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Instituto de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Metafísica PEDRO IVO SOUZA DE ALCÂNTARA RAZÃO, PODER, ERRO E JUSTIÇA: Um Comentário ao Livro I da República valorizando o contexto narrativo dos Sokratikoi Logoi Brasília - DF 2018

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Instituto de Cincias Humanas

Programa de Ps-Graduao em Metafsica

PEDRO IVO SOUZA DE ALCNTARA

RAZO, PODER, ERRO E JUSTIA:

Um Comentrio ao Livro I da Repblica valorizando o contexto narrativo dos Sokratikoi Logoi

Braslia - DF

2018

2

PEDRO IVO SOUZA DE ALCNTARA

RAZO, PODER, ERRO E JUSTIA:

Comentrio ao Livro I da Repblica valorizando o contexto narrativo dos

Dissertao apresentada ao programa de ps-

graduao em Metafisica do Instituto de

Cincias Humanas da Universidade de

Braslia, como requisito para obteno do

ttulo de Mestre em Metafsica.

Linha de pesquisa: Origens do Pensamento

Ocidental.

Orientador: Dr. Rodolfo Lopes.

Braslia-DF

2018

3

Banca Examinadora:

______________________________________________________

Prof. Dr. Rodolfo Lopes (Orientador) UnB

______________________________________________________

Prof. Dr. Gabriele Cornelli UnB

______________________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Barroso Franco de S UC

Suplente:

______________________________________________________

Prof. Dr. Rodrigo Brito UFS

4

Dedico minha av, dona Lurdes, e minha tia Anita, pessoa que

cuidou daquela matriarca da famlia Alcntara com todo carinho e

dedicao exigida.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeo grandemente,

Primeiramente aos meus pais, Celso e Laline, por todo amor e

cuidado com que me instruram.

minha av Maria Aparecida, que foi e sempre ser uma ncora de

dignidade e de apoio para mim e toda minha famlia.

Ao Samuel de Souza, meu tio, por todos os auxlios e espaos de

reflexo sobre a densidade existencial que tanto so fundamentais

para minhas especulaes.

por mim amada Dyane Albuquerque, por seu inigualvel fazer-se-

presente em parte significativa da jornada na qual surgiu o trabalho.

A todos os professores, por valorosos ensinamentos, em especial ao

desembargador Neviton Guedes, que me trouxe ao tema de direitos

fundamentais com brilhante exposio na graduao e que me

inclinou (pelas concordncias e pelas discordncias) sempre mais na

direo do interesse pela filosofia e ao orientador Rodolfo Lopes,

pelo brilhantismo com o qual me possibilitou ver a obra de Plato por

novos ngulos pelos quais eu nunca tinha imaginado ser possvel.

Ainda no campo educacional, CAPES e ao contribuinte pelo

incentivo financeiro.

Por fim, cabe um agradecimento quase religioso sem direo a um

sujeito especfico, mas prpria condio humana, pois todo

processo de pesquisa encontra sua causalidade na prpria

Humanidade, que fundamenta a elaborao desse trabalho tanto

porque nenhuma produo acadmica seria possvel sem o conjunto

de todas as pesquisas at ento realizadas, quanto porque todas as

pesquisas Humanidade se destinam, sendo ela, portanto,

simultaneamente a me e a ltima herdeira de todo legado que

qualquer indivduo pretende deixar. Por ser adepto de princpios

humanistas tambm a ela devo gratido.

6

.

Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere,

alterum non laedere, suum cuique tribuere.

Ulpiano

Wer den Dichter will verstehen

Mus in Dichters Lande gehen.

Goethe

7

RESUMO

O objeto deste trabalho o Livro I da Repblica e uma parte da trajetria de Scrates na obra

platnica relacionada com o problema central daquele texto, que a questo sobre a justia.

Defendemos que, se no negligenciarmos os aspectos dramticos dos Dilogos, veremos o

tema principal no Livro I da Repblica como um tema tico, enfatizando a crtica sobre os

pensamentos das personagens Cfalo, Polemarco e Trasmaco e seus efeitos morais. Devido a

essa posio, dialogamos com Jacob Howland, de acordo com o qual os Livros I e II da

Repblica seriam uma resposta ao loggrafo Lsias, resposta feita por razes ticas ligadas

aos fatos polticos que marcaram o fim do perodo da Guerra do Peloponeso. Por fim,

afirmamos que o Livro I da Repblica cria uma imagem retrica de um Scrates. Nessa

imagem, Scrates est ciente da necessidade de sustentar um discurso contra a para

reformular os limites das decises polticas e jurdicas do tempo de Plato, que eram to

questionveis quanto aquelas que causaram a morte de Polemarco e Scrates.

Palavras-chave: Plato. Filosofia do Direito. tica. Repblica. .

8

ABSTRACT

The object of this work is the Book I of the Republic and a part of the trajectory of Socrates in

platonic work that has a link with the central problem of that text, which is the question about

justice. We defend that, if we do not neglect the dramatic aspects of the dialogues, we shall

see the main theme in Book I of the Republic as an ethical theme, emphasizing the critique

about the thoughts of the characters Cephalus, Polemarchus and Thrasymachus and its moral

effects. Due to this position, we dialogue with Jacob Howland, according to whom the Books

I and II of the Republic would be an answer to the logographer Lysias, answer made for

ethical reasons linked to the political facts that marked the end of the Peloponnesian War. At

last, we affirm that the Book I of the Republic creates a rhetorical image of a Socrates. In this

image, Socrates is aware of the necessity to sustain a discourse against the to

reshape the limits of the political and juridical decisions of the Platos time, which were as

questionable as those ones that have caused the death of Polemarchus and Socrates.

Key-words: Plato. Philosophy of Law. Ethics. Republic. .

9

SUMRIO

LISTA DE ABREVIAES ........................................................................................................................ 10

INTRODUO ........................................................................................................................................ 11

CAPTULO I - A JUSTIA NOS DE PLATO ............................................................ 23

1.1. A questo da Justia no Livro I da Repblica: escopo ................................................................... 23

1.2. A opo de Plato pelos e nossa opo de leitura ........................................... 28

1.3. A crtica poesia e a relao com o tema do Livro I: o bem agir .................................................. 32

1.4. Discurso e prtica da personagem Scrates ................................................................................. 43

1.5. A definio de palavras e a funo da .............................................................................. 63

1.6. A Hiptese da Proto-Repblica ..................................................................................................... 69

CAPTULO II - A JUSTIA NO LIVRO I DA REPBLICA ........................................................................... 76

2.1. Scrates, o vitimado: descida ao Pireu e o uso da fora ................................................................ 76

2.1.1. K, camadas narrativas e a primeira pessoa do singular .................................................. 78

2.1.2. , a impotncia de Scrates frente e a importncia da educao ....................... 82

2.2. Cfalo, o psicologicamente purificado: justia pelo medo ............................................................ 89

2.3. Polemarco, o belicoso: justia pela guerra .................................................................................... 98

2.4. Trasmaco, o realista poltico: justia pela abdicao de si .......................................................... 108

2.4.1. A posio da personagem Trasmaco e a possvel relao com Lsias ...................................... 108

2.4.2. A recepo da figura do sofista ................................................................................................. 124

2.4.3. Objeo a George F. Hourani .................................................................................................... 133

2.5. Scrates, o apologista da excelncia: a racionalidade da justia enquanto abdicao ............... 139

2.5.1. A definio das tcnicas em funo da atividade e no da inteno do tcnico ...................... 141

2.5.2. A retrica socrtica e o silenciamento de Trasmaco: Justia prpria do sbio e bom ............. 143

2.5.3. A potencialidade no plena da injustia ................................................................................... 147

2.5.4. O justo como mais feliz: tarefa prpria, excelncia e felicidade ............................................... 152

CONCLUSO ........................................................................................................................................ 158

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................................... 163

10

LISTA DE ABREVIAES

Cf. Confira.

Cj. Conjugado no texto como.

Gr. Em grego.

I.e. Id est.

Pt. Em portugus.

Sg. Seguintes.

11

INTRODUO

A presente dissertao, que uma interpretao do Livro I da Repblica com anlise

contextual das personagens, surge de uma reflexo produzida por duas preocupaes

basilares, uma relativa determinada leitura que filsofos do sculo XX produziram acerca

das questes levantadas sobre a justia nos textos de Plato e a outra relacionada

metodologia da leitura da obra platnica.

Mais especificamente, nossa primeira inquietao nos leva a enfrentar determinada

tendncia do sculo passado de se ler a Repblica desvalorizando seu contedo em razo da

alegao de que esse texto conteria uma mensagem de proposta poltica perigosa. Essa

desvalorizao reflete at hoje em como se pensa acerca de Plato no bacharelado de Direito,

por exemplo, em especial em razo de alguns manuais de Filosofia do Direito, que muitas

vezes apresentam Plato de maneira apenas introdutria1 sem espao para reflexes mais

profundas.

Em relao metodologia, enfrentamos, mesmo que indiretamente, a compreenso

evolucionista da obra platnica especificamente quando aplicada Repblica, pois tal

compreenso projeta sobre esse texto a caracterstica de sede de pensamentos de mdia

maturidade e isso normalmente feito sem que sejam consideradas possveis integraes

narrativas entre o texto dessa obra e outras do corpus platonicum.

A dupla desvalorizao do contedo da Repblica, de um lado em razo da

caracterizao do texto como um projeto poltico perigoso e de outro pelo estabelecimento da

convico de que o texto no reflete o pensamento mais maduro do autor, a causa do

primeiro movimento de nossas investigaes.

O incio desse nosso percurso se deu com a leitura da obra The open society and its

enemies de Karl Popper, pela primeira vez publicada em 1945 e que recebeu a seguinte

predicao do filsofo analtico Bertrand Russell: a work of first-class importance which

ought to be widely read for its masterly criticism of the enemies of democracy, ancient and

modern2. J pelo elogio de Russell de se antever que Popper apresentou Plato como um

1 Por exemplo, o consagrado Paulo Nader (2017, p. 109) escreve em sua Filosofia do Direito que, para Plato,

todo indivduo, por imperativo de justia, deveria dedicar-se apenas atividade para a qual possusse

qualidades e a formula de justia consistiria em que os homens se limitassem apenas aos afazeres que lhes

coubessem. possvel inferir dessas linhas de Nader que, para ele, a Repblica cria uma noo de justia

limitada a uma diviso de tarefas e aceitao do papeis sociais pertinentes a cada grupo. 2 A informao sobre a declarao de Russell est na edio de 2011 de The open society and its enemies

publicada pela Routledge Classics. O sistema de citao utilizado neste trabalho o de autor e data, constando ao

longo do texto as datas das edies utilizadas como referncia para consulta e no a data da primeira publicao

12

inimigo das sociedades abertas, o que na viso dele significa ser adepto de uma organizao

social fechada e em ltima anlise administrada, diramos, por uma estrutura totalitria de

governo, para usarmos termo consagrado por Hannah Arendt e que eventualmente utilizado

hoje para caracterizar a filosofia poltica de Plato quando alguns pretendem atac-lo,

descrevendo-o como o primeiro de uma linhagem de pensadores que pregam contra a

pluralidade no fazer poltico, o que teria culminado nas consequncias polticas do sculo XX.

Inclusive, Arendt l, no sem um ar crtico, um Plato que colocaria a prtica da vita

ativa e do bios politikos como serva da contemplao terica. Por sua vez, a contemplao

terica considerada por ela a completa quietude passiva na qual a verdade filosfica se

revela ao humano e que se revela aps longa atividade de pensamento, a maneira mais direta e

importante de se chegar verdade filosfica (ARENDT, 2014, p. 16 e 361).

Para a autora, aps o julgamento de Scrates, Plato foi o primeiro a refletir sobre o

abismo entre filosofia e poltica. Decepcionado com a morte do mestre ele teria tentado

reverter a situao ftica ao estabelecer, em relao prioridade, a filosofia sobre a poltica,

formando uma hierarquia entre as duas. Ao colocar a filosofia em referncia a padres

absolutos, diz ela, Plato teria criado a mais anti-socrtica concluso que Plato tirou do

julgamento de Scrates, a oposio entre opinio, que levou condenao de Scrates, e a

verdade, prpria da filosofia, dando vazo a uma tirania da verdade, onde a eterna verdade da

qual os homens comuns no podem ser persuadidos deve governar a cidade, impedindo

sempre o irrompimento do novo na ao poltica (ARENDT, 2002, p. 92).

Alm disso, Arendt caracteriza o totalitarismo como negao da pluralidade em uma

massificao de pensamento estimulada pela elite e setores insatisfeitos da sociedade. Desse

modo, mesmo que no ataque to veementemente Plato quanto Popper, fica claro que, para

ela, quando a filosofia de Plato, interpretada como primordialmente a busca da revelao da

verdade, assume a prioridade sobre a poltica ocorre justamente o primeiro movimento

contrrio pluralidade (ARENDT, 1989, p. 390).

Nessa linha de leitura, pode-se dizer que a idealizao da polis feita na Repblica

seria uma tentativa de conteno da imprevisibilidade da ao humana na esfera poltica,

imprevisibilidade diagnosticada pela Arendt na realidade das questes polticas humanas. da obra. Eventualmente, caso se entenda necessrio, referir-se- data da primeira publicao tambm em nota

de rodap, espao utilizado para inserir detalhes secundrios que facilitam a compreenso sobre o que dito ou

que esclarecem os trmites da pesquisa. Com exceo do Alemo e de excepcionais casos em que a traduo

para o vernculo permitir uma curta citao direta mais fluida no corpo texto, todas as citaes diretas no

trabalho estaro na lngua original. As citaes de textos escritos em grego estaro acompanhadas de traduo

nossa.

13

Consequentemente, o vislumbre da figura do filsofo-rei por parte de Plato seria o primeiro

passo na direo da morte da liberdade e do controle absoluto da ao humana. Portanto,

embora o texto de Arendt no vincule expressamente Plato s tendncias tirnicas do sculo

XX como o faz Popper, bastante claro o paralelo entre ela e a tendncia popperiana na

medida em que ela tambm critica, ainda que por meios bastante diversos, a prevalncia do

filosfico sobre o poltico, ao compreender que a filosofia referida na Repblica culminaria

em uma espcie de know how da governana dos assuntos humanos a partir da hierarquizao

entre verdade filosfica e opinio poltica.

Como essa, interpretaes da obra platnica que tm algo que podemos chamar de

interseco com a leitura de Popper integram, em alguma medida, uma tradio de colocaes

anti-platnicas. As interpretaes que assim nomeamos constituem grupo unitrio a partir de

seu ponto comum de leitura, no qual o Scrates de Plato ao anunciar a proposta de unio

entre filosofia e governo (R. 473d)3 estaria convocando os filsofos, donos de um saber

superior, domadores de determinada verdade, a assumirem o governo das cidades reais como

engenheiros sociais justificados no poder pelo fato de serem detentores de sua tcnica ampla

de busca da verdade e de governo da vida humana.

Quando se adota esse paradigma de leitura, o intrprete geralmente entende que o

filsofo-rei a que se refere o texto seria um cientista social, usando termos modernos,

dotado de uma (cincia) e que atravs dela ele conseguiria saber o que bom para a

polis aps avanar dialeticamente at a Ideia de Bem4, conjunto de concluses que estaria

supostamente em conformidade com o Livro VII da Repblica, especialmente a alegoria da

caverna.

importante notar que esse tipo de viso acerca da proposta do filsofo-rei, ou ao

menos algo que se aproxima dela, no exclusividade do sculo XX, pois no incio da Idade

3 Para citao das obras gregas e latinas clssicas usamos as marcas identificadoras do lxico grego-ingls de

Henry George Liddell e Robert Scott, revisado por Henry Stuart Jones (chamado LSJ), exceto os chamados de

pr-socrticos, que citamos a partir da marcao e numerao Diels-Kranz. A lista referencial de tais

abreviaes do LSJ se encontra disponvel no stio eletrnico: . Em relao

especificamente s obras platnicas, o sistema de paginao o de Henri Estienne (Stephanus).

Exemplificadamente, R. a abreviao indicativa da Repblica pelo LSJ e 473d refere pgina 473, trecho d,

na edio Stephanus. Em caso de julgamos importante haver maior especificidade no posicionamento da citao,

aps a letra do sistema Stephanus indicaremos com um algarismo aproximadamente tambm a primeira linha do

trecho referido. Todas as obras platnicas que referenciamos no original so da edio de John Burnet. A edio

da Repblica de S. R. Slings publicada pela Oxford Classical Texts em 2003 foi apenas consultada. Em relao

aos demais casos, saliente-se desde j que todas as edies em lngua grega consultadas das obras clssicas so

as que se encontram disponveis tambm em: http://www.perseus.tufts.edu. 4 Usamos Formas com F e Ideias com I em letras maisculas acompanhadas das tradues dos

substantivos dativos para Bem, Belo e outros para referirmos as entidades apresentadas nos Dilogos no que

se convencionou chamar Teoria das Ideias, sobre a qual fazemos brevssima discusso no captulo I.

14

Moderna, por exemplo, Erasmo de Rotterdam publicou o satrico e clebre

(pt. Elogio da Loucura), obra direcionada contra o status quo de seu tempo, como se, nas

palavras do prprio autor, ele ferisse a todos impiedosamente com a antiga comdia que

ressuscitara (ROTTERDAM, 2003, p. 12)5. Nessa obra, mesmo que Plato fosse de outra

poca ele foi atingido justamente por causa da proposta de relao entre filosofia e governo.

Rotterdam declara pela voz de sua personagem, a Deusa Loucura, que Scrates no

era de todo louco, eis que rejeitava o ttulo de sbio e dizia que quem quer passar por sbio

deve se abster do regime da Repblica e, em seguida, em oposio a essa afirmativa, a

Loucura fala sobre o que ela considera a proposta platnica de que as cidades s seriam

felizes se os filsofos governassem ou se os governantes filosofassem, afirmando que a

verdade seria justamente o oposto (ROTTERDAM, 2003, p 49).

Embora no afirme diretamente, a dinmica e disposio desses trechos do monlogo

da personagem de Rotterdam insinuam a loucura de Plato em oposio sanidade (ao menos

mnima) de Scrates por este ltimo declarar que s h sapincia com o necessrio

afastamento da poltica.

Esse estilisticamente sutil ataque a Plato em razo da proposta de relao entre

filosofia e poltica foi provavelmente o primeiro da Modernidade Ocidental. Outros ataques

desse tipo ao texto da Repblica surgiriam talvez de modo independente manifestando as

preocupaes inerentes s reflexes de cada autor que se posiciona contra a proposta de

relao entre filosofia e poltica, pois cada um escreve tendo em vista as necessidades de seus

discursos, que esto inseridos no contexto histrico de cada pensador. Apesar das distncias

temporais e origens retricas diversas, todos os ataques a essas linhas da Repblica tm em

comum a afirmativa de que a relao entre filosofia e governo implica em alguma proposta

abusiva de poder.

Nesse sentido, j na Idade Contempornea, no sculo XIX, Friedrich Nietzsche, que

se destacou em ataques a Plato em vrios momentos de sua obra desde a publicao de Die

Geburt der Tragdie: aus dem Geiste der Musik6, foi ao ponto de afirmar nas linhas dos

aforismos n 261 e 473 de Menschliches, Allzumenschliches: Ein Buch fr freie Geister7 que

Plato seria um tirano do esprito por causa de sua nsia pela verdade e que ele se aproximou

5 A obra foi publicada pela primeira vez em Paris no ano de 1509.

6 Publicado originalmente em 1872, alterado o ttulo quando da segunda publicao.

7 Publicado originalmente em 1878.

15

do despotismo de Siracusa desejando ser seu herdeiro, afirmativas que nos remetem aos

infortnios narrados na Carta VII, atribuda a Plato.

Alm da acusao de proposta poltica abusiva, h uma caracterstica marcante no

Plato lido por Nietzsche: o racionalismo antitrgico, que, na concluso do alemo, s poderia

desembocar no ressentido plano de um despotismo da razo por parte do filsofo grego, o que

em sntese se une s demais posies anti-platnicas na comum convico de que os textos de

Plato carregam a concluso de que, atravs da razo, o humano chegaria verdade, vertida

em verdade tcnico-administrativa quando posta a filosofia sobre a poltica, relao atravs da

qual o governo filosoficamente justificado atuaria de modo desptico.

possvel dizer que comum a essas concluses anti-platnicas enxergar Plato

como um apologista da possibilidade de se deter a verdade para resolver os problemas

prticos da sociedade humana. Para concluir isso dos textos atribudos a Plato, em regra, os

intrpretes transformam as falas das personagens mais ativas nos Dilogos, especialmente

Scrates, em falas de uma personagem que em cada frase solta seria o porta-voz de Plato e

tomam essa atitude, tambm em regra, sem considerar o aspecto dramtico dos Dilogos e os

contextos em que as personagens expressam uma ou outra opinio. Alm disso, tais leituras

costumam priorizar a narrativa de que Plato teria um rancor pela morte de Scrates e da

adviria o motivo pelo qual ele desejaria domesticar a poltica pela razo filosfica, com

consequente excluso de tudo que seria irracional, como a arte potica, em especial a trgica.

Mas a linha de interpretao que coloca Plato como diametralmente contrrio arte

potica por uma vingana da razo muito marcada por um psicologismo que transforma o

autor da Repblica em um refm ressentido da morte de Scrates e se descola completamente

do texto, por vezes passando ao largo do fato de que a potica utilizada no s na elaborao

da obra platnica, que enquanto srie de dilogos uma obra mimtica artstica, mas tambm

ignorando o enredo das atitudes retricas de Scrates, que eventualmente se apropria da

narrativa mtica e potica para suas colocaes.

Criticando essa linha que carrega Plato como um antagonista da arte, Hector Benoit

afirma que pessoas como Nietzsche, Heidegger e Haverlock (os dois ltimos lendo um Plato

prximo do nietzschiano, no entender de Benoit) tm a convico de que os Dilogos

platnicos8 desacreditam a arte em nome da moral e da metafsica, mas ele sustenta que essa

8 Referiremos sempre por Dilogos com inicial maiscula a soma das obras do corpus platonicum, com exceo

das cartas a ele atribudas, cartas que merecem uma discusso profunda sobre a autoria e que no presente

trabalho no discutiremos.

16

viso merece alguma considerao crtica, defendendo que Plato iria do ficcional e do

aparente reflexo conceitual, de modo nenhum excluindo a arte, mas justamente emergindo

dela.

Aps falar das leituras de Plato que Benoit atribui a esses trs mencionados no

pargrafo acima, ele contrape a eles a srie de questes abaixo como perguntas retricas que

acentuam a necessidade de se perceber que o texto platnico expresso potica (BENOIT,

2015, p. 43):

Porm, os Dilogos no seriam, ao contrrio, o grande esforo pelo qual a reflexo

conceitual irrompe do interior da prpria aparncia? No seu modo de exposio, os

Dilogos no estariam muito mais prximos da tragdia e da comdia do que

daquilo que convencionalmente passamos a designar como filosofia? No seriam

eles prprios, os Dilogos, uma das formas supremas da prpria arte grega? Ou at

mesmo a superior entre estas pelas suas diversas camadas de representao mimtica

e filosfica? At que ponto esses crticos de Plato, apesar de to preocupados com a

arte potica, tiveram olhos suficientemente sagazes para os segredos esotricos dessa

suprema forma de arte, aquela da filosofia platnica, uma filosofia que certamente,

apesar de filosofia, faz desta a arte conceitual mais elaborada esteticamente?

Quando recorre ao termo esoterismo para seu argumento, Benoit se refere no a

um entendimento profundamente oculto por trs dos textos, mas ao oculto pela cegueira de

quem no observa a expresso dos Dilogos como obras com enredo a ser considerado,

enredo que pode esconder o que olhos no atentos negligenciam.

Benoit quer jogar luzes sobre o oculto por trs da tradio que desde o Livro da

Metafsica de Aristteles vai soterrando Plato sob as perspectivas de determinados projetos

filosficos que nas mos do intrprete moderno podem ser transformadas em expresses

inquestionveis das intenes do prprio Plato, ocultando a dimenso artstica dos Dilogos

por debaixo de leituras consagradas que chegam ao leitor nefito antes mesmo que ele avance

sobre o texto platnico (BENOIT, 2015, p. 68 e p. 81).

As leituras de autoridades foram na tradio, aos poucos, substituindo o texto do

prprio autor, tornando-o oculto por essa camada interpretativa espessa, que muitas vezes

chega prematuramente ao leitor interessado na obra como se fosse um manual explicativo ou

um resumo do que significa o texto de Plato, o que condiciona a viso dos novos intrpretes

sobre a obra desde antes de suas primeiras incurses no texto do autor grego. Assim, ainda

que a obra em sua dramaticidade esteja aberta a todos, est velada a alguns por essa camada

interpretativa que explicitamente rejeita a dramaticidade ou apenas silenciosamente a ignora,

17

construindo o sentido dos textos platnicos a partir de explicaes ulteriores de outros autores

e no a partir dos prprios Dilogos de Plato.

Acerca desse ponto, deixe-se ler o prprio Benoit (2015, p. 93):

Para superar a superficialidade da longa tradio que transforma o discurso de

alguns personagens (particularmente, Scrates, Crtias, Parmnides e o Estrangeiro

como fiis portadores da palavra de Plato), assim como os mitos eventualmente

narrados, na palavra, pensamento e presena plena de Plato, para reencontrar a Ele,

para redescobrir o Plato (esotrico do logos) enterrado por sculos de leituras

vulgares, ser necessrio, primeiramente, o difcil trabalho de reconhecer a profunda

significao de sua presena como e enquanto, exatamente, ausncia.

As intuies de Benoit em relao criatividade potica nos Dilogos, que no

apresentam Plato como personagem central9 em sua prpria obra representativa, orientam

excepcionalmente os fundamentos de nossa leitura.

Vale destacar que a proposta de Benoit de considerar os aspectos dramticos como

uma ferramenta indispensvel para a compreenso da filosofia contida nos textos atribudos a

Plato no isolada. Stanley Rosen em 2005 citou essa tendncia no prefcio de sua Platos

Republic (ROSEN, 2005, p. 10):

There can be little doubt that the wide appeal of the Republic is largely due to its

artistic brilliance. The task of the philosophical student, however, is not only to

enjoy but also to understand. It is now acknowledged by competent Plato scholars

that we cannot arrive at a satisfactory appreciation of his philosophical teaching if

we ignore the connection between the discursive arguments on the one hand and the

dramatic form and rhetorical elements of the text on the other.

Adotamos essa percepo como fundamental para nossa leitura e, como se ver, no

se pode ignorar que a afirmao da personagem Scrates sobre o filsofo-rei est inserida

dentro de uma discusso em um enredo maior que precisa ser tomado como relevante antes de

se concluir qualquer coisa sobre o sentido do dilogo da Repblica e dessa passagem em

particular.

Ousamos adiantar a nossa concluso de que, graas ao relaxamento em relao a esse

aspecto dramtico da obra platnica, leituras como a de Nietzsche e as dos demais citados

9 Plato mencionado nos Dilogos apenas brevemente. Isso ocorre nas passagens da Apologia (Ap. 34a) e do

Fdon (Phd. 59b), sendo que no ltimo o nome de Plato mencionado justamente para se pontar sua ausncia

em cena. Na Apologia apenas seu nome aparece para mencionar uma proposta dele de pagar em valores a pena

de Scrates. Plato no aparece como personagem ativa em qualquer circunstncia dos Dilogos, o que

discutiremos melhor no item 1.2 do captulo I.

18

como anti-platnicos se entrincheiram em posio de ataque em relao filosofia de Plato

por inteiro e no apenas em relao Repblica, fazendo isso com fundamento tambm (e

talvez principalmente) em uma opo de anlise da Repblica que estar presente na leitura

de Karl Popper em The open society and its enemies. Essa opo passa sem uma discusso

detida sobre os aspectos dramticos da obra platnica, optando, como alternativa, por atribuir

ao suposto rancor irremediado relativo morte do Scrates histrico a posio de eixo

hermenutico para compreenso do significado da proposio relativa ao filsofo-rei feita

pela personagem Scrates na Repblica.

Se Plato, ou melhor, Scrates, a personagem, estivesse propondo o banimento total

da arte potica em prol de uma espcie de tirania da razo na Repblica, ento Scrates ainda

nas etapas iniciais de fabricao da cidade (Livros II e III) no deveria firmar a necessidade

de adaptar os mitos (R. 377a e sg.) ou pelo menos no poderia caminhar para uma concluso

do dilogo relacionada ao Mito de Er. Ento, para compreender a complexidade do texto e do

papel de Scrates na Repblica necessria uma anlise que cruze os parciais momentos do

texto com o objetivo de ser o mais fiel ao contedo quanto possvel.

O texto deve, portanto, ser lido em sua integralidade narrativa. As crticas poesia

bem como as demais passagens usadas para significar a proposta do filsofo-rei da

personagem platnica precisam ser entendidas nessa relao complexa do texto que produz

significado atravs de sua completude.

Nesse sentido, com a pretenso de um estudo inicial sobre a integralidade do texto da

Repblica, a presente dissertao est focada na discusso sobre a justia impressa no Livro I

e analisa relaes entre essa discusso com parte do contexto literrio e do contexto histrico

em que est inserida a narrativa dramtica da Repblica, que alm de ser um texto

conceitualmente potico, fictcio, que merece uma anlise literria, tambm seleciona pessoas

histricas que aparecem representadas no dilogo como personagens, o que torna prudente

uma anlise da significao desse artifcio.

Assim, queremos desenvolver uma compreenso do incio da Repblica que

contextualize a discusso sobre a justia em relao atitude que as personagens do texto

representam na discusso, destacando o contexto histrico que colabora no processo de

significao dessas posies contidas no Livro I.

O tema sobre o que justia presente na Repblica desperta nosso interesse em

razo de nosso objetivo de produzir uma reflexo de Filosofia do Direito que considera o justo

19

em sua dimenso ambgua, tal qual apresentada no Livro I. A justia est em discusso

naquele trecho no somente por causa do aspecto declarativo da definio do termo, mas

especialmente em funo do aspecto normativo que a definio tem sobre o comportamento

humano.

Com essa anlise se pretende demonstrar aqui que na Repblica a pergunta sobre o

justo implica em uma discusso no somente ontolgica (da determinao do ser do justo e

sua relao com a Ideia de Bem), nem somente ontoepistemolgica10

(ou seja, uma discusso

para saber como se alcana o conhecimento sobre o que justia por meio do avano sobre

essa mesma Ideia de Bem), mas tambm (e talvez prioritariamente) axiolgica, j que a

maneira como as personagens definem o justo no Livro I claramente se relaciona com o modo

pelo qual elas encaram a posio do humano no mundo, de modo que as definies usadas

pelas personagens determinam quais comportamentos elas julgam adequados ou inadequados

para o humano em sociedade.

O fato da conversa desembocar nos livros centrais em uma discusso

ontoepistemolgica circundando o tpico da Ideia de Bem refora essa perspectiva axiolgica,

embora Heidegger (2005, p. 351) aponte razes para ver problema nesse tipo de leitura,

concebendo ele que o termo em seu sentido originrio seria alheio noo de valor

moral.

O posicionamento aqui defendido implica dizer que o que est em debate no Livro I

da Repblica no apenas o que a justia ela mesma nem quais os meios de se desvendar a

resposta para essa pergunta, mas tambm fulcral (e talvez mais importante do que tudo isso)

observar como as convices sobre o significado de justia reestruturam a vida prtica do

detentor da convico, estando certas concepes em discusso no Livro I relacionadas s

concluses prticas a que elas conduzem. Isso torna, nesse caso, a discusso, antes de

qualquer coisa, tica.

Portanto, evitando aqui lavrar atestados de verdades psicologistas em relao ao que

pensava a figura histrica de Plato, queremos tentar nos aproximar do texto do Livro I da

Repblica que temos hoje com ateno s personagens do texto, dando relevncia relao

entre personagens platnicas e as inspiraes histricas dessas personagens, bem como ao

contexto literrio das convices representadas no texto, para falarmos de como as

10

O termo ontoepistemologia usado por Jos Trindade Santos para caracterizar em Plato a unio entre a compreenso acerca das Formas e os mtodos que se podem derivar da interpretao dos Dilogos como meios

vocacionados conquista do conhecimento das Formas (SANTOS, 2008).

20

construes compostas na linguagem dessas personagens se relacionam com seu potencial

comportamento.

Ademais, admitimos alguma unidade narrativa no total do corpus platonicum em

oposio s anlises da obra de Plato que pressupem ser importante considerar uma diviso

por fases de elaborao dos Dilogos. Essa opo aqui tomada por crermos que a estratgia

de leitura focada na narrativa sobre os acontecimentos da vida de Scrates nos Dilogos pode

ser fonte de frutferas especulaes reflexivas, sobretudo acerca da prtica da justia, tema

central no Livro I, mas que permeia boa parte dos Dilogos, j que em vrios pontos eles

tangenciam o julgamento e morte de Scrates.

Assim sendo, essa dissertao se divide em dois captulos. O primeiro captulo um

avanar sobre os traos metodolgicos alinhavados nessa introduo, afastando-nos da

discusso sobre ordem de escrita dos Dilogos platnicos e aproximando-nos de uma

discusso sobre a definio da funo literria e retrica da personagem Scrates, sobretudo

para defender que a tomada de posio de valorizar os aspectos dramticos da obra platnica

deve nos levar a ler Scrates dentro de um contexto em que ele representado como portador

de constante preocupao com o comportamento humano e com problemas ticos que

permeiam todo o filosofar dos Dilogos em que ele est presente. No referido captulo

apontaremos em linhas gerais passagens que fortalecem essa hiptese.

Embora pela opo acima referida precisemos citar esporadicamente trechos de

outras unidades dos Dilogos, a opo desse trabalho em seu ncleo se restringir ao Livro I

da Repblica. Portanto, ainda ao final do primeiro captulo trataremos da hiptese de que o

Livro I tenha sido publicado isoladamente antes da concluso do texto completo que nos

chegou da Repblica, isso porque caso se queira se posicionar contra nossas consideraes

acerca das relaes intertextuais do corpus, fica tambm em destaque que possvel atribuir

sentido fechado ao texto do Livro I por ele gozar de uma integralidade narrativa que

possibilita ver nele um sentido completo.

Alm disso, insta salientar que a justia o ponto de partida, no Livro I e de chegada,

no Livro X. Se imaginarmos o desenrolar da narrativa sob a imagem de uma linha ascendente

entre tica e ontologia, podemos considerar que a estrutura textual promove no incio uma

discusso tica sobre a justia, implcita na discusso sobre a definio do justo, em seguida

executa uma at a ontologia dos livros centrais e por fim um retorno em

at as concluses do texto que voltam a se relacionar claramente tica e ao tema da

definio de justia.

21

Na presente dissertao, porm, trabalharemos apenas o ponto de partida. Ou seja,

aqui se discutir somente o debate tico sobre a justia implcito no Livro I at

concluda no final desse mesmo Livro I.

Para tanto, no primeiro captulo (1.1) justificaremos nosso escopo e nossa deciso de

analisar o tema da justia desvelando as bases motivacionais do trabalho. A seguir (1.2),

faremos consideraes sobre o gnero potico no qual se expressa a Repblica e sobre o papel

potico da personagem Scrates, esclarecendo porque temos que extrapolar esse escopo do

Livro I para trabalharmos o significado narrativo da personagem. No ponto posterior (1.3),

trataremos da crtica poesia na Repblica com foco especfico na relao entre essa crtica e

a funo tica que atribumos personagem Scrates na obra platnica. Seguindo a isso (1.4),

promoveremos uma breve incurso no Fdon a fim de demonstrar que essa funo tica

apresentada tambm dramaticamente em uma pequena narrativa autobiogrfica que a

personagem faz nessa obra. Ento (1.5), falaremos sobre o papel tico do que

visvel no Teeteto para destacar que sua importncia vlida mesmo no caso dele levar

e fazemos essa breve anlise porque em que acaba o Livro I da Repblica.

Por fim (1.6), concluiremos o captulo tratando da hiptese de publicao isolada do Livro I

da Repblica, o que refora a perspectiva de que tal Livro I tem contedo suficiente para

isolado configurar uma obra com significado relevante, ainda que o trecho termine aportico.

Aps tal exposio, o captulo dois entra como ncleo da dissertao. Dividido em

cinco subtpicos, analisaremos o incio contextual da ida de Scrates casa de Cfalo (2.1) e

as posies de Cfalo (2.2), Polemarco (2.3), Trasmaco (2.4) e do prprio Scrates (2.5) no

Livro I sobre a definio de justia, colocando em dialogo contextual o texto de Plato e a

realidade histrica a que ele se refere pela escolha de nomes de pessoas reais para figurarem

como personagens.

Com nosso esforo interpretativo, que cremos ser impulsionado pela prpria escolha

esttica e criativa dos Dilogos, conectaremos o Livro I da Repblica com a realidade

contingente da Atenas do fim do sculo V AEC11

a que se remete a obra pelo uso das

personagens Cfalo, Polemarco, Trasmaco e Scrates, que tm seus nomes de algum modo

vinculados Guerra do Peloponeso.

11

Em relao ao marco do calendrio gregoriano (promulgado em 1582 da Era Comum e adotado pela marcao ocidental), o termo AEC abreviao que significa Antes da Era Comum, ou na linguagem comum, antes de

Cristo, em oposio a EC, que significa da Era Comum, ou depois de Cristo. Nos casos de citao de datas da

Era Comum estamos omitindo o signo de identificao EC.

22

Em sntese, o presente trabalho provoca um retorno ao texto e, sobretudo, uma

concentrao sobre o contexto carregado no Livro I da Repblica e com isso analisa o carter

narrativo dos Dilogos platnicos e em especial os aspectos prosopogrficos das personagens

da Repblica, ou seja, a histria das pessoas reais que inspiram essas personagens.

O objetivo contextualizar as discusses no Livro I da Repblica, atravs de uma

aproximao possvel do texto e da contraparte histrica considerando os prprios limites do

elaborador da dissertao.

Cabe destacar, enfim, que os debates nesse livro so expresses de uma discusso

tico-normativa do comportamento humano que se d a partir de uma reflexo sobre a relao

entre o conceito de justia de um lado e de outro os conceitos e prticas relacionados fora,

razo e ao poder, pois essa relao caracteriza a legitimidade do poder poltico e os limites

da ao poltica. Por essa dimenso, o texto da Repblica interessou Filosofia do Direito de

Hans Kelsen no sculo XX e pelo mesmo motivo deve interessar Filosofia do Direito at

hoje.

23

CAPTULO I - A JUSTIA NOS DE PLATO

1.1. A questo da Justia no Livro I da Repblica: escopo

A pergunta sobre o significado da justia o elemento motriz que encaminha a maior

parte da narrativa do Livro I da Repblica. Essa questo acaba conduzindo o texto integral do

dilogo a investigaes ticas, epistemolgicas e ontolgicas que segundo Julius Moravcsik

(2006, p. 11) so os trs vrtices centrais da obra de Plato e mesmo de todo platonismo que

decorre de leituras sobre Plato. Entretanto, no Livro I da Repblica a discusso sobre o tema

culmina ao final em , a perplexidade advinda da parcial insolubilidade do problema

discutido. Nesse caso a ocorre em razo de ningum ter dado, naquele ponto, resposta

satisfatria para definir o que seria o justo. O silncio como resultado da anunciado

por Scrates no ltimo trecho do Livro I (R. 354c):

,

, .

Quando em relao ao justo no sei o que , dificilmente saberei se por acaso ele

uma virtude ou no, bem como se aquele que o tem no feliz ou feliz.

A pergunta sobre o que algo (gr. ) configura a busca pelo , palavra

que em portugus significa delimitao, a soma dos limites que definem ou, ainda,

simplesmente a definio. Em expresso mais metafrica, possvel afirmar que tal pergunta

sobre o que algo a busca pelo , nome dado pedra que indica os limites de um

terreno e que acaba sendo sinnimo de definio (MALHADAS, DEZOTTI, NEVES, 2008).

O termo aparece diversas vezes na Repblica e sua primeira apario se d logo

que Scrates enfrenta a primeira colocao no dilogo acerca da justia, que surge a partir de

sua conversa com Cfalo. Ao dizer Scrates que determinada colocao insuficiente para

esclarecer o que seria justia, ele usa a palavra , atraindo dali em diante a conversa para o

tema da definio do que seria justia. Veja-se o trecho (R. 331d):

,

.

Ento, (podemos concluir que)12

no isso o que define justia: dizer a verdade e

devolver algo que se possa ter recebido.

12

Em nossa traduo tentamos adicionar poucas modificaes sintticas e mesmo de posicionamento das palavras, por julgarmos que a ordem dos termos pode conter algum aspecto de nfase relevante que se perde

quando reorganizamos as palavras no momento da traduo. Mas muitas vezes essa opo gera ambiguidade na

traduo e em alguns momentos tentar manter a sintaxe ou a ordem dos termos como est no original gera uma

necessidade de reestruturar toda a frase com adio de texto que no h na fonte. Trechos entre parnteses nas

24

Se assumirmos, a partir desse trecho, que o tema central do Livro I da Repblica a

definio de justia, tema que comea a ser explicitamente debatido aps uma conversa

aparentemente despretensiosa de Scrates com Cfalo sobre a velhice desse ltimo (R. 331c),

ento possvel dizer que o texto do Livro I termina inconclusivo no tocante a esse problema

central, porque o texto explicitamente marcando ao fim pela afirmativa de que no foi

possvel definir o que justia.

Entretanto, isso no significa que o Livro I contenha apenas um jogo vazio acerca do

significado de uma palavra, nem mesmo significa que a conversa ali narrada figura como

mero debate preparatrio para os prximos passos do texto integral. As discusses no Livro I

esto inscritas em uma relao maior no s com o resto da estrutura narrativa da Repblica

integral, mas tambm com outras exposies narrativas distribudas pelo corpus platonicum,

sobretudo a representao que a obra de Plato faz sobre o destino do Scrates histrico, caso

completamente inserido no debate sobre o significado de justia.

Os (pt. exames contestativos)13

que no Livro I da Repblica a personagem

Scrates ope a Cfalo, Polemarco e Trasmaco no tm vocao apenas de auxiliares em

uma disputa semntica sobre o significado da palavra justia. Ao se expressarem, os

promovem uma discusso implcita sobre a adequao ou inadequao de como as

personagens encaram o mundo a partir das definies que usam, pois tais definies

constroem a relao dessas personagens com a realidade social em que se encontram. Ento,

colocamos para a presente leitura o foco na questo sobre a justia no Livro I da Repblica,

interpretando a importante faceta tica que implicada na prpria discusso mesmo

inconclusiva, porque questes ticas desencadeadas pelo de Scrates apresentam

significado fechado sobre a justia j no Livro I, apesar da inconcluso sobre o significado do

termo.

Ademais, o tema da justia to importante na Repblica que, segundo Digenes

Larcio (D.L., Livro III, 56 a 80), Trsilo, o primeiro organizador do corpus platonicum em

tetralogias, teria subtitulado o texto da Repblica com o nome Da justia. A maneira como se

ler aqui o Livro I da Repblica, com foco na disputa pela definio do justo (gr. ),

tem relao, portanto, com um projeto interpretativo do texto integral da Repblica,

nossas tradues so conjuntos de termos que no esto no texto original, mas que colaboram para eliminar

ambiguidades e esclarecer o sentido quando optamos por manter, no limite de nossas capacidades, o resto da

estrutura sinttica e s vezes mesmo a ordem dos vocbulos como no original. 13

Como veremos no captulo II dessa dissertao, Trasmaco imperativamente afirma (no trecho R. 336c) que Scrates deveria parar de fazer tais exames contestativos se era seu desejo de fato saber o que justia.

25

considerando-a parte de uma narrativa maior do corpus, de modo que a disputa sobre a

significao do justo e termos relacionados deve ser percebida no apenas como uma

atividade eirstica para soluo de um problema semntico e conceitual, mas como causa de

uma reflexo sobre como a elaborao conceitual acerca do termo altera efetivamente a

maneira do humano se relacionar com o mundo bem como seu modo de agir dentro da

sociedade, tendo aquela disputa inconclusiva sobre o significado da justia papel fundamental

na narrativa total da Repblica e mesmo na integralidade da obra platnica, embora no

examinemos esses efeitos detidamente nesse trabalho.

momento de se destacar que no se trata aqui de uma tentativa de descobrir as

crenas de Plato pela leitura do texto a ele atribudo, mas de apropriao do carter

extratemporal do texto da obra platnica, dado que certos problemas debatidos ali

permanecem importantes para reflexo do presente tempo, que ainda palco de inquietao e

calorosas disputas sobre os limites da discricionariedade do poder poltico (que, como se ver,

marca a discusso no Livro I), com a inovao de que hoje a jurisdio tambm precisa lidar

frequentemente com esse problema, pois o poder prprio da jurisdio fronteirio e de fato

profundamente imiscudo com o poder poltico, tornando-se o debate contido no Livro I da

Repblica relevante (tambm) para a Filosofia do Direito atual.

Por esse primeiro motivador do trabalho, alguma projeo nossa inevitvel. O

grande desafio no tocante aos problemas do anacronismo na leitura presente de uma obra

clssica a invencvel historicidade de todo intrprete que fatalmente projeta suas convices

e seus dilemas historicamente inscritos bem como suas limitaes epistmicas sobre o objeto

da interpretao. Portanto, a prpria limitao daquele que escreve deve ser conscientemente

considerada, inclusive a motivao inicial da pesquisa, que foi produzir uma anlise possvel

da narrativa textual presente no Livro I da Repblica em uma exposio que pretende avaliar

o sentido desse texto a partir de um apontamento no s das discusses do dilogo, mas

tambm do contexto da narrativa e isso tudo por causa da pertinncia e extratemporalidade

dos problemas que envolvem a discusso sobre a justia naquele texto.

Como Gadamer sintetiza em sua principal obra, dizendo ter aprendido tal lio com

Heidegger, devemos perceber que os dois inimigos de toda interpretao que se pretende

pertinente so os vcios da tradio que constituem hbitos imperceptveis ao pensar e a

invencvel arrogncia por trs das prprias convices subjetivas do intrprete que saltam

sobre o texto, simulam ser parte do texto e cujos efeitos podem ser, no mximo, minimizados,

mas no excludos. A citao direta da traduo pertinente (GADAMER, 1997, p. 401):

26

Toda interpretao correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrncia

de felizes ideias e contra a limitao dos hbitos imperceptveis do pensar, e

orientar sua vista s coisas elas mesmas (que para os fillogos so textos com

sentido, que tambm tratam, por sua vez, de coisas). Esse deixar-se determinar assim

pela prpria coisa, evidentemente, no para o intrprete uma deciso heroica,

tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente a tarefa primeira, constante e

ltima. Pois o que importa manter a vista atenta coisa, atravs de todos os

desvios a que se v constantemente submetido o intrprete em virtude das ideias que

lhe ocorram. Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. To

logo aparea um primeiro sentido no texto, o intrprete prelineia um sentido do todo.

Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem l o texto l a partir

de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A

compreenso do que est posto no texto consiste precisamente na elaborao desse

projeto prvio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base

no que se d conforme se avana na penetrao do sentido.

Assim, qualquer interpretao est condicionada pelas intenes iniciais e pretenso

projeto de sentido do intrprete, que vai sendo revisado em alguns pontos e confirmado em

outros na medida em que a pesquisa avana. Ento, para evitar a confuso entre o Plato

histrico e a nossa interpretao do Livro I da Repblica, objeto deste trabalho, faz-se

fundamental que, no incio do captulo I, exponhamos o que motivou nossa investigao, fato

que necessariamente impregna a leitura que se apresenta. Eis ento que se considerar o

problema jurdico que impulsionou essa investigao sobre o Livro I da Repblica de Plato.

Ainda hoje se fazem presentes questes sobre os fundamentos do conceito de justia

e as relaes desse conceito com o direito posto, com o poder poltico (hoje encarnado

parcialmente na figura do Estado Moderno) e com a aplicao da lei. Nos debates

contemporneos de Filosofia do Direito essa relao recebe algum destaque no sculo XXI

por causa da ascenso do que parte da doutrina jurdica convencionou chamar de ps-

positivismo jurdico (Cf. BARROSO, 2005, p. 15 e MARMELSTEIN, 2014, p. 9), que,

buscando revisar a aplicao do direito para melhor concretizar os direitos fundamentais em

reao aos abusos realizados por vrios Estados do sculo XX, traz discusses sobre valores e

princpios para dentro da anlise tcnica do fazer jurdico, o que remete pergunta presente

no Livro I da Repblica: o que justia?.

Acompanhando a distino consagrada pelo constitucionalista portugus J. J.

Canotilho (2003, p. 1195), pode-se dizer que surgiu no cenrio global uma ciso na

27

hermenutica jurdica constitucional entre os por ele chamados de interpretativistas e de no-

interpretativistas, que se diferem conforme descrio abaixo.

Os primeiros, embora no se resumam a meros interpretes literalistas das

constituies nacionais, compreendem o Direito Constitucional como reduzido textura

semntica ao menos claramente implcita no texto constitucional e tomam essa posio para

garantia do princpio democrtico na feitura da lei, tudo isso na tentativa de diminuir e

efetivamente limitar a autonomia dos juzes nas decises, ou seja, para aproximarem as

decises jurdicas finais das intenes iniciais dos parlamentares eleitos que confeccionaram a

Constituio e as demais normas.

Os no-interpretativistas, ao contrrio, ou julgam axiologicamente positiva a insero

da disputa de princpios constitucionais no fazer jurdico, ou at julgam tal insero

problemtica, entretanto, acreditam que o comportamento humano valorativo (consciente ou

inconsciente) no fazer jurdico ontologicamente necessrio e, portanto, inevitvel mesmo

que os juzes se esforcem para evit-lo. Por essa razo, os no-interpretativistas entendem que

seria at mesmo temerrio que a doutrina jurdica no se debruasse sobre o problema da

relao entre axiologia e norma, sob pena de mascarar o problema do avano dos valores

sobre o sistema normativo como se ele no existisse, o que s poderia agravar as dificuldades

advindas desse que seria um fato humano.

No contexto brasileiro a entrada dos valores nos debates jurdicos por importaes

estrangeiras, sobretudo atravs da doutrina da ponderao do alemo Robert Alexy e da

doutrina do ativismo judicial norte americana, vem gerando alguma discusso e resistncia de

nomes de peso como Luiz Lenio Streck (2014, p. 48) da Unissinos no Rio Grande do Sul e

Marcelo Neves (2013, p. 43) da Universidade de Braslia, que escrevem sobre a banalizao

do apelo aos princpios no cenrio jurdico nacional e buscam repensar o problema, cada um a

seu modo.

A reinsero do valor no direito estimula a volta dos olhos s bases das discusses

sobre o tema do conceito de justia at a raiz do pensamento filosfico e s bases do debate

feito na Atenas democrtica. As dificuldades apresentadas no Livro I da Repblica podem ser

utilizadas como um primeiro ponto de discusso e reflexo entre noes acerca de como se

deve definir o que o direito em uma comunidade jurdica, mesmo em nosso tempo. Essa foi

parte importante da nossa motivao para essa dissertao.

28

Por outro lado, para alm dessa dimenso de extratemporalidade do texto que motiva

a delimitao do presente trabalho, j no tocante exegese propriamente dita da obra clssica,

h muitos elementos nos textos platnicos para que se estabelea uma leitura dos Dilogos a

partir da discusso tica e da relao que a tica tem com a atividade poltica em que est

inserida a personagem Scrates, seja por causa da constante presena na obra platnica do

destino representado do Scrates histrico e da respectiva injustia da sentena que o

condena, seja porque a personagem Scrates em seus discursos insistentemente se volta ao

tema do justo, da virtude, do bem e da relao da atividade filosfica com a poltica,

tematizao intertextual que s pode ser compreendida com uma anlise da opo de Plato

por escrever sobre filosofia sob a forma do que Aristteles chamou de .

Por todo o exposto, para compreender como esse texto do Livro I da Repblica

adquire um significado mais amplo no contexto do corpus platonicum necessrio conhecer

um pouco desse estilo de escrita de Plato em Dilogos, pois assim possvel perceber que

seu potencial comunicativo se d pela via no s das discusses, mas tambm pelas

representaes narrativas que remetem a fatos histricos. Nos Dilogos, as expresses

poticas da descrio da vida de Scrates e da narrativa de suas aes prticas se relacionam

com o contedo das discusses. Para se notar isso necessria uma breve anlise sobre o que

so os , uma discusso sobre sua caracterstica potica e tambm sobre o

papel tico que esse tipo de escrita tem.

1.2. A opo de Plato pelos e nossa opo de leitura

Os Dilogos atribudos a Plato so construdos em uma forma que se convencionou

chamar a partir de Aristteles (Po. 1447a-b) pelo nome de , simplesmente

os discursos socrticos, que, como ele diz na Potica, eram, ao lado dos 14

de Sfron e

Xenrcos, modos de arte imitativa que poderiam ser apresentados em prosa ou em verso e no

tinham nenhum nome especfico at ento. Digenes Larcio, que muito posterior, afirma

em sua narrativa biogrfica que os de Sfron podem ter inclusive fornecido inspirao a

Plato, j que, segundo Larcio (D.L. Livro III, 18), Plato teria sido o primeiro a introduzi-

los em Atenas, adaptando algumas das suas prprias personagens ao estilo de Sfron. Essa

narrativa de Larcio refora o parentesco dos escritos platnicos com a poesia mimtica,

14

A palavra no caso se refere a uma espcie de mini-drama da vida cotidiana, substantivo relacionado com o verbo que significa imitar, reproduzir ou representar (MALHADAS, DEZOTTI, NEVES, 2008).

29

embora seja importante destacar que a concluso acerca desse parentesco algo que, ao

menos do ponto de vista conceitual, independe da narrativa do bigrafo.

Para Aristteles (Po. 1447b) no a mtrica que caracteriza a poesia, mas a

(pt. processo de fazer imitao). Essa opo de definio naturalmente se aproxima da

definio admitida na Repblica a partir da qual Scrates faz crticas potica. Digenes

Larcio (D.L. Livro III, 37), por sua vez, afirma que Aristteles definiria o estilo de Plato

como um estilo entre prosa e poesia, o que talvez queira significar que Larcio entende que

Aristteles considera nos Dilogos do corpus platonicum a forma em prosa ao mesmo tempo

em que revela seu contedo mimtico, a imitao artstica tpica, para Aristteles, do que

potico. , portanto, de se frisar que se Aristteles relata os como unidades

pertencentes a um tipo de elaborao potica que arte mimtica e evidentemente a

Repblica um deles, ento a Repblica, onde consta uma crtica mimtica, exemplo de

uma arte mimtica.

No texto da prpria Repblica, especificamente nos livros II, III e X, a arte potica

caracterizada como mimtica e criticada por isso, j que a estaria na origem de uma

corrupo da (pt. psykh, ou alma). Tal crtica da personagem Scrates pode fazer

emergir um desconforto imediato em relao ao fato de que a crtica potica feita em uma

obra conceitualmente potica. Entretanto, a crtica poesia na Repblica precisa ser analisada

com considerao sua complexidade e no como uma dogmtica crtica a em geral.

Como diz Jos Trindade Santos (2010, p. 143): quem substitui a leitura dos dilogos

pela memorizao das teorias platnicas s pode ler Plato dogmaticamente e se a crtica

na Repblica for lida como simples crtica dogmtica poesia em qualquer caso de

elaborao de obra mimtica, isso implicaria em uma contradio to gritante que no

minimamente plausvel admitir que interpret-la assim seja uma opo razovel.

Para analisar a crtica poesia mimtica presente na Repblica oportuno notar a

funo desse tipo de arte que fica implicitamente protegida do ataque pela escolha do autor da

Repblica em escrever , que so elaboraes conceitualmente mimticas.

preciso, portanto, analisar o que estabelece os como textos de um tipo com

caractersticas prprias. Isso nos conduz necessidade de analisar uma das funes retricas

(talvez a principal) desse tipo de escrito, funo que esclarecida por Aristteles na Retrica.

Quando Aristteles (Rh. 1416b-1417a) na Retrica vai falar da (pt.

narrativa) enquanto modalidade de discurso retrico, ele usa os chamados

30

como exemplos de discursos nos quais o carter comportamental importante do mesmo

modo que deve ser importante nas narrativas retricas. O trecho em que os

so usados merece transcrio direta (Rh. 1417a):

: , .

, ,

: ,

, : .

que a conduta tica recai sobre a narrativa e assim ser se soubermos o que produz

a conduta tica. Um modo de fazer isso mostrar uma escolha. A conduta tica do

tipo que essa escolha e a escolha do mesmo tipo daquilo que no fim se realiza.

Por isso os discursos matemticos no tm conduta tica, j que nem tm escolhas

, mas os Scrticos tm, pois sobre isso que

falam.

Quando uma deliberao espontnea feita e uma escolha tomada esse processo

chamado (pt. deliberao). A contm uma mensagem tica, j que

determinadas escolhas de personagens apresentam a finalidade a que se destina a ao, o

. Por sua vez, a conduta tida como boa15

se a deliberao do agente tem como objetivo

uma boa realizao. Assim, segundo Aristteles, os representam aes ou

escolhas de personagens, sendo representaes de escolhas reais que significam uma atitude

tica.

Logo em seguida, ainda tratando do tema das caractersticas da tica na narrativa,

Aristteles menciona que confuso comum acharem que a atitude tica a atitude da pessoa

que (pt. racionalmente prudente), quando na verdade, diz ele, o homem

(pt. bom) aquele que procura (pt. o melhor) e no (pt. o favorvel).

Leia-se o trecho (Rh. 1417a):

, , :

: : , :

: ,

.

E no se deve falar que pelo raciocnio, como fazem hoje, mas pela deliberao.

Eu desejei e por isso escolhi deliberadamente e se no me trouxer vantagem, tudo

bem, escolhi o melhor so respectivamente o prprio do prudente e o prprio do

15

As relaes entre finalidade e o bom no pensamento de Aristteles so discutidas em vrias partes de sua obra e no tocante tica em especial na tica a Nicmaco. Para uma introduo ao tema que relaciona o texto de

tica a Nicmaco com a tica a Eudemo e Magna moralia vale conferir o texto de Ursula Wolf (2013) nomeado

Nikomachische ethik, traduzido para o portugus por nio Paulo Giachini e publicado pela Edies Loyola.

31

bom. Aquilo (primeiro) prprio do prudente, pois prprio dele correr em direo

ao lucrativo, enquanto prprio do bom buscar o belo.

Essas noes aristotlicas acerca da caracterstica tica nos e do

que no entender dele significa o bem agir nos ajudam a compreender a finalidade dos

Dilogos, tendo em vista a constante expresso socrtica de que s se faz o mal por

ignorncia16

.

A noo socrtica de unio entre o mal e a ignorncia presente em mais de um

dilogo faz unir no polo avesso ao mal/ignorante o conceito de homem prudente ao conceito

de homem bom. E essa caracterstica da personagem de juntar a bondade prudncia est

presente tambm no Livro I da Repblica.

Nesse Livro e, sobretudo, no seu pice conflituoso, quando esto no primeiro plano

Trasmaco e Scrates, o texto se reveste do conflito entre agir justamente e perseguir o

lucrativo, pois para Trasmaco tais atitudes so coisas completamente separadas e at opostas.

O conflito semntico vira conflito tico justamente porque a depender do quo convincente

so os usos retricos sobre o termo justia, as alegaes de Trasmaco podem conduzir o

leitor a rejeitar uma vida em que se queira produzir o bem alheio, em favor de uma na qual se

aplique a busca da maximizao do ganho prprio. As personagens no esto fazendo apenas

opes semnticas, mas tambm ticas.

Tendo isso em vista, preciso ler os Dilogos notando que as decises sobre

conceituao das palavras implicam em determinaes da prtica. As opes retricas e

defesas apologticas de determinados conceitos ocorrem dentro de representaes em cenas

da vida cotidiana numa expresso mimtica do real (no caso, uma conversa na casa de um

velho senhor) e precisam ser notadas como atitudes de fato ticas dentro de uma narrativa

potica. Isso significa que por trs das definies h tambm um modo de agir diante do

mundo e talvez mais do que em outros Dilogos do corpus no Livro I da Repblica isso esteja

bem claro. Por isso, de se concluir que a crtica poesia presente na Repblica no uma

crtica dogmtica poesia, mas uma crtica a determinado uso da arte mimtica que conduz os

seres humanos m ao, o que tem tudo a ver com os debates sobre justia que inauguram o

texto da Repblica e tambm o encerram.

16

Para um estudo especfico sobre o tema a partir do paradigma que no adotamos, que considera importante a diviso da obra platnica em 3 etapas evolutivas de produo, cf. Socratic Ignorance de Gareth B. Mathews,

publicado em A companion to Plato, livro editado por Hugh H. Benson (2006).

32

1.3. A crtica poesia e a relao com o tema do Livro I: o bem agir

A crtica poesia deve ser considerada em sua funo normativa, relacionada tica,

e em sua faceta ontolgica, relacionada s Formas e Ideia de Bem. Na funo normativa,

que nos interessa no presente trabalho, a crtica imitao a crtica imitao das aes

inadequadas, como fica bastante claro nos Livros II e III da Repblica. A arte tem um grande

potencial de provocar tambm no espectador o impulso para sua imitao e quando a m

conduta representada como adequada, isso promove a m conduta do espectador

impulsionado a imit-la. Em vrios trechos dos Livros II e III esse ponto claro e em uma

leitura integral dessa parte seria possvel dar vrios motivos para justificar essa interpretao.

No caso de nosso trabalho, cabe apenas a citao de dois trechos da obra para

evidenciar o nosso ponto. Um dos trechos est no Livro II em que Scrates diz como

deveriam ser as , as argumentaes sobre o divino, ou discursos acerca do divino,

ou, mais literalmente, as teologias da . Para Scrates, tais discursos devem

vincular o divino ao que bom e nunca ao que ruim. O outro trecho est no Livro III em que

Scrates critica as narrativas em que Teseu e Pirto so representados como responsveis por

raptos, eis que ali Scrates retoma o argumento do Livro II que acabamos de mencionar sobre

a inadequao de representar o divino fazendo coisas ruins.

No trecho do Livro II Scrates diz que os debatedores, como fundadores de uma

cidade, devem estabelecer modelos que guiaro os que desejarem criar os (pt. mitos,

entendidos aqui, sem sentido pejorativo, como narrativas comuns da cultura) da e

mais especificamente as (pt. discursos sobre o divino). Em razo de os jovens no

serem capazes de distinguir uma (pt. conjectura) do que no o , diz Scrates,

necessrio que os mitos e discursos sobre o divino tenham como modelo o bem. O dilogo se

d nos termos abaixo (R. 378d-379b):

,

:

.

, , . ,

, ;

: , ,

:

, ,

.

33

, : , ;

, : , ,

.

.

;

;

: ;

.

;

.

;

.

- Um jovem no distingue o que conjectura e o que no . Ao contrrio, nessa

idade aquilo que recebem nas opinies se torna uma inclinao afetiva difcil de

apagar e mesmo imutvel. Ento, em consequncia disso, talvez acima de tudo, a

primeira coisa a ser feita que escutem a mais bela narrao mitolgica sobre a

virtude que se pode escutar.

- Sustenta-se, - disse, - esse discurso. Mas e se, em seguida, um desses perguntar

para ns o que significa isso que dissemos e quais so os mitos a que nos referimos,

ento o que poderemos falar?

E eu disse: - Adimanto, eu e voc no somos poetas nesse ponto em que estou, mas

fundadores da cidade. Aos fundadores concerne saber os modelos em face dos quais

devem os poetas fazer mitos e, alm disso, que se eles fizerem a poesia no

permitida a eles no ser permitido serem criadores de mitos.

- Certamente, - disse ele, - mas e isso aqui: quais os modelos acerca dos discursos

sobre o divino que podem existir?

- Alguma coisa como o que segue, - disse eu, - pois o divino por acaso de dada

forma. Indubitavelmente sempre se deve refrir a essa forma, seja composto o poema

em provrbio pico, seja em lrica, seja em tragdia.

- Deve sim.

- Em acordo com isso, aquele que divino em essncia bom e isso que se diz dele?

- Sim. E agora?

- Mas nada que (advindo) do bom prejudicial, ou ?

34

- A mim parece que no.

- Acaso ento o que no prejudicial causa dano?

- De modo algum.

- O que no prejudicial faz um mal?

- Nem isso.

Assim, consolida Scrates no Livro II que na os mitos no podem atribuir

aes prejudiciais ao divino. Por sua vez, o trecho do Livro III que critica a atribuio de

atitudes criminosas aos seres divinos sintetiza novamente a perspectiva tica na crtica

mimtica e faz isso remetendo a essa discusso acima (R. 391e):

:

.

;

: ,

- E isso (ou seja, representar seres divinos em atitudes criminosas) no divino nem

verdadeiro, j que exibimos em algum lugar que dos deuses no possvel surgir o

mal.

- Isso. E como no seria assim?

- E para aqueles que ouvem, isso (ou seja, a representao de seres divinos em

atitudes criminosas) prejudicial. Pois qualquer um tolerar para si prprio a posse

de uma essncia m ao ser persuadido de que aqueles (deuses) por acaso praticam e

praticavam (o mal).

Perceba que no a nem a em si que est em xeque, mas como a arte

mimtica tem sido utilizada, ignorando-se a vocao tica dessas produes artsticas e isso

visto claramente no s no Livro II e III, mas tambm no Livro X da Repblica em que

Scrates diz que h uma antiga , ou seja, uma antiga briga

entre filosofia e poesia (R. 607b-c) a que ele passa a se referir a partir desse trecho.

Em nvel de contextualizao, cabe dizer que os exemplos classicamente citados

como reflexos comprovados do embate antigo mencionado por Scrates na Repblica so o

fragmento atribudo a Herclito de feso (cf. DK. 22b42), que diz que Homero merecia ser

expulso e apanhar e os fragmentos atribudos a Xenfanes de Clofon (vide DK. 21b11, b12,

b14, b15, b16, b23), em que se afirma que os deuses so humanizados nas poesias de Homero

35

e Hesodo fazendo coisas condenveis17

, atitude dos poetas que os fragmentos de Xenfanes

criticam exaustivamente. A aproximao entre a crtica de Xenfanes e a crtica do Livro II e

III da Repblica18

pode pressionar a concluses preciptadas sobre a influncia de Xenfanes

em Plato, que embora possvel talvez no tenha respaldo filolgico.

Por outro lado, cabe-nos mencionar que no tocante interpretao desse trecho h

quem diga que essa antiga querela mencionada por Scrates sequer existe do ponto de vista

histrico. J que as supostas falas de poetas contra filsofos que Scrates cita so

irreconhecveis, isso leva alguns intrpretes, como Glenn W. Most (2010, p. 129 a 153), a

sustentarem que a antiguidade da querela e os ataques de poetas filosofia so parte de uma

inveno retrica de Plato.

Para ns, entretanto, tais questes no importam, porque no tangem o nosso debate.

S nos referimos ao ponto porque no se deve ignorar o trecho imediatamente seguinte

citao de Scrates dessa intriga antiga, pois ela confere ao significado da suposta querela

dentro do contexto especfico da Repblica a caracterstica de uma preocupao

explicitamente tica e isso se deve excesso concedida por Scrates na sua crtica poesia

quando ele a ameniza ao dizer que a poesia deve ser permitida na caso incorpore

em seus discursos a conduo boa atitude (R. 607c):

,

, , ,

:

.

Mesmo assim, apesar de ns de fato afirmarmos isso, se trouxer um discurso

expresso visando ao prazer potico e trouxer a mimtica, mas uma que ao existir

faa recair sobre a prpria cidade uma boa ordenao, ento, gratificados ns

receberemos esses poetas, j que sabemos bem que para ns mesmos essas coisas

so encantadoras por si prprias. Mas no seria piedoso desistir da nossa opinio

sobre o verdadeiro. (Grifo nosso).

Ao lembrarmos que desde o Livro II a uma metfora para o indivduo,

de se perceber que Scrates est defendendo por via da figura de linguagem da cidade que

17

importante destacar que famosa a posio de Harold Cherniss (1951, p. 335) que afirmou que Xenfanes seria de fato apenas um poeta e rapsodo e que figura eventualmente como filsofo por um erro da histria da

filosofia. Embora discordemos frontalmente desse posicionamento, esse tipo de conflito no nos interessa no

presente trabalho e por isso o fato apenas merece meno. 18

Para uma anlise mais detida da figura de Xenfanes e inclusive do reaparecimento de elementos de textos atribudos a Xenfanes na filosofia de Plato presente na Repblica vide o livro de James H. Lesher (2003)

nomeado Xenophanes of Colophon: Fragments.

36

deve ser permitida na psykh a entrada de determinadas narrativas poticas, caso, claro, tais

narrativas orietem a psykh para uma , que no pode ser alcanada pela imitao de

personagens que conduzam inadequadamente a psykh para longe do bem. Alm disso, a

conduo ao bem agir no possvel atravs de narrativas que, por exemplo, faam temer

inadequadamente o Hades, como o caso das sete citaes de Homero feitas no incio do

Livro III da Repblica (R. 386c a 387b). O problema da poesia que no descontrole criativo,

ou melhor, mimtico, a sua expresso pode simular realidades que conduzem os humanos a

atitudes e relaes com o mundo inadequadas, como, por exemplo, terminarem temendo o

Hades, o que acaba acovardando os cidados, segundo a obra. H uma exaltao para que a

poesia seja feita e aceita quando ela elaborada racionalmente, nesse sentido especfico de

produzir uma conduta boa.

se aproximando desse sentido que Nietzsche, tratando da esttica, em Die Geburt

der Tragdie diz que em Plato a poesia deve ser conscientemente direcionada ao belo e, por

isso, quando no o , a poesia fica tomada ironicamente pelo filsofo grego como uma aptido

de advinhos cegos que conduzem mal a alma da cidade. Para tratar desse princpio do ponto

de vista esttico, Nietzsche faz uma analogia ao princpio tico socrtico de que a conscincia

basta para a ao boa.

Entretanto, embora Nietzsche trate da perspectiva esttica, devemos destacar que no

caso da personagem de Plato, Scrates, a crtica poesia , no mximo, secundariamente

esttica, pois o texto deixa claro que o que incomoda a personagem Scrates a

despreocupao que a elaborao potica tinha com a educao no direcionamento da virtude.

Ento, a elaborao potica na cidade (no se perca o sentido metafrico da cidade em

palavras), segundo o conselho do Scrates da Repblica, deve passar a se preocupar

conscientemente com a inclinao tica.

Vale citar diretamente Nietzsche nesse ponto. Embora o trecho da traduo abaixo

esteja voltado caracterizao de Eurpides como um poeta socrtico, ele pertinente, pois

Nietzsche estabelece parentesco entre Plato a Eurpides justamente por enxergar nos textos

dos dois a concepo da necessidade de reinventar a poesia para em uma nova modalidade

artstica que necessariamente ter por objetivo a criao consciente na direo da elaborao

bela, numa reinveno esttica na arte do que seria paralelo, na tica socrtica, atitude de

promover o ser bom atravs da conscincia humana ou do humano conscientemente apto

(NIETZSCHE, 1992, p. 82):

37

Assim, Eurpides acima de tudo, como poeta, o eco de seus conhecimentos

conscientes; isso precisamente o que lhe confere uma posio to memorvel na

histria da cultura grega. Com respeito sua criao crtico-produtiva, ele deve

amide ter sentido como se estivesse vivificando para o drama o comeo do escrito

de Anaxgoras, cujas primeiras palavras rezam: No princpio tudo estava juntado:

a veio a inteligncia e criou ordem. E se Anaxgoras, com o seu nous, parecia,

dentre os filsofos, o primeiro homem sbrio em meio a um bando de puros

beberres, tambm Eurpides pode ter concebido, sob uma imagem parecida, a sua

relao com os demais poetas da tragdia. Enquanto o nico ordenador e fautor do

todo, o nous, permanecia ainda excludo da criao artstica, tudo continuava

juntado, em uma catica massa primeva; assim devia Eurpides julgar; assim devia

ele, como primeiro homem sbrio, condenar os poetas bbados. Aquilo que

Sfocles disse de squilo, ou seja, que ele fazia o correto, embora

inconscientemente, no foi dito decerto no sentido de Eurpides, o qual, quando

muito, teria admitido que squilo, porque ele criava inconscientemente, criava o

incorreto. Tambm o divino Plato fala, quase sempre com ironia, da faculdade

criadora do poeta, na medida em que ela no discernimento [Einsicht] consciente,

e a equipara aptido do adivinho e do intrprete de sonhos; posto que o poeta no

capaz de poetar enquanto no ficar inconsciente e nenhuma inteligncia residir mais

nele. Eurpides se encarregou, como tambm Plato o fizera, de mostrar a

contraparte do poeta irracional; o seu princpio esttico, tudo deve ser consciente

para ser belo, , como j disse, o lema paralelo ao princpio socrtico: Tudo deve

ser consciente para ser bom19.

Por isso, para Nietzsche (1992, p. 88), Plato elabora uma nova arte composta da

influncia das anteriores que resulta em um tipo esttico que Nietzsche chama, com tom

claramente crtico, de prottipo de romance, caracterizado pelo que ele nomeia de

intensificao da fbula espica, pela justia potica e seu deus ex machina, todos esses

aspectos relacionados com o otimismo da conscincia que tambm representado nas

mximas socrticas virtude saber, s se faz o ruim por ignorncia e o virtuoso o mais

19

Trabalhar as semelhanas entre Plato e Eurpides nos usos retricos da poesia para divulgao de ideias sobre a justia, centrando nos problemas de interseco entre o poder e o justo tambm na tragdia de Eurpedes seria

um tema de pesquisa oportuno, entretanto, avanar sobre esse tema impossvel ao presente trabalho. Cabe

apenas fazer a citao de trechos de Eurpedes que servem para apontar que h alguma pertinncia em ligar

Plato a Eurpedes no tocante especificamente estruturao retrica do contedo a favor da boa conduta, pois

ambos utilizam a arte e o mito acerca do divino para indicarem condutas entenditas como devidas ao humano.

Por exemplo, no Ion (v. 439-440) a personagem homnima diz que se Apolo tem poder, ento persegue o

bem, em Hracles (v. 1341-1346) o semi-deus diz que deuses no se casam nem muito menos cometem

adultrio, pois um deus, se deus de verdadeiramente, no carece de nada. Bellerofonte (Fr. 292) atribui a

Eurpedes trecho que indica essa mesma preocupao com a pureza dos deuses: se os deuses so maus ento

eles no so deuses. Por fim, a conscincia sobre a utilizao da arte com uma finalidade tica pode ser

entrevista na fala do coro em Electra (v. 743-744) que anuncia que histrias assustadoras beneficiam os mortais

por encoraj-los a orar aos deuses. Esses trechos foram compilados no texto de Willian Allan (2006, p. 76) que

consta em A companion to Greek tragedy organizado por Justina Gregory.

38

feliz. No ponto, nos interessa menos a questo esttica e mais a funo tico-retrica da nova

elaborao de Plato e, sobretudo, como essas mximas socrticas (conforme as chama

Nietzsche) integram o discurso do Scrates de Plato no Livro I da Repblica.

Segundo Gabriele Cornelli (2010, p. 76) em texto publicado na Revista do Programa

de Ps-Graduao em Arte da UnB, Nietzsche adequadamente aponta a estreita relao de

Plato com a tragdia desde o Die Geburt der Tragdi, contudo opta Nietzsche por uma

leitura anti-platnica da qual o Corelli se afasta. Trabalhemos um pouco com a posio desse

autor.

Cornelli (2010, p. 77) interpreta a crtica de Plato alma trgica atravs de sua

leitura de que Plato sofreu influncia da tradio rfico-pitagrica, na qual a psykh

investida de valncia moral e religiosa, o que, em seu entender, diferente da tradio

homrica, em que a alma designada como um duplo plido do ser humano (Il. XI, 222).

Nesse texto, Cornelli aponta que os movimentos rficos e pitagricos so marcados

pela negao da poltica em uma profundidade antropolgica tamanha a ponto de negarem

tambm a temporalidade e o prprio corpo cidado atravs de suas doutrinas da existncia

humana para alm desse corpo e desse tempo, situando tal existncia humana na psykh e

adotando um conceito de alma que a personagem Scrates ineditamente tentaria harmonizar

com a cidade atravs de sua atividade de mdico da alma (Prot. 313e), o que no est presente

na tragdia no entender de Cornelli (2010, p. 77).

Nessa linha, a tragdia frequentemente revelaria o desajuste profundo no interior da

psykh, aquele desajuste que traz consequncias nefastas para o homem no interior da polis.

Na tragdia, a psykh no consegue estruturar a escapatria do fluxo da ao do mundo por

no ser apta a vencer determinadas foras que sobre ela se determinam e ento ela esmagada

pela opresso do destino inevitvel (CORNELLI, 2010, p. 79).

dipo ou Medeia, para citarmos os exemplos que cita Cornelli, esto condenados

desde o princpio e nada em absoluto poderia ser feito para reverter sua concluso trgica. Os

males sociais como a (pt. conflito proveniente da discrdia, ou, menos dramaticamente,

da discordncia) e a (pt. dissidncia que culmina em cisma) manifestam-se em

comunidade emergindo a partir de realidades onticas inafastveis da condio humana do

indivduo, como a pulsante (pt. descomedimento, confiana excessiva) e a

(pt. insaciabilidade), ambas inscritas na psykh. Para o esprito trgico no h pacificidade

entre a cidade a alma e, portanto, j que no h escapatria ao destino trgico, no h tambm

39

espao para o sucesso da autonomia moral socrtica (CORNELLI, 2010, p. 80), que vincula o

agir bem conscincia sobre o bem.

Na Repblica, a comdia e a tragdia, imitaes ditas no teis boa educao, so

criticadas diretamente no Livro III (R. 395a e sg.), sendo proibidas na educao do guardio

na . Alm disso, ainda no Livro III, a imitao absoluta considerada imprpria

para toda sua populao (R. 397e e sg.). Para Corneli, o motivo da rejeio claro: no se

quer homens duplos ou mltiplos, ento a nica imitao plausvel para a cidade ideal a dos

costumes e leis da polis ideal. Portanto, apesar da crtica imitao, a imitao das atitudes

ditas como adequadas considerada excelente e nas Leis at mesmo dito metaforicamente

que a constituio da polis por eles ali elaborada na medida do possvel uma tragdia

belssima e excelente.

A citao do trecho de Leis esclarece que, pelo menos no tocante quela obra, o

problema da tragdia envolve o que os trgicos defendem nas entrelinhas de suas cenas, ou

seja, algo antagnico a determinada conduta que preferida pelos debatedores de Leis, de

modo que a tragdia levaria os cidados a negarem as normas idealizadas por aquelas

personagens (Lg. 817b-c):

, , ,

:

,

. , ,

,

, :

, ,

,

,

.

- Excelentes estrangeiros, - diria, - ns prprios somos, na medida do possvel,

poetas de uma tragdia que superlativamente bela e ao mesmo tempo excelente. A

nossa Politeia inteira combina a imitao da mais bela e da mais excelente vida. O

que, de fato, ns dizemos ser realmente a mais verdadeira das tragdias. Portanto, se

vocs so poetas, tambm somos desses poetas, s que vocs so rivais na arte e

antagonistas do mais belo drama, que somente a norma verdadeira competente

para criar. Pois pelo menos essa a nossa expectativa: no pense que ns facilmente

em algum momento permitiremos que vocs se banqueteiem e introduzam na gora

simulaes com vozes belas, emitindo tambm som maior do que o nosso,

40

transformando nosso falar na gora se consolidando pa