ou imprudência dos agentes estatais. Contudo, pela teoria do risco administrativo, se ficasse comprovado a ocorrência do suicídio e que este não tinha relação alguma com o Estado a responsabilidade deste estaria elidida.

Portanto, existente o nexo de causalidade, há que se reconhecer a responsabilidade mesmo

na hipótese de ser acatada a tese (inverídica) da União de que o jornalista teria se suicidado. Os agentes do DOI CODI deixaram no local ferramentas (o cinto que estaria no macacão de Herzog era totalmente desnecessário para aquele tipo de vestimenta e não constava no s uniformes dos outros detentos) para que isso ocorresse e, ademais, não teriam evitado a tragédia, que não pode ser considerada caso fortuito nem força maior.

Apesar desses fatos por si só já serem aptos a responsabilizar a União, a ampla instrução probatória também demonstrava que não havia ocorrido suicídio. Primeiramente, o exame de corpo de delito que alegava o suicídio havia ocor-rido, trazia erros grosseiros (como por exemplo, alegava, com a intenção de defender a tese do suicídio, que no pescoço de Herzog havia dois sulcos, quando na verdade havia apenas um), foi feito por apenas um perito (apesar de assinado por dois), o que na época não era permitido, o que ensejou que o Juiz da causa, Dr. Márcio Moraes anulasse o laudo produzido. Desta feita, foi possível que o caso fosse decidido com base em prova testemunhal, que era ampla no sentido de que o jornalista não poderia ter se suicidado, uma vez que a maioria das testemunhas em favor da União não depuseram na fase judicial.

Dessa forma, com base na legislação vi-gente na época, o juiz Márcio Moraes declarou que Vladimir Herzog estava preso ilegalmente no DOI CODI e que a União era responsável pela morte do jornalista, criando sem dúvida uma esperança na população de que sua sen-tença refletisse de maneira positiva em outros casos análogos e na investigação de pessoas desaparecidas.

2) Reflexões a partir do caso Herzog: por que, apesar da sentença do juiz Marcio Moraes ter determinado que os autos fossem encaminhados para o juízo criminal a fim de que fossem tomadas as providências cabíveis não foi realizada nenhuma investigação ?

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Neste artigo, essa pergunta busca apenas um processo reflexivo, não se tem a pretensão de esclarecer os motivos pelos quais não foram adiante as investigações não somente do caso Herzog como dos demais outros casos, trazendo como consequência a ausência de punição dos torturadores e criminosos à época. Busca-se tão somente demonstrar que não havia impedimento jurídico para tal, pelo contrário.

Inicialmente, oportuna a transcrição de parte do preâmbulo do AI5, ato Institucional que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, reforçando os poderes discricionários do regime militar e restringindo sobremaneira a liberdade dos cidadãos:

“CONSIDERANDO que a Revolução brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, funda-mentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às

ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrup-ção, buscando, deste modo,” os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria “(Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964);(grifo nosso)”.

Logo no início do AI5 são utilizados termos como “autêntica ordem democrática”, “liberda-de” e respeito à “dignidade da pessoa humana”, demonstrando a preocupação do governo em mascarar que se tratava de um regime autoritário, de instituir atos totalmente ditatoriais mantendo a aparência democrática.

De qualquer forma, fato é que nos dispo-sitivos seguintes1 foram estabelecidas diversas supressões aos direitos dos cidadãos, totalmente contrárias à ordem democrática, tais como a conferência ao Poder Executivo de competência legislativa, a proibição de atividades ou mani-festações de natureza política e a suspensão de

1 ATO INSTITUCIONAL número 5: Art 1º - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institcional.(g.n). Art 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores,

por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. § 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições

previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios. § 2º - Durante o período de recesso, os Senadores, os Deputados federais, estaduais e os Vereadores só perceberão a parte fixa de seus subsídios. § 3º - Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios que não possuam Tribunal de Contas,

será exercida pelo do respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos.

Art 3º - O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.

Parágrafo único - Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atri-buições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei.

Art 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Parágrafo único - Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.

Art 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado, § 1º - o ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros

direitos públicos ou privados. § 2º - As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu

ato pelo Poder Judiciário.

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“habeas corpus” nos casos de crimes políticos, contra a ordem nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

Desta feita, resta claro que os atos insti-tucionais, cujo mais autoritário foi o AI5, insti-tuíram uma série de limitações aos direitos e à liberdade que os cidadãos tem em uma ordem de-mocrática. Contudo, a Constituição de 1967 não foi totalmente revogada pelos atos institucionais, de maneira que plenamente possível a invocação de dispositivos da referida Carta Magna que não contrastassem com os posteriores, tais como o § 11 do artigo 150 :

“ § 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou con-fisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei de-terminar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta.”

Portanto, como não havia nenhum dis-positivo expresso autorizando o assassinato, a tortura ou a práticas de crimes sexuais contra os prisioneiros, mesmo que acusados de crimes políticos, claramente prevaleciam as disposi-ções do ordenamento jurídico anterior aos Atos Institucionais (sobretudo em relação aos limites

do Poder Estatal, uma vez que este, diferente-mente dos particulares, só pode fazer o que a lei permite).

Logo, há uma necessidade de desfazer a ideia de que as atrocidades cometidas pelos agentes do governo durante o regime militar, pelo simples fato de estarem supostamente sob a anuência estatal, seriam atos legais.

Nesse sentido, não há dúvidas de que todos os interrogatórios realizados por meio de tortura e crimes sexuais, assim como os homicídios oriundos desses meios inquisitivos, foram ile-gais, mesmo na hipótese de se considerar que tais condutas tenham sido eventualmente reali-zadas a mando estatal, haja vista que não havia previsão constitucional autorizando as condutas supramencionadas.

Mesmo que assim não fosse, ou seja, su-pondo para efeitos meramente argumentativos que algum Ato Institucional tivesse previsto expressamente a permissão de todo e qualquer tipo de tortura, de tratamento cruel ou degradan-te, ainda assim, poder-se-ia sustentar, embora nesse caso mais arduamente que no anterior, a ilegalidade de tais condutas.

Isso porque precede à análise da legalidade a questão da legitimidade. O fato de os militares terem utilizado seu material bélico e poder de influência, sobretudo pela manipulação da mídia, para realizar o que foi por eles denominado de revolução e por muitos chamado de golpe teria o condão de lhe conferir a imputação de Poder

Art 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.

§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.

§ 2º - O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios. Art 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o

respectivo prazo. Art 8º - O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no

exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.

Parágrafo único - Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á sua restituição. Art 9º - O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário

à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e do § 2º do art. 152 da Constituição. Art 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus , nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a

economia popular. Art 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares,

bem como os respectivos efeitos. Art 12 - O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário. Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República.

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Constituinte Originário? Para aqueles que enten-derem ser a resposta negativa, nenhuma previ-são dos Atos Institucionais pode ser tida como legítima, haja vista que não foram seguidos os requisitos formais e materiais para o exercício do Poder Constituinte Reformador.

Isto posto, elidem-se os argumentos de que haveria impossibilidade de responsabilização dos agentes que cometeram torturas e homicídios durante a ditadura com a justificativa de que tais atos estariam sob o manto da legalidade na época, poderiam até estar sob o manto da gover-nabilidade, mas não da legalidade.

A hipótese de o próprio Estado ter acober-tado, aprovado e até ordenado o cometimento de atos totalmente desumanos para defender interesses políticos de maneira alguma poderia sanar o vício da ilegalidade. O que poderia o ocorrer, no máximo, é que o inferior alegasse obediência hierárquica para não ser punido, na remota possibilidade de se considerar crível que os crimes cometidos na ditadura não fossem tidos como manifestamente ilegais.

Contudo, os dirigentes do sistema de justiça (Ministério Público e Poder Judiciário), mesmo entendendo serem ilegais todos os atos criminosos cometidos sob a égide da ditadura, não deram seguimento os processos com fulcro na Lei de Anistia, que, segundo a interpretação da grande maioria dos doutrinadores e políticos seria recíproca, ou seja, tanto para aqueles que torturaram e mataram quanto para os que foram torturados e mortos em razão de uma ideologia política.

3) Anistia no Estado Democrático brasileiro

Há que se considerar que, apesar de o conceito de anistia ter se propagado como recí-proco e abrangente tanto aos torturadores quanto

aos torturados, posição em sentindo diverso é plenamente defensável, inclusive por uma in-terpretação simplesmente gramatical da lei de anistia, in verbis :

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigen-tes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qual-quer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

Assim, a lei de Anistia estabelece anistia para os crimes políticos e para os crimes cone-xos2 aos políticos, ou seja, aqueles que tenham sido cometidos, basicamente, para facilitar ou ocultar crimes políticos. Nesse sentido, plena-mente defensável que os crimes de tortura e homicídio cometidos pelos agentes estatais não seriam crimes conexos, haja vista não se subsu-mirem ao conceito de conexão nem poderem ser considerados crimes praticados por motivação política pelo simples fato de as vítimas serem os dissidentes políticos à época, pois deve ser analisada a conduta em si e não o sujeito passivo. O fato de as vítimas serem pessoas acusadas de supostos crimes considerados políticos na época da ditadura militar não pode conferir à tortura, ao homicídio e aos crimes sexuais a característica de crime político ou conexo a este.

2 Art.99 do Código Penal:a) se, ocorridas duas ou mais infrações, tiverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas ou por várias pessoas em concurso,

embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;b) se, no mesmo caso, umas infrações tiverem sido praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em

relação a qualquer delas;c) quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

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UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA DITADURA BRASILEIRA

Ademais, a concessão de Anistia pelo Es-tado aos agentes estatais que cometeram crime na época do regime militar pode ser considerada “auto-anistia” ou seja, o ato de alguém conceder anistia a si mesmo, o que seria uma incongruên-cia não apenas do ponto de vista jurídico, mas também do ponto de vista lógico.

Embora na época fosse plenamente possí-vel, juridicamente falando, a punição dos agen-tes estatais que cometeram tortura, atualmente muitos dos crimes já estão prescritos. Dessa maneira, sucumbiu a pretensão punitiva estatal, uma vez que não se pode excepcionar o instituto da prescrição, em prejuízo do réu, mesmo que a inércia estatal em apurar e punir os crimes tenha sido generalizada.

Posição contrária a respeito da prescrição é defendida com base na universalização dos Direitos Humanos. Principalmente após o Na-zismo, período em que os Direitos Humanos foram ostensivamente violados, ganhou força a ideia de que a afronta de tais Direitos deve ser vista como um problema universal e não como algo que atinge apenas a esfera do país em que os direitos são violados.

Em breve síntese, partindo desses princí-pios, alguns doutrinadores defendem a impres-critibilidade dos crimes ocorridos na ditadura com base no Direito Internacional , que carac-teriza tais crimes como de lesa humanidade e, considerando-os, portanto, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia.

Esse posicionamento baseia-se, sobretudo na Convenção Interamericana de Direitos Huma-nos. Embora tal instrumento tenha sido assinado pelo Brasil com a ressalva de que se aplica aos fatos posteriores a 1988, já se manifestou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos no sentido de que a não apuração dos crimes cometidos durante a ditadura e a consequente impunidade de seus agentes ativos têm início anterior a 1988, mas perdura até os dias atuais, de maneira a constituir por si só uma violação dos Direitos Humanos que poderá ser analisada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

4) Atuação dos agentes sociais e dos profissionais de direito na implementação dos mecanismos de justiça de transição

Em breve síntese, justiça de transição são as medidas adotadas pelo país no período em que este passa de um regime jurídico para ditatorial para um Estado Democrático, são os mecanismos utilizados para lidar com a violência e restrições de um regime autoritário passado, em suma e simplificadamente é maneira de enfrentar, em um regime democrático, as consequências de um regime jurídico autoritário anterior. Como carac-terísticas básicas da justiça de transição estão o direito à punição dos responsáveis, à verdade, à justiça e à reparação e à reforma institucional. Dessa forma, a justiça de transição no Brasil é classificada como parcial, já que não houve, como abordado no item anterior, a punição dos responsáveis, e, cosequentemente, não houve também reforma institucional.

No Brasil, no concernente ao direito à me-mória e à verdade, a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos (CEMDP), resultante da união de forças entre os familiares e os militantes de direitos humanos e instituída pela Lei nº 9140/95 vem cumprindo papel impor-tantíssimo na busca de solução para os casos de desaparecidos durante o período de 1961-1988, contribuindo de maneira exemplar para a conso-lidação da vida democrática brasileira.

No final de 2006 a Comissão encerrou uma importante etapa de suas atividades, concluindo a fase de análise, investigação e julgamento dos processos relativos aos 339 casos de mortos e desaparecidos apresentados para sua soberana decisão, que se somam a outros 136 nomes já reconhecidos no próprio Anexo da Lei 9.140, e atualmente vem se concentrando atualmente basicamente : 1) constituição de dados de perfis genéticos- Banco de DNA (a partir da coleta de sangue dos parentes dos desaparecidos), visando a comparação com os restos mortais que ainda venham a ser localizados, bem como ossadas já separadas para o exame, graças ao incrível traba-lho dos arqueólogos, 2) Sistematizar informações sobre a possível localização de covas clandesti-

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nas nas grandes cidades e em áreas prováveis de sepultamento dos militantes, em cumprimento ao Inciso II do artigo 4º da Lei nº 9.140/95, que a criou : “envidar esforços para a localização dos corpos e de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados”.””.

O resgate da memória e da verdade (sendo que esta pode ser, muitas vezes, reconhecida pelos magistrados em suas sentenças) tem uma função fundamental na justiça de transição por-que de importância inestimável para os familia-res das vítimas, por uma questão incitamente de dignidade humana, haja vista que o direito de se conhecer e, principalmente, reconhecer o que de fato ocorreu com seus familiares desaparecidos no regime militar e de realizar para as vítimas um sepultamento digno está englobado no conceito de “mínimo ético irredutível”, que não se pode negar aos cidadãos.

Contudo, não se pode restringir a importân-cia do conhecimento da verdade aos familiares da vítima, a sociedade como um todo tem também interesse em que os fatos sejam revelados, não somente porque maculam a história da nação brasileira, como também porque com a verdade há a garantia de não repetição. Nesse sentido, plenamente defensável os recursos da tutela co-letiva em busca de tais direitos, ampliando o rol dos legitimado para a propositura das ações.

Quanto ao direito à reparação este deve englobar tanto as vítimas que sobreviveram ao regime militar quanto os familiares de vítimas desaparecidas ou reconhecidamente assassina-das. No primeiro caso a indenização é calculada geralmente levando em conta o piso salarial da categoria do anistiado e fazem uma projeção da evolução profissional que poderia ter alcançado se não tivesse sido prejudicado durante o período da ditadura.

O valor da indenização tem sido criticado com frequência na mídia, que vem inclusive apli-cando a denominação “bolsa indenização”, mas trata-se da aplicação da justiça comutativa, já prevista por Aristóteles. A indenização deve ser

em razão do dano, tanto patrimonial quanto mo-ral e as mazelas causadas nas vítimas da ditadura, tanto profissionalmente quanto psiquicamente são realmente vultosas, devendo o magistrado fixá-las de acordo com esses danos, sem se inti-midar pelas críticas midiáticas descabidas.

5) Conclusão

A anistia pode até ter tido o efeito, naquele determinado momento político, de apagar do mundo jurídico as torturas, os assassinatos e os crimes sexuais cometidos durante o período da ditadura, mas não foi capaz de apagar da mente das vítimas, de seus familiares e da sociedade esse período da história. Talvez seja essa a maior falha daqueles que procuraram na anistia um sinônimo de esquecimento, esqueceram eles próprios que esta é apenas um instituto jurídico e não uma substância química.

Como consequencia, as marcas desse período não serão e nem devem ser apagadas, até mesmo para que não se repitam as mesmas atrocidades na história do nosso país. O que a sociedade e os profissionais do Direito podem fazer, com máxima eficiência possível, é aplicar anestésicos que amenizem a ferida já formada, que se expressam na justiça de transição-no conhecimento da verdade e na possibilidade de reparação, entendida esta no seu sentido estrito (pecuniário), haja vista que a reparação lato sensu, efetiva, de todo o mal causado, é impossível.

Por fim, algo de muito positivo resta da memória desses fatos que maculam a história do Brasil, a aprendizagem. Magistrados, promoto-res, juizes, advogados e população não podem aceitar que qualquer forma de desmando se repita, de maneira que a reconstrução do Estado Democrático de Direito deve ser guiada pela não aceitação de qualquer Poder Ilegítimo, não sendo nunca enfadonho recordar a famosa frase de Winston Churchill: “Quem ignora a história está fadado a repeti-la”.

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UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA DITADURA BRASILEIRA

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FICO, Carlos, Que história é esta? O Regime Militar no Brasil (1964-1985), O golpe militar de 1964; repressão; o milagre econômico; a Aber-tura e o fim do regime, Editora Saraiva, 1999.

Curso ministrado na Oboré, Projeto Direito e Justiça – Módulo História do Direito Contempo-râneo , que contou com a presença dos seguin-tes palestrantes: Dr. Walter Uzzo, Dr. Márcio Pugliesi, Dr. Márcio Moraes, Dr. Luis Eduardo Greenhalg, Dr.Cláudio de Cicco.

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54 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

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ACESSO A DOCUMENTAÇÃO GOVERNAMENTAL E DIREITO À MEMÓRIA E VERDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI

Inês Virgínia Prado Soares* RESUMO: O presente texto analisa os artigos do projeto de lei que regulamenta o acesso às informações, ainda sem número na Câmara. O texto analisa os dispositivos que versam acerca do acesso à documentação governamental, sob o enfoque da tutela do patrimônio cultural bra-sileiro, conforme estabelecido no art. 216 § 2° da Constituição. Palavras-chave: Ditadura. Acesso à Documen-tação Governamental. Direito à informação.Patrimônio cultural

ABSTRACT: The present text analyzes the articles of the project of law that regulates the access to the information, still numberless in the Parliament. The text analyzes the devices that deal on the access to the governmental documen-tation, under the approach of the guardianship of the Brazilian cultural heritage, as established in article 216 § 2° of the Constitution. Keywords: Dictatorship. Access to the Gover-nmental Documentation. Dight to Iformation.Cultural heritage

1. Do objeto deste texto

O presente texto analisa os artigos que ver-sam acerca do direito ao acesso à documentação governamental (art. 216 § 2° da Constituição)

*Procuradora da República em São Paulo, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Presidente do Instituto de Estudos Direito e Cidadania – IEDC e coordenadora da Revista Internacional de Direito e Cidadania-REID (www.iedc.org.br/reid). Pesquisadora em nível de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

Artigo

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SOARES, I. V. P.

dispostos no projeto de lei encaminhado pelo presidente da República em maio de 2009, que visa regulamentar o acesso às informações, ainda sem número na Câmara.

2. Noções gerais sobre o art. 216 § 2° da Constituição e a Lei de Arquivos

Um dos objetivos do projeto de lei em análise é regulamentar o acesso a informações contidas na documentação governamental, a qual, segundo a Constituição, deve ser gerida pelo Poder Público (art. 216 § 2°) nos termos da lei. Assim, sobre a gestão e acesso aos docu-mentos governamentais de valor cultural, além das normas, instrumentos e princípios aplicáveis aos bens culturais em geral, cabe atentar que a documentação pública é sempre gerida pelos órgãos do Estado.

Na ótica de patrimônio cultural, a primeira consequência da inserção da documentação go-vernamental no artigo 216 da Constituição é sua vinculação aos princípios e instrumentos prote-tivos dos bens culturais. Portanto, embora nem toda a documentação governamental se enquadre na concepção constitucional de bem cultural inte-grante do patrimônio cultural brasileiro (indicado nos incisos do art. 216), sua importância para a efetividade do direito fundamental ao patrimônio cultural está fixada pela sua previsão do § 2° do art. 216. Assim, como suporte de outros bens que integram o patrimônio cultural ou mesmo como ingrediente que possibilita a formação dos valores de referência cultural, a documentação governamental se equipara aos bens culturais para aplicação de instrumentos e mecanismos protetivos, especialmente o inventário.

O inciso IV do art. 216 arrola os docu-mentos como categoria dos bens culturais que pode integrar o patrimônio cultural brasileiro. A indicação constitucional é de preservação dos documentos, públicos ou privados, destinados às manifestações artístico-culturais, quando estes forem relevantes para a memória, identidade e

ação dos grupos formadores da sociedade brasi-leira. No inciso em comento, não há menção a se a documentação deve estar sistematizada ou de que modo deve ser feita tal organização, já que tal detalhamento é matéria infraconstitucional.

Por isso, a proteção dos documentos, sob o enfoque patrimonial, pode se dar de modo in-dividual ou em conjunto. Agrupados (de forma organizada), os documentos compõem o patri-mônio documental brasileiro. Para Marcos Paulo de Souza Miranda, o”patrimônio documental é formado por documentos que constituem acervo e fonte de comprovação de fatos históricos e memoráveis. Materializado sob diversas for-mas e sobre diferentes bases, constitui muitas vezes o principal acervo dos arquivos públicos e privados.”1 No mesmo sentido, demonstrando a importância do tratamento dos documentos como bens ou suportes de bens culturais, na visão de historiadora, Maria Thétis Nunes diz que :

“Como o historiador chega aos fatos his-tóricos? Por meio de livros, exemplifica-dos nas crônicas publicadas, geralmente retratos da época em que foram escritas (para a História do Brasil tiveram gran-de importância não só as legadas por cronistas portugueses, como de outras nacionalidades – franceses, holandeses, alemães, entre outros). Segue-se os jornais e os documentos escritos. Para a História do Brasil colonial, os docu-mentos escritos têm importância básica, considerando-se que, aqui, a imprensa só surgiria em 1808, com a chegada da Corte portuguesa fugindo das tropas francesas. Daí a grande importância, para nós, dos arquivos.

Reúnem-se os fatos para isso. Vai-se aos Arquivos, estes sótãos dos fatos. Aí, basta baixar-nos para os recolher. Cestadas cheias. Pousam-se em cima da mesa. Faz-se o que fazem as crianças quando brincam com ‘cubos’ e trabalha-mos para eles... O jogo está acabado, a história está feita. Assim via os docu-

1 Marcos Paulo S. Miranda, Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro, Del Rey, 2006, p. 67.

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mentos, há alguns anos passados, Lucien Frebvre, o criador da chamada Escola Nova na interpretação da História. Atu-almente, iria ele encontrar as facilidades trazidas pela informática, indispensável aos arquivos modernos.

O estudioso da História seleciona os documentos que lhe falam de alguma coisa, trabalho hoje facilitado pelos avanços tecnológicos, substituindo a có-pia manual que tanto o absorvia. (...)”2

A documentação que integra o patrimônio documental brasileiro serve de elo de ligação intra e intergeracional, com a função fornecer elementos para compreensão e interpretação, pelos historiadores e outros experts, dos fatos ocorridos, com objetivo de resguardar a memória do povo brasileiro bem como de compreender os movimentos culturais, sociais e econômicos que afetaram e afetam os brasileiros. Por isso, os documentos reunidos em arquivo não podem ser alienados com dispersão ou perda da unidade documental, nem transferidos para o exterior, independente de serem documentos públicos ou particulares.

No plano infraconstitucional, coube à Lei 8.159/91 abordar os aspectos jurídicos mais relevantes para a gestão documental no Brasil, ao instituir a política nacional de arquivos públi-cos e privados. Essa Lei fixa o dever do Poder Público de proteger os documentos integrantes dos arquivos, conceitua de modo amplo o que são os arquivos públicos (cap. II) e os diferencia dos arquivos privados (cap. III), além de esta-belecer, como ressalta Celso Lafer, o princípio do acesso pleno aos documentos (art. 22)3. Para a Lei 8.159/91, arquivos são os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e enti-dades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos (art. 2°).

Os arquivos, públicos ou privados, são tratados pela Lei 8.159/91 como instrumentos de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvi-mento científico ou, ainda, como elementos de prova e informação (para a sociedade ou para o próprio Poder Público)4. A lei privilegia a dimen-são pública dos arquivos e sua potencialidade como instrumento de formação e informação. Assim, nos termos do art. 12 os arquivos priva-dos podem ser identificados pelo Poder Público como de interesse público e social, desde que sejam fontes relevantes para a história e desen-volvimento científico nacional. A natureza de bem de interesse público dos arquivos privados traz algumas restrições no exercício do direito de propriedade desses bens, como se denota da leitura dos artigos seguintes:

“Art. 13. Os arquivos privados identifi-cados como de interesse público e social não poderão ser alienados com dispersão ou perda da unidade documental, nem transferidos para o exterior.

Parágrafo único. Na alienação desses arquivos o Poder Público exercerá pre-ferência na aquisição.

Art. 14. O acesso aos documentos de arquivos privados identificados como de interesse público e social poderá ser franqueado mediante autorização de seu proprietário ou possuidor.

Art. 15. Os arquivos privados iden-tificados como de interesse público e social poderão ser depositados a título revogável, ou doados a instituições ar-quivísticas públicas.”

Por fim, o art. 16 da lei ainda identifica expressamente como de interesse público e so-cial os registros civis de arquivos de entidades religiosas produzidos anteriormente à vigência do Código Civil (de 1916). No esteio da lei em comento, foi editada a Lei 8.394/91, regula-mentada pelo Decreto 4.344/2002, que dispõe

2 Maria Thétis Nunes. A importância dos arquivos judiciais para a preservação da memória nacional. Disponível em <www.cjf.gov.br>. Acesso em 26.08.2008.

3 Celso Lafer, ob. cit., p. 42.4 Conforme art. 1°da Lei 8.159/91.

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sobre os acervos documentais privados dos presidentes da República. No mesmo sentido, de conferir natureza de bem de interesse público a bens privados, o art. 1228, § 1°, do atual Código Civil prevê que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais, de modo que seja preser-vado o patrimônio histórico, em conformidade com o estabelecido em lei especial.

Além de todo o mencionado acerca da Lei 8.159/91, cabe repetir que sua edição estabele-ce para o Poder Público, adstrito ao princípio da legalidade, caminhos a serem seguidos no trato dos documentos governamentais, os quais devem, como já dito, não somente ser geridos mas também ter sua consulta franqueada ao pú-blico. O art. 3º da Lei 8.159/91 define a gestão de documentos o conjunto de procedimentos e operações técnicas à sua produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento em fase corrente e intermediária, visando à sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente.

A gestão dos bens e documentos integrantes de um arquivo deve proporcionar o amplo acesso à comunidade especializada e leiga, cabendo ao Poder Público observar a sistematização de forma compreensível e de fácil manuseio, bem como o acondicionamento adequado dos docu-mentos, com a atenção para os critérios que lhes garantam segurança e evitem qualquer sua dete-rioração ou perecimento. Nesse sentido, o art. 25 da Lei 8.159/91 estabelece que a desfiguração ou destruição de documentos de valor permanente ou considerados como de interesse público e social são ações sujeitas à responsabilização penal, civil e administrativa.

3. Direito ao acesso à informação de dimensão pública

No ordenamento jurídico brasileiro há um lastro normativo que permite afirmar a existência do direito ao acesso à informação de dimensão pública e que tal direito se concretiza pelo fran-

queamento da consulta, a todos os interessados, aos arquivos públicos ou privados. Assim, o conhecimento dos documentos governamentais que tenham repercussão direta ou indireta na fruição dos bens da vida é direito fundamental vinculado à liberdade de manifestação e fruição culturais e se vincula ao direito de participação dos cidadãos na vida pública. Como bem atenta Celso Lafer, o objetivo da preservação desses documentos é sua transformação em fontes de informação para o uso da cidadania:

“A política nacional de arquivos públi-cos e privados contemplada pela Lei nº 8.159, de 8/1/91, cuida assim, da preser-vação dos documentos com o objetivo de transformá-lo em fontes de informa-ção para o uso da cidadania, posto que relevantes para a qualidade da convi-vência coletiva, para o entendimento da sociedade e para o conhecimento da memória nacional. O tema técnico da gestão dos arquivos, associado ao tema político da informação ex parte populi, é conseqüentemente o que faz da consulta e do acesso a documentos públicos e pri-vados de interesse geral uma dimensão importante da prática democrática na concepção da Lei nº 8.159.”5

No entanto, apesar do lastro normativo mencionado acima, a efetividade do direito fun-damental ao acesso à informação pública ainda não está totalmente consolidada no país, já que as práticas regulamentares que não guardam consonância com a previsão constitucional e infraconstitucional.

A fragilidade do direito ao acesso e à con-sulta aos documentos governamentais fica evi-dente com a manutenção do Decreto 4.553/2002, que revogou os Decretos 2.134/97 e 2.910/98, que regulamentavam a Lei 8.159/91, e, no intuito de regulamentar de modo mais adequado essa Lei, estabeleceu prazos extremamente longos para acesso a documentos públicos que conte-nham informações cujo sigilo seja considerado

5 Celso Lafer. O público e o privado: suas configurações contemporâneas para a temática dos arquivos. Documentos Privados de Interesse Público: o acesso em questão. Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 41.

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imprescindível. O Decreto n° 4.553/2002 prevê, inclusive, que os documentos considerados ultra-secretos podem ficar inacessíveis inicialmente por 30 anos, sendo este período prorrogável por uma vez6. Além do mencionado Decreto, foi edi-tada a Lei 11.111/05, que será tratada a seguir.

4. A Lei 11.111/05 e o acesso aos documentos governamentais produzidos na ditadura

Embora os documentos governamentais de valor histórico (ou cultural) já estivessem abrangidos no inciso IV do art. 216, que os arrola como bens culturais brasileiros, a Cons-tituição destacou a necessidade de que ampliar a tutela para toda documentação governamental, num entendimento implícito de que o acesso e a produção de conhecimento dos documentos utilizados ou produzidos pelo Poder Público são essenciais para a formação e consolidação da cidadania cultural. Assim, a tutela sob o enfoque patrimonial dos documentos governamentais foi afirmada pelo § 2° do art. 216, que dispõe que “cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quem dela necessitar”.

Além dos dispositivos que versam acer-ca dos documentos como bens culturais e da competência comum dos entes federativos em protegê-lo, o texto constitucional seguiu o con-ceito de transparência já positivado como um dos princípios que regem a administração pública7 e realçou o direito fundamental previsto no art. 5°, inc. XXXIII, que estabelece: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações do seu interesse particular, ou do interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.” Com a finalidade de regulamentar a parte final do disposto desse dispositivo constitucional, foi editada a Lei 11.111/05.

Esta lei declarou que o “acesso aos do-cumentos públicos classificados no mais alto grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo e prorrogação previstos no § 2° do art. 23 da Lei 8.159/91” (art. 2°, caput). No § 2° do art. 6° da aludida lei fica revelada a afronta ao processo democrático brasileiro e às bases de transparên-cia do poder e de visibilidade da gestão pública. Este artigo dispõe verbis: “Antes de expirada a prorrogação do prazo de que trata o caput deste artigo, a autoridade competente para a classificação do documento no mais alto grau de sigilo poderá provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que avalie se o acesso ao documento ameaçará a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do País, caso em que a Comissão poderá manter a permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular.”

Certamente esses dispositivos não guardam sintonia com a Constituição e com os valores do regime democrático. Sem prejuízo da ADI 4077, que questiona a constitucionalidade de artigos tanto dessa lei como da Lei 8.159/91, cabe à sociedade questionar judicialmente e de forma difusa a impossibilidade de acesso à documen-tação de interesse público, quando legislação for colocada como obstáculo.

5. As restrições de acesso à informação do Projeto de Lei

5.1. Alguns aspectos do Projeto de lei

Em maio de 2009, foi encaminhado projeto de lei que visa regulamentar o acesso às infor-mações, ainda sem número na Câmara. Porém, antes de abordar a gestão dos documentos go-vernamentais sob a perspectiva do patrimônio cultural, é necessário atentar que a publicidade é um dos princípios regentes da conduta dos agentes públicos no exercício de sua função e traço característico da democracia.

6 Art. 7°, incs. I a IV e § único7 Art. 37 caput,da Constituição.

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Nesse enfoque, a documentação produzida no exercício de função pública, com objetivo de dar andamento nas tarefas rotineiras ou com a finalidade de atender a interesses públicos, é uma das importantes bases materiais para a compreensão da história de um povo, sendo o acesso à informação de dimensão pública um instrumento indispensável para caracterizar um regime republicano de Governo. Para que essa base documental seja útil à cidadania é essencial que exista transparência e acessibilidade em re-lação aos documentos governamentais – mesmo os mais sensíveis, em lapso temporal que não comprometa a qualidade da informação a ser extraída8.

Assim, cabe desde logo fixar o entendi-mento de que a publicidade dos documentos governamentais é regra e o sigilo é exceção, que somente se justifica se for absolutamente imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Nas palavras de Celso Lafer:

“A idéia de que público é não só aquilo que é comum a todos – por afetar a todos –, mas igualmente o que é acessível ao conhecimento de todos, em contraposi-ção ao privado, encarado como aquilo que é reservado e pessoal, é, no plano político, uma idéia ligada à democracia. Como também aponta Bobbio, uma das importantes acepções da democracia é a do exercício em público do poder co-mum, como tal concebida a obrigação dos governantes de tomarem decisões às claras, permitindo, assim, aos go-vernados verem como, onde e por que tais e quais decisões foram tomadas em função do interesse de todos. Neste sentido, a dicotomia relevante passa a ser a oposição secreto/público.

A razão de ser do público como sendo simultaneamente o comum e o visível

tem a sua base na consolidação da perspectiva ex parte populi nas”regras do jogo” da governança democrática.”9

Os dispositivos acerca do acesso à docu-mentação governamental da forma estabelecida no projeto de lei, deixam clara a dificuldade que o Estado Democrático de direito brasileiro em romper com as práticas de segredo e opacidade em relação ao trato da coisa pública. Os artigos analisados a seguir texto são um retrato com cores bem definidas e vivas do nosso legado au-toritário, tão bem absorvido nas esferas públicas.

5.2. A Reserva legal e a classificação de documentos por uma Comissão

O Capítulo IV do projeto de lei trata “Das restrições de acesso à informação”. Dessa ma-neira, analisaremos os seguintes dispositivos, que transcrevemos verbis:

“art. 16. Não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos funda-mentais.

Parágrafo único. As informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos, praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas, não poderão ser objeto de restrição de acesso.

art. 18. A informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescri-tibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultra-secreta, secreta ou reservada.

§1º Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a clas-

8 Como destaca Boris Fausto: A distinção entre arquivos públicos e privados, entre o que deve ser guardado ou não, o que deve ser coberto pelo sigilo, a questão do prazo de abertura da documentação etc., coloca-se de maneira muito peculiar, com relação ao historiador. Não se trata de negar a necessidade de se estabelecerem prazos, de se conferir um caráter confidencial a certos documentos. Mas os historiador, como é compreensível, gostaria de que valesse o acesso imediato, sem restrições, pois os limites são inimigos do métier do historiador (Comentário ao texto de Celso Lafer - O público e o privado: suas configurações contemporâneas para a temática dos arquivos. Documentos Privados de Interesse Público: o acesso em questão. Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 51/52).

9 Celso Lafer. O público e o privado: suas configurações contemporâneas para a temática dos arquivos. Documentos Privados de Interesse Público: o acesso em questão. Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 34/35.

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ACESSO A DOCUMENTAÇÃO GOVERNAMENTAL E DIREITO À MEMÓRIA E VERDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI

sificação prevista no caput vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes:

I – ultra-secreta: vinte e cinco anos;

II – secreta: quinze anos; e

III – reservada: cinco anos.

§ 5º Na classificação da informação em determinado grau de sigilo, deverá ser utilizado o critério menos restritivo possível, considerados:

I – a gravidade do risco ou dano à segu-rança da sociedade e do Estado; e

II – o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento que defina seu termo final.

Art. 30. Fica instituída, no âmbito da Casa Civil da Presidência de República, a Comissão de Reavaliação de Infor-mações, composta por Ministros de Estado ou autoridades com as mesmas prerrogativas.

§ 1º A Comissão de Reavaliação de Informações decidirá, no âmbito da administração pública federal, sobre o tratamento e a classificação de informa-ções sigilosas e terá competência para:

III – prorrogar o prazo de sigilo de infor-mação classificada como ultra-secreta, sempre por prazo determinado, enquan-to o seu acesso ou divulgação puder ocasionar ameaça externa à soberania nacional ou à integridade do território nacional ou grave risco às relações internacionais do País, observado o prazo previsto no art. 18, §1º, em cada renovação.

§ 2º Regulamento disporá sobre a com-posição, organização e funcionamento da Comissão de Reavaliação de In-formações, observadas as disposições desta Lei.”

De acordo com a Constituição, a docu-mentação governamental deve ser gerida pelo Poder Público, sob a perspectiva da efetividade dos direitos fundamentais e dos valores estabe-lecidos como essenciais no Estado Democrático de Direito brasileiro. Dessa maneira, os disposi-tivos do projeto de lei em análise não poderiam transferir a uma Comissão (indicada pelo Poder Executivo) o poder de regulamentar e restringir o acesso a informações, pois tal proceder atinge diretamente o conteúdo de diversos direitos fundamentais e de princípios constitucionais.

A partir do art. 16 do projeto de lei em comento, são colocadas restrições de forma e conteúdo para acesso às informações. Ao mesmo tempo que o art. 18 estabelece um prazo de 25 anos para documentação ultra-secreta, o art. 30 remete a uma Comissão de Reavaliação de Infor-mações, o poder de decidir sobre o tratamento e a classificação de informações sigilosas. Dentre as competências dessa Comissão, está a de pror-rogar o prazo de sigilo de informação, renovadas vezes (!!!!), nos termos do art. 30, § 1º, inc. III.

Os dispositivos desse projeto de lei tam-bém são inconstitucionais. Por isso, os mesmos argumentos já utilizados na ADI 4077 (ação proposta pelo Procurador-Geral da República), bem como os expostos nesse texto se enquadram na justificação para não admitir que integrem a nova lei, por afronta à Constituição, ao princí-pio republicano e a diversos outros princípios e valores democráticos.

Vale ainda insistir na impossibilidade jurídica de que uma Comissão classifique a do-cumentação governamental, que se caracteriza como essencial para a efetividade do direito à verdade, de maneira totalmente discricionária. Com a indicação de poderes indevidos a uma Comissão, há grande chance de que a formação da memória democrática seja prejudicada e que a discussão e o conhecimento de fatos históricos relevantes na esfera pública não se apresentem no tempo devido (especialmente quando esta seja composta por documentos produzidos pelos órgãos repressores no regime autoritário).

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A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

RESUMO: A poluição visual gera desarmonia ou desequilíbrio no meio ambiente artificial (cidade e paisagem urbana), prejudicando o bem-estar da população, comprometendo a saúde das pessoas, através de efeitos psicológicos difíceis de serem diagnosticados, enquadrando-se no conceito jurídico de poluição (art. 3º, III, da Lei n. 6.938/81). São fontes de poluição visual: tor-res de Estação Rádio-Bases (ERBs) e anúncios publicitários luminosos, veiculados por meio de outdoor, totem, backlight, frontlight, painel digital ou eletrônico, triedro etc.... Palavras-chave: Poluição visual. Estética ur-bana. Paisagem. Bem-estar. ERBs. Anúncios publicitários.

ABSTRACT: the visual pollution generates disharmony or disequilibrium in the artificial environment (city and urban landscape), harming well-being of the population, compromising the health of the people, through psychological effects difficult to be diagnosed, fitting in the legal concept of pollution (article 3º, III, of law n. 6,938/81). Sources of visual pollution are: towers of Radio-Base Stations (RBSs) and luminous advertising propagated by billboard, totem, backlight, frontlight, digital or electronic panel, trihedron etc….Keywords: Visual pollution. Urban aesthetic. Landscape. Well-being. RBS. Advertising.

Ivan Carneiro Castanheiro1

1 O Autor é 2º Promotor de Justiça de Americana, Mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP e Coordenador da Área de Habitação e Ur-banismo, do C.A.O. Cível e de Tutela Coletiva, do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Artigo

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CASTANHEIRO, I. C.

Introdução

O culto ao belo é automático na natureza humana, a qual valoriza a harmonia das formas e da cor dos objetos, bem como suas qualidades plásticas e decorativas. A função estética das paisagens urbanas tem por finalidade criar a sensação visualmente agradável às pessoas2. Qualquer intervenção urbana na paisagem das cidades há de ser autorizada pela Administração e estar prevista em lei.

A paisagem desempenha importante papel de interesse público nas áreas social, cultural e ambiental (interesse econômico em trabalho criativo). Contribui para formação cultural local, bem como para o bem-estar da população.3 O bem-estar das pessoas guarda relação direta com sua saúde, modo de vida e as circunstâncias do meio em que vive.

Quando se fala em poluição pensa-se em fábricas que jogam resíduos tóxicos nos rios, pul-verização de agrotóxicos nas plantações, fumaça produzida por veículos e indústrias, degradando a qualidade de vida das pessoas e de animais, quando não as extirpando. Entretanto, essas não são as únicas formas de poluição e consequências danosas à vida. Há problemas de saúde físicos e psicológicos provocados por poluição sonora e poluição visual.

Poluição visual é a desarmonia ou degra-dação visual geradora de desequilíbrio do meio ambiente artificial (cidade e paisagem urbana).4 Este tipo de poluição é causada pelo próprio ho-mem, o qual insere no meio ambiente elementos de forma desordenada.

As leis federais, estaduais e municipais que se dispõem a controlar os meios de poluição não acompanham o crescimento desordenado das cidades. As legislações, ainda que com seus conhecidos defeitos, acabam sendo, em geral, descumpridas por falta de infraestrutura fisca-

lizatória suficiente. Nesse contexto, não há um controle efetivo sobre publicidades irregulares.

A Poluição visual é um problema sério. Entretanto, ela acaba sendo muitas vezes rele-gada a segundo plano, pois seus efeitos são mais psicológicos do que materiais, razão de haver dificuldades em seu diagnóstico e comprovação de causalidade na deterioração da qualidade de vida das pessoas.

Nosso objetivo é o de demonstrar que a po-luição visual enquadra-se no conceito jurídico de poluição previsto na Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), não se tratando de mera degradação de ordem estética, mas também estendendo seus deletérios efeitos na saúde e na qualidade de vida dos moradores da zona urbana, merecendo ser seriamente combatida, a exemplo das demais formas de poluição. É nesse contexto, que o presente trabalho busca, despre-tensiosamente, fazer uma análise conjuntural da poluição visual e oferecer sugestões objetivas de enfrentamento.

Conceito legal e doutrinário de poluição visual

O meio ambiente equilibrado é um direito assegurado a todos pela Constituição Federal (artigo 225) e um bem fundamental das gera-ções atuais e futuras. Os habitantes e visitantes das cidades são os titulares do direito difuso a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (harmonia da paisagem urbana).

Estão entre os principais objetivos do direi-to ambiental a proteção da saúde e da qualidade de vida. Segundo a Organização Mundial de Saúde, esta é um “completo bem estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças ou agravos”

A Lei Federal 8.080/90 (“Lei Orgânica da Saúde”), em seu artigo 2º, estabelece que a saúde é um direito fundamental do ser humano. O Art.

2 MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai 2003.3 Convenção Européia de Paisagem. Elaborada pelo Conselho Europeu, em 13/03/2000. In: MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A

importância da Paisagem. Disponível em < http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 20034 ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini. Aspectos jurídicos da poluição visual. Dissertação (Mestrado em Direito Difusos e Coletivos). Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2.004, fl. 7.

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65Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 63-78, junho/2009

A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

3º prevê que a saúde tem como fatores determi-nantes, dentre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o trabalho, o meio ambiente, dizendo respeito à saúde as ações que visem “garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social”.

A paisagem pode ser tida, em determinados casos, como integrante do patrimônio cultural brasileiro, conforme previsto no artigo 216, inciso V, da Carta Magna. Para Álvaro Luiz Valery Mirra “O que se procura preservar em uma paisagem, normalmente, é acima de tudo a harmonia entre os diversos elementos que a compõem e não propriamente cada um desses elementos individualmente considerados” 5.

Quando se fala em paisagem urbana refere-se não somente a conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, arqueológico, já protegidos pelo art. 216 da CF, como patrimônio cultural brasileiro, mas se quer abranger qualquer porção da cidade por mais comum e simples que seja, a qual também compõe o meio ambiente artificial6 ou construído, como normalmente é referido o meio ambiente urbano.

O artigo 3º da Lei nº. 6.938/81 preceitua que para os fins previstos naquela legislação deve-se entender por:

“I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;

II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;

III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

b) afetem as condições estéticas ou sanitá-rias do meio ambiente;

c) lancem matérias ou energia em desacor-do com os padrões ambientais estabele-cidos;” (grifos nossos)

A paisagem urbana é conceituada por José Afonso da Silva como sendo “a roupagem com que as cidades se apresentam a seus habitantes e visitantes”. Dentre as suas funções, está a de equilibrar a carga neurótica que a vida urbana despeja sobre as pessoas que nela vivem, con-vivem e sobrevivem.7

Para Issao Minami e João Lopes Guimarães Júnior, a poluição visual é resultado de descon-formidades e efeito da deterioração dos espaços da cidade pelo acúmulo exagerado de anúncios publicitários em determinados locais ou quando o campo visual do cidadão se encontra de tal maneira que a sua percepção dos espaços da cidade é impedida ou dificultada.8

Ocorre a poluição visual a partir do mo-mento em que o meio não consegue mais digerir os elementos causadores das transformações em curso, dissipando as características naturais ori-ginais. “No caso, o meio é a visão, os elementos causadores são as imagens, e as características iniciais, seriam a capacidade do meio de trans-mitir mensagens”.9

A degradação ambiental ocorrida com a po-luição visual “é fruto da violação estética de um padrão paisagístico médio a ser aferido em cada caso, seja afetando uma paisagem naturalmente bela, ou portadora de outro predicado relevante, ou alterando uma paisagem urbana de maneira desarmônica e agressiva”10

Ainda vale menção a Convenção Européia da Paisagem (European Landscape Convention), a qual entrou em vigor no dia 1º de março de 2.004. Foi o primeiro tratado internacional dire-cionado, unicamente, para a proteção, conserva-

5 A Ação Civil Pública e a reparação do dano ao meio ambiente, São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, p. 31-32, 2002.6 ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 49.7 Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1997, p. 273-274.8 A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 20039 VARGAS, Heliana Comim; MENDES, Camila Faccioni. Poluição visual e paisagem urbana: quem lucra com o caos? Disponível em: <http://www.

estadao.com.br/ext/eleicoes/artigos/comin3.htm> Caderno eleições 2000.Acesso 19 out. 2002.10 MONTEIRO, Manoel Sérgio da Rocha. Paisagem e Poluição Visual. Disponível em http://www.mp.sp.gov.br/caouma/caouma.htm. Acesso em:

08 abr. 2003

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CASTANHEIRO, I. C.

ção, gerenciamento e valorização das paisagens. O âmbito de sua aplicação é todo o território dos Estados membros, abrangendo espaços naturais, urbanos, terrestres, aquáticos e marítimos. Tal Convenção demonstra a preocupação das nações européias não só com as paisagens excepcio-nais mas com as paisagens da vida cotidiana e também paisagens degradadas. É um exemplo por reconhecer a importância da paisagem na qualidade de vida dos homens.11

Na convenção estão previstas as seguintes bases ou conceituações12:

a) Reconhecimento jurídico da paisagem como um componente essencial do am-biente humano, expressão de diversidade do seu patrimônio comum, cultural e natural e base sua identidade;

b) Estabelecimento de políticas de proteção, gestão e ordenamento da paisagem atra-vés da adoção de medidas específicas;

c) definição de poluição como sendo: “[...] degradação ofensiva à visualidade re-sultante ou de acúmulo de instalações ou equipamento técnico (torres, cartazes de propaganda, anúncios ou qualquer outro material publicitário) ou da presença de plantação de árvores, zona florestal ou projetos construtivos inadequados ou mal localizados.”

A expressão sadia qualidade de vida, segundo Liliana Allodi Rossit, engloba duplo aspecto da tutela ambiental: a qualidade do meio ambiente (aspecto imediato) e outro que é a saúde, o bem-estar e a segurança da população (aspecto mediato), que se vêm sintetizando na expressão qualidade de vida.13

Principais fontes de poluição visual

Podem ser citadas como fontes de poluição visual as mídias conhecidas como outdoor, totem,

backligh, frontlight, painel digital ou eletrônico, o triedro, fachadas muros e cartazes.

Como explica Bianca M. Bilton Signorini Antacli14:

“No Brasil a palavra outdoor é mais comumente conhecida pelo anúncio de grandes dimensões, constituído de pai-nel de 9 (nove) metros de comprimento por 3 (três) de altura no qual são afixa-dos, através de material especial, 16, 32 ou 64 folhas (4,40 x 2,90 m; 8,80 x 2,90 m; 8,80 x 5,80m) que juntas formam a mensagem.

...

O totem é uma estrutura que sustenta o logotipo do estabelecimento industrial e geralmente possui iluminação interna ou externa.

O backlight é um tipo de painel lumino-so constituído por uma caixa de chapa galvanizada, com lona translúcida na parte frontal, pintada do lado avesso. Confunde-se durante o dia com os ou-tdoors de papel, mas à noite, ligado auto-maticamente por uma célula fotelétrica que se acende ao escurecer e iluminado por lâmpadas que produzem a sensação de relevo, parece um gigantesco slide projetado no espaço.

O frontlight é painel de dimensão variá-vel que conta com lâmpadas que ilumi-nam a mensagem frontalmente.

O painel digital ou eletrônico é pratica-mente um televisor gigante que transmi-te seqüência de animações e comerciais controlada por computador.

O triedro tem dimensão variável e como o próprio nome diz, dispõe de diversos

11 ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 64.12 ibidem, fls. 71-72.13 ROSSIT, Liliana Allodi. O Meio Ambiente de Trabalho no Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo: Ed. Ltr, 2001, p. 36, “apud” ANTACLI, Bianca

M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 35.14 Aspectos jurídicos da poluição visual. Dissertação (Mestrado em Direito Difusos e Coletivos). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

São Paulo, 2.004, fl. 201-202.

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A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

triedros em linha. Eles giram ao mesmo tempo, permitindo a visualização de três mensagens em seqüência.

Além dessas fontes mencionadas, Ignez Conceição Ninni Ramos15 descreve outras fon-tes de poluição, tais como: folhetos, folhetins e folders distribuídos por empresas nos faróis; muros eternizados com anúncios de shows e eventos sobrepostos (apostos em viadutos, pi-lastras e postes); bancas de jornal abarrotadas de publicidade; barracas dos camelôs (exibição de faixas e cartazes dos produtos à venda); os “pu-xadinhos”, que já se incorporaram à paisagem das quadras comerciais (bares, restaurantes e boates), tomando calçadas e áreas verdes. Tam-bém se refere aos veículos e engarrafamentos nas ruas e avenidas da cidade como manifestação de poluição visual. Sobre o assunto, com maestria, leciona a ilustre autora:

“Há cerca de 10 milhões de anúncios espalhados pelas ruas de São Paulo, dos quais, estima-se, somente 100.000 sejam cadastrados e 55.000 licenciados. A pé ou de carro, é impossível fugir do desconforto visual que toma de assalto os que transitam na maior cidade da América do Sul. O suceder de placas, painéis, cartazes, cavaletes, faixas, ban-ners, infláveis, balões, totens, outdoors, backlights, frontlights, painéis eletrôni-cos e painéis televisivos de alta defini-ção, além de causar agressões visuais e físicas aos “espectadores”, retiram a possibilidade dos referenciais arquitetô-nicos da paisagem urbana, transgridem regras básicas de segurança, aniquilam as feições dos prédios, obstruindo aber-turas de insolação e ventilação, deixam a população sem referencial de espaço, de estética, de paisagem e de harmonia, dificultando a absorção das informações úteis e necessárias para o deslocamento. ... Mas talvez a consequência mais fu-nesta da poluição visual em São Paulo seja a descaracterização do conjunto arquitetônico, especialmente observada

no centro e nos bairros mais antigos da cidade.”

Ainda merece menção, como fonte de poluição visual, as denominadas Estações Rádio-Base (ERB´s), que devido à proliferação desordenada, fruto do aumento no número de linhas em decorrência da expansão do sistema de telefonia móvel, acabam sendo destaques negativos na paisagem urbana. A solução seria o compartilhamento de suas estruturas de uma torre, que abrigaria antenas de diversas operado-ras de telefonia celular, bem como a denominada mimetização (camuflagem) das estruturas e antenas das ERB´s.

Poluição visual: abrangência, gradatividade, características, causas e consequências

A poluição visual atinge espaços habitados pelo homem, sendo por este produzida. Atinge tanto a zona rural como a urbana. Nas áreas urbanas, em geral, esse tipo de poluição acaba por comprometer a função social das cidades, prevista no artigo 182 da Constituição Federal, bem como o bem-estar da população.

Nas grandes cidades, onde o mercado consumidor é maior, mais competitivo e dinâ-mico, existe uma concentração de anúncios em algumas áreas da cidade, com loteamento do espaço público pelo próprio Poder Público para fins publicitários. Em geral essa publicidade é de baixo preço ou há ausência de cobrança pelo uso da paisagem, sem adequada diferenciação quanto à maior ou menor visibilidade do local onde anúncio publicitário está sendo veiculado.

Apesar da característica da gradatividade no comprometimento da paisagem urbana, de-vido ao paulatino crescimento das cidades e da atividade econômica, ela acaba por comprometer as presentes e futuras gerações, devendo ser sempre controlada e, se necessário combatida, a fim de se evitar as consequências maléficas, ao longo deste trabalho várias vezes mencionadas.

15 Poluição Visual. Disponível em: http://www.redeambiente.org.br/Opiniao.asp?artigo=65 . Acesso 8 mai. 2002

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A paisagem urbana harmonizada é um direito difuso, pois a manutenção de padrões estéticos no cenário urbano encerra inegável interesse difuso por se relacionar diretamente com a qualidade de vida e com o bem-estar da população16, tratando-se de um valor ambiental, como ressalta Paulo Affonso Leme Machado.17

Nesse sentido, a lição de Rodolfo de Ca-margo Mancuso, afirmando textualmente: “não temos dúvida de que há um interesse difuso (= esparso pela sociedade como um todo) a que seja preservada a estética urbana”18.

Dentre as causas da poluição visual podem ser relacionadas19:

a) O Poder Público e sua eterna conivência com os interesses das grandes corpora-ções;

b) A ausência de uma legislação adequada;c) A ausência de fiscalização adequada, alia-

do ao “desinteresse” pelo assunto.Quanto às consequências da poluição

visual, ela causa agressões visuais e físicas aos “espectadores”, decorrentes da sobreposição caótica de chamarizes visuais, variando apenas as tecnologias empregadas. Existem sobrepostos à fachada dos edifícios ou dos revestimentos de alumínio letreiros luminosos que se penduram, “modernos” painéis luminosos, imensas telas que despejam imagens em movimento sobre atô-nitos motoristas à procura do próximo semáforo fundido entre as luzes do painel”20.

Essas formas de poluição visual retiram a possibilidade de percepção dos referenciais arquitetônicos da paisagem urbana, com a des-caracterização do conjunto arquitetônico, espe-cialmente observada no centro e nos bairros mais antigos da cidade. Com isso há transgressão de regras básicas de segurança; aniquilamento das feições dos prédios; obstrução de aberturas de

insolação e ventilação; dificuldade de absorção das informações úteis e necessárias para o des-locamento. A publicidade caótica na paisagem torna-a indiferenciada e monótona.21

Podem ser definidos como “Fatores de Estresse de Poluição Visual” a concentração excessiva de: mídia exterior (placas, outdoors, letreiros, faixas, backlights, frontlights, painéis eletrônicos ou pintados); grafitagens e pichações; aglomerações permanentes de pessoas em áreas restritas da cidade (p.ex: zonas de pedestres, calçadões, aeroportos, estações de metro); re-cipientes de lixo expostos em lugares públicos; engarrafamentos de trânsito e vias expressas com deslocamento de automóveis e caminhões em alta velocidade; favelas com deficiente or-ganização urbana e arquitetônica; moradores de rua alojados em viadutos e praças públicas; postes de fiação aérea (telefonia, iluminação, TV a cabo).22

Dentre as consequências de ordem ad-ministrativas ao poluidor da paisagem urbana, podemos mencionar as seguintes: multa, notifica-ção para regularização, apreensão ou destruição do material publicitário irregular, suspensão da atividade e cassação do alvará de funcionamento da empresa

Uso normal, tolerabilidade / intolerabilidade na poluição visual: uso nocivo da propriedade e direito de vizinhança em face da função social e limitação da propriedade privada

É certo que a atividade econômica sempre produz algum nível de poluição. Assim, pode ha-

16 MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 2003

17 Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo:Malheiros, 8ª ed. 2.000, p. 11018 Aspectos Jurídicos da Chamada “Pichação e Sobre a Utilização da Ação Civil Pública para Tutela do Interesse Difuso à Proteção da Estética

Urbana”, RT 679/62.19 RAMOS, Ignez Conceição Nini. Poluição Visual. Disponível em <http://www.redeambiente.org.br/Opiniao.asp?artigo=65>. Acesso em: 09 mai.

200320 BAFFI, Mirthes I. S.. Paisagem e Caos. Disponível em <http://www.socioambiental.org/website/parabolicas/edicoes/edicao35/reportag/pg3.html>.

Acesso em: 09 mai. 200321 RAMOS, Ignez Conceição Nini. Poluição Visual. Disponível em <http://www.redeambiente.org.br Opiniao.asp?artigo=65>. Acesso em: 09 mai.

2003.22 ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 121.

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A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

ver aceitabilidade de certo grau poluição visual, mas ela deve ser controlada e compatibilizada com o bem-estar das pessoas, de maneira a ocorrer uma convivência harmônica entre os ha-bitantes das cidades e os interesses comerciais da classe empresarial de uma maneira geral. Nesse contexto, somente deve ser repelida a influência nociva e inconveniente, sob pena de inviabilizar certas atividades econômicas.

A saúde psíquica das pessoas em geral guarda alguma relação com a ordenação da paisa-gem urbana, reflexo da harmonia ou desarmonia visual. Deve-se buscar amenizar a carga neuróti-ca da vida cotidiana23, pois a poluição visual não é somente estética, havendo reflexos, como já se disse, na segurança no trânsito, no bem-estar da população. Portanto, faz-se necessário que se fixe padrões técnicos e legais de aceitabilidade. Em-bora seja parte importante das cidades, esta não pode ter como função preponderante o comér-cio, devendo-se priorizar o bem-estar dos seus habitantes e visitantes, mantendo-se a cidade econômica e ambientalmente sustentável.

Conforme anota o Prof. Celso Antônio Pacheco Fiorillo, o legislador tratou de efetivar a vontade do constituinte em relação ao bem-estar dos habitantes, regulando a forma e o conteúdo de determinados meios de expressão, como a publicidade e a pichação, também limitando a propriedade privada, estabelecendo, no Código Civil de 2.002 (artigo 1.277 a 1.279) certas re-gras de direito de vizinhança, visando evitar que algumas práticas constituam óbices à obtenção e desfrute de uma sadia qualidade de vida.24

Com o objetivo de ordenar a função social e limitação da propriedade privada, existem regras quanto a levantamento de fachada, tratamento arquitetônico das fachadas dos edifícios, acaba-mento adequado, preservação da harmonia dos conjuntos das edificações, dos bens imóveis tom-bados e dos edifícios próximos, estabelecendo-se distâncias das construções, possibilidade ou não de colocação de cartazes ou anúncios, dentre outros aspectos.25

Legislação aplicável: locais de vedação de anúncios publicitários que causem poluição visual e suas limitações

A poluição visual pode ser tutelada tanto nas leis sobre proteção ao meio ambiente, pois ela é uma forma de degradação e desequilíbrio do mesmo, quanto nas leis de ordenação da paisagem urbana, uma vez que ela é uma forma de degradação visual da cidade e da paisagem urbana (meio ambiente artificial). Como ainda se verá mais adiante, essa regulação nada tem a ver com relação de consumo, sendo perfeitamente possível que o município legisle a respeito.

Na Constituição Federal encontramos total arrimo para a proteção do meio ambiente urbano, dentre os quais está a paisagem. Há “garantia do bem-estar” dos habitantes das cidades como objetivo da política de desenvolvimento urbano (art. 182, “caput”). O texto constitucional ainda determina a “preservação, proteção e recu-peração do meio ambiente urbano” (art. 180, inciso III).

A competência para fiscalizar o cumpri-mento das disposições legais relativas à ordem paisagística é cumulativa entre os entes federa-dos, nos termos do artigo 23, incisos III e VI, da Constituição Federal.

Com Fabiano Pereira dos Santos, ressalta-se que a poluição visual no Brasil é combatida de forma indireta, isto é, por meio de limitações administrativas à publicidade comercial (Código de Posturas Municipais, regulamentos espe-cíficos sobre publicidade, etc.) e política (Lei eleitoral). Essa dispersão de normas dificulta determinar se a atividade importa, ou não, em poluição visual. 26

O referido autor ressalta, com propriedade, ser complexa a apuração da responsabilização dos agentes produtores de poluição visual, tanto no âmbito civil, penal ou administrativo, pois

23 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional, 2º ed., São Paulo: Malheiros, p. 12.24 Op. cit., p. 127.25 ibidem, p. 127.

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“a configuração da poluição visual envolve em grande parte dos casos a avaliação de ele-mentos caracterizados por expressivo grau de subjetividade, os quais, variam de acordo com as concepções estéticas e costumes locais”.27

Nesse contexto, podem ser citadas as se-guintes normas, relacionadas com atividades de-gradadoras da harmonia na paisagem urbana:

a) Lei 4.717/65 – No artigo 1º, § 1º, há previ-são de defesa do patrimônio artístico, es-tético, turístico, por meio da ação popular;

b) Lei nº. 7.347/85 – Conhecida como Lei da Ação Civil Pública (LACP), ela acresceu o valor paisagístico como passível de defesa nesta modalidade de ação coletiva (art. 1º, V), também prevendo a defesa da ordem urbanística (artigo 1º, inciso III);

c) A Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) traz diversos dispositivos protetores da paisa-gem urbana, com vistas a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. Nesse diapasão, conveniente descrever algumas diretrizes gerais do mencionado estatuto, o que faremos nas linhas seguintes:

- Artigo 2º, inciso VI, “f” – Objetiva evitar a degradação das áreas urbanizadas;

- Artigo 2º, inciso VI, “g” – Prevê a orde-nação e controle do uso do solo, visando evitar a poluição e degradação ambiental;

- Artigo 2º, XI – Preceitua a proteção, pre-servação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cul-tural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;

- 2º, inciso XIII – Prevê a necessidade de audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;

- artigo 36 – Determina que lei municipal deverá prever os tipos de empreendimen-tos públicos e privados que dependerá de realização de Estudo de Impacto de Vizinha (EIV);

- artigo 37, inciso VII – Estabelece pa-râmetros para o Estudo de Impacto de Vizinha, o qual deverá considerar, dentre outros aspectos, a paisagem urbana e o patrimônio natural e cultural;

- artigo 54 – Possibilidade de ajuizamento de ação cautelar, com vista a evitar o dano ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direi-tos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

No tocante ao aspecto criminal da polui-ção visual, é de se ressaltar entendimento de se tratar de delito menor potencial ofensivo. Assim, quando adequadamente demonstrado os fatos criminosos, “o causador desta forma de poluição deve receber uma pena mais leve, ligada sempre à obrigação de custeio de medida educativa ambiental”.28 Ressalva-se o crime do artigo 63, da Lei nº 9.605/98, com pena de até 3 anos, superando o conceito de delito de menor potencial ofensivo.

Algumas condutas envolvendo poluição visual encontram-se tipificadas na Lei dos Cri-mes Ambientais. O artigo 65 da Lei nº. 9.605/98 estipula pena de até 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa para quem pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento ur-bano. Seguindo na esteira de proteção da estética urbana e da sadia qualidade de vida, o artigo 64 da Lei 9.605/98 criminalizou a conduta de “Pro-mover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turísti-co, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida”.

26 Meio Ambiente e poluição. Disponível em < http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em 20 de abr. 2009.27 Santos, Fabiano Pereira dos. Meio Ambiente e poluição. Disponível em <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em: 20 abr. 200928 Santos, Fabiano Pereira dos. Meio Ambiente e poluição. Disponível em <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em: 20 abr. 2009

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A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

Também restou penalmente tipificada a al-teração de aspecto ou estrutura de edificação (ar-tigo 63 da Lei 9.605/98), a pichação/grafitagem ou conspurcação de edificação ou monumento urbano (artigo 65), exigindo-se, sempre, o dolo.

Vale anotar que embora se tratem de delitos de menor potencial ofensivo, para a transação e/ou suspensão do processo há necessidade de re-paração do dano (art. 27 e 28 da Lei nº. 9.099/95). Portanto, mesmo a lei de crimes ambientais tem função não apenas preventiva da paisagem urbana, mas também reparadora.

O Decreto-Lei 25/37, o qual organiza a proteção do patrimônio estético e artístico na-cional, em seu artigo 1º, § 2º, equipara a bens do patrimônio histórico e artístico nacional a serem tombados os monumentos naturais, sítios e paisagens aqueles dotados de feição notável, pela natureza ou pela indústria humana, os quais devem ser conservados e protegidos. No artigo 18 é exigida autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para colocação de anúncios ou cartazes na vizinhança da coisa tombada.

A Lei nº. 9.504/97, a qual dispõe sobre as eleições, em seu artigo 37, com o objetivo de tutelar a estética urbana durante as eleições, preceitua que “Nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do Poder Público, ou que a ele pertençam, e nos de uso comum, inclusive postes de iluminação pública e sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos, é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta, fixação de placas, estandartes, faixas e asseme-lhados”. Entretanto, foi permitida a propaganda política em bens particulares (artigo 37, § 2º). O Código Eleitoral, no artigo 243, inciso VIII, veda a propaganda que prejudique a higiene ou estética urbana ou que esteja em desacordo com posturas municipais ou qualquer outra restrição de direitos.

A Lei nº. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC) também contém dispositi-vos relacionados à paisagem urbana, na medida

em que regula as formas de publicidade. Nesse sentido cabe observar que a publicidade agressiva não respeita autonomia dos contratantes fracos, sendo necessária a valorização da informação e da confiança despertada do consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor ainda traz dispositivos vedando publicidade enganosa e/ou abusiva (artigo 37), determinando que ela deva ser de fácil identificação (artigo 36) e não pode induzir o consumidor a comportar-se de maneira prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança (artigo 68). Nesse diapasão, vale lembrar, com Jose Afonso da Silva, que a pu-blicidade, dependendo de suas características visuais, pode provocar distração nos motoristas (outdoors, faixas, cartazes, fachadas de néon, painéis eletrônicos), com comprometimento da visualização ou distração em relação ao traçado da via ou da sinalização de trânsito. Portanto, há possibilidade de proibição de publicidade em de-terminados locais, ante suas peculiaridades.29

Nesse mesmo sentido, o Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº. 9.503/98), em seu artigo 81, proíbe a colocação, em vias públicas ou em imó-veis, de luzes, publicidade, inscrições, vegetação e mobiliário que possa gerar confusão, interferir na visibilidade da sinalização, ocasionado com-prometimento da segurança do trânsito. Tal di-ploma legal ainda proíbe fixar sobre sinalização de trânsito e respectivos suportes (ou em ambos), qualquer tipo de publicidade (artigo 82 do CTB), como inscrições, legendas e símbolos que não se relacionem com a mensagem de sinalização.

O objetivo do código, como bem anota Celso Antônio Pacheco Fiorillo, é limitar a liberdade em prol da estética visual, visando à sadia qualidade de vida.30

A Constituição do Estado de São Paulo prevê como área de proteção permanente as pai-sagens notáveis (artigo 197, V) e classifica como patrimônio cultural, portadores de referências à identidade, “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueo-lógico, paleontológico, ecológico e científico” (artigo 260, IV).

29 Direito Urbanístico Brasileiro, p. 182.30 Op. cit, p. 136.

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CASTANHEIRO, I. C.

O artigo 8º, parágrafo único, do Decre-to 13.626/43, do Estado de São Paulo, exige autorização do Departamento de Estradas de Rodagem para colocação de anúncios, esta-tuindo que: “somente será permitida mediante prévia licença do Departamento de Estradas de Rodagem e deverá satisfazer às condições que forem estabelecidas em regulamento, relativas à distância, à localização, ao efeito estético, à visibilidade, à perspectiva panorâmica, à segu-rança da circulação”.

A lei paulistana denominada “cidade limpa” e a jurisprudência

Na capital paulista, a Lei Orgânica do Mu-nicípio determina a “preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambien-te”, em conjunto com o Estado e com a União (artigos 148, inciso IV e 180). Também prevê que “a política urbana do Município terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, propiciar a realização da função social da propriedade e garantir o bem-estar de seus habitantes, procurando asse-gurar a segurança e a proteção do patrimônio paisagístico arquitetônico e a qualidade estética e referencial da paisagem natural e agregada pela ação humana” (art. 148, incisos III e V, grifamos).

A Lei Municipal 13.430/02, que institui o plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, em seu artigo 8º, inciso V, afirma serem objetivos gerais, decorrentes dos princípios ado-tados: “garantir a todos os habitantes da Cidade acesso a condições seguras de qualidade do ar, da água e de alimentos, química e bacteriolo-gicamente seguros, de circulação e habitação em áreas livres de resíduos, de poluição visual e sonora, de uso dos espaços abertos e verdes”. No artigo 9º, inciso VI, inclui como objetivo da política urbana “a preservação, proteção e recuperação do meio ambiente e da paisagem urbana”.

Como já se assinalou neste trabalho, o com-bate à poluição visual decorrente da publicidade comercial é feita pela via administrativa, como

Código de Posturas Municipais e regulamentos sobre publicidade etc.. No Município de São Pau-lo vigorava a Lei Municipal nº. 12.115/96, pela qual eram estabelecidas regras para a veiculação de anúncios publicitários. Tal norma foi revo-gada pela Lei Municipal nº. 14.223, publicada em 27 de setembro de 2006, a qual disciplina a paisagem urbana na capital e ficou popularmente conhecida como “Lei Cidade Limpa”, a qual é mais rigorosa, vendando muitas das formas de publicidade, como adiante se verá.

A Lei Municipal nº. 14.226/06, em seu artigo 3º, preceitua:

“Constituem objetivos da ordenação da paisagem do Município de São Paulo o atendimento ao interesse público em consonância com os direitos fundamentais da pessoa humana e as necessidades de conforto ambiental, com a melhoria da qualidade de vida urbana, assegurando, dentre outros, os seguintes:

I - o bem-estar estético, cultural e ambien-tal da população;

II - a segurança das edificações e da população;

III - a valorização do ambiente natural e construído;

IV - a segurança, a fluidez e o conforto nos deslocamentos de veículos e pedestres;

V - a percepção e a compreensão dos elementos referenciais da paisagem;

VI - a preservação da memória cultural;

VII - a preservação e a visualização das características peculiares dos logradou-ros e das fachadas;

VIII - a preservação e a visualização dos elementos naturais tomados em seu conjunto e em suas peculiaridades ambientais nativas;

...XI - o equilíbrio de interesses dos diver-

sos agentes atuantes na cidade para a promoção da melhoria da paisagem do Município.”

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A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

Mais adiante, no artigo 4º, são traçadas as diretrizes dessa novel e destacada legislação, lavradas nos seguintes termos:

“Art. 4º. Constituem diretrizes a serem observadas na colocação dos elementos que compõem a paisagem urbana:

I - o livre acesso de pessoas e bens à infra-estrutura urbana;

II - a priorização da sinalização de interes-se público com vistas a não confundir motoristas na condução de veículos e garantir a livre e segura locomoção de pedestres;

III - o combate à poluição visual, bem como à degradação ambiental;

IV - a proteção, preservação e recupera-ção do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico, de consagração popular, bem como do meio ambiente natural ou construído da cidade;

V - a compatibilização das modalidades de anúncios com os locais onde possam ser veiculados, nos termos desta lei;

VI - a implantação de sistema de fiscali-zação efetivo, ágil, moderno, planejado e permanente”

No artigo 7º, há uma ampla definição de anúncio, que pela sua exemplar importância para os nossos estudos e papel do município no combate à poluição visual, permitimo-nos transcrevê-la. Ei-la:

“Art. 7º. Para os fins desta lei, não são considerados anúncios:

I - os nomes, símbolos, entalhes, relevos ou logotipos, incorporados à fachada por meio de aberturas ou gravados nas paredes, sem aplicação ou afixação, integrantes de projeto aprovado das edificações;

II - os logotipos ou logomarcas de postos de abastecimento e serviços, quando veiculados nos equipamentos próprios do mobiliário obrigatório, como bom-

bas, densímetros e similares;

III - as denominações de prédios e con-domínios;

IV - os que contenham referências que indiquem lotação, capacidade e os que recomendem cautela ou indiquem perigo, desde que sem qualquer le-genda, dístico ou desenho de valor publicitário;

V - os que contenham mensagens obriga-tórias por legislação federal, estadual ou municipal;

VI - os que contenham mensagens indica-tivas de cooperação com o Poder Pú-blico Municipal, Estadual ou Federal;

VII - os que contenham mensagens in-dicativas de órgãos da Administração Direta;

VIII - os que contenham indicação de mo-nitoramento de empresas de segurança com área máxima de 0,04m² (quatro decímetros quadrados);

IX - aqueles instalados em áreas de pro-teção ambiental que contenham men-sagens institucionais com patrocínio

....

XI - os “banners” ou pôsteres indicativos dos eventos culturais que serão exibi-dos na própria edificação, para museu ou teatro, desde que não ultrapassem 10% (dez por cento) da área total de todas as fachadas;

XII - a denominação de hotéis ou a sua logomarca, quando inseridas ao longo da fachada das edificações onde é exer-cida a atividade, devendo o projeto ser aprovado pela Comissão de Proteção à Paisagem Urbana - CPPU;

XIII - a identificação das empresas nos veículos automotores utilizados para a realização de seus serviços.”

No artigo 8º estão as regras para que um anúncio possa ser considerado lícito (as hipó-

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CASTANHEIRO, I. C.

teses autorizadas estão no artigo 13), que pelas mesmas razões do parágrafo anterior a seguir são descritas:

“Art. 8º. Todo anúncio deverá observar, dentre outras, as seguintes normas:

I - oferecer condições de segurança ao público;

II - ser mantido em bom estado de con-servação, no que tange a estabilidade, resistência dos materiais e aspecto visual;

III - receber tratamento final adequado em todas as suas superfícies, inclusive na sua estrutura;

IV - atender as normas técnicas pertinen-tes à segurança e estabilidade de seus elementos;

V - atender as normas técnicas emitidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT, pertinentes às dis-tâncias das redes de distribuição de energia elétrica, ou a parecer técnico emitido pelo órgão público estadual ou empresa responsável pela distribuição de energia elétrica;

VI - respeitar a vegetação arbórea sig-nificativa definida por normas espe-cíficas constantes do Plano Diretor Estratégico;

VII - não prejudicar a visibilidade de si-nalização de trânsito ou outro sinal de comunicação institucional, destinado à orientação do público, bem como a numeração imobiliária e a denomina-ção dos logradouros;

VIII - não provocar reflexo, brilho ou intensidade de luz que possa ocasionar ofuscamento, prejudicar a visão dos motoristas, interferir na operação ou sinalização de trânsito ou, ainda, causar insegurança ao trânsito de veículos e pedestres, quando com dispositivo elétrico ou com película de alta refle-xividade;

IX - não prejudicar a visualização de bens de valor cultural.”

Quanto às vedações de anúncios, as regras são as seguintes:

“Art. 9º. É proibida a instalação de anún-cios em:

I - leitos dos rios e cursos d’água, reser-vatórios, lagos e represas, conforme legislação específica;

II - vias, parques, praças e outros logra-douros públicos, salvo os anúncios de cooperação entre o Poder Público e a iniciativa privada, a serem definidos por legislação específica, bem como as placas e unidades identificadoras definidas no § 6º do art. 22 desta lei;

III - imóveis situados nas zonas de uso estritamente residenciais, salvo os anúncios indicativos nos imóveis regu-lares e que já possuíam a devida licença de funcionamento anteriormente à Lei nº. 13.430, de 13 de setembro de 2002;

IV - postes de iluminação pública ou de rede de telefonia, inclusive cabines e telefones públicos, conforme autori-zação específica, exceção feita ao mo-biliário urbano nos pontos permitidos pela Prefeitura;

V - torres ou postes de transmissão de energia elétrica;

VI - nos dutos de gás e de abastecimento de água, hidrantes, torres d’água e outros similares;

VII - faixas ou placas acopladas à sinali-zação de trânsito;

VIII - obras públicas de arte, tais como pontes, passarelas, viadutos e túneis, ainda que de domínio estadual e fe-deral;

IX - bens de uso comum do povo a uma distância inferior a 30,00m (trinta metros) de obras públicas de arte, tais como túneis, passarelas, pontes e via-

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A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

dutos, bem como de seus respectivos acessos;

X - nos muros, paredes e empenas cegas de lotes públicos ou privados, edifica-dos ou não;

XI - nas árvores de qualquer porte;

XII - nos veículos automotores, moto-cicletas, bicicletas e similares e nos “trailers” ou carretas engatados ou desengatados de veículos automotores, excetuados aqueles utilizados para transporte de carga.”

O artigo 23 prevê a responsabilização solidária do anúncio pelo possuidor e proprie-tário do imóvel onde aquele estiver instalado, o mesmo ocorrendo com a empresa instaladora. A Comissão de Proteção da Paisagem Urba-na (CPPU) será a principal responsável pelo acompanhamento da legislação paulistana sobre anúncios (artigo 35), bem como quanto às novas tecnologias e meios de veiculação de anúncios (artigo 47), sendo o licenciamento de respon-sabilidade das subprefeituras (artigo 36). No artigo 39 e seguintes estão previstas as infrações e penalidades.

Os mobiliários urbanos estão conceituados no artigo 22 da Lei 14.223/06, com diretrizes de instalação no artigo 23, sendo que a publicida-de nos mesmos será regulada em lei específica (artigo 21). Como regra geral, o artigo 18 prevê que “Fica proibida, no âmbito do Município de São Paulo, a colocação de anúncio publicitário nos imóveis públicos e privados, edificados ou não”. São permitidos aqueles elencados no artigo 19, com finalidade cultural, educativa, eleitoral e imobiliária.

Como se percebe dos dispositivos trans-critos e mencionados nos parágrafos anteriores, a Lei Municipal nº. 14.223/06, que vedou o anúncio publicitário em locais públicos e pri-vados, visando proteção da paisagem urbana (meio ambiente artificial ou estético) e do meio ambiente cultural (patrimônio histórico) tratou de regulamentar, dentro do interesse local (artigo 30, incisos I, II, VIII e IX, da CF), questão am-biental e urbanística (artigo 225 e 182 da CF),

bem como fez prevalecer a função social da propriedade e da cidade (artigo 170, III, e 182, “caput”, respectivamente, da Carta Magna), não invadindo competência legislativa do Estado e da União para legislar sobre publicidade no âmbito da relação de consumo (artigo 22, inciso XIX e artigo incisos 24, V, VII e VIII, da CF). No sen-tido da constitucionalidade da Lei nº 14.223/06 podem ser mencionados os seguintes acórdãos:

JULGAMENTO “EXTRA PETITA” - A SENTENÇA JULGOU A AÇÃO DENTRO DO PEDIDO – NÃO HÁ QUE SE FALAR EM NULIDADE. LEI DOS ANÚNCIOS - LEI MUNICIPAL NQ 14.223, DE 26/9/2006, QUE DISPÕE SOBRE A ORDENAÇÃO DOS ELE-MENTOS QUE COMPÕEM A PAISAGEM URBANA NO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO É MATÉRIA DE NATUREZA AMBIENTAL E TEM COMO FINALIDADE ADEQUAR A FUNÇÃO DA PROPRIEDADE EM FUNÇÃO DA PAISAGEM URBANA, RELACIONADA COM O USO COMUM DO POVO.

INCONSTITUCIONALIDADE - A LEI NÃO É INCONSTITUCIONAL, POIS O MU-NICÍPIO NÃO USURPOU A COMPETÊN-CIA CONSTITUCIONAL CONFERIDA À UNIÃO, UMA VEZ QUE A CITADA NORMA LEGAL NÃO DIZ RESPEITO AO ÂMBITO ECONÔMICO DA PUBLICIDADE OU PRO-PAGANDA, MAS SIM AO QUE SE REFERE AO MEIO AMBIENTE, ARQUITETURA E URBANISMO, POSSUINDO O MUNICÍPIO COMPETÊNCIA CONCORRENTE PARA LEGISLAR SOBRE TAIS MATÉRIAS.

LIVRE INICIATIVA - A LEI NÃO VEDA O EXERCÍCIO DE PROFISSÃO E/OU ATIVI-DADE, DESDE QUE OBEDEÇA A LEI.

DIREITO DE PROPRIEDADE - DEVE OBEDECER AO PRINCÍPIO CONSTITUCIO-NAL DA FUNÇÃO SOCIAL.

PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDA-DE E RAZOABILIDADE - A LEI TEM POR FINALIDADE ORDENAR O ESPAÇO PÚBLI-CO E REGULÁ-LO NO QUE DIZ RESPEITO - PAISAGEM URBANA - CONTROLE DE POLUIÇÃO VISUAL - NÃO SE VISLUMBRA QUALQUER EXCESSO.

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CASTANHEIRO, I. C.

(TJSP, 10ª Câmara de Direito Público - Apelação Cível nº. 766.659-5/1-00-V. 15.660, v.u., j. em 11/08/08)

ATO ADMINISTRATIVO – PUBLICIDA-DE URBANA - PRETENSÃO DA EMPRESA AO RECONHECIMENTO DO DIREITO DE TER SUAS ATIVIDADES REGIDAS PELAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS APLICÁVEIS E DO DIREITO DE MANU-TENÇÃO DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS REGULARES E RESPECTIVAS ESTRUTU-RAS EXISTENTES, BEM COMO À DECLA-RAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MUNICIPAL N° 14.223/06 (CIDADE LIMPA)- INOCORRÊNCIA.

O Plenário desta Corte reconheceu a cons-titucionalidade da Lei Municipal n° 14.223/06, tendo sido apreciado pelo C. Órgão Especial no Incidente de Inconstitucionalidade n° 163.152-0/3-00, sendo a ação que se funda na inconsti-tucionalidade da lei improcedente.

Decisão mantida.Recurso negado (TJSP, 1ª Câmara de Direito Público, Ape-

lação n° 806 542 5/8-00, v.u., j. em 02/12/08).MANDADO DE SEGURANÇA - Preven-

tivo - Liminar - Lei Municipal de São Paulo n.° 14.223/06 (Projeto “Cidade Limpa”), a vedar a colocação de anúncios em imóveis públicos e privados – Pretensão de inconstitucionalidade - Ausência de ilegalidade, vício ou arbitrariedade - Falta de prova da regularidade do anúncio - In-teresse público que deve se sobrepor ao interesse particular - Revogada liminar concedida em primeiro grau - Tratando-se de lei em vigor (Lei Municipal de São Paulo n° 14 223/06), a vedar colocação de anúncios, de forma indiscriminada, em imóveis públicos e privados, não há como se manter liminar concedida em mandado de segu-rança contra órgão público, sob o fundamento de impedimento ao livre exercício de profissão (“propaganda e marketing”) e outras pondera-ções, ante o poder de policia tocante à Munici-palidade (artigos 23, I, 30, I e 182, caput e § 2°, da Constituição Federal) e o interesse público a sobrepor-se ao interesse particular (TJSP, 10ª Câmara de Direito Privado, A.I. 623.643-5/5-00, j. em 05/03/07)

PUBLICIDADE URBANA - LEI MU-NICIPAL N° 14.223/06 - COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA LEGISLAR SOBRE ASSUNTOS DE INTERESSE LOCAL - CONS-TIITUCIONALIDADE DA LEI. O município não legislou sobre propaganda comercial, mas sim regulamentou a publicidade urbana, que é assunto de interesse local e, portanto, de com-petência do município, nos termos do art. 30, I, da CF. - PUBLICIDADE URBANA - LEI MUNICIPAL N° 14.223/06 - INOCORRÊN-CIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA, OU DO LIVRE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA - INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DI-REITO ADQUIRIDO - POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA NOVA LEI A RELAÇÕES FIRMADAS ANTES DE SUA ENTRADA EM VIGOR.

RECURSO AO QUAL SE NEGA PROVI-MENTO (TJSP, 1ª Câmara de Direito Público, Apelação com Revisão n° 714.853.5/1-00, v.u, j. em 12/08/08)

Diagnóstico do papel do poder público na poluição visual: sugestões de enfrentamento da poluição visual pelas cidades

No enfrentamento da poluição visual não há dúvidas, a nosso ver, que o mais importante papel é o do município, pois é ali que o indivíduo residente e trabalha, entrando em contato com todas as circunstâncias positivas e negativas do meio que o circunda. Portanto, as condi-ções estéticas do meio ambiente são interesses eminentemente locais. Nesse contexto, nada obstante vinculado a diretrizes da legislação federal (artigo 21, XX e artigo 24, § 1º), da CF) e, eventualmente, estadual (artigo 24, § 2º) sobre proteção estética e paisagística, às quais não poderá contrariar, com base no artigo 30, incisos I, II, VIII e IX, da Carta Magna, o município poderá elaborar uma legislação mais restritiva quanto à exploração de sua paisagem urbana, para fins publicitários, eleitorais, informativos, culturais etc.

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A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES

Considerando que o artigo 23, inciso VI, da Constituição Federal atribui à União, Estados, Distrito Federal e Municípios competência co-mum para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”, bem como deve proteger as paisagens naturais notá-veis (artigo 23, III), o município poderá combater e punir a poluição visual utilizando-se, na medida de suas competências, todo o arcabouço legis-lativo que mencionamos em capítulo próprio. Quando não for de sua atribuição a aplicação de determinado diploma legal deverá instar o ente federativo competente a agir, enviando-lhe representação devidamente instruída com as provas dos fatos ilícitos denunciados.

É papel da municipalidade disciplinar e fiscalizar adequadamente, diga-se com o rigor que a situação específica mereça, a afixação de anúncios publicitários em locais como: vias de tráfego de elevado fluxo; monumentos públi-cos, bens e locais tombados e suas adjacências; pontes, viadutos e passarelas; árvores das vias públicas; postes, torres ou qualquer estrutura destinada a suportar redes aéreas dos meios de comunicação e de energia elétrica; cemitérios; proximidades de semáforos, sempre que possam confundir visão ou interpretação, tudo em con-formidade com o Plano Diretor das cidades e o Código de Obras.

Também não pode ser olvidada, pelo Poder Público, a preparação das gerações futuras para lidar com o problema da paisagem visual (com atitudes preventivas como educação e repressi-vas), com a colaboração, ainda que compulsória, dos meios de comunicação de massas, dos edu-cadores, dos intelectuais, das universidades etc.

Também deverá o Poder Público municipal buscar algum grau de consenso em relação à beleza de elementos naturais31 em geral (vegeta-ção, céu, lagos, rios e praias) e até de elementos artificiais (monumentos, prédios históricos com características marcantes de determinado estilo e fachadas visualmente desobstruídas), através de audiências públicas por bairros ou regiões, com

participação de profissionais de diversos ramos (comissão multidisciplinar), da população e dos comerciantes locais, para somente depois disso se elaborar projetos de leis seguindo, em linhas gerais, as conclusões dessas audiências (visa-se eliminar, ao máximo, o grau de subjetividade e o autoritarismo dos agentes públicos).

Sendo função do Poder Público zelar pelos interesses da maioria com relação aos da mino-ria em questões privadas, às quais geralmente cede em razão da pressão de grupos influentes e atuantes no espaço da cidade, a conclusão é a de que o Poder Público tem sido omisso. Importante ferramenta para o combate às omis-sões dolosas e culposas quanto à fiscalização e combate aos danos ambientais à paisagem urbana é a utilização das punições previstas na Lei de Improbidade Administrativa, que poderá ser utilizada nas ações civis públicas movidas pelo Ministério Público na defesa do meio ambiente artificial e natural.

Pensando ter demonstrado, com as limi-tações da singeleza inicialmente proposta, as principais causas da poluição visual, seus efei-tos e formas de enfrentamento, especialmente pelos municípios, que detém poder fiscalizador concorrente com os demais entes federativos e competência legislativa concorrente em virtude do interesse eminentemente local, resta aos membros e servidores do Poder Público Mu-nicipal lançarem mão do instrumental jurídico aqui mencionado e, se necessário, criar outros para implementarem a efetiva defesa do meio ambiental cultural e artificial.

Nesse diapasão, vale transcrever as valiosas observações de Ignez Conceição Ninni Ramos e de José Afonso da Silva, na ordem a seguir transcritas:

Não há legislação no mundo que possa compensar a falta de vontade política. Enquanto a poluição visual for tratada como a paciente que ainda não inspira cuidados, a paisagem urbana continua-rá sofrendo de doença terminal. Retar-

31 MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 2003

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CASTANHEIRO, I. C.

dar o tratamento poderá inviabilizar a cura32

“Uma cidade não é um ambiente de negócios, um simples mercado onde até a paisagem é objeto de interesses eco-nômicos lucrativos, mas é, sobretudo, um ambiente de vida humana, no qual se projetam valores espirituais perenes, que revelam às gerações porvindouras a sua memória”.33

Assim, espera-se de todos os operadores do Direito e dos agentes públicos, especial-mente aqueles atuantes na área urbanística e

na ambiental, que lancem mão do seu poder de petição e/ou dos instrumentos jurídicos dispo-níveis, promovendo as ações administrativas cabíveis, representações e/ou recomendações à(s) autoridade(s) competente(s), para que sejam tomadas as medidas apropriadas em prol da paisagem urbana, propiciando melhores con-dições de saúde e de bem-estar aos habitantes das cidades, que segundo o IBGE são cerca de 82% da população brasileira. Diante dessa pro-vocação, a continuidade da omissão por parte da(s) Autoridade(s) poderá caracterizar ato de improbidade administrativa (artigo 11, incisos I e II, da Lei nº 8.429/92).

32 RAMOS, Ignez Conceição Nini. Poluição Visual. Disponível em <http://www.redeambiente.org.br/Opiniao.asp?artigo=65>. Acesso em: 09 mai. 2003

33 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1997, p 274

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CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

RESUMO: Numa perspectiva do debate teórico apresentado por Marshall acerca da cidadania, os direitos sociais se manifestam como uma possibilidade de participação na riqueza coletiva e como ‘etapa’ no processo de desenvolvimento histórico da cidadania. No Brasil, o direito ao trabalho é um direito social constitucionalmente previsto, motivo pelo qual se faz importante sua compreensão e análise. Sendo assim, o artigo busca tratar do direito ao trabalho como parte integrante dos direitos fundamentais (eis que positivado no ordenamento jurídico brasileiro e previsto na Declaração dos Direitos Humanos), embora temas como a eficácia dos direitos so-ciais representem uma nova fonte dos debates atuais.Palavras-chave: Cidadania. Direitos Sociais. Direito ao Trabalho.

ABSTRACT: In a perspective of the theore-tical debate presented by Marshall concerning citizenship, the social rights reveal themselves as a possibility of participation in the collective wealth and as ‘stage’ in the process of historical development of the citizenship. In Brazil, the right to work is a social right constitutionally foreseen, wherefore it is important its understan-ding and analysis. Thus, the article aims to deal with the right to work as part of the fundamental rights (being present in the Brazilian legal system and foreseen in the Declaration of the Human Rights), even so subjects as the effectiveness of the social rights represent a new source of the current debates.Keywords: Citizenship. Social rights. Right to the Work.

Ivam Gerage Amorim

Artigo

* Advogado. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Ambiental pela UNIMEP/ Piracicaba. Estagiário no Anderson, Coe & King, LLP Attorneys at Law em Baltimore (Maryland), Estados Unidos.

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AMORIM, I. G.

1) Os Direitos Sociais no Brasil

A partir do último terço do século XIX começam na Europa algumas especulações em torno do Direito Social. Para uma ilustração destas teorias, importante recordar as teorias de Gierke quando utiliza o termo como uma cate-goria entre o direito público e o direito privado, a fim de demonstrar a incorporação do individuo à comunidade em função social.1 Dentro destes debates, a expressão direito social é utilizada como um ramo novo do direito, apresentando com isso uma definição distinta da que antes se encontrava no mundo jurídico. E nesta perspec-tiva, o direito social se apresenta como sendo o conjunto de princípios, instituições e normas que em função de integração, protegem, tutelam e reivindicam aos que vivem de seu trabalho e aos economicamente débeis. 2

Com efeito, o direito ao trabalho enquanto um direito social é um tema razoavelmente recen-

te. Assim também o é dentro de uma perspectiva da cidadania. Contudo, em que pese os inúmeros debates acerca da aplicação ou validade do de-senvolvimento teórico apresentado por Marshall, os direitos sociais integram a última das três fases (ou elementos) constitutivos da cidadania.3 Neste sentido, os direitos sociais representam uma participação na riqueza coletiva, e acabam por recair sobre os denominados direito ao trabalho, à saúde, educação, aposentadoria, etc.

No Brasil, embora o constituinte não tenha previsto a cidadania no Título II da CF/88, a dou-trina majoritária brasileira entende a cidadania como um direito fundamental. Ressalte-se neste ponto o parágrafo 2o do artigo 5o da Constituição que estabelece que são direitos fundamentais os que se encontram expressos na Constituição. Destarte, ainda que ‘topograficamente o direito à cidadania não esteja previsto no Título II, mas no Título I, sua natureza de norma de direito fundamental não está prejudicada”.4

1 MOYA (1977). p., 62. Para o mesmo autor, a teoria de Gierke é teoria sociológica e teoria jurídica, que concebe o Direito Social como uma dis-ciplina autônoma frente ao direito público e o direito privado. Não obstante, na Alemanha se apresentam contradições sociais pois, por um lado Bismarck obtém a expedição da lei de 21 de outubro de 1878 que proíbe as coalizões de trabalhadores e que é contraria a um dos direitos sociais mais importantes do direito do trabalho (em prejuízo dos trabalhadores); e por outro cria, posteriormente, os seguros sociais de 1883 a 1889. Frente a sua política anti-socialista, elabora um direito de seguridade social para tentar conter a luta da classe operária. Idem.p., 62.

2 Dentro destes debates nas ciências jurídicas e sociais, tal ramo novo do direito se identificava, no México, no artigo 123 com o direito do trabalho e da previsão social, como ‘dois oceanos que ao unirse formam um só com a força incontível da fusão de suas águas’ e ainda, formam parte do direito agrário e outras disciplinas para a segurança e bem estar da classe trabalhadora e dos débeis em geral. Sendo assim, são teorias integradoras do direito social difundida e aceita, as que sustentam o caráter protecionista, igualitário e nivelador do direito social, e como parte deste o direito obreiro e o direito econômico. Uma outra teoria, tratada como exclusiva dos teóricos mexicanos, proclama não somente o fim protecionista e tutelar do Estado como também o Direito Social enquanto sendo reivindicatório dos economicamente débeis e do proletariado. Porém, ambas as teorias se complementam e integram a Teoria Geral do Direito Social contida no artigo 123 da Constituição da época. A primeira teoria sustenta que, frente a Constituição mexicana de 1917 e a alemã de Weimar, de 1919, e ainda as que se seguiram a esta para tratar do direito social. Outra teoria, sustenta o fundamento da Constituição mexicana enquanto um caráter reivindicatório, sendo esta última a teoria adotada pelo autor. MOYA. Op. Cit. p., 64-65. Existem ainda autores que tratam a perspectiva do direito ao trabalho em função das atividades grevistas como mecanismo de manutenção do emprego e de um direito ao trabalho. Sobre o assunto, ver: GALLEGO (1950). p., 326. Nas palavras de José Afonso da Silva, “a questão da natureza dos direitos sociais ainda se põe porque há ainda setores do constitucionalismo, especialmente o ligados à doutrina constitucional norte-americana, que recusam não só a idéia de que tais direitos sejam uma categoria dos direitos fundamentais da pessoa humana, mas até mesma que sejam matéria constitucional, ou, quando admitem serem constitucionais, qualificam-nos de meramente programáticos, meras intenções e coisas semelhantes. De minha parte, sempre tomei a expressão direitos fundamentais da pessoa humana num sentido abrangente dos direitos sociais, e, portanto, não apenas os entendi como matéria constitucional mas como matéria constitucional qualificada pelo valor transcendente da dignidade da pessoa humana. Assim pensava antes da Constituição de 1988, guiado até pelo conteúdo de documentos internacionais de proteção dos direitos humanos (...)” SILVA, José Afonso da. Garantias econômicas, políticas e jurídicas da eficácia dos Direitos Sociais. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 10/05/2009.

3 Segundo DÉCIO SAES, as principais críticas a Marshall: a) se refere ‘a aplicabilidade ou não (ver TURNER) do esquema teórico de Marshall a outros processos nacionais de cidadania que não o inglês; b) ‘a fidelidade de Marshall ‘a evolução da cidadania da Inglaterra contemporânea; c) não faz referência ‘a Revolução Política anti-feudal; ‘a Revolução Puritana de 1640 e da Revolução Gloriosa de 1688, na instauração da liberdade civil no país; d) subestima o potencial do processo revolucionário na destruição do status feudal; e) não instaura a cidadania civil como processo de evolução institucional, caracterizados pela fusão no plano geográfico e pela separação no plano funcional; f) se considera como evolucionista, porém desconsidera a possibilidade de revolução, ou seja, um salto qualitativo; g; as críticas do evolucionismo de Marshall sobre a cidadania pode ser observado em TURNER, Anthony GIDDENS e Reinhard BENDIX, questionando o processo interno de evolução da cidadania. Para um aprofundamento teórico dos debates em uma perspectiva da teoria política, ver: SAES (2000). p., 8-40. Sobre a ambigüidade do conceito, ver: DALLARI. (2007)

4 Aplicando-se a definição de direitos fundamentais à cidadania, temos: a) norma jurídica positiva de nível constitucional: o direito ‘a cidadania é norma constitucional positivada, expressa no art. 1o, II, da CF/88; b) valor essencial da sociedade: a previsão da cidadania como um dos funda-mentos do Estado Democrático de Direito; c) proteção direta da dignidade da pessoa humana: pois na medida que a cidadania é um direito que objetiva garantir a participação política direta e imediata dos cidadãos, ela se relaciona com a dignidade da pessoa humana; d) legitimação jurídica

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CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

Dentro desta perspectiva, a exata definição de Direito Social, e não direitos sociais em si, fora matéria de controvérsia no debate político e jurídico no País. Enquanto uns definiam o Direito Social como sendo a reunião do Direito do Tra-balho com a Previdência e a Assistência Social, outros entendiam-no como desvinculado do direito trabalhista, por considerarem as normas reguladoras das relações trabalhistas como apar-tado do seguro e assistência sociais. Sendo assim, o Direito Social não poderia regular as relações de trabalho entre empregadores e empregados.5

Em suas relações com o trabalho, uma corrente colocada como minoritária colocava o Direito do Trabalho como um Direito Social Específico.6

Neste debate acerca da distinção entre os conceitos pertinentes ao Direito Social, seja ele enquanto um Direito do Trabalho, uma Legislação Social ou do Trabalho, cabe-nos aqui apenas apresentar que a noção de Direito Social foi desenvolvida com os propósitos das relações de trabalho e com o desenvolvimento econômico.7

Nos comentários acerca da Constituição do Brasil de 1988, outros entendem que o artigo 6o enumera os Direitos Sociais em sentido genérico

e, no artigo seguinte, os Direitos Sociais em sentido estrito, conhecido também como Direi-tos Trabalhistas. Não obstante, é explicitado em sentido amplo os Direitos Sociais no Título VIII (da Ordem Social, que envolve saúde, educação, previdência social, dentre outros).8

Destarte, LEITE aponta para uma classi-ficação dos direitos sociais, sustentando haver direitos sociais pertinentes ao trabalho, ao meio ambiente, à seguridade, à família e educação, por exemplo. Os direitos sociais representariam assim, uma dimensão dos direitos fundamentais, sendo prestações positivas enunciadas em nor-mas constitucionais.9

Não menos importante, CARVALHO aponta que a cronologia lógica da seqüência apresentada por Marshall foi invertida aqui no Brasil. Os direitos sociais foram primariamente implementados em períodos de supressão dos direitos civis e políticos. Posteriormente foi a vez dos direitos políticos, num período em que órgãos de representação política foram trans-formadas em ‘peças decorativas’ do regime. E por fim, ainda nos dias de hoje, muitos dos direitos civis (a base da seqüência apresentada por Marshall), continuam inacessíveis para boa parte da população.10

da atuação estatal: uma vez que a norma sobre cidadania visa garantir o direito de participação política de todos os cidadãos, será um mecanismo de controle de atuação do Estado. Por fim, a natureza de cláusula pétrea do direito fundamental ‘a cidadania, em função de sua natureza de direito fundamental individual, está prevista no art. 60, parágrafo 4o, IV, o que impede sua revogação normativa. Com efeito, levando-se em consideração nossa realidade constitucional, uma melhor classificação partiria de critérios do sujeito titular de direitos: individuais (direitos que possuem como titular pessoas físicas ou jurídicas); coletivos (direitos que têm como titular grupo determinado de pessoas unidas por uma relação jurídica básica); sociais (titular pessoa física em situação de desigualdade social); e difusos (direitos indivisíveis cujo titular é grupo indeterminado de pessoas). No caso da cidadania, fala-se em cidadania individual no caso de impetração de ação popular, por exemplo; e de cidadania enquanto direito coletivo no caso do sufrágio. LOPES (2007). p., 28-32.

5 OLIVEIRA (1952). p., 11. No liame que vincula estas temáticas acima descritas, nasceu no direito industrial (em matéria de acidentes de trabalho, frente a influência de Bismarck),a noção de ‘risco profissional’. Nesse sentido, não se tratava de estabelecer a culpa do patrão ou do empregado, mas de comprovar o acidente. A lei, desta forma, regularia a indenização ao preço alçado. Da mesma maneira, apareceu na mesma época na França (entre civilistas reputados, tais como SALEILLES e JOSSERAND, a doutrina da responsabilidade objetiva, que independe da culpabilidade. No Direito Penal, nas mesmas condições, surge a teoria da defesa social. PRINS(1912). p., 63-64.

6 CEZARINO JR. Vol. 2. (1957). p., 24. O mesmo autor, em seu volume 1o, apresenta os motivos que o condicionam a entender o conceito de Direito Social como sendo um qualificativo melhor para a definição da Disciplina que alguns entendem por Direito do Trabalho.

7 A Faculdade de Direito da USP, pela Lei Paulista n. 3023/37, em seu artigo 7o, batizava de Legislação Social sua disciplina jurídica. Pela Lei Federal n. 2724 de 1956, as demais Faculdades de Direito do País denominavam de Legislação do Trabalho as disciplinas cuja concepção fora antes suprimida pela expressão sinônima de Direito Laboral, mudada posteriormente para Direito do Trabalho, sendo que o Direito Industrial seria estudado com o Direito Comercial, como antes já ocorria na Faculdade de São Paulo. A Constituição de 1946, no artigo 5o, XV, letra ‘a’, fala em Direito do Trabalho; enquanto o artigo 157 emprega a denominação de Legislação do Trabalho. O decreto- lei n. 1237/39, que instituiu a Justiça do Trabalho, em seu artigo 1o, se referia a Legislação Social, e em seu artigo 94 falava de Direito Social. O artigo 693, ‘a’ da CLT, ao tempo, dispunha de um Direito Social. Esta denominação também é adotada por Evaristo de Moraes Filho. Com isso, o debate recai sobre a evolução da própria disciplina: direito industrial, direito operário, direito corporativo ou corporativo-sindical, legislação social, do trabalho ou social-trabalhista, direito social, direito do trabalho, além de um possível direito econômico e profissional. FILHO, E. de M. p., 157 a 228. In: CEZARINO JR. Op. Cit..Vol. 1o. p., 11-15.

8 WATERHOUSE (1989). p., 196.9 LEITE (1997). p., 22-25.10 CARVALHO (2001).p., 219-222.

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AMORIM, I. G.

2) O ‘trabalho’ como ‘valor social’ na Constituição Federal de 1988

A natureza do conceito ‘trabalho’ nem sempre foi a mesma. Ela se transformou ao lon-go dos séculos, passando de uma concepção de esforço, sofrimento para uma concepção mais social, relacionada ao conceito de dignidade da pessoa humana.

No Brasil, a valorização do trabalho está repetidamente enfatizada pela CF/88. Desde seu “Preâmbulo”, como também demarcando-se nos “Princípios Fundamentais” da República Federativa do Brasil e da própria Constituição (Título I), sendo ainda especificada ao tratar dos “direitos sociais” (arts. 6º e 7º), concretizando-se, por fim, no plano da Economia e da Sociedade, ao buscar reger a “Ordem Econômica e Finan-ceira” (Título VII), com seus “Princípios Gerais da Atividade Econômica” (art. 170), ao lado da “Ordem Social” (Título VIII) e sua “Disposição Geral” (art. 193). Na verdade, são quatro os prin-cipais princípios constitucionais afirmativos do trabalho na ordem jurídico-cultural brasileira: o da valorização do trabalho, em especial do emprego; o da justiça social; o da submissão da propriedade à sua função socioambiental; o princípio da dignidade da pessoa humana. O

trabalho traduz-se, assim, em princípio, funda-mento, valor e direito social.11

Nesta perspectiva, note-se ainda que a questão do trabalho relaciona-se ainda com os direitos humanos, bem como com diversos outros princípios constitucionais, tais como a cidadania e a justiça social, irradiando-se por toda a Constituição na busca pela redução das desigualdades sociais.

Neste sentido, diversas Constituições abor-daram sobre o ‘trabalho’ em sua dimensão social e individual, firmando como corolário o princípio do ‘direito ao trabalho’, e figurando-os, inclu-sive, em diversos Preâmbulos constitucionais.12

Abstraindo a constitucionalização dos aspectos concernentes ao trabalho que ora nos propomos a discorrer, e levando-se em conta o sentimento de solidariedade social que envolvia e condicionava grupos organizados ou isolados a buscarem melhores condições de vida e de trabalho ou, por que não, de um direito ao tra-balho, devemos considerar que a solidariedade humana e o valor trabalho permeiam quase todo o desenvolvimento de nosso estudo.13

Ulysses Guimarães denominou de ‘Cons-tituição Coragem’ um texto que anteriormente compunha a Constituição Federal e que fora posteriormente retirada pela alegação de incons-

11 Em seu Título I (“Dos Princípios Fundamentais”), a Constituição fixa serem fundamentos da República Federativa do Brasil, ao lado de outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV). No mesmo título, em seu art. 3º, que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolvimento na-cional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O enquadramento do trabalho como direito social está explicitado no art. 6º da Constituição, concretizando-se em inúmeros dos direitos que se listam no art. 7º. Perceba-se, que esse enquadramento não reduz, normativamente, o patamar de afirmação do trabalho (de princípio, valor e fundamento para direito social). Por fim, ao tratar da “Ordem Social”, em sua “Disposição Geral”, a mesma Constituição reenfatiza que a “ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais” (Título VIII, Capítulo I, art. 193). DELGADO, M. G. (2006). p., 23-26.

12 A Constituição da Organização dos Estados da América, aprovada em Bogotá no artigo 29, letra ‘b’, declara que o ‘trabalho é um direito e um dever social’. No Brasil, a Carta de 37, em seu artigo 136, dispunha que “o trabalho é obrigação social”, estatuindo que a “todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa”. A Carta de 34 não continha declaração semelhante. Na Constituição de 1946, o artigo 145 prevê que “a todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social”. Na Constituição de 1931 da Espanha, no artigo 46, o trabalho é uma obrigação social. Na mesma Constituição, no artigo 24, estabelece que os espanhóis “têm direito ao trabalho e o dever de exercer uma atividade socialmente útil”. Em Portugal, na Constituição de 1935, em seu artigo 35 declara que o trabalho desempenha uma função social. Na Rússia, na Carta de 36, em seu artigo 12 estabelece que o trabalho é para todo o cidadão apto “um dever e uma questão de honra”. Na França, em 1946, já no Preâmbulo, menciona que “tem cada um o dever de trabalhar e o direito de obter emprego”, constando o propósito do direito ao trabalho já em 1848 (art. VII). Na Itália, em sua Constituição de 1947, o artigo 4o coloca que “a República reconhece a todos os cidadãos o direito ao trabalho e favorece as condições de tornar esse direito efetivo”. De toda sorte, a Carta del Lavoro não previa o direito ao trabalho. Mas entre as Constituições Americanas, merecem destaque: Colômbia (1945, art. 17); Costa Rica (1871, art. 52 e incluído no texto constitucional em 1943); Nicarágua (1939, art. 53); Panamá (1946, artigo 53); República de Salvador (1945, art. 155); Uruguai (de 1934, no art. 52) e Venezuela (no texto de 1947, art. 61). MENEZES (1956). p., 54-56.

13 São inúmeros os documentos históricos que envolvem manifestações por melhores condições de trabalho. De maneira exemplificativa, em relação às manifestações operárias no início de sua formação, importante ressaltar o Boletim da Comissão Executiva do 3oCongresso Operário. Ano I. N. 1. São Paulo: Agosto de 1920.

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CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

titucionalidade de suas palavras. De qualquer maneira, assim dizia o texto:

“O Homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o país. Diferentemente das sete constituições anteriores, começa com o homem. Gra-ficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a constituição cidadã. Cidadão é o que ganha, come, sabe, mora, pode se curar. (...)”14

Nestes termos, notemos que a noção dos direitos sociais integram o conceito de cidadania na Constituição Federal de 1988, corroborando com o anteriormente mencionado e com o que dispõe acerca da temática que agora discorremos.

No Brasil, a palavra ‘trabalho’ nem sempre foi tida como um ‘valor social’, conforme dis-põe o atual artigo 1o, inciso IV da CF/88, mas transformou-se ao longo dos tempos, vinculan-do-se com diversos princípios constitucionais e irradiando-se por toda a Constituição. Na CF/88, o ‘primado do trabalho’ figura-se como princípio constitucional. Tal princípio é a base da Ordem Social.

E nesta perspectiva, os direitos sociais correspondem à luta pela igualdade, manifesta-da por esforços conjuntos do homem na busca por melhores condições. Tanto assim o é que o

trabalho fora incluído no rol dos direitos sociais. Ademais, o valor dado ao trabalho foi colocado como fundamento do Estado Democrático (art. 1o, IV), em igualdade de importância com os demais fundamentos do Estado Democrático de Direito, tais como a cidadania; a soberania; a dignidade da pessoa humana; a livre iniciativa e o pluralismo político.15 Assim, a Constituição Federal apresenta um aspecto econômico e outro social, sendo que o valor trabalho aparece como fundamento e base da Ordem Social e Econômi-ca, e permeia toda a Constituição.16

De toda maneira, o tema ‘trabalho’ é muito mais complexo do que nos propomos a estudar nesse trabalho. Mas devemos nos atentar também para outras manifestações que a problemática pode apresentar. Assim:

“Não obstante, fica claro que a maioria destas demandas ainda não foi satisfeita. Se a crescente sensibilidade de largas parcelas da força de trabalho para a utilidade negativa do trabalho assalariado coincidir com a percepção de um declínio no valor de uso de seus produtos, pode-se esperar uma perda crescente na rele-vância subjetiva do trabalho assalariado ou uma aceitação decrescente de suas condições físicas, psicológicas e institucionais. É sintomático desta possibilidade o fato de que a tradicional reivindicação sindical por um efetivo “direito ao trabalho” - uma demanda que atualmente já possui um pronunciado tom utópico - seja criti-cada como insuficiente, e, portanto, refraseada numa demanda pelo “direito ao trabalho útil e significativo””

17

14 http://www.tc.df.gov.br/contaspublicas/ice5/contas/2007/Arq03i_Apresentacao_004-016.pdf15 SANTOS (2003). p., 83-84.16 O Artigo 170, assegura que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humanoe na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VIII - busca do pleno emprego“. Ademais: o trabalho é requisito para configuração da função social da propriedade (Art. 186, III); e para a configuração da usucapião (Art. 191), ambos da CF/88. O trabalho também se constitui como requisito para a emancipação. No Artigo 193 da CF/88, “A ordem social tem como baseo primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. O Artigo 195, I, ‘a’, dispõe que “A seguridade social será financiada por toda a socieda-de, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho (...). O Artigo 203 da CF/88 estabelece que “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição `a seguridade social, e tem por objetivos: III) - a promoção da integração ao mercado de trabalho. No Artigo 205, da CF/88: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho“. O Artigo 214 assegura que “A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando `a articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e `a integração das ações do Poder Público que conduzam `a: IV) formação para o trabalho. Grifo nosso.

17 MUECKENBERGER, U. (s/d), “Zur Problematik eines Rechts auf Arbeit”, in Arbeitsprozess, Vergesellschaftung, Sozialverfassung. Bremen. Apud: OFFE, Claus. Trabalho: categoria- chave da sociologia? shttp://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_10/rbcs10_01. Acesso em: 17/11/2008.

18 Diversos autores dos tempos antigos traziam o trabalho num sentido de esforço, cansaço, pena, castigo e expiação. Na Índia e no Egito pré-cristão já se encontravam menções ao trabalho como expurgação. Na Grécia antiga também não se deu de maneira diversa. O cidadão romano não fazia,

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AMORIM, I. G.

3) O Direito ao Trabalho como um Direito Social

O ‘Direito ao Trabalho’ é conceito ambí-guo18 e indeterminado, apresentando dimensões que relacionam-se com todo um histórico de lutas por melhores condições sociais e de vida, recaindo pois sobre todas as esferas que reco-brem a pessoa humana. Sendo assim, o direito ao trabalho acaba por relacionar-se com o próprio ‘Direito do Trabalho’, com todo o sistema de Seguridade Social (que envolve a Assistência Social, a Previdência Social e o Sistema Único de Saúde), com a Ordem Econômica, Social, além de outros igualmente importantes na valorização da pessoa humana.

Da mesma maneira, o conceito apresenta uma busca pelo trabalho e por condições que garantam aos cidadãos acesso em um posto de trabalho. Esta dimensão do Estado vincula-o com políticas na busca de um pleno emprego, tendo esta última uma dimensão mais econômica que social.

Mas o tema não pode ser abordado de uma maneira simplista, eis que envolvem dimensões que relacionam-se e excluem-se entre si.

Nas palavras de BARASSI:“La giuridicitá parrebbe a prima vista piena

per quanto riguarda il diritto al lavoro nei limiti in cui questo diritto `e stato riconosciuto nella Costituzione e che questa ha voluto espressamen-te indicare. Questo limiti parrebbe determinare nel “diritto al lavoro” una natura pubblicistica: in quanto a tale diritto corrisponderebbe il dovere per lo Stato- e per gli altri enti autarchici, territo-riali nei limiti ad essi assegnati dalle norme dello Stato e dalla propria competenza - di provvedere le condizioni piú adeguate per ovviare al triste fenomeno della disoccupazione (...).”19

Para o nosso caso, com base no esboço da Comissão Especial revelado por Evaristo de Moraes Filho, o ‘direito ao trabalho’ está vin-culado com a política de emprego, com o dever social do trabalho e com a não discriminação. Assim era o esboço de previsão constitucional sobre o tema:

“Art. (...) A ordem social tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: I) direito ao trabalho que possibilite a

existência digna, mediante uma polí-tica de pleno emprego;

II) o trabalho como dever social, salvo

mas ordenava aos escravos ou estrangeiros para que o fizessem. Com o surgimento do cristianismo, podemos pensar Jesus e seu Pai como a repre-sentação do trabalho, encontrada em diversas passagens. Por volta de 1748, Montesquieu proclamava que ‘um homem não é pobre pelo fato de nada possuir, mas sim porque não trabalhe” Mesma linha encontramos o posicionamento de Locke. Com estas mudanças no perfil, o trabalho seria assim (não mais um castigo), mas a causa da riqueza, da prosperidade do homem e, na ótica que pretende encontrar êxito no patrimônio, na relação de propriedade. Em 1819, Charles Fourier começava a proclamar assuntos de interesse dos trabalhadores. Na Franca, em Lion, recordamos de frases como’viver livre trabalhando ou morrer combatendo’. O cantão suíço de Valud, em 1830, erigiu a posição de garantia legal do direito ao trabalho e, em 1845, quando o Parlamento radical ascendeu ao poder, o parlamentar Druey logrou do Conselho do Cantão a aprovação do dispositivo. Três anos mais tarde, a França, em trabalho de elaboração constitucional, não admitiu a inclusão do preceito do direito ao trabalho no texto constitucional. A própria Suíça não conseguiu elevar o direito ao trabalho ao status de constitucional, quando o projeto de Emenda Constitucional proposto por Émile Frey foi rejeitado por 75% do eleitorado. Com isso, cabe registrar o conteúdo de norma programática do direito ao trabalho, quando da criação do Seguro Social obrigatório na Alemanha de Bismarck. Na Carta del Lavoro de abril de 1927, o trabalho, em qualquer de suas formas, era um dever social e, somente sob este titulo deveria ser tutelado pelo Estado. Em março de 1938, nas vésperas da 2a Grande Guerra e durante a Guerra Civil Espanhola, na mesma linha fascista, o Fuero del Trabajo assegurava que todos os espanhóis tem direito ao trabalho. A partir de meados de 1945, o Brasil, a Itália e diversas outras Constituições incluem o direito ao trabalho em nível Constitucional. AMORIM E SOUZA (1985). p., 13-16.

19 BARASSI (1949). p., 4-5. Paolo Biscaretti di Ruffia (Diritto Costituzionale), estudando a Constituição Italiana de 1.947, afirma a respeito do direito ao trabalho que o art. 4o.o reconhece, ainda que com um caráter essencialmente programático, no parágrafo 1o. “A República reconhece a todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições que tornam efetivo este direito”. E no parágrafo 2o estabelece o dever do trabalho. Além disso, é oportuno integrar o artigo 4o. com o significativo enunciado do parágrafo 1o. do artigo 1o. da Constituição, que reza: “A Itália é uma República Democrática fundada sobre o trabalho”. A Constituição Soviética, nesta linha, enumera o direito ao trabalho, mas não devemos olvidar que o valor aí predominante é o espírito comunitário e que os deveres enumerados têm conseqüências práticas muito definidas, sendo sintomático que o dever de trabalhar, como serviço à comunidade, apareça dezoito anos antes do direito ao trabalho. LIMA, Fernando Machado da Silva. Direito ao Trabalho. http://www.profpito.com/direitoaotrabalho.html. Acesso em: 12/11/2008.

20 SÜSSEKIND sugeriu a seguinte redação do primeiro inciso: I) direito ao trabalho, mediante política de pleno emprego”. Quanto aos outros dois, fundiriam -se num só. SÜSSEKIND. Op. Cit. 57-58. Nesta linha, observamos o direito ao trabalho como um princípio constitucional.

21 O Artigo 6° da CF/88, dispõe que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção ‘a maternidade e ‘a infância, a assistência aos desamparados.

22 A Lei 10257/2001, por sua vez, dispõe em seu artigo 2o que: “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I)garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o

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CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

razões de idade, doença ou invalidez;III) igualdade de oportunidades na escolha

da profissão ou gênero de trabalho.”20

Nos dias de hoje, o direito ao trabalho aparece como um direito social no artigo 6o da CF/8821, e também como uma diretriz22 para ordenar o desenvolvimento da política urbana no desenvolvimento das funções sociais da cidade e propriedade urbana. É também um ‘valor social’, conforme prevê o artigo 1o, inc. IV da CF/88.

O direito ao trabalho, enquanto previsto na Constituição, não impõe o dever de se garantir emprego para todos, mas se refere à possibili-dade de se exercer licitamente a atividade. Por outro lado, o direito ao trabalho enquanto direito social, se espalha por todos os incisos do artigo 7o da CF/88. E é justamente por tal motivo que não existe um direito subjetivo em se exigir uma prestação na obtenção do emprego, justamente pela possibilidade em se exigir um seguro- de-semprego. Segundo SANTOS, a solução para essa problemática estaria na classificação dos princípios dada por DWORKIN.23

Além disso, o direito ao trabalho não es-tabelece uma obrigação do Estado em arrumar trabalho para todos os que estejam desocupados, mas deve assumir um compromisso de empregar recursos para proporcionar ocupação aos que dela careçam. De outra maneira, a declaração do trabalho como dever social não implica

num reconhecimento da obrigatoriedade do trabalho.24

Sendo assim, proteger o desempregado é uma evidência do valor social do trabalho, que demonstra que o trabalho e a dignidade são valo-res indissociáveis, onde a atuação do primado do trabalho na Ordem Social é substrato dos direitos sociais. Sendo os objetivos da Ordem Social o bem- estar e a justiça social, notemos que ambos inexistiriam sem o trabalho.

No preâmbulo constitucional, observamos ainda que o bem- estar e a justiça aparece como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, ao lado dos direitos sociais e indivi-duais, sendo a sociedade justa, livre e solidária um objetivo da República (artigo 3o, inc. I e IV, da CF/88). O que ocorre, é que existe um entrelaçamento dos direitos sociais com os fun-damentos e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, e com os princípios que regem as relações do Estado com os membros da comunidade internacional.25

Num âmbito internacional, o direito ao trabalho é retratado no artigo 23, inciso I, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando diz que “toda a pessoa tem direito ao trabalho, `a livre escolha do trabalho, a condi-ções eqüitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”.26 Já a Declaração da Filadélfia, referia-se ao “emprego integral

direito ‘a terra urbana, ‘a moradia, ao saneamento ambiental, ‘a infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Ainda nessa linha legislativa, no tocante ao direito ao trabalho, pensemos no seguinte: direito ao trabalho dos indivíduos portadores de deficiências e dos indivíduos soropositivos; na Lei 9956/00 e Lei 9799/99 que proíbe as bombas de auto-serviço nos postos de gasolina; no PL 4244/04 que busca uma regulamentação dos profissionais do sexo; Decreto-Lei 3688/41, em seu art. 59, que dispõe sobre a contravenção de vadiagem.

23 SANTOS. Op. Cit. p., 90-93.24 A Constituição da Guatemala de 1945 coloca, em seu artigo 55, que “ o trabalho é um direito do indivíduo e uma obrigação social. A ociosidade

é punível”. A Constituição italiana, comentando PERSOLESI, diz que o dever de trabalhar é um dever de natureza moral e política, pois não é acompanhada de uma sanção. MENEZES. Op. Cit. p., 56.

25 Assim, bem- estar e justiça sociais não seriam princípios, mas diretrizes (objetivos) que a CF/88 quer ver atingidos com a implementação dos direitos sociais, o que somente ocorreria com o trabalho. O primado do trabalho, conjugado com os objetivos da Ordem Social, dá o desfecho ‘a questão social, na forma desejada pelo Constituinte de 1988, respeitando a dignidade humana. Com efeito, seriam esses objetivos as diretrizes para o legislador infraconstitucional e o intérprete da lei. Por fim, o conceito de justiça social se observa como um dos objetivos da ordem social, já mencionando o Preâmbulo acerca dessa questão. Não menos importante, são alguns dispositivos constitucionais que apontam para o conceito de justiça social: o artigo 1o, no Título I, dos Princípios Fundamentais; o artigo 3o que enumera os fundamentos da República; o artigo 4o no âmbito de suas relações internacionais; o Título II, Capítulo I, que enumera o rol dos direitos individuais e coletivos; o artigo 6o e 7o da CF/88 e ainda os artigos que trata da Ordem Econômica e Financeira (arts. 170-192). Por sua vez, a efetivação dos direitos sociais teria seu modus operandi estabelecido constitucionalmente por meio de seu desenvolvimento (fundado na solidariedade social) para se chegar ‘a justiça social. SANTOS. Op.Cit. p., 92-94; 127-137.

26 Na perspectiva internacional do direito ao trabalho, vide: Artigo 6.º, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Artigo 1o da Convenção 122 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); Artigo 1o da Carta Social Européia; Pacto dos Direitos Civis e Políticos; a Convenção sobre os Direitos das Crianças; a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migratórios e seus Familiares; o Pacto de São José da Costa Rica e diversos outros que expressamente tratam do direito ao trabalho.

27 SÜSSEKIND. Op. Cit. p., 59. Para o autor, o ideal seria se a Constituição dispusesse de um artigo que tratasse especificamente dos princípios,

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AMORIM, I. G.

para todos” (Item III), visando acabar com o desemprego e o sub-emprego, e a “dar a cada trabalhador uma ocupação na qual ele tenha a satisfação de utilizar, plenamente, sua habilidade e seus conhecimentos e de contribuir para o bem geral” (Item III, b). E sobre o prisma constitu-cional, o direito ao trabalho se dirige para todas as pessoas (especialmente ao Estado), possuindo caráter jurídico público e obrigando o Estado a preocupar-se, na medida do possível, com a criação de novas oportunidades de trabalho.27

Com fundamento neste artigo da Declara-ção dos Direitos Humanos, o direito ao trabalho apresenta quatro aspectos diversos, sendo eles o direito ao trabalho em si; à livre escolha do emprego; condições justas e favoráveis; e pro-teção contra o desemprego.28 Assim, o direito humano ao trabalho concebido como direito subjetivo, não pode ser interpretado como um direito a determinado posto de trabalho, o que seria incompatível com o regime democrático de direito. Relaciona-se sim, com um direito a pos-suir oportunidades de emprego. Sendo assim, o Estado só poderia dispor de um posto de trabalho para cada indivíduo em um sistema econômico totalitário e de direção centralizada.29

Com efeito, direito ao trabalho e pleno em-prego são conceitos relacionados entre si, sendo o direito ao trabalho uma referência à aquisição ou conservação de uma ocupação remunerada por parte dos que possuem capacidade de tra-balho. Assim, reforça no âmbito do emprego o direito à não discriminação, e proporciona apoio constitucional às normas de fomento ao trabalho.30

O texto argentino, ao abordar do direito ao trabalho, se mostra mais como um direito (que uma obrigação), de tal forma que é lícito

ao cidadão não trabalhar. Neste sentido, recor-demos de algumas Constituições mencionadas anteriormente, que inclui o trabalho como um ‘dever social’ ou ‘obrigação social’.31

Noutra perspectiva, temos a definição de direito ao trabalho, onde:

“Le devoir de travailler et le droit d’obtenir un emploi proclamés par le préambule cons-titutionnel fondent en fait le droit `a l’emploi, l’emploi étant le travail saise dans sa durée. Il ne s’agit pas, selon le Conseil constitutionnel, d’un droit subjectif ‘il appartient ̀ a la loi de poser des régles propres `a assurer au mieux le droit pour chacun d’obtenir emploi’. La recherche du plein emploi correspond donc ̀ a un ‘droit collectif’’, ̀ a une “mission constitutionnelle de service public”. Dans un rapport sur les ‘politiques de l’emploi dans une économie mondialisée (...)”.32

Na doutrina espanhola, o direito ao trabalho aparece como conseqüência de um dever social. Mas se existe o dever de trabalhar, há que ter um direito de trabalhar, necessário para poder cumprir esse dever. Sendo assim, o direito ao trabalho é uma necessidade social, mas é tam-bém, dentro das relações sociais, uma expressão de justiça. Responde a um reconhecimento de uma necessidade sentida universalmente. Na doutrina constitucional, vincula-se com as rea-lizações práticas dos planos Beveridge e Zipfel, que tendem a converter o direito ao trabalho na política de pleno emprego.33

De qualquer maneira, o direito ao trabalho, ainda num sentido constitucional, se dirige à tota-lidade das pessoas e, principalmente, ao Estado, possuindo caráter jurídico público e obrigando o Estado a preocupar-se (dentro do possível) com a criação das oportunidades de trabalho.34 Sendo assim, direito ao trabalho, que também é

outro das normas programáticas, e outros das normas de eficácia plena e imediata. Estas últimas configurariam diretos subjetivos do trabalhador, passíveis de serem assegurados pelo Poder Judiciário. Idem. p., 68. Ver ainda: SIMONSEN (1948).

28 SANTOS. Op. Cit. p., 88. No que concerne estas normas internacionais, não é demais lembrarmos que a Parte XIII do Tratado de Versalhes, que consignou em partes alguns desses direitos, foi posteriormente ratificada e ampliada na Declaração da Filadélfia, na Carta das Nações Unidas e na Declaração dos Direitos Humanos, como também em outras editadas posteriormente.

29 ARANGO (2001). p., 151-152.30 VALVERDE; MURCIA; GUTIERREZ (1998). p., 147.31 GRONDA. [s.d] p., 64.32 BONNECHERE. (1997) p., 19.33 A Carta da Nação Argentina de 1947, previa o direito de trabalhar, onde: “O trabalho é o meio indispensável para satisfazer as necessidades

espirituais e materiais do indivíduo e da comunidade, a causa de todas as conquistas da civilização e o fundamento da prosperidade geral; daí que o direito de trabalhar deve ser protegido pela sociedade, considerando-o com a dignidade que merece e prevendo-se ocupação a quem dele necessite”. TALLERIA (1952) p., 81-88.

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entendido como o direito a trabalhar, são atribu-tos constitutivos da pessoa humana, sendo ainda um dos fundamentos da ordem social, sendo que deriva deste fato uma obrigação em se combater a desocupação, que exige a intervenção do Esta-do e uma cooperação econômica, ainda que no plano internacional.35

4) O Direito ao Trabalho como um direito fundamental

Partindo-se da evolução do constituciona-lismo e da conseqüente positivação dos direitos humanos, o tema acaba por vincular-se aos direitos fundamentais.

Coube à Constituição mexicana abrigar, pela primeira36 vez numa normatização es-pecífica, a matéria pertinente ‘a ordem social e econômica, que acabou por influenciar o constitucionalismo do século XX. Dela partiu a elaboração concebida doutrinariamente como Constituição Social e Econômica. A noção de Constituição Econômica, associada com a noção

de Constituição Social ou do Trabalho, baseou-se em dois pilares: a) a idéia da Constituição como instrumento normativo, pois cuida da matéria econômica, que determina a relação capital/tra-balho; b) a idéia de que o trabalho é tido como expressão maior da dinâmica do homem em sua convivência sociopolítica. A absorção de tais conceitos e de sua prática constitucional, deter-minou que matérias pertinentes ‘a ordem social e econômica fossem integrados nos preceitos constitucionais de diversos Estados.37

Com efeito, a dimensão social do constitu-cionalismo advém do século XX, com a decor-rência da Constituição Mexicana (proclamando com pioneirismo alguns direitos concernentes aos trabalhadores); a de Weimar e com a Revo-lução Russa e sua declaração de direitos.38

Assim, se pensarmos o conceito de ci-dadania partindo-se da ótica brasileira de seu desenvolvimento, devemos entendê-la como diretamente relacionado ao estudo histórico da evolução constitucional, em que pese a atual positivação dos direitos sociais, econômicos e culturais.39

34 AMORIM E SOUZA. Op. Cit. p., 17. Não podemos encarar o direito ao trabalho apenas como uma representação do combate ao desemprego, pois isto representa uma visão parcial do problema. Assim, não se torna justo nem razoável que a sociedade responda, a cada passo, pelo insucesso (ainda que ocasional) da empresa, quando não é essa comunidade a imediata destinatária do lucro; e não se deve, mesmo, cogitar de impor ao Estado tal ônus, porque é evidente que o Estado também é a comunidade. Idem. p., 21-22.

35 RUBINSTEIN (1984). p., 15-16. Numa perspectiva diversa, há quem considere o direito ao trabalho como um atentado contra as noções de justiça. Sendo assim, o direito ao trabalho seria um meio e uma conseqüência, constituindo-se como uma utopia do comunismo. Para FERRAN, o direito ao trabalho como um atributo daqueles que pensem ser tal direito como uma ajuda aos desvalidos e como um ato humanitário, por virtude de uma assistência pública, figura uma grande e flagrante injustiça, sendo tal realização um absurdo e uma impossível formula dentro de qualquer outra fórmula que comunistas e socialistas tenham proposto. Prova disso e de ‘ter chamado o direito ao trabalho de direito de assistência, irmão gêmeo e precursor do direito ao trabalho’,são os debates que tomam forma em relação ao assunto. Manifestando-se veemente contrario ao direito ao trabalho, FERRAN denomina o direito ao trabalho como sendo um direito de trabalhar com os frutos provenientes da propriedade alheia, o que considera como uma forma vergonhosa de comunismo. Sendo assim, o direito ao trabalho é uma injustiça, entendido também falsamente como um direito. FERREN (1812). p., 43-59.

36 A primeira Constituição que inseriu direitos importantes para os trabalhadores foi a Suíça (1874), posteriormente emendada em 1896. A Consti-tuição Francesa de 1848 já previa o direito ao trabalho, mas teve curtíssima duração. E embora a Declaração de Direitos da França de 1793 não cogitasse direitos sociais específicos para o trabalhador, foi a Constituição mexicana de 1917 a que efetivamente armou significativo quadro de direitos sociais do trabalhador, posteriormente repetidos por muitos dos países da América Latina. Para a Constitucionalização dos direitos sociais, os passos mais relevantes foram o Tratado de Versalhes e a Constituição de Weimar (que consagrou a denominada democracia social, mesmo que ‘democracia’ fosse compreendida pouco mais tarde). No Brasil, depois da Revolução de 30 todas as Constituições brasileiras dispuseram sobre direitos dos trabalhadores. Assim, os direitos devem ser assegurados pelo Estado a fim de se dar eficácia imediata para as normas consagradoras de direito público subjetivo ao trabalhador. SÜSSEKIND. Op. Cit p., 14-16; 34-35.

37 ROCHA (2001). p., 16-17. Uma das matrizes fundamentais encampadas pelo Constituinte, é o decidido engajamento do Estado brasileiro em um compromisso de realização de democracia social, indicados nos ‘fundamentos’ da República (tais como cidadania e dignidade da pessoa humana), e sobretudo nos ‘objetivos fundamentais’, bem como na enunciação da idéia de governo da atividade econômica, ou seja, a ‘valorização do trabalho humano’ a fim de se assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, em conformidade aos princípios, dentre os quais o da ‘redução das desigualdades sociais e regionais’ e a ‘busca do pleno emprego’. MELLO (2001) p., 35-37. Para DALLARI, a Constituição pro-curou assegurar o uso e a defesa dos direitos fundamentais, estabelecendo dispositivos importantes (tais como os parágrafos do artigo 5oda CF/88), observada a questão da aplicabilidade das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais na Constituição. DALLARI (2001) p., 62-63.

38 No sentido do proletariado como uma força política, o autor trabalha com os marcos da declaração solene de direitos sociais, ao lado dos direitos individuais. Assim, são marcos da declaração solene de direitos: a Proclamação das Quatro Liberdades, de Roosevelt (1941); a Declaração das Nações Unidas (Washington, 1942); as conclusões da Conferência de Moscou (1943); as conclusões da Conferência de Dumbarton Oaks (1944); as conclusões da Conferência de São Francisco (1945); e finalmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Ademais, a dimensão ‘social’ da democracia marcou o primeiro salto na conceituação dos ‘direitos humanos’ e no significado prático da ‘cidadania’. HERKENHOFF (2004). p., 47-49. Idem. p., 42.

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Nesta linha do direito ao trabalho como parte integrante dos direitos humanos, tem-se que tal direito se encontra enraizado no próprio direito de viver, pois a pessoa humana ser inteli-gente, livre e responsável, se realiza mediante o trabalho. Sendo assim, o direito ao trabalho é um direito próprio da pessoa humana, pois permite a pessoa humana desenvolver-se em todas as suas dimensões. E em sua vinculação com o Estado, não cabe ao Estado procurar diretamente trabalho para todos os desocupados conforme entendem alguns, porque se obrigará ao Estado a procu-rar obrigatoriamente trabalho a seus membros com uma ingerência absoluta, o que somente seria possível com um Estado totalitário, que é contrário a liberdade, eis que a pessoa humana dependeria completamente do Estado.40

Apresentada algumas considerações sobre os diversos entendimentos acerca do direito ao trabalho, existe autores que entendem a temáti-ca como um direito natural. Ou ainda, entende o tema como sendo um principio geral de que o trabalho não é apenas um dever como uma afirmação teológica e filosófica. Sendo assim, o direito ao trabalho trata-se de um direito natural como conseqüência de um dever que está em

função do fundamento que se denota a este dever, porque se trata de um direito natural derivado de outros direitos naturais primários.41

Ainda no que se refere aos longos debates doutrinários em relação ao tema, pertinentes são as palavras de SASTRE-IBARRECHE sobre todo o desenvolvimento em relação ao tema. Para o autor, tal direito ao trabalho manifesta-se como primeiro direito social historicamente reivindicado e de elemento em torno do qual se desencadeia um importante debate entre o pensamento liberal e socialista.42

No tocante aos direitos fundamentais, temos que são eles construções integradas ao patrimônio comum da humanidade, resultantes do processo de constitucionalização (iniciado no final do século XVIII) dos denominados direitos naturais do homem, passando a ser objeto de reconhecimento também, na seara internacional, representado sobretudo com a Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos, de 1948.43

Conforme GOMES, o direito ao trabalho é um direito social fundamental. E enquanto tal, embora diretamente relacionado com o princípio da dignidade da pessoa humana, não se pode

39 Devemos pensar com isso nas Constituições outorgadas (de 1824, 1937 e 1967) e nas promulgadas (de 1891, 1934, 1946 e na atual, de 1988), o que inclui o desenvolvimento do constitucionalismo brasileiro que acabou por culminar nas normas de proteção e valorização do trabalho, incluindo os avanços e retrocessos em relação a cidadania. Idem. p., 63-107.

40 Dentro desta ótica, a missão do Estado enquanto guardião do bem comum é o de estabelecer instituições favoráveis ao desenvolvimento da coletividade, fomentando a criação de fontes de trabalho e impulsionando as que já existam, organizando a sociedade de maneira mais propicia para o trabalho. Com isso, o autor apresentaros precedentes de tais debates através do informe redigido por Beveridge. SOBREVILLA (1960). p., 53-64.

41 Com efeito, o direito natural ao trabalho apóia sua derivação em outros direitos naturais, tais como o direito a conservação da vida, o direito ao acesso a propriedade e o direito a instituição da família. Trata-se de assim de um direito à existência e um direito ao domínio. Em resumo, o direito ao trabalho fundamenta sua naturalidade em ser o trabalho uma integração vital do homem e da natureza, do criador e da criatura, do espírito e suas potencias. Por isso que, em uma sistemática dos direitos naturais,

o direito natural ao trabalho deve ser situado depois do direito a vida, do direito a propriedade, ao matrimonio, a família e a sucessão, que se apóiam em ordem ontológicas e anteriores a humanidade. MUÑUZ (1962). p., 24-30.

42 Assim, SASTRE-IBARRECHE situa o direito ao trabalho a partir do último terço do século XVIII, coincidindo com a troca fundamental que se produze na concepção e valorização do trabalho. John Locke, com efeito, formula uma das primeiras reivindicações modernas em relação ao tema, enquanto principio do valor e da propriedade. No mesmo século, tais idéias são retomadas por Montesquieu e Rousseau. Dado que a relação de conflito entre o direito ao trabalho e a liberdade de trabalhar consistira, com efeito, a primeira das confrontações entre liberais e socialistas, convém destacar que embriões do instrumento normativo ao direito ao trabalho recai sobre o Edito de Turgot de 1776 e da Lei Chapelier, de 1791. Sobre tais precedentes, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, assinalou pontos de referencia em relação aos direitos fundamen-tais. A partir de tal momento, o direito ao trabalho se reconhece enquanto extremamente importante a partir de 1848. Nesta questão, se constitui enquanto extensão destes debates o que Fichte utiliza de argumentos parecidos com os colocados por Locke e pelos revolucionários franceses do século XVIII, para deduzir sobre a base de um direito a propriedade privada que sustenta a propriedade adquirida pelo trabalho, a existência de um direito ao trabalho e de um direito de assistência, nos moldes de que tratou Hegel. Ademais, nomes como o de Fourier, Considerant, Proudhon e Blanc resultam como chaves para o tema em questão. Fourier tem sido considerado o precursor do direito ao trabalho. A argumentação do discípulo de Fourier, Considerant, recorre novamente a idéia de necessária legitimação da propriedade privada pelo trabalho, vendo ainda uma espécie de reconhecimento de indenização para os proprietários de terra. Em contrario, Proudhon pensa o direito ao trabalho como uma serie de defeitos a fim de justificar uma posição contraria a seu reconhecimento, qualificando como indigno condenar o trabalhador para sempre ao trabalho. Em resumo, tanto socialistas como republicanos moderados coincidem em colocar o direito a vida como principio que legitima os direitos sociais, ainda que entendam diferentemente a forma de compreensão da vida e do trabalho. SASTRE-IBARRECHE. (1996) p., 23-32.

43 SARLET (1999). p., 129-130. Os direitos humanos e os direitos fundamentais compartilham de uma fundamentalidade (ao menos no aspecto material), pois ambos se referem ao reconhecimento e proteção de certos valores e bens jurídicos, além de reivindicações essenciais aos seres humanos em geral ou de determinado Estado. Assim, a denominação de direitos fundamentais sociais encontra sua razão na circunstância, comum aos direitos sociais de defesa e aos direitos sociais prestacionais, de que todos consideram o ser humano na sua concreta situação na ordem social,

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reduzir a dignidade humana ‘a noção de trabalho sob a pena de se considerar menos digna a pessoa que não trabalha.44 Não obstante, é o direito ao trabalho um direito fundamental, pois através dele que se vai obter a seguridade social e, com isto, o direito ‘a saúde, previdência, etc.45

5) Direito (Fundamental) ao Trabalho (Digno)46

A Doutrina Social da Igreja, desde a Encíclica Rerum Novarum contribuiu para a compreensão dos direitos sociais. Tal Encíclica valorizou o trabalho e o homem. Quarenta anos depois, com a Encíclica Quadragésimo Anno (1931), Pio XI demonstrou a preocupação da Igreja com a questão social. A questão social des-crita na primeira das Encíclicas retrata a história dos direitos sociais como a luta contra a miséria do operariado. Por sua vez, na comemoração dos noventa anos da Encíclica, o Papa João Paulo II editou a Carta Encíclica Laborem Exercens, que trata do trabalho humano. E neste linha, com o trabalho é que se concretizaria a dignidade da pessoa humana.47

Com efeito, a Doutrina Social da Igreja aponta o trabalho nos sentidos objetivo (em que a submissão da terra se dá no trabalho e mediante o trabalho do homem), e subjetivo, pois é enquanto pessoa que o homem é sujeito do trabalho, con-ferindo uma dignidade ao trabalho. A finalidade do trabalho é a dignidade humana, pois somente por meio do trabalho é que se pode efetivar sua realização como pessoa e contribuir com o pro-gresso dos demais integrantes do grupo social.48

No âmbito do direito positivo, da previdên-cia social por exemplo, a proteção é limitada sub-

jetivamente, não existindo um critério pelo qual se opere tal limitação. Mas recordemo-nos que o artigo 193 da CF/88 estabelece que o trabalho é a base da ordem social. No que se refere ‘as contingências (art. 201, CF) revela-nos que todas elas estão relacionadas ‘a capacidade laborativa dos que vivem do próprio trabalho (ou de fami-liares ou dependentes). Nesse sentido, exercer o trabalho é um critério básico de admissão ao sistema previdenciário. Também, a remuneração auferida em contraprestação ao trabalho, dá ao trabalhador condição econômica de participar do custeio das prestações que irão protegê-lo.49

Sendo assim, o valor trabalho vincula-se com as demais dimensões dos direitos sociais. O trabalho permite a superação de algumas con-tingências sociais. Sua não superação envolve ações positivas assistenciais do Estado para ensejar uma condição de vida digna aos que não trabalham.

Por outro lado, o Estado deve promover políticas que assegurem o pleno emprego e a liberdade de escolha de um trabalho digno (nesta perspectiva poderíamos relevar muitas das leis que protegem a saúde e segurança do trabalha-dor, e não um posto de trabalho em si). Sendo assim, lembremo-nos que a possibilidade de um seguro-desemprego reconhece a impossibilidade fática em não se garantir um posto de trabalho para todos os cidadãos.

Ademais, o trabalho também auxilia no sustento das políticas de seguridade social. As-sim, o valor trabalho permeia toda a estrutura da ‘Constituição Cidadã’, recaindo sobre o princípio da dignidade da pessoa humana.

Enquanto tal, deve-se assegurar uma condi-ção de vida digna aos trabalhadores e nos locais

objetivando a garantia de uma igualdade e liberdade material, por meio de prestações materiais e normativas, e por meio de proteção e manutenção do equilíbrio de forças no âmbito das relações de trabalho. Idem. p., 139; 149. Há que observar ainda o caráter necessariamente relativo da proibição de retrocesso nos direitos sociais, ilustrado, dentre outros aspectos, pela irredutibilidade salarial. Ver: SARLET (2006) p., 291-335.

44 GOMES (2008). p., 61. No que concerne a dignidade da pessoa humana enquanto um valor e um conceito constitucional, ver densa obra de: BARTOLOMEI (1987).

45 MELLO, Celso de. A Proteção dos Direitos Humanos Sociais nas Nações Unidas. In.: GOMES. Op. Cit. p., 67.46 Numa perspectiva filosófica do direito fundamental ao trabalho digno, vide: DELGADO (2006). 47 SANTOS. Op. Cit. 84-87.48 Idem. p., 86-87. Existe o entendimento de que o conceito de trabalho fora incorporada ao Direito Social brasileiro, na Constituição de 1937, com

base na Doutrina de Leão XIII. Quanto ao assunto, ver: ASHCAR [s.d]. p., 48.49 O critério essencial de filiação prévia ao sistema previdenciário consiste no exercício do trabalho. Tal sistema visa atender duas necessidades:

a) conservação e criação de condições favoráveis para o trabalho e; b) a viabilidade econômica do sistema, já que se presume que o trabalhador pode contribuir. Por outro lado, uma filiação facultativa implica numa exceção, pois visa proteger o trabalhador e seus dependentes. O trabalho,

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de trabalho. A Constituição por exemplo, seguin-do diretrizes internacionais, prevê a existência de um meio ambiente do trabalho50.

Não obstante, a Constituição do Estado de São Paulo prevê a possibilidade de se inter-romper as atividades, sem prejuízo dos salários, quando os trabalhadores estiverem em condi-ções de risco nos locais de trabalho.51 Não por mera coincidência, o artigo 3o da Lei 8080/90 aponta o trabalho (dentre outros) como fator determinante e condicionante da saúde.52 Ao referir a promoção, recuperação e proteção da saúde, a Constituição adota o conceito amplo de saúde, “reconhecendo não só a perspectiva de pretensão a um corpo e uma mente sem doenças, como também a condições de vida e a um meio ambiente equilibrado”53. E dentro do conceito de meio ambiente, insere-se o conceito de meio ambiente do trabalho.

6) Eficácia e Aplicabilidade do Direito ao Trabalho

Primeiramente, cumpre ressaltar que efi-cácia e aplicabilidade são fenômenos conexos, sendo a eficácia encarada como uma potencia-lidade (possibilidade em se gerar efeitos jurídi-cos), e a aplicabilidade, por sua vez, vincula-se com a realizabilidade, razão pela qual eficácia e aplicabilidade podem ser vistas dentro de uma

mesma ótica, uma vez que apenas norma vigente será eficaz por ser aplicável e na medida de sua aplicabilidade.

Destarte, a problemática recai sobre as maneiras de interpretação do conteúdo e natureza das normas constitucionais (o que incide sobre a efetividade e aplicabilidade, ou eficácia), e de outra maneira, também pode ser analisada partindo-se de algumas técnicas positivação dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Em recente obra, CANOTILHO aponta para as técnicas de positivação constitucional dos direitos econômicos, sociais e culturais sustentando que as técnicas de positivação des-ses direitos a prestações constitui uma ‘eleição racional’ de ‘enunciados semânticos’ ou ‘ditos constitucionais’, sendo ela feita tanto por cons-tituintes espanhóis como portugueses.54

Nesta perspectiva, observamos que as maiores críticas que incidem sobre o debate acerca do conteúdo normativo constitucional referem-se, mesmo que por via reflexa, sobre as técnicas de positivação e natureza das normas da Constituição.55

Ao tratar do problema dos Direitos Funda-mentais Sociais na CF/88, MORO observa que o Constituinte fez a opção no sentido de outorgar aos direitos sociais o caráter de fundamentais, se-guindo tendência no plano internacional, como se vê no Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais

assim, resulta importante para a superação das contingências sociais, ao menosalgumas delas. A manutenção dos mínimos de condições de vida ao trabalhador é o que se busca cumprir com o sistema previdenciário, em contraposição ao mecanismo assistencial de garantias a quaisquer cidadãos. PULINO (2001). p., 36-50.

50 A doutrina classifica o meio ambiente previsto no artigo 225 da CF/88 como sendo: natural, artificial, cultural e do trabalho, conforme o conjunto de regras e normas que integram toda a dogmática jurídica. Sendo assim, dentro desta compreensão do meio ambiente nele incluímos o do trabalho. Lembremos, neste sentido, ainda que ede maneira breve, o seguinte: Art. 7o, inc. XXII CF/88, no tocante aos direitos dos trabalhadores; Art. 200, CF/88. “Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (...) VIII) colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.“ Nesta linha, recordemo-nos também da Convenção de n. 148 da OIT, que dispõe do meio ambiente do trabalho, e diversas outras Convenções da OIT que visa proteger a saúde e dar mais segurança ao trabalhador. Mas numa ótica da legislação brasileira, devemos levar em consideração também as inúmeras normas regulamentadoras (NR), instruções normativas e demais garantias de melhores condições de saúde e segurança no meio ambiente do trabalho, expressamente contidas e dispostas em legislação infraconstitucional, muitas delas acessíveis no site do Ministério do Trabalho, ou ainda os artigos constantes da CLT sobre a proteção do trabalhador.Sobre esta questão, notemos que o legislador outorgou ao Ministério do Trabalho (conforme orientação do Art. 200 da CLT), a regulamentação das questões concernentes à segurança e saúde do trabalhador, havendo com isso 32 normas regulamentadoras neste sentido.

51 Trata-se da denominada ‘greve ambiental’. Assim, prevê o Artigo 229, parágrafo 2º, da Constituição Paulista que: “Em condições de risco grave ou iminente no local de trabalho, será lícito ao empregado interromper suas atividades, sem prejuízo de quaisquer direitos, até a eliminação do risco”.

52 Acerca da saúde, temos o Artigo 3o da Lei 8080/90, que: “A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros (...), o meio ambiente, o trabalho, (...)”.

53 WEICHERT (2004). p., 124.54 A positivação se daria das seguintes formas: a) sob a forma de normas programáticas definidoras de fins e tarefas do Estado, de conteúdo social;

b) na qualidade de normas de organização, atributivas de competências para a emanação de medidas para esses planos; c)através da consagração constitucional de garantias institucionais, tal como se dá na saúde por exemplo; e d) positivação dos direitos sociais como direitos subjetivos públicos, ou seja, como direitos inerentes a existência do cidadão. CANOTILHO (2008). p., 37-38.

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e Culturais por exemplo. No entanto, ressalta o autor acerca dos questionamentos em relação ‘a capacidade e legitimidade em se tutelar judi-cialmente os direitos sociais. No que concerne ‘a ‘judiciabilidade’ dos Direitos Fundamentais Sociais, além da efetividade do direito, assume igual importância a questão institucional da proteção e efetivação dos direito fundamental.56

Na perspectiva teórica da doutrina brasilei-ra que reconhece a efetividade e força normativa da Constituição, os direitos constitucionais, e os direitos sociais em particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportan-do tutela judicial específica.57

Nesta doutrina da efetividade, de reco-nhecimento de força normativa das normas constitucionais, estas normas jurídicas (como as normas em geral), são dotadas de um atributo de imperatividade. Dessa forma, tais direitos subje-tivos (políticos, individuais, sociais ou difusos), são exigíveis do Poder Público por via de ações constitucionais e infraconstitucionais.58

Sendo assim, os direitos sociais são comu-mente identificados como aqueles que envol-vem prestações positivas por parte do Estado, motivo pelo qual demandariam investimentos de recursos nem sempre disponíveis. Estes direitos, também referidos como prestacionais,

materializam-se com a entrega de determinadas utilidades concretas, tais como a educação e a saúde.59

Dependendo das circunstâncias do caso concreto, a norma materializada a partir de um único enunciado formalizador do direito ao trabalho poderá assumir o caráter tanto de prin-cípios como o de regras. Tal noção recai pois, sob uma perspectiva pós positivista de análise.60

Ao trabalhar partindo-se das dimensões objetivas e subjetivas do direito ao trabalho, ressalta-se que a Constituição de 1988 não explicitou um dever fundamental de trabalhar. Neste aspecto, nos países em que não se pode exigir do Estado um posto de trabalho, como é o nosso caso, o dever de trabalhar assume uma dimensão ética, onde não se pode constranger alguém a trabalhar.61

Entrementes, “nem toda a obrigação jurí-dica decorrente de uma norma jurídica terá, ao seu lado, um direito subjetivo”. Sendo assim, é o titular do direito ao trabalho a pessoa humana, que poderá com o trabalho superar suas as con-tingências sociais. Sendo a pessoa humana tal titular, pode ela estar atuando como trabalhador autônomo ou subordinado, esteja ela sem qual-quer ocupação imediata.62

55 Algumas dessas críticas, ou objeções ao problema da fundamentalidade material dos direitos sociais, são de caráter: Deontológica; Institucional (‘não justiciabilidade’); Particularista (‘não fundamentabilidade’); Majoritária ou Democrática; Contratual ou de Controle (‘controlabilidade’ das ações governamentais); Funcional ou Ideológica; Pragmática; e Formal-positivista. GOMES. Op. Cit. p., 7-8.

56 Duas opções: a) limitar ‘a esfera política as conseqüências da atribuição a um direito de caráter fundamental; b) atribuir ‘a instituição o poder de garantidor de direito fundamental, independentemente da maioria política. Não obstante, a jurisdição constitucional representa garantia institucional superior ao direito fundamental. Embora pareça contraditório se falar em direitos fundamentais destituídos de proteção institucional contra a maioria política, não há, em realidade, uma vinculação semântica necessária entre fundamentalidade e jurisdição constitucional. Trata-se de uma opção política que se fundamenta na oposição entre democracia e direitos fundamentais. A oposição é agravada pela questão institucional quando a guarda dos direitos fundamentais é atribuída a órgãos independentes da maioria política, como é o caso da jurisdição constitucional. Com efeito, a CF/88 optou pela jurisdição constitucional adotando um sistema de controle de constitucionalidade que mesclou características do modelo norte- americano e do modelo europeu. Com isso, pode-se entender a tarefa atribuída ao Judiciário de proteção e efetivação dos direitos fundamentais sociais. Em relação a atuação judicial em prol dos direitos fundamentais sociais, existem basicamente duas perspectivas: 1) no tocante ‘a inexistência de lei, é passível a efetivação judicial; 2)existindo lei (direitos sociais), se exige do juiz constitucional a consideração de tais estruturas como relacionadas aos direitos fundamentais. Assim, as ações coletivas são o meio mais adequado para uma avaliação de política pública destinada a proteção e efetivação dos direitos sociais fundamentais. Em conclusão, os direitos fundamentais sociais (além de merecida qualificação) são passíveis de proteção e efetivação judicial, com amplas perspectivas de atuação do Judiciário. MORO (2006). p., 269-292.

57 BARROSO (2008). p., 221-222. 58 Idem. p., 223-224.59 Reconhece-se a necessidade em se elaborar novas formulações doutrinárias de base pós-positivista, que abrigue debates como: a colisão entre

normas; a ponderação de princípios; mínimo existencial e fundamentalidade material dos direitos. De toda sorte, o autor utiliza-se de uma meto-dologia positivista (eis que Direito Constitucional é norma); e de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos, pois ‘se está na Constituição é para ser cumprido’. BARROSO. Op. Cit. p., 223-224.

60 GOMES. Op. Cit. p., 89.61 Idem. p., 117. O direito ao trabalho não pode concretizar-se contra a liberdade de trabalho e profissão, não podendo o Estado impedir ou impor

determinada atividade sob o pretexto da realização do direito ao trabalho. In: MIRANDA, J. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV, p., 498. Apud: GOMES. Op. Cit. p., 120.

62 O conceito de titularidade congrega ainda a capacidade para o seu exercício. Quanto ao destinatário, além do Estado passou-se a cogitar também a possibilidade de aplicação no âmbito privado. Sobre esta possibilidade, as teorias são divergentes (Vieira de Andrade, por um lado; NIPPERDAY

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No mais, os direitos sociais não podem ser protegidos como pretensões justiciáveis, ou seja, como demandas cuja satisfação possa ser exigida perante órgão competente. Nesta linha, recorda o que ALEXY denomina de ‘justiciabilidade deficiente’. Estes direitos, por sua vez, possuem um conteúdo geral que não pode (na maioria das vezes), se deduzir pretensões jurídicas concretas (tarefa via Legislativo).63

Buscando superar alguns dos debates brevemente expostos, o autor parte de que não há nada nos direitos sociais que os impeça de considerá-los fonte de deveres tanto para os poderes públicos como para os particulares (ci-dadãos). Nesse sentido, acredita que a opinião dominante em torno da questão é a que considera que as normas constitucionais que recolhem ou enunciam direitos fundamentais em geral (e qui-çá os direitos sociais prestacionais, em especial),

teriam a estrutura característica dos princípios. Não obstante, existe ainda entendimentos que interpretam os direitos fundamentais (inclusive os direitos sociais) como regras.64

Partindo do debate de ALEXY acerca da distinção entre regras e princípios, RAMÍ-REZ aponta que (frente ao debate acerca da aplicabilidade das normas constitucionais), a indeterminação do conteúdo de muitos dos di-reitos fundamentais (assim como a necessidade de ponderação) atuam como fundamentos para determinar que as normas de direito fundamen-tal têm caráter de princípio. No caso de direitos prestacionais em sentido estrito (ou direitos sociais), o caráter principal das normas que constituem as disposições fundamentais adquire maior notoriedade.65 Destarte, dentre as normas constitucionais, podem algumas possuir plena e imediata eficácia; e outras devem ser discipli-

e CANARIS, em certo sentido, por outro). A identificação do destinatário, assim, se vincula com a existência (ou não) de uma relação jurídica base. No caso de uma relação jurídica abstrata, não haverá um direito subjetivo de demandar em juízo; e o destinatário jurídico implícito será sempre o Estado quanto ao seu dever de guardar este direito fundamental. Neste aspecto, defende o autor um caráter alimentar do salário, com isso passível de uma prisão civil. GOMES. Op. Cit. p., 147-170. Para CLEVE, as correntes brasileiras que pensam sobre o tema demonstram que ao Estado cabe um duplo papel, abster-se (por um lado), e por outro agir para promover as iniciativas dirigidas ‘a promoção de tais direitos, bem como os pressupostos para seu exercício. Nestes termos, o direito ao trabalho fora incluído no título adequado, constituindo-se portanto como um direito fundamental e não meras normas programa. Sendo assim, ao tratar dos direitos de defesa e dos direitos prestacionais, observa-se que estes incidem sobre os parágrafos do artigo 5o da Constituição Federal de 1988. Ademais, vincula-se o artigo 6o com os direitos fundamentais em suas dimensões objetiva e subjetiva e, ainda, numa normativa constitucional no campo da autonomia privada (eficácia horizontal dos direitos funda-mentais). Encontram-se ainda no artigo 6o da CF/88 direitos prestacionais originários (aplicáveis mesmo sem norma regulamentadora) e direitos prestacionais derivados. Nestas análises, se faz importante as ressalvas acerca do mínimo existencial em relação aos direitos sociais e acerca da proibição de retrocesso social e reserva do possível. CLEVE (2003). p., 17-29.

63 RAMIREZ (2000). Este tema se converteu numa dogmática constitucional alemã do pós guerra, num importante setor em que FORSTHOFF en-cabeçava, sustentando a não constitucionalização dos direitos sociais. Nesta linha, o Estado de Direito e Estado Social não são compatíveis (num plano constitucional), pois não se pode estender a Constituição do Estado de Direito até a garantia de previsão de existência, vez que a ‘Consti-tuição não é um supermercado onde se possam satisfazer todos os desejos’. Com isso, os direitos sociais não seriam tipos de formulações aptos para fundamentar direitos e deveres concretos. Assim, direitos sociais, como o direito ao trabalho, não se podem captar em uma norma abstrata suscetível de interpretação. FERRAJOLI, por sua vez, sustenta que o Estado Social de Direito não tem conseguido introduzir mecanismos capazes de assegurar uma satisfação dos direitos sociais. CASCAJO, prosseguindo, coloca a necessidade em se superar a tese de que a incompatibilidade de aplicação imediata dos direitos sociais constitucionais vem de sua própria indeterminação (época de Weimar). Com efeito, PRIETO contribui para a superação do positivismo teórico que considerava a impossibilidade em se falar em verdadeiras normas, onde falta um suposto fato ou uma conseqüência jurídica perfeitamente delimitada. Assim, as normas materiais da Constituição seriam em geral esquemáticas, abstratas, indetermi-nadas e elásticas, mas não por isso significaria (ou representaria) alguma dificuldade em seu caráter vinculante. BOCKENFORDE, sustenta que embora os direitos sociais não desfrutem de aplicabilidade imediata e possibilidade de ser justiciável, não significa que seriam simples proposições pragmáticas. Deles derivam deveres jurídicos- objetivos, se podendo extrair um componente jurídico- subjetivo. Idem.

64 RAMÍREZ. Op. Cit. 65 Partindo de uma perspectiva da Constituição Espanhola, RAMÍREZ sustenta não ser possível a derivação de regras com um conteúdo definitivo por

três razões: a) a indeterminação e ambigüidade das normas jusfundamentais que regulam constitucionalmente o direito ao trabalho: que partindo de SASTRE- IBARRECHE, apresenta o caráter difuso do conceito, sendo que os elementos que compõe a estrutura do direito ao trabalho (sujeito ativo e passivo; objeto e garantias de efetividade) ficam afetados pela difusão conceitual. Nessa linha, PRIETO menciona que haveria uma modalidade de direitos prestacionais denominados de “direitos propriamente ditos” que apresentam a fisionomia de direitos, tal como o direito ao trabalho. Estes ‘direitos propriamente ditos’ não seriam princípios abertos, mas regras que, ainda que imprecisas, permitiriam fundar pretensões concretas via interpretação. Ao destacar SASTRE- IBARRECHE, aponta o direito ao trabalho como uma medida de fomento de emprego e ideal de que cada pessoa possa garantir e gozar de um trabalho adequado e seguro. Em torno da idéia de regulação e interpretação dos direitos fundamentais gira a teoria defendida por RODRIGUEZ- TOUBES. Mas acerca deste primeiro item, adverte o autor que ponto de vista similar nos conduziria à uma concepção absolutista em demasia e rigorista dos direitos sociais e, em geral, dos direitos fundamentais. b) outra razão é a impossibilidade fática e jurídica do cumprimento do conteúdo máximo, cujo debate recai na distinção de ALEXY de conteúdo máximo e mínimo dos direitos sociais fundamentais, podendo-se também aplicar ao direito ao trabalho. Assim, o direito ao trabalho não atribui a seus titulares a habilitação constitucional de obter a qualquer momento um posto de trabalho adequado, pois: 1) nem o Estado e nem o sistema econômico compreendem o número suficiente de postos de trabalho para assegurar emprego para todos; e 2) num plano normativo, esta temática nos conduziria ‘a uma colisão entre direitos sociais e direitos de liberdade. Tais teses conduzem PECES- BARBA a considerar que o direito ao trabalho (entendido como o direito de reclamar

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CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO

nadas por lei ordinária. Mas ambas devem ser iluminadas por princípios consagrados, os quais representam os fundamentos básicos para a reali-zação dos postulados da justiça social e da ordem econômica. A esses princípios cabe o comando da integração das normas enunciadas, previstas ou possibilitadas ao sistema constitucional.66

Para CANOTILHO, tratar-se-ia de “uma obrigação não- relacional, no sentido de que haveria, em face deste direito, um dever não- relacional do Estado, uma obrigação ‘prima face’ garantida por normas não vinculantes”.67 É ainda um direito social fundamental. Um complexo de posições jusfundamentais, regras e princípios, que podem funcionar autonomamente.68 Assim, exceto algumas especificações, apenas cabe qua-lificar como princípios (no sentido de mandatos de otimização) e não como regras, as normas que protegem o direito ao trabalho.69 Mas o problema básico que se observa é o de força normativa da

Constituição, que só vai ser preservada onde os direitos sociais e individuais também são preser-vados, sem ceder a pressões de natureza fática e de contingência. Assim, uma vez localizados os direitos sociais e colocados como direitos fundamentais, a dinâmica de interpretação será aquela que tem por escopo a unidade político- constitucional dentro desse sistema.70

As normas de direitos fundamentais são, assim, valores que devem guiar a interpretação da Constituição. Desse modo, os enunciados do artigo 6o da CF/88 possuem densidade normativa vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana, constituindo-se como valores basilares do Estado Social e Democrático de Direito e, portanto cláusulas pétreas, cuja abolição acaba-ria por destruir a própria identidade da ordem constitucional.71

um posto de trabalho) não pode ser positivado pelo fato de não ser, realmente, direito. c) por fim, uma última razão recai sobre o caráter reflexo do conteúdo das posições subjetivas prestacionais do direito ao trabalho, em que parte da doutrina e jurisprudência defendem que o conteúdo prestacional realizável do direito ao trabalho teria um caráter débil ou diluído. Com isso, o direito ao trabalho seria (em partes) a realização do pleno emprego e sua política. Tais princípios seriam entendidos como mandato de otimização. RAMÍREZ então apresenta duas possibilidades de se inscrever o direito ao trabalho normas com a estrutura de regras: 1) naquilo que ALEXY denomina de direitos sociais mínimos e; 2) o fato de que o direito dos presos ‘a um trabalho remunerado está protegido como regra e não como mandato de otimização (artigo 25, II da Constituição Espanhola). Neste sentido, apenas os presos são legitimados a propor e reclamar ante a jurisdição ordinária tal pretensão, sendo aspecto um autêntico direito subjetivo, e constituindo-se como uma norma de princípio (mandato de otimização) e não como uma regra. Idem.

66 Auto- executável ou mesmo programática, qualquer princípio constitucional é um mandamento vinculante em suas relações concretas. Válido é mencionar ainda que o artigo 157 da Constituição de 1967, relativamente aos princípios, dispôs que a ordem econômica, com o fim de realizar a justiça social, se baseava em princípios, dentre os quais o da “valorização do trabalho humano como condição da dignidade humana” (inc. II); e da “harmonia e solidariedade entre os fatores de produção” (inc. IV). Este texto foi parcialmente modificado pela Emenda Constitucional de 1969, prescrevendo em seu artigo 160, que a ordem econômica e social teria por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos princípios mencionados anteriormente, acrescido de um sexto inciso, que previa como princípio a “expansão das oportunidades de emprego produtivo”. Nesta linha, os princípios relativos `a ordem econômica e social, em virtude dos quais a liberdade de iniciativa (cujos freios são as exigências da função social da propriedade e a necessidade de valorização do trabalho em defesa da dignidade humana), fundamentam: a intervenção básica do Estado nas relações de trabalho, legitimada pelo princípio da proteção; e pelo princípio consagrado desde o Tratado de Versalhes, onde o trabalho não pode ser considerado artigo de comércio. SÜSSEKIND, A. Op. Cit. p., 45-51.

67 CANOTILHO. (2008) p., 94.68 GOMES. Op. Cit. p., 95. Assim, corrobora com a teoria desenvolvida por Alexy, que (após análise da estrutura deôntica das normas) conclui que

elas encerram num feixe de posições jusfundamentais. Com isso, pretendeu demonstrar que um mesmo dispositivo normativo pode gerar normas diversas (com estrutura deôntica de direitos prestacionais e direitos de defesa), em consonância com os casos concretos. Tais normas, no entanto, investem o titular numa gama de posições jusfundamentais, de modo que ele pode assumir uma exigência ou uma abstenção do Estado, no sentido de que deveria o Estado fornecer condições materiais para que tal direito fosse exercido. OLSEN (2008). p., 57.

69 RAMIREZ. Op. Cit.70 CORREIA toma como base o estudo da segurança social. Nesta linha, a interpretação deve-se fazer via perspectiva onde os direitos sociais são

fundamentais. Portanto, ao lado dos direitos individuais fundamentais existem os direitos fundamentais sociais, e a estes aplicam-se a metodologia de dicção e interpretação do direito, que é aplicável aos primeiros, no sentido de uma maximização de resultados. CORREIA. p., 263-264; 268. No tocante ao artigo 6o da CF/88, o que se está fazendo é positivando um direito fundamental como subjetivo. Mas não é pelo fato de referir-se a um direito ao trabalho que se pode extrair a conseqüência de que o particular possa reclamar judicialmente um emprego. SARLET(2007). p., 320.

71 Partindo-se dos direitos fundamentais enquanto normas programáticas, as normas de direitos sociais do artigo 6o da CF/88 são tidas como aquelas cujo objetivo visado é o propiciamento aos indivíduos de redução de desigualdade social e efetiva liberdade material, em prol da justiça social. A norma jurídica possui caráter prescritivo, embora o legislador utilize uma linguagem descritiva. Sendo assim, o referido artigo está indicando que há uma série de bens jurídicos a serem tutelados. E estas normas programáticas possuem natureza principiológica, vez que, ao instituírem estes bens, proclamam um ideal de coisas a ser atingido. Dos efeitos reconhecidos ‘as normas programáticas, conseqüência da sua dimensão objetiva, resume-se da seguinte maneira: têm elas função de princípios; constituem sentido teleológico; irradiam efeitos para as relações privadas; condicionam as demais normas constitucionais e infraconstitucionais; atuam como parâmetro do direito objetivo; geram dever de proteção do Estado com relação aos bens jurídicos por elas tutelados; necessidade de organizações e procedimentos; devido sua natureza principiológica, constituem-se como mandados de otimização. E dessa irradiação, surge direitos subjetivos para os particulares (uns perante os outros), e ações negativas. MEIRELES (2008). p., 460-469.

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AMORIM, I. G.

7) Considerações Finais

Em suma, temos que o direito ao trabalho é um direito social e também um direito funda-mental. Enquanto direito social, vincula-se com o debate teórico acerca da cidadania, eis que encontra-se como parte de evolução do próprio conceito. Por sua vez, enquanto direito funda-mental, o direito ao trabalho relaciona-se com o processo de positivação dos direitos humanos e com todo o processo de evolução do constitucio-nalismo. E neste sentido, recai sobre a própria discussão sobre a dignidade da pessoa humana e sobre o Estado Democrático de Direito.

Não obstante, o direito ao trabalho e a cidadania são normas jurídicas positivadas constitucionalmente. O ‘trabalho’, ademais, é um ‘valor social’, sendo ainda um principio, fundamento, valor e direito social. O ‘primado do trabalho’, neste sentido, figura-se como um princípio constitucional e como base da Ordem Social. O valor dado ao trabalho, ainda, foi colo-cado como fundamento do Estado Democrático de Direito em igualdade de importância com a cidadania, apresentando um caráter social mas também econômico. No mais, além de direito social o direito ao trabalho é uma diretriz a ser perseguida pela legislação infraconstitucional, se tomarmos, por exemplo, a Lei n. 10257/2001.

Com efeito, o direito ao trabalho não es-tabelece uma obrigação do Estado em arrumar trabalho para todos, eis que proteger o desem-pregado também está previsto na dogmática jurídica. Não menos importante, o trabalho é um critério de admissão ao sistema da previdência social, e também forma de financiamento de todo o sistema da Seguridade Social, nele com-preendido, além da Previdência, a Assistência Social e o Sistema Único de Saúde. Nesta ótica, o trabalho permite a superação das contingências sociais (ou ao menos algumas delas), sendo que a sua não superação envolve ações positivas (assistenciais) por parte do Estado para ensejar condições de vida digna aos que não trabalham. Enquanto direito social, o direito ao trabalho, por fim, recai sobre os debates do constitucionalis-

mo atual, quais sejam a aplicação das normas previstas constitucionalmente, os debates acerca do mínimo existencial, dos princípios constitu-cionais, etc.

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SEGURANÇA ALIMENTAR NAERA BIOTECNOLÓGICA

RESUMO: O objetivo deste artigo é delimitar o conteúdo do direito humano à alimentação, e discutir em que medida os alimentos genetica-mente modificados afetam o combate à fome no mundo, seja negativa ou positivamente,. Para tanto, além do estado atual da produção biotéc-nológica, considera-se o instrumental teórico desenvolvido por Amartya Sen em seus estudos sobre a fome e desnutrição. Palavras-chave: Direitos Humanos. Alimentos geneticamente modificados. Combate à fome. Biotecnologia

ABSTRACT: This article aims to define the content of the human right to food, and to discuss the extent in which genetically modified food affects the fight against hunger in the world, whether negatively or positively. Thus, beyond the current state of biotechnological production, it is taken into account the theoretical tools deve-loped by Amartya Sen in his studies on hunger and malnutrition. Keywords: Human rights. Genetically modified food. Gighting hunger. Biotechnology

1. Introdução

Um dos argumentos mais persuasivos manejado pelos defensores da biotecnologia de modificação genética é a possibilidade de aumentar o potencial nutritivo de alimentos

João Carlos de Carvalho Rocha*

* Procurador Regional da República na 4a. Região, Mestre em Direito pela PUC/RS, autor do livro Direito ambiental e transgênicos: princípios fundamentais da biossegurança (2008).

Artigo

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98 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009

ROCHA, J. C. C.

tradicionalmente consumidos em países pobres e assim erradicar a fome de centenas de milhões de pessoas. É sobre esse argumento, com o qual a indústria biotecnológica procura se apresentar como aliada dos direitos humanos, que se bus-cará refletir neste breve estudo.

Para tanto é necessário abordar os diversos aspectos relacionados com a alimentação, distin-guir a fome de outros fenômenos relacionados com deficiências na dieta humana, delimitar os aspectos positivos e negativos das novas técnicas em biotecnologia e, sobretudo, definir parâmetros de segurança alimentar e explicitar os critérios que levam a adoção de determinado modelo de segurança alimentar e os valores em jogo na adoção desses critérios.

A conclusão esperada deve confrontar os meios atuais de produção agrícola de organismos geneticamente modificados com o modelo de segurança alimentar que venha a se entender mais adequado para a efetividade do direito à alimentação.

2. Direito humano à alimentação

O direito à vida é o primeiro dos direitos humanos, vez que é a garantia da própria exis-tência. O acesso à alimentação adequada, a uma quantidade regular de calorias e nutrientes, é essencial para que o ser humano permaneça vivo e que seu corpo e sua mente se desenvolvam de forma saudável. A respeito, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada na III Sessão Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas, dispõe em seu art. XXV,1:

“ARTIGO XXV

1) Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cui-dados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,

viuvez, velhice e outros casos de perda dos meios de subsistência em circuns-tâncias fora de seu controle.”

O direito à alimentação constitui-se por-tanto em direito humano de conteúdo material, porque envolve o cumprimento de prestações positivas, e é diretamente afetado por políticas sociais e econômicas e delas depende para sua realização, se não quanto a sua promoção, pelo menos para evitar que as políticas sociais e econômicas não criem obstáculos à realização desse direito. No Brasil, a lei n. 11.346, de 15 de setembro de 2006, criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, com o objetivo primordial de assegurar o direito humano à alimentação adequada. O seu art. 2º situa com precisão a alimentação adequada como direito fundamental:

Art. 2o A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispen-sável à realização dos direitos consagra-dos na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutri-cional da população.

O direito humano ao alimento, entendido como direito à segurança alimentar, é parte in-tegrante do direito ao desenvolvimento, o que implica na análise das condições que produzem e perpetuam a fome, como estratégia de negação do acesso às condições de desenvolvimento a países, regiões e povos. Para o Banco Mundial segurança alimentar “é o acesso permanente de todas as pessoas a alimentos suficientes para uma vida saudável e ativa”1. A Conferência Mundial sobre Alimentação de 1996, promovida pela FAO, define segurança alimentar em termos convergentes: “Existe seguridad alimentaria cuando todas las personas tienen en todo mo-mento acceso físico y económico a suficientes alimentos inocuos y nutritivos para satisfacer sus necessidades alimentícias y sus preferencias en

1 CONWAY, Gordon. Produção de alimentos no século XXI - biotecnologia e meio ambiente, p. 323.

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99Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 97-107, junho/2009

SEGURANÇA ALIMENTAR NA ERA BIOTECNOLÓGICA

cuanto a los alimentos a fin de llevar una vida activa y sana”2.

Não obstante o aspecto positivo das defini-ções transcritas em por em relevo a questão do acesso permanente e universal, o problema da se-gurança alimentar não se encontra simplesmente na quantidade, mas em especial, na qualidade dos alimentos postos à disposição. É importan-te considerar, em complemento, que uma vida saudável e ativa deve abarcar o atendimento de outras necessidades com destaque aquelas que abragem o mínimo existencial nas áreas de saú-de, educação, vestuário e habitação. Assim, o acesso à alimentação, para ser efetivo, não deve prejudicar nem comprometer o acesso aos de-mais direitos que definem as condições materiais essenciais para a vida com dignidade.

Diversos aspectos devem ser considerados ao situarmos o direito ao alimento na perspectiva mais ampla do direito ao desenvolvimento, entre as quais: sobrevivência, bem-estar, identidade, liberdade, produção, distribuição, natureza, estrutura e cultura3. A luta contra a fome é, em primeiro plano, uma luta pela sobrevivência. Mas a questão da fome não é efetivamente resolvida sem que se assegure o acesso das populações aos alimentos, respeitando as opções, as formas de produção e consumo, os hábitos, preferências e preceitos de cada grupo humano em relação aos alimentos. Não se trata de garantir apenas uma quantidade diária de calorias e nutrientes ou de descobrir o Big Mac universal que saciará a todos.

3. O problema da fome

A fome não é um fenômeno exclusiva-mente biológico. Entretanto, para compreendê-la cumpre analisar o que a fome não é. E aqui perquirimos inicialmente sobre a desnutrição e outras disfunções no consumo de alimentos.

Considerados os parâmetros definidos pelo National Research Council (EUA), aqui registra-dos apenas para fins ilustrativos, recomenda-se uma ingestão diária de 2.900 calorias para ho-mens entre 19 a 50 anos e de 2.200 calorias para mulheres no mesmo intervalo etário. Admitido que o número de homens e mulheres na popu-lação é aproximado, o consumo calórico médio entre adultos é de 2.550 calorias/dia. À exceção dos adolescentes do sexo masculino entre 15 e 18 anos, cujo consumo recomendado é de 3.000 calorias/dia, e dos homens jovens,nenhum outro grupo fica acima daquela média.4

Dados da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), referen-tes as diversas regiões do planeta, indicam que o consumo calórico diário é assim distribuído: mais de 3.500 cal./dia na América do Norte e Europa Ocidental; 3.010 cal./dia no oeste da Ásia e norte da África; 2.690 cal./dia na América Latina e Caribe; 2.600 cal./dia no leste da Ásia; 2.220 cal./dia no sul da Ásia e 2.100 cal./dia na África subsaariana.5

É claro que essa distribuição não tem em conta diversas outras variáveis, como o clima, a maior ou menor dependência das circunstâncias naturais (precipitação de chuvas, ventos, etc.) na economia local, e as necessidades indivi-dualizadas de consumo, seja por maior uso da energia muscular (trabalhadores braçais) ou por deficiência metabólica (algumas populações são mais sujeitas a doenças como anemia e diabetes). E ainda que o quantum mínimo de calorias esteja suprimido, podem haver sérias deficiências desta ou daquela vitamina ou mineral.

Evidente que tanto a subnutrição quanto a fome, entendida como o estado crônico de carência alimentar que leva a morte, coletiva ou endêmica, atentam contra o direito humano à se-gurança alimentar. De acordo com a Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial, oitocentos milhões de pessoas ao redor do

2 Plan de Acción de la Cumbre Mundial sobre la Alimentación, documento firmado pela Conferência Mundial sobre Alimentação, realizada em Roma, entre 13-17 de novembro de 1996. Cf.

http://www.fao.org/docrep/003/w3613s/w361s00.thm. Acesso on line em 20/02/04, às 17:38. 3 GALTUNG, Johan. Direitos humanos - uma nova perspectiva, pp. 180-183.4 Apud WILLIAMS, Sue Rodwell. Fundamentos de Nutrição e Dietoterapia, p. 242, tabela 12.2. e p. 258, tabela 13.1. 5 CONWAY, Gordon. Ob. cit., p. 24.

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mundo, e em particular nos países em desenvol-vimento, não dispõem de alimentos suficientes para satisfazer suas necessidades nutricionais bá-sicas6. Confirmando esses dados, o relatório The state of food and agriculture 2003-2004, da FAO (Food and Agriculture Organization), produzido oito anos após a Declaração de Roma, indica a existência de 842 milhões de subnutridos no mundo, sendo 798 milhões em países em desen-volvimento, 34 milhões em países em transição e 10 milhões em países desenvolvidos. A África subsaariana e a Ásia respondem por 703 milhões do total. O percentual de indivíduos subnutridos em relação à população mundial é de 17%, contra a taxa de 28% de duas décadas atrás.7

É justamente naquelas situações de fome endêmica ou epidêmica que o ser humano é mais vilipendiado em sua dignidade e auto-estima, alcançando graus extremos de exclusão social. O faminto torna-se um ser invisível na sociedade em que vive. Por ser a fome um tema cercado de tabus, a sociedade não a reconhece como uma questão sua, e, por essa via, nega reconhecimento ao próprio faminto. Essa negação da humanidade ao faminto, associada ao stress fisiológico da fome, leva muitas vêzes a atitudes extremas e inesperadas de agressividade. Muitas vezes a quem tem fome resta como identidade final ser classificado como louco ou insano.8

4. Angústia da abundância: Amaltéia no país da Cocanha

A incerteza da colheita, os ciclos do clima, a precariedade dos silos,o esgotamento do solo, todos os fatores que levam à escassez fizeram a espécie humana a criar narrativas fantásticas que expressam seu desejo e sua angústia em torno da abundância de alimentos. Amaltéia é a cabra mitológica que amamentou o pequeno Zeus em

Creta. Dela se originou a cornucópia, ou Corno da Abundância. Narra o mito que um dia Zeus estava brincando com a cabra quando quebrou o seu chifre. Para compensá-la, Zeus conferiu a esse corno o poder de se encher com todos os frutos que fossem desejados. A cornucópia tornou-se, assim, símbolo da abundância e da fertilidade ilimitada, que só pode ser obtida por dom divino9.

Separado do mito grego por milênios, o país da Cocanha reflete a mesma simbologia dessa feita em um universo medieval. Com al-gumas variações, a Cocanha é apresentada como uma terra fantástica, na qual doces nascem em árvores, caldas jorram de nascentes, pombos e faisões devidamente assados voam pelo ar, vales são formados por manteiga derretida e vulcões lançam sopa quente das entranhas da terra10.

A imagem de uma fonte infinita de recur-sos, obtidos pelo mero desejo, vale dizer, pela representação mental, é muito enraizada em uma humanidade para a qual a prática agrícola sempre foi uma atividade incerta. Mas a abundância não é atributo para qualquer um. Seu atributo vem diretamente de Zeus, pai dos deuses e dos homens. E, por ser um objeto único em todo o Mundo, só pode ser encontrado entre as ninfas de Creta, com as quais vive Amaltéia11. Ou em um país fantástico cuja localização permanece desconhecida.

As questões envolvendo o problema da abundância seguem essencialmente as mesmas desde os tempos mitológicos: quem confere abundância e quem dela se beneficia. A abundân-cia existe e pode ser usufruída, desde que se tenha titularidade e acesso a ela. A abundância, para ser percebida, deve conviver com a carência, ou má fortuna, daqueles que dela são despossuídos.

A idéia de abundância corresponde atual-mente tanto a uma produção de alimentos acima das necessidades de consumo como a produção

6 A Declaração for firmada ao término da Conferência Mundial sobre Alimentação, realizada em Roma, entre 13-17 de novembro de 1996. Cf. http://www.fao.org/docrep/003/w3613s/w361s00.thm. Acesso on line em 20/02/04, às 17:38.

7 Documento em formato PDF disponível on line no sítio http://www.fao.org/docrep/006/Y5160E/Y5160E00.HTM, acessado em 10 de fevereiro de 2005, p. 109.

8 REBELLO, Lêda Maria Vargas. Loucuras da fome. Cadernos de Saúde Pública, 14(3), 643-646.9 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. I, p. 262-264.10 MANGUEL, Alberto; GUADALUPI, Gianni. Dicionários de lugares imaginários, p. 110 e 123.11 Amaltéia também designa, conforme a narrativa, uma das ninfas de Creta.

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de alimentos maiores e com maior quantidade de nutrientes do que os alimentos tradicionais. Há aqui um apelo irracional da garantia pelo excesso que não guarda correspondência com o conceito de segurança alimentar. Volta-se, de certa forma, à idéia, predominante até a década de 1970, de que a segurança alimentar se traduz pela dispo-nibilidade de alimentos (abastecimento) e não pelo garantia de acesso12.

5. As promessas dos alimentos geneticamente modificados

Desde o Neolítico, há dez mil anos atrás, quando a nossa espécie passou a praticar a agri-cultura e a domesticar animais, manipulamos genes para as mais diversas finalidades, nota-damente para alimentação. Cães, gatos, vacas, porcos, ovelhas, cavalos, feijões, milhos, batatas, cereais, etc., são inúmeras as espécies que tive-ram a evolução natural modificada em razão da sua utilidade para o ser humano. Esse processo vinha ocorrendo mediante o emprego de técnicas e procedimentos ainda largamente utilizados, como o cruzamento seletivo de espécimes, o descarte de espécimes com características con-sideradas indesejáveis, a introdução de espécies já domesticadas em ecossistemas novos e pela enxertia, no caso dos vegetais.

Foram as práticas agrícolas e de pecuária desenvolvidas a partir da Revolução Neolítica que permitiram a formação de aldeias e cidades, o controle sobre os recursos hídricos, o supri-mento de alimentos sem necessidade dos deslo-camentos constantes decorrentes do nomadismo e o aumento constante da população humana, muito embora ciclos de fome decorrentes de guerras, doenças ou pragas. No século XIX, com o enunciado de Malthus de que a produção

agrícola cresceria em progressão aritmética e a população humana em progressão geométrica, associado com a urbanização crescente e a per-cepção de que não haviam mais grandes áreas do planeta a serem descobertas, a espécie humana passou a temer o advento de uma fome eminente e generalizada.

Paralelamente a essas preocupações, de-senvolvem-se os estudos sobre a genética e suas aplicações tecnológicas. As idéias de gene e de código genético, remontam, respectivamente, a 1865, com Gregor Mendel e a 1953, com James D. Watson, Maurice H. F. Wilkins e Francis. H. Compton Crick. De fato, foi em 25 de abril de 1953 que a revista Nature publicou o primeiro artigo propondo a estrutura de dupla hélice do ADN, acompanhado de mais dois outros artigos que davam suporte para a geometria helicoidal do código genético13. Antes da descoberta do ácido desoxirribonucléico (ADN) e do ácido ribonucléico (ARN) não é possível falar em en-genharia genética, transgenia e em organismos geneticamente modificados (OGMs)14.

É importante ter clareza que a biotec-nologia não é única, mas antes constitui uma pluralidade de técnicas que utilizam organismos vivos para fabricar ou modificar produtos, e, na perspectiva da utilidade ao homem, melhorar plantas e animais e desenvolver microorganismo para usos específicos15. O desenvolvimento de novos organismos por métodos de transgenia é a modalidade mais recente e mais radical entre as biotecnologias.

Já ao final da década de 1980, se consi-deradas apenas as variedades de camundongos transgênicos, haviam sido desenvolvidos mais de mil organismos geneticamente modificados em laboratórios no mundo inteiro. Além de doze tipos de porcos, diversas variedades de coelhos, peixes, vacas, bactérias e vegetais16. É a partir

12 CONWAY, Gordon. Ob. cit., p.322.13 Sobre o cinqüentenário dessa descoberta, a Universidade de Cambridge organizou uma conferência comemorativa, cujo conteúdo encontra-se

resumido no sítio <http://www.admin.cam.ac.uk/univ/science/dna/anniversary.html>. Para um breve relato histórico da biotecnologia e da engenharia genética, cf. de José Luiz Telles: “Bioética, biotecnologias e biossegurança: desafios para o século XXI”, em especial p. 76-82. In: VALLE, Silvio e TELLES, José Luiz (org.). Bioética e biorrisco: abordagem transdisciplinar

. Rio de Janeiro: Interciência, 2003. 14 Organismo geneticamente modificado é o organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia

genética (art. 2º, I, da Resolução CONAMA nº 305, de 12 de junho de 2002).15 PORRAS DEL CORRAL, Manuel. Biotecnología, derecho y derechos humanos, p. 25.16 McKIBBEN, Bill. O fim da natureza, pp. 159-160.

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da metade década de 1990 que as técnicas de transgenia passam a merecer uma discussão mais ampla em diversos setores da sociedade, além de mobilizarem imensos recursos de grupos internacionais, inclusive das poderosas indústrias da farmoquímica e de agrotóxicos. A época em que vivemos foi adequadamente denominada de Século da Biotecnologia, porque pela primeira vez o homem domina uma conquista tecnológica fora da civilização do fogo, caracterizada por uma economia geradora de emissões, e passa a adquirir a capacidade de alterar a constituição de cada ser vivo, conforme os seus interesses e necessidades. Neste sentido, o domínio da energia nuclear foi a última e mais contundente conquista da pirotecnologia antes da expansão da biotecnologia17.

Qualquer ser vivo, animal ou vegetal, ma-cro ou microscópico pode ter a sua seqüência genética alterada por meio de técnica de enge-nharia genética. Vale dizer, microorganismos (bactérias, vírus, etc.), vegetais, animais (domés-ticos ou não) ou mesmo hominídeos, podem vir a dar origem a OGMs. Outro passo, ainda mais ousado no campo da engenharia genética, é o anunciado propósito de construção de um ser vivo totalmente sintético18.

A finalidade do OGM dependerá das carac-terísticas para as quais foi concebido e da técnica adotada. Tanto é possível acrescentar um gene ou uma seqüência de genes no organismo quanto subtrair um gene defeituoso. A alteração gené-tica terapêutica não é o foco aqui apresentado, mas antes a possibilidade de criação de novos organismos, vale dizer, novas formas de vida, mediante a adição de genes de um ser em indi-víduo de outra espécie, gerando um organismo antes não existente para a biologia.

Especialmente no que diz respeito a plantas transgênicas (os principais cereais cultivados

pelo homem possuem variantes transgênicas), os argumentos favoráveis e contrários aos OGMs são apresentados com particular intensidade. Comparecem a esse debate, além de diversas questões ambientais, fatores de comércio interna-cional que não podem ser olvidados, na medida em que os Estados Unidos detém dois terços das áreas agrícolas cultivadas com OGMs em todo o planeta, e a Argentina responde por cerca de vinte e dois porcento desse total19. Por paradoxal que possa parecer, a biotecnologia pode levar ao fim da própria agricultura como a conhecemos, substituídas por cultivos em ambientes total-mente construídos, a denominada agricultura indoor20, totalmente controlada pelas grandes corporações e dependente de um único recurso natural: a energia solar.

Sempre quando se fala em tentativas de me-lhorar a dieta tradicional de populações pobres, o único caso cujo relato se repete como um man-tra, é o arroz dourado, cujos direitos de patente pertencem a empresa Syngenta. Trata-se de um tipo de arroz que possui betacaroteno, de modo a se constituir em fonte de vitamina A para seus consumidores. Não apenas ajudaria a combater a fome na Ásia como multiplicaria por quatro o volume de exportação dos mercados daquele continente21. Esse arroz ainda não se encontra disponível para plantio, mas é o grande argumen-to manejado pela indústria de biotecnologia para apresentar o lado humanitário dos organismos GM. Tendo em vista evitar a alteração no modo de plantio tradicional do arroz, especialmente em zonas rurais da Ásia, seus criadores pretendem cruzá-lo com variedades tradicionais.

Ocorre que até agora não foi possível con-tornar problemas intrínsecos ao arroz dourado, como produção constante e invariável e resis-tência a pragas. Sua introdução e miscigenação com espécies nativas, pode suprir a avitaminose

17 RIFKIN, Jeremy. The Biotech Century, p. 36.18 O governo norte-americano destinou uma verba de três milhões de dólares para o desenvolvimento de uma bactéria sintética, cf. noticiado em

“Venter quer refazer bactéria com US$ 3 mi”, Folha de São Paulo, 22/11/2002, p. A15. 19 De acordo com o relatório “Let de facts speak for themselves”, produzido pela American Soybean Association, juntamente com outras oito enti-

dades agrícolas norte americanas, em setembro de 2002. Conferir em especial os dados da p. 15. Os principais produtores de grãos transgênicos, de acordo com o relatório, são EUA, Argentina, Canadá e China, esta última com 3% da produção mundial. Seguem-se África do Sul, Austrália, México, Bulgária, Uruguai, Romênia, Espanha, Indonésia e Alemanha, além da Índia, que iniciou o cultimo de milho BT em 2002.

20 RIFKIN, Jeremy. Ob. cit., p. 240, nota 29.21 ANDERSON, Kym e outros. Genetically Modified Rice Adoption: Implications for Welfare and Poverty Alleviation (August 19, 2004). Disponível

no sítio http://ssrn.com/abstract=625257.

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A ou causar sucessivas frustrações de safra, agravando a desnutrição na população rural da Ásia e mesmo gerando episódios de fome em determinadas comunidades22.

6. Impactos da biotecnologia

A concentração de patentes de variáveis agrícolas transgênicas em alguns países e a correspondente redução no plantio de espéci-mes nativos equivalentes, contribuem para uma maior dependência alimentar dos países do sul em relação aos centros mais desenvolvidos do hemisfério norte, erodindo ainda mais a precária segurança alimentar dos povos mais pobres. O impacto de organismos oriundos de ecossistemas situados na África, Ásia e Europa nas Américas e na Oceania, em verdadeiro processo de impe-rialismo ecológico, é o único símile histórico do que pode vir a ocorrer com a liberação adversa de organismos geneticamente modificados no ambiente23. O que se extrai dessa experiência precursora é que a perda da biodiversidade vem acompanhada da perda da sociodiversidade, inclusive com a redução das populações hu-manas.

Os partidários do cultivo de OGMs sus-tentam que eles reduzirão a fome no mundo, fornecerão alimentos mais nutritivos e duráveis e mais resistentes a agrotóxicos.24 Os adversá-rios argumentam que vegetais geneticamente modificados podem causar alergias25, apresentar elevada toxicidade, aumentar a dependência dos agricultores em relação aos agrotóxicos,

encarecer o custo da produção agrícola, alterar a cadeia alimentar de ecossistemas naturais, gerar ervas daninhas e pragas mais resistentes, reduzir a biodiversidade, além da dificuldade de controle dos efeitos pleiotrópicos26.

Ironicamente, os partidários da biotecno-logia transgênica criticam a Revolução Verde ocorrida a partir dos anos 1960, por ser químico-intensiva, contrapondo a nova Revolução Verde como menos intrusiva27. O que não deixa de ser um mea culpa, já que as mesmas empresas pro-moveram e lucraram com as duas “revoluções”. Entretanto, até agora o que tem se constatado, além do uso do agrotóxico, é que a interação da planta GM com o meio em que eram plantadas as modalidades tradicionais tem propiciado o desenvolvimento de pragas mais resistentes28.

No âmbito da farmacologia, o professor Flávio Finardi Filho e a pesquisadora Regina S. Minazzi Rodrigues , dentre outros casos suspeitos, referem à intoxicação por suplemen-to alimentar, produzido pela empresa Showa Denko. Esse suplemento possuía altos teores de triptofano, aminoácido natural, mas que fora obtido pela empresa a partir de uma bactéria geneticamente modificada mediante inclusão de genes de um microrganismo do solo. A inclusão da seqüência genética do microrganismo levou consigo uma toxina, cuja ingestão afetou cinco mil pessoas, tendo incapacitado um mil e qui-nhentas e matado outras trinta e sete29.

Nos EUA, o país de regulação mais per-missiva em relação aos transgênicos, no ano de 2002 a EPA (Environmental Protection Agency),

22 LACEY, Hugh. A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas, p. 100-109.23 CROSBY, Alfred . Ecological Imperialism - the biological expansion of Europe: 900:1900, p. 71.24 Para uma síntese dos argumentos favoráveis: BjØrn Lomborg, O ambientalista cético, pp. 411-417. Também o relatório da American Soybean

Association elenca 19 supostos factóides apresentados contra o emprego de OGMs na agricultura.25 6 a 8% de ocorrência de alergias em crianças, conforme relatório Genetically modified plants for food use and human health - an update, publicado

em fevereiro de 2002, pela Royal Society, p. 7.26 Quando um ou mais genes produzem efeitos fenotípicos diversos, diz-se que sua expressão é pleiotrópica. Para um levantamento mais detalhado

dos impactos ambientais das plantas geneticamente modificadas, ver de Miguel Pedro Guerra e outros: Impactos ambientais das plantas trans-gênicas, pp. 30-41.

27 HALFORD, Nigel G. Genetically modified crops, p. 41-45. Cf. tb. LACEY, Hugh. Ob. cit., p. 96. 28 Vandana Shiva alerta para o fato de que nos trópicos as variedades de plantas cultivadas e de ervas daninhas se hibridizam livremente há séculos.

Essa interação genética natural, quando em contato com variedades GM resistentes a agrotóxicos, facilita a transmissão da mesma característica para as ervas daninhas, e explica muitos dos casos em que a alegada vantagem do organismo GM é anulada, causando o incremento nas aplicações de agrotóxicos (Monoculturas da mente, p. 137).

29 HIRATA, Mário Hiroyuki e MANCINI FILHO, Jorge (coord.). Manual de biossegurança, p. 260261. Também são citados no mesmo trabalho casos suspeitos com batatas, ervilhas, milho e soja GM, essa última com a inclusão de seqüência protéica da castanha-do-pará. Importante ressaltar que para cada commodity agrícola de maior valor há diversos tipos de variações geneticamente modificadas. Assim, não é exato dizer que “chuchu GM” faz mal para a saúde ou para o meio ambiente, mas que o “chuchu GM do tipo tal” apresenta tal ou qual toxina ou efeito adverso.

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tendo em vista o manejo da resistência a insetos, firmou acordo com as empresas de biotecnologia americana que condiciona o cultivo de milho BT ao plantio de pelo menos de 20% de variedades convencionais, percentual que chega a 50% nos Estados sulistas30. No mesmo ano, a FDA (Food and Drugs Agency) diante de uma plantação de soja convencional cultivada sobre área de ante-rior plantação experimental de milho transgênico para produção de medicamentos, com a conse-quente contaminação genética do novo cultivo, teve que proibir o uso da soja colhida em toda a cadeia alimentar humana ou animal31.

Ainda que não haja impacto negativo para o ambiente e a saúde no plantio de determinado OGM, haverá um maior custo econômico para o agricultor, devido ao regime de patentes e a vinculação com uma única corporação, sem vantagens nutricionais que possam ser eviden-ciadas.

7. Segurança alimentar como liberdade

Recapitulando, a segurança alimentar vem sendo definida a partir de dois critérios distintos: o da acessibilidade, que enfatiza a capacidade física e econômica de se ter acesso aos alimentos, e o da disponibilidade, que enfatiza a capacidade de manter estoques de alimentos e abastecer as populações carentes em tempos de crise. O critério predominante hoje, tanto no âmbito do Banco Mundial quanto na FAO, é o da segurança alimentar mediante a criação e manutenção de condições de acesso da população aos nutrientes necessários para a sua sobrevivência e bem-estar.

Para a consolidação dessa perspectiva inovadora em muito contribuiu a produção te-

órica do economista indiano Amartya Sen, cuja influência sobre o Banco Mundial e o sistema de organismos internacionais da ONU é notória. No ensaio Poverty and Famines (1981), aquele autor sustenta que em situações de escassez de alimen-tos enquanto alguns grupos, aqueles socialmente mais frágeis, estão sujeitos a situações de priva-ção absoluta, outros grupos parecem não sentir qualquer efeito da escassez e que nada indica que o consumo de alimentos de grupos distintos deva variar na mesma direção, não obstante a ocorrência de escassez32. Sen analisa grandes episódios de fome ocorridos em Bengala33, Eti-ópia34, Sahel35, Bangladesh36, e Irlanda37, para concluir que é a forma de organização política da sociedade o fator predominante para a prevenção das situações de fome coletiva38.

Aqui no Brasil também são as regiões com maior índice de exclusão social aquelas sujeitas a episódios graves de fome. Cabe relembrar o mapeamento produzido por Josué de Castro em sua Geografia da fome, quando tratou da ocorrência do problema no território nacional. Segundo aquele autor, o Brasil possui cinco áreas alimentares, divididas em três categorias: fome endêmica, fome epidêmica e área de subnutrição. A fome endêmica abrange a Amazônia e o Nor-deste açucareiro. No estudo efetuado pelo autor há duas áreas de subnutrição: a primeira inclui o Centro-Oeste, os estados de Tocantins e Minas Gerais; a segunda abrange os demais estados do sudeste e a região sul do Brasil39.

O principal conceito com o qual Sen vai abordar a questão da pobreza e da fome é o de entitlement. No seu ensaio dedicado ao estudo da fome, Sen resume a perspectiva pela qual aborda o problema: “The entitlement approach to starvation and famines concentrates on the

30 Transgênicos nos EUA. Valor Econômico, 20/11/2002, p. B12.31 “Antigo plantio alterado afeta geração seguinte”. Folha de São Paulo, 20/11/2002, p. A14.32 Poverty and famines - An essay on entitlement and deprivation, pp. 43-44. Em Desenvolvimento como liberdade, capítulos 7 e 9, o autor repete os

argumentos e exemplos históricos daquele ensaio. Não se pode desconsiderar, quanto a rápida repercussão do ensaio nos meios técnicos especiali-zados na década de 1980, a formulação matemática da tese sustentada pelo autor, contida nos seus apêndices de A a C, pp. 167-194.

33 SEN, Amartya. Ob. cit., p. 52 e segs.34 SEN, Amartya. Ob. cit., p. 86 e segs.35 SEN, Amartya. Ob. cit., p. 113 e segs. O Sahel é a área de transição entre o deserto do Saara e a floresta equatorial ao sul. Entre os países que o

integram destacam-se o Senegal, a Mauritânia, o Mali, o Burkina Faso, o Níger, a parte norte da Nigéria, o Chade e o Sudão. 36

SEN, Amartya. Ob. cit., p. 131 e segs.37

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 199-205.38

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 208-219.39

CASTRO, Josué de. Geografia da fome, p. 37.

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ability of people to command food through the legal means available in the society, including the use of production possibilities, trade opportu-nities, entitlements vis-à-vis the state, and other methods of acquiring food”40.

O conceito de entitlement não pode ser resumido a sua dimensão jurídica, econômica ou política, justamente porque é agregador, em um único termo, de capacidades que tradicional-mente são abordadas de forma estanques pelo direito, economia, ciência política e sociologia, e que são necessárias para dimensionar o conjunto capacitário de uma pessoa (ou seja, de pacotes de bens, mercadorias e funcionamentos que pode adquirir)41.

Mas não estar sujeito as privações da fome não é apenas uma questão de capacidade de produzir ou adquirir alimentos, a partir de uma adequada disposição jurídica, política e econômi-ca das estruturas básicas da sociedade. O próprio Sen sustenta, com muita propriedade, que existe uma liberdade de não ter fome. O senso comum reconhecer que não ter fome aumenta a esfera de bem-estar da pessoa, mas não é tão óbvio que aumente a sua esfera de liberdade. Sen retorna a Isaiah Berlin para argumentar que se ser livre é ter liberdade se viver como se deseja, então estar livre da fome amplia esse espaço de escolha42. Como ninguém escolheria viver com fome, a fome é apenas um severo limitador das diversas formas possíveis de vida social. Portanto, conclui o autor, “a noção de liberdade como poder efeti-vo para realizar o que se escolheria é uma parte importante da idéia geral de liberdade”43.

O estado atual da agricultura biotecno-lógica parece indicar um caminho oposto ao apontado pelo modelo de Sen, já que a sua prática coloca o agricultor na dependência de uma úni-ca grande corporação, quanto ao fornecimento de sementes, agrotóxicos, assistência técnica e pagamento de royalties. Em caso de problemas como declínio de produtividade e surgimento de novas pragas, a empresa responderá com o

fornecimento de uma nova geração de OGM, repetindo estratégia bem sucedida em outra atividade de ponta, a informática.

8. Conclusão

Do que foi exposto até agora, o que se pode dizer sobre a capacidade da biotecnologia, mediante a produção de alimentos geneticamente modificados, vir a contribuir decisivamente para o combate à fome no mundo, reduzindo a cifra de oitocentos milhões de famintos a um número menos doído?

Antes de mais nada, é preciso evitar a ten-tação de falar sobre quimeras, neste caso, sobre os superalimentos inexistentes. Não há até agora nenhum alimento geneticamente modificado que represente uma contribuição altamente inovadora em termos de nutrientes. No estado atual da tec-nologia, o mercado é dominado por organismos que: a) são resistentes a um determinado tipo de agrotóxico, produzido pela mesma empresa detentora da patente do OGM, caso da tecnologia round up; b) emitem uma toxina que equivale a produção do agrotóxico na própria planta, casa da tecnologia Bt.

Mas há pesquisas para o desenvolvimento de espécimes resistentes a secas ou que neces-sitam de menor volume de água para irrigação e portanto, guardam um interesse ao tema. A pesquisa em biotecnologia está apenas iniciando e deve prosseguir, observados os mais estritos parâmetros técnicos de biossegurança.

Entretanto a produção em larga escala de alimentos geneticamente modificados deve aten-tar, para cada tipo de organismo desenvolvido, a seus impactos, positivos e negativos, quanto ao meio ambiente, diversidade biológica, práticas agrícolas, valores culturais e estruturas sociais.

O argumento de que os alimentos transgê-nicos podem reduzir a fome no mundo parece repetir o modelo de segurança alimentar pela

40 SEN, Amartya. Poverty and famines, p. 45. 41 Cf. sobre entitlement: Desigualdade reexaminada, glossário, p. 235; Desenvolvimento como liberdade, nota do tradutor, pp. 53-54; Poverty and

famines, pp. 1-8, 44-51 e apêndice A (no qual é apresentada uma explicação econométrica do conceito). 42 Desigualdade reexaminada, pp. 115-116. 43 Idem, p. 118.

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disponibilidade ou capacidade de abastecimento. A presença de alimentos geneticamente modifi-cados no mercado em nada altera a incapacidade dos famintos em adquirí-los, já que sofrem priva-ções até mesmo dos alimentos tradicionais, usu-almente existentes em sua cultura alimentar.

Há, por outro lado, o risco de que essas privações se tornem mais agudas, em razão do pagamento de royalties, da concentração das técnicas de produção de alimentos por grandes corporações e de uma maior dependência em relação aos países desenvolvidos do hemisfério norte44. Neste sentido, é importante estimular a pesquisa pública, para que os conhecimentos adquiridos na área de biotecnologia possam ser compartilhados por toda a comunidade e aplicados em respeito aos valores culturais das populações tradicionais.

De qualquer modo, sempre que houver a li-beração de alimentos geneticamente modificados para a comercialização deve haver a informação, mediante rotulagem adequada, sobre a natureza do alimento e seus eventuais riscos.

Antes de tudo, a pessoa sujeita a riscos na sua segurança alimentar deve ser visto como em sua integralidade, e não como cobaia de ex-perimentos sociais ou científicos. Do contrário, haverá a repetição, em escala muito maior, do que ocorre no interior da África e outras regiões periféricas com a aplicação experimental de me-dicamentos. Ter em mente a dimensão humana da questão da fome ainda é a maneira mais direta e eficiente de superá-la.

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44 Em interessante paralelo, Gordon Conway ao comentar os efeitos econômicos da Revolução Verde (décadas de 1960-1970), registra que não obstante tenha havido produção de alimentos mais baratos e aumento da renda da terra, a introdução da mecanização tendeu a corroer esses benefícios, até mesmo acarretando perda da renda real e aumento da fome. Ob. cit., p. 112.

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO(1)

RESUMO: Partindo-se da idéia de que as ati-vidades nucleares são importantes e necessárias ao desenvolvimento dos seres humanos, em função da sua utilização segura e pacífica em vários setores sociais, razão pela qual devem ser mantidas e incentivadas, deve-se tecer uma especial regulamentação jurídica em torno dessas atividades para que sua utilização se desenvolva de maneira consciente, segura e responsável, em conformidade com a necessidade de sustentabili-dade ambiental do desenvolvimento econômico nacional. Sendo assim, torna-se imprescindível uma completa regulamentação jurídica sobre o assunto e, em particular, um tratamento jurídico-penal das atividades nucleares, propiciando, de um lado, o desenvolvimento de uma tecnologia que está voltada ao bem-estar do ser humano, da sua dignidade e do meio ambiente, e de outro lado, utilizado exclusivamente como ultima ratio para que não implique em violação dos princípios que são fundamentais para a própria preservação do estado social e democrático de direito.Palavras-chave: Atividades nucleares. Estado social. Estado democrático de direito.

ABSTRACT: Based on the idea that nuclear activities are important and necessary for the development of men, with its peaceful and safe utilization in various social sectors, that should be maintained and encouraged, however must be make a special legal regulations around those ac-tivities for their utilization to be developed with consciousness, security and with responsibility,

José Renato Martins(2)

Artigo

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MARTINS, J. R.

in accordance with the need for environmental sustainability of economic development nation-ally. Therefore, it is essential for complete legal regulations on the subject, and in particular, a legal-criminal treatment of nuclear activities in modern society, providing, on the one hand, the development of a technology that is dedicated to the welfare of men, your dignity and the environment, and on the other hand, it will be use only as ultima ratio for doesn’t involve a violation of the principles that are fundamental to the own preservation of the social state and democratic of law.Keywords: Nuclear activities. Social state Democratic state of law.

1. Considerações iniciais sobre as atividades nucleares

Consideram-se atividades nucleares todas aquelas que liberam, de forma direta ou indireta, radiação ionizante extraída de átomos existentes na natureza.

Nos dias de hoje, sabe-se que a energia nuclear não se restringe à produção de energia elétrica e que a descoberta dos radioisótopos estimulou sua aplicação no ensino, em especial, a física nuclear, a biologia, a nutrição, a radio-farmácia e a ecologia, bem como pesquisa em diversas áreas, como a medicina, a odontologia, a agricultura, a indústria, etc. Porém, para que isso ocorresse, a humanidade teve que passar por um período obscuro durante sua evolução.

Infelizmente, o mundo inteirou-se da pos-sibilidade do uso da energia nuclear através das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945 (dias 6 e 9 de agosto). Logo, sua primeira aplicação foi bélica e dificilmente deixará a humanidade se esquecer dessa possi-bilidade. Tais bombas, denominadas A, sucede-ram as ditas bombas B e, depois, as bombas H, que lograram estabelecer o que foi cunhado de “equilíbrio do terror”.(3)

Verifica-se que a utilização pacífica da energia nuclear – que, como já foi frisado não se restringe à produção de energia elétrica – gera,

a cada dia, novas técnicas nucleares, que são desenvolvidas nos diversos campos da atividade humana, possibilitando, dessa forma, a execu-ção de tarefas impossíveis de serem realizadas pelos meios convencionais. A descoberta dos radioisótopos ou isótopos radioativos, estimulou, devido à propriedade de emitirem radiações, pesquisas em diversas áreas como a medicina, a indústria (particularmente a farmacêutica) e a agricultura.

Atualmente, não se consegue cogitar sobre a possibilidade de se viver sem a energia nu-clear. Ocorre que os benefícios trazidos por ela são muito grandes e a cada dia são descobertos empregos diferentes dos radioisótopos nas mais diversas áreas do saber.

No campo da pesquisa, existe uma técnica especial conhecida como a técnica dos traçado-res, pois tendo em vista que as radiações emitidas por radioisótopos podem atravessar a matéria e, dependendo da energia que os mesmos possuam, detectá-las onde estiverem por meio de aparelhos apropriados, chamados detectores de radiação, o deslocamento de um radioisótopo pode ser acompanhado e seu percurso, traçado. Logo, recebe o nome de traçador radioativo. Assim, “esses radioisótopos podem ser usados para de-terminar a quantidade de uma única substância numa mistura”.(4)

Outra técnica curiosa é a denominada datação, que consiste em um “processo de de-terminação da idade de um objeto pela medida da atividade de um nuclídeo”.(5) Por intermédio desse processo é possível precisar a idade de fósseis e rochas, encontrando-se dados sobre a evolução do planeta e, por conseguinte, estudar a própria evolução humana.

A utilização da energia nuclear na área mé-dica é de suma importância. Exemplo típico é o seu uso na radioterapia.(6) Nesse caso, a radiação atinge com maior facilidade, as células doentes do que as sadias, avaliando-se a radiação e sua incidência sobre tecidos vivos do organismo do ser humano.(7)

A medicina nuclear é uma especialidade na qual se utilizam os radioisótopos, tanto em diagnósticos como em terapias, e com o uso de

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

traçadores.(8) Na pediatria, a medicina nuclear tem boa acolhida, pois a criança recebe “dose de radiação muito menor que a do raio X”.(9) Tam-bém nessa área, os radiofármicos têm diversas aplicações e seu uso em hospitais é imprescin-dível para diagnóstico e tratamento adequado de muitas doenças. Aqui também são utilizados os chamados traçadores, haja vista que a viabilida-de do estudo de doenças metabólicas se mostra possível justamente a partir da utilização, neste processo, de elementos como carbono, hidrogê-nio, oxigênio, fósforo, ferro, etc.(10)

Além disso, a utilização de radionuclídeos de meia-vida curta tem sido positiva para a iden-tificação de doenças que atingem órgãos vitais para o homem, como cérebro, pulmão, fígado, coração, estômago, rins, intestino, entre outros. Não obstante, existem estudos no sentido de que a aplicação de baixas doses de radiação em seres humanos (hormese das radiações) pode apresentar cinco efeitos benéficos ao homem, a saber: “fortalecimento do sistema imunológico, ativação dos mecanismos de reparo do DNA, rejuvenescimento das células, aumento das enzimas-chave, e terapia para doenças como diabetes e hipertensão”.(11)

Na agricultura é muito importante o em-prego desses radioisótopos. Os citados traça-dores radioativos são utilizados “em pesquisas agrícolas como agentes informativos de taxas e de velocidades de absorção de fertilizantes e outros alimentos, assim como do metabolismo e da preferência dos mesmos em se acumular em certos tecidos do organismo vegetal”.(12) Essa técnica possibilita, inclusive, o estudo do comportamento de insetos, como abelhas e formigas.(13)

Esse sistema de “marcadores” configura mais um eficiente instrumento para eliminar pragas, identificando qual predador se alimenta de determinado inseto que, no caso, se deseja ex-terminar. Com o intuito de conter a ação deletéria desses insetos sobre as plantações, os machos devem ser esterilizados através da emissão de radiação. Posteriormente, com a sua liberação, faz-se o cruzamento desses com as fêmeas. Com o tempo, em razão da esterilização ocorrida, não

haverá produto de descendência e a espécie será extinta.(14)

A irradiação de alimentos é outro empre-go útil dos radioisótopos. É um tratamento no qual os alimentos, embalados ou a granel, são submetidos a uma quantidade minuciosamente controlada de radiação ionizante, por tempo prefixado e com objetivos determinados. Vale frisar, ainda, que o processo não aumenta o nível de radioatividade normal dos alimentos.(15)

O objetivo da irradiação aplicada a ali-mentos é o aumento de sua vida útil. Esse processo de conservação pode ser aplicado em vários tipos de alimentos e, além de aumentar o tempo de conservação, pode ser usado para destruir insetos, bactérias patogênicas, fungos e leveduras. O retardo de maturação e senescência (envelhecimento) de frutas e a inibição de brota-mento de bulbos e tubérculos podem ser citados como influências benéficas na conservação de alimentos.

O processo de irradiação pode impedir a divisão de células vivas (bactérias e células de organismos superiores), ao alterar suas estruturas moleculares, e retardar a maturação de frutas e legumes, ao produzir reações bioquímicas nos processos fisiológicos dos tecidos vegetais.(16)

Ainda no campo dos alimentos, uma aplica-ção importante é a irradiação para a conservação de produtos agrícolas, como batata, cebola, alho e feijão. Nesses casos, o objetivo é aumentar a vida útil de determinados produtos alimentícios, visando auxiliar nos processos de distribuição e comercialização dos mesmos. Além disso, o incremento em tempo de conservação também é sentido pelo principal ator no cenário comer-cial: o consumidor. Considere-se, também, que a irradiação de alimentos não causa prejuízos ao mesmo no que tange a formação de novos compostos químicos que poderiam transmitir doenças ao ser humano quando da sua ingestão. No entanto, como em todo processo de conser-vação, existem perdas de ordem nutricional e organoléptica nos alimentos.(17)

Em se tratando de gado, pesquisas mostram que o uso da irradiação “poderia diminuir alguns parasitas internos de animais, tornando-os inó-

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MARTINS, J. R.

cuos e utilizando-os na preparação de vacinas contra várias enfermidades parasitórias mortais”.(18) Trata-se de importante emprego da utiliza-ção dos isótopos radioativos, haja vista que os parasitas internos são causadores de redução de crescimento e mortes desnecessárias de vários animais em todo o mundo.(19)

Verifica-se, também, que a aplicação dos radioisótopos é feita na indústria e em larga es-cala, com distintos objetivos e de muita serventia para a sociedade. A técnica mais conhecida é a radiografia de peças metálicas ou gamagrafia industrial.(20) Por exemplo, as espessuras de chapas, folhas e lâminas (metálicas ou não) sofrem um controle automático, por meio da utilização de radioisótopos e com a finalidade de homogeneizá-las. Os fabricantes de válvu-las usam a gamagrafia na área de controle da qualidade para verificar se existem defeitos ou rachaduras no corpo das peças. As empresas de aviação a utilizam durante as inspeções fre-qüentes nos aviões, com objetivo de verificar se há fadiga nas partes metálicas e/ou soldas essenciais, sujeitas a um maior esforço nas asas e turbinas.(21)

Ainda é possível controlar, pelo uso dos radioisótopos, o teor do tabaco existente nos cigarros ou esterilizar produtos como algodão, cotonetes, batom, fraldas descartáveis e cosmé-ticos em geral, bem como materiais hospitalares, como gazes e seringas.(22)

Outras utilidades dos radioisótopos são na arqueologia (determinar a idade de objetos históricos); na geologia (determinar a idade de materiais geológicos); na sedimentologia (deter-minar a idade de rochas sedimentares e erupções vulcânicas); na hidrologia (detectar falhas ou vazamentos em barragens); e em outras áreas da ciência.(23)

Enfim, há a neutrongrafia ou radiografia de nêutrons, técnica que visa a segurança e o com-bate à criminalidade. Por meio dela, detecta-se cocaína e explosivos plásticos, pois os nêutrons reagem com o nitrogênio, oxigênio, hidrogênio e carbono, substâncias presentes nesses produ-tos, provocando emissões de raios gama. Então, medem-se e registram-se as energias e intensi-

dades desses raios, deduzindo-se o quantum de elementos neles contido.(24)

Destarte, aconselha-se a utilização desse sistema em, por exemplo, portos, aeroportos, rodoviárias, ferroviárias e correios, “onde não se pode abrir os pacotes e por onde passa uma grande quantidade de volumes num curto espaço de tempo”.(25)

É certo, que as atividades nucleares têm larga e positiva aplicação na sociedade e que a radioatividade se faz presente na natureza sob diversas formas. O homem sempre conviveu com a mesma, razão pela qual o seu organismo está apto a resistir aos efeitos radioativos. Todavia, a resistência humana às radiações não é ilimitada, podendo a saúde ser seriamente afetada.

Não se pode esquecer, contudo, que a vida humana (ou qualquer outra) é sempre acompa-nhada de riscos, como doenças, fome, conflitos entre indivíduos, etc.

Nos últimos séculos, novas tecnologias in-troduziram novos tipos de riscos à vida humana, sendo que, particularmente nas grandes cidades, a poluição do ar é experiência vivenciada dia-riamente, causando milhares de mortes por ano. Os altos prédios estão sujeitos aos riscos de incêndios e terremotos. Os acidentes de trânsito e de transportes aéreo, marítimo, ferroviário e terrestre são conhecidos e envolvem milhares de vítimas anualmente. Ainda são bem conhecidos os riscos apresentados pelas indústrias químicas e pelos lixos de todos os tipos se acumulando no mundo todo. Igualmente, a radioatividade, assim como qualquer outro avanço tecnológi-co, apresenta tanto benefícios quanto riscos; ou seja, há certa dose de risco em toda e qualquer atividade humana.

Por tudo isso, “renunciar à energia nuclear seria agora renunciar à civilização atual. Os benefícios que ela nos proporcionará são sufi-cientemente importantes para que valha a pena termos todo o cuidado para não ‘envenenar’ a natureza [...]”.(26)

Destarte, é válida e necessária a preocu-pação com a segurança humana e ambiental, e mesmo em nível planetário, adotando-se, para tanto, medidas cabíveis, com o intuito de que a

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

energia nuclear seja utilizada pacificamente e da melhor maneira possível.

Sendo assim, partindo-se do pressuposto de que as atividades nucleares constituem na sociedade moderna um importante instrumento de evolução social e técnico-científica, sendo necessária sua manutenção e aprimoramento constante, tem-se que a regulamentação jurídica das mesmas é imprescindível para que essas atividades atendam aos objetivos dentre os quais são adotados por uma sociedade pacífica e um estado social e democrático de direito(27) que visam, inclusive, a preservação da saúde e da vida dos seres humanos, com a conseqüente preservação do meio ambiente em que vivem.

Nesse sentido, tem-se que a regulamenta-ção das atividades nucleares no direito brasileiro deve ocorrer sob o tríplice aspecto cível, admi-nistrativo e penal, independentemente do fato de essa regulamentação poder ser considerada correta ou incorreta. Certo, portanto, é que as atividades dessa natureza exigem um controle jurídico rígido e eficiente.

Entretanto, objetiva-se, nesta oportunidade, analisar apenas a tutela penal dessas atividades de acordo com a legislação em vigor no direito brasileiro, concluindo-se, certamente, se a mes-ma está ou não em conformidade com os prin-cípios do estado social e democrático de direito, sob a ótica do direito penal moderno.

3. Tutela penal das atividades nucle-ares no âmbito do estado social e democrático de direito

Uma leitura atenta da legislação vigente sobre as atividades nucleares no Direito bra-sileiro conduz à conclusão de que há três leis extravagentes que tratam, de uma forma ou de outra, as questões penais relativas às atividades nucleares. Tem-se, portanto, a seguinte norma-tização: a) Lei nº 6.453/77, de Responsabilidade Criminal por Atos Relativos às Atividades Nu-cleares; b) Lei nº 6.938/81, de Política Nacional do Meio Ambiente; c) Lei nº 9.605/98, de Crimes Ambientais.

3.1. Lei nº 6.453/77 de responsabilidade criminal por atos relativos às atividades nucleares

No que diz respeito à tutela penal das ati-vidades nucleares, deve-se tomar como norma referencial a Lei nº 6.453/77, a primeira a dis-por sobre a responsabilidade criminal por atos relativos às atividades dessa natureza. Nela são definidos oito tipos penais relacionados, em par-ticular, com a segurança, instalações e materiais nucleares, e com o assecuramento do controle de tais atividades pelo Poder Público.

O objetivo fundamental da conceituação desses delitos parece ter sido mesmo o de asse-gurar a implantação de uma nova modalidade geradora de energia sem causar riscos ou danos para a população e para as relações externas.

Como resgata Sérgio de Oliveira Médici, essa “lei veio atender a dois itens do art. V do Acordo Brasil-Alemanha sobre Cooperação no Campo dos Usos Pacíficos da Energia Nucle-ar”,(28) celebrado seis meses depois da ela-boração do Programa Nuclear Brasileiro. Tais dispositivos estabelecem o seguinte: “Artigo V. 1) Cada Parte Contratante tomará as providências necessárias para garantir a proteção física dos materiais, equipamentos e instalações nucleares no seu território, bem como no caso de trans-porte dos mesmos entre os territórios das Partes Contratantes e para terceiros países. 2) Essas providências deverão ser de tal natureza que, na medida do possível, evitem danos, acidentes, furtos, sabotagens, roubos, desvios, prejuízos, trocas e outros riscos”(29).

Os assim chamados crimes nucleares(30) estão tipificados nos artigos 20 a 27 da Lei em questão, sendo que o artigo 19 limita-se a fazer uma exposição genérica dos preceitos nos quais estão previstos os crimes cometidos com o em-prego e produção da energia nuclear.

a) Utilização clandestina ou irregular.O primeiro delito está fixado no artigo 20

da Lei nº 6.453/77 e tem a seguinte redação: “Produzir, processar, fornecer ou usar material nuclear sem a necessária autorização ou para fim

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MARTINS, J. R.

diverso do permitido em lei. Pena: reclusão, de quatro a dez anos”.

Esse tipo penal “visa a assegurar o mo-nopólio da União nessa atividade, bem como a impedir a utilização irregular do material nuclear pelos órgãos oficiais”,(31) lembrando que a União não possui mais o monopólio dos radioisótopos de “meia-vida” igual ou inferior a duas horas, cuja produção, comercialização e utilização são autorizadas para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais (Constituição Federal, artigos 21, inciso XXIII, alíneas b e c, e 177, inciso V, conforme Emenda Constitucional n. 49/2006), tutelando-se, pois, o poder de polícia da Administração Pública de modo que o Poder Público controle a atividade nuclear.

Nos termos da definição legal constante da Lei ora estudada (inciso IV, do artigo 1º), “material nuclear” deve ser entendido como “o combustível nuclear e os produtos ou rejeitos radioativos”. Combustível nuclear é todo aquele capaz de produzir energia mediante processo auto-sustentado de fissão nuclear (inciso II) e produtos ou rejeitos radioativos são os materiais radioativos obtidos durante o processo de produ-ção ou utilização de combustíveis nucleares, ou cuja radioatividade se tenha originado da expo-sição às irradiações inerentes a tal processo, com exceção dos radioisótopos que já alcançaram o estágio final de elaboração e podem ser utilizados para fins científicos, médicos, agrícolas, comer-ciais ou industriais (inciso III).

Sendo assim, as condutas previstas na norma – produzir, processar, fornecer ou usar – somente podem ser praticadas mediante autoriza-ção específica de órgão do Poder Público, no caso a CNEN, que, por sua vez, autoriza unicamente a pessoas e organismos preparados para o desem-penho dessas atividades. Na verdade, a expressão “sem a necessária autorização” indica a presença do elemento normativo do tipo, relacionado com a antijuridicidade. Logo, a concretização da figura típica depende de o agente não ter obtido a referida autorização legal.

b) Operação irregular.No artigo 21 está previsto o seguinte delito:

“permitir o responsável pela instalação nuclear

sua operação sem a necessária autorização. Pena: reclusão, de dois a seis anos”.

Nesse caso, o crime é próprio e só pode ser cometido por aquelas pessoas que tenham determinada qualificação, ou seja, nos termos legais, o responsável pela instalação nuclear. A Lei utilizou o termo “responsável” e não “ope-rador”. Nos termos de seu artigo 1º, inciso I, da Lei nº 6.453/77, entende-se por “’operador’, a pessoa jurídica devidamente autorizada para operar instalação nuclear”. Logo, a norma em questão destina-se ao diretor da empresa ou instituição operadora da instalação nuclear, pois a responsabilidade é pessoal.(32)

Apesar de regularmente instalado, o orga-nismo depende sempre, para funcionar, de autori-zação da CNEN, sendo que “instalação nuclear” também é um conceito legal e consiste em: a) um reator nuclear, salvo o utilizado como fonte de energia em meio de transporte, para a propulsão ou outros fins; b) uma fábrica que utilize com-bustível nuclear para a produção de materiais nucleares ou na qual se faça o tratamento desses materiais, incluídas as instalações de reprocessa-mento de combustível nuclear irradiado; e c) um local de armazenamento de materiais nucleares, exceto aqueles usados ocasionalmente durante o transporte.(33)

Mais uma vez, a lei enfatiza a preocupação de que o projeto nuclear não seja levado a efeito à revelia do governo,(34) tutelando, assim, o poder de polícia da Administração Pública.

Interessante a informação de Walter Tolen-tino Álvares quanto ao processo de concessão de licença, analisando as legislações do Brasil e dos EUA: “Pela legislação brasileira o processo é inteiramente administrativo, fechado, de sorte que, todo o poder decisório decorre do órgão federal competente, como conseqüência [...], de que sendo no Brasil um monopólio da União, somente a ela cabe decisão pelos seus órgãos, a quem outorgar a autorização para a construção de reatores. [...] Nos Estados Unidos [...] a relação se desenvolve nos quadros do que se pode desig-nar por indústria sob regulamentação”.(35)

Conforme entende Lincoln Magalhães da Rocha, “o uso do átomo em desacordo com as

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

salvaguardas enseja o enquadramento do infrator na lei repressiva nuclear”.(36) E as salvaguardas vedam o uso do material nuclear para armas atômicas ou outro fim militar.(37)

c) Aquisição ou porte indevidos.Aqui, entende-se que os elementos cons-

tantes do tipo do artigo 22 são os seguintes: “pos-suir, adquirir, transferir, transportar, guardar ou trazer consigo material nuclear, sem a necessária autorização. Pena: reclusão, de dois a seis anos”.

Novamente o legislador se refere à au-torização como condição necessária para que a conduta do agente não se revista do caráter ilícito. Quanto ao conceito de material nuclear, já foi exposto que se trata do combustível nuclear ou do produto ou rejeito radioativo, cuja posse é proibida, “não só porque o seu uso tem de ser autorizado, mas também pelo fato de ser um material perigoso”, razão pela qual a lei, em seu texto, “previne uma conduta mais perigosa para a comunidade indo à raiz do fato: proibindo o seu porte ou guarda”.(38)

Tem-se como objetivo fundamental “impe-dir que o material nuclear seja desviado de seu emprego regular ou caia em mãos de curiosos ou de terroristas”.(39) Tutela-se, também, o poder de polícia da Administração Pública.

d) Violação do sigilo.O artigo 23 da presente lei define como

crime: “transmitir ilicitamente informações sigilosas, concernentes à energia nuclear. Pena: reclusão, de quatro a oito anos”.

Visando impedir a indevida transmissão de informações sigilosas, porque contrárias às normas legais que regem o assunto ou porque as autoridades competentes previamente consi-deraram o assunto sigiloso,(40) buscou-se, com o tipo, tutelar a segurança nacional.

No caso, as informações sigilosas se refe-rem à energia nuclear, ou seja, “aquela que se desprende quando, numa reação nuclear, a soma das massas das partículas que reagem é maior que a soma das massas das que se produzem”.(41)

Este tipo apresenta uma curiosidade, e remete à seguinte indagação: como reprimir a

conduta de transmissão de informação sigilosa se o objeto não apresenta essa característica? Ocorre, que as informações referentes ao ciclo nuclear já se acham, atualmente, divulgadas de forma ampla e global, tanto na comunidade científica como na sociedade em geral.

A propósito, explica Paulo de Bessa Antu-nes: “Diversas centrais nucleares são negociadas entre empresas e governos e, de fato, a utilização civil da energia nuclear não conhece mais se-gredos. Eventualmente, podem existir segredos industriais e não nucleares como pretende a lei. O segredo nuclear, tal como está estipulado no tipo, parece-me ser de natureza militar e, por-tanto, incabível em lei destinada às atividades civis”.(42)

Ademais, as instalações nucleares brasi-leiras foram adquiridas no exterior, razão pela qual não há que se falar em segredo industrial em relação às mesmas, porquanto produzidas em série e com tecnologia conhecida.

e) Atividades ilícitas.O artigo 24 da Lei nº 6.453/77 está redi-

gido da seguinte forma: “extrair, beneficiar ou comerciar ilegalmente minério nuclear. Pena: reclusão, de dois a seis anos”.

As condutas previstas no tipo, devendo ser consideradas ilegais, têm como objetivo tutelar a Administração Pública e o seu interesse em controlar a circulação econômica dos minérios nucleares, entendidos estes como toda “subs-tância encontrada na natureza com a qual são produzidos alguns combustíveis nucleares, como o urânio, o tório e outros”.(43)

Vale frisar que, quanto aos elementos nu-cleares, a CNEN periodicamente especificará quais podem ser considerados como tal, além do urânio natural, do tório e do plutônio (Lei nº 6.189/74, artigo 2º, inciso XIII, letra c, com as alterações da Lei nº 7.781/89). Logo, não se trata de um bem extra commercium, mas de uma mercadoria sob a tutela do Estado.(44)

f) Importação e exportação ilegais.Prevê o artigo 25 da Lei em apreço: “ex-

portar ou importar, sem a necessária licença, material nuclear, minérios nucleares e seus

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MARTINS, J. R.

concentrados, minérios de interesse para a energia nuclear e minérios e concentrados que contenham elementos nucleares. Pena: reclusão, de dois a oito anos”.

As condutas envolvem atos de comércio internacional, “embora possa ser praticado sem qualquer ‘intuitus lucri faciendi’”,(45) as quais só se tornam ofensivas ao ordenamento jurídico penal em função da ausência de autorização por essas práticas. Aqui, o objeto da tutela também é o poder de polícia da Administração Pública “e, em especial, o interesse desta de manter contro-le da entrada e saída de material radioativo do território nacional”.(46)

O tipo é mais amplo quanto aos bens protegidos, pois abrange o material nuclear, os minérios nucleares e seus concentrados (sub-metidos a tratamento laboratorial), minérios de interesse para a energia nuclear (como o zircônio e a monazita)(47) e minérios e concentrados contendo elementos nucleares. Cabe à CNEN especificar os elementos e materiais de interesse para a energia nuclear (Lei nº 6.189/74, artigo 2º, inciso VII, alterada pela Lei nº 7.781/89).

Por ser exigida a presença do elemento normativo (“sem a necessária licença”), exclui-se a tipicidade quando a importação ou exportação é autorizada pelo órgão competente.

g) Inobservância de segurança e prote-ção.

O texto do artigo 26 apresenta a seguinte redação: “deixar de observar as normas de se-gurança ou de proteção relativas à instalação nuclear ou ao uso, transporte, posse e guarda de material nuclear, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem. Pena: reclusão, de dois a oito anos”.

Dentre os tipos penais previstos na Lei nº 6.453/77, este é o único que não diz respeito à Administração Pública ou às circunstâncias inerentes ao processo de produção nuclear, cuja finalidade, nesse caso, é proteger a vida, a inte-gridade física e o patrimônio das pessoas diante do grave perigo que as instalações nucleares e o material nuclear representam. As primeiras com-preendem o reator nuclear, a fábrica que utiliza combustível nuclear para a produção de materiais

nucleares, ou na qual se proceda a tratamento de materiais nucleares, e o local de armazenamento de materiais nucleares (artigo 1º, inciso VI); o segundo, abrange todo o combustível nuclear e os produtos ou rejeitos radioativos (artigo 1º, inciso IV).

Embora considerada “norma de fundamen-tal importância para a atividade nuclear, qual seja, a de defender a população dos efeitos noci-vos da radiação e de uma acidente nuclear”,(48) limita-se o tipo a mencionar um genérico “ou-trem”, assim como o fazem os tipos voltados à repressão de delitos individuais cometidos contra indivíduos. Ocorre, porém, que “o dano nuclear é sempre coletivo, a história não registra um único caso em que um dano nuclear tenha sido sofrido por um único indivíduo”.(49)

É certo que as ações relativas às ativida-des nucleares são regidas por toda uma série de normas técnicas de segurança e de proteção, estabelecidas pela CNEN e com o propósito de evitar os temíveis acidentes. “Trata-se realmente de uma atividade com alto índice de risco ... e os sinistros, quando verificados, são irremediáveis e catastróficos”.(50)

h) Obstrução ao funcionamento ou ao transporte.

Por fim, diz o artigo 27: “impedir ou difi-cultar o funcionamento de instalação nuclear ou o transporte de material nuclear. Pena: reclusão, de quatro a dez anos”.

Neste tipo penal, o legislador visou im-pedir a ocorrência de manifestações populares que possam obstruir o funcionamento de uma instalação nuclear ou o transporte desse tipo de material. Em relação a isso, Sérgio de Oliveira Médici lembra que: “No Japão e em vários países europeus, mobilizações de pessoas contrárias a atividade nuclear, embora pacíficas, consegui-ram dificultar a montagem de usinas atômicas”.(51) Sendo assim, a realização desses atos sem prejuízo ao funcionamento ou ao transporte de material nuclear é atípica.

O delito ainda é referido como “boicote ou sabotagem da atividade nuclear” e ofende “não só a política nuclear, mas o livre exercício de atividade industrial ou regional”.(52)

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

Quanto à conduta do agente, Luiz Regis Prado aponta que: “Em caso de emprego de vio-lência para fins de obstaculizar ou tornar difícil o funcionamento da instalação nuclear ou o trans-porte de material nuclear, ter-se-á caracterizado o crime contra a segurança nacional, e não o delito em tela”.(53) A propósito, vale frisar que o artigo 19 da Lei em comento enfatiza que os tipos penais em questão não revogam os “crimes nucleares” previstos na Lei de Segurança Nacio-nal (7.170/83)(54) e nas demais leis.

Percebe-se assim, que o dispositivo em apreço assume mais um caráter de defesa das instalações nucleares do que da comunidade em si, registrando-se ainda, que “tanto do ponto de vista penal como do ponto de vista civil, a Lei nº 6.453/77 é muito mais uma lei de defesa da energia nuclear do que uma lei de defesa dos cidadãos contra a energia nuclear”.(55)

3.2. Lei nº 6.938/81 de política nacional do meio ambiente

Também visando à tutela infraconstitucio-nal penal das atividades nucleares, previu a Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente) um tipo penal genérico, voltado a todas as ativi-dades poluidoras, inclusive as nucleares, norma-tizando a questão da seguinte forma: “Artigo 15. O poluidor que expuser a perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando mais grave situação de perigo existente, fica sujeito à pena de reclusão de um a três anos e multa [...]. Parágrafo 1º. A pena é aumentada até o dobro se: I – resultar: a) dano irreversível à fauna, à flora e ao meio ambiente; b) lesão corporal grave; II – a poluição é decorrente de atividade industrial ou de transporte; III – o crime é praticado durante a noite, em domingo ou em feriado. Parágrafo 2º. Incorre no mesmo crime a autoridade competente que deixar de promover as medidas tendentes a impedir a prática das condutas acima transcritas (Artigo com redação determinada pela Lei nº 7.804/89)”.

O artigo contemplou o “crime de poluição”(56) e, nos termos dessa Lei (artigo 3º, inciso III, letras a, b, c, d e e), a terminologia “po-luição” pode ser entendida como “a degradação

da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente”: a) prejudiquem a população no tocante à saúde, à segurança e ao bem-estar; b) criem condições consideradas adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem de forma desfavorável a biota(57); d) afetem o ambiente quanto às condições estéti-cas ou sanitárias; ou, ainda, e) lancem no meio ambiente matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.

O intuito do legislador foi o de proteger o patrimônio natural e a qualidade de vida do ser humano, bem como a fauna, a flora, o solo e as águas,(58) cujo dispositivo passou recentemente a ser aplicado pela jurisprudência em caso de poluição de águas já poluídas, ou seja, em que houvesse um agravamento da poluição.(59) Em outras palavras, nos casos em que a conduta do agente não se subsumisse no delito previsto no artigo 271 do Código Penal.(60)

Nos termos do artigo 3º, inciso IV, entende-se por “poluidor” “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degra-dação ambiental”, definição que traz algumas questões de difícil solução e que revelam a má redação do tipo. Ocorre que a responsabilidade penal da pessoa jurídica de Direito privado era (e ainda é) bastante controversa em 1989, quando foi incluído o artigo 15 na Lei nº 6.938/81, bem como pela impossibilidade de a pessoa jurídica de Direito público ser sujeito ativo de crime. Ou seja, “o tipo penal criado no art. 15 punia o poluidor e, no entanto, não se podia aplicar a ele a definição que lhe dava o art. 3o da própria lei”.(61)

Igualmente, como a lei em questão requer que o sujeito ativo seja o “poluidor”, e tendo em vista que a mesma já define quem pode ser assim considerado, aquele que expuser em perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, mas não puder ser encaixado no conceito legal de “poluidor”, não responderá pelo delito do artigo 15 dessa lei. A razão disso é que, nesse caso, o indivíduo em questão não preenche todos os elementos exigidos pelo tipo, pois não basta a existência da poluição em si; ainda é preciso que a incolumidade humana, animal ou vegetal seja

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colocada em perigo. Logo, depreende-se que o objeto de proteção desse delito não é apenas o meio ambiente, mas, também, a pessoa huma-na, além do que o tipo exige a ocorrência de um perigo real e concreto para a incolumidade humana, animal ou vegetal, as quais possam ser potencialmente afetadas no futuro com a conduta do agente.

Para finalizar, ainda em relação ao conceito de “poluidor” no sentido jurídico-legal do termo, este só será identificado por meio da realização de perícia, pois, para se concluir que a atividade desenvolvida pelo pretenso poluidor afeta, por exemplo, as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente, nos termos da Lei nº 6.938/81 (artigo 3º, inciso III, alínea d), é preciso que especialistas (peritos) o digam. Isso porque não é qualquer alteração ambiental que ocasiona um real prejuízo ao bem em tela, reprimível pelo direito. O mesmo se aplica em relação ao artigo 3º, inciso III, alínea e, porque, nesta hipótese, urge que se verifique, através de perícia, o quanto de matérias e energia está sendo lançado pelo agente para que se possa estabelecer um con-fronto entre esses dados e aqueles previstos nas normas estabelecedoras dos padrões ambientais – as denominadas normas de emissão – e con-cluir se aquela atividade empresarial é ou não poluidora.(62)

3.3. Lei nº 9.605/98 de crimes ambientais

Atualmente, o instrumento mais completo – a despeito de toda a crítica que se lhe faz pos-sível – no âmbito penal, com vistas à proteção do meio ambiente, encontra-se na chamada Lei de Crimes Ambientais, promulgada no Direito pátrio nos termos da Lei nº 9.605/98.

Assim, importa a análise da citada lei, que dispõe sobre os crimes contra o meio ambiente, abordando os delitos que podem ser aplicados às atividades envolvendo a energia nuclear, o que pode ser conferido em seu Capítulo V – “Dos crimes contra o meio ambiente”, na Seção III – “Da poluição e outros crimes ambientais”, e na Seção V – “Dos crimes contra a administração ambiental”, conquanto tão somente um destes dispositivos legais (o parágrafo 2º do artigo 56)

se reporte expressamente às substâncias nucle-ares ou radioativas.

a) Artigo 54 da Lei nº 9.605/98.Inaugurando a Seção III, do Capítulo V, da

referida Lei, o dispositivo em questão trata do de-lito de poluição de qualquer natureza e apresenta a seguinte redação: “Artigo 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Pena: reclu-são, de um a quatro anos, e multa. Parágrafo 1º. Se o crime é culposo. Pena: detenção, de seis a um ano, e multa. Parágrafo 2º. Se o crime: I – tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana; II – causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população; III – causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade; IV – dificultar ou impedir o uso público das praias; V – ocorrer por lança-mento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos. Pena: reclusão, de um a cinco anos. Parágrafo 3º. Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixa de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”.

O legislador criou o crime de poluição com o objetivo de tutelar o meio ambiente em toda sua amplitude, abrangendo a poluição hídrica, atmosférica, do solo, sonora, etc. O conceito de “poluição”, por sua vez, é aquele já citado, descrito na Lei nº 6.938/81 (artigo 3º, inciso III, alíneas a, b, c, d e e). A tutela é feita em razão da poluição, que diminui a qualidade ambiental com a introdução de elementos exógenos nesse meio, causando desequilíbrio prejudicial à saúde, à segurança, ao bem-estar da população, à fauna e à flora, etc., e tornando-o desnaturado e inade-quado a uma utilização específica.(63)

Entretanto, as condutas do agente estão ligadas a elementos que tradicionalmente são

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objetos de controvérsias doutrinárias, como, por exemplo, “causar poluição de qualquer na-tureza”. Essa abertura do tipo, com a utilização de termos vagos e comprometedores,(64) reve-ladora de um objeto indeterminado, abrangente das espécies e formas de poluição, independen-temente de seus elementos constitutivos(65), de duvidosa constitucionalidade(66), transmitiria a idéia de imprecisão, e incerteza, o que conduziria à insegurança e ao arbítrio.(67)

Outro problema está ligado ao fato de causar poluição “em níveis tais” e “destruição significativa”. Ocorre que tais expressões en-cerrariam situações obscuras, de modo que o seu entendimento e esclarecimento ficariam ao total arbítrio do julgador,(68) o que não condiz com um direito penal moderno, “que quer ver o transgressor sujeito à determinação da lei. A condenação justa é a que garante ao acusado a ampla defesa, o que só será possível se a ele for imputado um fato certo descrito como crime”.(69)

O legislador julgou necessária a tipificação da conduta culposa no que tange à poluição. Se tal fato for entendido como positivo, pode-se dizer que, assim agindo, “avançou-se signifi-cativamente em relação à Lei de 1981 (Política Nacional do Meio Ambiente), que só admitia o crime de poluição na forma dolosa, justamente a mais difícil de ocorrer”.(70)

Por sua vez, o parágrafo segundo, do artigo 54, contemplou cinco hipóteses em que o crime se torna qualificado: em relação à poluição do solo (inciso I), atmosférica (inciso II), da água (inciso III), das praias (inciso IV), e devido ao lançamento de resíduos sólidos, líquidos, gaso-sos, detritos, óleos e substâncias oleosas (inciso V). Tratando-se de poluição radioativa, há que se atentar aos incisos II e III, porquanto os elemen-tos neles descritos (ar e água) são instrumentos facilitadores de sua propagação.(71)

Essa norma ainda criminalizou a ausência de medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível. Todavia, conforme Paulo Affonso Leme Machado, “torna-se temerário poder impor-se a pena de limitação da liberdade individual diante de um fato incerto,

ainda que com aparência de verossimilhança”.(72) De todo modo, o legislador procurou valo-rizar na legislação brasileira um dos princípios fundamentais do direito ambiental, chamado de precaução ou princípio da prudência ou da cautela.(73)

b) Artigo 55 da Lei nº 9.605/98.Tal dispositivo visou à criminalidade na

exploração mineral, relativamente à pesquisa, lavra e extração de recursos minerais, cujos ele-mentos do tipo são: “executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida. Pena: detenção, de seis meses a um ano, e multa”.

O objetivo da tutela penal neste caso é o meio ambiente agredido pela mineração, já que este tipo de atividade causa consideráveis im-pactos ambientais. De fato, a extração mineral apresenta um elevado grau de impacto ambiental. Nesse sentido, observam Paulo Afonso Brum Vaz e Murilo Mendes que, “de um modo geral, com mais ou menos intensidade, a atividade mineradora, de qualquer espécie, é ofensiva ao meio ambiente, pelo menos enquanto não planejada, indiscriminada, clandestina ou não fiscalizada”.(74)

Tendo em vista a exigência do elemento normativo na composição desse tipo penal, pressupõe-se que somente será considerada ati-vidade agressora do meio ambiente e, portanto, poluidora, “quando efetuada à revelia ou em excesso ao ato administrativo competente para permitir, autorizar ou licenciar a atividade”.(75)

Entretanto, na mesma linha do artigo ante-rior, o dispositivo em análise é genérico, fazendo referência exclusivamente à execução de pesqui-sa, lavra ou extração de recursos minerais(76) deixando de mencionar de forma expressa os materiais nucleares e radioativos.

Além da conduta básica, a norma tipifica como criminosa a ausência de recuperação da área degradada. Conforme a redação do artigo 55, parágrafo único: “Nas mesmas penas incor-re quem deixa de recuperar a área pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, per-missão, concessão ou determinação do órgão competente”.

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O dever de recuperação na exploração mineral, já imposto expressamente pela Carta Magna (artigo 225, parágrafo 2º), também foi tutelado penalmente. Deve-se atentar, todavia, que a recuperação ambiental caracterizadora do crime deve ocorrer segundo a determinação do órgão competente ou conforme os termos da autorização, permissão, licença ou concessão.

c) Artigo 56 da Lei nº 9.605/98.O presente tipo penal, que versa sobre

o produto ou a substância tóxica, de natureza perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, tem a seguinte redação: “Artigo 56. Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos. Pena: reclusão, de um a quatro anos, e multa. Parágrafo 1º. Nas mesmas penas incorre quem abandona os produtos ou substâncias referidos no caput, ou os utiliza em desacordo com as normas de segurança. Parágra-fo 2º. Se o produto ou a substância for nuclear ou radioativa, a pena é aumentada de um sexto a um terço. Parágrafo 3º. Se o crime é culposo. Pena: detenção, de seis meses a um ano, e multa”.

Igualmente visando à tutela do meio am-biente sadio e equilibrado e da saúde do próprio ser humano, o dispositivo ora em análise reprime qualquer manuseio de elementos perigosos, tóxi-cos ou nocivos, condicionando que a conduta do agente seja realizada ao arrepio da legislação ou das normas administrativas. Logo, para se esta-belecer a existência desse delito é preciso saber o que pode ser entendido como material tóxico, perigoso ou nocivo, além de conhecer quais as regras de manuseio fixadas pela Administração Pública.

Incrimina-se, portanto, a conduta de polui-ção do solo por resíduos perigosos, bem como a mera conduta de manuseio de elementos não residuais, ou seja, pune-se a utilização de subs-tâncias que em potencial possam causar danos ao meio ambiente. Sendo assim, “não é a poluição que se incrimina, mas sim a não-observância das

normas administrativas durante o manuseio de tais produtos”.(77)

Esse mesmo artigo da lei em comento também considera criminoso o abandono dos produtos ou substâncias tóxicas, perigosas ou nocivas à saúde humana ou ao meio ambiente. Nesses casos, basta o abandono desses produtos ou substâncias para a caracterização do delito previsto no parágrafo 1º, independentemente da existência de lei ou regulamento repetindo que tal produto ou substância não possa ser abandonado. “O tipo penal proíbe, portanto, deixar, jogar, esquecer, não remover para depósito autorizado, os produtos ou substâncias tóxicas, perigosas ou nocivas”.(78)

Em relação às “substâncias tóxicas”, elas podem ser entendidas como aquelas que, “se forem inaladas ou ingeridas, ou se penetrarem na pele, podem implicar efeitos posteriores graves, até mesmo a morte”. Já, as “substâncias perigosas” são aquelas “cuja utilização pode representar riscos imediatos ou futuros ao meio ambiente”. Por sua vez, as “substâncias nocivas à saúde” são “as que, por inalação, ingestão ou via cutânea, podem ocasionar efeitos graves ao ser humano”; finalmente, “substâncias nocivas ao meio ambiente” são “as que possam atingir a flora, a fauna, a água, tudo enfim que faça parte dos recursos naturais”.(79)

No parágrafo 2º, do artigo 56, o legislador resolveu tratar, especialmente, de produto ou substância nuclear ou radioativa. A definição de “produto ou substância nuclear ou radioativa” não existe na CNEN, razão pela qual o termo cor-reto, como já registrado anteriormente, consiste no “material nuclear ou radioativo”, conforme o inciso IV, do artigo 1º, da Lei nº 6.453/77, “não que haja diferença em termos lingüísticos, mas sim por uma questão de precisão terminológica, para que sejam evitados problemas interpretati-vos”.(80)

Ao tratar da questão de modo específico, o legislador tão somente mencionou que se o produto ou a substância for nuclear ou radioa-tiva, haverá um aumento da pena (de um sexto a um terço), indicando, desse modo, uma maior gravidade do desvalor da ação do sujeito ativo,

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

influindo diretamente na medida do injusto penal.

A dúvida que surge nesse ponto é se o le-gislador agiu corretamente ao inserir, na Lei nº 9.605/98, um dispositivo tratando especialmente das atividades nucleares e radioativas, quando existe lei específica sobre o tema, no caso, a Lei nº 6.453/77. Esse assunto será objeto de análise, em separado, no próximo tópico.(81)

Por derradeiro, a lei previu expressamente, no parágrafo 3º, do artigo 56, da Lei nº 9.605/98, a punição do delito a título de culpa. Então, o crime pode ser cometido por negligência, impru-dência ou imperícia, quer o objeto seja substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, e o ato se dê em descordo com normas administrativas, quer se trate de aban-dono ou utilização em desacordo com a norma específica, bem como em se tratando de material nuclear ou radioativo; porém, neste caso, sem o aumento de pena determinado pelo parágrafo 2º da Lei em questão.

d) Artigo 60 da Lei nº 9.605/98.O tipo penal constante do artigo 60

apresenta os seguintes elementos: “Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, esta-belecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos ór-gãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes. Pena: detenção, de um a seis meses, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”.

Inicialmente é válido registrar que o li-cenciamento e a revisão de atividade efetiva ou potencialmente poluidora constituem instru-mentos da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81, artigo 9º, inciso IV). Tamanha é a relevância de tais atividades que a lei esta-beleceu, para sua instalação, a obrigatoriedade de prévio licenciamento, independentemente de outras licenças exigíveis (hipóteses do artigo 10 da referida Lei).

Quanto as definições que importam à construção desse tipo penal, deve-se entender, por obra, a construção ou a edificação e, por serviço potencialmente poluidor, a atividade

que possa causar degradação ambiental, isto é, “alteração adversa das características do meio ambiente”.(82)

Aqui, também com o propósito de tutelar o meio ambiente como um todo, o legislador tipificou a conduta do agente que mantém, em desconformidade com a legislação pertinente, estabelecimento potencialmente poluidor, seja na ausência de licença ou autorização, seja com a inobservância do conteúdo desses atos admi-nistrativos. Relacionam-se, então, às instalações nucleares ou radioativas.(83)

No entanto, urge que se faça uma correção: a primeira parte do artigo 60 faz referência aos “órgãos ambientais competentes”. Ocorre que a CNEN, órgão responsável pela concessão de licença ou autorização no âmbito da energia nuclear, não é órgão ambiental, como requer o dispositivo em análise. De outro lado, o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, que é órgão am-biental, deve apenas manter entendimentos com a CNEN para: “a) informar-se permanentemente com relação às instalações nucleares, unidades de transporte e respectivos roteiros, a fim de delimitar as áreas passíveis de serem afetadas; e b) estabelecer normas de prevenção e proteção ambiental referentes ao uso da energia nuclear” (artigo 11, inciso III, alíneas a e b, do Decreto nº 2.210/97), sendo que em momento algum há previsão no sentido de que aquele órgão pode conceder licença ou autorização, tratando-se de instalações nucleares ou radioativas.

Já, a segunda parte do artigo 60 pode ser aplicada conforme sua redação, porquanto o IBAMA pode estabelecer normas de prevenção e proteção ambientais referentes à energia nu-clear (artigo 11, inciso III, alínea b, do Decreto nº 2.210/97), ocasião em que as normas legais ou regulamentares podem ser contrariadas. De qualquer forma, “é imperioso frisar que tendo em vista as dificuldades provenientes das particula-ridades das instalações nucleares, tormentosa é a aplicação do art. 60”.(84)

Pune-se, portanto, a prática das ações de-monstradas nos núcleos do tipo, sem que haja licença administrativa corretamente expedida.

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Ademais, todas as atividades para as quais a lei ou as normas regulamentares exigem licença ou autorização são potencialmente poluidoras. Na verdade, “trata-se de presunção que acompanha a exigência de prévia permissão, concessão, autorização ou licença administrativa”.(85)

e) Artigo 66 da Lei nº 9.605/98.Visando conceder maior eficácia aos tipos

penais ambientais, previstos na Lei nº 9.605/98, o legislador também protegeu a administração ambiental ao elevar determinadas condutas à categoria de fatos delituosos, mas sempre com o objetivo principal de tutelar o meio ambiente. Nesse sentido, o início se deu com a criação do artigo 66, cuja redação é a seguinte: “Fazer o funcionário público afirmação falsa ou enganosa, omitir a verdade, sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimentos de auto-rização ou de licenciamento ambiental. Pena: reclusão, de um a três anos, e multa”.

Primeiramente, constata-se que o delito em questão é voltado ao funcionário público, de conformidade com seu conceito para efeitos penais, previsto no Código Penal brasileiro(86) para o qual há o dever de exercer as funções corretamente como serviço público, ou seja, de interesse geral, de acordo com o legalmente pre-visto (princípios da legalidade e eficiência).(87)

Também é importante salientar que as informações ou os dados técnico-científicos aos quais o legislador fez referência são da maior importância nos procedimentos administrativos de autorização(88) ou licenciamento ambiental. É certo, porém, que são os especialistas da área que farão a análise e dirão se o projeto é compa-tível com a proteção do meio ambiente.

f) Artigo 67 da Lei nº 9.605/98.Com os mesmos objetivos e seguindo a

mesma linha de tutela penal, prevê o artigo 67: “Conceder o funcionário público licença, autori-zação ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja realização depende de ato autorizativo do Poder Público. Pena: detenção, de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa”.

O tipo penal em tela está voltado ao ato de concessão irregular de licença, autorização ou permissão, seja na forma dolosa (caput), ou mesmo na forma culposa (parágrafo único). E como seu antecedente, esse tipo define um cri-me funcional, para cuja tipificação exige-se do agente (funcionário público) capacidade especial consistente no exercício de função pública.

Trata-se de um tipo abrangente, pois não atinge só atividades, obras ou serviços relaciona-dos aos radioisótopos, mas apresenta uma “forma redacional tautológica”, haja vista que o legisla-dor tipifica a conduta de conceder autorização às atividades que dependem de autorização, e “cabe dar autorização para atividades que dependam de autorização...” .(89)

g) Artigo 68 da Lei nº 9.605/98.Nos termos do disposto no artigo 68 da Lei

ora estudada, configura crime contra o meio am-biente, particularmente contra a administração ambiental: “deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental. Pena: detenção de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano, sem prejuízo da multa”.

Em razão da técnica redacional emprega-da na sua construção, críticas doutrinárias não faltam ao referido artigo, especialmente no que diz respeito à “obrigação de relevante interesse ambiental”(90), não havendo definição do que essa expressão deseja significar.

Convém esclarecer que, diante do exposto nesse dispositivo, comete o delito o agente que descumprir a obrigação de relevante interesse ambiental prevista em contrato.(91) Observa-se, portanto, que o legislador preferiu lançar mão do direito penal imediatamente, de forma que “as esferas cível e administrativa são ‘esquecidas’, ou melhor, ignoradas”.(92)

Por exemplo: a Norma CNEN-NE-1.28, de 11/10/1999, estabelece os requisitos exigidos pela CNEN para a qualificação de uma entidade como Órgão de Supervisão Técnica Indepen-dente (OSTI) em área específica de atividades em usinas núcleo-elétricas e demais instalações, nucleares ou radioativas. Dessa forma, “a de-

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sobediência às obrigações expressas na Norma 1-28 pelos integrantes, como pessoas físicas do OSTI [...] tornam essas pessoas passíveis de serem enquadrados no crime do art. 68 da Lei nº 9.605/98”.(93)

Há, ainda, previsão legal da forma culposa na modalidade negligência, “uma vez que é invi-ável alguém, por imprudência ou imperícia, não cumprir o dever legal ou contratual”.(94)

h) Artigo 69 da Lei nº 9.605/98.Também visando a tutela penal do meio

ambiente, o artigo em epígrafe prevê como crime a conduta de: “Obstar ou dificultar a ação fisca-lizadora do Poder Público no trato de questões ambientais. Pena: detenção, de um a três anos, e multa”.

Tem-se igualmente aqui um tipo penal aberto, pois de forma genérica criminaliza a conduta do agente que crie obstáculos à ação fiscalizadora do Poder Público, lembrando que a redação utiliza tal expressão (“Poder Público”) porque cabe aos entes federativos de todos os níveis (federal, estadual e municipal, mais o Distrito Federal) zelar pela proteção do meio ambiente (Constituição Federal, artigos 23, inciso VI, e 24, inciso VI).

De fato, incrimina-se a causa de emba-raço ou empecilho capazes de obstaculizar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público de todas as esferas do Poder, tratando-se de questões ambientais, como avaliação de danos, determinação de prejuízos, inspeção de objetos ou locais, e outras dessa natureza.(95)

i) Artigo 69-A da Lei nº 9.605/98.Derradeiramente, concluindo a tutela pe-

nal infraconstitucional do meio ambiente, com a introdução deste novel tipo penal pela Lei nº 11.284/06, o legislador buscou criminalizar de forma mais grave a conduta do agente nos casos da Lei nº 9.605/98. A redação do tipo é esta: “Artigo 69-A. Elaborar ou apresentar, no licenciamento, concessão florestal ou qualquer outro procedimento administrativo, estudo, lau-do ou relatório ambiental total ou parcialmente falso ou enganoso, inclusive por omissão. Pena: reclusão, de três a seis anos, e multa. Parágrafo 1º. Se o crime é culposo. Pena: detenção, de um

a três anos. Parágrafo 2º. A pena é aumentada de um terço a dois terços, se há dano significativo ao meio ambiente, em decorrência do uso de informação falsa, incompleta ou enganosa”.

Com esse novo dispositivo, o legislador, com o fito de tutelar o meio ambiente, busca punir os envolvidos na elaboração ou mesmo apresentação de estudo, laudo ou relatório técnico com conteúdo falso ou enganoso, por conta do licenciamento ambiental, concessão florestal ou outro procedimento administrativo dessa natureza.

Sendo assim, tanto o agente público de órgão ambiental, que elabore um laudo técnico, como o empreendedor que apresente esse do-cumento, sendo o mesmo total ou parcialmente falso, pode responder pelo delito. Exemplo disso é o caso de quem elabora ou apresenta um laudo técnico à CNEN para obter a licença de funcio-namento de instalação radioativa, onde se afirma, falsamente, que o local não apresenta riscos ao meio ambiente; incide, pois, no tipo. Também há previsão culposa do crime, bem como de uma majorante no caso de significativo dano ao meio ambiente por conta da utilização da informação falsa, incompleta ou enganosa.

Também aqui surgem problemas quanto à descrição típica das condutas puníveis, pois como avaliar se a falha ou omissão foram in-tencionais ou culposas? E o que se entende pela expressão “dano significativo”, a que alude o parágrafo 2º do artigo em comento?

Sobre tais questões, Edis Milaré retrata a seguinte situação: “Suponha-se que o empreen-dedor contrate uma empresa de consultoria para a elaboração de um EIA-RIMA, com vistas à obtenção de licenciamento ambiental para de-terminado empreendimento ou atividade para a qual a legislação preveja a apresentação de tal estudo. Suponha-se ainda que na análise de tal estudo, pela autoridade ambiental, seja cons-tatado um erro ou uma informação dissonante com a realidade. Ora, segundo os ditames do dispositivo legal em apreço, a empresa de consul-toria responderá pelo crime descrito nesse artigo – pois elaborou o estudo reputado enganoso –, assim como o empreendedor que o apresenta às autoridades”.(96)

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MARTINS, J. R.

Ocorre que, no mais das vezes, o empre-endedor não dispõe de conhecimento técnico suficiente para analisar e avaliar o trabalho téc-nico apresentado – motivo pelo qual contratou um terceiro para fazê-lo – e, no entanto, haverá o risco de ele responder por um engano ou omissão sem mesmo ter dado causa.

Frise-se, por fim, que “a altíssima pena cominada ao crime pode inibir ainda mais a disposição de peritos, expertos e profissionais para aceitar trabalhos cujas conclusões, ainda que técnica e cientificamente defensáveis, possam de algum modo não ser aceitas pelos técnicos dos órgãos ambientais ou do Ministério Público”,(97) ensejando uma ação penal.

Destarte, feita a análise global desses tipos penais aplicáveis, de uma forma ou de outra, às atividades nucleares, passa-se agora às obser-vações e conclusões preliminares e necessárias sobre o assunto, as quais servirão de base para a sustentação da tese de que a legislação penal em questão não funciona, além do que carece de reformas.

3.4. Tomada de posição

Inicialmente, deve-se questionar sobre a vigência dos tipos penais analisados. Apesar das divergências doutrinárias existentes(98) – as quais poderiam inexistir, caso o legislador de 1998 tivesse mencionado expressamente, na Lei nº 9.605, quais artigos foram revogados(99) –, deve-se entender revogados tacitamente os artigos 20, 22, 24 e 25 da Lei nº 6.453/77(100) pelos artigos 55 (parte do artigo 24) e 56 (parte do artigo 24 e os demais referidos); e, também, o artigo 15, da Lei nº 6.938/81, pelo artigo 54, todos da Lei nº 9.605/98.

O caput do artigo 55, da Lei nº 9.605/98, trata da execução de três atividades, a saber: a “pesquisa”, a “lavra” e a “extração”, cujo objeto são os “recursos minerais”, desde que tal ação seja levada a efeito “sem a competente autori-zação, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida”. Por sua vez, o artigo 24 da Lei nº 6.453/77 estabelece três condutas típicas: “extrair”, “beneficiar” e “comercializar” minério nuclear de forma ilegal.

Em um primeiro momento, ocorre que a conduta de “extrair” se faz presente nos dois dispositivos, a despeito de a Lei de Crimes Am-bientais não utilizar o verbo, mas a atividade (“extração”). Além disso, a expressão “recursos minerais” apresenta uma abrangência maior em relação àquela que se refere ao “minério nuclear”, permitindo, então, que se faça um ni-velamento de todos os minérios, seja o mesmo de natureza nuclear ou não.(101) Para completar, a Lei nº 9.605/98 condiciona as condutas típicas à inexistência de “autorização, permissão, con-cessão ou licença” ou, ainda, “em desacordo com a obtida”, como faz a Lei nº 6.453/77, quando também restringe os comportamentos proibidos à forma “ilegalmente”, que deve ser tomada no sentido lato, englobando a ausência de normas regulamentares decorrentes dos referidos atos administrativos. Entende-se, em razão desses motivos, que o artigo 55 da Lei de Crimes Am-bientais revogou parcialmente o artigo 24 da Lei das Atividades Nucleares.

Quanto à outra parte da redação desse dispositivo legal, as condutas de “beneficiar” e “comercializar” foram revogadas pelas ações múltiplas contidas no tipo previsto no artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais(102), muito mais abrangentes em relação às primeiras.

Entende-se, também, que esse mesmo artigo 56 da Lei nº 9.605/98 revogou os artigos 20, 22 e 25 da Lei nº 6.453/77, diante da grande extensão abarcada pelas condutas típicas nele descritas. Sendo assim, as ações nucleares de “produzir, processar, fornecer ou usar” (artigo 20); “possuir, adquirir, transferir, transportar, guardar ou trazer consigo” (artigo 22); e “expor-tar ou importar” (artigo 25), estão previstas, de um modo ou de outro(103), naquele dispositivo da Lei de Crimes Ambientais, o qual, assim como os citados tipos penais da Lei das Atividades Nu-cleares, exige que a conduta se dê em desacordo com a norma.

Finalmente, houve a revogação do artigo 15, da Lei nº 6.938/81, pelo artigo 54, da Lei nº 9.605/98. Aquele dispositivo, previsto na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, trata do crime de poluição, assim compreendido pelos tri-bunais brasileiros: “Ação civil pública. Dano ao

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

meio ambiente. Poluidor indireto. I – O poluidor que causa dano ao meio ambiente tem definição legal e é aquele que proporciona, mesmo indi-retamente, degradação ambiental. E o poluidor é sujeito ao pagamento de indenização, além de outras penalidades”.(104)

Já, o segundo dispositivo mencionado, da Lei de Crimes Ambientais, concedeu novo e amplo tratamento à matéria, portanto, de maior abrangência que a anterior, o qual até então era a única referência expressa à poluição e ao enquadramento correto para todo crime da natu-reza em epígrafe, mas isso antes da aplicação da legislação criminal a partir de 1998.(105)

Sendo assim, conclui-se que permanecem em vigor os artigos 21, 23, 26 e 27 da Lei nº 6.453/77, e artigos 54 a 56, 60, 66 a 69, e 69-A da Lei nº 9.605/98.

Embora estejam vigendo duas leis espe-cíficas sobre o tema relacionado às atividades nucleares, em que pese a impossibilidade de consenso quanto aos tipos penais vigentes, partindo-se, contudo, da posição adotada em relação a essa questão, o fato é que a legislação infraconstitucional penal existente no momento não serve para conferir uma adequada tutela penal, seja no que diz respeito à Lei nº 6.453/77, ou mesmo em relação à Lei nº 9.605/98.

O primeiro motivo para tal afirmativa é que a Lei das Atividades Nucleares (6.453/77) não promove essa tutela específica de forma ampla, haja vista que apenas um tipo penal da Lei em tela teve como objetivo a proteção da vida, da integridade física ou do patrimônio das pessoas. Além disso, ela não abarcou a segurança coletiva e a proteção do meio ambiente.(106)

Conforme já foi analisado, no que concerne aos delitos descritos nessa lei, verifica-se que os mesmos não se referem ao meio ambiente, mas à segurança nacional, às instalações nucleares, aos materiais nucleares e ao assecuramento do controle das atividades nucleares pelo Poder Público.(107) À época da elaboração da Lei nº 6.453/77, o legislador se preocupou mais com a restrição de condutas com capacidade de ofensa aos bens jurídicos diversos do meio ambiente, voltando-se às atividades desenvolvidas nas instalações nucleares(108).

Contudo, dependendo da forma como fo-rem desenvolvidas as atividades nucleares, tais bens jurídicos (vida, integridade física, patrimô-nio, meio ambiente) podem ser afetados direta ou indiretamente e de forma muito grave, o que pode implicar na sua destruição total e irreversível, os quais, portanto, devem receber um tratamento adequado por parte da lei penal.

Também no que se refere à amplitude de tutela penal por parte da Lei nº 6.453/77, há de se observar que a mesma só regula as instalações nucleares; porém, ignora as instalações radioa-tivas, ou seja, a lei contempla a energia nuclear, mas não abarca a questão das radiações ionizan-tes, sendo que ambas têm potencial para afetar bens jurídicos dignos de tutela penal.

O segundo motivo para se refutar a atual legislação infraconstitucional penal é que a Lei de Crimes Ambientais não atende às especifici-dades exigidas pelas atividades nucleares, diante da forma genérica com que trata a questão, apesar de ter voltado atenção à tutela do meio ambiente, além da saúde humana, ordenação territorial e Adminstração Pública.

Demonstrou-se, ainda, que a Lei nº 9.605/98 dispõe sobre crimes contra o meio am-biente, priorizando a tutela desse bem jurídico e abordando os delitos relativos à energia nuclear em apenas alguns dos seus dispositivos (previs-tos nas Seções III e V do Capítulo V), contudo, de maneira genérica. De forma específica, tem-se só o parágrafo 2º, do seu artigo 56, que trata da poluição radioativa. No entanto, a despeito de o legislador ter feito uma particular referência às atividades nucleares e radioativas nesse dispo-sitivo, ele não agiu corretamente.

Ocorre que, nesse caso em particular, existe uma lei específica dispondo sobre as atividades dessa natureza (Lei nº 6.453/77), muito embora a mesma não tenha tratado do assunto da maneira devida, ou seja, de forma ampla, englobando como bens jurídicos a vida, a integridade física, o patrimônio, a segurança coletiva e o meio ambiente, e tutelando, além das instalações nu-cleares, também as radioativas.

Finalmente, a terceira razão para se pre-conizar uma reforma legislativa sobre o tema é

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MARTINS, J. R.

aquela relacionada à maneira como determinados bens jurídicos podem ser expostos à ofensa (ou afetados) pelas condutas que tomem por base as atividades nucleares em seu sentido amplo, tam-bém no tocante à existência de um bem jurídico principal, objeto da tutela, e sobre a forma como se dá a intervenção penal quando da ocorrência dos comportamentos proibidos.

Verifica-se que em ambas as leis – 6.453/77 e 9.605/98 – existem vários tipos que são cons-truídos a partir de uma técnica legislativa que opta pela utilização de elementos próprios do chamado direito penal de risco, como os crimes de perigo abstrato e as normas penais em branco, buscando-se, com isso, a antecipação da tutela penal na medida em que tais elementos servem, respectivamente, de barreira de contenção para que delitos mais graves não ocorram, e como propiciadores de uma interdisciplinaridade entre o direito e outras áreas do saber.

Falhas e equívocos também estão presentes nos dois diplomas quanto às intervenções penais em cada hipótese. Comparando-se uma norma com outra, percebe-se que o tratamento dado pela Lei nº 6.453/77 é muito rígido, ao passo que a Lei nº 9.605/98 tratou a questão de forma mais branda, o que pode conduzir à constatação de que o legislador infraconstitucional descon-siderou a relação de proporcionalidade que deve haver entre a lesão (ou então, ameaça de lesão) ao bem jurídico tutelado e a sanção imposta nesses casos.

Diante de todo o exposto, conclui-se que existe uma confusão legislativa em torno das leis que dispõem sobre as atividades nucleares no direito brasileiro. Há de fato uma grande miscelânea legislativa no que diz respeito aos objetivos perseguidos pelos legisladores de cada uma delas, além da utilização desordenada dos elementos componentes da estrutura dos tipos contidos nas mesmas, o que, por si só, exige um novo tratamento jurídico-penal.

Enfim, torna-se imperioso analisar se e até onde aqueles instrumentos podem ser úteis para a tutela penal das atividades nucleares, mas desde que se tenha em vista, de forma clara, quais são os bens jurídicos que devem ser protegidos,

buscando-se a sua compatibilidade com os prin-cípios constitucionais tidos como fundamentais no estado social e democrático de direito, de importância singular para a delimitação do direito de punir. Deve-se iniciar, na verdade, uma empreitada no sentido de apontar um novo modelo de tutela penal das atividades nucleares neste mesmo estado. Mas isto é assunto para ser discutido em outra oportunidade.

4. Conclusões

Entre os avanços técnicos e/ou científicos dos últimos tempos, poucos têm levantado tanta polêmica na sociedade contemporânea quanto a obtenção de energia derivada do processamento atômico, genericamente denominada energia nu-clear ou atômica, a qual apresenta, inclusive, um risco que pode desembocar em uma catástrofe para a humanidade. Porém, as atividades nuclea-res envolvem não somente a utilização da energia nuclear, mas também, o emprego das radiações ionizantes em diversas áreas do conhecimennto, sendo, ambas, ao mesmo tempo, instrumentos fundamentais para o desenvolvimento da socie-dade e temas geradores de muita preocupação e tensão para os homens e o meio ambiente.

A energia nuclear e as radiações ionzantes têm aplicações variadas e importantes em um considerável número de atividades humanas. Há, entretanto, de se levar em conta que tais atividades também implicam conseqüências boa e ruins ao ser humano e ao meio ambiente, se mal utilizadas ou direcionadas às práticas lesivas. Em razão disso, as atividades nucleares demandam uma regulamentação jurídica ampla e consistente, a fim de permitir seu emprego de maneira séria e consciente voltado ao benefício do homem e do meio ambiente.

Quanto a regulamentação jurídica das ati-vidades nucleares no direito brasileiro, tem-se uma tutela em diferentes níveis, com a regu-lamentação constitucional e a regulamentação infraconstitucional, abarcando normas de direito internacional, direito civil, administrativo e pe-nal. A regulamentação jurídico-penal, por seu turno, é levada a efeito, em princípio, por meio de

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três leis especiais, a saber: a Lei n. 6.453/77 (Lei de Responsabilidade Criminal por Atos Lesivos às Atividades Nucleares), a Lei n. 6.938/81 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente) e a Lei n. 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), cada qual com seus objetivos e especificidades.

No entanto, entende-se que a Lei n. 6.453/77 – voltada particularmente às atividades nucleares – teve a maioria dos seus dispositivos tacitamente revogados pela Lei n. 9.605/98 – di-recionada às condutas atentatórias ao meio am-biente –, a qual também teria revogado, ainda que tacitamente, o único artigo da Lei n. 6.938/81 que poderia ter aplicação à matéria nuclear. A bem da verdade, ocorre uma confusão legislativa no direito pátrio em relação às condutas referentes às atividades dessa natureza: a Lei n. 6.453/77 só regula as instalações nucleares, ignorando as ins-talações radioativas, ou seja, contempla a energia nuclear, mas não abarca a questão das radiações ionizantes, sendo que ambas têm potencial para afetar bens jurídicos dignos de tutela penal; já, a Lei n. 9.605/98 dispõe sobre os crimes contra o meio ambiente e prioriza a tutela do citado bem jurídico, abordando os delitos relativos à energia nuclear em apenas alguns dos seus dispositivos e, ainda assim, de forma genérica (especifica-mente, trata apenas da poluição radioativa), os quais envolvem a ofensa ou exposição a perigo de outros bens jurídicos além do meio ambiente. Por tais razões e, ainda, pela necessidade de se analisar os instrumentos que podem ser úteis à tutela penal das atividades nucleares, deve-se proceder à construção legislativa de um novo modelo de tutela penal das atividades nucleares em consonância com o estado social e democrá-tico de direito.

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NOTAS

(1) Artigo científico baseado em determinadas questões desen-volvidas no “Capítulo 2 – Atividades nucleares” e no “Ca-pítulo 3 – Regulamentação jurídica das atividades nucleares no Brasil”, da Tese de Doutorado do autor, intitulada “Tutela penal em decorrência das atividades nucleares”, apresentada, defendida e aprovada perante Banca Examinadora do Depar-tamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP, no dia 3/9/ 2008.

(2) Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Professor de Direito Penal nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Facul-dade de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Professor de Direito Penal na Faculdade de Direito das Faculdades de Campinas – FACAMP. Coordenador do Curso de Direito Campus Taquaral da Universidade Meto-dista de Piracicaba – UNIMEP. Advogado e Ex-Delegado de Política de Carreira do Estado de São Paulo.

(3) INGLIS, David Rittenhouse. Nuclear energy: its physics and its social challenge. California: Addison-Wesley Publishing Company, 1973, p. 196.

(4) SEGEL, Irwin H. Bioquímica: teorias e problemas. Trad. Denise Mattatia Grassiano. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979, p. 464.

(5) MACEDO, Horácio. Dicionário de física. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 87.

(6) A radioterapia está baseada “na destruição do tumor pela absorção da energia da radiação incidente, tendo como princípio maximizar o dano ao tumor e minimizar o dano em tecidos vizinhos, normais, o que se consegue irradiando o tumor de várias direções” (OKUNO, Emico; CALDAS, Iberê L.; CHOW, Cecil. Física para ciências biológicas e biomédicas. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1982, p. 59).

(7) LORENZ, Alex; SCHMIDT, Joseph J. Datos nucleares: al servicio de las necesidades básicas de la ciencia y la tecnología. Boletín del OIEA, OIEA, Viena, n. 4, vol. 28, 1986, p. 20-21.

(8) DANTAS, Vera. O átomo que cura. Brasil nuclear, Rio de Ja-neiro, ano 6, n. 19, Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), abr.-jun. 1999, p. 13. Vale registrar, que a medicina nuclear não se confunde com a radioterapia, distinguindo-se quanto à forma de utilização do material radioativo: “En-quanto a radioterapia usa fontes seladas (ou fechadas), que emitem radiação externa ao paciente, a medicina nuclear emprega fontes de radiação abertas, administradas in vivo (via oral ou endovenosa). Se, na radioterapia, a radiação é dirigida para o ponto a ser tratado, na medicina nuclear é o próprio metabolismo do organismo do paciente que se encarrega de levar o material radioativo para o órgão a ser examinado ou tratado” (id., ibid.).

(9) Id., p. 16. Importa frisar, que “a medicina nuclear, no entanto, não veio substituir a radiologia [...]. Os dois exames são complementares” (id., ibid.).

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MARTINS, J. R.

(10) CARVALHO, Joaquim Francisco de. O acordo nuclear Brasil-Alemanha. O Brasil nuclear: uma anatomia do desenvolvimento nuclear brasileiro. Porto Alegre: Tchê!, 1987, p. 50.

(11) GIURLANI, Sílvia. Quando a radiação faz bem. Brasil nuclear, Rio de Janeiro, ano 4, n. 13, Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), abr.-jun., 1997, p. 9.

(12) SAFFIOTI, Waldemar. Fundamentos de energia nuclear. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 151.

(13) COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR (CNEN). Aplicações da energia nuclear. Disponível no site: www.cnen.gov.br/ensino/apostila/aplica.pdf, p. 9. Acesso em: 15/09/2007.

(14) Nesse sentido, conferir: CARVALHO, Joaquim Francisco de, op. cit., p. 51; SAFFIOTI, Waldemar, op. cit., p. 151; CNEN, op. cit., p. 10. No Brasil, a erradicação de certos insetos mediante irradiação dos machos até a esterilização tem sido efetuada na região de Piracicaba-SP, através do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA). A principal vantagem deste processo é que ele é mais barato, comparando-se à utilização de agrotóxicos. Nesse sentido: DANTAS, Vera. Técnicas nucleares na agricultura – Piraci-caba mira na exportação e acerta na mosca... da fruta. Brasil Nuclear, Rio de Janeiro, ano 6, n. 19, Associação Brasileira de Energia Nuclear – ABEN, abr.-jun. 1999, p. 8.

(15) INTERNATIONAL ATOMIC ENERGY AGENCY (IAEA). Use of irradiation as a quarantine treatment of food and agricutural commodities, Viena, 1992, p. 66.

(16) DIEHL, Johannes Friedrich. Safety of irradiated foods. New York: Marcel Dekker, 1995, p. 454.

(17) CAMARGO, Adriano Costa de. Conservação por irradia-ção. Disponível no site: http://www.cena.usp.br/irradiacao/cons_irrad.html. Acesso em: 19/09/2007.

(18) SIGURBJÖRNSSON, Björn; VOSE, Peter. Técnicas nucle-ares para el desarrollo agrícola y alimentario: 1964 a 1994. In: Boletín del OIEA, OIEA, Viena, n. 3, vol. 36, 1994, p. 43.

(19) Id., ibid.(20) A gamagrafia é a impressão de radiação gama em filme

fotográfico.(21) COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR

(CNEN), op. cit., p. 12.(22) COELHO, Aristides Pinto. Energia nuclear. Rio de Janeiro:

Compósita/Iarte, 1977, p. 333.(23) ISHIGURO, Yuji. A energia nuclear para o Brasil. São

Paulo: Makron Books, 2002, p. 95-97.(24) ARANHA, Fábio. Neutrongrafia: técnica nuclear ajuda a

combater drogas e terrorismo. Brasil nuclear, Rio de Janei-ro, ano 8, n. 23, Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), abr.-set. 2001, p. 19.

(25) Id., p. 21.(26) DORST, Jean. Antes que a natureza morra: por uma eco-

logia política. Trad. Rita Buongermino. São Paulo: Edgard Blücher/Universidade de São Paulo, 1973, p. 259.

(27) Entendido como aquele modelo de estado que pretende reunir, superando-os, os modelos de estado liberal e estado social.

(28) MÉDICI, Sérgio de Oliveira. Crimes relativos às atividades nucleares. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 71, vol. 561, jul. 1982, p. 293.

(29) ACORDO ENTRE O GOVERNO DA REPÚBLICA FE-DERATIVA DO BRASIL E O GOVERNO DA REPÚBLI-CA FEDERAL DA ALEMANHA SOBRE COOPERAÇÃO NO CAMPO DOS USOS PACÍFICOS DA ENERGIA NUCLEAR, apud BIASI, Renato de. A energia nuclear no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1979, p. 154.

(30) Conforme Paulo Roberto Lyrio Pimenta, denominam-se “crimes nucleares aquelas infrações penais, descritas em lei, oriundas basicamente da utilização desse tipo de energia” (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Os crimes nucleares. In: Revista dos Mestrandos em Direito Econômico da UFBA, Salvador, n. 5, jan. 1996-dez. 1997, p. 306). Ainda, de acordo com o autor, “A Lei nº 6.453/77 [...] define oito crimes relacionados com o emprego e produção da energia nuclear” (id., p. 307), sendo que ”o escopo principal visa-do com a tipificação dessas condutas foi o de assegurar a implantação da nova modalidade geradora de energia sem causar riscos ou danos para a população e para as relações externas” (id., p. 308).

(31) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 293.(32) ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 5. ed. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 591.(33) Lei nº 6.453/77: artigo 1º, inciso VI, letras a, b e c.(34) ROCHA, Lincoln Magalhães da. Responsabilidade criminal

e civil pelos ilícitos da era nuclear. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, Senado Federal, ano 22, n. 86, abr.-jun. 1985, p. 237.

(35) ÁLVARES, Walter Tolentino. Curso de direito da energia. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 532.

(36) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 238.(37) Sobre a utilização da energia nuclear, para João Maurício L.

Adeodato há “três alternativas [...]: a tese do uso total (fins bélicos e pacíficos), a tese do uso apenas pacífico e a tese da renúncia à utilização da energia nuclear em larga escala. Exclui-se aqui uma quarta e inusitada hipótese, a de utili-zação da energia nuclear exclusivamente para fins bélicos” (ADEODATO, João Maurício L. Ética, subdesenvolvimento e utilização de energia nuclear. In: Revista da Procuradoria Geral da República, São Paulo, n. 6, 1994, p. 68).

(38) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 239.(39) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 294.(40) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 295. Desse modo,

conforme Paulo Roberto Lyrio Pimenta, “a configuração do delito exige que a matéria chegue ao conhecimento do desti-natário” (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio, op. cit., p. 311).

(41) PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 457.

(42) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 591.(43) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 295.(44) De fato, “[...] a lei não exige a prática de atos de comércio

para a configuração do delito” (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio, op. cit., p. 312).

(45) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 241.(46) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 592.(47) Nesse ponto, surge um alerta: “O legislador fala também

em minério ‘de interesse para a energia nuclear’. Ora,

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

trata-se de um tipo muito aberto que retira à definição legal aquela garantia que representa o princípio da legalidade. Não usou de boa técnica o legislador ao dimensionar de forma tão vaga o objeto da tutela penal. Tal modo de legislar ofende ao princípio do nullum crimen sine lege, pois dá uma abertura demasiada ao critério subjetivo do julgador. Quantos minérios podem interessar ao problema nuclear de maneira indireta ou mesmo direta e não se alinharem entre os estritamente nucleares?” (ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 242).

(48) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 242.(49) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 592.(50) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 243.(51) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 296.(52) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 244.(53) PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2005, p. 461.(54) “Lei nº 7.170/83. Artigo 13. Comunicar, entregar ou

permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado bra-sileiro, são classificados como sigilosos. Pena: reclusão, de três a quinze anos. [...] Artigo 15. Praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem, depósitos e outras instalações congêneres. Pena: reclusão, de três a dez anos. Parágrafo 1º. Se do fato resulta: a) lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; b) dano, destruição ou neutralização de meios de defesa ou de segurança; paralisação, total ou parcial, de atividade ou serviços públicos reputados essenciais para a defesa, a segurança ou a economia do País, a pena aumenta-se até o dobro; c) morte, a pena aumenta-se até o triplo. Parágrafo 2º. Punem-se os atos preparatórios de sabotagem com a pena deste artigo reduzida de dois terços, se o fato não constitui crime mais grave”.

(55) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 593.(56) Id., p. 593.(57) A denominada “biota” pode ser compreendida como o

“conjunto de seres vivos de um ecossistema; a fauna e a flora juntas; conjunto de componentes vivos (bióticos) de um ecossistema” (LIMA E SILVA, Pedro Paulo de et. al. Dicionário brasileiro de ciências ambientais. Rio de Janeiro: Thex, 2002., p. 32).

(58) SILVA, Rodrigo Alves da. A responsabilidade penal por danos ao meio ambiente. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 61, jan. 2003. Disponível no site:http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3630, p. 3. Acesso em: 01/11/2007.

(59) “PENAL. PROCESSO PENAL. NOVA DEFINIÇÃO JURÍDICA. CPP, art. 383. DEFESA. MEIO AMBIENTE. POLUIÇÃO. O RIO PARNAÍBA. LEI Nº 6.938, DE 1981, ART.15. LEI Nº 7.804, DE 1989. I – Não é da classificação do crime que o réu se defende e sim da imputação contida na denúncia (CPP, art. 383). II – Comete o crime previsto no art. 15 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, alterado pela Lei nº 7.804, de 18 de julho de 1989, o proprietário de curtume que lança no rio matérias orgânicas putrefactas, ma-térias não-biodegradáveis, substâncias tóxicas, poluindo-o; criando, assim, uma situação de perigo para a vida humana,

animal e vegetal” (TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 1ª Região. Ap. Crim. n. 95.01.11586-0/PI. Relator Juiz Tou-rinho Neto. 3. T. Unânime. Diário da Justiça 18/04/1996. p. 25.206).

(60) SIFUENTES, Mônica. Responsabilidade penal pela má utilização da água. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 623, 23 mar. 2005. Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6506, p. 3. Acesso em: 01/11/2007.

(61) Id., ibid. Lembra a autora ainda, que: “essa lei jamais teve efetividade, sendo poucos os casos levados aos tribunais” (id., ibid.).

(62) BECHARA, Érika. Aspectos penais da Lei da Política Na-cional do Meio Ambiente. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, dez. 1996, p. 11. Conforme a autora: “A responsabilidade criminal por condu-tas lesivas ao meio ambiente, aliada à responsabilidade civil e administrativa, que podem incidir cumulativamente sem gerar bis in idem (art. 225, § 3º, CF), logra por desencorajar as condutas causadoras de degradação e desequilíbrio do entorno, razão pela qual se destaca, providencialmente, como um importante e inafastável instrumento de preservação e proteção ambiental. Assim, resta-nos concluir que o art. 15 da Lei 6.938/81 tem um salutar papel a cumprir na defesa do meio ambiente e da vida digna da coletividade. Acertou o legislador ao instituí-lo e acertará, ainda mais, o magistrado, ao aplicá-lo” (id., ibid.).

(63) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de. Crimes ambientais e infrações administrativas ambientais. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 282.

(64) REALE JÚNIOR, Miguel. Meio ambiente e Direito penal brasileiro. In: Revista de Ciências Penais, São Paulo, ano 2, n. 4, 2005, p. 75.

(65) PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 418-419.(66) MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 5. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2007, p. 950.(67) RIBEIRO, Viviane Martins. Tutela penal nas atividades

nucleares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 190.(68) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 950. De acordo com Miguel

Reale Júnior: “Fica ao alvitre do intérprete, com efetiva lesão ao princípio da legalidade, dizer o que vem a ser ‘níveis tais’, sem se ter qualquer parâmetro sequer na legislação regulamentar, à qual não se remete o tipo penal” (REALE JÚNIOR, Miguel, op. cit., p. 75). E acrescenta: “[...] com relação à fauna e à flora só é crime a ação da qual decorram danos e danos elevados: mortandade de animais ou destrui-ção significativa da flora. Há manifesta imprecisão acerca do significado e limite do que deva ser considerado como mortandade, bem como referentemente ao que se caracteriza como significativa destruição da flora” (id., p. 75-76). Para Luiz Regis Prado, “o termo em níveis tais exprime um certo quantum – suficiente –, elevado o bastante para resultar ou poder resultar em lesão à saúde humana. Por destruição significativa da flora deve ser entendida aquela realizada de maneira expressiva, de gravidade considerável. Tratam-se de corretivos típicos, excluindo-se do âmbito do injusto típico as condutas escassamente lesivas ou de pouca relevância para o bem jurídico tutelado” (PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 419). Paulo de Bessa Antunes também afirma que: “a morte de um animal, ou de quantidade diminuta de animais, não poderá ser considerada como típica, para as finalidades

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MARTINS, J. R.

do artigo que está sendo examinado. Igual raciocínio deve ser válido para a flora” (ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 511). Já Ivete Senise Ferreira frisa o seguinte: “Uma questão de grande relevância na estrutura do tipo penal am-biental é o da sua amplitude ou indeterminação da conduta incriminada, caracterizando o chamado ‘tipo aberto’, que também pode levar à incerteza jurídica, beirando os limites da infringência ao princípio da legalidade” (FERREIRA, Ivete Senise. Tutela penal do patrimônio cultural. São Pau-lo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 94). E, a esse respeito, conclui Viviane Martins Ribeiro: “[...] o artigo discutido é, indubitavelmente, inconstitucional. A sua admissão em nosso ordenamento jurídico é uma afronta aos princípios basilares da Constituição Federal” (RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 191). Contrário a essas críticas, Paulo Affonso Leme Machado afirma, categoricamente: “Não é excessivo o espectro da locução – ‘qualquer natureza’ –, pois para a consumação do delito é preciso mais do que poluir: é necessário poluir perigosamente ou causando dano”, acrescentando ainda, que ele não entende “censurável o emprego das locuções ‘de qualquer natureza’, ‘em níveis tais’, pois todas essas expressões estão fortemente ligadas à possibilidade de causar perigo ou dano aos bens protegidos. É um tipo penal aberto, que, entretanto, não gera arbítrio do julgador, nem insegurança para o acusado” (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 717-718).

(69) BEDNARSKI, José Luiz. Lei 9.605/1998: equívocos do legislador. In: Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 68, 1998, p. 4.

(70) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 950.(71) Sobre a poluição atmosférica, explica Luiz Regis Prado

que tal pode ser “entendida como a alteração do meio aé-reo em decorrência do lançamento de gases ou partículas poluentes (substâncias ácidas, tóxicas ou radioativas) –, em tal concentração que determine ou obrigue a retirada (parcial ou total, definitiva ou momentânea) dos habitantes do local atingido, ou que cause danos diretos e efetivos à sua saúde” (PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 421). Quanto à poluição da água, lembra Gilberto Passos de Freitas que “as causas mais comuns da poluição da água são: os dejetos humanos e industriais, os produtos químicos e radioativos” [(FREITAS, Gilberto Passos de. Do crime de poluição. In: FREITAS, Gilberto Passos de (org.). Direito ambiental em evolução. 2. ed. v. 1. Curitiba: Juruá, 2003, p. 143)].

(72) MACHADO, Paulo Affonso Leme, op. cit., p. 722.(73) MILARÉ, Édis, op. cit, p. 950; MACHADO, Paulo Affon-

so Leme, op. cit., p. 67; ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 29; MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Le droit de l’environnement. 6. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2003, p. 14. A esse respeito, afirma Gilberto Passos de Freitas: “Um dos princípios basilares do Direito ambien-tal é o da precaução. Muitos danos ao meio ambiente são irrecuperáveis, irreversíveis. Portanto, se a autoridade exigir que sejam adotadas medidas para evitar a ocorrência de um dano ambiental grave e irreversível, e o agente não obedece, estará cometendo o crime” (FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 150). Seguindo a tese da inconstitucionalidade deste dispositivo, Viviane Martins Ribeiro, citando Marcelo Leonardo (LEONARDO, Marcelo. Crimes ambientais e os princípios da reserva legal e da taxatividade do tipo em Direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 10, n. 37, jan.-mar. 2002, p. 165), entende

que “essa posição, contudo, não deve ser admitida, pois, da forma como está a redação desse artigo, ‘transferiu-se para o fiscal do meio ambiente (de órgão ambiental federal, estadual ou municipal) o poder de singularizar a norma penal para transformar em crime uma conduta omissiva de uma empresa ou pessoa física determinada que venha a deixar de adotar uma certa medida de precaução que aquela autoridade lhe exigiu. Há manifesto arbítrio para a autoridade adminis-trativa ambiental, que pode, por ato seu de caráter singular – dirigido a agente determinado – criar um tipo penal novo, através de uma simples notificação fiscal ambiental’. Com certeza, trata-se, mais uma vez, de um dispositivo inconsti-tucional. A sua amplitude permite a criação de tipos penais aleatoriamente por autoridades competentes, ofendendo, conseqüentemente, o princípio da legalidade” (RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 193-194, nota n. 84).

(74) VAZ, Paulo Afonso Brum; MENDES, Murilo. Meio ambiente e mineração. In: FREITAS, Gilberto Passos de (org.), op. cit., p. 251.

(75) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 326.

(76) Pesquisa mineral é a execução dos trabalhos necessários à definição de jazida, sua avaliação e a determinação da exeqüibilidade do seu aproveitamento econômico (cf. artigo 14 do Decreto nº-Lei nº 227/67). Lavra é o conjunto de ope-rações coordenadas objetivando o aproveitamento industrial da jazida (cf. artigo 36 do Decreto nº-Lei nº 227/67). Extra-ção é a atividade de aproveitamento de substâncias minerais garimpáveis (cf. artigo 10 da Lei nº 7.805/89). Por sua vez, jazida é “toda massa individualizada de substância mineral ou fóssil, aflorando à superfície ou existente no interior da terra e que tenha valor econômico” (artigo 4º do Decreto nº-Lei nº 227/67).

(77) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 332.

(78) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental ..., p. 726.

(79) FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 189-190.

(80) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 195.(81) A respeito, Paulo Affonso Leme Machado diz que: “Não

foi feliz a Lei 9.605/98 ao inserir a questão nuclear em um pequeno parágrafo, semeando confusão ao tratar da matéria, como abordando-a de forma insignificante. Os assuntos envolvendo a produção nuclear, em seus aspectos criminais, na sua quase-totalidade, continuam regidos pelo Cap. III da Lei 6.453/77” (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental ..., p. 728). Para Luiz Regis Prado: “Teria sido preferível a não inclusão da matéria nuclear no âmbito dos delitos contra o ambiente de modo genérico. Na verdade, os delitos relativos à energia nuclear, pela sua grande es-pecificidade e pela extrema gravidade que encerram, com atentados a bens jurídicos fundamentais como a vida, saúde pública, integridade corporal e ambiental, ficariam melhor se alocados em lei específica, já que exigem também propor-cionalmente ao desvalor do ato e do resultado uma sanção mais severa” (PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 429). Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho e Flávio Dino de Castro e Costa registram que: “Embora de má técnica [...], o artigo define um novo tratamento para todos

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TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO

os tipos penais descritos no art. 56 e seu § 1º, inaugurando um novo tratamento para toda conduta descrita que tenha por objeto material radioativo ou nuclear” (COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 337). Já Vladimir Pas-sos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas admitem: “Andou certo o legislador ao estabelecer essa causa de aumento de pena, considerando os riscos que derivam do emprego de tais produtos” (FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 191).

(82) Lei nº 6.938/81: artigo 3º, inciso II.(83) Relativamente às instalações nucleares e radioativas, ob-

serva Viviane Martins Ribeiro que: “Cabe, porém, fazer a ressalva de que esse dispositivo tem uma maior incidência quanto às segundas – instalações radioativas – pelo simples fato de que não é fácil proceder à construção, reforma, ampliação, instalação ou funcionamento de instalações nu-cleares em razão de sua complexidade, ainda mais se se levar em conta que elas dependem de aprovação do Congresso Nacional” (RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 196).

(84) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 197.(85) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de

Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 345.(86) “Artigo 327. Considera-se funcionário público, para os

efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. Parágrafo 1º. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Admi-nistração Pública [...]”.

(87) Artigo 37 da Constituição Federal: “A administração pú-blica direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]”.

(88) Autorização administrativa é entendida como “o ato administrativo unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração faculta ao particular o uso de bem público (autorização de uso), ou a prestação de serviço público (autorização de serviço público), ou o desempenho de atividade material, ou a prática de ato que, sem esse consentimento, seriam legalmente proibidos (autorização como ato de polícia)” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 237). Para os conceitos de “permissão” e “licença” dessa mesma autora, vide notas de n. 181 e n. 182.

(89) REALE JÚNIOR, Miguel. A lei de crimes ambientais. In: Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 345, jan.-mar. 1999, p. 127.

(90) Para Édis Milaré: “Trata-se [...] de um tipo extremamente aberto, do qual é difícil (senão impossível) extrair situações definidas e precisas, em prejuízo dos valores da certeza e da segurança, essenciais à garantia dos direitos da pessoa humana. O que vem a ser ‘relevante interesse ambiental’? Parece inevitável um componente de relatividade, ou mesmo de subjetividade, na apreciação desse interesse. A própria diferença existente entre os vários ambientes – a principiar pela diferença entre os ambientes natural, cultural e artificial – sugere que o ‘relevante interesse’ tem aspectos e pesos variados. Como estabelecer a figura do crime?” (MILARÉ,

Édis, op. cit., p. 952). Luiz Regis Prado afirma se tratar de uma “expressão por demais genérica” (PRADO, Luiz Re-gis, op. cit., p. 538). Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas alertam: “Trata-se de tipo penal aberto, ou seja, cuja abrangência alcança uma grande quantidade de situações fáticas. Esse fato, que é inquestionável, exige prudência do Ministério Público e do Judiciário. É preciso que no caso concreto se examine o constrangimento de se submeter cidadãos às agruras do processo penal, sem que haja justa causa. Se não houver discernimento na apreciação dos fatos, as mais variadas atividades poderão, sob o critério subjetivo do autor da denúncia, configurar esse crime, em tese” (FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 215-216). Já para Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho e Flávio Dino de Castro e Costa “[...] este preceito consagra um tipo extremamente aberto que, se de um lado tem o inconveniente de fragilizar o princípio da segurança jurídica, por outro possibilita uma atuação judicial mais eficaz no que se refere à repressão às agressões ao meio ambiente [...] a sofisticação do sistema de revisão de decisões judiciais – mormente na órbita criminal –, bem como a expressiva tradição jurispru-dencial de tutela da liberdade, devem funcionar como fatores tranqüilizadores para os mais receosos” (COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 371).

(91) REALE JÚNIOR, Miguel. A lei ..., p. 127.(92) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 198.(93) MACHADO, Paulo Affonso Leme, op. cit., p. 876.(94) FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos

de, op. cit., p. 217.(95) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de

Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 541.(96) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 953.(97) Id., ibid.(98) De acordo com Viviane Martins Ribeiro: “Dos oito tipos

legais inicialmente previstos no texto legislativo de 1977, apenas quatro permanecem em vigor (arts. 21, 23, 26 e 27)” (RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 176-177). Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas acrescentam: “Pois bem: um exame perfunctório do art. 56 da Lei 9.605/98 leva à conclusão de que ele dá novo tratamento aos arts. 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26 da Lei 6.453/77. Portanto, esses dispositivos foram revogados pela lei nova. Não, porém o art. 27 [...]. Logo, só esse tipo penal remanesce na antiga lei que define as atividades nucleares” (FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 247). Para Nicolao Dino de Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho e Flávio Dino Castro e Costa, “os tipos penais dos arts. 20, 22 e parte do 25 da Lei nº 6.453/77 foram revogados pelo § 2º do art. 56 [...]. Igualmente, as condutas que correspondem a utilizar-se sem a devida atenção as normas de segurança, ou descarte de materiais radioativos ou nucleares que se encontravam previstas na Lei nº 6.455/77 foram substituí-das pelo tipo criado a partir da combinação dos §§ 1º e 2º” (COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 337). Na opinião de Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado, “o art. 55 da Lei 9.605/98 revogou o art. 24 da Lei 6.453/77 e o art. 56 (§ 2º) da Lei 9.605/98 revogou os arts. 20, 22, 24 e 25, permanecendo em vigor os arts. 21, 23 e 26 da

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MARTINS, J. R.

Lei 6.453/77” (PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Proteção penal do meio ambiente. São Paulo: Atlas, 2000, p. 161). Guilherme de Souza Nucci admite que: “o art. 56 abre espaço para a aplicação do preceituado nos artigos 20, 22, 24 e 25 da Lei 6.453/77” (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 561). Por fim, para Luiz Regis Prado, o artigo 56 da Lei nº 9.605/98 revogou implicitamente “os artigos 20, 22, 24 e 25 da Lei 6.453/77” (PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 428 – nota de rodapé n. 237), o artigo 55 da Lei nº 9.605/98 “revogou tacitamente o artigo 24 da Lei 6.453/1977” (id., p. 453 – nota de rodapé n. 271) e o artigo 67 da Lei nº 9.605/98 “revogou tacitamente o artigo 21 da Lei 6.453/1977” (id., p. 535 – nota de rodapé n. 15). No mesmo sentido: MILARÉ, Édis, op. cit., p. 949 e 955; ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 512 e 514.

(99) De fato, percebe-se, de acordo com Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado, que o legislador em questão falhou ao não revogar expressamente os delitos, “descumprindo um dos objetivos da nova Lei, que era a sistematização da le-gislação penal esparsa relativa ao meio ambiente” (PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas, op. cit., p. 161).

(100) Qualquer tese relativa à revogação de dispositivos pre-vistos na Lei nº 6.453/77 por outros constantes da Lei nº 9.605/98, somente pode ter como suporte a revogação na sua forma tácita, diante da redação dos artigos em questão, pois não houve qualquer revogação expressa. Além disso, não há sequer um julgado a esse respeito no Poder Judiciário brasileiro. Logo, a postura adotada neste trabalho quanto ao tema da revogação de dispositivos penais atinentes às atividades nucleares caminha nesse sentido.

(101) Os chamados recursos minerais são compreendidos como as “concentrações minerais na crosta terrestre cujas características fazem com que sua extração seja ou possa chegar a ser técnica e economicamente factível”, ao passo que o minério em si mesmo considerado constitui um “mineral ou associação de minerais que podem, em condi-ções favoráveis, serem trabalhados industrialmente para a extração de um ou mais metais”, os quais podem conter ou não apresentar elementos nucleares como constituinte prin-cipal (PORTAL DE RECURSOS MINERAIS. Glossário. Disponível no site: http://www.prossiga.br/recursosmine-rais. Acesso em: 02/03/2008). Já a Comissão Nacional de Energia Nuclear define minério como sendo todo “mineral ou associação de minerais do qual pode ser concentrado e extraído, economicamente, um elemento químico ou um bem mineral” [(COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR (CNEN). Requisitos de segurança e proteção radiológica para instalações mínero-industriais. Norma CNEN-NN-4.01, de 06/01/2005)].

(102) As ações nucleares previstas no caput do artigo 56 da Lei nº 9.605/98 são: “Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar”. Já o seu parágrafo 1º se refere à conduta de abandonar ou utilizar o respectivo objeto material do crime.

(103) S.m.j., não se deve analisar a questão, portanto, sob a perspectiva que o faz Paulo Affonso Leme Machado, que diz: “Os arts. 20 e 22 e parte do art. 25 da Lei 6.453/77 incriminam os mesmos comportamentos que o art. 56 da

Lei 9.605/98: ‘produzir, processar, fornecer ou usar material nuclear’ (art. 20); ‘transportar, guardar’ (art. 22) e ‘exportar, importar’ (art. 25). Entretanto, a lei nuclear contém compor-tamentos que a Lei 9.605/98 não previu: ‘possuir, adquirir, trazer consigo’ (art. 22) e ‘exportação e importação de minérios nucleares’ (art. 25)” (MACHADO, Paulo Affonso Leme, op. cit., p. 727).

(104) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 511.(105) Enquanto a ação prevista no artigo 15 da Lei nº 6.938/81

se subsume só à exposição da incolumidade humana, animal ou vegetal a perigo, ou à elevação da situação de perigo existente por parte do poluidor, o artigo 54 da Lei nº 9.605/98 pune o fato de ele causar poluição de qualquer natureza e que possa atingir, indistintamente, as espécies de elementos físicos ou biológicos componentes do meio ambiente, observando-se, porém, que “não se pune toda emissão de poluentes, mas somente aquela efetivamente danosa ou perigosa para a saúde humana, ou a que provoque a matança de animais ou destruição [...] significativa da flora. Exige-se então a real lesão ou o risco provável de dano à saúde humana, extermínio de exemplares da fauna local ou destruição expressiva de parcela representativa do conjunto de vegetais de determinada região” (PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 418).

(106) Para Viviane Martins Ribeiro: “Dentre os oito tipos pre-vistos na Lei 6.453/77 – observando, porém, que não mais vigem todos os dispositivos desta lei –, apenas um deles tutelou a vida, a integridade física e o patrimônio (art. 26). Nenhum deles protegeu o ambiente” (RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 156-157). Paulo de Bessa Antunes acrescenta: “Qualquer ato ou omissão que implique dano efetivo causado contra [...] o meio ambiente [...] deverá ser punido pela legislação penal comum” (ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 590). Também no sentido de que essa lei não tutelou o meio ambiente: FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 191 e 246.

(107) Verifica-se, portanto, conforme Fernando Fragoso, que “apenas uma das condutas incriminadas interessa direta-mente à tutela do meio ambiente: a exposição da vida, ou da saúde ou do patrimônio a perigo por não observação das regras de segurança e proteção relativas à instalação nuclear ou o uso, o transporte, a posse e a guarda de material nuclear (art. 26, Lei nº 6.453)” (FRAGOSO, Fernando. Os crimes contra o meio ambiente no Brasil. In: Revista Forense, Rio de Janeiro, jan.-mar. 1992, v. 317, p. 112).

(108) A esse propósito, são válidas as razões expostas por Viviane Martins Ribeiro: “Em um primeiro momento, a preocupação restringia-se às atividades nucleares em si. Não se cogitava sobre possíveis malefícios que a energia nuclear poderia proporcionar à saúde humana e ao meio ambiente. Mesmo porque esta noção de meio ambiente era, ainda, incipiente. A Conferência de Estocolmo [...], em 1972, e suas idéias apenas haviam sido lançadas, mas não assimi-ladas por todos os Estados. Ao contrário, enfatizavam-se os benefícios dessa energia e o que estes poderiam representar ao desenvolvimento das nações, inclusive o da brasileira. A análise dos bens jurídicos tutelados pelas diversas figu-ras delitivas constantes da Lei 6.453/77 projeta todo esse contexto no qual a sociedade vivia” (RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 154).

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DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

RESUMO: Através de uma análise crítica da jurisprudência nacional e internacional, o texto aborda a questão do direito ao ambiente sadio como um direito humano e ao qual, portanto, deverão ser reconhecidos instrumentos para ga-rantir a sua proteção. Nesse sentido, menciona-se um acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal em que se reconheceu o direito ao am-biente sadio como um dos direitos humanos de terceira geração (ou terceira dimensão), cuja natureza seria metaindividual, difusa e coletiva. Por sua vez, é feito também um estudo a res-peito da várias decisões provenientes da Corte Americana e da Corte Européia de Direitos Hu-manos, dentre as quais se cita, como importantes exemplos, o julgamento da Corte Americana de Direitos Humanos que reconheceu o direito dos povos indígenas da Nicarágua a seu território e recursos naturais, adotando o paradigma do multiculturalismo e do respeito e proteção das culturas indígenas, e os desafios enfrentados pela Corte Européia de Direitos Humanos ao decidir casos envolvendo violações ao direito ao ambiente sadio, a qual ainda analisa esta infração apenas de modo indireto pela ausência de previsão expressa do termo na Convenção Européia para Proteção dos Direitos dos Homens e das Liberdades Públicas.Palavras – chave: Ambiente sadio. Direitos humanos. Jurisprudência.

Juliana Santilli1

1 Promotora de Justiça, do Ministério Público do Distrito Federal, sócia-fundadora do Instituto Socioambiental (ISA), mestre em Direito pela Univer-sidade de Brasília e doutoranda pela PUC-PR. Autora do livro “Socioambientalismo e novos direitos” (Editora Peirópolis/ISA/IEB, 2005)

Artigo

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SANTILLI, J.

ABSTRACT: Through a critical analysis of the national and international jurisprudence, the text approaches the question of the right to the heal-thy environment as a human right and for which, therefore, will have to be recognized instruments to guarantee its protection. In this direction, a sentence pronounced by the Supreme Federal Court is mentioned in which it was recognized the right to the healthy environment as one of the human rights of third generation (or third dimen-sion), whose nature would be metaindividual, diffuse and collective. In turn, a study regarding some decisions proceeding from the American Court and the European Court of Human Rights is also made, amongst which it may highlighted, as important examples, the judgment of the Ame-rican Court of Human Rights that recognized the right of the aboriginal peoples of Nicaragua to its territory and natural resources, adopting the paradigm of the multiculturalism and the respect and protection of the aboriginals cultures, and the challenges faced by the European Court of Rights Human when deciding cases involving violations of the right to a healthy environment, which still analyzes this infraction only indirectly because the absence of express provision of the word in the European Convention for Protection of the Rights of the Men and the Public Freedoms.Keywords: Healthy environment. Human rights. Jurisprudence.

1. Introdução

O presente artigo analisa casos paradigmá-ticos da jurisprudência nacional e internacional acerca do direito humano ao ambiente sadio, enfocando os principais marcos jurídicos pro-tetivos, tanto no âmbito nacional como interna-cional. Na primeira parte, destaca um acórdão do Supremo Tribunal Federal, em que o direito humano ao ambiente sadio é expressamente reconhecido, e sua natureza coletiva e interge-neracional. É também consagrado o princípio do desenvolvimento sustentável, que deve orientar a atividade econômica. Na segunda parte, o artigo aborda decisões das Cortes Inter-Americana e

Européia de Direitos Humanos sobre questões ambientais.

Tais casos revelam as possibilidades de utilização dos instrumentos e de toda estrutura legal internacional em matéria de direitos huma-nos para promover os direitos ambientais, bem como as suas limitações.

2. O Supremo Tribunal Federal e o reconhecimento do direito humano ao ambiente sadio.

Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitu-cionalidade nº 3.540-1Relator: Ministro Celso de MelloRequerente: Procurador-Geral da RepúblicaRequerido: Presidente da República

Ementa: MEIO AMBIENTE - DIREI-TO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRI-DADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NO-VÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDA-DE, CONFLITOS INTERGENERACIO-NAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPE-CIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINEN-TE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POS-SIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PRO-TEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE

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DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RE-LAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SU-PERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUES-TÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMI-CA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE IN-DEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDI-DA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defen-der e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletivi-dade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de soli-dariedade, que a todos se impõe, na prote-ção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina. A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. - A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresa-riais nem ficar dependente de motivações de

índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princí-pios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inacei-tável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao pa-trimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRE-SERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. - O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminente-mente constitucional, encontra suporte le-gitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de con-flito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo es-sencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001:

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SANTILLI, J.

UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMA-NENTE. - A Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que introduziu significativas alterações no art. 4o do Código Florestal, longe de comprometer os valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesi-vas ao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional, pelo diploma normativo em questão. - Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especial-mente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal. - É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão ins-titucional em que se posicione na estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei, não resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III). 2

O acórdão do Supremo Tribunal Federal cuja ementa está transcrita acima é o primeiro a reconhecer, de forma tão explícita e incisiva3, o direito humano ao meio ambiente ecologica-mente equilibrado, já consagrado em declarações e convenções internacionais4. Reconhece ainda que se trata de um direito de “terceira geração”, ou de “novíssima dimensão”, consagrando o postulado da solidariedade. Faz, assim, uma diferenciação em relação aos direitos humanos de “primeira geração”, que são os direitos civis e políticos, e os de “segunda geração”, que são os direitos sociais, econômicos e culturais.

Os direitos humanos se somam e se com-plementam, e não substituem uns aos outros, como poderia levar a crer a idéia de “gerações” de direitos5. O conceito mais aceito atualmente é de que o direito ao meio ambiente ecologi-camente equilibrado é um direito humano de “terceira dimensão”, em função de sua natureza metaindividual, difusa e coletiva, tratando-se de um “direito de solidariedade”, que não se enqua-dra nem no público nem no privado, tal como o direito à autodeterminação dos povos e à paz.

Analisando o capítulo de meio ambiente da Constituição brasileira (artigo 225 e seus diver-sos incisos e parágrafos), o acórdão destaca ainda que a atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente, e rei-tera o princípio do desenvolvimento sustentável - desenvolvido a partir do relatório da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Na-ções Unidas, intitulado “Nosso Futuro Comum”, coordenado pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland, e divulgado em 1987. O desenvolvimento sustentável é “aquele que

2 O Tribunal, por maioria, negou referendo à decisão que deferiu o pedido de medida cautelar, restaurando a eficácia e a aplicabilidade do diploma legislativo impugnado, nos termos do voto do relator, Ministro Celso de Mello, vencidos os Ministros Carlos Britto e Marco Aurélio. Plenário, 01.09.2005. - Acórdão, DJ 03.02.2006.

3 Outras decisões do STF se referem ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Segundo o acórdão proferido no MS 22164/SP: “O direito à integridade do meio ambiente, típico direito de terceira geração, constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido verdadeiramente abrangente, à própria coletividade social” (Tribunal Pleno, publicado no DJ de 17/11/1995).

4 A Declaração do Rio de Janeiro, resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, tem como o seu primeiro princípio: “Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza”. No mesmo sentido, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, conhecido como o “Protocolo

de São Salvador”, e promulgado pelo Decreto nº 3.321/99, afirma, em seu artigo 11, que: “Toda pessoa tem direito de viver em meio ambiente sadio e a dispor dos serviços públicos básicos. Os Estados Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente”.

5 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos “novos” direitos. In: WOLKMER, Antônio Carlos; MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p.9 e ss.

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DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

satisfaz as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas próprias necessidades”. Tal princípio passou a permear o texto constitucional e as leis ordinárias.

O acórdão reconhece ainda, com base no texto constitucional, o princípio da eqüidade intergeneracional, fundamentado no direito intergeneracional – das presentes e das futuras gerações – ao ambiente sadio. Pela primeira vez, são assegurados direitos a gerações que ainda não existem, e tais direitos restringem e condicionam a utilização e o consumo dos recursos naturais pelas presentes gerações, bem como as políticas públicas a serem adotadas pelo Estado, que de-verão considerar sempre a sustentabilidade dos recursos naturais a longo prazo.

A Constituição consagra ainda o princípio da obrigatoriedade da intervenção do Poder Público, em seus diversos níveis e instâncias, impondo-se ao Poder Público a obrigação cons-titucional tanto de prevenir como de reparar danos ambientais. O princípio da obrigatorie-dade da intervenção estatal é complementado pelo princípio da participação democrática e da transparência na gestão dos recursos ambientais, por meio da publicidade dos instrumentos de avaliação de impacto ambiental e do licencia-mento ambiental, da participação da sociedade civil em colegiados ambientais e em audiências públicas e do efetivo controle social sobre as políticas públicas. O acesso à informação6 e à educação ambiental7 são também reconhecidos como fundamentais à formação e à capacitação para a participação consciente e eficaz na gestão socioambiental8.

O acesso aos bens ambientais, naturais e culturais, deve ser eqüitativo9, e baseado nos princípios da inclusão e da justiça social. Outros princípios do Direito Ambiental, que orientam todo o sistema normativo ambiental, nacional e internacional, são:- O princípio da precaução, também chamado

de princípio da prudência ou cautela: baseia-se no Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, segundo o qual: “quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. É con-sagrado também na Convenção da Diversidade Biológica e na Convenção-Quadro sobre mu-danças climáticas10, e no nosso ordenamento constitucional, uma de suas expressões é a obrigação de realização de estudo prévio de impacto ambiental para atividades degradado-ras do meio ambiente.

- O princípio da responsabilidade, expressamente consagrado no texto constitucional que, no artigo 225, parágrafo 3º, estabelece que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e admi-nistrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Trata-se da consa-gração da responsabilidade administrativa, civil e penal pelos danos causados ao meio ambiente.

- O princípio do poluidor-pagador procura internalizar os custos externos de deteriora-ção ambiental. Conforme destaca Derani11,

6 A Lei nº 10.650, de 16/4/2003, dispõe sobre o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama. 7 A Lei nº 9.795, de 27/4/1999, dispõe sobre a educação ambiental, instituindo a Política Nacional de Educação Ambiental. Entre os princípios básicos

da educação ambiental, estão o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo. 8 Veja-se, a respeito, o excelente trabalho de Rachel Biderman Furriela, intitulado Democracia, cidadania e proteção do meio ambiente, São Paulo:

Annablume: Fapesp, 2002. Veja-se, também, a dissertação de mestrado de Raul Silva Telles do Valle, sobre Sociedade civil e gestão ambiental no Brasil: uma análise da implementação do direito à participação em nossa legislação. Departamento de Direito Econômico da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2002. Vide, também, nosso artigo, em parceria com Márcio Santilli, intitulado Meio ambiente e democracia: participação social na gestão ambiental, In: LIMA, André (Org.). O Direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental e Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p.49-53 e AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito do meio ambiente e participação popular. Brasília: Ibama, 1998.

9 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro, 11. ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p.49-51.

10 Veja, a respeito, BARROS-PLATIAU, Ana Flávia; VARELLA, Marcelo Dias. O princípio da precaução e sua aplicação comparada nos regimes da diversidade biológica e de mudanças climáticas. Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, Revista de Direitos Difusos, Ano II, volume 12: Bioética e biodiversidade, abril de 2002, p. 1587-1596.

11 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001, p.162.

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SANTILLI, J.

pela “aplicação desse princípio, impõe-se ao “sujeito econômico” (produtor, consumidor, transportador), que nessa relação pode causar um problema ambiental, arcar com os custos da diminuição ou afastamento do dano”.

- O princípio da cooperação impõe uma política de cooperação entre os Estados e os diferentes atores sociais, pois os danos ambientais não respeitam fronteiras políticas e administrativas, e têm dimensões transfronteiriças. A coopera-ção entre os Estados para a proteção ambiental implica uma soberania mais solidária.

Verifica-se, no texto constitucional bra-sileiro, uma clara influência de documentos referenciais elaborados por instituições conser-vacionistas internacionais, fundamentados em estudos científicos, especialmente o documento “Estratégia mundial para a conservação” (World Conservation Strategy), lançado em 1980 pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN, cuja sigla em inglês é IUCN), pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma ou Unep, em inglês) e pelo Fundo Mundial para a Natureza (World Wildlife Fund – WWF, em inglês)12. Tal documento define os três principais objetivos da conservação, todos eles incorporados ao texto constitucional: - ma-nutenção dos processos ecológicos essenciais e dos sistemas de sustentação da vida; - preserva-ção da diversidade genética; - utilização susten-tável das espécies e dos ecossistemas.

A questão ambiental não é tratada apenas no capítulo da Constituição especificamente destinado ao meio ambiente, mas está presente em diversos outros capítulos constitucionais (economia, desenvolvimento agrário, etc.), consagrando a orientação de que as políticas

públicas ambientais devem ser transversais, ou seja, perpassar o conjunto das políticas públicas capazes de influenciar o campo socioambiental13. A questão ambiental permeia o texto constitucio-nal não apenas mediante referências explícitas ao meio ambiente, como também por meio de dispositivos em que os valores ambientais es-tão em “penumbra constitucional, passíveis de descoberta”14.

Entre os princípios gerais da atividade eco-nômica, elencados no artigo 170 da Constituição, está a defesa do meio ambiente, ao lado da função social da propriedade, da livre concorrência, da defesa do consumidor e da redução das desi-gualdades regionais e sociais, entre outros. Da mesma forma, o capítulo constitucional dedicado à política agrícola e fundiária e à reforma agrária (artigo 184 e seguintes), estabelece que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, aos seguintes requi-sitos: utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, aproveitamento racional e adequado, observân-cia das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Trata-se, claramente, da consagração da função socioam-biental da propriedade15.

O capítulo constitucional dedicado à políti-ca urbana (artigos 182 e 183) também consagra o direito à cidade sustentável, ao estabelecer que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. A qualidade e o equilíbrio do ambiente urbano são também tutelados consti-tucionalmente. Pela primeira vez na história,

12 As mesmas entidades lançaram, em 1991, um novo documento, intitulado Cuidando do planeta Terra, que dá seqüência à Estratégia e é dividido em três partes: princípios da vida sustentável, ações adicionais para a vida sustentável e implementação e continuidade.

13 SANTILLI, Márcio. Transversalidade na corda bamba. Apresentação ao balanço de seis meses do governo Lula na área socioambiental, produzido pelo Instituto Socioambiental, e disponível no seu site

na Internet: <www.socioambiental.org>.14 Conforme MAGALHÃES Jr., Renato. Direitos e deveres ecológicos: efetividade constitucional e subsídios do Direito norte-americano. Tese de

doutoramento apresentada ao Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da USP, 1990, p.126. Apud SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 26.

15 Em relação à função socioambiental da propriedade, a sentença proferida pelo juiz José Godinho Filho, da 2ª. Vara da Justiça Federal de Tocantins, estabelece um precedente importante. A decisão ainda não transitou em julgado, mas pode se tornar o primeiro caso do país de desapropriação ambiental. Apesar de ter sido declarada produtiva, a Fazenda Bacaba, em Miranorte (TO), pode ser desapropriada para reforma agrária, por ter descumprido a sua função socioambiental. 573,66 hectares da reserva legal foram transformados em pastagem, descumprindo a exigência de que 30% da propriedade sejam preservados. Segundo a sentença, “está patente que a Fazenda Bacaba vem sendo explorada economicamente ao arrepio das normas legais de preservação do meio ambiente, levando à conclusão de que o dito imóvel não cumpre a sua função social.”

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DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

a Constituição incluiu um capítulo específico para a política urbana, que prevê uma série de instrumentos para a garantia, no âmbito de cada município, do direito à cidade sustentável, da defesa da função social da cidade, da proprie-dade e da democratização da gestão urbana. A regulamentação foi estabelecida pela Lei nº 10.257/2001, mais conhecida como o “Estatuto da Cidade”.

A questão ambiental permeia vários capí-tulos constitucionais, que revelam o reconheci-mento de sua transversalidade, e de que todas as políticas setoriais – pesqueira, florestal, mineral, industrial, econômica, agrícola, urbana, etc. – e serviços públicos – saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia, etc. – devem incorporar o componente e as variáveis ambientais16.

Quatro anos após a promulgação da nova Constituição, foi realizada a 2ª Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 (conhecida como a ECO-92), no Rio de Janeiro, que trouxe gran-de visibilidade pública e força política para a questão ambiental, inserindo definitivamente o meio ambiente entre os grandes temas da agenda nacional e global. Em 1990, com o objetivo de acompanhar a conferência, foi criado o Fórum Brasileiro de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Esse fórum teve um papel fundamental na articulação de centenas de organizações durante o período preparatório da ECO-92, voltada para a parti-cipação da sociedade civil brasileira. O Fórum de ONGs foi um espaço privilegiado para novas articulações e parcerias entre movimentos sociais e o movimento ambientalista, e foi responsável pela elaboração do Tratado das ONGs e Orga-nizações Sociais, elaborado durante a ECO-92, paralelamente ao relatório oficial.

A ECO-92 foi, claramente, um marco na história do ambientalismo internacional – e nacional, e a maior conferência até então reali-zada pela ONU. Os documentos internacionais assinados durante a ECO-92 são referências fundamentais para o Direito Ambiental Inter-nacional, e pautaram a formulação de políticas públicas sociais e ambientais em todo o mundo. São eles: 1) a Declaração do Rio de Janeiro sobre meio

ambiente e desenvolvimento, contendo 27 princípios que norteiam e fundamentam toda a legislação ambiental. Destacamos os mais importantes: desenvolvimento sustentável, precaução, poluidor-pagador, participação so-cial na gestão ambiental e acesso à informação ambiental, e obrigatoriedade da intervenção estatal (já descritos acima), entre outros.

2) a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), cujos objetivos são a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utili-zação dos recursos genéticos. Nos termos da Convenção, o acesso aos recursos biológicos e genéticos deve estar sujeito ao “consentimen-to prévio informado” dos países de origem e das populações tradicionais detentoras dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, e os benefícios derivados da utilização comercial, ou de qualquer natureza, de tais recursos devem ser compartilhados de forma “justa e eqüitativa” com esses países e essas populações, até mesmo mediante a transferência de biotecnologia e da partici-pação dos países de origem nas atividades de pesquisa. O Brasil foi o primeiro país a assinar a Convenção, seguido de mais uma centena de países, durante a ECO-92, e esta foi ratificada pelo Congresso Nacional em

16 Outro precedente importante é a decisão proferida pelo ministro Carlos Britto, do STF, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3378/DF, em 14/6/2006. A ADI ainda não foi julgada, porque, após o voto do referido ministro, pediu vista o ministro Marco Aurélio. (Andamento processual em 25/6/06). A ação foi ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria, a fim de ver declarado inconstitucional o art. 36, caput e parágrafos, da Lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Tal dispositivo determina que, nos casos de licen-ciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidades de conservação do grupo de proteção integral (parques, estações ecológicas, reservas biológicas, etc.) O ministro Carlos Britto julgou improcedente o pedido por considerar que o referido texto legal institui uma forma de compartilhamento de despesas entre o Poder Público e o empreendedor, densificando o princípio do usuário-pagador, que impõe ao empreender a obrigação de responder pelas medidas de prevenção de impactos ambientais que possam decorrer da implementação da atividade econômica.

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maio de 1994. Entre os avanços representa-dos pela referida Convenção está a adoção do princípio da soberania dos Estados sobre os recursos biológicos e genéticos existentes em seus territórios, que prevaleceu sobre o conceito anterior de que tais recursos consti-tuiriam “patrimônio da humanidade”. Países como o Japão e os Estados Unidos (que até hoje não ratificaram a Convenção), ricos em biotecnologia, pleiteavam o livre acesso a tais recursos, o que contrariaria os interesses dos países da chamada megadiversidade: Brasil, México, China, Colômbia, Indonésia, Quênia, Peru, Venezuela, Equador, Índia, Costa Rica e África do Sul, que, juntos, representam 70% da diversidade biológica do mundo.

3) Declaração de princípios para um consen-so global sobre o manejo, conservação e desenvolvimento sustentável de todos os tipos de florestas (mais conhecida como “Declaração de princípios das florestas”). Contém um conjunto de 15 princípios relacio-nados ao manejo e conservação das florestas e foi o primeiro documento a tratar da questão florestal de maneira universal.

4) Convenção-quadro sobre mudanças climá-ticas. Neste acordo, a comunidade internacio-nal reconhece as mudanças climáticas como um problema ambiental, real e global, bem como o papel das atividades humanas nas mu-danças climáticas e a necessidade de coopera-ção internacional. Estabelece como objetivo final a estabilização dos gases de efeito estufa em um nível no qual a atividade humana não interfira no sistema climático, ou no qual as mudanças no clima ocorram lentamente de modo a permitir a adaptação dos ecossistemas, além de assegurar que a produção de alimen-tos e que o desenvolvimento econômico sigam

de uma maneira sustentável17. A Convenção reconhece que a base econômica e produtiva atual depende de atividades (industriais e de transportes) que emitem gases de efeito estu-fa. O princípio básico da Convenção é o da responsabilidade comum, porém diferenciada, pelo qual os países desenvolvidos devem as-sumir os primeiros compromissos de redução das emissões, uma vez que historicamente são eles os grandes emissores e apresentam maior capacidade econômica para suportar tais cus-tos. Em 1997, durante a 3ª. Conferência das Partes, foi elaborado o Protocolo de Quioto, com o objetivo de alcançar metas específicas de redução de emissões de seis dos gases de efeito estufa18.

5) a Agenda 21 é um amplo plano de ação voltado para o desenvolvimento sustentável, com quatro seções, quarenta capítulos, 115 programas e aproximadamente 2.500 ações a serem implementadas. As quatro seções abrangem os seguintes temas:

a) dimensões econômicas e sociais: trata das relações entre meio ambiente e pobreza, saúde, comércio, dívida externa, consumo e população;

b) conservação e administração de recursos;c) fortalecimento dos grupos sociais;d) meios de implementação: financiamentos

e papel das atividades governamentais e não-governamentais.

Os documentos internacionais aprovados durante a ECO-92 já refletem a incorporação de conceitos socioambientais, e a concepção de que o novo paradigma do desenvolvimento sustentá-vel deveria incorporar não só a sustentabilidade ambiental como também a sustentabilidade social19

17 INSTITUTO DE PESQUISA AMBIENTAL DA AMAZÔNIA (Ipam). Cartilha: perguntas e respostas sobre mudanças climáticas. Belém, Pará, 2002.

18 O Protocolo de Quioto já entrou em vigor. O Brasil ratificou o Protocolo de Quioto, ao contrário dos EUA. 19 Dez anos após a realização da ECO-92, as Nações Unidas realizaram em Johannesburgo, na África do Sul, de 26 de agosto a 4 de setembro de

2002, a Cúpula mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (mais conhecida como a Rio +10). Os seus resultados formais foram a Declaração de Johannesburgo para o desenvolvimento sustentável e o Plano de implementação, contendo metas genéricas relacionadas ao acesso a água tratada, saneamento, recuperação de estoques pesqueiros, gerenciamento de resíduos tóxicos e uso de fontes alternativas de energia. O sentimento geral das organizações ambientalistas é de que não houve qualquer avanço em relação aos documentos assinados durante a ECO-92 e que o Plano de imple-mentação é vago, contendo metas genéricas e ambíguas, e sem a previsão de cronogramas e compromissos globais efetivos para a implementação dos acordos assinados durante a Cúpula da Terra (a ECO-92). Os grandes “vilões” apontados como responsáveis pelo fracasso das negociações durante a Rio + 10 foram os países do grupo conhecido como JUSCANZ (Japão, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia).

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DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

2. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o direito dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais e recursos naturais. O caso da comunidade indígena dos Awas Tingni (que pertence ao povo Mayagna, também conhecido como Sumo), contra a Nicarágua.

Em 31 de Agosto de 2001, a Corte Intera-mericana de Direitos Humanos proferiu decisão inédita e paradigmática no reconhecimento de direitos indígenas e ambientais. A Corte reconhe-ceu direitos coletivos dos povos indígenas aos seus territórios e recursos ambientais, e deter-minou ao governo da Nicarágua que estabeleça mecanismos legais para demarcar os territórios indígenas da Nicarágua, especialmente da co-munidade dos Awas Tingni. Condenou ainda a Nicarágua a pagar US$ 50 mil aos Awas Tingni, a título de indenização, além de US$ 30 mil para cobrir custas processuais e honorários.

Foi o primeiro caso decidido pela Corte acerca de direitos territoriais indígenas, e abriu um importante precedente jurisprudencial inter-nacional para o reconhecimento dos direitos de todos os povos indígenas americanos.

A decisão estabelece também um preceden-te importante do ponto de vista socioambiental, e do reconhecimento dos direitos dos povos in-dígenas aos recursos naturais existentes em seus territórios tradicionais, privilegiando a interface entre direitos culturais e ambientais. A sobrevi-vência física e cultural dos Awas Tingni estava ameaçada pela decisão do governo da Nicarágua de conceder a uma empresa coreana uma conces-são de longo prazo para exploração madeireira dentro do seu território. O governo nicaragüense já havia concedido à empresa coreana permissão

para ingressar nas terras dos Awas Tigni e iniciar alguns trabalhos preliminares voltados para a exploração madeireira, e a empresa já havia iniciado a construção, nas imediações, de uma indústria de processamento de madeira.

A decisão da Corte expressa a sua com-preensão de que a reprodução física e cultural dos povos indígenas só é possível por meio da proteção dos recursos ambientais existentes em seus territórios. A relação dos povos indígenas com a natureza é determinada por seus padrões culturais, estando intimamente associadas a di-versidade biológica e a diversidade cultural.

No plano internacional, o principal instru-mento é a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais, já ratificada pelo Brasil. Ela substituiu a Convenção 107 da OIT, que adota-va uma orientação integracionista, claramente superada pela Convenção nº 169, cujo princípio é o respeito e a proteção das culturas, costumes e leis tradicionais dos povos indígenas e tribais. Garante aos povos indígenas o direito de decidir sobre suas prioridades em relação ao processo de desenvolvimento, e de gerir, na medida do pos-sível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Utiliza a expressão “povos”, ressalvando que esta não deve ser interpretada no sentido conferido pelo direito internacional, ou seja, no sentido de formação de Estados pró-prios. Tanto a Organização das Nações Unidas (ONU) como a Organização dos Estados Ame-ricanos (OEA) estão em processo de elaboração de declarações internacionais sobre os direitos indígenas.

A Corte Interamericana é o órgão jurisdi-cional internacional responsável pelo julgamento de violações dos direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e sua decisão entendeu que a Nicarágua violou os direitos de propriedade (em sua dimensão coletiva), de proteção judicial adequada e de igualdade perante a lei, previstos na referida Convenção.

20 Consultar: SANTILLI, Juliana (org.). Os direitos indígenas e a Constituição. Brasília: Núcleo de Direitos Indígenas e Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993; MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 1999; SAN-TILLI, Márcio. Os brasileiros e os índios. São Paulo: Editora SENAC, 2000; ROCHA, Ana Flávia (Org.). A defesa dos direitos socioambientais no Judiciário. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003.

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A Constituição brasileira aprovada em 198820 claramente segue o paradigma do multi-culturalismo, ao reconhecer direitos territoriais, culturais e ambientais aos povos indígenas, quilombolas e a outras populações tradicionais e ao romper com o modelo assimilacionista e homogeneizador. Ganharam força as noções constitucionais de titularidade coletiva de direi-tos, de uso e posse compartilhados de recursos naturais e territórios e de respeito às diferenças culturais. A orientação multicultural da Consti-tuição brasileira se revela pelo reconhecimento de direitos coletivos a povos indígenas e qui-lombolas, como povos cultural e etnicamente diferenciados. Aos povos indígenas passou a as-segurar direitos permanentes e não mais direitos transitórios, já que o direito à identidade étnica e cultural diferenciada também foi assegurado. A Constituição rompeu definitivamente com a ideologia integracionista do Código Civil (até então em vigor) e do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/7321), expressa nos dispositivos que se referem à “integração dos índios à comunhão nacional” e à sua “adaptação à civilização do país” como objetivos a serem atingidos.22

3. A Corte Européia de Direitos Humanos e os direitos ambientais.

Destacamos, abaixo, alguns precedentes jurisprudenciais da Corte Européia de Direitos Humanos, que mostram a orientação deste órgão jurisdicional internacional na interpretação e julgamento dos direitos ambientais. As decisões da Corte têm reconhecido violações dos direitos à proteção judicial e a remédios efetivos, ao respeito pela vida privada e familiar, à saúde,

à cultura, e à liberdade de expressão, entre outros. Em virtude da ausência de referência expressa ao direito ao ambiente sadio na Con-venção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, os pleitos formulados perante a Corte Européia de Direitos Humanos estão sempre fundamentados em violações de outros direitos, e a violação do direito ao ambiente sadio é analisada de forma indireta, conforme veremos adiante23.

3.1. Okyay e outros X Turquia (Data do julgamento: 12/07/2005)

Dez advogados que vivem e trabalham em Izmir, uma cidade da Turquia, peticionaram à Corte Européia de Direitos Humanos em vir-tude do fato de que as autoridades locais não cumpriram decisões de Cortes administrativas turcas determinando a suspensão das atividades de três usinas termelétricas: Yatagan, Gökova e Yenikö, situadas na província de Mugla, na região sudoeste da Turquia. A cidade de Izmir está situada a aproximadamente 250 km das três usinas termelétricas, e os advogados alegaram que as suas atividades estavam causando danos ao meio ambiente, e traziam riscos para a vida e a saúde da população local. Alegaram que as suas atividades impactariam espécies da fauna, bem como as florestas e áreas agrícolas, e teriam um impacto negativo sobre o turismo, em virtude das emissões tóxicas.

Os advogados alegaram violação do art. 6º, par.1º, da Convenção européia para a pro-teção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, que prevê o direito a um processo eqüitativo. Estabelece o art. 6º, par. 1º, que: “qualquer pessoa tem direito a que sua causa

21 Há diversos dispositivos do Estatuto do Índio em vigor (Lei nº 6.001/73) que não foram recepcionados pela nova Constituição. Desde 1991, tra-mita no Congresso Nacional o projeto de lei que institui o novo “Estatuto das Sociedades Indígenas”, que procura adaptar a legislação ordinária aos novos parâmetros constitucionais, a partir de uma perspectiva mais centrada nos direitos coletivos dos povos indígenas do que nos direitos individuais dos índios.

22 Segundo o Instituto Socioambiental, existem hoje, no Brasil, cerca de 220 povos indígenas, que falam mais de 180 línguas diferentes e totalizam aproximadamente 400 mil indivíduos. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de 618 terras indí-genas, de Norte a Sul do território nacional. Informação disponível em: <http://www.socioambiental.org.>.

23 Consultar: ROBB, Cairo A.R. (ed.) International environmental law reports. Human rights and environment, vol. 3. Cambridge: Cambridge University Press, 2001; PICOLOTTI, Romina; TAILLANT, Jorge Daniel (eds.) Linking human rights and the environment. Tucson, Arizona: The University of Arizona Press, 2003; SACHS, Aaron. Eco-justice: linking human rights and the environment. Washington: Worldwatch Institute, December 1995; ZARSKY, Lyuba (ed.) Human rights & the environment: conflicts and norms in a globalizing world. London: Earthscan publi-cations, 2002; LOUKA, Elli. Biodiversity & human rights: the international rules for the protection of biodiversity. Ardsley, NY: Transnational publishers, 2002; CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.

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DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

seja examinada, eqüitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido por lei”. A Corte enten-deu que houve violação de tal direito, e condenou a Turquia a pagar, a cada peticionário, a quantia de mil euros, a título de indenização.

3.2. Taskin e outros X Turquia (Data do julgamento: 10/11/2004)

Dez pessoas que vivem nas proximidades de uma mina de ouro situada na região de Ber-gama peticionaram à Corte Européia de Direitos Humanos em virtude de licenças de operação concedidas por autoridades locais. Os peticio-nários alegaram que, em virtude das operações da mina, eles estavam sofrendo os efeitos da degradação ambiental; mais especificamente, a poluição causada pelo uso de maquinaria e explosivos e pela movimentação de pessoas. A decisão do Ministério do Meio Ambiente de conceder a licença para a prospecção de ouro para a empresa E.M. Eurogold Madencilik (posteriormente nomeada Madencilik A.S.) foi questionada perante as Cortes locais, devido ao perigo representado pelo uso de cianeto na ex-tração de ouro, e os riscos de contaminação da água subterrânea, de destruição da fauna e flora e de danos para a saúde humana.

Os peticionários recorreram à Suprema Corte Administrativa da Turquia, que avaliou os impactos ambientais, sociais e culturais das atividades da mina de ouro, tal como descritas no relatório de impacto ambiental. A Corte turca en-tendeu que estavam comprovados os riscos para o ecossistema local e para a saúde humana repre-sentados pelo uso do cianeto e que a concessão da licença de operação não atendia ao interesse público, e que as medidas de segurança adotadas pela empresa não eram suficientes para eliminar os riscos da atividade. Entretanto, a decisão da Corte não foi cumprida pelas autoridades locais dentro do período de tempo prescrito.

A Corte Européia de Direitos Humanos entendeu que houve violação do art. 6º, par. 1º (já transcrito acima), que prevê o direito a um processo eqüitativo, e do art. 8º da Convenção Européia, que prevê o direito ao respeito pela

vida privada e familiar (“Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”). Condenou ainda ao pagamento de uma indeni-zação de 3 mil euros a cada peticionário.

3.3. Bladet Tromso e Stensaas X Noruega (data do julgamento: 20/05/1999)

Bladet Tromso é o nome de um jornal norueguês, e Stensaas é o seu editor. O jornal publicou uma entrevista com um funcionário encarregado da fiscalização da caça às focas, Lindberg, e o seu relatório oficial, que o governo havia optado por não divulgar, ambos críticos da indústria, e, especialmente, de uma embarcação denominada M/S Harmoni. A Noruega criou uma Comissão de Inquérito que concluiu que a maior parte das alegações de Lindberg não es-tava provada, mas identificou diversas violações dos regulamentos de caça através das filmagens de Lindberg, e recomendou alterações nos regulamentos e no treinamento dos caçadores. A tripulação do M/S Harmoni moveu diversas ações judiciais por difamação, inclusive contra os peticionários, e obteve a condenação dos mesmos ao pagamento de multas e indenizações.

A Corte Européia entendeu que o Estado norueguês não poderia invocar as suas leis de difamação para restringir a divulgação de infor-mação ambiental. Entendeu que houve violação do art. 10 da Convenção Européia, que prevê o direito à liberdade de expressão, inclusive de re-ceber ou transmitir informações sem ingerência estatal. Segundo a decisão, o relatório divulgado pelo jornal era oficial, e o papel da imprensa é contribuir para o debate público sobre temas de interesse legítimo.

3.4. Maria Guerra e outros X Itália (Data do julgamento: 19/02/1998)

Os peticionários viviam na cidade de Man-fredonia, nas proximidades de uma fábrica de produtos químicos agrícolas. No seu ciclo produ-tivo, a fábrica emitia grandes quantidades de gás inflamável, gerando graves riscos de explosões e de liberação de substâncias altamente tóxicas.

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Em 1976, uma explosão resultou no escapamento de toneladas de substâncias altamente tóxicas e levou à hospitalização de 150 pessoas, devido ao envenenamento com arsênico. O relatório de um comitê de especialistas apontou que os equi-pamentos de tratamento de emissões da fábrica eram inadequados e que a avaliação de impacto ambiental era incompleta.

A Corte Européia entendeu que houve violação do art. 8º da Convenção Européia, que prevê o direito ao respeito pela vida privada e familiar. Segundo a decisão da Corte, embora o art. 8º vise, essencialmente, proteger os indiví-duos da interferência arbitrária das autoridades públicas, ele não se limita a obrigar o Estado a se abster de realizar tal interferência, e não contém apenas uma obrigação negativa, mas também obrigações positivas inerentes ao efetivo respeito pela vida privada e familiar. A decisão da Corte reitera que a poluição ambiental grave pode afetar o bem estar dos indivíduos e a sua vida privada e familiar, e que os peticionários tiveram que esperar até que cessasse a produção de pesticidas, em 1994, para obter informações essenciais acerca dos riscos que eles e suas famílias corriam se continuassem vivendo na cidade de Manfredonia, particularmente exposta a riscos no caso de acidente na fábrica. Assim, o Estado não cumpriu a sua obrigação de asse-gurar aos peticionários o direito ao respeito pela vida privada e familiar, o que viola o art. 8º da Convenção Européia. O Estado foi condenado a pagar a cada peticionário 10 milhões de liras, a título de indenização.

Entretanto, o principal fundamento da demanda era o acesso à informação, e não a po-luição em si. Os peticionários fundamentaram a sua demanda no art. 10 da Convenção Européia, que prevê o direito à liberdade de expressão, já que o governo deixou de informar a população sobre os riscos e medidas a serem adotadas no caso de acidente. A decisão da Corte entendeu, entretanto, que não houve violação do art. 10, porque o direito à liberdade de expressão não poderia ser interpretado como uma imposição, ao Estado, de obrigações positivas de coletar e dis-seminar informações. Oito dos 20 juízes enten-deram, em opiniões em separado, que o Estado

teria obrigações positivas de coletar e disseminar informações em algumas circunstâncias.

3.5. López Ostra e outros X Espanha (Data do julgamento: 09/12/1994)

O peticionário e sua família sofreram problemas de saúde em decorrência do barulho, cheiro e fumaça provocados por uma estação de tratamento de lixo situada nas proximidades de sua casa, em Lorca. Esta cidade espanhola tem uma grande concentração de indústrias de couro, e uma das empresas mantinha uma estação de tratamento de resíduos líquidos e sólidos, cons-truída com recursos públicos, a 12m da casa do peticionário.

A Corte Interamericana de Direitos Hu-manos entendeu que houve violação do art. 8º da Convenção Européia, que prevê o direito ao respeito pela vida privada e familiar (“Qual-quer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”), e condenou ao pagamento de uma indenização de 4 milhões de pesetas, mais as custas processuais. A Corte Européia decidiu quando uma ação judicial questionando a legalidade da construção e operação da estação ainda não havia sido julgada perante a Suprema Corte espanhola.

Segundo a decisão da Corte, a poluição ambiental grave pode afetar o bem estar dos indivíduos e impedi-los de usufruir de seus lares de uma forma que afeta a sua vida privada e familiar, mesmo que não haja comprometimento sério da saúde. A família do peticionário teve que suportar os incômodos provocados pela estação por três anos, até mudar de casa. Eles se mudaram quando se tornou claro que a situação persistiria indefinidamente.

3.6. Zanden X Suécia (data do julgamento: 25/11/1993)

Os peticionários viviam em uma proprie-dade com um poço de água, adjacente a uma área onde uma empresa (“Vafab”) mantinha um depósito de lixo industrial. A água do poço foi contaminada por cianeto, proveniente do

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depósito. As autoridades locais proibiram o uso da água do poço e forneceram água limpa por um tempo. Quando a empresa que mantinha o depósito pediu uma nova licença, os peticioná-rios argumentaram que os riscos de poluição da água seriam suficientemente altos para justificar a obrigação da empresa de fornecer água limpa e própria para consumo. Entretanto, a licença foi concedida, e a demanda dos peticionários não foi atendida, levando-os a tentar, sem sucesso, obter a revisão judicial da decisão concessiva da licença.

Os peticionários recorreram à Corte Eu-ropéia de Direitos Humanos, sob o argumento de que a impossibilidade de conseguirem uma revisão judicial da decisão que concedeu a licen-ça violava o direito a um processo eqüitativo, previsto no art. 6º da Convenção Européia. A Corte entendeu que houve violação do art. 6º da Convenção Européia, e determinou o pagamento de uma indenização de 30 mil coroas suecas para cada peticionário.

4. Conclusão

As decisões da Corte Européia elencadas acima mostram como os instrumentos de defesa dos direitos humanos podem ser utilizados para promover e assegurar o direito ao ambiente sadio. Tais instrumentos podem ser úteis, princi-palmente se considerarmos que não há Tribunais internacionais na área ambiental (com exceção de Tribunais estabelecidos por organizações não-governamentais, como o Tribunal Internacional da Água, sediado em Amsterdã, na Holanda), e que as vítimas da degradação ambiental não podem recorrer a outras estruturas legais interna-cionais além das Cortes que julgam as violações de direitos humanos.

Quando recorrem às Cortes Internacionais de direitos humanos, entretanto, as vítimas da degradação ambiental devem sempre invocar outros direitos (proteção judicial, respeito à vida familiar e pessoal, etc.), expressamente previstos nos tratados internacionais de direitos humanos. Se não é possível demonstrar que um caso de degradação ambiental tem uma vinculação direta

e imediata com algum dos direitos humanos expressos, será muito difícil defender o caso perante o sistema. Isto faz com o que o sistema internacional de defesa dos direitos humanos só seja eficaz para a defesa de certos direitos ambientais, e não todos. Os casos de poluição, por exemplo, têm maior chance de sucesso, em virtude de suas evidentes conseqüências para a saúde humana, do que as demandas relativas à proteção de ecossistemas e espécies ameaçadas de extinção.

As Cortes Internacionais de direitos hu-manos têm adaptado permanentemente a sua jurisprudência, a fim de incorporar novos con-ceitos, interpretando e reinterpretando os direitos humanos. É fundamental incorporar os tratados internacionais na área ambiental ao sistema de proteção, a fim de que o direito ao ambiente sadio possa ser diretamente invocado em demandas de vítimas da degradação ambiental. Isto daria maior força e plenitude ao próprio sistema de proteção aos direitos humanos, que fortaleceria a proteção aos direitos ambientais, e conferiria maior eficácia aos tratados ambientais, que ge-ralmente não prevêem o direito de petição e os remédios adequados em casos de violações de suas normas.

Um dos principais trunfos do direito inter-nacional dos direitos humanos é o fato de que permite que as vítimas tenham acesso direto às Cortes internacionais. Os indivíduos são sujeitos de direito e podem apresentar demandas envol-vendo violações de direitos humanos praticadas por Estados perante as Cortes internacionais. Entretanto, uma limitação do sistema, no tocante à proteção dos direitos ambientais, é justamente o excessivo enfoque nos direitos individuais, em detrimento dos direitos coletivos.

O direito ao ambiente sadio é essencial-mente um direito coletivo, de que é titular toda a coletividade, e não apenas os indivíduos. Os danos ambientais assumem as mais complexas dimensões espaciais e ambientais. Vejamos o caso das mudanças climáticas provocadas pela emissão de gases de efeito-estufa, por exemplo. Embora os principais emissores sejam os países desenvolvidos, a previsão dos especialistas é de que os seus impactos se farão sentir mais

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fortemente sobre os países e populações pobres, principalmente aqueles que vivem da agricultura e da pesca.

Outro exemplo é o da poluição marítima por derramamentos de óleo provocados por na-vios, por exemplo. A poluição pode se alastrar pelo mar territorial de vários países, e impactar diversas comunidades, transcendendo as frontei-ras político-administrativas. Tais fronteiras são artificiais, e os danos ambientais evidentemente não as respeitam, assumindo dimensões trans-fronteiriças e internacionais.

Os danos ambientais têm também suas pró-prias dimensões temporais. O direito ao ambiente sadio é intergeneracional, e pertence não só às presentes como as futuras gerações. Os impactos ambientais são tanto atuais como futuros, alguns até imprevisíveis. Restringir a legitimidade para acessar o sistema internacional de direitos humanos a vítimas específicas e determinadas, pessoal e diretamente afetadas pela degradação ambiental, é extremamente limitante, quando se trata de direitos ambientais.

No caso Balmer-Schafroth e outros X Su-íça24, por exemplo, apresentado perante a Corte Européia de Direitos Humanos, os peticioná-rios argumentaram que tinham o direito de ser consultados acerca da renovação da licença de operação concedida pelo governo suíço a uma usina nuclear. A Corte entendeu que não houve violação do art. 6º da Convenção (que prevê o direito a um processo eqüitativo) porque os peticionários não conseguiram demonstrar que a operação da usina os expunha a um risco “pessoal, sério, específico e iminente”. Trata-se de interpretação claramente restritiva: os riscos representados por uma usina nuclear evidente-mente afetam não apenas os peticionários, mas toda a coletividade, direta ou indiretamente. Qualquer cidadão deveria ser parte legítima para peticionar perante a Corte, e não apenas aqueles pessoal e diretamente afetados. O direito coletivo pode ser exercido por qualquer cidadão, e a sua defesa aproveita a toda a coletividade.

A decisão da Corte Européia, ao exigir que o risco ambiental seja “iminente”, desrespeitou um princípio fundamental do Direito Ambiental: o da precaução, segundo o qual: “quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausên-cia de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas efi-cazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Tal princípio foi também frontalmente desrespeitado no posicionamento do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas no caso Bordes, Taiura e Temeharo X França25. Os peticionários, residentes da Polinésia francesa, alegaram que a realização de testes nucleares nos atóis de Mururoa e Fan-gataufa, no Pacífico Sul, pelo governo francês, representava uma ameaça ao seu direito à vida. O Comitê considerou o caso “inadmissível”, e que os peticionários não poderiam ser considerados “vítimas”, porque os riscos envolvidos com os testes nucleares eram altamente controvertidos no meio científico. Os peticionários tentaram impor o ônus da prova ao governo francês, ale-gando que as autoridades francesas não tinham sido capazes de demonstrar que os testes não colocariam em risco a saúde da população que vive no Pacífico Sul, ou o meio ambiente, por representar riscos à estrutura geológica dos atóis, mas a Corte não aceitou o argumento.

Tais decisões só reforçam a necessidade de que os tratados ambientais sejam incorporados ao sistema de proteção dos direitos ambientais, a fim de que os princípios ambientais sejam efeti-vamente respeitados, pois expressam conquistas de uma cidadania ambiental global.

Para tanto, seria necessária uma aliança mais próxima entre organizações ambientalis-tas e de direitos humanos. As primeiras tendem a priorizar, em suas agendas, os direitos civis e políticos, e a dar pouca atenção aos direitos ambientais. Ainda são poucas as organizações de defesa de direitos humanos que incluem a defesa do meio ambiente entre os seus objetivos, igno-rando que os direitos à vida, à saúde, à cultura, etc. não existem sem a garantia da integridade dos recursos ambientais.

24 Data do julgamento: 26/08/1997. 25 Data do julgamento: 22/07/1996.

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DIREITO AO AMBIENTE SADIO: JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL

No Brasil, os movimentos sociais e am-bientais da Amazônia, principalmente, têm adquirido uma maior consciência da associação entre desmatamento, grilagem de terras públicas e violência contra trabalhadores rurais. Entre-tanto, muitas organizações ambientalistas ainda tendem a enfocar principalmente a conservação de espécies, ecossistemas e processos ecológicos, deixando de lado as conseqüências da degrada-ção ambiental para as populações humanas, e o fato de que as principais vítimas da degradação

ambiental tendem a pertencer aos setores mais vulneráveis da sociedade, que arcam com os maiores ônus dos problemas ambientais.

Em um país pobre e com tantas desigual-dades sociais como o nosso, um novo paradigma de desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade estritamente ambiental, como também a sustentabilidade social – ou seja, deve contribuir para a redução da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como justiça social e eqüidade.

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O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA:O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

RESUMO: O princípio da publicidade da Ad-ministração Pública, com previsão no art. 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil é norma fundamental à transparência das funções públicas e à realização dos ideais democráticos anunciados por este diploma. To-davia, a era da comunicação que definitivamente marca o início do terceiro milênio – e que define a sociedade da informação e do risco – não pode deixar de encarecer este princípio constitucional sem descurar da proteção à imagem e à intimi-dade dos cidadãos. A intelecção do princípio da publicidade e a solução da sua colisão com outros direitos fundamentais dependem de bem definir os três planos da individualidade do ser (intimidade, privacidade e relações sociais), e para tanto é imprescindível compreender a teoria dos papéis sociais.Palavras-chave: Princípio da publicidade da Administração Pública. Proteção à imagem. Teoria dos papéis sociais.

ABSTRACT: The principle of publicity of Public Administration, provided by the art. 37, caput, of the Constitution of the Federative Re-public of Brazil, is fundamental to the transpa-rency of public functions and the achievement of

Luis Manuel Fonseca Pires*

* Mestre e Doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP. Juiz de Direito em São Paulo.

Artigo

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democratic ideals declared by this Act. However, the age of communication that definitely marks the beginning of the third millennium - and that defines the society of information and risk - can only enhance the constitutional principle of protection without leaving unattended the image and privacy of the citizens. The intellection of the principle of publicity and the solution of its collision with other rights depend on the good definition of the three levels of individuality of the being (intimacy, privacy and social relations), for which is essential to understand the theory of social roles. Keywords: Principle of publicity of Public Administration. Image protection. Theory of social roles.

Introdução.

O princípio constitucional da publicidade da Administração Pública representa inequívoca conquista que cumpre – ao menos no plano hipo-tético – os anseios de um regime democrático que deve primar e conduzir-se pela transparência.

Mas neste início de terceiro milênio, em meio ao evolver da revolução dos meios de co-municação principiada nas últimas décadas do século passado, acreditamos oportuno refletir sobre a escorreita conformação que esta norma jurídica – o princípio da publicidade – deve externar.

Pois a escalada da tecnologia da comuni-cação tem proporcionado o que se convencionou denominar de sociedade da informação e do risco1.

Em outras palavras, se a ordem constitu-cional da República Federativa do Brasil inau-gurou com a Constituição Federal uma nova era que transpôs a obscuridade e o descaso com a informação e a transparência, por outro lado é necessário não deixar que a norma assecuratória desta conquista – o princípio da publicidade –

transmute-se em algoz do direito fundamental de proteção à imagem e à intimidade.

Desde logo, portanto, convém destacarmos que o objeto deste estudo não será outro senão analisarmos algumas referências que devem ser consideradas em busca da concretização do princípio constitucional da publicidade da Administração. Isto é, pretendemos propor a reflexão de alguns informes que contribuem à lídima definição da ansiada transparência da Administração Pública – com outros termos: como atender à publicidade a ser observada pelo Poder Público sem a violação a outros direitos fundamentais, sobretudo o direito de proteção à imagem e à intimidade.

Para isto anotaremos, com brevidade, noções que são fundamentais para posterior-mente trabalharmos com o nosso tema central. Iniciaremos, então, com a consignação das pre-missas necessárias: algumas noções do princípio constitucional da publicidade da Administração Pública (I) e proporemos a adoção da teoria dos papéis sociais na seara das relações do Poder Público (II).

Por fim, cuidaremos do tema central deste nosso estudo: os contornos e os limites do princí-pio constitucional da publicidade da Administra-ção Pública (III), o que pretendemos fazê-lo com a consideração do dever de informar, corolário do princípio constitucional da publicidade (III. 1), e ainda do direito de proteção à imagem e à intimidade (III. 2). Diante do conflito possível que pode existir entre o princípio constitucional da publicidade da Administração Pública e o direito de proteção à imagem e à intimidade – o que caracteriza a contemporânea sociedade da informação e do risco – formularemos algumas propostas de soluções possíveis, o que para tanto laboraremos com alguns breves exemplos a ilustrar o tema.

Iniciemos, então, o estudo.

1 É o jurista português, José Eduardo Figueiredo Dias, quem utiliza esta expressão em invocação ao termo “sociedade do risco” do sociólogo ale-mão Ulrich Beck (Direito à informação, protecção da intimidade e autoridades administrativas independentes, p. 615). Retornaremos ao tema, explicando-o com mais vagar, no tópico III. 1.

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O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

I – Noções do princípio constitucional da publicidade da Administração Pública.

O princípio constitucional da publicidade da Administração Pública não se encontra cer-rado em um único dispositivo. A despeito de sua explícita prescrição no art. 37, caput, da Cons-tituição Federal de 1988 como um dever a ser observado pela Administração Pública Direta e Indireta de todos os entes federativos a sua impe-ratividade pode ser reconhecida da interpretação sistemática da ordem constitucional.

São diversos os direitos fundamentais que prescrevem a transparência da Administração Pública.

Qualquer pessoa pode, em princípio, exigir dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse da sociedade2, e inde-pendentemente do pagamento de taxa é possível obter certidões em repartições públicas para a defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal3, pois o exercício do direito a uma tutela judicial efetiva4 pode depender destas informações. A eventual recusa, por parte do Poder Público, em realizar o princípio da publicidade e prestar informações enseja a quem prejudicado demandar perante o Judiciário5 o cumprimento deste dever jurídico. É um dever, portanto, que como regra geral se impõe a todos os Poderes do Estado6.

É possível, portanto, definir o princípio constitucional da publicidade, como se depreende do texto normativo relacionado, de acordo com a precisa síntese de Celso Antônio Bandeira de Mello: é “(...) o dever administrativo de manter plena transparência em seus comportamentos” 7. É a transparência que determina a iniciativa a ser assumida pelo Poder Público de prestar

informações, ou de pronto oferecê-las quando solicitadas pelos administrados. A transparên-cia reclama, na elaboração de seu significado na seara do direito público, a divulgação oficial das atividades, atos e decisões da Administração Pública.

Em um regime democrático de direito é en-carecida a noção de função, da expressão função pública, como o cumprimento de misteres em nome de terceiros, em nome da coletividade. E ao bem agir em representação da sociedade os agentes públicos devem informar, antes, durante e após as suas atividades como estão gerindo o patrimônio público.

O argentino Roberto Dromi8 diz que a publicidade é um predicado da ética pública. E com razão, pois é pelo princípio da publicidade, ainda, que outros direitos fundamentais têm condições de realizarem-se, como pode aconte-cer com o princípio da isonomia, como lembra Lúcia Valle Figueiredo9 – decerto, apenas pela publicidade da atividade do Poder Público é possível aferir se a Administração Pública trata os iguais do mesmo modo, se não fere o princípio da igualdade ao conceder privilégios e benesses diferenciadas a alguns. Por tudo isto, enfim, a publicidade torna-se condição de eficácia dos atos da Administração Pública10.

Para parcela da doutrina o princípio cons-titucional da publicidade abarcaria, ainda, a vedação de promoção pessoal do agente público, nos termos do art. 37, § 1º, da Constituição Fede-ral11, mas entendemos que esta intelecção me-lhor se amolda ao princípio da imparcialidade. Preferimos reservar ao princípio da publicidade o sentido de dever do Poder Público de proceder com transparência, o que representa a imperiosa necessidade de divulgar oficiosamente as suas ações e prontamente disponibilizá-las quando solicitadas por qualquer pessoa.

2 Art. 5º, XXXIII, primeira parte.3 Art. 5º, XXXIV, b.4 Art. 5º, XXXV.5 Novamente, art. 5º, XXXV, e ainda o inciso LXXII, a. 6 Como a exemplo se tem do comando do art. 93, IX.7 Curso de direito administrativo, p. 102.8 Derecho administrativo, p. 227-229.9 Curso de direito administrativo, p. 62.10 É a posição de José Cretella Júnior, Das licitações públicas, p. 138.11 Conforme Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 87.

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É por meio das informações divulgadas e disponibilizadas que a sociedade controla o cumprimento do mandato público, que se per-mite a fiscalização do Poder Público e dos seus agentes, que se confere real sentido ao princípio fundamental de que todo o poder emana do povo12 e, em razão disto, aqueles que exercem o poder atuam como servidores, isto é, exercem uma função – um dever em nome, no caso, da coletividade.

De tal sorte, o princípio da publicidade apenas se cumpre se, como ensina Diógenes Gasparini13, a informação decorre de publicação de órgão oficial, e não por notícia divulgada pela imprensa, ainda que o programa ou a instituição mantenha alguma relação com o Governo, como acontece com a Voz do Brasil transmitida por rádio.

Mas se o princípio constitucional da publi-cidade, em última análise, é norma permeada no sistema constitucional, deve admitir, em regime de exceção, o seu afastamento para, em hipóteses concretamente justificáveis, atender a outros comandos igualmente previstos na Constituição Federal. É o que dispõe o art. 5º, XXXIII, em sua parte final ao conceber, ao menos hipoteticamen-te, que o sigilo – que se contrapõe à publicidade – é admissível quando “(...) imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. A exceção reproduz-se em uma situação específica, igual-mente prevista no ordenamento constitucional, no art. 37, § 3º, II, ao se determinar que a lei ordinária deve disciplinar as formas de partici-pação do usuário na Administração Pública, e no tocante ao acesso a registros administrativos e demais informações sobre os atos de governo é necessário observar o inciso XXXIII do art. 5º, o que envolve, é claro, a possibilidade de sigilo.

A previsão constitucional é compreensí-vel. Não há direito absoluto – sequer a vida, pois a legítima defesa e as hipóteses de aborto são exemplos disto. Portanto, é fácil considerar como exemplo de recusa legítima de prestar in-

formações uma situação na qual o administrado pretende obter, da polícia militar, informes sobre a quantidade de armas do batalhão, qual a estra-tégia adotada para a distribuição do policiamento pela cidade, quantos policiais encontram-se em exercício durante os turnos da manhã e da noite e outras informações mais que não devem ser repassadas a qualquer interessado sob pena de comprometer a segurança pública. Apenas investigações e requisições realizadas por ór-gãos e Poderes competentes para tanto, como o Ministério Público e o Judiciário, ou mesmo solicitações feitas pelo Chefe do Executivo, máxima autoridade hierárquica dentro do Exe-cutivo, podem concretamente justificar o retorno do dever de cumprir o princípio constitucional da publicidade, ou ao menos determinar que com eles seja compartilhada a informação sigilosa para que se avalie a sua pertinência.

A exemplo disso lembramos a Lei 8.159/90 que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados. Prescreve esta lei que é dever do Poder Público a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivos

14,

que todos têm o direito de receber dos órgãos públicos informações, contidas em documentos de arquivos, de seu interesse particular ou de in-teresse coletivo ou geral, mas ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, e ainda à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas15. Em seu art. 23 prescreve que por Decreto serão fixadas as categorias de sigilo que deverão ser obedecidas pelos órgãos públicos na classificação dos documentos, e em seu § 2º que o acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado é restrito por um prazo máximo de trinta anos a contar da data de sua produção, e que este prazo pode ser prorrogado, por uma única vez, por igual período, e que o acesso aos documentos sigilosos referentes à honra e à imagem das pessoas é restrito por um prazo máximo de cem anos a contar da sua data de produção16.

12 Art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.13 Direito administrativo, p. 11.14 Art. 1º.15 Art. 4º.16 § 3º.

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Esta lei confirma a nota de excepciona-lidade do sigilo, tanto quanto às razões que o fundamentam (em síntese, a segurança pública e a proteção à imagem e à moral) quanto pelo tempo a imperar a reserva de informação (pois o sigilo não pode ser indefinido). E mesmo durante o período de sigilo é expressamente prescrito o que de outra forma não poderia ser – sob pena de inconstitucionalidade –: pode o Poder Judiciário, em qualquer instância, determinar a exibição re-servada de qualquer documento sigiloso, sempre que indispensável à defesa de direito próprio ou esclarecimento de situação pessoal da parte17.

Outra referência ao sigilo advém da Lei 11.111/05. Dispõe esta norma que o acesso aos documentos públicos de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral é ressalvado ex-clusivamente nas hipóteses em que o sigilo seja ou permaneça imprescindível à segurança da sociedade e do Estado18. Mas em seu art. 6o, ao se reportar aos prazos de sigilo que acima reprodu-zimos do art. 23 da Lei 8.159/91, é categórico ao afirmar que os documentos classificados no mais alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público.

Resta-nos esclarecer, ainda, que esta norma – o princípio da publicidade – é aplicável, como dispõe o caput do art. 37 da Constituição Federal, a todos os Poderes, de todos os entes da fede-ração, e em relação ao Executivo abrange ainda as pessoas da Administração indireta, como as autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista.

A única ressalva que deve ser feita diz res-peito a estas duas últimas. As empresas públicas e as sociedades de economia mista são criadas ou para a prestação de um serviço público ou para a exploração da atividade econômica, e neste últi-mo caso, e apenas em relação às informações que se referem à atividade-fim, como exemplo as que tratam do bem de consumo produzido, de suas técnicas de produção, comercialização etc, não é exigível a publicidade, pois nesta circunstância

as estatais devem sujeitar-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, conforme dispõe o art. 173, § 1º, II da Constituição Federal.

Mas no que se refere às outras atividades de suporte das estatais que exploram atividades econômicas, tal como acontece com a contrata-ção para a edificação de uma filial ou ampliação ou reforma de unidades já existentes, ou a con-tratação de empregados e outras inúmeras ativi-dades do gênero, incide amplamente o princípio constitucional da publicidade.

Derradeira anotação de ordem geral é que sendo a publicidade a regra, a sua violação, se não encontrar respaldo nas exceções vistas, pode caracterizar, se houver dolo do agente público, um ato de improbidade administrativa – previsto no art. 11, IV, da Lei 8.429/92.

II – A teoria dos papéis sociais e o princípio constitucional da publicidade da Administração Pública.

Porque o tema do nosso estudo cuida de confrontos possíveis entre interesses particulares – o direito de proteção à imagem e à intimidade dos cidadãos – e interesses públicos – o dever de informar do Estado – é que nos parece de signi-ficativa importância fazermos referência à teoria dos papéis sociais. A teoria dos papéis sociais é informe que auxilia o intérprete a identificar qual a real necessidade subjetiva dos sujeitos em conflito e, com isto, clareia os verdadeiros valores e fatos que devem ser perquiridos junto ao sistema jurídico.

Podemos considerar, segundo a teoria a que aludimos, que é possível identificar na sociedade inúmeros “papéis sociais”. Vale dizer – como uma informação objetiva –, há infindáveis núcleos de ações e comportamentos que são preenchidos, amiúde, por indivíduos.

17 Art. 24.18 Art. 2º. É verdade que em seu § 2o o artigo 6º dispõe sobre a possibilidade de antes de expirada a prorrogação do prazo a autoridade competente

para a classificação do documento no mais alto grau de sigilo provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que avalie se o acesso ao documento ameaça a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacio-nais do País, casos em que a Comissão pode manter a permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular. De todo modo, a intensidade de justificativa deve ser mais acentuada, e as hipóteses para esta indefinida prorrogação reduzem-se ainda mais (apenas se houver ameaça à soberania, à integridade territorial nacional ou às relações internacionais do País).

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PIRES, L. M. F.

Tanto como uma personagem em sua vida pessoal – como pai, marido, mulher, filha etc –, ou na profissional – como médico, empresário, trabalhador braçal ou desempregado –, ou na so-cial – como integrante de uma associação, como sócio de um clube, em participação de atividades em praças e parques públicos etc –, como ainda nas infinitas áreas de relacionamento – lazer, educação, trabalho, família etc. – que se inter-comunicam e, ao mesmo tempo, representam o palco de atuação destas personagens, há, no mundo fenomênico, estes núcleos de imagens (personagens) e ações e comportamentos (áreas de relacionamento).

Pela teoria dos papéis sociais, portanto, há diversos núcleos que enfeixam, em cada caso concreto, considerando qual personagem que se trata e em qual área de relacionamento se encontra, características próprias e objetivas.

A esses papéis as pessoas aderem espon-taneamente.

Não a um ou a outro exclusivamente, mas aos diversos e ao mesmo tempo tal como o ho-mem que ao mesmo tempo em que é pai também é um empresário e integrante da associação do bairro em que mora.

E é por isso que o ser humano deve a esses papéis amoldar-se, não transformá-los ao seu talante, à imagem que idealiza para si, mas ao que a sociedade conhece e espera, pois isto é ínsito à condição de viver em sociedade.

Luis Recaséns Siches afirma que o sujeito pode viver três classes de modos de conduta: a) propriamente individual; b) não individual (in-terindividual); c) coletivo. Sob esta última é que o sujeito vive como “(...) titular de um ‘papel’ ou de uma ‘função’ (...)”, algo “(...) ‘comum, tipificado, anônimo, geral (...) como sujeito de um círculo ou grupo”19.

E o mundo do direito – prossegue o autor – pertence mesmo ao âmbito do modo e dos nexos coletivos da vida humana. O direito, diz ele, é um conjunto de modos coletivos da existência humana, logo, o sujeito dos modos coletivos de

conduta não é o homem autêntico, o ser humano individual, mas um papel, uma personagem20.

Percebe-se, nessa ordem de idéias, que o conceito de cada papel social é essencialmente mutável – aliás, como o próprio Direito.

A propósito do tema, Luiz Antônio Rizza-to Nunes, com muita propriedade, esclarece a respeito:

Para essa teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não se está – isso não importa para o papel social – pensando na motivação que levou à escolha (...) nem na capacidade ou condição da pessoa que escolheu (...) nem ainda nos interesses que geraram a seleção (...). O que vale é a seleção objetivamente operada”21.

E prossegue o professor, pouco mais adian-te, ao remate oportuno:

O indivíduo é uma soma de papéis e por vezes esse indivíduo, enquanto ser real, confunde-se com os papéis que exerce. O indivíduo é simultaneamente pai, filho, irmão, estudante, profissional, político, torcedor, etc. num composto de papéis sociais. E nesse ponto podem estar papéis sociais públicos e privados, nem sempre sendo fácil distinguir quan-do o comportamento social real é de um ou de outro22.

Consideraremos, ainda, que a intimidade é a esfera mais íntima da pessoa humana, revelada por seus sentimentos mais circunscritos, intros-pectivos, e, circundando-a, há a privacidade, afeita à vida no âmbito familiar e amistoso; e secundando estas duas, tendo-as em seu di-âmetro, por tanto com maior largueza ainda, há o relacionamento público, que se refere à interação social.

A maior ou menor proteção do ordena-mento jurídico a cada uma dessas esferas da individualidade (intimidade, privacidade e re-

19 Introduccion al estudio del derecho, p. 32.20 Op. cit., p. 34.21 Comentários ao código de defesa do consumidor – Direito Material, p. 32.22 Ibidem, p. 33.

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O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

lacionamento público) acontece na proporção do papel social que o indivíduo exerce em cada caso concreto, justificando-se, portanto, quando, a título de exemplo, para um empregado numa empresa da iniciativa privada há maior proteção à sua privacidade do que tem um funcionário público em cargo de chefia, mas este, por outro lado, mais proteção goza do que um agente político.

São papéis sociais diferentes, o que jus-tifica tratamentos diferenciados na medida em que

(...) cada um exerce papel diferente, a cada momento, e tem que obedecer às regras específicas de seu papel. Assim, no ambiente do lar exerce o papel que lhe cabe no seio da família. Ao atuar profissionalmente tem que se compor-tar conforme as regras do ambiente de trabalho (...) Já nas atividades de lazer, tem outros parâmetros para seu comportamento. Conforme o papel, na sociedade diferenciada, o ser humano deve protagonizar corretamente o perso-nagem, por isso vai variar de indumen-tária, conforme o local, e a imposição do papel, tanto quanto vai se comportar conforme as regras de cada conjunto social, que será composto por diferentes seres humanos, como protagonistas23.

Cumpre identificar, portanto, em cada caso concreto, quais são os papeis sociais exercidos pelos partícipes da relação jurídica e se estes papéis justificavam suas atitudes.

Numa relação entre o Poder Público e o administrado é possível divisar, por exemplo, que o aplicador do direito deve considerar, ao interpretar as limitações administrativas, que por terem como fundamento jurídico o regime jurídico administrativo24 para o cumprimento da função administrativa a teoria dos papéis sociais é elemento que ampara a hermenêutica jurídica por permitir a melhor compreensão da posição dos sujeitos envolvidos.

Façamo-nos mais claros: para ponderar a constitucionalidade de uma limitação adminis-trativa, para avaliar a legitimidade de uma ação concreta do Poder Público a pretexto de observar uma norma geral que traceje uma limitação ad-ministrativa, para saber se há realmente apenas a conformação de um direito ou algum sacrifício – que neste último caso pode ensejar alguma in-denização –, ou mesmo para constatar algum ato arbitrário, mostra-se ser de grande valia ponderar os papéis sociais em pauta.

O papel social do Poder Público é mesmo de titular de um interesse público primário, defende, no caso concreto, um interesse da co-letividade, ou atua como particular com o fito de atingir interesses que apenas mediatamente refle-tem os anseios coletivos?; ou o papel social que representa em dada situação revela que persegue os interesses particulares de algum integrante de sua estrutura?

Um exemplo: pretende o Poder Público re-alizar, sem qualquer tradição em anos anteriores, uma festa pública de ingente proporção tendo como mote prestigiar alguma classe profissio-nal determinada, e tudo isto em ano de eleição, e sendo o atual Chefe do Executivo integrante desta classe; percebe-se, neste exemplo dado, que a despeito das dificuldades de investigar a vontade subjetiva dos agentes públicos é possível identificar, ao menos reconhecer indícios, de que o Executivo não cumpre seu papel social, mas sim se propõe a propalar os interesses elei-toreiros de seu representante. Isto porque não é papel social da Administração Pública voltar-se com exclusividade a um grupo restrito, atuar concretamente em benefício de determinados administrados, sem igualdade de condições em relação a outros grupos, e tudo com a associação deste comportamento ao fato do agente público que promove o evento pertencer ao mesmo grupo e ainda ser candidato à reeleição.

De outro lado, se um indivíduo pode ter o legítimo interesse de opor-se à intenção de seu vizinho de ingressar em seu lar para combater

23 Renam Lotufo, Curso avançado de direito civil, p. 21, v. I.24 Mencionamos exemplos que cuidamos em outra obra (Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São Paulo: Quartier Latin,

2006).

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algum foco de desenvolvimento de insetos que transmitam doenças graves como a dengue, o mesmo não pode ocorrer, diante do perigo concreto, se o pretendente for o Poder Público, pois na relação que há com ele o papel social do indivíduo é de quem deve subordinar-se ao interesse geral de colaborar em exterminar o desenvolvimento das causas de contágio.

Quer-nos parecer que oportunas a estas reflexões são as seguintes considerações do administrativista argentino Héctor Jorge Escola quando trata das ações que compõem a vida privada e que passam a afetar a ordem e a moral públicas: “Na liberdade pessoal, assim conside-rada, é possível distinguir a existência de duas esferas ou modalidades: uma, que constitui a vida privada, a vida íntima de cada pessoa; e outra, a liberdade comum, que é a qual até agora nós temos nos referido”25. A distinção é feita porque, nas lições do doutrinador, o que ele denomina de “poder de polícia” não tem campo ou legitimidade quando se trata da “esfera sa-grada da vida privada”, mas é possível se estas ações transcendem para atingir a “liberdade comum”26.

Note-se, noutro exemplo pautado no cha-mado “rodízio de veículos” da capital de São Paulo, que a despeito da impossibilidade de um particular impingir a seu par que circule com o veículo dele em certo dia da semana, o Poder Público, por sua vez, tem a legitimidade de assim agir e o destinatário deve suportar porque o seu papel social de administrado (isto é, em relação com o Poder Público, o titular do interesse co-letivo) é diferente do papel social de um sujeito titular de direitos privados em conflito com outro sujeito também titular de interesses protegidos pelo direito privado.

Em suma, não desconsideramos nem dis-pensamos – ao contrário, deve ser o ponto de partida do intérprete – toda a doutrina de Direito Administrativo sobre o regime jurídico adminis-trativo e a função administrativa, mas sugerimos, de forma ancilar, a consideração da teoria dos papéis sociais em vista a auxiliar o aplicador do

direito, sobretudo quando se trata – como é o caso do presente estudo – do conflito entre o dever de informar – por parte da Administração Pública, como consectário do princípio da publicidade – e o direito de proteção à imagem e à intimidade do administrado.

Retornaremos ao tema mais adiante (III. 3).

III – Os contornos e os limites do princípio constitucional da publici-dade da Administração Pública.

Se existe o dever de transparência que determina a divulgação de atos e fatos referen-tes à Administração Pública e aos seus agentes, cumpre-nos compreender o sentido e o alcance deste princípio – da publicidade – de modo a não afligir, como dissemos alhures (I), outros direitos fundamentais.

A seguir, então, demarcaremos estes co-mandos normativos distintos – de um lado, o princípio da publicidade e o dever de informar (III. 1), do outro, o direito de proteção à imagem e à intimidade (III. 2) –, para em seguida, com a consideração da teoria dos papéis sociais que vimos no tópico precedente (II), propormos algumas soluções possíveis com a ilustração de alguns casos práticos.

III. 1 – O dever de informar: a sociedade da informação e do risco.

Como vimos (I), o princípio constitucional da publicidade (art. 37, caput) impõe à Admi-nistração Pública o dever de transparência que implica o dever de informar, e a este princípio relacionam-se ainda outras normas como inte-grantes de sua interpretação sistemática27. Mas a par desta análise de um princípio que compõe o regime jurídico administrativo convém lembrar outras normas constitucionais que regem, de um modo geral, a liberdade da comunicação mesmo entre particulares. Recordamos os princípios da

25 Compendio de derecho administrativo, p. 895, v. II.26 Ibidem, p. 896.27 Art. 5º, XXXIII, primeira parte, XXXIV, b, XXXV e LXXII, a.

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liberdade de pensamento28, da liberdade de co-municação e opinião29 e do direito de informar e de ser informado30.

Mesmo se não houvesse, portanto, o explí-cito princípio constitucional da publicidade no caput do art. 37, ainda assim, como já asseve-ramos na primeira parte deste estudo, da leitura do regime democrático, marcado por normas que elevam a liberdade de expressão a um dever de respeito, recenderia o princípio da publicidade como um dever de informar por parte do Estado. Especificamente o art. 5º, XIV, ao dispor que “é assegurado a todos o acesso à informação (...)”, não trata de um direito imponível apenas a outros particulares, mas ainda ao Poder Público.

O princípio constitucional da publicida-de, como acreditamos que restou bem demarcado no tópico I, é mesmo um dever de informar a ser pronto e espontaneamente cumprido pelo Poder Público, o que bem corresponde à lição de José Cretella Júnior31 ao dizer que a vontade do Poder Público deve ser “anunciada aos quatro cantos”.

Mas o que neste tópico aspiramos não é a reprodução do que dissemos anteriormente (I), e sim destacarmos as potenciais conseqüências deste dever de informar imputado à Administra-ção Pública.

José Eduardo Figueiredo Dias, a quem fizemos breve referência na introdução deste artigo, recorda que a sociedade contemporânea vivencia um

(...) aumento das situações de devassa da vida privada e da intimidade das pessoas, potenciado pela consagração e garantia do direito à informação em termos cada vez mais amplos, e facilita-do pelas novas tecnologias informáticas que aumentam exponencialmente as possibilidades de recolha e posterior acesso a dados pessoais32.

Por conseguinte, é preciso atentar para o que o autor lembra que vem sendo denominado de “digitalização dos direitos fundamentais”33 – o risco, perante esta sociedade da informação, diante da constante evolução das tecnologias de comunicação (como é exemplo a internet), o risco de menoscabar os direitos fundamentais como a intimidade e a privacidade.

Decerto, o princípio constitucional da pu-blicidade, ao prescrever a transparência como norma de conduta da Administração Pública, exterioriza verdadeiro dever de informar, o que em contrapartida franqueia aos administrados de um modo geral, como insistimos em linhas passadas (I), um direito à informação adminis-trativa34, mas este dever de informar precisa ser contextualizado com os avanços da tecnologia de comunicação pelos quais passou a sociedade mundial nas últimas décadas e que nos albores do século XXI prenuncia progressos ainda mais marcantes. De tal sorte, compete-nos compre-ender que a reboco da informação existem, por exemplo, os riscos da internet que resultam do amplo acesso proporcionado às informações da Administração Pública, os riscos que resultam da capacidade de armazenamento de dados que se projeta exponencialmente, os riscos que resultam da velocidade com que estas informações podem ser difundidas, e por isto exigem atenção sobre o que se encontra à disposição de acesso.

O dever de informar proporciona, portanto, a caracterização de uma sociedade que ao mes-mo tempo em que se ufana desta capacidade de acesso às informações ainda se identifica pelos riscos gerados. Destarte, se devemos reconhecer o valor das tecnologias de comunicação que levaram aos píncaros o princípio da publicidade como dever de informar – como os sítios (sites) oficiais das Administrações Públicas na internet –, é fundamental termos a consciência de que são proporcionados riscos que exigem as devidas cautelas para evitar o comprometimento dos direitos fundamentais.

28 Art. 5o, IV.29 Art. 5o, IX.30 Art. 5o, XIV e XXXIII.31 Op. cit., p. 13832 Op. cit., p. 616.33 Op. cit., mesma página.34 Expressão pertinentemente utilizada por José Eduardo Figueiredo Dias, op. cit., p. 620.

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Pois afinal, como nos adverte Jesús Gon-zalez Perez35, a transparência da atividade administrativa é um “dever de conteúdo plural” porque tem duas vertentes: o dever de informar e o dever de calar. E este último – o dever de calar –, por sua vez, exterioriza-se por duas formas: o dever de segredo que trata de assuntos concretos aos quais se atribui o caráter de reservados (trata-se de um dever específico) e o dever de sigilo que é o dever pessoal de discrição cuja finalida-de é evitar causar danos desnecessários tanto à Administração quanto aos cidadãos (trata-se de um dever genérico de discrição).

Mas cuidaremos deste dever de calar, no próximo tópico, por outra perspectiva: com fundamento no direito de proteção à imagem e à intimidade.

III. 2 – O direito de proteção à imagem e à intimidade.

O direito de proteção à imagem e à inti-midade, de conhecida estatura constitucional36, representa, em palavras que tomamos de emprés-timo de José Eduardo Figueiredo Dias ao tratar da intimidade e da privacidade, “(...) um ‘direito de personalidade’ que deve ser considerado como densificação do ‘princípio da dignidade da pessoa humana”37.

E que deve ser cuidadosamente conside-rado diante da prática cada vez mais comum da Administração Pública de usar a internet como meio de efetivação do princípio da publicidade. Pois como diz o autor referido38, o desenvolvi-mento da informática, principalmente da internet como “verdadeira auto-estrada da informação”, com as facilidades de armazenamento, acesso e difusão de dados, conduz a proteção da pri-vacidade a uma nova perspectiva, a de que nos encontramos em uma sociedade do risco e da informação.

A discussão que emerge, por conseguinte, é a preocupação em equacionar o princípio da

publicidade, o dever de informar da Administra-ção Pública, com os direitos dos administrados de verem preservadas a sua imagem e intimidade – sobretudo porque, como exemplificamos no tópico anterior, a internet promove uma vigorosa capacidade de divulgação, e porque a Adminis-tração Pública contém sítios oficiais (sites) a potencializarem esta publicidade é preciso então definir o alcance legítimo do cumprimento do dever de informar sem o comprometimento do direito de proteção à imagem e à intimidade dos administrados.

A estas indagações esperamos ao menos bosquejar, no tópico seguinte, algumas respostas que sirvam de linhas condutoras à compatibili-dade destas normas constitucionais.

III. 3 – Casos práticos e soluções possíveis diante da teoria dos papéis sociais.

José Eduardo Figueiredo Dias assinala que

A tarefa de harmonização pode igual-mente basear-se na afirmação de um conteúdo prima facie dos direitos funda-mentais, que só em concreto podem ser exactamente determinados, apelando de forma mais intensa para a necessidade de recorrer à ponderação ao nível do caso concreto para efectuar a restrição de um (ou dos dois) direito (s)39.

O que pretendemos propor, e o faremos nas próximas linhas, é o labor com a teoria dos papéis sociais para os casos concretos como um dos critérios a serem considerados para a ponderação referida por este autor de modo a alcançarmos a pretensão de correção na solução dos princípios em colisão – de um lado, o prin-cípio da publicidade da Administração Pública, e de outro o princípio de proteção à imagem e à intimidade.

Adotaremos, em última análise, a teoria dos papéis sociais no procedimento de ponde-

35 Corrupción, ética y moral em las Administraciones Públicas, p. 93-94.36 Art. 5o, V e X.37 Op. cit., p. 628.38 Op. cit., p. 632.39 Op. cit., p. 628.

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O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

ração na colisão do princípio da publicidade e o dever de informar da Administração Pública com o princípio de proteção à imagem e à inti-midade.

Exemplifiquemos, inicialmente, com o dever de licitar. É em razão do princípio da publicidade junto à licitação que há o direito assegurado a qualquer interessado de participar e fiscalizar os atos da licitação: por meio da publicidade que se torna possível promover a competição do maior número possível de pes-soas, o que efetiva materialmente o princípio da igualdade, e ainda amplifica as possibilidades de a Administração realizar a seleção e conseguinte contratação mais eficiente às suas necessidades, e quanto à fiscalização é ainda com a publicidade dos atos que qualquer pessoa pode averiguar se não ocorrem favoritismos e desvios, o que contribui – este controle – para a efetivação do regime democrático40.

Pois a teoria dos papéis sociais, ao ex-plicitar que o participante de uma licitação apresenta-se, na relação com o Poder Público, como uma personagem em interação pública com outros administrados (isto é, numa área de relacionamento que se sujeita aos interesses de uma coletividade), a sua intimidade e privacida-de submetem-se a constrições mais intensas do que em outras relações jurídicas, outros papéis sociais.

Com a teoria dos papéis sociais, a informar e conduzir o procedimento de ponderação, é

possível perceber que, de um modo geral, não podem os participantes de uma licitação, que livremente decidiram aderir a um processo que deve pautar-se pelo princípio da publicidade, reclamar da divulgação, pelos sítios oficiais (páginas da internet), de que os seus dados da habilitação e a sua proposta estejam disponíveis ao acesso de qualquer administrado.

O não-cumprimento do princípio de pro-teção à imagem e à intimidade do interessado justifica-se pela necessidade do cumprimento do princípio da publicidade, pois o administrado que participa da licitação assume, ao ingressar no processo de licitação, o papel social de um interessado em substituir o Estado na execução de uma tarefa, e por isto deve à sociedade prestar contas, tal como o Estado deve fazê-lo, o que é a comprovação definitiva de que o princípio da publicidade justifica, em razão do papel social ao qual adere o participante da licitação, o não-cumprimento da proteção à imagem e à intimi-dade do participante.

É esperado, como papel social de con-correntes de uma licitação, que os documentos referentes à sua habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira, re-gularidade fiscal41, que a sua proposta, mesmo quando fundada na “melhor técnica” ou “técnica e preço”42, sejam informes disponibilizados, du-rante o processo de licitação e em seus momentos adequados, a qualquer sujeito que queira conhe-cer, pois a transparência é dever que impera no

40 Ainda que não haja a necessidade de expressa menção a este princípio constitucional para que o Poder Público cumpra com o dever de transpa-rência, a lei de licitações e contratos administrativos é explícita ao reproduzi-lo, em seu art. 3º, caput, como um princípio básico a permear todo o processo de licitação e o conseqüente momento da contratação com o vencedor. E torna a mencioná-lo em seu art. 4º ao assegurar a qualquer cidadão o acompanhamento do processo de licitação, e no art. 15, § 2º, ao determinar a publicação trimestral dos preços registrados, no art. 16, caput, ao prescrever o dever de dar-se publicidade mensalmente à relação de todas as compras feitas pela Administração, no art. 21, § 4º, ao exigir nova publicação em caso de modificação do edital, no art. 34, § 1º, ao exigir a divulgação do registro cadastral e a sua disponibilidade a quaisquer interessados, no art. 53, § 4º, ao explicitar que o edital deve ser “amplamente divulgado”, entre outros dispositivos. Claro que durante as etapas do processo de licitação há momentos em que, pela natureza da própria atividade, é impossível franquear o acesso ou o acompanha-mento concomitante dos interessados, como é o caso da averiguação dos documentos e o julgamento das propostas. Sem dúvida alguma os atos anteriores e posteriores, como a abertura de envelopes e divulgação dos resultados com seus critérios e conclusões devem ser públicos, mas os atos de avaliação de documentos e de julgamento e classificação das propostas demandam o isolamento dos integrantes da comissão responsável. Igualmente, o princípio da publicidade não abrange o momento de apresentação das propostas, pois se as propostas fossem apresentadas já abertas não se garantiria a igualdade entre os interessados uma vez que estaria em posição de vantagem quem conhecesse a proposta do outro concorrente antes de apresentar a sua. Mas com o encerramento da fase de apresentação todos terão acesso às propostas de todos os interessados tão logo elas sejam abertas e classificadas. É nestes termos, a propósito, que dispõe o art. 3º, § 3º, da Lei 8.666/93. Por isto, a violação do princípio do sigilo das propostas – da fase de apresentação das propostas – não apenas pode invalidar toda a licitação como ainda tipificar os crimes previstos no art. 94 da própria lei de licitações e contratos administrativos e no art. 326 do Código Penal. Por último, convém registrarmos que as publicações devem ser resumidas, nos termos dos arts. 21, § 3º, 38, II, 40, § 1º, 61, parágrafo único, todos da Lei 8.666/93, pois a publicação não se confunde com a publicidade; a publicação resumida, portanto, não viola o princípio da publicidade porque o inteiro teor do edital deve ser disponibilizado na repartição competente (o que assegura a plena publicidade), e com isto a divulgação (por meio da publicação) atinge o seu objetivo de promover a publicidade ao se limitar a divulgar os aspectos essenciais do processo de licitação.

41 Art. 27 da Lei 8.666/93.

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exercício de qualquer função pública – e de todo e qualquer administrado que espontaneamente adira ao papel social de participar da pretensão de execução de uma parcela desta função.

Por isto, é legítima a divulgação, pela Administração Pública, das razões de recusar a habilitação de um interessado, ainda que para isto informe da existência de ações contra ele, como é legítima a divulgação de irregularidades na estrutura jurídica da empresa, como é legítima a divulgação das razões de não ser a proposta técnica do interessado adequada à realização daquela atividade, entre outros exemplos mais.

Pois a tudo isto – à publicidade, à exposição – o administrado espontaneamente adere porque é o papel social a ser objetivamente assumido, mesmo que não exista a expressa manifestação de vontade ao ingressar no processo de licita-ção. Pouco importa, então, a ausência de termo escrito no qual o administrado interessado no certame expresse a sua concordância com ter a sua imagem e intimidade expostas publicamente, pois a adesão a este consentimento é consectário natural do papel social assumido de interessado de participar do processo de licitação.

É inerente à transparência que deve perme-ar a atividade do Poder Público a possibilidade de controle por qualquer administrado, o que exige, por conseguinte, o não-cumprimento do prin-cípio de proteção à imagem e à intimidade dos interessados na licitação na medida necessária e pertinente desta participação no certame.

Com estas últimas considerações, podemos divisar, por outro lado, algumas situações que passam a deixar de justificar o cumprimento prevalecente do princípio da publicidade em detrimento do princípio de proteção à imagem e à intimidade, pois enquanto não se trata do inte-ressado, enquanto não se trata de informação que interessa à habilitação e ao julgamento das pro-postas, e quando não houver mais interesse nas informações porque se encerrou o processo de licitação com a sua homologação e adjudicação do bem ao vencedor, deve retornar o princípio de proteção à imagem e à intimidade para restringir

a publicidade destas informações específicas. Exemplificamos: não se justifica, em princípio, a disponibilidade de acesso, nos sítios oficiais, de dados pessoais dos sócios das empresas interes-sadas, como os seus endereços residenciais e nú-meros de registro geral e de contribuintes, ou os dados pessoais dos profissionais que compõem a capacitação técnico-profissional43, pois não se pode confundir a personalidade jurídica da em-presa que participa como interessada na licitação com a dos seus sócios e empregados; como não se justifica a disponibilidade, nos sítios oficiais, dos dados pertinentes à habilitação jurídica, qualificações técnica e econômico-financeira, de regularidade fiscal dos que não lograram vencer a licitação quando já houve a homolo-gação, adjudicação do bem e o vencedor, tendo firmado o contrato, iniciou a sua tarefa. Lógico que, neste caso, é preciso compreender que há um prazo a ser aguardado para que a Adminis-tração Pública retire do site as informações dos interessados – mas, convém lembrar, ainda assim a Administração Pública deverá manter em seus arquivos, físicos e virtuais, todas as informações de todos os concorrentes, tanto para sujeitá-las a oportuno controle por outro órgão público, como o Tribunal de Contas ou o Ministério Público, como para apresentá-las a qualquer interessado que solicitar, por força do art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal.

É oportuno sintetizar para destacarmos: a cautela a ser adotada, em última análise, é a exclusão de informações que não interessam à licitação – seja porque impertinentes aos in-teressados, seja porque a licitação encerrou-se – apenas dos sítios oficiais, e isto porque, como insistimos durante toda esta exposição, em virtu-de do amplo alcance de difusão de informações que se promove com a internet, o que não exclui o dever de que todos os informes permaneçam, ainda quando encerrada a licitação, junto aos arquivos da Administração Pública.

Outros exemplos, agora sobre a relação entre a Administração Pública e os servidores públicos.

42 Art. 46.43 Art. 30, § 1º, I.

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O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.

Consideremos, à guisa de exemplo, que a pretexto de cumprir o art. 41, § 1º, III, da Cons-tituição Federal a Administração Pública demita servidores públicos após o procedimento de ava-liação periódica de desempenho. Acresçamos às reflexões que os servidores demitidos ingressem com ações que reconheçam a ilicitude da demis-são – sejam quais forem os fundamentos, como a ausência de lei complementar, ou porque não houve critérios claros e objetivos para a avalia-ção, ou porque não houve motivação a preceder as conclusões lançadas.

Pois bem. Diante deste contexto engendra-do a ilustrar o tema de estudo consideremos ainda que os agentes públicos reintegrados ao cargo ingressem, então, com ações de indenização contra o Poder Público nas quais pretendem o específico reconhecimento do dano moral por ofensa à imagem.

Do quanto exposto é forçoso reconhecer que os servidores públicos estão submetidos a avaliações, estão sujeitos, por determinação constitucional, a terem o seu desempenho apura-do em procedimentos da Administração Pública. De tal sorte, e ainda que a Administração Pública tenha utilizado uma metodologia equivocada ou não tenha fundado seu comportamento em norma reconhecida pelo sistema jurídico como apta a legitimar a ação, ainda assim, se não houver qualquer indício de que tenha procedido de má-fé ou para dolosamente perseguir os servidores públicos, não há que se sustentar qualquer dano à imagem ou à intimidade dos servidores rein-tegrados.

Pois sustentar o dano moral em tal hipótese é desconsiderar o papel social que o servidor público exerce. A invalidação do ato de de-missão não implica lógica e necessariamente na existência de um dano moral, e não há esta relação de inferência porque o dano moral ocorre quando o sujeito é submetido a uma situação que rompe com os padrões objetivos que podem ser esperados como inerentes a uma rotina normal. Em outras palavras, o dano moral evidencia-se quando a pessoa que se diz ofendida realmente se sujeitou a uma situação concreta que destoa de sua rotina possível, dos acontecimentos espe-rados dentro daquele padrão de comportamento

no qual se encaixa – leia-se: do que é inerente ao seu papel social.

Ora, ser submetido a uma avaliação de desempenho é absolutamente normal junto a qualquer atividade laborativa, e trata-se de ex-pediente ainda mais desejável quando se trata do exercício de alguma função pública. Se a Admi-nistração Pública falha em sua atuação quanto ao procedimento de avaliação de desempenho que culmina com a demissão do servidor, se esta ilicitude é reconhecida por decisão judicial, então a reparação do ilícito é realizada com a recondução da situação à ordem jurídica vigente na medida em que o servidor é reintegrado ao cargo e recebe todos os proventos pelo período em que ficou afastado. Mas este contexto não produz, por si só, o dano moral.

E isto porque no papel social do agente público realmente se encontra o dever de ser avaliado e ter a sua situação funcional divulga-da pela imprensa oficial. Portanto, a demissão após a avaliação de desempenho insatisfatória, e mesmo por outros fundamentos jurídicos, como a demissão a bem do serviço público – após o processo administrativo disciplinar –, ainda quando estas decisões administrativas sejam invalidadas judicialmente não ensejam o direito à indenização por danos morais porque, insistimos, o direito à imagem do servidor público deve ser conformado com o papel social que ele exerce, e o papel social desenhado a quem atua em uma função pública é mesmo a publicidade destes atos que, embora viciados (desde que não tenham sido praticados por má-fé), integram a rotina da Administração Pública.

Estas considerações igualmente se aplicam a um sério equívoco por parte da Administração Pública que a imprensa nacional deu cobertura há algum tempo: os cartões corporativos. O em-penho da verba pública, ainda quando os gastos são feitos pelas autoridades que se encontram no ápice da escala hierárquica, não pode ser omitido do controle público, não pode furtar-se ao princípio da publicidade. As despesas com restaurantes, aluguéis de veículos, hospedagem devem ser divulgadas porque o papel social exer-cido pelo agente público é o da representação do interesse coletivo. Não há, portanto, que se argüir

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o direito à imagem ou à intimidade, a pretensão de resguardar a privacidade, pois enquanto no exercício de uma tarefa pública o sujeito que ocupa o cargo é mandatário da sociedade.

Não são suas atribuições públicas que devem amoldar-se aos seus hábitos, seus interes-ses, às suas particulares leituras de como deve comportar-se. Ao inverso, é o agente público, enquanto detentor do cargo, que deve ajustar-se ao que é esperado como papel social de quem cumpre uma missão pública. É o agente público, enfim, que deve agir de modo a compatibilizar-se com as prescrições normativas, sobretudo – como no caso – com o comando constitucional do princípio da publicidade da Administração Pública que então impõe e justifica o papel social a cada agente público de atender à transparência ao divulgar à sociedade como, quando e por que comprometeu o recurso (público) que lhe foi destinado.

Todos estes exemplos, é claro, não esgo-tam a matéria. Mas acreditamos que ilustram a importância que a teoria dos papéis sociais representa no procedimento de ponderação do princípio constitucional da publicidade da Ad-ministração Pública.

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165Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, p. 165-169, junho/2009

A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUM

RESUMO: Trata-se de uma reflexão relativa aos efeitos das decisões sobre o cidadão comum que, não tendo acesso ao conhecimento das teorias e doutrinas, compõe o povo - sendo o cidadão o primeiro destinatário das normas constitucionais. Daí sua importância e do seu entendimento sobre o que lhe diz respeito.Palavras-chave: Interpretação. Constituição. Leis. Cidadania.

ABSTRACT: The matter of the text is a reflec-tion related to the effects of the decisions upon the ordinary citizen who doesn’t have access to the knowledge about theories and doctrines and composes the people – being also the first adressee of the constitutional rules. From this we can extract his importance and the importance of his understanding about a matter which refers to him.Keywords: Interpretation. Constitution. Laws. Citizenship

1. Constituição e lei

A Constituição, como lei, dirige-se preci-puamente ao comum dos cidadãos, pretendendo ser entendida, interpretada e aplicada às circuns-tâncias humanas, no transcorrer social.

Explicando a concepção de lei em Platão, Werner Jaeger1 alude ao processo de sua for-mação:

Maria Garcia*

* Livre-Docente pela PUC-SP. Professora de Direito Constitucional, Direito Educacional e Biodireito Constitucional na PUC-SP. Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-SP. Procuradora aposentada do Estado de São Paulo. Ex-Assistente Jurídica da Reitoria da USP. Membro-fundador e atual Diretora Geral do IBDC. Membro da CoBi do HCFMUSP e do IASP. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. (Cadeira Enrico T. Liebman).

1 Alabanza de la ley. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1982; p. 65 (Tradução livre da Autora).

Artigo

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GARCIA, M.

2 São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 45 e ss.3 Ao leitor, sem medo. São Paulo: Brasiliense, 1984; pp. 163-164.4 MARTIN-RETORTILLO, Lorenzo. Derechos fundamentais y Constitución. Madrid: Civitas, 1988; p. 167.

“Platão, naturalmente, considerava suas ‘leis’ como direito positivo da polis, para a qual as escreveu. Contudo, é evidente que queria faze-las coincidir com norma ideal da verdadeira justiça, tal como a concebia filosoficamente.

Suas considerações gerais sobre a natureza da lei verdadeira são partes integrantes do Livro I do seu código, onde desenvolveu os maiores esforços para fazer derivar a autoridade da lei de uma fonte que lhe desse suprema vali-dez. Esta fonte é a ‘reta razão’ (orthos logos) e o legislador é o sábio que põe esta razão por escrito. O consentimento do povo converte essa palavra escrita em lei. A lei é, portanto, pensamento racional (logismós) que se converteu em dogma poleos, é dizer, que foi sanciona-do pela cidade.”

Resulta dizer, a partir daí, que a elaboração da lei requer a manifestação da cidade, o povo (o conjunto dos cidadãos) e se assim é, da mesma forma deve ser considerada a sua interpretação pelo cidadão comum, ainda que esta se efetue pelo aplicador da lei, o juiz.

Em tudo e por tudo, não deve ser negli-genciado o entendimento de quem, afinal, se constitui na finalidade objetivada pela própria lei, os indivíduos, as relações humanas.

Daí que as interpretações meramente técnicas, elocubradas pelos juristas, dão por consequência que a forma, veículo do direito, se sobreponha, como um fim em si mesma.

De instrumento, passa a essência, mesma, da relação jurídica, como se o mármore, por si, se pudesse destacar das linhas que compõem a figura — esta, sim, ensejadora da criação do artista e não aquele, seu portador.

Embora ambos, forma e matéria, venham a constituir, indissoluvelmente, o objeto de arte — como direito e processo se unem, na objetivação do relacionamento humano em sociedade.

2. A interpretação e o cidadãoCertamente que a Constituição e as lei são

feitas para diferentes destinatários; contudo ela se dirige, especificamente, ao cidadão comum, a unidade social, compondo o Povo. Trata-se, aqui, de princípio fundamental que estrutura o Estado brasileiro, segundo o art. 1º, II: a cidadania e esta, considerada como um plexo “dos direitos e liberdades constitucionais” e das “prerrogativas” que lhe são inerentes, bem como a nacionalidade e a soberania (art. 5º, LXXI).

Quais direitos, liberdades e prerrogativas? Todos os previstos na Constituição e normas decorrentes.

O cidadão, portanto, é o primeiro destina-tário da Constituição, sob qualquer qualidade: o cidadão-Presidente, o cidadão-Legislador, o cidadão-Juiz e todos os cidadãos, nas suas res-pectivas qualidades, nos diversos estamentos da Nação, mas, sobretudo, o cidadão comum.

Hobbes, mesmo ao cuidar d’O cidadão2

empresta-lhe uma condição social muito diferen-te do que presumem alguns quando se deparam com o pacto Cidadão-Leviatã pois esse pacto prevalecerá se e enquanto o Estado/Leviatã ofe-reça segurança, proteção e preservação da vida e tudo o que esta compreende, aos seus cidadãos/súditos.

“O individualismo hobbesiano, esclare-ce Renato Janine Ribeiro3, exige que o poder provenha da vontade de cada um, e que este só obedeça o quanto e enquan-to for racionalmente necessário para a sua vida. A obrigação dura apenas se o soberano me protege a vida; cessa, não somente se ele a ameaça, mas também quando deixa, embora malgrado seu, de garanti-la.”

Martin-Retortillo, por sua vez, explica bem a natureza da cidadania quando refere que “o direito fundamental da liberdade é multidimen-sional”, é dizer, essa liberdade redunda, em nível político, na cidadania; que consiste no exercício da liberdade pelo indivíduo enquanto membro da sociedade política4.

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A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUM

5 Dois conceitos de liberdade. in Limites da Utopia. São Paulo: Cia. das Letras, 1991; pp. 133 e ss. Berlin detém-se em dois desses sentidos: liberdade individual ou liberdade institucional, de sentido “negativo”, área de não-interferência e o sentido político ou “sentido positivo”, de auto-determinação.

6 OPPENHEIM, Felix E. Conceptos políticos. Uma reconstrucción. Madrid: Tecnos, 1987; pp. 48,68.7 LAFER, Celso. Ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Perspectiva, 1980; pp. 13 e ss.8 O Estado de São Paulo, 6/7/2005; p. C3.9 DE PLACIDO E SILVA. Dicionário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1991.10 J. M. OTHON SIDOU. Diccionario Jurídico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

3. A proteção da liberdade

Decerto que os ditames constitucionais “liberdade provisória, presunção de inocência etc.” embasam a proteção da liberdade humana.

Já anotamos em outra oportunidade o registro de Isaiah Berlin5 dos “mais de 200 sen-tidos dessa palavra protéica”, liberdade. Entre esses vários sentidos, Oppenheim6 usa o termo liberdade pessoal ou interpessoal, aproximando a liberdade social ao conceito de “liberdade negativa” de Berlin: “a liberdade positiva de auto-realização e a liberdade negativa de não-interferência”; tudo, evidentemente, dentro de um contexto social e político do Estado de Direito, ou seja, num Estado — sociedade po-liticamente organizada — onde existem leis e no qual, diz Lafer7, “a liberdade adquire, como ensina Montesquieu, uma objetividade e pode ser definida como ‘le droit de faire tout ce que les lois permettent’” — o que leva ao sentido do lícito, conforme Bobbio, daquilo que “não sendo nem comandado, nem proibido, é permitido.”

Esta é a liberdade protegida pela Consti-tuição, a liberdade do indivíduo integrado na sociedade, jurídica e politicamente.

4. Um caso penal

STF liberta juiz acusado de matar colega no ES. “O Juiz Antônio Leopoldo Teixeira, suspeito de envolvimento com o assassinato do colega Alexandre Martins de Castro Filho, ocorrido em março de 2003 no Espírito Santo, conseguiu uma liminar no Supremo Tribunal Fe-deral (STF), que lhe garante o direito de respon-der em liberdade ao processo. Autor da decisão favorável a Teixeira, o ministro do STF Marco Aurélio de Mello concluiu que não existiam fundamentos suficientes para a manutenção da prisão preventiva do juiz. O fato de o assassinato

ser um crime hediondo não é o bastante para transformar a prisão temporária em preventiva, acrescentou o ministro. Marco Aurélio disse que o Judiciário não pode basear suas decisões em eventuais repercussões negativas perante a socie-dade. Segundo o ministro, “julgar não pode ser confundido com justiçar.” Antes de tentarem o habeas corpus no STF, os advogados de Teixeira protocolaram um pedido semelhante no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que foi rejeitado. O juiz foi afastado do cargo em março, após o surgimento de suspeitas contra ele. Teixeira foi preso temporariamente em abril. Também em abril, o juiz e o coronel da Polícia Militar Walter Gomes Ferreira foram indiciados no inquérito do Tribunal de Justiça do Espírito Santo sobre o assassinato, por homicídio qualificado mediante pagamento, crime hediondo e corrupção passiva. Em maio, a prisão do juiz foi transformada em preventiva.”8

Repercutirá, certamente, na sociedade, o fato de tratar-se de crime hediondo e a possibi-lidade de responder em liberdade ao processo, circunstância processual que o cidadão comum desconhece.

O processo não deve significar o mero conjunto de atos, passo a passo realizados, como finalidade em si — o processo se constitui no veículo dos direitos de réus e de vítimas e da realização da Justiça, tarefa pela qual o Estado se substitui ao ofendido — daí a presença ma-jestática do Poder Judiciário.

Derivado do latim processus, de procedere, o processo exprime a ação de proceder, ou ação de prosseguir, a seqüência de atos, que devem ser executados, na ordem preestabelecida, para que se investigue e solucione a pretensão submetida à tutela jurídica, a fim de que seja satisfeita, se procedente, ou não, se injusta ou improcedente9.

Processus = marcha, progresso; na acep-ção específica causa10, tem finalidade pública e

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GARCIA, M.

11 Instituzioni di Diritto Processuale Civile n. 11. Apud GABRIEL DE REZENDE FILHO, Curso de Direot Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1952; p. 19, n. 17.

12 Sistema Del Diritto Processuale Civile n. 76. Apud GABRIEL DE REZENDE FILHO, op. cit., p. 20.13 Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky, 1973; p. 4.14 Apud ADA PELLEGRINI GRINOVER. Op. cit., pp. 6-7.15 “O intérprete compreende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão que vai permitir-lhe contemplar a norma desde certas expectativas,

fazer-se uma idéia do conjunto e elaborar um primeiro projeto necessitado, ainda, de comprovação, correção e revisão mediante uma análise mais profunda, até que, como resultado da progressiva aproximação à ‘coisa’ por parte dos projetos em cada caso revisados, a unidade de sentido fique claramente fixada”. (KONRAD HESSE. La interpretación constitucional. In Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionais, 1983; p. 44. Tradução livre da Autora).

16 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sergio A Fabris Editor, 1997; pp. 55, 32.

visa, segundo Chiovenda11, “a atuação da lei” mediante a sentença do juiz. Em todos os litígios há sempre uma norma legal inobservada e a sentença “declara sempre a vontade concreta da lei, e é aplicando esta vontade da lei, garantin-do-lhe a eficácia, que a sentença protege, por via de conseqüência, o direito subjetivo da parte.”

Francesco Carnelutti12 sustenta também que a finalidade imediata do Processo Civil é “a justa composição da lide”, isto é, a composição da lide de acordo com a lei. É erro afirmar-se, diz ele, que o processo funciona no interesse das partes: que seja dada razão a quem tenha não é um interesse das partes, mas um interesse geral.”

Esse interesse geral encontra-se nos prin-cípios fundamentais que entrelaçam o sistema processual consubstanciando o Estado de Direito e, conforme sublinha Ada P. Grinover13, “o siste-ma unitário do ordenamento jurídico, acentuando o vínculo entre Constituição e processo: “é esse o caminho, ensina Liebman, que transformará o processo, de simples instrumento de justiça, em garantia da liberdade.”

Daí que o processo não se demonstra apenas instrumento técnico senão que contém a essência do jurídico: veículo da afirmação do Direito.

E “não apenas instrumento técnico, ressalta Ada P. Grinover, mas sobretudo ético.” São dois pólos de atenção que se instauram: “trata-se, na expressão de Couture, de fazer com que o direito não fique à mercê do processo, nem que venha a sucumbir por ausência ou insuficiência deste.”

Por outro lado, afirma ainda a mesma pro-cessualista: “não há liberdades públicas senão quando se disponha de meios jurídicos que im-peçam seu desrespeito e esses meios se exercem através da função jurisdicional.”14

Estabelecer o ponto de equilíbrio preciso entre esses dois pólos de interesse público con-siste exatamente a tarefa do intérprete, atento, porém, ao entendimento do cidadão comum e, por consequência, à repercussão social das suas conclusões.

5. O cidadão comum e a repercussão social

O ato de interpretar, atribuir significado à norma (Kalinowski) a fim de que se possibilite a sua aplicação ao caso concreto, envolve a pré-compreensão do intérprete15 e toda uma teoria de interpretação, métodos e formas de atuação, até a norma de decisão: “Isto posto, decido: (...)”

Em toda essa operação, contudo, deve exis-tir um momento de indagação: como o homem comum, ignorante das teorias e dos métodos, veria esta questão?

Contudo, não basta que a interpretação seja juridicamente correta, devendo ser também socialmente aceitável.

Häberle16, a propósito da interpretação da norma constitucional, enfatiza bem a circuns-tância de uma Constituição (a lei) dirigida à cidadania: “É verdade que o processo político é um processo de comunicação de todos para com todos, no qual a teoria constitucional deve tentar ser ouvida, encontrando um espaço próprio e assumindo sua função enquanto instância crítica. (...) A teoria constitucional democrática aqui enunciada tem também uma peculiar responsa-bilidade para a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.

(...) Todos estão inseridos no processo de interpretação constitucional, até mesmo aqueles que não são diretamente por ela afetados. Quanto

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A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUM

mais ampla for, do ponto de vista objetivo e me-todológico, a interpretação constitucional, mais amplo há de ser o círculo dos que dela devam participar.

A unidade da Constituição surge da con-jugação do processo e das funções de diferentes intérpretes.”

O caráter, sobretudo educativo, que a pena deve caracterizar, envolve toda a sociedade: escapa dos autos, para repercutir positiva ou negativamente perante os cidadãos comuns, de toda idade, de toda classe social.

Torna-se necessário, portanto, que os indi-víduos respondam pelos seus atos integralmente, na proporção da sua gravidade e com indenização civil dos danos causados — tal como a Consti-tuição consagrou a indenização de dano moral; que as penas sejam cumpridas na sua inteireza; que as formalidades processuais não se sobrepo-nham à satisfação dos direitos, à realização da Justiça, atentando-se para o cidadão comum ao qual, igualmente, a decisão judicial é dirigida, de modo educativo e projetivo, repercutindo por seu intermédio na sociedade, por inteiro.

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A LEI 11.794/2008 – A CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS

* Professor na Universidade Metodista de Piracicaba. Autor do livro Direito Ambiental Brasileiro (16. ed.). Professor Convidado na Universidade Ecológica de Bucareste (Romênia) – 2008. Prêmio Internacional de Direito Ambiental “Elizabeth Haub” (1985).

RESUMO: O artigo traz considerações a Lei 11.794 de 08/10/2008, a qual visa a dar eficácia ao disposto no artigo 225§1º, VII da Constitui-ção Federal no sentido da proteção da fauna e da interdição da prática de crueldade contra os animais. Observa que mencionada lei poderia ter previsto a utilização de um procedimento asse-melhado ao do estudo prévio de impacto ambien-tal a fim de viabilizar a aplicação dos princípios de prevenção e precaução para evitar a crueldade contra os animais, uma vez que, se permitiria a análise caso a caso, da real necessidade de um animal ser sacrificado na realização de atividades de ensino e pesquisas científicas. A lei trouxe a criação de órgãos para administrar as atividades em que se utilizem animais, porém apresentando limitações em sua estruturação, como por exemplo, a de limitar a represen-tação da sociedade civil em sua composição, desconsiderando a possibilidade de serem obti-das decisões imparciais e em consonância com pensamento da sociedade.Palavras-chave: Animais. Crueldade. Proteção.

ABSTRACT: The article brings considerations on the law n. 11,794 of 10/08/2008, which aims at to give effectiveness to the article 225 1, VII of the Federal Constitution in the direction of protection of the fauna and the interdiction of the cruel practices against animals. It observes that the mentioned law could have provided the use of a procedure resembling to the previous

Paulo Affonso Leme Machado*

Artigo

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MACHADO, P. A. L.

study of environmental impact in order to make possible the application of the prevention and precaution principles and to prevent the cruelty against animals, since it would allow the analysis in a case by case basis, of the real necessity of an animal to be sacrificed in the accomplishment of activities of education and scientific research.The law brought the creation of bodies to manage the activities in which animals are used, present-ing however limitations in its structuration, as for example, to limit the representation of the society in its composition, not considering the possibility of receiving impartial decisions and in tune with societys thoughts.Keywords: Animals. Cruelty. Protection.

1. A Constituição Federal de 1988 e a proteção da vida dos animais

Preceitua a Constituição Federal: § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, pro-voquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.

Os animais fazem parte da fauna e, portan-to, incumbe ao Poder Público protegê-los (art. 225, § 1º, VII). Essa proteção como dever geral independe da legislação infra-constitucional. Três tipos de práticas ficaram proibidas e essas vedações terão sua maior eficácia “na forma da lei”, ainda que a Constituição Federal já atue a partir de seu próprio texto.

A Constituição Federal determinou que estão vedadas as práticas que submetam os ani-mais à crueldade. O Supremo Tribunal Federal vem decidindo, com admirável coerência, pela proteção dos animais, em casos que se tornaram paradigmáticos, como a “farra do boi”, no Estado de Santa Catarina e a decretação da inconstitu-cionalidade de leis estaduais que permitiram rinhas de galos.

Uma das concepções sobre a crueldade mostra-a como a insensibilidade que enseja ter indiferença, ou até prazer, com o sofrimento

alheio. A Constituição Federal, ao impedir que os animais sejam alvo de atos cruéis, supõe que esses animais tenham sua vida respeitada. O texto constitucional não disse expressamente que os animais têm direito à vida, mas é lógico interpretar que os animais a serem protegidos da crueldade devem estar vivos, e não mortos. A preservação da vida do animal é uma tarefa constitucional do Poder Público, não se podendo causar a sua morte, sem uma justificativa expli-citada e aceitável.

A Constituição Federal não proibiu que a alimentação humana seja carnívora. Ao não proibir a alimentação carnívora faz-se uma pressuposição de que tal hábito seja ditado por uma implícita necessidade. É um posicionamento que tem sofrido críticas, mas o sistema vegeta-riano não tem um acolhimento constitucional. Entretanto, mesmo os animais que são abatidos para fins alimentícios, não podem ficar sujeitos à crueldade.

A questão que o exame da Lei n. 11.794/2008 suscita é a da necessidade ou não de os animais serem utilizados para fins de ensino e para fins de pesquisa.

2. O crime do art. 32 da Lei 9.605/1998

A Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, especificamente o art. 32, prevê como crime: “Praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domes-ticados, nativos ou exóticos: pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º - incorre nas mesmas penas quem realiza experiência do-lorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se ocorre morte do animal.

A experiência em animal vivo que provo-que dor ou manifeste crueldade, nas atividades de ensino e nas atividades científicas, é crime, quando existirem recursos alternativos. Assim, a obrigação legal é a de não ser cruel e nem provocar dor nos animais, mesmo no ensino e

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A LEI 11.794/2008 – A CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS

na pesquisa. Se existir forma de pesquisar ou de ensinar sem a utilização de animais, através de sua mutilação ou de seu abuso, passa a ser criminosa a vivissecção.

3. Lei n. 11.794, de 8 de outubro de 2008.

Os legisladores, e os que colaboraram na elaboração dessa Lei, não souberam dar a devida eficácia à Constituição da República no sentido da proteção da fauna e da interdição da prática da crueldade contra os animais. É incrível que a Lei 11.794/2008 não tenha utilizado do estudo prévio de impacto ambiental, ou de método que se lhe assemelhe, para obrigar, em todos os ca-sos, a aplicação do princípio de prevenção e do princípio da precaução para evitar a crueldade contra os animais. As alternativas (previstas pela Lei 9.605/1998), que substituam a utiliza-ção de animais em ensino e pesquisa, deveriam ter sido objeto de uma obrigatória análise em procedimento preventivo e não ficar à espera de uma medida a ser decidida pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Ani-mal – CONCEA.

Não se trata somente de mitigar ou de reduzir a dor do animal. Trata-se, muito mais, de averiguar-se em procedimento formal, em cada caso, se o animal deve ou não ser sacrifi-cado. A ausência desse procedimento na Lei n. 11.794/2008 faz com que a mesma fique conta-minada de uma notória inconstitucionalidade. É lamentável ter que afirmar-se que essa lei, mesmo procurando vestir-se de um aparente humanitarismo, torna a vida dos animais muito instável e indefesa.

3.1 O uso de animais para o ensino e para a pesquisa

Essa expressão é empregada no ementário. “Usar os animais” - não se pode deixar de afirmar que é uma expressão crua e rude, ainda que se procure suavizar a expressão com o viés de uso científico. Os animais não são coisas, como no direito antigo, mas seres vivos, integrando o meio

ambiente, com proteção constitucional. No art. 1º da Lei é feita a distinção de que os animais serão usados para atividades educacionais e para atividades de pesquisa.

O uso os animais para fins educacionais fica limitado a estabelecimentos de ensino superior e a estabelecimentos de educação profissional técnica de nível médio da área biomédica. Por-tanto, nenhum experimento pode ser feito em outros tipos de escolas que não os expressamente previstos na lei.

A Lei, em seu art.14, § 3º afirma: “Sempre que possível, as práticas de ensino deverão ser fo-tografadas, filmadas ou gravadas, de forma a per-mitir sua reprodução para ilustração de práticas futuras, evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com animais”. Deu-se muita liberdade para serem utilizados os animais em práticas de ensino, ao dizer-se “sempre que possível”. É obrigação constitucional, principal-mente, dos professores não serem cruéis com os animais e, portanto, devem procurar não repetir as práticas que vão mutilar e/ou matar animais. Os meios pedagógicos para esse fim existem, na maioria das vezes. Se não existirem, caberá ao professor provar a sua inexistência, antes de fazer a demonstração com os animais.

Todo projeto de pesquisa científica ou atividade de ensino será supervisionado por profissional de nível superior, graduado ou pós-graduado na área biomédica Esse profissional deve estar vinculado à entidade de ensino ou pesquisa credenciada pelo CONCEA. O cre-denciamento ou o registro, também, poderá ser exigido por órgãos estaduais, se legislação apropriada for instituída.

3.2 Os órgãos competentes criados pela Lei 11.974/2008 e a competência comum dos artigos 23 e 24 da Constituição Federal

A tarefa de administrar as atividades de pesquisa e de ensino com relação aos animais diz respeito à função de proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência, à proteção do meio ambiente e à preservação da fauna e da flora. Portanto, conforme o art. 23, incisos V,VI e VII é uma tarefa concernente à

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MACHADO, P. A. L.

competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A lei 11.974/2008 criou o Conselho Na-cional de Controle de Experimentação Animal – CONCEA e as Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs.

O art. 12 determina que “a criação ou a uti-lização de animais para pesquisa ficam restritas, exclusivamente, às instituições credenciadas no CONCEA”. A redação do artigo peca por dois equívocos: primeiro fala em criação de animais, quando na Lei não se tratou dessa matéria; segun-do pretender dar uma característica exclusiva às entidades credenciadas no Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – só elas, com exclusividade de outras – poderão utilizar animais para pesquisa. Esse artigo 12 desco-nhece e marginaliza frontalmente o artigo 23 da Constituição Federal. É preciso aclarar-se que nem o Ministério da Ciência e Tecnologia e nem o CONCEA detêm o monopólio administrativo da matéria atinente à criação e à utilização dos animais para fins de ensino e de pesquisa.

Quanto à competência legislativa sobre a matéria tratada na Lei n. 11.794/2008, tanto sob o aspecto da proteção do meio ambiente, da pesca, da caça, da fauna e da conservação da na-tureza como com referência à educação, cultura e ensino a competência é concorrente, conforme o art. 24 da Constituição Federal. Portanto, a matéria concernente ao uso dos animais não é da competência privativa da União, podendo os Estados legislar suplementarmente (art. 24, § 2º da Constituição Federal). Os Estados poderão acrescentar exigências, instituir procedimento formal de prevenção do dano ambiental (animal), criar também licenças ou autorizações e dar ou-tras atribuições aos Comitês de Ética.

3.3. Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs: a imparcialidade dificultada e o impedimento de informar

A Lei 11.794/2008 estabeleceu que “é con-dição indispensável para o credenciamento das instituições com atividades de ensino ou pesquisa com animais a constituição prévia de Comis-sões de Ética no Uso de Animais – CEUAs”. A

Lei não fala se essas comissões fazem parte da própria estrutura da entidade – de pesquisa ou de ensino – que pretende fazer os experimentos ou as demonstrações. Daí se vê que em sendo possível que a Comissão integre a entidade interessada, inexistente ou dificultada ficará sua imparcialidade.

As Comissões de Ética do Uso de Animais – CEUAs serão integradas por I – médicos vete-rinários e biólogos; II – docentes e pesquisadores na área específica e III – 1 (um) representante de sociedades protetoras de animais legalmente estabelecidas no País, na forma do Regulamento (art. 9º da Lei 11.794/2008). A composição foi prevista de forma astuciosa: os médicos veteriná-rios, os biólogos, os docentes e os pesquisadores não têm número estabelecido na Lei, mas para a representação de uma parcela da sociedade civil – a sociedade protetora dos animais, já se previu somente um voto na CEUAs. Assim, essa sociedade protetora dos animais será sempre minoria perante os que forem integrantes da entidade interessada.

Não bastasse essa ausência de paridade de setores dentro da Comissão de Ética – dado importante na ciência da administração – fere-se de morte a gestão democrática da Comissão de Ética do Uso de Animais, pois “os membros das CEUAs estão obrigados a resguardar o segredo industrial, sob pena de responsabilidade” (art. 10º, §5º). Facilmente, tudo passará a ser carimba-do como segredo! É uma audácia acintosa desfi-gurar uma Comissão que poderia tentar funcionar adequadamente, se tivesse possibilidade de ser imparcial e de comunicar-se com a sociedade.

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FLORESTAS E JARDINS

1 Advogada especialista em Direito Ambiental pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba; Ex-consultora jurídica da SUPRAM - Supe-rintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável TM/AP, ligada ao COPAM – Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais.

As florestas e os jardins, quando compa-rados, dão ensejo a uma forte reflexão sobre os conflitos atuais que permeiam a seara ambiental. Tal comparação leva-nos à seguinte meditação: por que as florestas são tão exuberantes e impo-nentes, enquanto nossos jardins são tão frágeis, volúveis a qualquer variação climática, apesar de ambos refletirem a vida que há na natureza?

Porque as florestas permitem que cada árvore se desenvolva conforme sua espécie, in-dependente do seu tamanho, da sua formosura, da presença de flores ou simplesmente espinhos. A floresta não seleciona o reino vegetal e reino animal pela sua aparência, considerando critérios de formosura, beleza, altura, espessura, aroma, etc, mas sim pela sua essência, pela sua utilidade, pela capacidade de servir uns aos outros na ca-deia alimentar e na proteção do desenvolvimento das espécies e de todo o ecossistema. Por isso não achamos as florestas feias, nem sujas ou bagunçadas, com várias folhas, caules, troncos, galhos e ramos caídos no chão, precisando de uma “limpeza”, “faxina” ou jardinagem; porque para tudo isso existe uma função singular. Tudo se torna importante para a existência e preserva-ção da vida.

As florestas são renovadas com o tempo e possuem a capacidade de revelar utilidade até mesmo em cada galho que cai no solo. Não en-tendemos os mistérios que elas reservam porque estes são revelados apenas para seus íntimos apreciadores, para aqueles que estão dispostos a gastar tempo e pagar o preço que for para en-

Fernanda Alves Vieira1

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tender e preservar a vida, nas suas mais diversas formas de expressão. Mas mesmo sem entender seus segredos, uma coisa ninguém pode negar: que neste contexto, de permitir que cada espécie se desenvolva conforme sua função existencial, sem levar em conta as disputas mesquinhas de beleza ou riqueza, tão comuns nas seleções fei-tas pelos seres humanos, quando consideram as outras formas de vida; o reino vegetal e o reino animal juntos numa floresta proclamam a força, a exuberância, a imponência e a magnitude da vida. Uma floresta é capaz de suportar tem-pestades, ventos fortes e todo tipo de variação climática, sem perder seu alicerce; podendo até mesmo ser devastada, porém não destruída, pelo poder que possui de ser regenerada.

Já os nossos jardins são frágeis e sucessí-veis a qualquer variação climática, por mais sim-ples que seja, porque eles são o reflexo do nosso modo de querer controlar a vida e a manifestação das espécies conforme nossa própria seleção. Estabelecemos critérios que são julgados por beleza e valoração econômica ao considerarmos o reino vegetal e animal. Selecionamos espécies para o nosso próprio prazer, porque agrada aos nossos olhos, porque medimos pela aparência e não pela essência. Nossos jardins são nossas escolhas pessoais das flores que mais gostamos, das plantas que mais nos agradam. Assim como também selecionamos os animais de que mais simpatizamos. Por isso que, ao cultivá-los, pre-cisamos de serviços de jardinagem. Porque eles precisam ser podados, nossas gramas cortadas e o espaço onde se situam precisa estar limpo, demonstrando a nossa tendência de uniformi-zação, de controle do que está “em ordem”, “limpo”, e do que não está; selecionando aquilo que a natureza já disse que deve ser múltiplo, diverso, desenvolvido e respeitado conforme sua própria espécie.

Isso explica o fato dos nossos jardins precisarem sempre de cuidados, enquanto que

as florestas nunca apresentam a necessidade de jardinagem. A capacidade que temos de interferir na ordem natural da vida e manipular as formas de expressão desta, ao nosso próprio prazer, nos leva ao engano de que conseguimos reproduzir melhor as expressões da vida, as florestas como no exemplo dos jardins, do que elas próprias, se desenvolvendo naturalmente. Nosso engodo, como seres humanos, revela-se muito claro nessa comparação das florestas e dos jardins. Em nossas próprias escolhas de jardins não conseguimos atrair a força, a exuberância, a imponência e a magnitude que há numa floresta. Daí o fato de virem os ventos, as chuvas e as tempestades e os arrasarem, ou, simplesmente o próprio ciclo de crescimento natural das plantas torna-se suficiente para colocar em desordem a nossa pretensa ordem, precisando deste modo, de jardineiros. Tudo isso porque tolhemos as espécies de se desenvolverem conforme a sua própria função existencial e, por conseguinte, desrespeitamos o tempo e a ordem natural dos fatores. Eliminamos então o que a natureza tem de mais belo – a fortaleza que existe na preser-vação da sua biodiversidade, tornando-se riqueza natural, morada e refúgio do reino animal.

Colhemos, assim, o espetáculo de apenas parte da vida, mas não toda a vida, que está acima do controle humano. Nossos jardins transformam o poder e a fortaleza da biodiversidade em mera contemplação para os olhos humanos, sem a magnitude da expressão da vida, refletindo, ainda que involuntariamente, a soberba e a vaidade humana.

Essa ilustração retrata também o modo como tratamos o nosso semelhante, quando pautamos as nossas escolhas pela aparência. Vis-lumbramos com esta atitude um mundo carente de essência, de caráter e de vida. Vida plena, tão presente e contemplada nas mais diversas formas de expressão existencial na natureza!

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177Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

CRIMINALIDADE DO PODER, POLÍCIA E IMPUNIDADE

* Professor (UniCEUB) e Procurador Regional da República.

Suponha que você tenha cometido um deli-to grave, mas, estranhamente, detenha o poder de designar e/ou supervisionar a autoridade que irá investigá-lo, de modo que a você, o delinqüente, pertence, em última análise, o comando final da sua própria investigação. É evidente que isso é um total absurdo, uma farsa.

Mas é exatamente isso que ocorre entre nós no âmbito das investigações policiais destinadas a apurar a criminalidade do poder. Com efeito, compete a um servidor público hierarquicamen-te inferior (Delegado de Polícia ou Delegado Federal) investigar crimes praticados por seus superiores hierárquicos (Presidentes, Ministros, Governadores, Secretários de Estado) ou autori-dades de que dependem, direta ou indiretamente, como Deputados Federais/Estaduais e Prefeitos municipais. Ou seja: as chamadas autoridades de alto escalão acabam por investigar a si mesmos por meio da designação e/ou monitoramento dos seus investigadores. Dito de outro modo: no mo-delo policial brasileiro, os investigados/crimino-sos detêm o controle político das investigações, apesar de não as presidirem formalmente.

Ora, é evidente que, em que pesem a competência e boa fé da grande maioria, não cabe esperar de um Delegado de Polícia, que pretende fazer carreira, obter promoções, re-moções etc., e também parecer bem aos olhos de seus superiores, que investigue de forma isenta infrações cometidas por aqueles de que dependem hierarquicamente (salvo em casos excepcionais e insignificantes), até porque os

Paulo Queiroz*

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eventuais implicados poderão afastá-los a todo tempo. Cuida-se, portanto, de uma investigação comprometida desde a sua concepção, isto é, estruturalmente viciada, podendo pretextar a perseguição de adversários políticos inclusive.

E manter uma estrutura policial que depen-da hierárquica e diretamente do poder executivo, além de implicar uma clara subversão da lógica das investigações, constitui uma manobra para acobertar possíveis crimes de certas autoridades e assim lhes assegurar a impunidade. Quanto ao inquérito do “mensalão”, exceção à regra, caberia lembrar que, além da extraordinária repercussão na imprensa, nele interveio o Mi-nistério Público desde o primeiro momento, o que nem sempre ocorre.

Não é de surpreender, por isso, a descoberta na Bahia de mais de 300 (trezentos) procedi-mentos e inquéritos policiais envolvendo cerca de 30% dos 417 municípios baianos, que dizem respeito a prefeitos, vice-prefeitos e ex-prefeitos (Cf. Correio Braziliense, 17 de fevereiro de 2008), sobre homicídio inclusive, os quais es-tavam “esquecidos” numa sala da Secretaria de Segurança Pública desde 1988, todos fadados ao reconhecimento inevitável da prescrição e, pois, à impunidade dos criminosos.

O pior é que o ocorrido na Bahia é o que se passa em todo o Brasil ordinariamente, se bem que a estratégia do “esquecimento” costuma as-sumir forma mais sutil, pois mais freqüentemente

os inquéritos policiais, quando efetivamente instaurados, se arrastam anos a fio por meio de pedidos sucessivos de dilação de prazo; e quando chegam a ser concluídos, não são realizadas a tempo e modo as diligências indispensáveis e colhidas as provas necessárias à penalização dos responsáveis. A isso se soma ainda a costumeira morosidade dos tribunais de contas.

Por essas e outras é que ainda hoje a polícia judiciária brasileira se limita a apurar, quase que exclusivamente, crimes patrimoniais e similares (estelionato, furto, roubo), típica criminalidade dos grupos socialmente excluídos, e, pois, mais economicamente vulneráveis, deixando impune a criminalidade do poder, apesar de bem mais da-nosa, a exigir o quanto antes a sua reestruturação, quer autonomizando-a relativamente ao poder executivo, quer (mais adequadamente) fazendo integrar instituição independente a que está vinculada finalisticamente: o Ministério Público.

É pena que não tenhamos, no entanto, um Congresso Nacional à altura de tão grandes desafios, que, no mais das vezes, se perde na discussão de questões de somenos importância, e que ora parece funcionar à semelhança de uma Câmara de Vereadores de uma cidade atrasada do interior, como uma espécie de anexo do exe-cutivo, ora à semelhança de uma delegacia de polícia, por meio de CPI’s pouco produtivas, e que cada vez mais perde espaço para o executivo e judiciário.

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COLÓQUIO “LA EVOLUCIÓN DE LA ORGANIZACIÓN POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DE AMÉRICA DEL SUR”

Minha primeira palavra é de agradecimen-to. Agradeço o honroso convite formulado pelo Instituto Iberoamericano de Derecho Constitu-cional, o Centro de Estúdios Constitucionales de Chile de la Universidad de Talca y la Asociación Chilena de Derecho Constitucional, y el apoyo del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la Universidad Nacional Autônoma de México.

I) De 1964 a 1988:

Podemos dizer que a Constituição de 1988 inaugurou uma nova era no constitucionalismo brasileiro rompendo com o ciclo autoritário que dominou o Brasil de 1964 (data da revolução militar que se implantou no país por mais de vinte anos), a meados da década de 80.

As eleições dos Governadores em 1982 marcam o início do processo de abertura política e institucional que culminou com a aprovação da Emenda Constitucional número 26 (promulgada em 27.11.1985), convocando os membros da Câ-mara de Deputados e do Senado Federal para se reunirem, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 01.02.1987, na sede do Congresso Nacional.

Em 05 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição de 1988. No dizer de José Afonso da Silva1, “um texto razoavelmente avançado. É um texto moderno, com inovações de relevante importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial. Bem examinada, a Constituição

* Diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP1 Silva ,José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 29ª edição, 2006, São Paulo, Malheiros Editores, página 89 e 90.

Marcelo Figueiredo*

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Federal, de 1988, constitui, hoje, um documento de grande importância para o constitucionalismo em geral.

Sua estrutura difere das constituições anteriores. Compreende nove títulos, que cui-dam: (1) dos princípios fundamentais; (2) dos direitos e garantias fundamentais, segundo uma perspectiva moderna e abrangente dos direitos individuais e coletivos, dos direitos sociais dos trabalhadores, da nacionalidade, dos direitos políticos e dos partidos políticos; (3) da organi-zação do Estado, em que estrutura a federação com seus componentes; (4) da organização dos poderes: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, com a manutenção do sistema presidencialista, derrotado o parlamentarismo, seguindo-se um capítulo sobre as funções essen-ciais à Justiça, com ministério público, advocacia pública (da União e dos Estados), advocacia privada e defensoria pública; (5) da defesa do Estado e das instituições democráticas, com mecanismos do estado de defesa, do estado de sítio e da segurança pública; (6) da tributação e do orçamento; (7) da ordem econômica e finan-ceira; (8) da ordem social; (9) das disposições gerais. Finalmente, vem o Ato das Disposições Transitórias. Esse conteúdo, distribui-se por 245 artigos na parte permanente, e mais 73 artigos na parte transitória, reunidos em capítulos, seções e subseções”

II) A reforma do Estado no Brasil

Após a Constituição de 1988 e, sobretudo, ao longo da década de 90, o tamanho e o papel do Estado passaram para o centro do debate ins-titucional. E a verdade é que o intervencionismo estatal não resistiu à onda mundial de esvazia-mento do modelo no qual o Poder Público e as entidades por ele controladas atuavam como protagonistas do processo econômico.

É a lição de Luís Roberto Barroso que ado-tamos e passamos a transcrever por sua excelente sistematização do fenômeno das reformas. O mo-delo dos últimos vinte e cinco anos se exaurira.

O Estado brasileiro chegou ao fim do século XX grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de corrupção e sem conseguir vencer a luta contra a pobreza. Um Estado da direita, do atraso social, da concentração de pobreza. Um Estado que tomava dinheiro emprestado no exterior para emprestar internamente, a juros baixos, para a burguesia industrial e financeira brasileira. Esse Estado, portanto, que a classe dominante brasi-leira agora abandona e do qual quer se livrar, foi aquele que a serviu durante toda a sua existência. Parece, então, equivocada a suposição de que a defesa desse Estado perverso, injusto e que não conseguiu elevar o patamar social no Brasil seja uma opção avançada, progressista, e que o ali-nhamento com o discurso por sua desconstrução seja a postura reacionária.

As reformas econômicas brasileiras en-volveram três transformações estruturais que se complementam, mas não se confundem. Duas delas foram precedidas de emendas à Consti-tuição, ao passo que a terceira se fez mediante a edição de legislação infraconstitucional e a prática de atos administrativos2.

A primeira transformação substantiva da ordem econômica brasileira foi a extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro. A Emenda Constitucional número 6, de 15.08.95, suprimiu o artigo 171 da Constituição, que trazia a conceituação de empresa brasileira de capital nacional e admitia a outorga a elas de proteção, benefícios especiais e preferências. A mesma emenda modificou a redação do art. 176, caput, para permitir que a pesquisa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia elétrica sejam concedidos ou autorizados a empresas constituídas sob as leis brasileiras, dispensada a exigência do controle do capital nacional. Na mesma linha, a Emenda Consti-tucional número 07, de 15.08.95, modificou o art.178, não mais exigindo que a navegação de cabotagem e interior seja privativa de embar-cações nacionais e a nacionalidade brasileira dos armadores, proprietários e comandantes e, pelo menos, de dois terços dos tripulantes. Em seguida, foi promulgada a Emenda Constitu-

2 Segundo Barroso, Luís Roberto Temas de Direito Constitucional, Tomo II, Editora Renovar, Rio de Janeiro, 2003, página 274 e seguintes.

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cional número 36, de 28.05.02, que permitiu a participação de estrangeiros em até trinta por cento do capital das empresas jornalísticas e de radiodifusão.

A segunda linha de reformas que modifica-ram a feição da ordem econômica brasileira foi a chamada flexibilização dos monopólios estatais. A Emenda Constitucional número 5, de 15.08.95, alterou a redação do § 2º do art. 25, abrindo a possibilidade de os Estados-membros conce-derem às empresas privadas a exploração dos serviços públicos locais de distribuição de gás canalizado, que, anteriormente, só podiam ser de-legados a empresa sob controle acionário estatal. O mesmo se passou com relação aos serviços de telecomunicações e de radiodifusão sonora e de sons e imagens. É que a Emenda Constitucional número 08, de 15.08.95, modificou o texto dos incisos XI e XII, que só admitiam a concessão a empresa estatal. E, na área do petróleo, a Emenda Constitucional número 9, de 09.11.95, rompeu, igualmente, com o monopólio estatal, facultando à União Federal a contratação com empresas privadas de atividades relativas à pes-quisa e lavra de jazidas de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluídos , a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro, a importação, exportação e transporte dos produtos e derivados básicos de petróleo.

A terceira transformação econômica de re-levo- a denominada privatização- operou-se sem alteração do texto constitucional, com a edição da Lei número 8.031, de 12.04.90, que instituiu o Programa Nacional de Privatização, depois substituída pela Lei número 9.491, de 9.09.97, Entre os objetivos fundamentais do programa incluíram-se, nos termos do artigo 1º, incisos I e IV: (i) reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; (ii) contribuir para a modernização do parque industrial do País, ampliando sua compe-titividade e reforçando a capacidade empresarial dos diversos setores da economia.

O programa de desestatização tem sido levado a efeito por mecanismos como (a) aliena-ção, em leilão nas bolsas de valores, do controle de entidades estatais, tanto as que exploram

atividades econômicas como as que prestam serviços públicos e (b) a concessão de serviços públicos a empresas privadas. No plano federal inicialmente foram privatizadas empresas dos setores petroquímico, siderúrgico, metalúrgico e de fertilizantes, seguindo-se a privatização da infra-estrutura, envolvendo a venda da empresa com a concomitante outorga do serviço público, como tem se passado com as empresas de energia e telecomunicações e com rodovias e ferrovias.

Acrescente-se, em desfecho do levanta-mento aqui empreendido, que, além das Emendas Constitucionais números 05, 06, 07, 08 e 09, assim como na Lei nº 8.031/90, os últimos anos foram marcados por uma fecunda produção legislativa em temas econômicos, que inclui diferentes setores, como energia, telecomuni-cações, criação de agências reguladoras, mo-dernização de portos, concessões e permissões, dentre outros.

Afirma Barroso que a redução expressiva das estruturas públicas de intervenção direta na ordem econômica não produziu um modelo que possa ser identificado com o de Estado mínimo. Pelo contrário, apenas deslocou-se a atuação estatal do campo empresarial para o domínio da disciplina jurídica, com a ampliação de seu papel na regulação e fiscalização dos serviços públicos e atividades econômicas. O Estado, portanto, não deixou de ser um agente econômico decisivo. Para demonstrar a tese, basta examinar a profusão de textos normativos editados nos últimos anos.

De fato, a mesma década de 90, na qual foram conduzidas a flexibilização de monopó-lios públicos e a abertura de setores ao capital estrangeiro, foi cenário da criação de normas de proteção ao consumidor em geral e de consumi-dores específicos, como os titulares de planos de saúde, os alunos de escolas particulares e os clientes de instituições financeiras. Foi também nesse período que se introduziu no país uma política específica de proteção ao meio ambiente, limitativa da ação dos agentes econômicos, e se estruturou um sistema de defesa e manutenção das condições de livre concorrência que, embo-ra longe do ideal, constituiu um considerável avanço em relação ao modelo anterior. Nesse

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ambiente é que despontaram as agências regu-ladoras da atuação estatal.

III) O sistema de governo3 e os partidos políticos

a) O sistema de governo e temas correlatosCom o regime autoritário instalado em

1964, afastou-se qualquer perspectiva de recon-siderar o modelo parlamentarista para o país, pois o pensamento militar rejeitava a idéia de um poder compartilhado com o parlamento. Aliás, um regime centrado no parlamento era a antítese do que os então governantes defendiam.

A redemocratização deu alento aos par-lamentaristas, que se animaram com a convo-cação da Assembléia Nacional Constituinte. A comissão constituída para elaborar o anteprojeto da nova Carta foi presidida por Afonso Arinos de Mello Franco, um conhecido defensor do parlamentarismo.

Na versão final do anteprojeto, prevaleceu a idéia de parlamentarismo dual. O presidente da república seria eleito diretamente, por maioria absoluta, para mandato de seis anos. Caber-lhe-ia indicar o presidente do Conselho de Minis-tros, após consulta às correntes partidárias que compõem a maioria do Congresso Nacional. O Presidente da República, por sua vez, poderia exonerar por iniciativa própria o presidente do Conselho, que também poderia cair por moção de censura ou recusa de confiança votada pela maioria absoluta da Câmara de Deputados.

Neste anteprojeto, previa-se ainda o gabi-nete duplamente responsável, perante a Câmara, mas também perante o Presidente da República. Não se contemplavam decretos –leis, medidas provisórias ou medidas de urgência.

Entretanto a opção final da Assembléia Nacional Constituinte foi pelo sistema presi-dencialista. Prevista na mesma Constituição, realizou-se um plebiscito, cinco anos após a sua promulgação, onde o eleitorado confirmou a op-

ção republicana e presidencialista em detrimento à monarquia constitucional.

À ocasião, a decisão dos constituintes de levar a opção entre sistemas de governo a plebiscito foi altamente questionável, pois essa consulta serve quando o assunto a ser votado é redutível a quesitos simples, para resolver com o “sim” ou “não”, nunca para assuntos extrema-mente complexos, sobre cujas opções divirjam, e muito, os próprios especialistas, como é o caso de sistema de governo. Os delegados não quiseram usar de sua delegação e se omitiram de decidir, devolvendo a responsabilidade ao mandante. O plebiscito, realizado em setembro de 1993, deu a vitória ao presidencialismo, por ampla margem.

Por que se deu a recusa ao parlamentaris-mo? São várias as causas, são fortes os precon-ceitos relativos a esse sistema, que levam à sua previsível rejeição. Se, no plano da elite, logra o parlamentarismo razoável apoio, seja em sua forma mais pura, seja, crescentemente, sob a forma dos modelos híbridos, esse apoio não se repete na opinião pública.

Acredita-se que a tarefa de desenvolver o país, modernizá-lo, romper os bloqueios a seu progresso e desenvolvimento, requeira concen-tração de poder em um líder carismático, ungido pelo mandato popular para mudar o sistema. Não se vê, no parlamentarismo, liderança forte. Parece um sistema de poder muito diluído, um governo de deputados que fazem e desfazem governos a seu livre critério. Os parlamentares representariam, em contraposição de interesses circunscritos, paroquiais, em contraposição aos presidentes, supostamente mais sensíveis aos interesses modernos, do país como um todo, pelo fato mesmo de se elegerem, em contraposição aos deputados e senadores, na circunscrição nacional.

Junte-se a tais percepções o desprestígio do Poder Legislativo perante a opinião pública, problema, aliás, de ordem mundial nas democra-cias contemporâneas. O governo parlamentarista nos prenderia, portanto, de acordo com essas

3 Nesta seção utilizaremos a argumentação e as conclusões (que encampamos) de Antônio Octávio Cintra, retiradas do seu texto, “O sistema de Governo no Brasil”, Capítulo 2, da obra, “Sistema Político Brasileiro”- Uma introdução, 2ª edição, Organizada por Lúcia Avelar e Antônio Octávio Cintra, Konrad Adenaur Stiftung e Editora Unesp, página 59 a 77.

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percepções, ao atraso, aos poderes oligárquicos regionais e à inoperância institucional.

São percepções enganosas e, no seu conjunto, deixam transparecer exigências con-flitantes sobre nosso sistema de governo presi-dencial. Um presidente portador de uma missão revolucionária, demiurgo, esbarraria no sistema político cheio de pontos de bloqueio à tomada de decisões e, sobretudo, à implementação delas. O presidente brasileiro tem de compor uma base de sustentação em um congresso pluripartidário, sem uma agremiação majoritária suficiente, sequer, para garantir a aprovação de leis ordiná-rias. As decisões exigentes de quorum especial podem dar, a cada parceiro da coalizão, mesmo às pequenas agremiações, poder de barganha incomensurável em votações conflituosas. Ade-mais, o Legislativo é bicameral, com o Senado equiparado à Câmara em suas competências e significando mais uma instância legislativa a superar na aprovação de um projeto.

Há um federalismo em que podem prevale-cer interesses oligárquicos regionais nos estados menos desenvolvidos. Ademais, a organização do Judiciário é descentralizada e o Ministério Público tem ampla autonomia.

O presidencialismo brasileiro, segundo Abranches e Cintra4 trabalha em um sistema de composição partidária nos Ministérios. Se nos regimes parlamentaristas europeus se tecem as coalizões segundo a regra da proporcionalidade, dando-se a cada partido uma fatia do ministério aproximadamente proporcional a seu peso na base parlamentar, no caso brasileiro a partilha dos postos ministeriais nem sempre segue essa norma, por terem os presidentes a faculdade constitucional de nomear livremente seus minis-tros. Entretanto, o conjunto, a correspondência entre o peso parlamentar dos partidos e sua re-presentação ministerial traria solidez legislativa ao gabinete. Quanto maior essa correspondência, tanto maior seria a disciplina dos partidos inte-grantes do gabinete no apoio às votações de in-teresse do Executivo. A medida estatística dessa correspondência é o índice de coalescência, tanto maior quanto mais justa a proporcionalidade

da distribuição de pastas ministeriais entre os partidos de apoio ao governo.

Os dados de Amorim Neto indicam que o governo de Fernando Henrique Cardoso teria estado muito mais próximo de um governo de coalizão de estilo europeu do que os de Fernando Collor e Itamar Franco. Ou seja, o presidencialismo de coalizão não constitui um modelo estático, mas sim uma situação variável, conforme, sobretudo, para esse autor, o grau de coalescência atingido.

Estudos mais recentes, do próprio Amorim Neto e de outros autores, já incorporam os dados do governo Lula. Amorim Neto observa terem os ministérios organizados, desde o governo Sarney até o de Lula, sido arranjos multipartidários com maior ou menor grau de fragmentação e hetero-geneidade ideológica. Mas o de Lula e o que mais ampliou o número de partidos, chegando a nove. Quanto à heterogeneidade ideológica, apenas o segundo e o terceiro de Collor dela escaparam, por se concentrarem mais à direita. Contudo, no caso do governo Lula, como acentua Fabiano Santos, essa heterogeneidade aumentou bastante.

Há ainda que considerar o poder do Pre-sidente da República para editar medidas pro-visórias. Santos discute as conseqüências dessa prerrogativa sobre o padrão de relação entre o Executivo e o Legislativo. Se os presidentes optam pelo governo de coalizão, sendo os pos-tos principais distribuídos proporcionalmente entre os partidos de apoio, tentarão, ao editar as medidas provisórias (MPs), observar o interesse da maioria governativa e tentarão governar por meios ordinários. É o caso de Cardoso, com gabinetes coalescentes e ideologicamente menos heterogêneos, que permitiram que os textos das MPs, nas diversas reedições, sofressem alte-rações negociadas, mas não o de Collor, cujo ministério não era inclusivo e que abusou de MPs originais. No governo Collor, o Congresso acenou, num certo ponto, com a possibilidade de uma lei disciplinadora do uso das MPs pelo Executivo, de que resultou o arrefecimento de seu uso. No segundo mandato de Cardoso, aprovou-se a Emenda Constitucional 32/2001,

4 Ob.Cit, Cintra, página 67.

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que impõe nova disciplina ao uso da medida provisória, ao limitar-lhe a reedição a uma só vez. A não deliberação sobre a MP, decorridos quarenta e cinco dias de sua publicação, leva-a ao regime de urgência, sob o qual ficam “sobreesta-das, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando”. É o chamado “trancamento de pau-ta”. Como mostra Santos, em vez de diminuir o uso das MPs, passou-se a editar mais, e maior número delas passou a ser rejeitado.

Por fim, em relação à composição da “classe política”, são 513 deputados federais. Em teoria, a Câmara de Deputados representaria o povo, cabendo ao Senado a representação dos Estados. Não é bem assim, porém. Em primeiro lugar, não há deputados nacionais, eleitos na cir-cunscrição do país como um todo, mas sim ban-cadas estaduais de deputados federais, o que faz que estes também se vejam como representantes das unidades da Federação no plano nacional.

Em segundo lugar, mais importante, a representatividade popular da Câmara é em parte invalidada por não se respeitar, na fixação do tamanho das bancadas estaduais, a propor-cionalidade com o tamanho das populações estaduais. Ao contrário, ao fixar um mínimo de oito representantes por Estado, não importa quão reduzida sua população, e um máximo de setenta, a Carta de 1988 apenas deu continuidade ao que tem prevalecido em nossa história republicana. Trata-se da desproporção entre representação e tamanho populacional das unidades da Federa-ção e, consequentemente, a existência de pesos diferentes aos votos dos eleitores, contrária à regra democrática de “um homem, um voto”. Apesar de o problema estar muito claro no de-bate público sobre a matéria, basta compulsar os Anais da Assembléia Nacional Constituinte que elaborou a vigente Carta, para nos darmos conta de que a desproporcional distribuição de cadeiras entre os Estados passou a representar na prática, como que uma “cláusula pétrea” de nossa organização política. Os parlamentares dos Estados sobre-representados não admitem

a hipótese de redução de sua representação. A grande desigualdade regional, dada a força de São Paulo na Federação, dá peso político aos argumentos dos que defendem uma repre-sentação, na Câmara, dos Estados menores e menos desenvolvidos, que não seja estritamente proporcional a suas populações. Considera-se insuficiente a compensação federativa obtida no Senado, que, por ser ele a “Câmara dos Estados”, dá a todos eles o mesmo peso na representação, independentemente de sua população5.

b) Os partidos políticos6

O Brasil é uma federação com 26 estados e um Distrito Federal, com eleições diretas em três níveis (federal, estadual e municipal). Tem eleições de dois em dois anos não totalmente coincidentes, e as eleições municipais são de-fasadas das eleições gerais. Para compreender o sistema partidário brasileiro atual, temos que buscar suas raízes no período pós- 1945. Nestes últimos quase 60 anos, o sistema partidário so-freu dois “realinhamentos” forçados pelo regime militar, em 1965-1966 e em 1979-1980. Com o retorno aos governos civis em 1985, o sistema partidário passou por uma grande expansão até 1993, quando se iniciou um certo “encolhimen-to”. Mas, o sistema fragmentou-se de novo no final dos anos 90, com 18 partidos, elegendo pelo menos um deputado em 1998 e 2002, e 21 em 2006.

Diferentemente dos outros regimes milita-res no Cone Sul (Chile, Uruguai e Argentina), os generais – presidentes brasileiros não fecharam o Congresso Nacional nem prescreveram os partidos políticos; mantiveram as eleições em intervalos regulares, embora com várias restri-ções autoritárias - num esforço para vender a imagem de uma “democracia relativa”. Assim, a transição (ou transação) para a democracia se processou sem rupturas entre 1974 e 1985. Por essa razão, com a abertura do sistema partidário e com a liberdade de organizar novos partidos (ou reorganizá-los), não ressurgiram os partidos

5 Conforme Cintra, Antonio Octávio e Lacombe, Marcelo Barroso “A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política”, Capítulo 6 da obra já citada, “Sistema Político Brasileiro”.. página 143 e seguintes.

6 Segundo Fleischer, David “Os Partidos Políticos”, Idem, página 303 e seguintes.

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tradicionais do período anterior ao golpe militar de 1964- como reapareceram a Unión Cívica Radical e o Partido Justicialista na Argentina, os Blancos e Colorados no Uruguai e o Partido Democrata Cristão no Chile, com o fim dos seus respectivos regimes militares.

No período de 1945 a 1965, o Brasil chegou a ter treze partidos representados no Congresso Nacional e dois médios e oito pequenos. Se con-siderarmos o período de 1980 a 1997, veremos um novo sistema partidário. Nos últimos cinco anos do regime militar (1980-1985), manteve-se um pluripartidarismo moderado, com seis parti-dos e depois cinco. Com o retorno dos governos civis (Sarney, 1985-1990; Collor, 1990-1982; Itamar, 1992-1994; e F. H. Cardoso, 1995- 1998), modificou-se a legislação, o que facilitou a criação e o registro de legendas novas. Como conseqüência, em 1991, mais de quarenta par-tidos estavam registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vinte dos quais representados no Congresso. Com a nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos – LOPP, sancionada em agosto de 1995, anteciparam-se várias fusões entre 1993 e 1996, com um certo encolhimento do sistema, o que promoveu um pluralismo ligeiramente mais moderado nas eleições de 1998 e 2002. Hoje temos aproximadamente 9 (nove) partidos grandes e médios com projeção nacional.

Do ângulo do eleitorado, podemos acompa-nhar a análise de Reis7, para quem as estatísticas revelam o alheamento de grandes parcelas do eleitorado popular brasileiro perante a política e os assuntos públicos, alheamento este que se liga com a tendência geral ao desapreço pela de-mocracia. Pesquisas por amostragem realizadas em 2002 em 17 países latino-americanos pelo Latinobarômetro, instituição sediada em Santia-go do Chile, mostram o Brasil com o país com menor proporção de respostas em que se aponta a democracia como preferível a qualquer outra espécie de regime (37 por cento). Não obstante certa recuperação relativamente a 2001, tam-bém nas pesquisas de anos anteriores realizadas pelo mesmo instituto as proporções brasileiras de apoio à democracia se situam entre as mais

baixas da América Latina. É é talvez especial-mente revelador observar que, no ano de 2002, a proporção de brasileiros que declaram não saber o que significa a democracia ou simples-mente não responderam à pergunta a respeito é destacadamente mais alta que a dos nacionais de todos os demais países latino-americanos, alcançando 63 por cento (em El Salvador, o segundo colocado, a proporção correspondente não passa de 46 por cento).

Tais constatações têm certamente a ver com a grande desigualdade social brasileira e seus reflexos nas deficiências educacionais do país, e pesquisas diversas mostram a clara cor-relação positiva entre o apego à democracia (ou, em geral, a atenção e o interesse pela política e o ânimo participante e cívico) e a escolaridade ou a sofisticação intelectual geral dos eleitores.

De qualquer forma, duas observações per-mitidas por outros dados merecem destaque por sua relevância. A primeira mostra o substrato sociopsicológico com que aparentemente conti-nua a contar o populismo no Brasil, solapando a idéia de uma democracia capaz de operar institucionalmente de forma estável: somente entre os entrevistados de nível universitário não se encontrava, nos dados em questão, a concor-dância da ampla maioria com um item de claro ânimo antiinstitucional, e mesmo autoritário, em que se desqualificavam os partidos políticos e se afirmava que, em vez deles, o que o país necessitava é “um grande movimento de uni-dade nacional dirigido por um homem honesto e decidido”, abrindo assim uma margem para líderes “fortes”.

Esse tipo de mentalidade incrementa e incentiva a adoção de programas assistencialis-tas, como o implementado no governo Lula. O “bolsa família”, que atinge 11 milhões de pessoas (aproximadamente 40 milhões de eleitores), serviu claramente como instrumento poderoso de reeleição do Presidente, além dos resulta-dos positivos obtidos no cenário econômico (baixa inflação, mais acesso ao crédito, menos desemprego,etc).

7 Reis, Fábio Wanderley, “Dilemas da Democracia no Brasil”, São Paulo, Ob. Cit. Página 476 e seguintes.

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IV - O Poder Judicial, Constitucional e a Defesa dos Direitos Fundamentais

Como sabemos o Estado Democrático de Direito é a síntese histórica de duas idéias originalmente antagônicas: democracia e cons-titucionalismo. Com efeito, enquanto a idéia de democracia se funda na soberania popular, o constitucionalismo tem sua origem ligada à noção de limitação do poder.

A supremacia da Constituição e a jurisdi-ção constitucional são mecanismos pelos quais determinados princípios e direitos, considerados inalienáveis pelo poder constituinte originário, são subtraídos da esfera decisória ordinária dos agentes políticos eleitos pelo povo, ficando pro-tegidos pelos instrumentos de controle de cons-titucionalidade das leis e atos do poder público.

Assim, a jurisdição em geral e a jurisdição constitucional em particular8 fazem parte da administração da justiça que tem como objetivo específico a matéria jurídico-constitucional de um Estado.

O Direito prescrito pela Constituição de 1988, em vez de manutenção, em muitas passa-gens postula uma transformação do status quo. A lei, sabemos, deixa de ser apenas a simples reguladora de conflitos intersubjetivos e passa a assumir também uma feição de um instrumento político de governo.

Essa mudança de paradigmas modifica o papel e a função desempenhada pelo Poder Judiciário. Em vez de tratar apenas de conflitos intersubjetivos de menor complexidade, agora tem o judiciário que resolver litígios coletivos. As chamadas “class action”, as ações públicas (civis públicas), as diversas ações fundadas no direito coletivo e no direito difuso fazem parte dessa nova realidade.

IV.1. O Ativismo do Judiciário Brasileiro e seus exemplos

O Supremo Tribunal Federal, com sua mais recente composição e principalmente em razão da omissão legislativa sobre importantes questões para a vida nacional — em especial no tocante a problemas políticos e de eficácia dos direitos fundamentais —, vem se revelando como um Tribunal com menos receio de assumir um papel politicamente ativo no exercício da função jurisdicional.

Como explica Gisele Cittadino,9 se o ati-vismo judicial é mais favorecido nos países da common law — onde se tem a criação jurispru-dencial do direito e uma maior influência política do juiz —, nos países da civil law tal ativismo também é adotado, especialmente em razão da incorporação dos princípios ao texto constitu-cional e da fixação dos objetivos fundamentais do Estado na Constituição.

No Brasil, a referida autora menciona que o fortalecimento do ativismo judicial se deve, principalmente, pela incorporação da linguagem do direito ao debate político e ao ordenamento jurídico, com a emergência do movimento dos direitos humanos, nos anos 70, combatendo o regime militar, a luta pela reconquista dos direitos políticos, na primeira metade dos anos 80, a participação, na segunda metade dos anos 80, de setores organizados da sociedade civil no processo constituinte e as freqüentes denúncias, a partir dos anos 90, das violações dos direitos fundamentais das camadas populares.

Além disso, segundo Cittadino, o ativismo judicial teria se fortalecido também em razão dos seguintes fatores: (a) o reforço das instituições garantidoras do Estado de Direito, como a Ma-gistratura e o Ministério Público, após o período autoritário; (b) a constitucionalização de valores da comunidade, exigindo um compromisso da Constituição no sentido de concretizá-los; (c) a conversão dos direitos fundamentais no núcleo básico do ordenamento constitucional brasileiro e em critério de interpretação constitucional; (d) a percepção dos cidadãos não apenas como destinatários, mas como autores de seus direitos;

8 Temos plena consciência que a rigor não existem duas jurisdições, apenas ressaltamos o aspecto didático-estrutural da justiça. 9 Cittadino, Gisele. “Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes”. In: Vianna, Luiz Werneck (Org.). A demo-

cracia e os três poderes no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ e Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 17-42.10 BarCellos, Ana Paula A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 215-217.

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(e) o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição (cidadãos, partidos políticos, asso-ciações, etc.); (f) a ampliação do rol dos direitos fundamentais, que exigem não só a abstenção do Estado, mas, também, um dever de ação estatal; (g) a ampliação das ações coletivas; (h) a inér-cia do Poder Legislativo; (i) o incremento dos instrumentos de controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos; (j) o controle da omissão do Estado pelo Poder Judiciário; (k) a atividade construtiva da interpretação constitu-cional.

Contudo, o protagonismo dos tribunais traz problemas ligados especialmente ao princípio da Separação dos Poderes e da legitimidade demo-crática do Poder Judiciário, ou seja, acerca da neutralidade política deste órgão estatal.

Rebatendo as críticas dirigidas à judicia-lização da Política, Ana Paula de Barcellos ad-vertindo, de início, que a separação dos Poderes tem natureza instrumental, na medida em que existe para realizar o controle do poder, evitan-do o arbítrio. Dessa forma, não se mostra como um obstáculo lógico ao controle pelo Judiciário das omissões inconstitucionais do Poder Públi-co.10 No tocante à democracia, a mesma autora acentua que, para além da fórmula majoritária, é imprescindível o respeito “aos direitos fun-damentais de todos os indivíduos, façam eles parte da maioria ou não”.11 E, então, conclui que o Judiciário tem legitimidade para conferir eficácia positiva aos direitos prestacionais pelos seguintes motivos: (a) o Judiciário, tendo em vista que foi criado pela própria Constituição, compõe o poder político nacional da mesma forma que o Legislativo e o Executivo; (b) os órgãos de cúpula do Judiciário têm alto grau de representatividade, na medida em que são formados pela vontade do Executivo e do Le-gislativo; (c) os magistrados estão aptos a agir com independência, pois, para tanto, gozam de

prerrogativas asseguradas constitucionalmente; (d) as atividades jurisdicionais, além de públicas e motivadas, encontram fundamento e limites nas normas jurídicas; (e) as decisões judiciais são passíveis de revisão por outros órgãos do Judiciário; (f) o processo jurisdicional, uma vez que garante às partes amplo contraditório, é mais participativo do que qualquer outro processo público; (g) os grupos minoritários “sempre terão acesso ao Judiciário para a preservação de seus direitos”.12

IV. 2. Alguns Casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil

a) Mandado de Injunção e o direito de greve dos servidores públicos

No Brasil, o mandado de injunção surge como um mecanismo de controle difuso da constitucionalidade por omissão. A Constituição de 1988, a primeira do ordenamento constitucio-nal brasileiro a prever o mandado de injunção, estabelece, em seu art. 5º, LXXI, o seguinte: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.

Por meio do mandado de injunção, preten-de-se viabilizar o exercício de um direito previsto na Constituição que, por falta de norma regula-mentadora, o impetrante não consegue praticar.

Contudo, até recentemente não tinha sido esse o entendimento predominante do Supremo Tribunal Federal, que, na maioria das vezes, ao julgar procedente o pedido formulado em man-dados de injunção, reconhecia a mora do órgão encarregado de regulamentar o dispositivo cons-titucional e deferia o writ para que tal situação fosse comunicada ao referido órgão.13

11 iBid, p. 227.12 Ibid, p. 231-232.13 Mandado de Injunção n. 585/TO, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 15.05.2002. Em casos isolados o entendimento não vinha sido esse, como se pode

verificar das decisões proferidas no Mandado de Injunção 283/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20.03.1991; e no Mandado de Injunção n. 562/RS, rel. Min. Carlos Velloso, rel. do acórdão Min. Ellen Gracie, j. 20.02.2003. Neste último caso, parte da ementa do acórdão tem o seguinte teor: “Reconhecimento da mora legislativa do Congresso Nacional em editar a norma prevista no parágrafo 3º do art. 8º do ADCT, assegurando-se, aos impetrantes, o exercício da ação de reparação patrimonial, nos termos do direito comum ou ordinário, sem prejuízo de que se venham, no futuro, a beneficiar de tudo quanto, na lei a ser editada, lhes possa ser mais favorável que o disposto na decisão judicial. O pleito deverá ser veiculado

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Flávia Piovesan identifica três correntes doutrinárias que buscam explicar os efeitos da decisão proferida no mandado de injunção. Segundo essa autora, ao conceder o mandado de injunção, caberia ao Poder Judiciário: (a) elaborar a norma regulamentadora faltante, suprindo, deste modo, a omissão do legislador; ou (b) declarar inconstitucional a omissão e dar ciência ao órgão competente para a adoção das providências necessárias à realização da norma constitucional; ou (c) tornar viável, no caso concreto, o exercício de direito, liberdade ou prerrogativa constitucional que se encontrar obstado por faltar norma regulamentadora.14

Admitir que o Poder Judiciário, ao con-ceder o mandado de injunção, elaboraria a norma regulamentadora faltante, suprimindo a omissão do legislador,15 afrontaria o princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal.

Aceitar que o mandado de injunção se pres-taria, simplesmente, a declarar inconstitucional a omissão e a dar ciência ao órgão omisso para adotar as providências necessárias à realização da norma constitucional, sem possibilidade de imposição de sanção a este, significaria reco-nhecer a dois instrumentos constitucionais dis-tintos — o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão16 — os mesmos efeitos.17

Ademais, concordar com a argumentação de que o mandado de injunção é um instrumento desprovido de força para viabilizar o exercício do direito previsto na Constituição é o mesmo que negar a esse instrumento a natureza de ação cons-titucional, o que também não se pode admitir.

Nas palavras de Luís Roberto Barroso — no que é acompanhado por grande parte da doutrina —, o provimento judicial, no mandado de injunção, tem “natureza constitutiva, devendo o juiz criar a norma regulamentadora para o caso concreto, com eficácia inter partes, e aplicá-la, atendendo, quando seja o caso, à pretensão vei-culada”.18 Assim, o mandado de injunção deveria ser entendido como uma ação constitucional voltada a tornar viável, no caso concreto, o exercício do direito previsto constitucionalmente e que se encontra obstado por falta de norma regulamentadora.19

O art. 37 da Constituição Federal, ao tratar das disposições gerais da administração pública, estabelece, em seu inciso VII, que o direito de greve do servidor público civil será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica.

As decisões do Supremo Tribunal Federal, há mais de uma década, caminhavam no sentido de interpretar o art. 37, VII, da Constituição, como uma norma de eficácia limitada. Nossa Su-prema Corte vinha entendendo que o advento da lei constituiria requisito de aplicabilidade do art. 37, VII, da Constituição Federal. O direito públi-co subjetivo de greve, outorgado aos servidores civis, só se revelaria possível depois da edição da lei especial reclamada pela Constituição. “A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta[ria] — ante a ausência de auto-aplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição — para justificar o seu imediato exercício.” (Mandado de Injunção 20-4/DF e, no mesmo sentido, MI 485-4/MT, 585-9/TO e 438/GO).

diretamente mediante ação de liquidação, dando-se como certos os fatos constitutivos do direito, limitada, portanto, a atividade judicial à fixação do ‘quantum’ devido”.

14 PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção, p. 148.15 Essa é a posição, por exemplo, de GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades, p. 182-4. Esse autor afirma o seguinte: “Uma

solução intermediária seria a de se admitir que, procedente o pedido, o tribunal poderia determinar prazo para que a norma fosse elaborada sob pena de, passado esse lapso temporal, ser devolvida ao Judiciário a atribuição de fazê-la. É certo que, passado o prazo, retornar-se-ia à segunda alternativa, ou seja, o tribunal é que deveria fazer a norma. A solução adequada, portanto, parece a primeira, admitida a alternativa de, antes, ser dada a opor-tunidade para que o poder competente elabore a norma. Se este não a fizer o Judiciário a fará para que possa ser exercido o direito constitucional”.

16 O art. 103, § 2º, da Constituição, ao disciplinar a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, prevê o seguinte: “§ 2º Declarada a inconstitu-cionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.

17 Nas palavras de Barroso, Luís Roberto (in: O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 106), essa interpretação seria inadmissível porque aceitaria a existência de “dois remédios constitucionais para que seja dada ciência ao órgão

omisso do Poder Público, e nenhum para que se componha, em via judicial, a violação do direito constitucional pleiteado”.18 BARROSO, Luís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 104.19 Esse é o entendimento, por exemplo, de PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial cit. p. 157 e segs.; TEMER, Michel. Elementos de direito consti-

tucional cit. p. 205; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit. p. 450 e também sempre foi o nosso entendimento, Cf. Figueiredo, Marcelo “O mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão”, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991,(esgotado).

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Contudo, recentemente, ao julgar os Mandados de Injunção 670, 708 e 712, todos de 2007, o Supremo Tribunal Federal determinou a aplicação, aos servidores públicos civis, da Lei nº 7.783/89, que regulamenta o direito de greve para os trabalhadores da iniciativa privada, naquilo que não for colidente com a natureza estatuária do vínculo estabelecido entre os fun-cionários e a Administração Pública, enquanto o Poder Legislativo não promulgar o diploma legal específico, previsto no art. 37, VII, da CF.

Como se percebe, o Supremo Tribunal Federal passou de um extremo a outro, contra-riando, em ambos os casos, a doutrina majori-tária sobre a matéria. Antes, o STF reconhecia a inconstitucionalidade por omissão e comunicava o órgão omisso acerca disso. Agora, com os Mandados de Injunção 670, 708 e 712, resolveu a questão não somente para as partes envolvidas, mas suprimiu a omissão, resolvendo a questão para todos os casos, abstratamente.

b) Número de vereadores proporcional à população

Em 2002, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário 197.917, de-corrente de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público com o objetivo de reduzir de 11 para 9 o número de Vereadores da Câmara Municipal de Mira Estrela, Estado de São Paulo.

A alegação do Ministério Público era a de que a previsão da Lei Orgânica do Muni-cípio violaria o art. 29, IV, alínea “a”, da CF,20

acarretando prejuízo ao erário local, visto que o Município tinha menos de 3.000 habitantes.

Em resposta, a Câmara Municipal de Mira Estrela alegara que tinha autonomia para fixar o número de Vereadores, observados os parâme-tros mínimo e máximo fixados pela Constituição.

O Supremo Tribunal Federal criou parâme-tros aritméticos para a composição das Câmaras Municipais, levando em conta o disposto no art. 29, IV, letras “a” a “c”, da CF. Segundo o STF, tais parâmetros preservariam os princípios da igualdade e da proporcionalidade (devido pro-cesso legal substantivo), bem como os princípios da Administração Pública (art. 37, caput, CF), como a moralidade, a impessoalidade e a eco-nomicidade dos atos administrativos.

Na mesma ocasião, o Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos da decisão tomada no controle difuso da constitucionalidade e de-terminou que eles seriam produzidos pro futuro. Sob o argumento da preservação da segurança jurídica, o Município somente teria reduzido o número de vereadores de 11 para 9 a partir da legislatura seguinte.

Como nessa decisão do STF, o Tribunal Superior Eleitoral editou, em 2004, as Resolu-ções 21.702 e 21.803, por meio das quais fixou o número de vereadores em todos os Municípios do Brasil.

c) Verticalização das coligações partidáriasEm 2002, o Tribunal Superior Eleitoral

editou a Resolução 20.993 estabelecendo que os partidos que lançassem, isoladamente ou em coligação, candidato a Presidência da República, em 2002, não poderiam formar coligação para eleição de Governadores, Senadores, Deputados Federais e Estaduais, com partido político que tivesse lançado, isoladamente ou em aliança diversa, candidato à eleição presidencial.

O Partido da Frente Liberal (PFL) ingres-sou no Supremo Tribunal Federal com Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN 2.628), alegando que a referida Resolução do TSE vio-laria o princípio da anualidade (art. 16, CF),21 da legalidade (art. 5º, II, CF),22 do devido processo

20 Tal artigo da Constituição brasileira estabelece o seguinte: “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o inters-tício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...] IV – número de Vereadores proporcional à população do Município, observados os seguintes limites: a) mínimo de nove e máximo de vinte e um nos Municípios de até um milhão de habitantes; b) mínimo de trinta e três e máximo de quarenta e um nos Municípios de mais de um milhão e menos de cinco milhões de habitantes; c) mínimo de quarenta e dois e máximo de cinqüenta e cinco nos Municípios de mais de cinco milhões de habitantes”.

21 “Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”

22 “II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

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legal (art. 5º, LIV, CF),23 da autonomia dos parti-dos políticos (art. 17, § 1º, CF, antes da Emenda 52/2006),24 bem como da competência da União para legislar sobre direito eleitoral (arts. 22, I, e 48, caput, CF).25

Não havia, na ocasião, previsão constitu-cional que se ocupasse diretamente das coliga-ções partidárias. O STF, por maioria de votos, não conheceu da ADIN, porque a Resolução do TSE seria um ato normativo secundário, de in-terpretação da Constituição, que apenas poderia violá-la indiretamente.

Como resposta às atitudes do Poder Ju-diciário (TSE e STF), o Congresso Nacional, em 2006, produziu a Emenda Constitucional nº 52/2006, que alterou o art. 17, § 1º, permitindo expressamente a coligação sem necessidade de respeitar a verticalização: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatorie-dade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária”.

d) Cláusula de barreiraA cláusula de barreira, também conhecida

como cláusula de exclusão ou de desempenho, é a disposição normativa que nega a existência ou a representação parlamentar ao partido que não tenha alcançado um determinado número ou percentual de votos numa eleição.

Os objetivos de tal cláusula são os de coibir um número elevado de partidos, evitar o enfra-quecimento partidário, impedir as legendas de aluguel e evitar que se afete a governabilidade

O artigo 17 da Constituição Federal de 1988 prevê a liberdade de criação, fusão, incor-poração e extinção dos partidos, resguardadas: (a) a soberania nacional; (b) o regime democrá-tico; (c) o pluralismo partidário; (d) os direitos fundamentais da pessoa; (e) funcionamento parlamentar na forma da lei.

Portanto, apesar de a Constituição reme-ter o funcionamento parlamentar à legislação ordinário, não faz menção expressa à cláusula de barreira.

A Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), no art. 12, prevê que o “partido político funciona, nas Casas Legislativas, por intermédio de uma bancada, que deve constituir suas lideranças de acordo com o estatuto do partido, as disposições regimentais das respectivas Casas e as normas desta Lei”. E o art. 13 da mesma lei estabelecia que o partido teria direito ao funcionamento parlamentar o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados tivesse obtido o apoio de, no mínimo, 5% dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de 2% do total de cada um deles.

Na ocasião, somente 7 dos 26 partidos políticos brasileiros teriam funcionamento parlamentar, participando do rateio do saldo do fundo partidário e gozando de 80 minutos por ano de propaganda eleitoral gratuita em cadeias nacional e estadual, por exemplo.

Em 2006, o PSC (Partido Social Cristão), um dos partidos que seriam excluídos do funcio-namento parlamentar em razão da cláusula de barreira, ingressou com a ADIN 1.354.

O Supremo Tribunal Federal julgou a cláu-sula de barreira inconstitucional pelos seguintes motivos: (a) seria o fim das minorias políticas e a consagração do despotismo da maioria; (b)

23 “LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.24

A redação do art. 17, § 1º, da CF, era a seguinte: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias.” A Emenda Constitucional 52, de 2006 alterou tal dispositivo, que passou a ter o seguinte teor: “§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as can-didaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.”

25 O art. 22, inciso I, estabelece a competência da União para legislar sobre direito eleitoral: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”. O caput do artigo 48 tem a seguinte redação: “Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União [...].”

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um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é o pluralismo político (art. 1º, V, CF); (c) a distinção entre partidos fere o direito de asso-ciação (art. 5º, XVII, XVIII e XIX, CF); (d) ao reduzir a representatividade dos parlamentares eleitos, cassa os direitos políticos dos que os elegeram; (e) haveria violação da cláusula do voto igual para todos (art. 14, CF); (f) seria ferido o princípio da igualdade de chances e oportuni-dades, bem como da igualdade de condições no exercício dos mandatos; e (g) ocorreria a viola-ção da igualdade entre partidos e entre eleitores.

e) Fidelidade partidáriaNo ano de 2007, o Partido da Frente Liberal

(PFL, atualmente DEM – Democratas), formulou a seguinte a Consulta 1.398 ao Tribunal Superior Eleitoral: os partidos políticos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda? Em outras palavras, o mandato pertence ao eleito ou ao partido?

O TSE, respondendo à consulta, estabe-leceu que a Candidatura depende de filiação partidária (art. 14, § 3º, V, CF) e o princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, CF) repudia o uso de qualquer prerrogativa pública no interesse particular ou privado. Assim, o man-dato pertenceria ao partido e não ao candidato eleito, apesar de o art. 55, da CF, não prever a mudança de partido como causa de perda do mandato.

Em 2007, três partidos políticos (DEM – Democratas, PPS – Partido Popular Socialista e PSDB – Partido da Social Democracia Bra-sileira) impetraram os Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604 perante o Supremo Tribunal Federal com o intuito de reaver os mandatos de parlamentares que foram eleitos por eles e depois mudaram de legenda.

O STF entendeu que o mandato pertence ao partido, mas a declaração de vacância depende

de se garantir, ao parlamentar, o direito à ampla defesa (art. 5º, LIV, CF). Estabeleceu, ainda, que os efeitos da decisão seriam produzidos a partir da resposta do TSE à Consulta 1.398, de 27/03/2007, com o objetivo de respeitar o princí-pio da segurança jurídica, visto que nessa data o TSE mudou de entendimento acerca da matéria.

O TSE, então, ampliou o entendimento sobre a fidelidade partidária aos eleitos pelo sistema majoritário, em consulta respondida no dia 16 de outubro de 2007. E o mesmo Tribunal editou a Resolução 22.610/07, disciplinando o processo de perda do cargo eletivo em razão da desfiliação partidária. Segundo esta Resolução, o parlamentar tem justa causa para se desfiliar de seu partido, sem o risco de perder o mandato, nos casos de: incorporação ou fusão do partido; criação de novo partido; mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; grave discriminação pessoal

f) Interrupção da gravidez de feto anence-fálico

No Brasil, há vários anos, discute-se a possibilidade de realização de aborto quando a mulher grávida depara com a má-formação do feto, que inviabiliza a vida extra-uterina.

Como noticia José Afonso da Silva,26 du-rante a última Constituinte, houve três tendências sobre a questão do aborto: “Uma queria asse-gurar o direito à vida, desde a concepção, o que importava em proibir o aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com vida, sendo que a vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o que possibilitava o aborto. A terceira entendia que a Constituição não deveria tomar partido na disputa, nem vedando nem admitindo o aborto.”

Com efeito, a Constituição Federal, no caput do art. 5º, estabelece que, entre outros direitos, é inviolável o direito à vida e à liber-dade, mas deixou para a legislação ordinária a possibilidade de criminalizar o aborto.

26 Curso de direito constitucional positivo, p. 206.

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O art. 2º do Código Civil de 2002 prevê que a “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Por sua vez, a Parte Especial do Código Penal, decreta-da durante a ditadura getulista, pune a prática do aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, bem como o aborto provocado por terceiro, com ou sem a anuência dela. Já o art. 128 do Código Penal prevê que não se pune o aborto praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez é resultante de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante.

Nota-se que não há permissão legal ex-pressa para a prática de aborto na hipótese de se constatar a má-formação do feto. Mas a jurispru-dência, apesar de alguma divergência, passou a admitir tal prática, nos últimos anos.

Algumas decisões judiciais, realizando uma interpretação evolutiva da norma jurídica, consideram que, por ocasião da promulgação do Código Penal, em 1940, não existiam os recursos técnicos que atualmente permitem a detecção de anomalias fetais severas. Assim, não se poderia prever, naquela ocasião, a má-formação do feto entre as causas de exclusão de ilicitude do aborto.

Alguns juízes também passaram a fazer uma interpretação extensiva do art. 128, I, do Có-digo Penal, para admitir a exclusão da ilicitude do aborto não só quando realizado para salvar a vida da gestante, mas quando se mostrar necessário para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica.

Como decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo,27 se a lei admite o aborto para preservar os sentimentos da mãe, no caso de gravidez resul-tante de estupro — mesmo quando o feto é sadio e perfeito —, por maior razão deve-se autorizar a interrupção da gravidez quando constatada uma grave má-formação fetal. Com isso, evita-se o sofrimento físico e psicológico não só da gestan-te, mas também dos outros membros da família.

Ademais, o art. 5º, caput, da Constituição Federal procura garantir a inviolabilidade do direito à vida, mas, constatada a inviabilidade de vida extra-uterina do feto, não há que se falar

em preservação de tal direito. Aliás, o art. 1º, III, da Constituição, também prevê que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana. E não parece digno exigir que uma mulher grávida, sabendo que dará à luz um natimorto, não possa ter a liberdade de optar pela interrupção da gravidez.

Aliás, em países onde existem restrições legais à interrupção da gravidez, os abortos provocados têm sido apontados como uma das principais causas de mortalidade materna. Tais restrições levam mulheres de alta renda a clínicas particulares, que utilizam técnicas modernas de interrupção da gravidez, ao passo que induzem mulheres de baixa renda a recorrer a práticas de alto risco à saúde, como procurar um “aborteiro” ou se automedicar com drogas abortivas de efi-cácia não comprovada e, muitas vezes, vendidas em farmácias, sem prescrição médica.

Contudo, houve casos, espalhados por vá-rios Estados da Federação brasileira, em que o Judiciário não admitiu a interrupção da gravidez, mesmo constatada a inviabilidade de vida extra-uterina do feto.

Em junho de 2004, a Confederação Na-cional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) propôs, perante o Supremo Tribunal Federal, uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADFP) com o intuito de fazer cessar a divergência de decisões judiciais sobre a possibilidade de gestantes de fetos anencefálicos (ausência total ou parcial do cérebro) interrom-perem a gravidez.

Em abril de 2005, o Supremo Tribunal Federal admitiu, por 7 votos a 4, que a ADPF proposta pela CNTS sobre a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencefálicos é um meio hábil para solucionar a divergência de jurisprudência, mas ainda não apreciou o mérito da demanda.

V - Os Mecanismos de Defesa da Constituição

A Constituição brasileira de 1988 contém vários mecanismos para que suas normas pos-

27 Mandado de Segurança n. 329.564-3/3-00, rel. Des. David Haddad, j. 20.11.2000.

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sam, quando violadas, serem o quanto possível restabelecidas. Tem no Poder Judiciário em geral, e no Supremo Tribunal Federal em particular, o guardião de suas normas e valores28.

Em primeiro lugar, destaque-se o amplo leque de legitimados do artigo 103 para propor ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) ou ações declaratória de constitucionalidade, a primeira, (por ação- positiva) ou (por omissão –negativa), a saber: 1) O Presidente da Repú-blica, 2) a Mesa do Senado Federal, 3) a Mesa da Câmara dos Deputados; 4) A Mesa da As-sembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; 5) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; 6) o Procurador Geral da República; 7) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; 8) Partido Político com representação no Congresso Nacional;9) Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Dois são os sistemas de controle judicial de constitucionalidade de leis e atos normativos no Brasil.

Temos o sistema difuso (de origem norte-americana) pelo qual qualquer juiz e qualquer Tribunal podem suspender a norma tida por inconstitucional e o sistema concentrado (de origem européia) segundo o qual o Supremo Tribunal Federal deve, objetivamente, controlar a constitucionalidade de leis e atos normativos (via abstrata ou direta).

Há ainda a chamada ADPF - Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista no artigo 102, § 1º e na Lei 9.882/99 tem por objeto na modalidade de ação autônoma, evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.

Até o momento o Supremo Tribunal não definiu o que entende por preceito fundamental. Em algumas hipóteses, disseram o que não é pre-ceito fundamental. A doutrina, entretanto, vem apresentando adequados cenários de encaixe do novo instituto.

Lenio Luiz Streck, por exemplo, afirma:

“Muito embora os problemas que a nova Lei apresente, importa ressaltar que a argüição de descumprimento de preceito fundamental se coloca - enquanto direito de acesso à jurisdição constitucional - ao lado e como complemento do mandado de injunção, da ação de inconstitucio-nalidade por omissão e dos próprios mecanismos de controle de constitucionalidade. Isto porque, enquanto o mandado de injunção é remédio con-tra a ineficácia de normas não regulamentadas, podendo/devendo o Poder Judiciário suprir, no caso concreto, o direito não realizado, a argüição de descumprimento de preceito fundamental objetiva compelir o Poder Público a abster-se de realizar um ato abusivo e violador do Estado.

No que se relaciona ao controle de cons-titucionalidade stricto sensu, releva notar que a argüição de descumprimento de preceito fundamental abrange a ambivalência própria do sistema misto de controle de constitucionalidade vigorante no Brasil, isto é, ao mesmo tempo em que é uma ação autônoma (art.1,caput, da Lei 9.882/90), é também mecanismo apto a provocar incidentalmente a constitucionalidade de leis ou atos normativos difusamente (art.1, parágrafo único, I).

Releva notar que a nova ação veio preen-cher antiga lacuna existente em nosso ordena-mento ao permitir que o STF examine a cons-titucionalidade de atos normativos anteriores à Constituição de 1988 (inconstitucionalidade superveniente). Como se sabe, a partir do julga-mento das ADIns números 2 e 438,o STF passou a firmar posição no sentido de não aceitar ações de inconstitucionalidade de leis anteriores à Constituição. Agora, pelo disposto no inciso I do parágrafo único do artigo 1 da nova Lei, também os atos normativos anteriores à Constituição são passíveis de declaração de inconstitucionalidade. Também será possível que se intente argüição de descumprimento de preceito fundamental preventivamente. A ADPF terá por objeto evitar ou reparar lesão. Ou seja, o sistema passa a ad-mitir não somente a modalidade repressiva, mas também a modalidade preventiva de controle

28 Sobre o tema, confira-se o nosso trabalho: Figueiredo, Marcelo, “Una visión del control de constitucionalidad en Brasil”, Revista Jurídica de Castilla –La –Mancha, Toledo, número 41, Noviembre 2006, páginas 69 a 135.

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de atos que possam colocar em xeque preceitos fundamentais da Constituição.

De qualquer sorte, em face das peculia-ridades que revestem a ADPF, no seu caráter incidental, tudo está a indicar que a sede privi-legiada desta nova ação será mesmo o controle concentrado. É nessa direção que apontam as ações intentadas até este momento no STF, podendo ser arroladas alguma delas, como a ADPF número 4, que buscava desconstituir a Medida Provisória 2.019/2000, que fixou o valor do salário mínimo, ainda sem decisão; a ADPF número 1, ajuizada contra ato do Prefeito do Rio de Janeiro, por ter aposto veto parcial, de forma imotivada, a projeto de lei aprovado na Câmara Municipal, elevando o valor do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU, que não foi conhecida sob o argumento de que o veto não se enquadra no conceito de ato do poder público de que fala a lei, e a ADPF número 3, proposta pelo Governador do Ceará, contra ato do Tri-bunal de Justiça daquele Estado que deferira o pagamento de gratificações em “cascata”, a qual não foi conhecida sob o fundamento de que não foi cumprido o esgotamento de todos os meios aptos a solver o conflito”29.

Entendeu ainda o STF que a ADPF pode ser conhecida como Ação Direta de Inconstitu-cionalidade.

Portanto, além dos dois possíveis caminhos para se controlar a constitucionalidade de leis e atos normativos (sistema difuso e sistema con-centrado), com suas variantes, positiva e negati-va, temos ainda a possibilidade da intervenção.

A ADIN interventiva apresenta-se como um dos pressupostos para a decretação da in-tervenção federal, ou estadual, pelos Chefes do Executivo, nas hipóteses previstas na Constitui-ção de 1988.

Na ação direta de inconstitucionalidade interventiva, o Judiciário exerce, um controle da ordem constitucional tendo em vista um caso concreto que lhe é submetido a análise. O Judi-

ciário não nulifica o ato, mas apenas verifica se estão presentes os pressupostos para a futura de-cretação de intervenção pelo Chefe do Executivo.

É possível a intervenção da União nos Es-tados e dos Estados nos Municípios desde que lei ou ato normativo, ou omissão, ou ato gover-namental desrespeitem os princípios sensíveis da Constituição (forma republicana, sistema representativo e regime democrático, direitos da pessoa humana, autonomia municipal, prestação de contas da administração pública; aplicação do mínimo exigido da receita na manutenção do ensino e da saúde).

Finalmente ressalte-se que a Constituição Federal, mercê da Emenda Constitucional núme-ro 45/2004, passou a prescrever a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal editar súmula dotada de efeito vinculante em relação aos órgãos do Judiciário e à Administração Pública, nas esferas federal, estadual e municipal.

O dispositivo constitucional, no entanto, é claro ao indicar a reserva de matéria capaz de abrigar a edição da súmula: apenas matéria constitucional.

VI - Avanços e ameaças à Democracia

O sistema político-constitucional brasi-leiro avançou ao estabelecer, por meio de sua atual Constituição, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito30. Trata-se de um avanço porque de-monstra a escolha pelo Poder Constituinte de um caminho revolucionário para o Brasil, à época ainda maculado pelo passado ditatorial. È que a configuração deste novo Estado não se resume à simples junção de termos (Estado Democrático + Estado de Direito = Estado Democrático de Direito). Como afirma José Afonso da Silva, “consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos ele-mentos componentes, mas os supera na medida

29 Streck, Lênio Luiz, “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”,2Edição, revista, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2004, página 817. IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V

30 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. (...)”.

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em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo”.31

Atente-se para o fato de que na expressão “Estado Democrático de Direito”, o “demo-crático” qualifica o Estado e não o Direito, diferentemente, por exemplo, da Constituição portuguesa, que instaura o Estado de Direito Democrático, com o “democrático” qualificando o Direito. Essa opção terminológica, que a prin-cípio soa como eventual, reflete, na verdade, a preocupação política em irradiar os princípios da democracia por toda a estrutura do Estado e da ordem jurídica.32

Nesse contexto, é possível depreender da Constituição Federal de 1988 os princípios norteadores da Democracia, os quais, de acordo com Dalmo de Abreu Dallari, consistem em três pontos fundamentais: a supremacia da vontade popular, a preservação da liberdade e a igual-dade de direitos33.

A soberania popular é lembrada logo no primeiro artigo da Constituição, a qual dispõe que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamen-te, nos termos desta Constituição”.34 Esta norma retrata a democracia semi-direta, que alia a democracia representativa à democracia partici-pativa. Nessa ótica, vale destacar os instrumentos de participação direta eleitos pelo Constituinte: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, consoante o artigo 14, incisos I, II e III, da CF.

O plebiscito consiste numa consulta prévia ao ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido. O referendo, ao contrário, é convocado posteriormente ao ato legislativo ou administrativo, de tal forma que a manifestação popular consistirá na sua ratificação ou rejeição. Tais instrumentos devem ser utilizados quando estiverem em debate matérias de acentuada re-levância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.

De acordo com a legislação que regulamen-ta o procedimento do plebiscito e do referendo

(lei nº 9.709/98), estes serão convocados por decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional. Se aprovado o ato convocatório, o Presidente do Congresso Nacional informará a Justiça Eleitoral, que deve-rá fixar a data da consulta popular, tornar pública a cédula respectiva, expedir instruções para a realização do plebiscito ou referendo e assegurar a gratuidade nos meios de comunicação de massa concessionários de serviço público, aos partidos políticos e às frentes suprapartidárias organiza-das pela sociedade civil em torno da matéria em questão, para a divulgação de seus postulados referentes ao tema sob consulta. Para aprovação ou rejeição do plebiscito ou referendo, exige-se o quórum de maioria simples, devendo o resultado ser homologado pelo Tribunal Superior Eleitoral.

A iniciativa popular, por sua vez, pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Depu-tados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (art. 61, §2º, CF).

Outro requisito exigido para apreciação do projeto de lei de iniciativa popular é que seu objeto esteja circunscrito a um só assunto. Por outro lado, dispensam-se maiores formalidades, uma vez que não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legis-lativa ou de redação. Com isso, acertadamente, privilegia-se a legitimidade popular, liquidando-se obstáculos de ordem meramente técnica.

Apesar da enorme relevância desses meca-nismos de participação direta, são raras as hipó-teses em que vemos sua utilização na democracia brasileira. Basta constatar que durante os quase vinte anos de vigência da atual Constituição, houve apenas um plebiscito, um referendo e três projetos de lei de iniciativa popular que se converteram em lei.

O plebiscito a que nos referimos foi rea-lizado em sete de setembro de 1993, por deter-

31 Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 119.32 Ibid.33 Elementos de teoria geral do Estado. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 151.

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minação do Constituinte, que incluiu no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias35 a realização de consulta popular para definição da forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que deveriam vigorar no país.

Já o referendo foi realizado recentemente, em outubro de 2005, por determinação da Lei 10.826 de 2003, conhecida como “Estatuo do desarmamento”, e consistiu em consulta popular sobre a proibição ou não da comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional. É que a referida lei condicionou a apli-cação do seu artigo 35, que continha a proibição do comércio de armas, à aprovação mediante referendo popular36.

Houve grande mobilização no país em torno do debate criado pelo referendo, sendo que 59.109.265 eleitores (63,94%) votaram pela “não proibição do comércio de armas e munição”, contra 33.333.045 eleitores (36,06%) a favor da proibição.

O primeiro projeto de lei de iniciativa popular convertido em lei teve como objeto a criação do Fundo de Moradia Popular e do Conselho Nacional de Moradia Popular para subsidiar a construção de moradias populares. Apresentado no ano de 1992 na Câmara dos Deputados, o projeto tramitou durante 13 anos no Congresso Nacional, convertendo-se na Lei nº 11.124 de 200537.

Em 1993 foi apresentado o segundo projeto de lei de iniciativa popular convertido em lei, tendo resultado na lei 8.930 de 1994. Sua matéria consistia em transformar o homicídio qualificado em crime hediondo.

A curiosa diferença do período de tra-mitação entre um e outro projeto não é mera coincidência. Como se sabe, alterações legis-lativas que visam criminalização de condutas ou endurecimento do Estado na esfera penal tendem a tramitar mais rapidamente em virtude de pressões momentâneas da mídia. Por outro lado, proposições que podem resultar em gastos governamentais maiores e que não atendem os interesses de grupo restrito da sociedade perdem-se no tempo.

Por fim, o terceiro projeto de lei de inicia-tiva popular foi proposto em 1997 e converteu-se na lei 9.840 de 1999, que alterou o Código Eleitoral para incluir disposição que pune com a cassação o candidato acusado de comprar votos durante o pleito eleitoral. O referido projeto foi encampado pela Conferência Nacional dos Bis-pos do Brasil, que lançou o projeto na campanha nacional “Combatendo a corrupção eleitoral”.

Na tentativa de reverter esse quadro de pouca participação popular nos rumos legislati-vos do país, a Câmara dos Deputados criou em 2001 a Comissão de Legislação Participativa (CLP) com o objetivo de facilitar a participação da sociedade no processo de elaboração legis-lativa. Através da CLP, a sociedade, por meio de qualquer entidade civil organizada, ONGs, sindicatos, associações, órgãos de classe, apre-senta à Câmara dos Deputados suas sugestões legislativas, que envolvem propostas de leis complementares e ordinárias e até sugestões de emendas ao Plano Plurianual (PPA) e à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)38.

Os outros dois pontos fundamentais da Democracia mencionados por Dallari - preserva-ção da liberdade e à igualdade de direitos - são

34 Art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.35 “Art. 2º No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebisicito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de

governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no país. §1º Será assegurada gratuidade na livre divulgação dessas formas e sistemas, através dos meios de comunicação de massa cessionários de serviço público. §2º O Tribunal Superior Eleitoral, promulgada a Constituição, expedirá as normas regulamentadoras deste artigo”.

35 “Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei. §1° Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005. § 2o Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral”.

37 Conforme informação disponível no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br) e do Senado Federal (www.senado.gov.br). 38 Conforme informação disponível em http://www2.camara.gov.br/comissoes/clp/comissao.html. IX – é livre a expressão da atividade intelectual,

artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; (...) XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; (...) XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos fundamentais e liberdades fundamentais; (...) LIII – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (...)”.

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facilmente percebidos no extenso rol de direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal, mais especificamente em seu artigo 5º39. É bem verdade, pois, que não existe governo democrá-tico onde não existe respeito aos direitos funda-mentais. Nem mesmo espectro de democracia. É o que conclui Jorge Carpizo: “Los derechos humanos possen fuerza expansiva, la democracia goza de esa misma característica y es natural, porque no puede existir democracia onde no se respeten los derechos humanos, y éstos realmente solo se encuentran salvaguardados y protegidos em um sistema democrático”.40

Sob uma perspectiva de exercício efetivo da democracia, esses valores se expressam como garantia da soberania popular, por meio do su-frágio universal e do voto direto e secreto, com valor igual para todos, consoante o disposto no artigo art. 14, caput41, da Constituição brasileira. São esses requisitos essenciais para o desenvol-vimento de eleições imparciais e sem qualquer espécie de coação, preservando o direito de cada cidadão em escolher livremente seu candidato e expressar suas opiniões políticas, sem exclusões por sexo, religião, raça, renda etc.

Além dos mecanismos, direitos e garantias mencionados, o sistema político-constitucional brasileiro prevê, com o intuito de propiciar maior participação popular no desenvolvimento da coisa pública, outros instrumentos capazes de assegurar os princípios democráticos. Essa atuação popular poderá, por exemplo, resultar na impugnação de um mandato eletivo recém inicia-do, na fiscalização da atuação do representante durante seu mandato/governo ou, ainda, para auxiliar o Supremo Tribunal Federal na defesa da Constituição.

Vejamos.A Constituição brasileira permite que o

mandato eletivo do candidato eleito seja im-pugnado perante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, na hipóte-se de ter ocorrido abuso do poder econômico, corrupção ou fraude durante as eleições (art. 14, § 10, CF). Por meio desta ação, permite-se à população a fiscalização do pleito eleitoral, de modo a preservar a imparcialidade das eleições e a igualdade entre os candidatos.

Após eleito, o representante da vontade popular não escapa à atuação fiscalizadora da população. É que a Constituição assegura a qualquer cidadão a possibilidade de propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patri-mônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (art. 5º, LXXIII, CF). Com objetivo de facilitar a propositura da ação, a Constituição isenta o autor de custas judiciais e do ônus de sucumbência, salvo comprovada má-fé.

Por fim, a Suprema Corte brasileira tem admitido amplamente a participação de órgãos ou entidades na qualidade de “amicus curiae” ao apreciar a constitucionalidade/incostitu-cionalidade dos atos legislativos. Certamente, esse fato contribui para a efetivação do Estado Democrático de Direito, vez que possibilita o acompanhamento de maneira mais incisiva pela sociedade do exercício da jurisdição constitucio-nal. A figura do “amigo da corte” é objeto de dis-posição legal. De acordo com a lei nº 9.868/99, que regulamenta o procedimento da ADIn42 e da ADECon43, o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulan-

39 O art. 5º, caput, possui a seguinte redação: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”. A título de exemplo, podemos citar alguns incisos do referido artigo que abordam os valores “liberdade” e “igualdade”: “I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (...) IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...) IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; (...) XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; (...) XLI – a lei punirá qualquer discri-minação atentatória aos direitos fundamentais e liberdades fundamentais; (...) LIII – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (...)”.

40 Carpizo, Jorge. Concepto de democracia y sistema de gobierno em América Latina. México: Universidade Nacional Autônoma de México, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2007, p. 100.

41 “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:”.

42 Ação declaratória de inconstitucionalidade.

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tes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

Oportuna a manifestação do Ministro Gilmar Mendes sobre a figura do “amigo da corte”: “Evidente, assim, que essa fórmula pro-cedimental constitui um excelente instrumento de informação para a Corte Suprema. Não há dúvida, outrossim, de que a participação de di-ferentes grupos em processos judiciais de grande significação para toda a sociedade cumpre uma função de integração extremamente relevante no Estado de Direito. (...) Ao ter acesso a essa pluralidade de visões em permanente diálogo, com este Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefícios decorrentes dos sub-sídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos de repercussão econômica que possam vir a ser apresentados pelos “amigos da Corte”.44

De maneira geral, são esses os instrumentos disponíveis à sociedade para o efetivo exercício democrático, consagrando, assim, a Constituição Federal como o grande avanço da democracia no Brasil.

Contudo, não podemos olvidar as ameaças que circundam o sistema político brasileiro. Como demonstrado, se por um lado há um leque variado de mecanismos que buscam assegurar os princípios democráticos, por outro lado é preocupante o afastamento do povo brasileiro do cenário político. Pode-se apontar, assim, como grande ameaça à Democracia brasileira a ausência de “cultura política” ao país.

Sem dúvida alguma, é a partir desse fa-tor – a incipiente cultura política do país – que tantas outras ameaças podem advir, como o fortalecimento exacerbado do Poder Executivo. Com isso, corre-se o sério risco de permanecer em uma democracia formal, mero simulacro da democracia substancial. No dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, “Estados apenas formalmente democráticos são os que, inobstante

acolham nominalmente em suas Constituições modelos institucionais – hauridos dos países política, econômica e socialmente mais evolu-ídos – teoricamente aptos a desembocarem em resultados consonantes com os valores democrá-ticos, neles não aportam. Assim, conquanto seus governantes (a) sejam investidos em decorrência de eleições, mediante sufrágio universal, para mandatos temporários; b) consagrem uma dis-tinção, quando menos material, entre as funções legislativa, executiva e judicial; c) acolham, em tese, os princípios da legalidade e da independên-cia dos órgãos jurisdicionais, nem por isto, seu arcabouço institucional consegue ultrapassar o caráter de simples fachada, de painel aparatoso, muito distinto da realidade efetiva”.45

Com efeito, para realizar a democracia substancial há apenas uma solução: produzir o mínimo de cultura política indispensável ao Esta-do Democrático de Direito. Nos dizeres de Ban-deira de Mello: “... as sociedades de incipiente cultura política para poderem vir a se configurar como Estados democráticos, demandariam mais do que apenas reproduzir em suas Constituições os traços especificadores de tal sistema de gover-no. Com efeito, de um lado, teriam que ajustar suas instituições básicas de maneira a prevenir ou dificultar os mecanismos correntes de seu des-naturamento e, de outro – o que ainda seria mais importante – empenhar-se na transformação da realidade social buscando concorrer ativamente para produzir aquele mínimo de cultura política indispensável à prática efetiva da democracia, única forma de superar os entraves viscerais ao seu normal funcionamento”.46

Surge, portanto, a seguinte questão: Como produzir o mínimo de cultura política indispensá-vel à prática efetiva da democracia? Ao contrário do que pode parecer, a resposta é conhecida de todas. Com o mínimo de renda para desenvolver uma vida digna, educação de qualidade e acesso amplo à cultura e à informação diversificada. É que afirma Bandeira de Mello: “Uma vez

43 Ação declaratória de constitucionalidade.44 Informativo do STF nº 406. ADI nº 2548.45 Bandeira de Mello, Celso Antônio. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. In: Revista de Direito Administrativo. Nº 212. Rio de

Janeiro, Ed. Renovar, abr/jun. 1998, p. 58. 46 Ibid., p. 60.

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que a democracia se assenta na proclamação e reconhecimento da soberania popular, é indis-pensável ‘que os cidadãos tenham não só uma consciência clara, interiorizada e reivindicativa deste título jurídico político que se lhes afirma constitucionalmente reconhecido como direito inalienável, mas que disponham das condições indispensáveis para poderem fazê-lo valer de fato. Entre estas condições estão não apenas (a) as de desfrutar de um padrão econômico-social acima da mera subsistência (sem o que seria vã qualquer expectativa de que suas preocupações transcendam as da mera rotina da sobrevivência imediata), mas também, as de efetivo acesso (b) è educação e cultura (para alcançarem ao menos o nível de discernimento político traduzido em consciência real de cidadania) e (c) à informação, mediante o pluralismo de fontes diversificadas (para não serem facilmente manipuláveis pelos detentores dos veículos de comunicação de massa)’”.47

Assim, exige-se do Estado uma postura ativa, pois a ele cumpre possibilitar aos cida-dãos condições mínimas para o exercício da democracia. Ao levar em conta a Constituição Federal de 1988, é possível concluir que se trata de uma boa Constituição. Necessário, contudo, efetivá-la. Nesse contexto, são valiosas as con-clusões de Jorge Carpizo, ao ponderar sobre a necessidade ou não de uma nova Constituição no México: “No es correcto atribuir a la ley su-prema los vícios y problemas de nuestra realidad política, econômica, social e jurídica. Aquellos han crecido precisamente por la inaplicación de la norma y por la falta de respeto al Estado de derecho, tanto por parte de los gobernantes como de los gobernados. Ni en México, ni em ninguna parte del mundo, los problemas se su-peran exclusivamente con el cambio de la ley, sino primordialmente com la aplicación de la norma adecuada porque, em caso contrario, se puede repetir la situación que nuestro país ya vivió en el siglo XIX: la constante sustitución de Constituciones, al creerse ingenuamente que

la expedición de una nueva resolveria los pro-blemas en forma mágica”.48

Não se pretende com isso postular a im-possibilidade de reformas da Constituição. Ao contrário, será esse mecanismo eficiente para adequar o sistema político-constitucional à rea-lidade. Aliás, como afirma Carpizo, “... no existe ninguna institución ni norma que sea inmutable, no la puede Haber. El orden jurídico es, por na-turaleza, dinâmico, cambiante y debe colocarse a la vanguardia de lãs ideas protectoras del ser humano y de sus relaciones sociales”.49

Contudo, deve-se ter em mente que a Constituição representa um sistema normativo, com todas suas normas interligadas e vinculadas umas às outras. Deverão permanecer intocáveis os princípios e dispositivos caracterizados pela imutabilidade - as cláusulas pétreas – sob pena de descaracterizar a Constituição e, conseqüen-temente, o sistema político-constitucional e a Democracia. Nossa Constituição proíbe que seja objeto de deliberação a proposta tendente a abolir i) a forma federativa de Estado, ii) o voto direto, secreto, universal e periódico, iii) a separação de Poderes e v) os direitos e garantias fundamentais, consoante artigo 60, §4º, da CF.

Nessa esteira, qualquer mutação consti-tucional apenas poderá ocorrer respeitados os limites constitucionais impostos pelo Poder Constituinte. E nesse ponto residem nossas preocupações. Tendo em vista a importância da Constituição para o estabelecimento do Estado Democrático de Direito e os impactos sociais e legislativos acarretados por uma alteração constitucional, afigura-nos insuficiente apenas a instância legislativa para aprovações de Emenda à Constituição.

Considerando a consagração da “soberania popular” pelo Estado Democrático de Direi-to, parece-nos interessante proposta de Jorge Carpizo, guardadas a particularidades de cada país (Brasil e México) de submeter a reforma constitucional a referendo popular posterior.

47 Ibid, p. 60 e 61.48 Concepto de democracia y sistema de gobierno em América Latina. México: Universidade Nacional Autônoma de México, Instituto de Investi-

gaciones Jurídicas, 2007, p. 130. 49 Ibid., p. 130.

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Passamos a descrever os argumentos levantados pelo jurista:

“Mis argumentos son:

1) El procedimento de la reforma consti-tucional adquiriría mayor rigidez que el que actualmente posee. Es por esta razón que esta propuesta se relaciona con la de la existência de leyes constitucionales, orgânicas y reglamentarias, y los efectos erga omnes de lãs sentencias de ampa-ro, respecto a la constitucionalidad de normas generales, que fortalecerían la interpretación constitucional de útlima instancia.

2) El Congresso de la Unión y las legisla-turas locales aprobarían un proyecto de reformas. En este caso se constituirían en asamblea proyectista. La aprobación en cada una de lãs Câmaras sería por mayoría absoluta, no calificada, de los legisladores presentes, precisamente porque se trata de un proyecto, y debido a que la experiência demuestra que tan inconveniente es la flexibilidad como la regidez extrema de la Constitución.

3) La participación de las legislaturas loca-les en el proyecto es una garantia para la existência del próprio sistema federal.

4) La reforma constitucional sería más meditada y ponderada por el Congresso y las legislaturas locales al saber que la última palabra la dirán los votantes.

5) Los votantes se beneficiarían de los argumentos favorables y en contra del proyecto, lo que les auxiliaria a consi-derar los méritos de aquél.

6) Una Constitución o sus reformas úni-camente deben ser aprobadas por la sociedad política en ejercicio directo de su soberania. Los Congresos o Asam-bleas Constituyentes corresponden únicamente a la sociedad política, al pueblo, quien, al decidir la estructura político-social básica, está otorgando a sus representantes las facultades que

poseen y los limites a esas facultades, así como las modalidades de su ejercicio.

7) El titular del Poder Constituyente es el mismo que el de la soberanía. En este sentido, Poder Constituyente, soberanía y pueblo son términos intercambiales, y la decisión sobre la Constitución y sus reformas debe provenir precisamente de ese titular, fuente última del poder y creador del orden jurídico.

8) Aunque existen antecedentes – como Francia em 1793 y Suiza em 1848 -, es a partir de la terminación de que las Constituciones nuevas y sus reformas debe ser aprobadas por el pueblo a través de referendos, como ejercicio directo de su soberania”.50

Em suma, deve-se prestigiar a soberania popular como estabelecido na Constituição Fe-deral, que não hesitou em explicitar que “todo poder emana do povo”. Sem olvidar, contudo, a urgente e constante necessidade de propiciar o desenvolvimento da “cultura política” no país, sem a qual será inócuo qualquer mecanismo que objetive expandir os meios de participação direta da população.

VII – Conclusões

1 - A Constituição de 1988 inaugurou uma nova era no constitucionalismo brasileiro rom-pendo com o ciclo autoritário que dominou o Brasil de 1964 (data da revolução militar que se implantou no país por mais de vinte anos), a meados da década de 80. Além disso, constitui, hoje, um documento de grande im-portância para o constitucionalismo em geral.

2 – Após a Constituição de 1988 e, sobretudo, ao longo da década de 90, o tamanho e o papel do Estado passaram para o centro do debate institucional. As reformas econômicas brasileiras envolveram três transformações estruturais que se complementam, mas não se confundem. Duas delas foram precedidas

50 Ibid., p. 158 e 159.

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de emendas à Constituição, ao passo que a terceira se fez mediante a edição de legis-lação infraconstitucional e a prática de atos administrativos. A primeira transformação substantiva da ordem econômica brasileira foi a extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro. Em seguida, a flexibili-zação dos monopólios estatais. Por fim, as privatizações.

3 – A mesma década de 90, na qual foram condu-zidas a flexibilização de monopólios públicos e a abertura de setores ao capital estrangeiro, foi cenário da criação de normas de proteção ao consumidor em geral e de consumidores específicos, como os titulares de planos de saúde, os alunos de escolas particulares e os clientes de instituições financeiras. Foi também nesse período que se introduziu no país uma política específica de proteção ao meio ambiente, limitativa da ação dos agentes econômicos, e se estruturou um sistema de defesa e manutenção das condições de livre concorrência que, embora longe do ideal, constituiu um considerável avanço em re-lação ao modelo anterior. Nesse ambiente é que despontaram as agências reguladoras da atuação estatal

4 - A redução das estruturas públicas de interven-ção direta na ordem econômica não produziu um modelo que possa ser identificado com o de Estado mínimo. Pelo contrário, apenas deslocou-se a atuação estatal do campo empresarial para o domínio da disciplina jurídica, com a ampliação de seu papel na regulação e fiscalização dos serviços públicos e atividades econômicas;

5 – A Assembléia Nacional Constituinte optou pelo sistema republicano e presidencialista, em detrimento à monarquia constitucional, o que foi confirmado pelo plebiscito de 1993. Se nos regimes parlamentaristas europeus se tecem as coalizões segundo a regra da pro-porcionalidade, dando-se a cada partido uma fatia do ministério aproximadamente propor-cional a seu peso na base parlamentar, no caso brasileiro a partilha dos postos ministeriais nem sempre segue essa norma, por terem

os presidentes a faculdade constitucional de nomear livremente seus ministros.

6 – Com o retorno dos governos civis, modificou-se a legislação, o que facilitou a criação e o registro de legendas novas. Como conse-qüência, em 1991, mais de quarenta partidos estavam registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vinte dos quais representa-dos no Congresso. Com a nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos – LOPP, sancionada em agosto de 1995, anteciparam-se várias fusões entre 1993 e 1996, com um certo encolhimento do sistema, o que promoveu um pluralismo ligeiramente mais moderado nas eleições de 1998 e 2002. Hoje temos aproximadamente 9 (nove) partidos grandes e médios com projeção nacional.

7 – O Direito prescrito pela Constituição de 1988, em vez de manutenção, em muitas passagens postula uma transformação do status quo. O Supremo Tribunal Federal, com sua mais recente composição e principalmente em ra-zão da omissão legislativa sobre importantes questões para a vida nacional — em especial no tocante a problemas políticos e de eficácia dos direitos fundamentais —, vem se reve-lando como um Tribunal com menos receio de assumir um papel politicamente ativo no exercício da função jurisdicional.

8 – No Brasil, no tocante aos mecanismos de defesa da Constituição, adotamos o sistema difuso, pelo qual qualquer juiz e qualquer Tribunal podem suspender a norma tida por inconstitucional, e o sistema concentrado, segundo o qual o Supremo Tribunal Federal deve, objetivamente, controlar a consti-tucionalidade de leis e atos normativos. Há ainda a chamada ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamen-tal) e a possibilidade da intervenção (ADI interventiva), segundo a qual os Chefes do Executivo podem decretar a intervenção federal, ou estadual, nas hipóteses previstas na Constituição de 1988.

9 – O sistema político-constitucional brasileiro avançou ao estabelecer, por meio de sua atual Constituição, que a República Federativa do

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Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, sendo seus princípios norteadores: a supremacia da vontade popular, a preserva-ção da liberdade e a igualdade de direitos.

10 - Apesar da previsão constitucional dos ins-trumentos de participação direta, são raras as hipóteses em que vemos sua utilização na democracia brasileira. Basta constatar que durante os quase vinte anos de vigência da atual Constituição, houve apenas um plebis-cito, um referendo e três projetos de lei de iniciativa popular que se converteram em lei.

11 – Pode-se apontar como ameaça à Democracia brasileira a ausência de “cultura política” ao país, fato este propiciador de tantas outras ameaças, como o fortalecimento exacerbado do Poder Executivo. Há apenas uma solução para realizar efetivamente a democracia: produzir o mínimo de cultura política indis-

pensável ao Estado Democrático de Direito, o que ocorrerá por meio da garantia do mínimo de renda à população para desenvolver uma vida digna, educação de qualidade e acesso amplo à cultura e à informação diversificada.

12 - Tendo em vista a importância da Cons-tituição para o estabelecimento do Estado Democrático de Direito e os impactos sociais e legislativos acarretados por uma alteração constitucional, afigura-nos insuficiente ape-nas a instância legislativa para aprovações de Emenda à Constituição. Considerando a consagração da “soberania popular” pelo Estado Democrático de Direito, parece-nos interessante proposta de Jorge Carpizo, guardadas a particularidades de cada país (Brasil e México) de submeter a reforma constitucional a referendo popular posterior.

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LES THINK TANKS: CERVEAUX DE LA GUERRE DES IDÉES, DE STEPHEN BOUCHER E MARTINE ROYO

O que é um think tank? Como age? Quem o financia? Em 2006, a editora Éditions Le Fé-lin, de Paris, publicou o livro Les Think Tanks: Cerveaux de la guerre des idées, de Stephen Boucher e Martine Royo. O livro responde a todas essas perguntas. Trata-se de uma análise ampla acerca das relações políticas entre os think tanks e os tomadores de decisão dos governos, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Os autores explicitam no livro como agem esses “tanques de pensamento”, como funcionam, como influenciam o jogo político e como desen-volvem suas ideias. Com capítulos que abordam o tema de forma diversificada, os autores traçam um panorama amplo acerca desse assunto pouco difundido.

No primeiro capítulo, Boucher e Royo fa-zem um questionamento sobre a real influência dos think tanks na política: podem essas entida-des mudar o mundo? Qual sua real influência na política mundial? Para responder a essas perguntas, os autores se valem do exemplo do Project for the New American Century (PNAC), um think tank neoconservador financiado pela in-dústria armamentista que exerceu sua influência no governo Bush e fez com que o Iraque fosse invadido. Esse exemplo demonstra a capacidade dos think tanks em ditar rumos na política de seus países. Além disso, leva à análise dos autores em relação à predominância conservadora na dita “guerra de ideias” nos EUA. No livro, os autores explicam como se desenvolveram os think tanks conservadores, e como esse desenvolvimento foi

Pedro Guimarães Pires*

*Estudante de Direito da Universidade Federal de Sergipe.

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capaz de fazer a direita sobrepujar a esquerda no caso americano.

Les Think Tanks traz uma abordagem bas-tante didática acerca do conceito e das implica-ções do termo think tank. O que é, o que não é e para que serve um think tank, como pensam seus associados, entre outras perguntas que são respondidas de modo direto e simples pelos au-tores. O leitor logo se familiariza com o conceito pragmático de think tank, o que facilita sobrema-neira a compreensão mais fina. No entanto, teria sido mais inteligente que essa definição estivesse no primeiro capítulo, de modo a apresentar ao leitor os conceitos abordados já início da leitura.

Os autores tratam também da força da União Europeia na chamada “guerra de idéias”. Segundo Boucher e Royo, a Europa não está preparada para vencer os EUA numa “guerra” ideológica. Primeiro porque os países-membros da UE não se mostram dispostos a defender um ideário europeu em detrimento de sua soberania nacional. Depois, porque a UE se alinha aos ideais norte-americanos. E ainda por causa da ineficácia da Comissão de Bruxelas em unificar interesses europeus. Nesse sentido, segundo Boucher e Royo, falta no Velho Mundo capaci-dade de contradição, de estimulação do debate intelectual.

O livro termina como deveria terminar: com uma análise teórica do futuro político, do que deve ser feito para aprimorar a ação dos think tanks e como eles exercerão influência nos países

emergentes e em desenvolvimento. Ao contrário do início do livro, em que os capítulos 1 e 2 parecem trocados de lugar, no final os autores acertam o tom da discussão. Retomam as falhas do sistema de desenvolvimento de idéias dos think tanks e mostram o caminho que pode ser seguido para que elas sejam resolvidas.

Uma das maiores qualidades de Les Think Tanks é a acessibilidade textual. Escrito em fran-cês claro e direto, possui um caráter didático e elucidativo acerca da questão pouco divulgada dos think tanks. Cheio de notas explicativas, quadros classificatórios e esquemas para que o leitor se situe bem no universo dos laboratórios de idéias, o livro se revela um instrumento ins-trutivo até para o leitor que não possui conheci-mento sobre o assunto. A organização do livro é, no entanto, ineficaz no sentido de que explora pouco o diálogo entre os capítulos, gerando uma falta de coesão confusa para o leitor.

Porém, fazendo um balanço geral, Les Think Tanks é uma obra imperdível para aqueles que desejam iniciar seu conhecimento acerca desses que estão entre os corpos políticos mais importantes da atualidade. É uma obra muito instrutiva, mas sem os vícios da redação acadê-mica, e, por isso, acessível a todos.

BOUCHER, Stephen; ROYO, Martine. Les Think Tanks: cerveaux de la guerre des idées. Paris: Editions Le Félin, 2006.

Resenha

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205Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 4, junho/2009

Artigos· No máximo, 20 páginas;· Margens direita e inferior com

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espaçamento de 3,0 cm;· Tamanho do papel é A4;· Alinhamento justificado;· Espaçamento duplo;· Fonte Times New Roman 12 para o corpo

do texto;· Fonte Times New Roman 10 para citações

e títulos para as imagens e gráficos;· Espaço de 0,6 cm entre os parágrafos. · Resumo e palavras-chave (máximo 05

palavras) são obrigatórios e devem estar em português e inglês

Resenhas· No máximo, 02 páginas;· Margens direita e inferior com

espaçamento de 2,0 cm;· Margens superior e esquerda com

espaçamento de 3,0 cm;· Tamanho do papel é A4;· Alinhamento justificado;· Espaçamento duplo;· Fonte Times New Roman 12 para o corpo

do texto;· Espaço de 0,6 cm entre os parágrafos;

Imagens Não há restrição para o uso de imagens. Pede-se apenas que o articulista seja criterioso no número de imagens a ser enviada. O material enviado só será utilizado se as imagens tiverem boa qualidade técnica e estética para a publi -cação.

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

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Para as imagens digitais, são necessárias as seguintes características:

1 - Na hora de fotografar, configurar as câmeras digitais para a melhor resolução possível, ou seja, quanto mais pixels e quanto menos se compactar no formato jpg, melhor;

2 - As fotos escaneadas devem ter resolução de no mínimo 300 ppi (dpi) e ser salvas no formato jpg;

3 - As legendas devem ser curtas, diretas e escritas no formato Times New Roman 10.

4 - Informar a procedência de todas imagens enviadas. Não serão aceitas imagens que tenham problemas com direitos autorais. No caso de imagens não realizadas pelo próprio autor, entrar em contato com as instituições responsáveis para conseguir a sua auto ri za-ção.

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