rawls_o liberalismo político

Upload: bia-machado

Post on 08-Jul-2015

823 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

)OHNRAWLS

o

LIBERALISMO POLTICOTRADUODINAH DE ABREU AZEVEDO

REVISO DA TRADUOLVARO DE VITA

2 edio 2' impresso

SRIE

TEMAS

Volume 73 Filosofia e poltica 1993 Columbia University Press

Esta edio teve o apoio do Instituto Teotnio Vilela.

Editor Fernando Paixo Editor assistente Antivan Guimares Mendes Reviso Mrcio Guimares Arajo Mrcia Nboa Leme Sandra Brazil (coord.) Editor de arte Marcello Arajo Editora de arte assistente Suzana Laub Paginaro eletrnica Estdio O . L M . Impresso nas oficinas da Grfica Palas Athena I S B N 85-08-07394/1

2000 Todos os direitos reservados pela Editora tica Rua Baro de Iguape, 110 - Liberdade C E P 01507-900 - So Paulo, SP Caixa Postal 2937 - C E P 01065-970, So Paulo - SP Tel.: (0_11) 3346-3000 - Fax: (0_11) 3277-4146 Internet: http://www.atica.com.br e-mail: [email protected]

A P R E S E N T A O

O termo liberal no t e m nos Estados Unidos a mesma acepo que lhe atribuda entre ns e na Europa. Os conservadores norte-americanos entendem-no como sinnimo de socialista, o que tampouco faz sentido no Brasil. O socialismo ocidental, embora acalentasse a i l u so da sociedade sem classes e lutasse pela estatizao da economia, sempre se ateve aos l i m i t e s impostos pelo sistema democrtico representativo (ao contrrio do socialismo oriental, que aderiu ao totalitarismo e passou a ser conhecido como comunismo, justamente para no c o n f u n d i - l o com o socialismo). N o s Estados U n i d o s , nunca houve m o v i m e n t o expressivo em favor da criao de qualquer espcie de Estado empresrio. A corrente forte (liberal, em grande m e d i da identificada com o Partido Democrata) caracteriza-se pela adoo de mecanismos oficiais destinados a promover a elevao dos padres de renda da m i n o r i a que no consegue faz-lo atravs do mercado (New Deal de Roosevelt; Big Society de Lyndon Johnson etc.). Assim sendo, ela mais se assemelha social-democracia europia, ainda que esta s se tenha oficializado no Congresso de Godsberg (novembro de 1 9 5 9 ) , do P a r t i d o Social-Democrata A l e m o , que rompe com o marxismo e renuncia sociedade sem classes, se bem que sem a b d i car de uma certa igualdade de resultados (o compromisso dos liberais com a igualdade de oportunidades). O liberal americano pode, pois, ser qualificado de social-democrata. Os liberais estadunidenses so chamados de conservative ou new-conservative, dispondo de grande i n fluncia no Partido Republicano. Tampouco poderiam ser i d e n t i f i cados c o m os conservadores, que so t a m b m m u i t o atuantes, mas c u l t i v a m faixa prpria. 5

O

L I B E R A L I S M O

P O L I T I C O

A digresso precedente vem a propsito deste l i v r o que se denomina Liberalismo poltico. Seu autor u m autntico liberal, na acepo acima caracterizada, sendo portanto legtimo caracteriz-lo como social-democrata. John Rawls (nascido em 1921), professor em H a r v a r d , alcanou grande nomeada com a publicao, em 1 9 7 1 , do livro Uma teoria da justia. Naquela oportunidade, avanou a hiptese de que a justia diria respeito ao conjunto da vida humana, e no apenas a u m de seus segmentos. Deveria repousar n u m princpio igualitrio ass i m f o r m u l a d o : "todos os valores sociais liberdade e o p o r t u n i d a de, progressos e riquezas e as bases do respeito a si mesmo devem distribuir-se igualmente, a menos que uma distribuio desigual de quaisquer e de todos esses bens seja vantajosa para todos". Rawls pretende, assim, ter chegado apreenso de u m princpio bsico ( " A justia a p r i m e i r a v i r t u d e das instituies sociais, como a verdade o de todos os sistemas de pensamento"), a partir do qual seria possvel reorganizar a vida social. O i g u a l i t a r i s m o de Rawls veio dar novo alento aos social-democratas (liberais) americanos. C o m o , em 1965, as famlias consideradas pobres compusessem 17,3% da populao, o nvel mais alto da histria americana, a celeuma provocada pelo fato levou o presidente em exerccio (Lyndon Johnson) a lanar novos programas de assistncia, em decorrncia do que os dispndios correspondentes rapidamente alcanaram montantes da ordem de US$ 4 0 0 bilhes anuais. Ocorre que a iniciativa no resultou na reduo daquele c o n t i n g e n te. A o contrrio disso, emergiu o fenmeno das famlias com u m nico chefe (basicamente mes solteiras), cujos filhos i r i a m sucessivamente engrossar as fileiras de drogados e delinqentes. O i g u a l i t a r i s m o entra em declnio e o clamor pela reforma desse sistema ganha fora (conseguiu, como sabemos, i n t r o d u z i r diversas mudanas, inclusive com o apoio dos chamados new democrats, corrente com crescente i n fluncia no Partido Democrata que, de u m a certa forma, aproximava-se da insistncia republicana em p r o l da revitalizao dos valores tradicionais da sociedade americana). Reivindica-se a paternidade responsvel, que os programas de assistncia social oficiais acabaram por enfraquecer. Nesse contexto que a obra Uma teoria da justia de 6

A P R E S E N T A O

Rawls atuou no sentido de reagrupar e fortalecer os liberais (socialdemocratas). O livro mereceu grande acolhida no apenas nos Estados U n i d o s , mas t a m b m na Europa, onde foi saudado sobretudo pelos socialistas e social-democratas. 0 liberalismo poltico, ttulo p u b l i c a d o o r i g i n a l m e n t e em 1993, e que agora passa a integrar a Coleo Pensamento Social-Democrata, busca no apenas responder s objees suscitadas por Uma teoria da justia, como tambm aplic-la poltica. A questo que o autor pretende responder diz respeito estabilidade das instituies democrtico-representativas diante das grandes divergncias existentes na sociedade. M e d i a n t e a identificao das estruturas sociais em que se apoia aquela estabilidade, os social-democratas {liberais) estaro em condies de indicar que caminhos devem ser seguidos, a f i m de assegur-la no futuro. N a viso de Rawls, a permanncia do sistema depende da existncia de consenso social acerca de determinadas questes. Para d i s t i n g u i - l o das simples convenes habituais, denomina-o consenso sobreposto (overlapping consensus). O consenso sobreposto assegura a convivncia entre as diferentes religies. No f o i sempre assim. Antes de ser pactuada a tolerncia religiosa, protestantes e catlicos confrontavam-se de armas na mo. A suposio era que, para sobreviver, u m dos grupos deveria destruir o outro. A aceitao mtua decorreu do estabelecimento de d e t e r m i nado consenso em torno de valores comuns. A s s i m , o consenso sobreposto, na esfera poltica, depende da reduo do c o n f l i t o entre valores. Para t a n t o , necessrio que as e x i gncias de justia no sejam em grande medida conflituosas com os interesses essenciais dos p r i n c i p a i s grupos sociais. Tomando como referncia no a prtica social, mas inferncias de sua doutrina da justia, Rawls entende que o consenso poderia estabelecer-se em torno destas questes: igualdade poltica, igualdade de oportunidades, resp e i t o m t u o e garantia de reciprocidade econmica. C o m exceo desta ltima, as trs primeiras exigncias so aceitas pelas duas p r i n cipais correntes polticas de nosso tempo: o liberalismo e a social-democracia. A ltima, ao apontar na direo do que se convencionou 7

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

denominar de igualdade de resultados, aproxima Rawls do iderio socialista, que, a rigor, veio a ser rejeitado no Ocidente pela experincia social deste sculo. Essa ressalva no i n v a l i d a , n a t u r a l m e n t e , a importncia da tese de Rawls quanto ao imperativo de fixar com clareza os valores em t o r n o dos quais deve ser buscada a coeso social, sem embargo de que as inclinaes e interesses particulares o u de grupos possam manifestar-se livremente. A tolerncia religiosa bem u m exemplo do que se deve entender pelo que Rawls chama de consenso sobreposto. A i n d a em relao a esse tema, estabelece uma distino dotada de plena validade. Trata-se da diferena entre consenso sobreposto e consenso constitucional. Este i n c l u i somente os procedimentos polticos do governo democrtico. O consenso sobreposto reveste-se tanto de intensidade como de extenso. A idia da justia como eqidade que a novidade sugerida por Rawls social-democracia seria uma espcie de pice a ser a t i n g i d o em matria de intensidade. A o mesmo t e m p o , ela deve abranger, sucessivamente, todos os grupos atuantes da sociedade. O foco da extenso, do mesmo modo que da intensidade, corresponde a u m a concepo especfica de justia, tomando a justia como eqidade por modelo exemplar. E m segmentos mais estreitos da sociedade pode dar-se consenso mais especfico, ensejando ainda a emergncia de concepes rivais de justia. A d e m a i s , diferentes concepes liberais (isto , social-democratas) podem ser assumidas por diferentes interesses. Nesta circunstncia, o papel da justia como eqidade tem lugar especial no que se refere obteno do pretendido consenso sobreposto. N a pesquisa que desenvolve a f i m de determinar em que segmentos da vida social repousam a estabilidade poltica e a coeso social, Rawls apresenta ainda estes conceitos bsicos: prioridade do d i r e i t o e do conceito de bem, razo pblica e estrutura bsica. A prioridade indicada traduzir-se-ia no propsito de assegurar a todos o acesso aos bens primrios, cuja lista compreende, alm das liberdades bsicas, nveis de renda aptos a p e r m i t i r o que denomina de bases sociais do auto-respeito. 8

A P R E S E N T A O

A razo pblica corresponde caracterstica de u m povo d e m o crtico: a razo de seus cidados, de onde procede o status da i g u a l cidadania. Sendo apreciada e honrada, no matria de legislao. Como ideal, a concepo de cidadania n u m regime constitucional i n dica como as coisas devem ser. Segundo a f i r m a Rawls, a Suprema Corte, nos Estados Unidos, seria o prottipo da razo pblica. O contedo da razo pblica reporta-se, mais uma vez, ao conceito de justia como eqidade. Especifica, em p r i m e i r o lugar, direitos bsicos, liberdades e oportunidades. E m segundo lugar, d e t e r m i n a prioridade especial para aqueles direitos. E finalmente, indica as medidas capazes de assegur-los a todos os cidados. N o f u n d o , o autor pretende aproximar a vida poltica de valores morais, o que a cincia poltica j vinha destacando, ao assinalar que a tenso entre tica e poltica reduz-se na proporo em que as sociedades i n c o r p o r a m na sua vivncia c o t i d i a n a o respeito aos d i r e i t o s humanos. Por f i m , o l t i m o conceito: estrutura bsica. N o e n t e n d i m e n t o de Rawls, trata-se do c o n j u n t o das diretrizes norteadoras das i n s t i tuies sociais, sobretudo no que se refere diviso das vantagens resultantes das atividades sociais. E m sntese, Rawls no acredita que o mercado possa garantir a justia dos contratos, mesmo que, em seu ponto de partida, haja tomado como referncia a eqidade. Por isso, afirma, necessrio taxar rendas e heranas. A d m i t e que a estrutura social assim concebida afete as expectativas dos indivduos e possa reduzir suas ambies. Sem embargo, supe possvel conciliar essa proposio com a manuteno da eficincia econmica. Transcrevo sua concluso: "a concepo da justia como eqidade se volta para aquele impasse de nossa histria poltica recente que se revela na ausncia de acordo sobre a f o r m a pela qual as instituies bsicas devem ser organizadas para estar em conformidade com a l i berdade e a igualdade dos cidados enquanto pessoas. Desse m o d o , a justia como eqidade dirige-se no t a n t o aos constitucionalistas, mas aos cidados de u m regime constitucional. Apresenta uma m a neira para que eles concebam seu status c o m u m e garantido de cidados iguais e tenta conectar u m a determinada f o r m a de entender a 9

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

liberdade e a igualdade com uma concepo especfica de pessoa que penso ser a f i m s noes compartilhadas e convices essenciais i m plcitas na cultura pblica de uma sociedade democrtica". A obra de Rawls ensejou uma grande discusso nos principais pases do Ocidente, e no s no m u n d o anglo-saxo. Neste, a d o u t r i n a m o r a l aceita desde o incio do sculo X I X consiste em afirmar que, na busca da prpria felicidade (da maneira especfica como a entend e m ) , os indivduos contribuiro para a conquista da felicidade geral. Essa d o u t r i n a f o i denominada de utilitarismo, denominao que de modo a l g u m expressa seu sentido p r i n c i p a l . N a traduo latina, o t e r m o til no expressa o que se t i n h a em mente ao empreg-lo. Referia-se, na verdade, quelas aes eficazes, isto , que se mostrav a m adequadas consecuo dos objetivos visados. N o f u n d o , t e m se a a idia protestante de que o sucesso social seria u m indcio de salvao (a p a r t i r da premissa de que as aes dos indivduos dever i a m ter em vista erigir na terra u m a obra digna da glria de Deus). E, se merece a aprovao de Deus, sua ao benfica para todos (a "mo invisvel" de A d a m S m i t h ) . A experincia concreta revelou duas coisas: 1) o mercado, se cria condies apropriadas para o exerccio da criatividade dos empreendedores e p o r t a n t o do progresso m a t e r i a l , t a m b m engendra crises colossais como a de 1929; 2) a eliminao do mercado com o preconizado e em certa m e d i d a levado prtica pelo socialismo democrtico do Ocidente leva estagnao (a Inglaterra do psguerra o exemplo mais flagrante). A social-democracia (bem como aquilo que entre ns t e m sido den o m i n a d o de l i b e r a l i s m o social) busca u m c a m i n h o que p e r m i t a o mximo de liberdade ao mercado e, ao mesmo t e m p o , o controle e a ingerncia estatais naqueles aspectos que sejam decisivos para a estab i l i d a d e econmica e poltica. Essa busca passa n a t u r a l m e n t e pela aproximao entre m o r a l e poltica, como deseja J o h n Rawls. O sucesso de Tony Blair deve-se em grande medida a seu empenho em recuperar a componente m o r a l do socialismo originrio. C o n t u d o , se aplicado, o i g u a l i t a r i s m o de Rawls p r o d u z i r i a u m grande dissenso social, donde a sua v i r t u a l i m p o s s i b i l i d a d e no sistema democrtico 10

A P R E S E N T A O

representativo, j que d i f i c i l m e n t e encontraria suficiente apoio para ser adotado. N o f u n d o , o que est em discusso o seguinte: no processo de busca de uma posio superadora das limitaes do socialismo, mas preservadora de seu legado (moral) imorredouro, deve a social-democracia manter fidelidade igualdade de resultados} O trabalhismo i n gls j respondeu negativamente a essa pergunta. O nosso voto que a publicao desta obra seminal de J o h n Rawls leve os social-democratas brasileiros a participar desse empolgante debate.

Braslia, janeiro de 1999 Carlos Henrique Cardim

11

O

L I B E R A L I S M O P O L T I C OJOHN RAWLS

Para Anne, Lee, Alec e Liz

S

U

M

A

R

I

O

Introduo

21

PARTE I O LIBERALISMO POLTICO: E L E M E N T O S BSICOSCONFERNCIA I - IDIAS F U N D A M E N T A I S

1. Duas questes fundamentais 2 . A idia de uma concepo poltica de justia 3 . A idia da sociedade como u m sistema eqitativo de cooperao 4 . A idia da posio original 5 . A concepo poltica de pessoa 6 . A idia de sociedade bem-ordenada 7 . N e m comunidade, nem associao 8 . Sobre o uso de concepes abstratasCONFERNCIA II - AS C A P A C I D A D E S DOS CIDADOS E SUA REPRESENTAO

46 53 58 65 72 78 84 87

1. O razovel e o racional 2 . Os limites do juzo 3 . Doutrinas abrangentes e razoveis 4 . A condio de publicidade: seus trs nveis 5 . A u t o n o m i a racional: artificial, no poltica 6 . A u t o n o m i a plena: poltica, no tica

92 98 102 110 116 122 17

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

7 . A base da motivao moral da pessoa 8 . Psicologia moral: filosfica, no psicolgicaCONFERNCIA III - O C O N S T R U T I V I S M O POLTICO

126 132

1. A idia de uma concepo construtivista 2 . O construtivismo moral de K a n t 3- A justia como eqidade enquanto viso construtivista . . . 4 . O papel das concepes de sociedade e pessoa 5 . Trs concepes de objetividade 6 . A objetividade independente da viso causai do conhecimento 7. Quando existem razes objetivas, em termos polticos? 8 . O alcance do construtivismo polticoP A R T E II O L I B E R A L I S M O POLTICO: TRS IDIAS C E N T R A I S CONFERNCIA IV - A IDIA D E U M C O N S E N S O S O B R E P O S T O

135 144 147 153 156 163 165 172

1 . Como o liberalismo poltico possvel? 2 . A questo da estabilidade 3- Trs caractersticas de u m consenso sobreposto 4 . U m consenso sobreposto no indiferente, nem ctico . . 5 . U m a concepo poltica no precisa ser abrangente 6 . Passos para u m consenso constitucional 7. Passos para u m consenso sobreposto 8 . Concepo e doutrinas: como se relacionam entre si? . . . ....

180 186 190 196 200 205 211 216

CONFERNCIA V - A P R I O R I D A D E D O J U S T O E AS IDIAS D O B E M

1 . Como uma concepo poltica l i m i t a as concepes do bem 2 . O bem como racionalidade 3 . Bens primrios e comparaes interpessoais 18 221 223 225

S U M R I O

4 . Os bens primrios enquanto necessidades dos cidados . . 234 5 . Concepes permissveis do bem e virtudes polticas 6 . A justia como eqidade justa em relao s concepes do bem? 7 . O bem da sociedade poltica 8 . A justia como eqidade completaCONFERNCIA V I - A IDIA D E RAZO PBLICA

...

238 243 249 256

1 . As questes e fruns da razo pblica 2 . Razo pblica e o ideal de cidadania democrtica 3 . Razes no-pblicas 4 . O contedo da razo pblica 5 . A idia de elementos constitucionais essenciais 6 . O supremo t r i b u n a l como exemplo de razo pblica 7. As dificuldades aparentes da razo pblica 8 . Os limites da razo pblica PARTE III A ESTRUTURA INSTITUCIONALCONFERNCIA V I I - A E S T R U T U R A BSICA C O M O O B J E T O

262 265 269 272 277 ... 281 291 298

1 . O objeto primeiro da justia 2 . A unidade pela seqncia apropriada 3 . O libertarianismo no a t r i b u i nenhum papel especial estrutura bsica 4 . A importncia da justia bsica 5 . Como a estrutura bsica afeta os indivduos 6 . O acordo inicial como hipottico e no-histrico 7. Caractersticas especiais do acordo inicial 8 . A natureza social das relaes humanas 9- A forma ideal da estrutura bsica 1 0 . Resposta crtica de Hegel

309 311 314 318 321 324 328 331 334 338 19

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

CONFERNCIA VIII - AS L I B E R D A D E S F U N D A M E N T A I S E SUA P R I O R I D A D E

1 . O objetivo inicial da justia como eqidade 2 . O status especial das liberdades fundamentais 3 . Concepes de pessoa e cooperao social 4 . A posio original 5 . A prioridade das liberdades, I : a segunda capacidade moral 6 . A prioridade das liberdades, I I : a primeira capacidade moral 7 . As liberdades fundamentais no so mera formalidade 8 . U m sistema plenamente adequado de liberdades fundamentais 9- Como as liberdades se encaixam n u m sistema coerente 1 0 . A expresso poltica livre 1 1 . A regra do perigo claro e presente 1 2 . A manuteno do valor eqitativo das liberdades polticas 1 3 . As liberdades vinculadas ao segundo princpio 1 4 . O papel da justia como eqidade

344 348 353 359 365 370 380 387 391 397 405 414 421 427

20

I

N T R O D U O

As trs primeiras conferncias deste l i v r o c o i n c i d e m , em termos gerais, com aquelas que apresentei na Universidade de C o l u m b i a em a b r i l de 1980 e foram publicadas, com revises considerveis, no Journal of Philosophy, em setembro daquele ano, c o m o ttulo de " O construtivismo kantiano na teoria m o r a l " . A o longo dos dez anos seguintes, elas foram reescritas e passaram por nova reviso. Acho que esto m u i t o mais claras do que antes, o que no significa que agora estejam totalmente claras. C o n t i n u o chamando de conferncias o que poderia ser chamado de captulos, pois f o i na qualidade de conferncias que eu as concebi, e tento preservar, talvez sem sucesso, u m certo estilo coloquial. Quando as conferncias originais foram proferidas, planejava p u blic-las juntamente com outras trs. U m a delas, " A estrutura bsica como o b j e t o " ( 1 9 7 8 ) , j fora p r o f e r i d a e p u b l i c a d a , enquanto as outras duas, "As liberdades fundamentais e sua prioridade" (1982) e "Unidade social e bens primrios" (1982), estavam esboadas ou prximas de sua concluso. N o entanto, quando essas trs outras conferncias foram finalmente apresentadas, v i que no t i n h a m o t i p o de unidade que eu queria, quer entre si, quer em relao s trs anteriores . Por isso escrevi mais trs dissertaes sobre o liberalismo polti1

co , como agora d e n o m i n o o c o n j u n t o , comeando com " U m a con2

cepo poltica, no metafsica" ( 1 9 8 5 ) , grande parte da q u a l est1. Das conferncias adicionais, as duas primeiras foram reimpressas aqui sem alteraes em VII e VIII. 2. Esse termo usado em "Overlapping Consensus", OxfordJournal of Legal Studies 7 (fevereiro de 1987): 23 s., e "The Priority of Right and Ideas of the Good", Philosophy andPublic Affairs 17 (vero de 1988): 271, 273, 275.

21

O

L I B E R A L I S M O

P O L I T I C O

includa na primeira conferncia, seguida por " A idia de u m consenso sobreposto" (Overlapping Consensus) (1987), " A prioridade do justo e as idias do b e m " (1988) e " O domnio do poltico" (1989). As trs ltimas, consideravelmente refeitas e combinadas, juntamente com " A idia da razo pblica", que aparece aqui pela primeira vez, const i t u e m as trs conferncias finais deste livro. As seis primeiras conferncias esto relacionadas da seguinte m a neira: as trs primeiras apresentam o pano de fundo filosfico do l i beralismo poltico em termos de razo prtica, p r i n c i p a l m e n t e os 1 , 3, 7, 8 da Conferncia I I e todos os da Conferncia I I I , enquanto as trs ltimas discutem mais detalhadamente vrias de suas p r i n cipais idias, como, por exemplo, a idia de u m consenso sobreposto, a idia da prioridade do direito e sua relao com as idias do b e m , e a idia da razo pblica. As conferncias tm agora a unidade temtica desejada, tanto entre si quanto com o esprito e teor de Uma teoria da justia : a idia do liberalismo poltico.0

Os objetivos de Uma teoria da justia foram esboados em seu prefcio ( 2 - 3 ) . A l i , comeo observando que, durante grande parte do perodo moderno da filosofia m o r a l , a viso sistemtica predominante no m u n d o de lngua inglesa sempre f o i alguma forma de u t i l i t a rismo. Isto se deve, entre outras coisas, ao fato de essa viso ter sido representada p o r u m a longa l i n h a g e m de escritores b r i l h a n t e s , de H u m e e A d a m S m i t h a E d g e w o r t h e Sidgwick, que construram u m edifcio intelectual realmente impressionante no que d i z respeito a m p l i t u d e e p r o f u n d i d a d e . E m geral, as objees de seus crticos foram limitadas. Observaram dificuldades com o princpio de u t i l i dade e salientaram discrepncias srias e evidentes entre suas i m p l i caes e nossas convices morais comuns. Mas creio que esses crticos no conseguiram elaborar uma concepo moral vivel e sistemtica que pudesse contrapor-se de fato a esse edifcio. O resultado f o i que nos vimos muitas vezes forados a fazer uma opo entre o u t i l i t a r i s mo e o i n t u i c i o n i s m o racional e, provavelmente, a escolher u m a variante do princpio de u t i l i d a d e restrita e l i m i t a d a por objees i n tuicionistas aparentemente ad hoc.3. A Theory ofJustice (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971).

22

I N T R O D U O

Os objetivos de Teoria (ainda parafraseando seu prefcio) eram generalizar e levar a uma ordem superior de abstrao a doutrina t r a d i cional do contrato social. Eu queria mostrar que essa d o u t r i n a t i n h a como responder s objees mais bvias que, em geral, foram consideradas fatais para ela. Espero elaborar com mais clareza as principais caractersticas estruturais dessa concepo a que chamei de "justia como e q i d a d e " e desenvolv-la como uma outra viso sistemtica de justia, superior ao u t i l i t a r i s m o . J u l g u e i que essa outra concepo era, entre as concepes morais tradicionais, a que mais se aproximava de nossas convices refletidas de justia, c o n s t i t u i n d o a base mais apropriada para as instituies de uma sociedade democrtica. Os objetivos dessas conferncias so bem diferentes. Observe que, em m e u resumo dos objetivos de Teoria, a tradio do contrato social aparece como parte da filosofia m o r a l e no se faz distino a l g u m a entre filosofia m o r a l e poltica. E m Teoria, u m a d o u t r i n a m o r a l da justia de alcance geral no se d i s t i n g u e de uma concepo estritamente poltica de justia. O contraste entre doutrinas filosficas e morais abrangentes e concepes l i m i t a d a s ao domnio do poltico no de grande relevncia. N o entanto, essas distines e idias afins so fundamentais nas conferncias aqui apresentadas. N a verdade, pode parecer que o o b j e t i v o e o teor dessas conferncias indicam uma grande mudana em relao aos de Teoria. Certamente, como j ressaltei, existem diferenas importantes. Mas, para entender a natureza e a extenso dessas diferenas, preciso v-las como fatores decorrentes da tentativa de esclarecer u m grave problema i n t e r n o , prprio da justia como eqidade. Elas decorrem, em outras palavras, do fato de a descrio de estabilidade, na Parte I I I de Teoria, no ser coerente com a viso em sua totalidade. A eliminao dessa incoerncia, creio, responde pelas diferenas entre aquela obra e a presente. De resto, as conferncias aqui apresentadas acatam substancialmente a mesma estrutura e teor de Teoria\4. Evidentemente, preciso corrigir uma srie de erros e fazer revises na forma pela qual a estrutura e o contedo de justia como eqidade foram apresentados em Uma teoria da justia. Alguns deles so discutidos aqui, mas retificar esses erros no minha preocupao nestas conferncias.

23

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

O grave p r o b l e m a a que me referi preciso que eu e x p l i q u e diz respeito idia pouco realista de "sociedade bem-ordenada", tal como aparece em Teoria. U m a caracterstica essencial de uma sociedade bem-ordenada associada justia como eqidade que t o dos os seus cidados endossam essa concepo com base no que agora chamo de doutrina filosfica abrangente. Aceitam que seus dois p r i n cpios de justia estejam fundamentados nessa d o u t r i n a . D a mesma forma, na sociedade bem-ordenada associada ao u t i l i t a r i s m o os cidados em geral adotam essa viso como uma doutrina filosfica abrangente e por isso aceitam o princpio da u t i l i d a d e . Embora a d i s t i n o entre uma concepo poltica de justia e uma doutrina filosfica abrangente no seja discutida em Teoria, u m a vez levantada a questo, torna-se claro, a m e u ver, que o texto considera a justia como eqidade e o u t i l i t a r i s m o como d o u t r i n a s abrangentes, o u p a r c i a l mente abrangentes. A gravidade do problema reside no fato de que uma sociedade democrtica moderna no se caracteriza apenas por u m p l u r a l i s m o de doutrinas religiosas, filosficas e morais abrangentes. N e n h u m a dessas doutrinas professada pelos cidados em geral. N e m se deve esperar que, n u m futuro previsvel, uma ou outra doutrina razovel chegue a ser professada a l g u m dia por todos os cidados, ou por quase todos. O liberalismo poltico pressupe que, para propsitos polticos, u m a pluralidade de doutrinas abrangentes e razoveis, e, ainda assim, incompatveis, seja o resultado n o r m a l do exerccio da razo humana dentro da estrutura das instituies livres de u m regime democrtico constitucional. O liberalismo poltico pressupe t a m b m que uma doutrina abrangente e razovel no rejeita os princpios f u n damentais de u m regime democrtico. E claro que u m a sociedade tambm pode conter doutrinas abrangentes pouco razoveis, irracionais ou at mesmo absurdas. Nesses casos, o problema administr-las de forma a no p e r m i t i r que solapem a unidade e a justia da sociedade. O fato de haver u m a p l u r a l i d a d e de doutrinas abrangentes e razoveis, porm incompatveis entre si o p l u r a l i s m o razovel , mostra que a idia de uma sociedade bem-ordenada de justia como eqidade, conforme aparece em Teoria, pouco realista. E pouco rea24

I N T R O D U O

lista por ser incoerente com a realizao de seus princpios n u m cenrio de alta previsibilidade. A descrio da estabilidade de uma sociedade bem-ordenada, na parte I I I , tambm , portanto, pouco realista e precisa ser repensada. Esse problema prepara o terreno para os ensaios posteriores que apareceram a partir de 1980. A ambigidade de Teoria est eliminada agora, e a justia como eqidade apresentada, desde o comeo, como uma concepo poltica de justia (1:2). Surpreendentemente, essa mudana leva a muitas outras e requer uma srie de idias afins que antes no se fazia necessria . D i g o sur5

preendentemente porque o problema da estabilidade desempenhou u m papel m u i t o pouco i m p o r t a n t e na histria da filosofia m o r a l e, por isso, pode parecer estranho que uma incoerncia desse tipo leve a revises to extensas. N o entanto, o problema da estabilidade fundamental para a filosofia poltica, e uma incoerncia a requer reajustes bsicos. A s s i m , talvez nem seja surpreendente que, alm das idias j mencionadas uma concepo poltica de justia em contraposio a u m a d o u t r i n a abrangente, alm das idias do consenso sobreposto e da razo pblica , outras t a m b m sejam necessrias. Menciono aqui a idia de uma concepo poltica da pessoa (1:5) e de u m p l u r a l i s m o razovel, em contraposio ao p l u r a l i s m o simples. Alm disso, a idia de construtivismo poltico est ligada a esses tpicos e levanta questes sobre a verdade dos julgamentos morais, comentadas abaixo' .1

A principal concluso a tirar dessas observaes qual voltarei daqui a pouco que o problema do liberalismo poltico consiste em compreender como possvel existir, ao longo do tempo, uma sociedade estvel e justa de cidados livres e iguais profundamente d i vididos por doutrinas religiosas, filosficas e morais razoveis, e m bora incompatveis. E m outras palavras: como possvel que doutrinas5. Uma exceo evidente a idia de consenso sobreposto. No entanto, seu significado em Teoria, p. 387 s., bem diferente. 6. s vezes, se diz que as alteraes dos ltimos ensaios so respostas a crticas feitas pelos comunitaristas e outros. No acredito que essa afirmao tenha fundamento. E claro que, se estou correto ou no em relao a essa idia, depende de as alteraes poderem ser satisfatoriamente explicadas por uma viso analtica de como se encaixam na nova definio de estabilidade. Certamente a questo no est resolvida s porque digo que est.

25

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

abrangentes profundamente opostas, embora razoveis, possam conviver e que todas endossem a concepo poltica de u m regime constitucional? Qual a estrutura e o teor de uma concepo poltica que conquista o apoio de u m tal consenso sobreposto? O liberalismo p o ltico tenta responder a essas e outras perguntas. A guisa de orientao, farei alguns comentrios sobre o liberalismo poltico. s vezes, ouvimos referncias ao chamado projeto i l u m i nista de uma doutrina filosfica secular, uma doutrina baseada na razo e, mesmo assim, abrangente. Pensava-se que essa d o u t r i n a seria, ento, apropriada para o m u n d o moderno, agora que, supostamente, a autoridade religiosa e a f da era crist j no predominam mais. Se existe ou existiu a l g u m dia u m projeto i l u m i n i s t a desse t i p o algo que no precisamos considerar, pois, seja como for, o liberalism o poltico, t a l como o vejo, e a justia como eqidade, como u m a de suas formas, no tm essas ambies. Como j disse, o liberalismo poltico considera p o n t o pacfico no somente o p l u r a l i s m o , mas o fato do p l u r a l i s m o razovel; e, alm disso, supe que, entre as p r i n cipais doutrinas abrangentes e razoveis existentes, algumas sejam religiosas. A concepo de "razovel" (11:3) comporta essa p o s s i b i l i dade. O problema do liberalismo poltico consiste em f o r m u l a r uma concepo de justia poltica para u m regime democrtico c o n s t i t u cional que a pluralidade de doutrinas razoveis caracterstica da c u l t u r a de u m regime democrtico livre possa endossar. N o se pretende s u b s t i t u i r essas vises abrangentes, nem lhes dar u m f u n damento verdadeiro. N a realidade, tal pretenso seria enganosa, pois a finalidade do liberalismo poltico outra. Parte da suposta complexidade do liberalismo poltico evidente, por exemplo, na necessidade de introduzir uma srie complementar de idias afins decorre da aceitao do p l u r a l i s m o razovel. Porque, ao aceit-lo, presumimos que, n u m consenso sobreposto ideal, todo cidado endossa tanto u m a d o u t r i n a abrangente q u a n t o u m a concepo poltica focai, relacionadas de alguma forma. E m alguns casos, a concepo poltica simplesmente a conseqncia da d o u t r i n a abrangente do cidado, ou mostra c o n t i n u i d a d e com ela; em outros, a p r i m e i r a pode estar relacionada segunda como u m a apro26

I N T R O D U O

ximao aceitvel, dadas as circunstncias do m u n d o social ( I V : 8 ) . Seja como for, j que a concepo poltica compartilhada por todos, ao contrrio das doutrinas razoveis, precisamos d i s t i n g u i r entre uma base de justificao pblica de ampla aceitao pelos cidados, no que diz respeito a questes polticas fundamentais, e as muitas bases de justificao no-pblicas que fazem parte das diversas doutrinas abrangentes aceitas apenas por seus defensores. D a mesma forma, haver muitas distines paralelas, pois os elementos da concepo poltica de justia devem ser separados dos elementos anlogos das doutrinas abrangentes. No podemos perder a noo do lugar onde estamos. A s s i m , natural que as idias do bem na concepo poltica tenham carter poltico d i s t i n t o daquelas das vises mais amplas. O mesmo se aplica concepo poltica das pessoas como seres livres e iguais. Dado o pluralismo razovel da cultura democrtica, o objetivo do liberalismo poltico consiste em descobrir em que condies possvel haver uma base de justificao pblica razovel no tocante a questes polticas fundamentais. Deve, se possvel, apresentar o teor dessa base e mostrar por que aceitvel. A o faz-lo, o liberalismo poltico dever d i s t i n g u i r o ponto de vista pblico dos muitos pontos de vista no-pblicos (e no privados). O u , melhor dizendo, dever estabelecer a distino entre a razo pblica e as muitas razes no-pblicas, e explicar por que a razo pblica assume uma determinada forma ( V I ) . Alm disso, tem de ser imparcial (o que requer explicao) em relao aos pontos de vista das doutrinas abrangentes e razoveis. Essa imparcialidade se revela de diversas maneiras. E m p r i m e i r o lugar, o liberalismo poltico no ataca nem critica nenhuma viso razovel. Como parte desse procedimento, no critica, e m u i t o menos rejeita, nenhuma teoria especfica da verdade dos julgamentos m o rais". Nesse sentido, supe simplesmente que os julgamentos de tal verdade sejam feitos segundo o ponto de vista de uma d o u t r i n a m o ral abrangente. A f i n a l , essas d o u t r i n a s p r o d u z e m u m j u l g a m e n t o7. Ver I V 4 . 1 , que uma repetio textual do pargrafo correspondente de "The Idea of an Overlapping Consensus".

27

O

L I B E R A L I S M O

P O L I T I C O

c o m base n a q u i l o que vem como valores morais e polticos sumamente relevantes e como fatos sumamente relevantes (segundo det e r m i n a cada doutrina). Quais julgamentos morais so corretos, esse no u m problema do liberalismo poltico, uma vez que ele trata t o das as questes segundo seu p o n t o de vista restrito. N o entanto, h momentos em que precisa dizer uma palavra em favor de sua prpria posio. o que tentamos fazer em 111:8 e V : 8 . Alm disso, o liberalismo poltico, em vez de se referir sua concepo poltica de justia como correta, refere-se a ela como u m a concepo razovel. No se trata apenas de uma questo semntica, pois duas implicaes decorrem disso. E m p r i m e i r o lugar, "razovel" i n dica u m ponto de vista mais l i m i t a d o da concepo poltica, que aqui a r t i c u l a valores polticos apenas, e no todos os valores, ao mesmo tempo que apresenta u m a base pblica de justificao. E m segundo lugar, o termo indica que os princpios e ideais da concepo poltica baseiam-se nos princpios da razo prtica, conjugados a concepes de sociedade e pessoa que advm, tambm elas, da razo prtica. Tais concepes especificam o arcabouo no i n t e r i o r do q u a l os princpios da razo prtica se aplicam. O significado de tudo isso aparece na descrio do construtivismo poltico (em contraposio a const r u t i v i s m o moral) em I I I . A idia do construtivismo poltico deve ser familiar a todos os que conhecem a posio o r i g i n a l da justia como eqidade, o u u m a est r u t u r a semelhante. Os princpios de justia poltica so resultado de u m procedimento de construo no qual pessoas racionais (ou seus representantes), sujeitas a condies razoveis, adotam esses princpios para regular a estrutura bsica da sociedade. Os princpios d e r i vados de u m procedimento adequado de construo, u m procedimento que expresse corretamente os princpios e concepes indispensveis da razo prtica, so os que considero razoveis. Os julgamentos para os quais esses princpios servem de base t a m b m so razoveis. Quando os cidados c o m p a r t i l h a m u m a concepo poltica razovel de justia, dispem de uma base sobre a qual a discusso pblica de questes polticas fundamentais pode acontecer, resultando n u m a deciso razovel; no, evidentemente, em todos os casos, mas espera28

I N T R O D U O

mos que na maioria dos casos envolvendo fundamentos constitucionais e questes de justia bsica. N o liberalismo poltico, o dualismo entre o ponto de vista da concepo poltica e os m u i t o s pontos de vista das doutrinas abrangentes no u m dualismo originado na filosofia. Origina-se, ao contrrio, na natureza especial da cultura poltica democrtica marcada pelo p l u r a l i s m o razovel. A m e u ver, essa natureza especial explica, pelo menos em boa parte, os diferentes problemas da filosofia poltica do m u n d o moderno, em contraposio ao m u n d o a n t i g o . Para explicar isso, fao u m a conjectura no posso dizer que seja mais que isso sobre os contextos histricos, na t e n t a t i v a de e x p l i c i t a r p r o b l e mas caractersticos dos antigos e dos modernos, respectivamente. Quando a filosofia moral comeou, com Scrates, digamos, a r e l i gio antiga era uma religio cvica de prtica social pblica, de festas cvicas e comemoraes pblicas. A l m disso, essa c u l t u r a r e l i giosa cvica no se baseava numa obra sagrada como a Bblia, o Alcoro ou os Vedas do hindusmo. Os gregos t i n h a m grande reverncia por H o m e r o e os poemas homricos constituam parte elementar de sua educao, mas a llada e a Odissia no eram textos sagrados. Desde que a pessoa participasse da forma esperada e reconhecesse as convenes sociais, os detalhes d a q u i l o em que acreditava no t i n h a m m u i t a importncia. Era u m a questo de fazer o que todos faziam e de ser u m membro fidedigno da sociedade, sempre pronto a c u m p r i r seus deveres cvicos como u m b o m cidado p a r t i c i p a r de t r i b u nais ou alistar-se para lutar n u m a guerra , quando chamado a faz-lo. No era uma religio de salvao no sentido cristo, e no havia uma classe sacerdotal que dispensasse os meios necessrios graa; na verdade, as idias de imortalidade e salvao eterna no ocuparam u m lugar central na cultura clssica .8

A filosofia moral grega comea, p o r t a n t o , no contexto histricoc u l t u r a l de u m a religio cvica e de uma polis onde os picos homricos, com seus deuses e heris, desempenham u m papel central. Essa religio no contm uma idia d i s t i n t a do bem supremo para con8. Neste pargrafo, estou de acordo com Walter Burket, Greek Religion (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985), pp. 254-60, 273-5.

29

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

trapor quela expressa pelos deuses e heris homricos. Os heris so de l i n h a g e m nobre; procuram abertamente sucesso e honra, poder e riqueza, prestgio e posio social. N o so indiferentes ao bem da famlia, amigos e dependentes e, no entanto, a preocupao com eles ocupa u m lugar menos i m p o r t a n t e . Q u a n t o aos deuses, eles no so m u i t o diferentes, m o r a l m e n t e falando: embora sejam i m o r t a i s , sua vida relativamente feliz e segura. Portanto, ao rejeitar o ideal caracterstico da forma de vida da classe guerreira de uma poca passada, a filosofia grega teve de d e f i n i r por si mesma o bem supremo da v i d a humana e desenvolver idias aceitveis aos cidados de u m a Atenas que, no sculo V a . C , c o m punha uma sociedade diferente. A filosofia moral sempre foi o exerccio exclusivo da razo livre e disciplinada. Ela no se baseou na religio, e m u i t o menos na revelao; a religio cvica no a g u i a v a , nem rivalizava com ela. O foco dessa filosofia m o r a l era a idia do bem supremo enquanto ideal atraente, enquanto busca razovel de nossa verdadeira felicidade, e ela t r a t o u de u m a questo que a r e l i gio cvica deixou, em grande parte, sem resposta'. Focalizando agora o perodo m o d e r n o , trs processos histricos i n f l u e n c i a r a m p r o f u n d a m e n t e a natureza de sua filosofia m o r a l e poltica. O p r i m e i r o f o i a Reforma do sculo X V I . Ela f r a g m e n t o u a u n i dade religiosa da Idade Mdia e levou ao p l u r a l i s m o religioso, com todas as suas conseqncias para os sculos posteriores. Isso, por sua vez, alimentou pluralismos de outros tipos, que se tornaram uma caracterstica permanente da cultura no final do sculo X V I I I . O segundo foi o desenvolvimento do Estado moderno com sua administrao central, governado i n i c i a l m e n t e por monarcas dotados de poderes imensos, quando no absolutos. O u pelo menos por m o narcas que procuravam ser to absolutistas quanto p o d i a m , s concedendo uma parcela do poder aristocracia e s classes mdias ascendentes quando eram obrigados, ou quando lhes convinha.9. Nestes dois ltimos pargrafos, concordo com Terence Irwin, Classical Thought (Nova York: Oxford University Press, 1989), principalmente o cap. 2.

30

I N T R O D U O

O terceiro f o i o desenvolvimento da cincia moderna, que se i n i ciou no sculo X V I I . Por cincia moderna entendo o desenvolvimento da astronomia com Coprnico e Kepler, assim como a fsica newtoniana; e tambm, preciso enfatizar, o desenvolvimento da anlise matemtica (clculo) por N e w t o n e Leibniz. Sem a anlise, o desenvolvimento da fsica no teria sido possvel. Destaco aqui, em p r i m e i r o lugar, o contraste bvio com o m u n d o clssico no que diz respeito religio. O cristianismo medieval teve cinco traos caractersticos que a religio cvica no t e m : Tendia ao autoritarismo religioso: sua autoridade a Igreja d i r i gida pelo papado era i n s t i t u c i o n a l , central e quase absoluta, e m bora a autoridade suprema do papa s vezes fosse contestada, como no perodo conciliar dos sculos X I V e X V . Era uma religio de salvao, u m caminho para a vida eterna, e a salvao exigia a f verdadeira tal como a Igreja a ensinava. Era, p o r t a n t o , uma religio doutrinria, com u m credo que t i n h a de ser obrigatoriamente aceito. Era uma religio de sacerdotes com a autoridade exclusiva de dispensar os meios da graa, meios normalmente essenciais salvao. Finalmente, era uma religio expansionista de converso que no reconhecia l i m i t e s territoriais sua autoridade que no os do prprio mundo. A Reforma teve enormes conseqncias. Quando uma religio dotada de autoridade, salvacionista e expansionista como o cristianismo medieval, se divide, isso se traduz inevitavelmente no surgimento de uma religio rival no interior da mesma sociedade, tambm ela dotada de autoridade e salvacionista, diferente em alguns aspectos da religio original da qual se separou, mas tendo, durante u m certo perodo, muitas caractersticas semelhantes. Lutero e Calvino eram to dogmticos e intolerantes quanto a Igreja catlica havia sido. H u m segundo contraste, ainda que menos bvio, com o m u n d o clssico, dessa vez em relao filosofia. Durante as guerras r e l i g i o sas, as pessoas no t i n h a m dvidas sobre a natureza do b e m supremo, ou sobre a fundamentao da obrigao m o r a l na lei d i v i n a . J u l g a v a m saber essas coisas com a certeza da f, pois aqui sua teolo31

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

gia m o r a l lhes dava orientao completa. O p r o b l e m a , na verdade, era: como possvel a convivncia de pessoas de diferentes convices religiosas? Q u a l poderia ser a base da tolerncia religiosa? Para m u i t o s , no havia base n e n h u m a , pois esta i m p l i c a r i a aceitar heresias em relao a pontos fundamentais, bem como a calamidade decorrente da falta de unidade religiosa. At os mais antigos defensores da tolerncia v i a m a diviso do cristianismo como u m desastre, embora u m desastre que t i n h a de ser aceito, uma vez que a alternativa seria uma interminvel guerra c i v i l por motivos religiosos. A s s i m , a o r i g e m histrica do liberalismo poltico (e do liberalismo em geral) est na Reforma e em suas conseqncias, com as l o n gas controvrsias sobre a tolerncia religiosa nos sculos X V I e X V I I " .1

Foi a p a r t i r da que teve incio algo parecido com a noo moderna de liberdade de conscincia e de pensamento. Como Hegel sabia m u i to bem, o pluralismo possibilitou a liberdade religiosa, algo que certamente no era inteno de L u t e r o , nem de C a l v i n o " . E claro que outras controvrsias t a m b m t i v e r a m u m a importncia c r u c i a l , como aquelas versando sobre a limitao dos poderes dos monarcas absolutos por princpios adequados e de traado constitucional, visando a proteger direitos e liberdades bsicas. N o entanto, apesar da importncia de outras controvrsias e dos princpios voltados sua resoluo, o fato da diviso religiosa persiste. Por esse m o t i v o , o l i b e r a l i s m o poltico assume o p l u r a l i s m o razovel como u m pluralismo de doutrinas abrangentes, incluindo tanto as doutrinas religiosas quanto as no-religiosas. Esse p l u r a l i s m o no t i d o como algo desastroso, e sim como o resultado natural das atividades da razo humana sob instituies livres e duradouras. Ver o p l u r a l i s m o razovel como u m desastre ver o prprio exerccio da razo em liberdade como u m desastre. N a verdade, o sucesso do constitucionalismo liberal manifestou-se como a descoberta de uma nova possibilidade social: a possibilidade de uma sociedade p l u r a l i s t a es10. Judith Shklar, em seu Ordinary Vices (Cambridge, Mass.: Harvatd University Press, 1984), fala do liberalismo do medo, representado por Montaigne e Montesquieu, e o atribui s crueldades das guerras civis religiosas. Ver p. 5. 11. Ver Grundlinien der Philosophic des Rechts (1821), 270, perto do final do longo comentrio.

32

I N T R O D U O

tvel e razoavelmente harmoniosa . Antes da prtica pacfica e bem12

sucedida da tolerncia em sociedades com instituies liberais, no havia como saber da existncia dessa possibilidade. mais natural acreditar, como a prtica da intolerncia ao longo de sculos parece c o n f i r m a r , que a unidade e a paz social requerem concordncia em relao a uma d o u t r i n a religiosa geral e abrangente, ou a u m a d o u trina filosfica ou moral. A intolerncia era aceita como u m a c o n d i o da ordem e estabilidade sociais. O enfraquecimento dessa idia ajuda a preparar o terreno para as instituies liberais. Talvez a d o u t r i n a da liberdade religiosa se tenha desenvolvido porque difcil, seno impossvel, acreditar na danao daqueles com os quais, confiantes, cooperamos longa e f r u t i f e r a m e n t e na manuteno de u m a sociedade justa. P o r t a n t o , como notei antes, o p r o b l e m a do l i b e r a l i s m o poltico consiste em saber como possvel existir, ao l o n g o do t e m p o , u m a sociedade estvel e justa de cidados livres e iguais, profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosficas e morais razoveis. Tratase de u m problema de justia poltica, no de u m problema sobre o bem supremo. Para os modernos, o bem se dava a conhecer em sua religio; com suas divises profundas, o mesmo no se verificava em relao s condies essenciais de uma sociedade vivel e justa. O ent e n d i m e n t o dessas condies u m p r o b l e m a que passa a ocupar o centro do palco. Parte dele tem a ver com a identificao dos termos eqitativos de cooperao social entre cidados tidos como livres e iguais, mas d i v i d i d o s por p r o f u n d o c o n f l i t o d o u t r i n a i . Q u a l a est r u t u r a e o teor da concepo poltica necessria, se uma concepo dessas de fato possvel? No se tem a o problema da justia tal como ele se apresentou ao m u n d o antigo. O m u n d o antigo no conheceu o choque entre religies salvacionistas, doutrinrias e expansionistas. Esse u m fenmeno novo em termos de experincia histrica, uma possibilidade concretizada pela Reforma. claro que o cristianismo j possibilitara a conquista de pessoas, no apenas visando a12. Hume observa isso no 6 de "Liberty of the Press" (1741). Ver tambm A. G . Dickens, The English Reformation (Londres: Fontana Press, 1967), pp. 440 s.

33

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

suas terras, riquezas e ao exerccio do poder e da dominao sobre elas, mas t a m b m c o m o i n t u i t o de salvar-lhes a alma. A Reforma v o l t o u essa possibilidade para dentro, para o interior da pessoa. A novidade em relao a esse choque que ele i n t r o d u z nas concepes de bem das pessoas u m elemento transcendental que no adm i t e conciliao. Esse elemento conduz forosamente ou a u m conf l i t o m o r t a l , moderado apenas pela circunstncia e pela exausto, ou a liberdades iguais de conscincia e de pensamento. Exceto por essas ltimas, firmemente arraigadas e publicamente reconhecidas, nenhuma concepo poltica razovel de justia possvel. O l i b e r a l i s m o poltico comea por levar a srio a profundidade absoluta desse conf l i t o latente e irreconcilivel. Sobre a relao entre o liberalismo poltico e a filosofia moral do perodo moderno, enquanto a filosofia m o r a l era, claro est, p r o f u n damente afetada pela situao religiosa no interior da qual se desenvolveu depois da Reforma, os p r i n c i p a i s escritores do sculo X V I I I esperavam estabelecer uma base de conhecimento moral independente da autoridade eclesistica e acessvel pessoa c o m u m , razovel e conscienciosa. Feito isso, quiseram desenvolver todo o leque de conceitos e princpios c o m base nos quais estabeleceriam os requisitos da vida moral. C o m essa finalidade, estudaram as questes bsicas da epistemologia e da psicologia m o r a l , tais como: O conhecimento ou a noo de como devemos agir seria dado d i retamente a alguns apenas, a uns poucos (o clero, digamos), ou a t o da pessoa normalmente razovel e conscienciosa? A ordem m o r a l exigida de ns deriva de u m a fonte externa, de u m a ordem de valores existente no intelecto de Deus, por exemplo, ou surge, de a l g u m m o d o , da prpria natureza humana (tanto da razo quanto do sentimento, ou de u m a unio de ambos), juntamente com os requisitos de nossa vida em c o m u m na sociedade? Finalmente, devemos ser persuadidos ou levados a nos convencer de nossos deveres e obrigaes por uma motivao externa, pelas sanes divinas, por exemplo, ou pelas sanes estatais? O u somos constitudos de tal forma que temos em nossa natureza motivos suficien34

I N T R O D U O

tes para nos levar a agir como devemos, sem a necessidade de ameaas e indues externas ?11

Todas essas questes surgiram p r i m e i r o na teologia. Entre os autores que geralmente estudamos, H u m e e K a n t , cada qual, sua maneira, escolhe a segunda alternativa como resposta a cada uma dessas trs questes. A c r e d i t a m que a ordem m o r a l surge de a l g u m m o d o da prpria natureza humana, como razo ou como sentimento, e das condies de nossa vida em sociedade. A c r e d i t a m tambm que saber ou ter conscincia de como agir dado diretamente a toda pessoa que seja normalmente razovel e conscienciosa. E, por f i m , acreditam que somos constitudos de tal modo que temos em nossa natureza m o t i vos suficientes para nos levar a agir como devemos, sem a necessidade de sanes externas, ou pelo menos no sob a forma de recompensas e punies impostas por Deus ou pelo Estado. N a verdade, tanto H u m e quanto K a n t encontram-se o mais longe possvel da viso seg u n d o a qual somente uns poucos tm discernimento moral e todas as pessoas, ou a m a i o r i a delas, devem ser obrigadas a fazer o que certo por meio dessas sanes". Nesse sentido, suas idias fazem parte daquilo a que chamo de liberalismo abrangente, em contraposio a liberalismo poltico. O liberalismo poltico no u m liberalismo abrangente. No adota u m a posio geral sobre as trs questes acima; deixa que sejam respondidas sua prpria maneira pelas diferentes vises abrangentes. C o n t u d o , no que diz respeito a uma concepo poltica de j u s t i a n u m r e g i m e democrtico c o n s t i t u c i o n a l , o l i b e r a l i s m o poltico defende categoricamente a segunda alternativa em cada uma das questes propostas. Nesse caso f u n d a m e n t a l , defender essas alternativas faz parte do construtivismo poltico ( I I I ) . Os problemas gerais de f i 13. Os dois ltimos pargrafos acima esto de acordo com J . B. Schneewind, Moral Philosophy from Montaigne to Kant: An Anthology, 2 vols. (Cambridge: Cambridge University Press, 1990). Ver a introduo ao primeiro volume, p. 18. Devo muitssimo a esses volumes e aos diversos ensaios de Schneewind, entre eles, em particular, "Natural Law, Skepticism, and the Method of Ethics", Journal of the History of Ideas 52 (1991): 289-308. 14. Schneewind diz isso de Kant, Moral Philosophy, p. 29, mas acredito que se aplica a Hume tambm.

35

O

L I B E R A L I S M O

P O L I T I C O

losofa moral no so da alada do liberalismo poltico, exceto quando afetam a maneira pela q u a l a c u l t u r a de base e suas d o u t r i n a s abrangentes tendem a apoiar u m regime constitucional. O liberalism o poltico v sua forma de filosofia poltica como possuidora de u m tema prprio, qual seja: como possvel a existncia de u m a sociedade justa e livre em condies de profundo conflito doutrinrio, sem perspectiva de resoluo? Para manter a imparcialidade entre d o u trinas abrangentes, o liberalismo poltico no discute especificamente os tpicos morais que d i v i d e m essas doutrinas. As vezes, isso parece apresentar dificuldades, as quais procuro resolver medida que surgem, como em V : 8 , por exemplo. Pode parecer que m i n h a nfase na Reforma e na longa controvrsia sobre a tolerncia, entendidas como a o r i g e m do liberalismo, seja anacrnica em relao aos problemas da vida poltica contempornea. Entre nossos problemas mais bsicos encontram-se os de raa, etnia e gnero. E possvel que tenham u m carter inteiramente d i f e rente, que exija princpios diferentes de justia, no discutidos pela Teoria. Como observei antes, Uma teoria da justia props-se a apresentar uma viso da justia poltica e social mais satisfatria do que as concepes tradicionais mais importantes e conhecidas. Tendo em vista essa finalidade, l i m i t o u - s e como as questes que discute deixam claro a uma srie de problemas clssicos e afins que estiveram no centro dos debates histricos relativos estrutura moral e poltica do Estado democrtico moderno. Por isso trata dos fundamentos das l i berdades religiosas e polticas bsicas, e dos direitos fundamentais dos cidados na sociedade c i v i l , i n c l u i n d o aqui a liberdade de m o v i mento e a igualdade eqitativa de oportunidades, o direito propriedade pessoal e as garantias asseguradas pelo imprio da l e i . A Teoria discute tambm a justia das desigualdades econmicas e sociais n u ma sociedade em que os cidados so considerados livres e iguais. Mas ignora em grande parte a questo das reivindicaes de d e m o cracia na empresa e no local de trabalho, assim como a de justia entre os Estados (ou povos, como prefiro dizer); e praticamente deixa de mencionar a justia penal e a proteo ao meio ambiente ou a pre36

I N T R O D U O

servao da v i d a silvestre. Outras questes i m p o r t a n t e s so o m i t i das, como, por exemplo, a justia da e na famlia, embora eu de fato suponha que, de alguma forma, a famlia justa. O pressuposto subjacente que uma concepo de justia desenvolvida com o foco em uns poucos problemas clssicos e de longa data h de ser correta o u , pelo menos, apresentar diretrizes para a resoluo de outras questes. Esse o raciocnio que fundamenta a focalizao em uns poucos problemas clssicos centrais e persistentes. claro que a concepo de justia q u a l se chega dessa maneira pode mostrar-se defeituosa. Isso o que est por trs de grande parte da crtica feita Teoria, segundo a qual o t i p o de liberalismo ali representado seria intrinsecamente defeituoso por se basear numa concepo abstrata de pessoa e por se valer de uma idia i n d i v i d u a l i s t a , no-social, de natureza humana; ou porque empregaria u m a d i s t i n o implausvel entre o pblico e o privado, o que a impossibilitaria de lidar com os problemas de gnero e famlia. Acredito que grande parte dessas objees concepo de pessoa e idia de natureza h u mana resulta do fato de no se ver a idia da posio o r i g i n a l como u m artifcio de representao, como explico em 1:4. A c r e d i t o t a m b m , embora no procure demonstr-lo nas conferncias aqui presentes, que as supostas dificuldades em d i s c u t i r problemas de gnero e famlia podem ser superadas. Dessa forma, c o n t i n u o achando que, se dispusermos das concepes e princpios adequados s questes histricas bsicas, essas concepes e princpios tero larga aplicao aos nossos prprios problemas. A mesma igualdade da Declarao da Independncia que Lincoln invocou para condenar a escravido pode ser invocada para condenar a desigualdade e a opresso das mulheres. Penso que uma questo de entender o que os princpios anteriores requerem sob outras c i r cunstncias e de insistir para que sejam postos em prtica pelas instituies existentes. Por essa razo, a Teoria concentrou-se em certos problemas histricos, na esperana de formular uma srie de concepes e princpios afins e razoveis que possam ser aplicados tambm a outros casos bsicos. 37

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

Para concluir, procurei mostrar nas observaes acima que agora entendo justia como eqidade como uma forma de liberalismo p o ltico, e procurei mostrar tambm por que mudanas se fizeram necessrias. Essas observaes enfatizam o srio problema i n t e r n o que levou a tais mudanas. N o e n t a n t o , no pretendo dar u m a explicao de como e por que essas mudanas foram feitas de fato. N a verdade, no creio que saiba por que t o m e i essa direo especfica. Q u a l q u e r histria que eu conte ser, provavelmente, fico, apenas aquilo em que quero acreditar. O p r i m e i r o uso que fiz dessas idias de concepo poltica de justia e de consenso sobreposto f o i equivocado e levou a objees que, i n i c i a l m e n t e , achei desnorteantes: como idias simples como as de uma concepo poltica de justia e de u m consenso sobreposto p o dem ter sido m a l entendidas? Subestimei o g r a u de complexidade necessrio para que a Teoria fosse coerente e considerei pontos pacficos algumas peas essenciais que faltaram para uma formulao convincente do liberalismo poltico. Dentre essas peas que faltaram, as principais so: 1) a idia de justia como eqidade enquanto viso auto-sustentada, e a de u m consenso sobreposto como u m componente de sua interpretao da estabilidade; 2) a distino entre p l u r a l i s m o simples e p l u r a l i s m o razovel, acompanhada da idia de uma doutrina abrangente razovel; 3) uma interpretao mais completa do razovel e do racional entretecida na concepo do construtivismo poltico (em contraposio ao c o n s t r u t i v i s m o m o r a l ) , de modo que f i q u e claro o embasamento dos princpios do d i r e i t o e da justia na razo prtica. Com essas peas no lugar, acredito que as partes obscuras estejam agora esclarecidas. Tenho m u i t o s agradecimentos a fazer, a maioria deles indicados nas notas de rodap ao longo de todo o l i v r o . C o m aqueles com quem tive discusses instrutivas sobre as peas ausentes mencionadas acima, pessoas com as quais aprendi m u i t o , tenho uma dvida especial. 38

I N T R O D U O

Agradeo a T. M . Scanlon as numerosas discusses i n s t r u t i v a s , desde o comeo, sobre o c o n s t r u t i v i s m o poltico e o c o n s t r u t i v i s m o em geral, m o t i v o pelo qual essa viso, apresentada em I I I , est agora mais compreensvel do que a anterior, esboada em 1980; e tambm pelas discusses sobre a distino entre o razovel e o racional, e sobre a maneira de especificar o razovel, tendo em vista os objetivos de uma concepo poltica de justia (11:1-3). A R o n a l d D w o r k i n e Thomas N a g e l sou grato pelas muitas discusses enquanto participvamos de conferncias na Universidade de Nova Y o r k entre 1987 e 1 9 9 1 ; e, em relao idia de justia como eqidade enquanto viso auto-sustentada (1:5), por uma conversa i n comumente esclarecedora por volta da meia-noite no bar deserto do H o t e l Santa Lcia, em Npoles, em junho de 1988. A W i l f r i e d H i n s c h , pela necessidade da idia de u m a d o u t r i n a abrangente e razovel, em contraste c o m uma d o u t r i n a abrangente simpliciter (11:3), e pelas discusses instrutivas a esse respeito em maio e junho de 1988. A Joshua Cohen, que enfatizou a importncia da distino entre pluralismo razovel e p l u r a l i s m o simples (1:6.2), e pelas muitas discusses valiosas sobre a idia do razovel em 1989-90, todas s i n t e t i zadas em seu artigo de maio de 1990. A Tyler Burge, por duas longas cartas no vero de 1 9 9 1 , em que questionava e criticava uma verso anterior de I I I . Persuadiu-me de que eu no apenas no conseguira dar u m sentido claro s formas pelas quais tanto o construtivismo moral de K a n t quanto o meu const r u t i v i s m o poltico explicam a autonomia moral ou poltica, mas que excedera tambm os l i m i t e s de uma concepo poltica de justia ao fazer o contraste entre c o n s t r u t i v i s m o poltico e i n t u i c i o n i s m o racional. N a tentativa de corrigir essas falhas graves, reescrevi inteiramente os 1 , 2 e 5. C o m o i n d i c a m essas datas, cheguei a u m a compreenso clara do liberalismo poltico ao menos em m i n h a opinio s nos ltimos anos. Embora muitos dos ensaios anteriores apaream aqui com o mesmo ttulo ou u m ttulo semelhante, e grande parte do mesmo 39

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

contedo, foram todos consideravelmente ajustados para que, j u n tos, expressem o que agora acredito ser uma viso coerente. Procurei agradecer a outras pessoas nas notas de rodap. N o entanto, os agradecimentos que se seguem dizem respeito a dvidas que se estenderam por m u i t o t e m p o e, por u m a razo ou o u t r a , no p u deram ser devidamente reconhecidas de outra maneira. Agradeo a B u r t o n D r e b e n , c o m q u e m d i s c u t i longamente as questes dessas conferncias, discusses que t i v e r a m incio no f i n a l dos anos 70, quando a idia de liberalismo poltico comeou a tomar forma em m i n h a mente. Seu incentivo firme e sua severa crtica t a l mdica me fizeram u m bem imenso. M i n h a dvida com ele impossvel de pagar. A o falecido D a v i d Sachs, com q u e m discuti desde 1946, quando nos encontramos pela p r i m e i r a vez, muitas das questes que o texto considera, principalmente as que dizem respeito psicologia m o r a l . E m relao aos tpicos deste l i v r o , Sachs e eu tivemos longas discusses, m u i t o valiosas para m i m , em Boston, trs vezes na dcada de 1980. N a primavera e no vero de 1982, discutimos vrias das d i f i culdades que encontramos nas conferncias que proferi em C o l u m b i a em 1980; no vero de 1983, ele me a j u d o u a preparar u m a verso consideravelmente melhorada de " A estrutura bsica como o b j e t o " , assim como uma verso m u i t o melhor do 6 de "As liberdades f u n damentais e sua prioridade", que trata a idia da sociedade como uma unio social de unies sociais. Espero usar ambas a l g u m dia. N o vero de 1986, reelaboramos a conferncia que havia proferido em O x f o r d no ms de maio anterior, em homenagem a H . L . A . H a r t . Essa verso melhorada f o i publicada em fevereiro de 1987 na Oxford Journal of Legal Studies, e grande parte dela reaparece aqui em IV. A falecida J u d i t h Shklar sou grato pelas inmeras discusses inst r u t i v a s desde que nos conhecemos, h t r i n t a anos. E m b o r a nunca tenha sido seu aluno, aprendi com ela como u m estudante aprenderia, o que me fez melhor. E m relao a este l i v r o , ela me foi de grande auxlio, especialmente ao apontar direes que deviam ser exploradas; e sempre confiei nela em questes de interpretao histrica, 40

I N T R O D U O

de importncia crucial em vrias passagens do texto. Nossa ltima discusso g i r o u em torno dessas questes. A Samuel Scheffler, que, no outono de 1977, enviou-me u m pequeno a r t i g o , "Independncia m o r a l e a posio o r i g i n a l " , no q u a l afirma haver u m srio c o n f l i t o entre a terceira parte de meu a r t i g o " A independncia da teoria m o r a l " (1975), que tratava da relao entre i d e n t i d a d e pessoal e teoria m o r a l , e meus argumentos contra o u t i l i t a r i s m o em Teoria ''. L e m b r o - m e de que f o i nesse m o m e n t o (eu1

estava de licena naquele ano) que comecei a pensar se a viso da Teoria no precisaria ser c o r r i g i d a , e em que m e d i d a . A deciso de explorar esse p r o b l e m a , e no u m o u t r o tpico, acabou levando s conferncias de C o l u m b i a de 1980, e aos ensaios posteriores que elaboram a idia do liberalismo poltico. A E r i n K e l l y , que nos ltimos dois anos leu os rascunhos do o r i g i n a l , destacando as passagens nas quais o texto estava obscuro e sugerindo esclarecimentos; props-me formas segundo as quais o argum e n t o poderia ser reorganizado para lhe dar mais fora; e, ao fazer perguntas e levantar objees, levou-me a remodelar o texto inteiro. Seria impossvel fazer uma lista de todas as revises a que seus comentrios me c o n d u z i r a m ; mas, s vezes, levaram a alteraes i m portantes. As mais fundamentais, p r o c u r e i agradecer-lhe nas notas de rodap. Os mritos deste trabalho, sejam quais f o r e m , resultam em boa medida de seus esforos. F i n a l m e n t e , gostaria de agradecer s seguintes pessoas por seus comentrios escritos sobre o texto: A Dennis T h o m p s o n , que me enviou vrias pginas de sugestes extremamente valiosas, e quase todas levaram a correes ou revises do texto; i n d i q u e i os locais onde algumas delas foram feitas nas notas de rodap, onde tambm citei seus comentrios. A Frank M i c h e l m a n , pelos m u i t o s comentrios perspicazes que relutei em a d m i t i r , porque no poderia responder a eles de forma adequada sem fazer, neste m o m e n t o , mudanas substanciais e de longo15. O de Scheffler foi publicado depois, em Philosophical Studies 35 (1979): 397-403.

41

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O

alcance. Somente em u m a passagem ( V I : 6 . 4 ) tive condies de responder-lhe a contento. A Robert A u d i , K e n t Greenawalt e Paul W e i t h m a n , que me m a n daram sugestes instigantes sobre V I , algumas das quais consegui incluir, vrias no ltimo m o m e n t o . A Alyssa Bernstein, Thomas Pogge e Seana S h i f f r i n , que me enviaram extensos comentrios escritos, os quais infelizmente no p u de levar em considerao em sua t o t a l i d a d e . Lamento que eles no vejam seus comentrios discutidos a q u i como deveriam. L a m e n t o tambm por, ao r e i m p r i m i r "As liberdades fundamentais e sua p r i o r i d a d e " ( 1 9 8 2 ) sem alteraes, no ter respondido s crticas penetrantes de Rex M a r t i n , apresentadas em seu Rawls and Rights, p r i n cipalmente caps. 2, 3, 6 e 7' .6

Pelo trabalho ingrato de me ajudar a corrigir e editar o o r i g i n a l e as provas, agradeo m i n h a m u l h e r M a r d e nossa f i l h a L i z , e a Michelle Renfield e M a t t h e w Jones. John Rawls O u t u b r o de 1992

16. Rawls and Rights (Lawrence: University of Kansas Press, 1985).

42

P A R T E

I

O liberalismo poltico: elementos bsicos

C O N F E R N C I A

IDIAS F U N D A M E N T A I S O liberalismo poltico, o ttulo destas conferncias, soa familiar. N o entanto, quero dizer com essa expresso algo bem diferente, creio eu, do que o l e i t o r provavelmente supe. Talvez por isso eu devesse comear com uma definio de liberalismo poltico, explicando por que o chamo de "poltico". Mas nenhuma definio til no incio. Comeo, ao contrrio, com uma p r i m e i r a questo fundamental sobre a justia poltica n u m a sociedade democrtica, a saber: q u a l a concepo de justia mais apta a especificar os termos eqitativos de cooperao social entre cidados considerados livres e iguais, e membros plenamente cooperativos da sociedade durante a vida toda, de u m a gerao at a seguinte? A essa p r i m e i r a questo fundamental, acrescentamos uma segunda, a da tolerncia compreendida em termos gerais. A cultura poltica de u m a sociedade democrtica sempre marcada pela diversidade de doutrinas religiosas, filosficas e morais conflitantes e irreconciliveis. A l g u m a s so perfeitamente razoveis, e essa diversidade de doutrinas razoveis, o liberalismo poltico a v como o resultado inevitvel, a l o n g o prazo, do exerccio das faculdades da razo humana em instituies bsicas livres e duradouras. Por conseguinte, a segunda questo consiste em saber quais so os fundamentos da tolerncia assim compreendida, considerando-se o fato do pluralismo razovel como resultado inevitvel de instituies livres. A combinao dessas duas questes nos leva a perguntar como possvel existir, ao l o n g o do t e m p o , uma sociedade justa e estvel de cidados livres e 45

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O :

E L E M E N T O S

B S I C O S

iguais, mas que permanecem profundamente d i v i d i d o s por d o u t r i nas religiosas, filosficas e morais razoveis. As lutas mais difceis, pressupe o liberalismo poltico, so reconhecidamente travadas e m nome das coisas mais elevadas: da r e l i gio, das vises filosficas de m u n d o e das diferentes concepes m o rais d o b e m . Pode parecer surpreendente q u e , c o m oposies to profundas assim, a cooperao justa entre cidados livres e iguais seja possvel. De fato, a experincia histrica mostra que isso raramente possvel. Se o problema levantado demasiado familiar, o l i b e ralismo poltico prope, a meu ver, uma soluo pouco familiar. Para apresentar essa soluo, precisamos de u m certo c o n j u n t o de idias afins. Nesta conferncia, exponho as mais centrais e p r o p o n h o u m a definio no final ( 8 ) .

1 . Duas questes fundamentais 1. E m p r i m e i r o lugar, o curso do pensamento democrtico ao l o n go dos dois ltimos sculos, aproximadamente, deixa claro que, no presente, no h concordncia sobre a forma pela qual as instituies bsicas de uma democracia constitucional devam ser organizadas para satisfazer os termos eqitativos de cooperao entre cidados considerados livres e iguais. Isso fica evidente nas idias profundamente controvertidas sobre a melhor forma de expressar os valores da l i b e r dade e da igualdade nos direitos e liberdades bsicos dos cidados, de modo que sejam satisfeitas as exigncias tanto da liberdade q u a n to da igualdade. Podemos ver essa discordncia como u m c o n f l i t o no interior da prpria tradio do pensamento democrtico, entre a tradio associada a Locke que d maior peso ao que Constant chamava de "as liberdades dos modernos", as liberdades de pensamento e conscincia, certos direitos bsicos da pessoa e de propriedade, e o imprio da lei e a tradio associada a Rousseau, que d mais peso ao que Constant chamava de "as liberdades dos antigos", as l i b e r 46

I D I A S

F U N D A M E N T A I S

dades polticas iguais e os valores da v i d a pblica . Estilizado, esse1

conhecido contraste pode nos servir para pr as idias em ordem. Para responder p r i m e i r a questo, a justia como eqidade p r o 2

cura a r b i t r a r entre essas tradies conflitantes p r o p o n d o , p r i m e i r o , dois princpios de justia que sirvam de diretrizes para a forma pela qual as instituies bsicas devem realizar os valores de liberdade e igualdade; e, em segundo lugar, especificando u m ponto de vista com base no qual esses princpios sejam considerados mais adequados do que outros princpios conhecidos de justia idia de cidados democrticos tidos como pessoas livres e iguais. O que preciso mostrar que, em se tratando de cidados assim concebidos, u m certo t i p o de organizao das instituies polticas e sociais bsicas mais apropriado realizao dos valores de liberdade e igualdade. Os dois princpios de justia (mencionados acima) so os seguintes': a. Todas as pessoas tm igual d i r e i t o a u m p r o j e t o i n t e i r a m e n t e satisfatrio de direitos e liberdades bsicas iguais para todos, projeto este compatvel com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades polticas, e somente estas, devero ter seu valor eqitativo garantido. b . As desigualdades sociais e econmicas devem satisfazer dois requisitos: p r i m e i r o , devem estar vinculadas a posies e cargos abertos a todos, em condies de igualdade eqitativa de opor1. Ver "Liberty of the Ancients Compared with that of the Moderns" (1819), em Benjamin Constant, Political Writings, traduzido e organizado por Biancamaria Fontana (Cambridge: Cambridge University Press, 1988). A discusso da introduo sobre a diferena entre o problema da filosofia poltica no mundo antigo e no mundo moderno mostra a importncia da distino de Constant. 2. A concepo de justia apresentada em Teoria. 3. A formulao desses princpios difere daquela apresentada em Teoria e segue a formulao de "The Basic Liberties and Their Priority", Tanner Lectures on Human Values, vol. I l l (Salt Lake City: University of Utah Press, 1982), p. 5. Os motivos dessas alteraes so discutidos nas pp. 46-55 daquela conferncia. So importantes para as revises na exposio das liberdades bsicas em Teoria e foram feitas na tentativa de responder s importantes objees feitas por H . L. A. Hart, em sua resenha crtka publicada pela University of Chicago Law Review AO (primavera de 1973): 535-55. Nesse volume, ver V I I I , pp. 291, 331-34, respectivamente.

47

O

L I B E R A L I S M O

P O L I T I C O :

E L E M E N T O S

B S I C O S

tunidades; e, segundo, devem representar o maior benefcio possvel aos membros menos privilegiados da sociedade. Cada u m desses princpios regula as instituies numa esfera particular, no apenas em relao aos direitos, liberdades e o p o r t u n i d a des bsicos, mas t a m b m no que d i z respeito s reivindicaes de igualdade; a segunda parte do segundo princpio, por sua vez, s u b l i nha o valor dessas garantias i n s t i t u c i o n a i s ' . J u n t o s , os dois princpios regulam as instituies bsicas que realizam esses valores, conferindo-se ao p r i m e i r o prioridade sobre o segundo. 2. U m a longa explanao seria necessria para esclarecer o s i g n i ficado e a aplicao desses princpios. Como isso no c o n s t i t u i o tema destas conferncias, fao apenas alguns comentrios. P r i m e i r o , vejo esses princpios como manifestaes do contedo de u m a concepo poltica liberal de justia. O teor de uma tal concepo definido por trs caractersticas principais: a) especificao de certos d i reitos, liberdades e oportunidades bsicos (de u m t i p o que conhecemos dos regimes democrticos constitucionais); b) atribuio de uma p r i o ridade especial a esses d i r e i t o s , liberdades e oportunidades, p r i n c i palmente no que diz respeito s exigncias do bem geral e de valores perfeccionistas; e c) medidas que assegurem a todos os cidados os meios polivalentes adequados para que suas liberdades e oportunidades sejam efetivamente postas em prtica. Esses elementos p o d e m ser compreendidos de diversas maneiras, uma vez que existem m u i tas variantes de liberalismo. A l m disso, os dois princpios expressam u m a forma igualitria de liberalismo em v i r t u d e de trs elementos. So eles: a) a garantia do valor eqitativo das liberdades polticas, de modo que no sejam puramente formais; b) igualdade eqitativa (e, b o m que se d i g a , no meramente formal) de oportunidades; e, finalmente, c) o chamado princpio da diferena, segundo o qual as desigualdades sociais e econmicas associadas aos cargos e posies devem ser ajustadas de4. O valor dessas garantias especificado pela referncia a uma lista de bens primrios. A maneira de fazer isso mencionada em 11:5 e discutida de forma mais completa em V:3-4.

48

I D I A S

F U N D A M E N T A I S

tal m o d o que, seja qual for o nvel dessas desigualdades, grande ou pequeno, devem representar o maior benefcio possvel para os m e m bros menos privilegiados da sociedade . Todos esses elementos ainda5

tm validade, como t i n h a m em Teoria; o mesmo se pode dizer da argumentao e m favor deles. A s s i m sendo, pressuponho ao longo de todas estas conferncias a mesma concepo igualitria de justia de antes, e, embora mencione revises de vez em quando, nenhuma delas afeta esse p o n t o em particular . N o entanto, nosso tema o libe6

ralismo poltico e as idias que o c o n s t i t u e m , de m o d o que grande parte de nossa discusso diz respeito a concepes liberais de forma mais geral, a d m i t i n d o todas as suas variantes, como, por exemplo, quando consideramos a idia da razo pblica (em I V ) . F i n a l m e n t e , como seria de esperar, alguns aspectos importantes dos dois princpios so ignorados na formulao sucinta apresentada acima. E m particular, o p r i m e i r o princpio, que trata dos direitos e liberdades bsicos e iguais, pode facilmente ser precedido de u m p r i n cpio lexicamente anterior, que prescreva a satisfao das necessidades bsicas dos cidados, ao menos medida que a satisfao dessas necessidades seja necessria para que os cidados entendam e tenham condies de exercer de forma fecunda esses direitos e liberdades. evidente que u m princpio desse t i p o t e m de estar pressuposto na5. H uma srie de questes a respeito da interpretao proposta sobre o princpio de diferena. Por exemplo: os membros menos privilegiados da sociedade so determinados por uma descrio e no por um designador rgido (usando o termo de Saul Kripke em Naming and Necessity [Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1972]). Alm disso, o princpio no requer um crescimento econmico contnuo ao longo das geraes para maximizar de forma crescente e indefinidamente as expectativas dos menos privilegiados. E compatvel com a idia de Mill de uma sociedade num estado estacionrio justo, onde a acumulao (real) de capital zero. O que o princpio requer que, por maiores que sejam as desigualdades existentes e por maior que seja a disposio das pessoas para trabalhar de modo a ganhar o mais que puderem, as desigualdades existentes devem ser ajustadas de modo a contribuir da forma mais efetiva possvel para o benefcio dos menos privilegiados. Essas observaes sucintas no so claras; simplesmente indicam as complexidades que no so a nossa preocupao nessas conferncias. 6. Fao esse comentrio porque alguns pensaram que minha formulao das idias do liberalismo poltico significava renunciar concepo igualitria de Teoria. No me lembro de nenhuma reviso que implique tal mudana e penso que essa conjectura no tem fundamento.

49

O

L I B E R A L I S M O

P O L I T I C O :

E L E M E N T O S

B S I C O S

aplicao do p r i m e i r o princpio . Mas, a q u i , no me estendo sobre1

essas e outras questes. 3. E m vez disso, retomo nossa p r i m e i r a questo e p e r g u n t o : como a filosofia poltica poderia encontrar u m a base c o m u m para responder a uma questo fundamental como a da famlia de instituies mais apropriada para g a r a n t i r a liberdade e a igualdade democrtica? Talvez o mximo que se possa fazer seja reduzir o leque de d i s cordncias. N o entanto, mesmo convices profundamente arraigadas m u d a m ao longo do tempo: a tolerncia religiosa aceita hoje, e os argumentos em favor da perseguio no so mais defendidos abertamente; da mesma f o r m a , a escravido, que levou G u e r r a C i v i l americana, repudiada como inerentemente injusta e, por mais que suas conseqncias persistam em polticas sociais e em atitudes i n confessveis, ningum est disposto a defend-la. Reunimos convices arraigadas, como a noo de tolerncia religiosa e a de repdio escravido, e procuramos organizar as idias e princpios bsicos nelas implcitos numa concepo poltica coerente de justia. Tais convices so pontos de referncia provisrios, que, ao que parece, toda concepo razovel deve levar em conta. Nosso p o n t o de p a r t i d a , ento, a noo da prpria c u l t u r a pblica como f u n d o c o m u m de idias e princpios bsicos i m p l i c i t a m e n t e reconhecidos. Esperamos formular essas idias e princpios de forma clara o bastante para a r t i cul-los em uma concepo poltica de justia condizente c o m nossas convices mais profundamente arraigadas. Expressamos isso ao dizer que u m a concepo poltica de justia, para ser aceitvel, deve estar de acordo com nossas convices refletidas, em todos os nveis7. A respeito da formulao desse princpio, assim como de uma formulao mais completa em quatro partes dos dois princpios, com revises importantes, ver Rodney Peffer, Marxism, Morality, and Social Justice (Princeton: Princeton University Press, 1989), p 14. Concordo com a maior parte da formulao de Peffer, mas no com 3 (b), que parece exigir uma forma socialista de organizao econmica. A dificuldade aqui no se relaciona com o socialismo enquanto tal; mas no penso que o socialismo seja uma exigncia dos princpios primeiros de justia poltica. Vejo esses princpios (como vi em Teoria), como uma descrio dos valores fundamentais em termos dos quais, dependendo da tradio e das circunstncias da sociedade em questo, se pode considerar se alguma forma de socialismo se justifica.

50

I D I A S

F U N D A M E N T A I S

de generalidade; deve, pois, decorrer da devida reflexo, ou d a q u i l o que, em outro trabalho, chamei de "equilbrio reflexivo"". A c u l t u r a poltica pblica pode estar d i v i d i d a n u m nvel m u i t o p r o f u n d o . N a verdade, assim h de ser c o m controvrsias de longa data, como aquela sobre o entendimento mais correto de liberdade e igualdade. Isso u m sinal de que, se quisermos encontrar u m a base de concordncia pblica, devemos buscar u m a maneira de organizar idias e princpios conhecidos n u m a concepo de justia poltica que expresse essas idias e princpios de u m modo diferente do anterior. A justia como eqidade procura realizar esse i n t e n t o valendose de u m a idia organizadora f u n d a m e n t a l no interior da qual todas as idias e princpios possam ser sistematicamente conectados e relacionados. Essa idia organizadora a da sociedade concebida como u m sistema eqitativo de cooperao social entre pessoas livres e iguais, vistas como membros plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida. Tal idia fornece a base para responder p r i meira questo fundamental, que retomo adiante em 3 . 4. Suponha agora que a justia como eqidade tenha conseguido seus objetivos e que uma concepo poltica publicamente aceitvel tenha sido encontrada. Nesse caso, essa concepo proporciona u m ponto de vista publicamente reconhecido, com base no qual todos os cidados podem i n q u i r i r , uns frente aos outros, se suas instituies polticas so justas. Tal concepo lhes possibilita fazer isso especificando o que deve ser publicamente reconhecido pelos cidados como razes vlidas e suficientes, as quais so destacadas por essa mesma concepo. As principais instituies da sociedade e a maneira pela q u a l se organizam n u m sistema nico de cooperao social p o d e m8. Ver Teoria, pp. 20 s., 48-51, e 120 s. Uma caracterstica do equilbrio reflexivo que inclui nossas convices refletidas em todos os nveis de generalidade; nenhum nvel, como o do princpio abstrato ou de juzos especficos em casos especficos, digamos, considerado fundamental. Todos podem ter uma credibilidade inicial. H tambm uma distino importante entre equilbrio reflexivo estreito e amplo, que est implcita na distino entre o primeiro e o segundo tipo de equilbrio reflexivo das pp. 49-50 (embora os termos no sejam usados). Os termos estreito e amplo foram usados primeiro em 1 de "Independence of Moral Theory", Proceedings of the American Philosophical Association 49 (1974).

51

O

L I B E R A L I S M O

P O L T I C O :

E L E M E N T O S

B S I C O S

ser examinadas da mesma forma por qualquer cidado, seja qual for sua posio social ou seus interesses mais particulares. O objetivo da justia como eqidade , por conseguinte, prtico: apresenta-se como uma concepo da justia que pode ser c o m p a r t i lhada pelos cidados como a base de u m acordo poltico racional, b e m - i n f o r m a d o e voluntrio. Expressa a razo poltica c o m p a r t i l h a da e pblica de uma sociedade. Mas, para se chegar a uma razo c o m partilhada, a concepo de justia deve ser, tanto quanto possvel, i n dependente das doutrinas filosficas e religiosas conflitantes e opostas que os cidados professam. A o formular tal concepo, o liberalismo poltico aplica o princpio da tolerncia filosofia. As doutrinas r e l i giosas, que em sculos anteriores formavam a base reconhecida da sociedade, foram aos poucos cedendo o lugar a princpios constitucionais de governo que todos os cidados, qualquer que seja sua viso religiosa, p o d e m endossar. D o u t r i n a s filosficas e morais abrangentes tampouco podem ser endossadas pelos cidados em geral, e j no p o d e m mais, se que p u d e r a m a l g u m dia, constituir-se na base reconhecida da sociedade. Desse m o d o , o liberalismo poltico procura u m a concepo poltica de justia que, assim esperamos, possa conquistar o apoio de u m consenso sobreposto que abarque as doutrinas religiosas, filosficas e morais razoveis de u m a sociedade regulada por ela . A conquista9

desse apoio permitir responder nossa segunda questo f u n d a m e n t a l : como os cidados, que c o n t i n u a m profundamente d i v i d i d o s em relao s doutrinas religiosas, filosficas e morais, m a n t m , apesar disso, uma sociedade democrtica justa e estvel? Para essa finalidade, em geral desejvel renunciar s vises filosficas e morais abrangentes que estamos habituados a usar para debater questes polticas fundamentais na vida pblica. A razo pblica o debate dos cidados no espao pblico sobre os fundamentos constitucionais e as questes bsicas de justia agora mais b e m orientada por u m a concepo poltica cujos princpios e valores todos os cidados pos9. A idia de um consenso sobreposto definida em 2.3 e detalhada em 6 . 3 - 4 .

52

I D I A S

F U N D A M E N T A I S

sam endossar ( V I ) . Essa concepo poltica deve ser, por assim dizer, poltica, e no metafsica ".1

Por conseguinte, o liberalismo poltico tem por objetivo uma concepo poltica de justia que se constitua numa viso auto-sustentvel. No defende nenhuma doutrina metafsica ou epistemolgica especfica, alm daquela que a prpria concepo poltica i m p l i c a . Enquanto interpretao de valores polticos, uma concepo poltica auto-sustentvel no nega a existncia de outros valores que se a p l i q u e m , digamos, quilo que pessoal, familiar ou prprio das associaes; tampouco afirma que os valores polticos so separados de outros valores ou que estejam em descontinuidade com eles. U m objetivo, como disse, especificar a esfera poltica e sua concepo de justia de tal forma que as instituies possam conquistar o apoio de u m consenso sobreposto. Nesse caso, os prprios cidados, no exerccio de sua liberdade de pensamento e conscincia, e considerando suas doutrinas abrangentes, vem a concepo poltica como derivada de ou congruente com outros valores seus, ou pelo menos no em conflito com eles.

2 . A i d i a de u m a c o n c e p o p o l t i c a de j u s t i a 1. At agora usei a idia de uma concepo poltica de justia sem explicar seu significado. D o que j falei, talvez se possa deduzir o que quero dizer com esse termo e por que o liberalismo poltico faz uso dessa i