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Menina Macuxi, durante 37ª Assembléia Geral dos Povos Indígenas de Roraima. Março de 2008. Foto: CIR ISSN 0102-0625 Ano XXX N 0 304 Brasília-DF Abril-2008 R$ 3,00 Cimi lança relatório de violência contra os povos indígenas 2006-2007 Página 3 Povos indígenas resistem a ataques dos arrozeiros que insistem em não desocupar a área invadida Páginas 8 e 9 Juiz nega pedido à hidroelétrica Itaipu em favor do povo Avá Guarani em SC Página 11 RAPOSA SERRA DO SOL

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ISSN

010

2-06

25

Ano XXX • N0 304 • Brasília-DF • Abril-2008R$ 3,00

Cimi lança relatório de violência contra os povos indígenas

2006-2007Página 3

Povos indígenas resistem a ataques dos arrozeiros que insistem em não desocupar a área invadida

Páginas 8 e 9

Em defesa da causa indígena

Juiz nega pedido à hidroelétrica Itaipu

em favor do povo Avá Guarani em SC

Página 11

Raposa seRRa do sol

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2Abril-2008

Opinião

nistérios, em frente ao Ministério da Justiça. A bandeira que motivava a todos era a homologação de Raposa Serra do Sol.

No ano seguinte, a vitória foi alcançada. Daí em diante o Acampa-mento Terra Livre passou a ser um dos espaços mais importantes de mobilização, visibilidade política e articulação das lutas indígenas, espe-cialmente pela demarcação e garantia de seus territórios.

Neste 5° Acampamento Terra Livre, que acontece de 14 a 17 de abril de 2008, algumas questões se destacam como fatores de mobiliza-ção, debate e enfrentamento. Uma delas é a extrema violência que atinge o povo Guarani, particularmente os Kaiowá e Nhandeva, do Mato Grosso do Sul. O genocídio desse povo foi denunciado a instâncias nacionais e internacionais. O movimento indígena nacional irá cobrar medidas urgentes para dar um basta a essa situação, com a imediata demarcação dos territórios dos Guarani.

Outro desafio a ser colocado é a aprovação do Estatuto dos Povos Indí-genas. Como caminhar para a desco-lonização das relações do Estado com os povos indígenas? Nesse sentido, uma discussão importante se impõe

entre os movimentos sociais, o movimento indígena tem se destacado pelo seu cres-cimento, com certa regulari-

dade ascendente, desde a década de 1970, atravessando os períodos duros da ditadura militar, da ditadura neoli-beral e do terrorismo do capital.

Desde a decisiva marcha e mobi-lização indígena, em abril de 2000, por ocasião dos 500 anos de invasão (o mal dito descobrimento) do Brasil, o mês de abril tornou-se símbolo de luta e mobilização do movimento indígena brasileiro.

Em 2003, o movimento indígena retomou o fôlego com o “Encontro Nacional de Povos e Organizações Indígenas”, quando representantes de mais de 50 povos de 22 estados rea-lizaram uma mobilização em Brasília para celebrar a resistência dos povos indígenas e a construção de uma nova história do país. Porém, Lula não os recebeu e eles sofreram agressões da polícia, mas também celebraram a memória, na Praça Galdino, dos que tombaram na luta.

Já em 2004 foi criado um espaço de luta no coração do poder. Um acampamento montado de forma inédita criava uma aldeia de bambu e lona preta, na Esplanada dos Mi-

AbrIl IndíGenA

Mobilizando lutas e esperança

MARIOSAN

a todo o continente, que é o avanço das “autonomias indígenas” nos di-versos níveis e formas de articulação e relações, com o diálogo igualitário e permanente, o respeito à diversidade e à pluralidade dos países.

Não restam dúvidas de que a enorme diversidade de situações das realidades dos povos indígenas exigirá um processo lento e diversificado na construção de formas de autonomia administrativa, política e cultural. As bases para esse processo já estão na Constituição brasileira e em normas e leis internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU.

Este abril será também um mo-mento de fazer avançar a esperança, seja através da comunhão de ideais com outros movimentos sociais, especialmente os do campo – MST, Via Campesina, movimentos quilom-bolas –, seja através dos debates e da construção de alianças, ou ainda pela definição e articulação de estratégias comuns de lutas pelos direitos. Povos indígenas rumo à construção de um novo mundo!

Egon D. HeckCimi MS

Porantinadas

Edição fechada em 09/04/2008

Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.

ISS

N 0

102-

0625

APOIADORES

UNIÃO EUROPÉIA

Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.

Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

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Na língua da nação indígena sateré-Mawé, PorANTIM

significa remo, arma, memória.

Dom Erwin Kräutler PresIDeNTe

Paulo Maldos Assessor PolíTIco

Clarissa TavareseDITorA

rP 01580JP/ce

editoração eletrônica:licurgo s. Botelho

(61) 3349-5274

revisão:leda Bosi

Impressão:Gráfica Teixeira(61) 3336-4040

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redação e Administração:sDs - ed. Venâncio III, sala 310 ceP 70.393-902 - Brasília-DF

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cartório do 2º ofício de registro civil - Brasília

Marcy PicançoeDITorA

rP 4604/02 DF

coNselho De reDAçÃoAntônio C. Queiroz

Benedito PreziaEgon Heck

Nello RuffaldiPaulo Guimarães

Paulo MaldosPaulo Suess

Amazônia de quem?Atualmente 3,1 milhões de hectares

de terras na Amazônia Legal estão nas mãos de estrangeiros. A informação é do presidente do Incra, Rolf Hackbart. A área corresponde a 39 mil imóveis rurais, mas pode ser ainda maior. O avanço do agronegócio e os altos preços dos grãos têm chamado a atenção dos estrangeiros, o que aumenta a especula-ção imobiliária na região. Terras estariam sendo vendidas até pela internet. A pergunta é: quem revida esse domínio estrangeiro? Injusta inversão. Pois são os índios brasileiros que precisam provar a ferro e fogo o direito de posse a seus territórios originários.

em mãos insegurasOs Estados Unidos estão dispostos

a colaborar em um plano de segurança para a América do Sul. A afirmação foi feita pela secretária de Estado norte-americana, Condolezza Rice, que esteve em Brasília com Lula e o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. De acordo com Rice, as fronteiras são o local preferido dos terroristas para se escon-derem, por isso é importante reequipar os limites terrestres cada vez mais. Como se já não bastasse o financiamento às guerras do Iraque e Afeganistão – que custaram aos EUA o equivalente a R$ 6 trilhões – será a vez do Tio Sam botar fogo no continente latino-americano. Plano, aliás, já colocado em prática com o apoio estadunidense à invasão do território equatoriano por militares colombianos.

O mais rico do brasilO proprietário do Grupo Votorantim,

Antônio Hermírio de Moraes, é o homem mais rico do Brasil. A informação foi divulgada pela revista norte-americana Forbes. Segundo a publicação, Hermírio é dono de uma fortuna de pouco mais de 10 bilhões de reais. O valor ficou na 77ª colocação entre as maiores do mundo. A maior parte dos rendimentos da Voto-rantim provém dos cimentos, siderurgia e –adivinhem – do setor de celulose!

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3 Abril-2008

Relatório de Violência

Marcy PicançoRepórter

Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lan-çou, no dia 10 de abril, a publicação Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – rela-tório 2006 – 2007. Há quase vinte anos, o

Cimi acompanha, por meio do trabalho em área dos missionários e do levantamento de matérias publica-das em jornais de todo o país, os casos de violência que envolvem povos indígenas. O lançamento do relatório ocorreu durante a 46ª Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Indaiatuba, São Paulo.

A publicação aborda a violência praticada contra o patrimônio indígena, como os conflitos territoriais e os danos ambientais e a violência praticada contra os indivíduos, como os assassinatos, as ameaças de morte e os atos de racismo. Outro tema diz respeito às violên-cias decorrentes da omissão do poder público, como os suicídios, a mortalidade infantil e a desassistência à saúde indígena. O capítulo final do relatório apresenta dados sobre ameaças a povos indígenas isolados e de pouco contato que vivem na Amazônia.

Em 2007, aumentou em 99% o número de indígenas

assassinados no MSDa mesma forma que no relatório divulgado

com dados de 2003 a 2005, o dado que mais chama atenção no recente relatório é o número de indígenas assassinados no Mato Grosso do Sul. Foram 53 em 2007 e 27 em 2006, o que mostra um aumento de 99% no número de assassinatos. Em todo o país, o número de indígenas assassinados aumentou 64% entre 2006 e 2007, passando de 57 para 92 casos.

Como a maior parte dos assassinatos ocorreu no MS, isso revela que é crescente a tensão que perpassa o cotidiano das comunidades Guarani-Kaiowá, viven-do em parcelas exíguas de terra, em acampamentos em beira de estradas e em terras demarcadas que abrigam Tekohás (terra tradicional) diversos. Nesta situação, sobra pouco espaço para a plantação e o trabalho assalariado fora das aldeias é a condição quase exclusiva para a sobrevivência.

Segundo análise da antropóloga Lúcia Rangel, organizadora do relatório: “A situação do povo Guarani-Kaiowá permanece igual à que foi retratada no relatório de 2003-2005; os dados mostram que um verdadeiro genocídio continua em curso no Mato Grosso do Sul: maior número de vítimas de assassina-to, tentativas de assassinato, suicídios; índices ainda altos de desnutrição, mortalidade infantil, alcoolismo e toda sorte de agressões e ameaças. Morrem atro-pelados, mendigam nas cidades, sofrem violências sexuais, são presos e vivem em meio a grandes plantações (cana, soja, milho) e pecuária extensiva que contaminam com agrotóxicos as fontes de água, provocam doenças e não deixam espaço para a agri-cultura familiar”.

Cimi divulga relatório de violência contra povos indígenas no brasil 2006 -2007

Nas usinas de cana-de-açúcar, trabalho

degradante e assassinatosNo relatório 2006-2007, merece

destaque o impacto que o aumento das usinas de cana-de-açúcar causa aos povos indígenas no Mato Gros-so do Sul. Há registro de casos de indígenas encontrados trabalhando em condições extremamente degra-dantes ou em condições análogas à escravidão em fazendas de cana e usinas.

Em março de 2007, 150 indígenas que trabalhavam no corte de cana na Destilaria Centro Oeste Iguatemi Ltda (Dcoil) foram libertados por fiscais da Delegacia Regional do Trabalho/MS. Em novembro do mesmo ano, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) descobriu 1.011 indígenas vivendo em condições degradantes na usina Debrasa.

No Maranhão, exploração de recursos naturais gera

agressões e mortesEm 2007, o estado onde foi re-

gistrado o segundo maior número de assassinatos foi o Maranhão. Foram 10 vítimas. Destes casos, três estão relacionados ao problema da exploração ilegal de madeira na terra Araribóia, do povo Guajajara.

A presença constante dos ma-deireiros e o desmatamento também ameaçam um grupo de pelo menos 60 pessoas do povo Awá Guajá que vive nesta terra, sem contato com a sociedade envolvente.

Ainda no Maranhão, o povo Guajajara continua sofrendo as conseqüências da presença da Vale (antiga Companhia Vale do Rio Doce) em seu território. Em 2006, os dois casos de homicídios culposos registra-dos no estado estão ligados à estrada de ferro da em-presa que corta a terra Maranduba, dos Guajajara.

Invasões possessóriasAo longo de 2006, o Cimi registrou 32 casos de

invasões possessórias e exploração de recursos natu-rais nos estados do Amazonas (4), Bahia (1), Ceará (2), Maranhão (1), Mato Grosso (3), Mato Grosso do Sul (4), Pará (4), Rondônia (2), Roraima (9), Tocantins (1) e Santa Catarina (1). Em 2007, foram 14 ocorrências, registradas no Acre e nos demais estados menciona-dos em 2006. Os invasores foram posseiros, grileiros, fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, mas também empresas, nacionais e internacionais e até agentes do Estado, como a Polícia Federal ou a Polícia Militar.

Tupinikim e Guarani, em 2006 – A demora do Estado em regularizar as terras indígenas provoca a violênciaDentre as situações de violência registradas em

2006, o Cimi destaca o conflito entre a empresa Aracruz Celulose e os povos Tupinikim e Guarani, no Espírito Santo. A disputa em torno de 11 mil hectares de terra foi encerrada em agosto de 2007, quando o ministro da Justiça, Tarso Genro, assinou a portaria declarando como indígena a área, que até então era ocupada por plantações de eucalipto da Aracruz Celulose.

A partir de 2005, o conflito, que já existia há anos, ficou acirrado. Neste processo, o governo demorou a dar uma solução para a questão, descumprindo todos os prazos legais do Decreto 1775/98, que regula o processo de demarcação de terras indígenas. Enquanto isso, os povos Tupinikim e Guarani foram vítimas de abuso de poder, agressões, ameaças, racismo e outros tipos de violência. Em algumas destas agressões, como na destruição de aldeias que ocorreu em janeiro de 2006, o Estado e a Aracruz Celulose agiram juntos.

O

Ação da Polícia Federal, com apoio da empresa Aracruz Celulose, destrói aldeias dos povos Tupinikim e Guarani. Espírito Santo, janeiro de 2006Fac-simile da capa do Relatório – Foto: Vanessa Vilarinho

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4Abril-2008

Circular Fraterna

Dom Pedro Casaldáliga*

stava eu pensando a circular de 2008, quando me invade, como um rio bíblico de leite e mel, uma autêntica enchente de

mensagens de solidariedade e carinho por ocasião dos meus 80 anos. Não podendo responder a cada um e a cada uma em particular, inclusive porque o irmão Parkinson tem os seus caprichos, peço a vocês que recebam esta circular como um abraço pessoal, entranhável, de gratidão e de comunhão renovadas.

Estou lendo uma biografia de Dietri-ch Bonhoeffer, intitulada, muito signifi-cativamente, “Deveríamos ter gritado”. Bonhoeffer, teólogo e pastor luterano, profeta e mártir, foi assassinado pelo nazismo, no dia 9 de abril de 1945, no campo de concentração de Flossenbürg. Ele denunciava a “Graça barata” à qual reduzimos muitas vezes nossa fé cristã. Advertia também que “quem não tenha gritado contra o nazismo não tem direi-to a cantar gregoriano”. E chegava final-mente, já nas vésperas do seu martírio, a esta conclusão militante: “tem que se pa-rar a roda bloqueando seus raios”. Não bastava então socorrer pontualmente as vítimas trituradas pelo sistema nazi, que para Bonhoeffer era a roda; e não nos podem bastar hoje o assistencialismo e as reformas - remendo frente a essa roda que para nos é o capitalismo neoliberal com os seus raios do mercado total, do lucro omnímodo, da macroditadura econômica e cultural, dos terrorismos do Estado, do armamentismo de novo crescente, do fundamentalismo religio-so, da devastação ecocida da terra, da água, da floresta e do ar.

Não podemos ficar estupefatos dian-te da iniqüidade estruturada, aceitando como fatalidade a desigualdade injusta entre pessoas e povos, a existência de um Primeiro Mundo que tem tudo e um Terceiro Mundo que morre de inanição. As estatísticas se multiplicam e vamos conhecendo mais números dramáticos, mais situações infra-humanas. Jean Ziegler, relator das Nações Unidas para a Alimentação, afirma, carregado de experiência, que “a ordem mundial é assassina, pois hoje a fome não é mais uma fatalidade”. E afirma também que “destinar milhões de hectares para a produção de bio-carburantes é um crime contra a Humanidade”. O bio-combustível não pode ser um festival de lucros irresponsáveis. A ONU vem alertando que o aquecimento global do planeta avança mais rapidamente do que se pensava e, a menos que se adotem medidas urgentes, provocará a desaparição de 30% das espécies animais e vegetais, milhões de pessoas serão privadas de água e proliferarão as secas, os incêndios, as enchentes. A gente se

pergunta angustiado quem irá adotar essas “medidas urgentes”.

O grande capital agrícola, com o agronegócio e cada vez mais o hidro-negócio, avança sobre o campo, con-centrando terra e renda, expulsando as famílias camponesas e jogando-as errantes, sem terra, acampadas, en-grossando as periferias violentas das cidades. Dom Erwin Kräutler, bispo de Xingu e presidente do Cimi, denuncia que “o desenvolvimento na Amazônia tornou-se sinônimo de desmatar, queimar, ar-rasar, matar”. Segundo Roberto Smeraldi, da Amigos da Terra, as po-líticas contraditórias do Banco Mundial por um lado “prometem salvar as árvores” e por outro lado, “ajudam a derrubar a Amazônia”.

Mas a Utopia conti-nua. Como diria Bloch, somos “criaturas espe-rançadas” (e esperan-çadoras). A esperança segue, como uma sede e como um manancial. “Contra toda esperança esperamos”. Da esperança fala, precisamente, a recente encíclica de Bento XVI (pena que o Papa, nesta encí-clica, não cita nem uma vez o Concílio Vaticano II, que nos deu a Constituição Pastoral Alegria e Esperança). Frente ao descrédito da política, em quase todo o mundo, nossa Agenda Latino-americana 2008 aposta por uma nova política; até “pedimos, sonhando alto, que a política seja um exercício de amor”.

Um amor muito realista, militante, que subverta estruturas e instituições rea-cionárias, construídas com a fome e o sangue das maiorias pobres, a serviço do condomínio mundial de uma minoria plutocrata.

Por sua parte as entidades e os pro-jetos alternativos reagem tentando criar consciência, provocar uma santa rebel-dia. O Fórum Social Mundial 2009 vai ser realizado, precisamente, na Amazônia brasileira e terá a Amazônia como um

dos seus temas centrais. E o XII Encontro Intere-clesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em 2009, se celebrará também na Amazônia, em Porto Velho, Rondônia. Nossa militância política e nossa pastoral liberta-dora devem assumir cada vez mais estes desafios maiores, que ameaçam nosso Planeta. “Escolhe-mos, pois, a vida”, como reza o lema da Campanha da Fraternidade 2008. O apóstolo Paulo, em sua

Carta aos Romanos, nos lembra que “toda a criação geme e está com dores de parto”. Os gritos de morte cruzam-se com os gritos de vida, neste parto universal.

É tempo de paradigmas. Creio que hoje se devem citar, como paradigmas maiores e mais urgentes, os direitos humanos básicos, a ecologia, o diálogo intercultural e inter-religioso e a con-vivência plural entre pessoas e povos. Estes quatro paradigmas nos afetam a

todos, porque saem ao encontro das convulsões, objetivos e programas que está vivendo a Humanidade maltratada, mas esperançada ainda sempre.

Com tropeços e ambigüidades Nos-sa América se move para a esquerda; “novos ventos sopram no Continente”; estamos passando “da resistência à ofensiva”. Os povos indígenas de Abya Yala (América) têm saudado com alegria a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que afeta a mais de 370 milhões de pessoas em 70 países do mundo; e reivindicarão a execução real dessa Declaração.

Nossa Igreja da América Latina e o Caribe, em Aparecida, se não foi aquele Pentecostes que queríamos sonhar, foi uma profunda experiência de encontro entre bispos e povo; e confirmou os traços mais característicos da Igreja da Libertação: o seguimento de Jesus, a Bíblia na vida, a opção pelos pobres, o testemunho dos mártires, as comuni-dades, a missão inculturada, o compro-misso político.

Irmãos e irmãs, que raios vamos que-brar em nossa vida diária? Como ajuda-remos a bloquear a roda fatal? Teremos direito a cantar gregoriano? Saberemos incorporar em nossas vidas esses quatro paradigmas maiores traduzindo-os em prática diária?

Recebam um abraço entranhável na esperança subversiva e na comunhão fraterna do Evangelho do Reino. Vamos sempre para a Vida.

* Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT) e um dos mais impor-tantes militantes brasileiros pelos direitos humanos.

Parar a roda bloqueando seus raios

e

“Não podemos ficar estupefatos

diante da iniqüidade estruturada,

aceitando como fatalidade a

desigualdade injusta entre pessoas e

povos, a existência de um primeiro Mundo que tem

tudo e um Terceiro Mundo que morre de

inanição”

Comunidade de Cero’i, do povo Guarani Kaiowá, em dança ritual na terra indígena de Kurussu Ambá, estado do Mato Grosso do Sul

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5 Abril-2008

Rosane Lacerda*

anúncio da convocação da Assembléia Nacional Consti-tuinte (ANC) suscitou nos povos indígenas duas possibilidades

inéditas: a de fazerem contemplar na nova Carta as suas próprias propostas e a de se representarem através de cadeiras especiais.

A questão foi discutida pela primei-ra vez em julho de 1985, por lideranças de 30 povos reunidos em Goiânia (GO) pela União das Nações Indígenas (UNI), com o apoio do Cimi. Concluíram ali que a representação de seus povos na ANC deveria ser direta, através de dois representantes por região do país, escolhidos segundo métodos próprios de escolha de suas comunidades e, portanto, fora do âmbito das legendas partidárias. Conscientes da importância de suas identidades próprias, os índios reivindicavam já naquele momento uma nova forma de relação com o Estado, posta sobre bases jurídico-políticas fun-dadas numa perspectiva participativa, pluriétnica e multicultural.

A proposta ganhou o apoio das en-tidades indigenistas e de setores com-prometidos ou simpatizantes, como o II Congresso Nacional de Advogados Pró-Constituinte, realizado em Brasília pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1985. Contudo, foi rejeitada pelo presidente da Comissão de Estu-dos Constitucionais, o jurista Afonso Arinos, sob o argumento de que os índios deveriam ser representados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), por ser este o “seu órgão tutor”.

O movimento indígena voltou-se então para a tentativa de acesso à Constituinte através das eleições de 1986. Sete indígenas concorreram ao pleito. Nenhum conseguiu se eleger. Apontou-se à época entre as causas a sua desvantagem frente aos poderosos interesses fundiários regionais e a falta de recursos e de experiência.

Fechadas as portas à representação especial e ao acesso pela via partidária, o movimento indígena passou a investir na articulação do apoio parlamentar ao “Programa Mínimo para os Direitos

Indígenas na Constituinte”. Para tanto contaria com o apoio de entidades alia-das como o Cimi, o Instituto Nacional de Estudos Socioculturais (Inesc), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi) e a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP).

As perspectivas eram bem desfavo-ráveis. Segundo previsão do sociólogo e constituinte Florestan Fernandes (PT/SP) as propostas do movimento só contariam com o apoio de 25% dos constituintes. Além das dificuldades representadas pelas pressões do lati-fúndio, os índios também encontrariam pela frente o poderoso lobby das mi-neradoras e a oposição da presidência da Funai, que alardeava haver “muita terra para pouco índio”, e que estes já estariam devidamente representados pelo “órgão tutor”. Ficava clara a ne-cessidade de uma presença indígena no espaço da ANC, que fosse constante, numerosa e qualificada.

Seria necessário superar inúmeros desafios, como a distância e o isola-mento das aldeias, a necessidade de composição política face à diversida-de étnico-lingüística dos povos e o desconhecimento da grande maioria quanto às estruturas jurídico-políticas do Estado. Contudo, um a um os líderes indígenas afirmavam a sua disposição em lutar para que se fizesse constar os desejos e necessidades de seus povos. Para os antigos guerreiros a Constituin-te surgia como um novo e desafiador espaço de luta.

Impedidos juntamente com os demais segmen-tos dos movimentos sociais de participar da cerimônia de ins-talação da ANC, os índios estrearam na Constituinte com uma pajelança para afastar das votações os “maus espíritos”.

Durante os trabalhos da ANC, sucessivas delegações permaneceram mobilizadas em Brasília, reunindo-se e revezando-se periodicamente. Com suas pinturas e adornos cerimoniais, portando arcos, flechas e bordunas e executando danças e cantos rituais, cir-

cularam de forma desenvolta e discipli-nada pelos gabinetes dos constituintes e corredores das duas Casas.

Participaram de audiências públi-cas, articularam-se a outros movimen-tos sociais, elaboraram e distribuíram documentos, abordaram os parlamen-tares, deixaram cocares nas cabeças das grandes lideranças e a cada votação postaram-se em “corredor polonês” na entrada do Plenário da Câmara. A cada vitória subiam em festejo a rampa do Congresso Nacional.

Todo este processo foi marcado por alguns episódios históricos, como

o discurso de Raoni Mentuktire na audiência pública da “Subco-

missão da Nacionalidade, Soberania e Relações

Internacionais” em maio de 1987: “Meu

povo tava morrendo na mão do seu povo. Eu não aceito. Nosso índio não é bicho. Vocês também não é bicho. Vocês tem que brigar pro seu povo e tem que respeitar o meu povo”.

IndíGenAS nA COnStItuInte

donos de sua própria históriaPara isso, foi necessário superar desafios como o isolamento das aldeias, a necessidade de composição política face à diversidade étnico-lingüística dos povos e o desconhecimento quanto às estruturas jurídico-políticas do Estado

A participação indígena na Cons-tituinte destacou não apenas a perse-verança de suas lideranças diante dos obstáculos, mas também a sua altivez, disciplina, capacidade de organização e de composição política em meio à diversidade. Para eles ficou clara a consciência de terem participado de um momento histórico para o país. Sempre imaginados como incapazes, os índios puderam demonstrar, com sua presença na Constituinte, que “são os donos do seu próprio destino”.

* Advogada, Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB, professora universitária, assistente jurídica do Instituto Migrações e Direitos Humanos – IMDH, e assessora jurídica do Cimi à época da Constituinte.

OAcima, lideranças dos povos Xucuru e Kapinawá (PE), Potiguara (PB) e Karapotó (AL). Abaixo, do povo Kayapó (PA). Em Brasília, durante o processo Constituinte em 1988

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6Abril-2008

Rio São FranciscoIndígenas podem ter diploma cubano de medicina revalidadoApenas em 2007, cerca de 30 indígenas foram selecionados para estudar medicina em Cuba

Clarissa TavaresEditora do Porantim

acreano Jenilson Lopes é um dos estudantes brasileiros que cursam medicina na Escola Latino-Americana de Ciên cias Médica (ELAN), em Cuba.

Dentre os estudantes brasileiros, dezenas são indígenas. No início de março, Jenilson parti-cipou, em Brasília, de reuniões com represen-tantes dos ministérios da Saúde, Educação e das Relações Exteriores sobre a revalidação do diploma cubano no Brasil. Os três ministérios formaram um Grupo de Trabalho (GT) para encaminhar a questão.

Segundo Jenilson, cerca de 200 estudantes já concluíram os estudos em Cuba e retorna-ram ao Brasil e outros 800 estão cursando atualmente. “Os que já voltaram estão sem poder exercer a profissão. Enquanto isso, temos mil municípios brasileiros que não possuem médicos. Não porque o Brasil não tenha médicos suficientes, mas porque eles não querem ir para os municípios distantes”, conta Jenilson.

Essa dificuldade de conseguir médicos com disposição para trabalhar em áreas distantes é sentida pelos povos indígenas. No Vale do Java-ri, estado do Amazonas, a disponibilidade de atendimento especializado é precária e, muitas vezes, ausente. Apenas no primeiro semestre de 2007 foram contabilizadas 23 mortes em várias aldeias, das quais quatro se deram por febre amarela e 19 por malária e hepatite.

Diante de realidades como esta, os estu-dantes indígenas formados em Cuba planejam conseguir revalidar os diplomas para prestar assistência médica às suas comunidades. Apenas em 2007, cerca de 30 indígenas foram selecionados para estudar medicina na escola cubana.

PropostaA proposta apresentada pelo GT é a criação

de convênios entre a Escola de Cuba e univer-sidades públicas brasileiras. Por meio destes convênios os alunos cursariam até o 5º ano em Cuba e o 6º ano no Brasil. A princípio, cinco universidades demonstraram interesse: UFAC (Acre), UFAM (Amazonas), UFC (Ceará), UFRJ (Rio de Janeiro) e UFMG (Minas Gerais).

Pelos termos sugeridos para os convênios, após a finalização dos estudos, os alunos se comprometeriam a ficar disponíveis para trabalhar, durante um ano, em municípios lo-calizados nos estados onde foram concluídos os cursos.

Frei Gilvander MoreiraAssessor da CPT

trabalho do Exército, em “parceria” com as empre-sas privadas e suas máqui-nas, caminhões, tratores,

carregadeiras e operários fazem avançar as obras da maldita trans-posição do rio São Francisco. É o que pode ser confirmado por fotografias.

Na região de Cabrobó, onde inicia o Eixo Norte, e de Itaparica, onde inicia o Eixo Leste, encon-tram-se placas alertando e intimi-dando a população: “Área militar. Não entre. Se entrar incorrerá nas penalidades do art. 9º, III, a, b do CPM”. Será que o povo simples da região sabe do que trata o tal artigo 9º? E o que significa CPM (Código Penal Militar)?

Há tanques de guerra, soldados de infantaria e barricadas feitas pelo exército para impedir a en-trada da população, onde as obras estão evoluindo. É preciso cercar e impedir que o povo veja, pois coisa feia precisa ficar escondida. Por que não se faz isso sob a luz do sol? Há placas na margem das estradas dizendo: “Integração de bacias, canal de aproximação a 2 Km”. Por que não dizem transpo-sição? Com um eufemismo evitam usar a palavra certa: transposição, insana, faraônica e maldita.

Famílias estão sendo despeja-das de suas casas e remanejadas para cubículos na periferia das ci-

dades. Um senhor, já de idade, após ser colocado em um casebre na periferia de Cabrobó, permaneceu sentado em um toco durante mais de oito horas, de cabeça baixa. Tomado por uma profunda deso-lação, ficou sem saber o que fazer. Quedou paralisado. É muito difícil para qualquer ser humano perder a sua identidade. Podemos imaginar a tristeza desse senhor, arrancado de sua casinha, onde nasceu e viu seus filhos nascerem, agora jogado à margem da cidade.

Uma área muito grande já foi desmatada. As crateras para a cons-trução de lagoas artificiais e canais estão, a cada dia, maiores. Isso acontece sobre terras indígenas e quilombolas, que deveriam ser pro-tegidas pela Constituição. A rique-za da biodiversidade da caatinga está sendo dizimada. Montanhas de lenha vão virar carvão!

Muitas empresas já estão lucran-do com a transposição, ao lado de empreiteiras e latifundiários que

transposição avança com a militarização da região

têm suas terras valorizadas. Os nomes das empresas Catterpillar, Toyama, Generator, Cônsul, Rossete e Recolast aparecem nas fotografias de janeiro de 2008.

Enquanto isso, a barragem de Sobradinho chega a apenas 22% de sua capacidade. Em fevereiro de 2007 estava com 96%. Já se cal-culam mais de nove meses de seca no norte e noroeste dos estados de Minas Gerais e na Bahia. O avanço da monocultura do eucalipto, a dizimação do cerrado, o agrone-gócio irrigado, o assoreamento do rio, dentre outras causas, estão matando o Velho Chico. O Jornal Nacional mostrou, outro dia, um motoqueiro atravessando o rio São Francisco, em Propriá, Sergipe. Aventura possível pela seca que se abateu sobre o rio.

Em fevereiro, representantes de 93 movimentos populares e organizações sociais realizaram em Sobradinho, na Bahia, a Confe-rência dos Povos do São Francisco e do Semi-Árido. Nesse encontro tornaram públicas as discussões e as decisões de continuidade das lutas pela vida do rio São Francisco e do semi-arido brasileiro, contra o Projeto de Transposição, ao mesmo tempo em que conclamam a adesão e a solidariedade de todos e todas.

É hora de reforçarmos a luta contra a transposição, em defesa de uma revitalização autêntica e em prol de um projeto de convi-vência com o semi-árido.

OPopulação é

intimidada por placas

a manter-se distante dos

canteiros de obras, enquanto Exército

avança

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7 Abril-2008

História

indígenas o que causa constrangimento para as comunidades.

Paulo também foi vítima do massa-cre. “Tenho um profundo sentimento de dor. Não sai da cabeça. Gostaria que essas pessoas fossem retiradas daqui de perto e fossem enviadas para bem longe para não impôr medo às comu-nidades, nem fazer a gente relembrar do momento. Peço que a Polícia Federal e a Funai possam agir com firmeza e honestidade. Muitos ficam falando que os indígenas não valem nada, são vagabundos, querendo nos intimidar. Gostaríamos de viver em paz e harmo-nia, mas com eles aqui a nossos olhos não é possível”, comenta.

Vítimas do massacreA memória do professor arrisca cal-

cular algumas pessoas que, assim como ele, escaparam com vida do massacre. Na comunidade de Porto Espiritual há seis. Conta que Dodô Moçambite foi baleado no escroto e, além dele, conhe-ce Carlos Gomes, Mário e sua filha que ainda hoje está cheia de chumbos.

Na comunidade de São Francisco há o vice-cacique, Mauro Firmino. Em Novo Porto Lima, há três pessoas, dentre elas Deolinda Inácio. Cita ainda Manduca Ramos, Brasil Martins Inácio, em São Leopoldo, e Milianto Cândido,

na comunidade de Bom Pastor. De todos estes, ninguém nunca recebeu nenhum auxílio, nem mesmo do INSS.

Lugar na HistóriaAs lideranças e os professores in-

dígenas reunidos na comunidade do Umariaçú I, próxima ao município de Tabatinga, decretaram os dias 27, 28 e 29 de março como dias históricos para a comunidade. Será que há motivo para celebrar ou recordar? “Pensamos reunir as lideranças e repassar o que aconte-ceu naquele dia. É um momento de luta, de dor e de memória”, dizia Paulo. “É um momento de celebrar, fazendo memória. Um marco para nós. Os pro-fessores se reúnem aqui no dia 28 para fazer memória”, complementava.

As terras próximas às áreas indíge-nas ainda pertencem a Oscar Castelo Branco. Paulo diz que pediu a ele que ajude a comunidade indígena a preser-var o rio Solimões, a floresta e os peixes. Denuncia o que seus “comandados” fa-zem na região. “Tiram madeira também na nossa área. Pescam nossos peixes e caçam os animais em nossa área”, queixa-se sem ser ouvido.

20 anos do “Massacre dos tikuna”Comunidades relembram a violência das agressões e, até hoje, vítimas não receberam qualquer auxílio

Dados atuaisSegundo Paulo, em 1988 havia nas

quatro comunidades - Porto Espiritual, São Francisco, Novo Porto Lima e São Leopoldo - cerca de 550 indígenas. Na época havia seis professores, 80 alunos e dois agentes de saúde indígena.

A realidade atual é diferente: há 25 professores, seis agentes de saúde e, conforme o Censo do IBGE de 2000, 970 indígenas e 470 alunos. Devido ao crescimento da população, eles estão se organizando e querem oficializar um pedido de ampliação da área, junto à Fu-nai, “pois 70% dela já estão desmatadas e ocupadas com roças. Restam somente 30% para caça. Isso está dificultando a busca por alimentos básicos”.

Existem hoje 102 comunidades indí-genas nos municípios do Alto Solimões. Estão em Juatí, Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Ama-turá, Santo Antônio do Içá, Tonantins, Tefé e Manaus. Aproximadamente 38 mil indígenas vivem nestas cidades, além de outros oito mil, que vivem no Peru, e mais cinco mil, na Colômbia. É o maior povo indígena da região. Um povo transnacional.

Nilvo Luiz FavrettoCimi Norte I

“Cerca de 100 Tikuna foram alvo de tiroteio pelo madeireiro Oscar

Castelo Branco, 73 anos, quando esperavam representantes da Funai e

agentes da Polícia Federal, às 14 horas do dia 28 de março [de 1988]

no Igarapé Capacete, município de Benjamin Constant, no Amazonas. A

emboscada resultou na morte de 14 índios, além de 23 feridos. Durante

vários dias que se sucederam ao episódio, dez corpos ainda eram tidos

como desaparecidos no rio Solimões, entre eles os de cinco crianças”n

o dia 28 de março, fez 20 anos do Massacre dos Tikuna, na área indígena São Leopoldo, município de Benjamin Cons-

tant, próximo à fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia. Tanto tempo depois, os indígenas ainda se ressen-tem do fato e das lembranças de tanta crueldade.

Conversei com duas testemunhas oculares e vítimas daquela violência. Perguntei ao vice-cacique da comuni-dade indígena de São Francisco, Mauro Carolino Fermino, 45 anos, como se sente hoje, após 20 anos do ocorri-do. “Me sinto mal. Fui atingido por chumbos das espingardas e ainda hoje tenho um chumbo em minha cabeça, encravada entre o olho esquerdo e o nariz. Sinto muita dor. Nada foi feito. Ninguém visita a gente. Os autores dos disparos hoje estão soltos e continuam nos incomodando. Várias vítimas ainda vivem e sofrem com os ferimentos da época”, respondeu.

O professor Paulo Ramos Lopes contou que a comunidade solicitou à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Ministério Público e à Polícia Federal providências em relação aos assassinos que ainda estão soltos e aos sete que sequer foram julgados. Desses sete, quatro estão vivendo próximo às áreas

Liderança denunciando o massacre às autoridades em Brasília, em 1988, e povo Tikuna da aldeia Santa Fé durante o I Encontro dos Povos do Rio Jutaí. À esquerda, o vice-cacique Mauro Firmino e, ao lado, o professor Paulo Ramos, ambos vítimas do massacre

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8Abril-2008

Clarissa Tavares – Editora do PorantimJ. Rosha – Cimi Norte I

desocupação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Ro-raima, continua esbarrando na intransigência dos produtores de arroz, ocupantes de gran-de parte das áreas indígenas

cultivadas. Após o início da Operação Upatakon 3 – de retirada dos invasores da terra – pela Polícia Federal, no dia 27 de março, empregados do rizicultor Paulo César Quartiero intensificaram as ameaças e agressões aos povos indígenas.

Os produtores, que ocupam a faixa sul de Raposa Serra do Sol, utilizaram-se de táticas de guerrilha para impedir o cum-primento do decreto de homologação da terra indígena. Em cinco dias, três pontes foram destruídas, bombas caseiras lança-das, barricadas armadas e duas pessoas feitas reféns na região.

No domingo (30/3), empregados de Quatieiro e moradores não indígenas – in-vasores de Raposa Serra do Sol - interdita-ram a BR-174, nas proximidades da ponte do rio Cauamé, que liga o município de Surumu a Boa Vista. A região está locali-zada em terra indígena e fica distante da capital cerca de 230 quilômetros.

Paulo César Quartiero, que é presi-dente da Associação dos Arrozeiros do Estado, foi preso na tarde do dia seguinte (31/3), pela Polícia Federal, na região de Surumu. No local, um grupo de apro-ximadamente cem pessoas interditou os acessos à terra indígena com carros, tratores e pneus. Segundo a coordenação do Conselho Indígena de Roraima (CIR), todas as pontes para se chegar à área fo-ram destruídas deixando as comunidades isoladas. O rizicultor foi levado à sede da PF em Boa Vista e libertado na noite do mesmo dia, após pagamento de fiança.

Atentados contra as comunidades

Os recentes atentados contra as comu-nidades indígenas tiveram início seis dias antes da prisão de Quartiero, quando, em 25 de março, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou o processo que assegurou ao

rizicultor o retorno ao cargo de prefeito do município de Pacaraima (RO). O man-dato de Quartiero havia sido cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Roraima, em 2006.

A sede de Pacaraima está localiza-da na terra indígena São Marcos e tem abrangência até a terra indígena Raposa Serra do Sol. Segundo a coordenação do CIR, Quartiero vem utilizando o mandato de prefeito para interferir na organização social das comunidades indígenas.

Na noite do dia 25, empregados do rizicultor juntaram-se a moradores não índios que ainda permanecem na Malo-ca do Barro, na região de Surumu, para comemorar o retorno de Quartiero à Prefeitura de Pacaraima.

Após várias manifestações regadas a bebidas alcoólicas, eles resolveram sair em passeata pelas ruas que atravessam a comunidade indígena. Lançaram foguetes em direção às casas de palha dos indíge-nas e ameaçaram a comunidade. Ficaram lá até às 3h da madrugada e informaram que voltariam na noite seguinte para incendiar quatro casas.

No dia seguinte (26/3), as lideranças indígenas se reuniram com representan-tes de órgãos envolvidos na operação de

desintrusão da terra indígena – conhecida como Upatakon 3 - quando foram informa-das que seria iniciada a retirada dos não índios de Raposa Serra do Sol.

Na noite desse mesmo dia, um grupo de empregados de Quartiero, conheci-dos como “motoqueiros”, incendiaram a maloca da comunidade indígena que vive em Surumu. O fogo foi controlado pelos próprios indígenas antes que se alastrasse.

A violência contra os povos indígenas de Roraima é praticada desde os primeiros momentos em que eles passaram a lutar pelo direito à terra e é acirrada cada vez que o governo federal anuncia alguma medida para retirar os invasores de Ra-posa. Em 30 anos de luta pelo território, mais de 30 indígenas foram assassinados sem que os autores dos crimes tenham sido julgados.

Durante a 37ª Assembléia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, realizada de 6 a 10 de março na Maloca do Barro, em Surumu, 12 casas foram queimadas em uma outra comunidade, a do Mutum. Os participantes da assembléia foram ame-açados de diversas formas: motoqueiros fizeram disparos com armas de fogo; uma bomba caseira foi detonada próximo ao

local da reunião; pedras foram atiradas e ofensas dirigidas aos indígenas. Para garantir a continuidade do evento sem maiores incidentes, agentes da Polícia Federal foram mantidos no local.

Os indígenas denunciaram, mais uma vez, a demora do governo federal para solucionar o impasse. “As disputas sobre os direitos indígenas são conseqüência da morosidade na conclusão da regularização fundiária da terra indígena Raposa Serra do Sol. Já se passaram mais de 30 anos desde o primeiro pedido de regularização da área; três anos desde a homologação, de modo que não podemos mais esperar. O Estado brasileiro deve providenciar a retirada imediata dos ocupantes”, desta-caram os indígenas no documento final da assembléia.

Negociações para desintrusão

O governador de Roraima, Anchieta Júnior (PSDB), reconhece que a desocu-pação da terra indígena Raposa Serra do Sol é “irreversível”. Em recente entrevista a um jornal de Boa Vista, ele disse que “Não se discute mais a permanência, mas a melhor forma de se fazer a retirada”. Essa certeza o levou a buscar uma solução

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resistência dos rizicultores gera tensão em roraimaInvasores usam táticas de guerrilha para impedir ação de desintrusão reiniciada pela Polícia Federal

A Os produtores, que ocupam a faixa sul de Raposa Serra do Sol,

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9 Abril-2008

negociada com os rizicultores, porém até o momento não houve avanço.

Os rizicultores dizem que o valor das indenizações não cobre os investimentos já feitos nas lavouras e justificam a perma-nência na área alegando que sem a pro-dução do arroz todo o estado de Roraima será levado à inviabilidade econômica.

Anchieta Júnior viajou em meados de março a Brasília para discutir a proposta de retirada pacífica dos ocupantes. Ele fez questão de frisar que sua atuação se des-tinava a evitar um confronto direto entre os ocupantes e as forças federais. Entre as alternativas que apresentou ao presidente, estava a proposta de se transferir cinco mi-lhões de hectares de terras que pertencem à União para o estado de Roraima.

Recomendações ao governoO procurador-geral da República

em Roraima, Antônio Fernando Souza, encaminhou, dia 26 de março, uma re-comendação ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e ao ministro da Justiça, Tarso Genro, para que promovam a imediata retirada dos ocupantes não-indígenas da área homologada.

A recomendação foi enviada a pedido do Ministério Público Federal em Roraima

reconhecimento após 30 anos de lutas

terra indígena Raposa Serra do Sol foi homologada por Decreto Presidencial, em 15

de abril de 2005, com uma extensão de 1,743 milhão de hectares. Ali vivem 18.530 indígenas dos povos Makuxi, Wapichana, Ingaricó, Taure-pang e Patamona. Eles desenvolvem atividades de agricultura e pecuária – com um rebanho superior a 24 mil cabeças de gado – “para subsistência e comercialização”, segundo explica o coordenador de Projetos do CIR, Júlio de Souza.

Por mais de 30 anos, as comunida-des indígenas lutaram para que a terra fosse reconhecida definitivamente como de ocupação tradicional indíge-na. Este direito foi, por muito tempo, negado pelo Estado brasileiro.

O governo estadual tentou, a todo custo, criar entraves para impedir a homologação da área contínua. Um exemplo foi a criação do município de Uiramutã que, apesar de sua evidente inconstitucionalidade, foi criado por lei estadual em 1995, dentro dos limites de Raposa Serra do Sol.

Até 1995 o vilarejo servia de base de apoio à garimpagem ilegal na terra macuxi. Com a criação do município, os invasores da área sentiram-se amparados pelo Estado para permanecerem nas invasões. Uiramutã tornou-se o centro de conflitos envolvendo moradores do lugar, índios e fazendeiros.

Outros empecilhos foram criados para dificultar o reconhecimento da terra, como a criação do Parque Nacional Monte de Roraima (uma Unidade de Conservação sobreposta à terra indígena) e o 6º Pelotão Especial de Fronteiras do Exército Brasileiro. O outro agente neste cenário é o grupo de rizicultores instalados no interior na área a partir de 1996 com o apoio do governo estadual.

Imensas lavouras de arroz irri-gado passaram a ser cultivadas nas várzeas dos rios Surumu e Cotingo, causando danos ambientais e preju-ízos à saúde das comunidades vizi-nhas. Os rizicultores bombeiam água dos rios para abastecer a irrigação e a devolvem com resíduos químicos, principalmente insumos agrícolas e agrotóxicos.

e solicita que se promova “a imediata e efe-tiva desintrusão da área indígena Raposa Serra do Sol”. Consta ainda recomendação ao diretor-geral da Polícia Federal “para que cumpra o decreto de homologação da área indígena, mediante efetiva, ostensiva e permanente fiscalização do local, para garantia da segurança e ordem públicas e respeito aos direitos reconhecidos às comunidades indígenas da região”.

No dia sete de março, o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU (CERD) enviou, pela terceira vez, uma carta ao governo brasileiro manifestando preocupação pela demora na solução dos conflitos. O Comitê da ONU destacou a persistente violação de direitos funda-mentais dos povos indígenas habitantes da Raposa Serra do Sol.

O Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT e da Declaração sobre os Di-reitos dos Povos Indígenas da ONU. Elas determinam que o governo deve adotar as medidas necessárias para determinar as terras que os povos indígenas ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

Porém, o cumprimento a essas de-terminações é questionável no caso de

Raposa Serra do Sol. A terra, homologada há três anos, segue invadida pelos produ-tores de arroz. Esta é a terceira investida de desintrusão do território, mas alguns indígenas duvidam que as forças federais entrem na área para retirar os produtores mais resistentes como aconteceu em abril de 2005, na primeira Operação Upatakon, e em abril de 2006, durante segunda in-vestida. Ambas foram interrompidas antes da retirada destes invasores.

Em busca de apoioEm busca de apoios internacionais

para a situação dos povos indígenas de Raposa, a advogada do Conselho Indíge-na de Roraima (CIR), Joênia Wapichana, estará em Nova Iorque, entre os dias 21 de abril e dois de maio.

Neste período acontecerá a sétima sessão do Fórum Permanente das Na-ções Unidas sobre Assuntos Indígenas. A situação em Raposa será apresentada a organismos da Organização dos Es-tados Americanos (OEA) e, novamente, ao Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial. Joênia espera que esses organismos, por meio de gestões junto ao governo brasileiro, ajudem a pôr fim aos conflitos em Roraima.

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10Abril-2008

Mulheres indígenas

Hélia Gomes dos SantosCimi Norte II /equipe Belém

Maria do Socorro Lima da SilvaCimi Norte II / equipe Santarém

ulheres indígenas dos povos Arara Vermelha, Arapium, Tu-pinambá e Borari, que vivem na região de Santarém, e do

povo Tembé, do município de Santa Maria, ambos no Pará, participaram do II Acampamento de Mulheres da Ama-zônia Paraense: contra a desigualdade de gênero e o imperialismo. O evento aconteceu entre os dias 6 e 8 de março, em Marabá (PA), e também contou com a presença de mulheres do povo Galibi Marworno, do Amapá.

O II Acampamento de Mulheres da Amazônia Paraense teve como obje-tivo conclamar a sociedade para uma reflexão acerca da situação da mulher do campo, da cidade e também da rea-lidade da mulher indígena.

Durante as oficinas, foi possível discutir diversos temas que fazem parte da realidade atual como a questão da violência contra a mulher e a lei Maria da Penha; temas ligados á saúde; à

relação da mulher camponesa com o agronegócio; discussões sobre gênero; memória da luta das mulheres do sul e sudeste do Pará diante da construção de hidroelétricas; a identidade feminina; além dos desafios e das perspectivas do movimento de mulheres indígenas no contexto amazônico.

A reflexão estendeu-se ao debate sobre o modelo capitalista, em que o ser humano é desvalorizado e os recursos naturais são explorados ao extremo e somente o lucro importa. Nas discussões sobre gênero, foi possível entender que as mulheres se diferen-

Clarissa TavaresEditora do Porantim

erca de 900 mulheres da Via Campesina ocuparam, no dia 4 de março, a fazenda Tarumã da empresa sueco-finlandesa Stora Enso, no município de Rosário do Sul, estado do Rio Grande do Sul. O ato foi realizado em

protesto ao fato de a Stora Enso agir ilegalmente ao comprar terras em área de fronteira.

Pela legislação brasileira - Lei nº 6.634 de 1979 e o artigo 20, parágrafo 2º da Constituição Federal – empresas estrangei-ras não podem adquirir terras na faixa de 150 km de fronteira do Brasil com outros países, como vem acontecendo no caso da Stora Enso. “Mas essa multinacional vem comprando dezenas de áreas no Rio Grande do Sul, próximo da fronteira com o Uruguai, onde a empresa também tem plantios. A meta é for-mar uma base florestal de mais de 100 mil hectares e implantar fábricas na região”, declararam as mulheres em nota.

As mulheres se pronunciaram contra as grandes áreas de plantação de eucaliptos, constituindo-se em verdadeiros de-sertos verdes nas terras brasileiras. “Mais de 90% da produção de celulose do Brasil é para exportação. Assim, reduzimos a produção de comida, destruímos a biodiversidade, aumen-tamos a pobreza e a desigualdade para atender a demanda de lucro das empresas e um estilo de vida consumista nos países ricos”.

Contra a desigualdade de gênero e o imperialismoA troca de experiência fortalece e anima a luta das mulheres do campo

ciam quanto ao corpo e à mente, mas isso não as torna desigual enquanto seres humanos. Durante a troca de experiências entre mulheres indígenas e camponesas, foi observado que as lutas são bastante semelhantes.

Alaíde Fonseca, indígena do povo Arapium, falou da experiência em par-ticipar do acampamento e destacou os desafios e as perspectivas do movimen-to de mulheres indígenas no contexto da Amazônia:

“O acampamento de mulheres foi um dos primeiros que participei e foi muito bom. O nosso entrosamento com outras

mulheres e a marcha também foram boas. Só não foi bom o não comparecimento das autoridades na audiência pública, mas foi uma oportunidade que fez aumentar a força na luta.

Eu vi que as mulheres camponesas se sentiram mais fortes com a nossa presença. Elas puderam observar que a nossa luta não é diferente. A nossa presença somou força na luta delas por dias melhores e por uma vida digna onde possam conquistar seu espaço.

Moramos em uma reserva extrativista e nossa terra não está garantida porque é por um período de 30 anos. Somos indígenas e queremos nossa terra demarcada. Por isso, estamos lutando. Entendemos que a terra para nós é Mãe e não podemos deixar que ela morra porque queremos que nossos filhos, netos possam retirar da terra seu sustento e de seus filhos. Sem a terra, não podemos viver. Por isso, temos que lutar contra o capitalismo que só quer nos engo-lir, nos expulsar de nossa Mãe Terra.

Vimos a situação dos Sem Terra que é comovente por não ter terra para morar, não ter onde plantar.

Nós, mulheres indígenas, precisamos, temos que nos formar, nos organizar e resistir. Não queremos estar à frente dos homens, mas ao seu lado para que possa-mos lutar por nossos direitos e construirmos um mundo possível”.

Mulheres da Via Campesina sofrem agressões no rS

MIndígenas participam

do II Acampamento

de Mulheres da Amazônia

Paraense, realizado em

Marabá, no Pará

Elas ocupavam uma fazenda da Stora Enso em protesto contra o agronegócio

AgressõesNo final do dia, um efetivo de

50 homens da Brigada Militar do RS agrediu fisicamente várias mulheres que se encontravam no protesto. “As cerca de 250 crianças que estavam no acampamento foram separadas das mães e colocadas deitadas com as mãos na cabeça. Ferramentas de trabalho foram apreendidas e barracos destruídos”, declarou a Via Campesina em nota divulgada pela assessoria de imprensa.

A Via Campesina condenou a ação e denunciou que a governadora do RS, Yeda Crusius, “coloca o aparato policial do Estado a serviço de uma de suas maiores financiadoras de campanha, a multinacional Stora Enso”.

Em nota, o Cimi reforçou que “de-fende o direito à livre manifestação das organizações sociais e dos movimentos populares e rejeita qualquer forma de repressão a este direito, principalmente com o uso de violência. O Cimi parti-lha a dor, a luta e a coragem destas mulheres”.

CStora Enso age ilegalmente ao comprar terras em área de fronteira. Mulheres sofrem violenta agressão ao denunciar o caso

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11 Abril-2008

Terra indígena

Cimi SulEquipe Paraná

e um lado, cercas que protegem o pátio de um porto seco (de-pósito alfandegário). À frente, mais cercas para proteger uma

“área de segurança” do Exército brasi-leiro. Ao alto, linhas de transmissão de energia da Itaipu Binacional. Ao fundo, o lago desta hidroelétrica. Tudo bem próximo do que foram, num passado recente, as famosas “Sete Quedas” do rio Paraná.

Este é o cenário em que se encontra a aldeia Tekoha Marangatu, onde vivem 24 famílias do povo Avá Guarani, no município de Guaíra, oeste paranaense, divisa com o Paraguai e com o estado de Mato Grosso do Sul.

Os Guarani ocupam, há séculos, a área que se localiza ao longo do rio Paraná e afluentes, na altura de onde foram estabelecidas as fronteiras entre os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul, bem como as fronteiras entre Brasil, Paraguai e Argentina. Esta presença, antiga e recente, é reconhecida por diversas pesquisas de cunho histórico, antropológico e arqueológico.

O processo de construção da hidro-elétrica Itaipu Binacional desconsiderou a maciça presença dos Guarani na região. O governo ditatorial da época, final da década de 1970 e início de 1980, chegou ao ponto de providenciar a elaboração de laudo antropológico fraudulento a fim de descaracterizar as denúncias de que seriam inundadas dezenas de aldeias indígenas com a faraônica construção.

Concluída a obra e fechadas as comportas, a inundação anunciada se efetivou e os Guarani foram obrigados a partir em diáspora. Muitos foram alo-jados em aldeias do povo Kaingang, no Paraná, outros se abrigaram em aldeias Guarani e Kaingang, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Outros ainda se deslocaram para aldeias localizadas na Argentina e no Paraguai.

Em 1982, um grupo de famílias Guarani foi abrigado em quatro lotes de terra, que totalizam 230 hectares.

Os lotes foram cedidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), por meio de um projeto de colonização implementado na região onde hoje está localizado o município de São Miguel do Iguaçu, nas proximi-dades de Foz do Iguaçu.

Este espaço, posteriormente regis-trado em nome da União e que recebeu a denominação de terra indígena Avá Guarani do Ocoy, insuficiente já no início, com o passar dos anos tornou-se inabitável para tantos Guarani. Devido a isso, alguns grupos foram partindo a fim de reconquistar o direito às suas terras.

A retomadaEsta é a origem do grupo coordena-

do pelo cacique Inácio Martins que, em 2004, retomou uma das terras tradicio-nais Guarani localizada no município de Guaíra, por eles denominada de terra indígena Tekoha Marangatu. Tão logo chegaram à sua terra tradicional, Inácio Martins e a comunidade do povo Avá Guarani tornaram-se réus num processo judicial de reintegração de posse movi-do pela empresa Itaipu Binacional.

Na ação, a Itaipu argumenta ser possuidora da “Faixa de Preservação Permanente” em torno do lago da hidroelétrica que totalizaria 100.029 hectares. Na mesma ação, a Itaipu reclamou direito também sobre outras duas áreas ocupadas por comunidades

Guarani que se localizam no interior da mesma cidade de Guaíra, as aldeias Tekoha Porã e Karumbey.

Em 2005, o juiz federal em Umua-rama (PR), Luiz Carlos Canalli, rejeitou o pedido de liminar apresentado pela Itaipu, que solicitava autorização judi-cial para retirar os indígenas do local. A Itaipu, então, recorreu da decisão por meio de recurso que também foi nega-do pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região.

A sentençaNo dia 17 de dezembro de 2007,

Canalli emitiu a sentença sobre o caso. Ao fundamentar sua decisão, o juiz cita estudo feito pela antropóloga Maria Lúcia Brandt que, relativo ao Tekoha Marangatu, afirma apresentar “todos os componentes necessários para a caracteri-zação como terra de ocupação tradicional indígena”.

Sobre o fato de a terra retomada pelos Guarani ainda não estar regulari-zada administrativamente, Canalli faz referência a uma decisão do Superior Tribunal de Justiça segundo a qual “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não perdem essa característica por ainda não terem sido demarcadas, na medida em que a demarcação tem efeito meramente declaratório.”.

Na sentença, o juiz nega o pedido feito pela Itaipu e declara que as terras em questão são tradicionalmente ocu-

novo enfrentamento entre os Guarani e a Itaipu no oeste paranaense

padas pelos Guarani. “Julgo improcedente o pedido possessório formulado pela Itaipu Binacional e declaro que as terras ocupadas pelos índios Avá-Guarani nos lotes abor-dados (Tekoha Porã, Karumbey e Tekoha Marangatu) constituem terras indígenas tradicionalmente ocupadas, não podendo ser objeto de domínio ou posse, senão pelos próprios índios, conforme disposição constitucional, independente de prévia demarcação”.

A Itaipu, no entanto, dá mostras de que está disposta a manter o con-fronto e a afronta aos direitos do povo Guarani. Neste sentido, já apresentou recurso a esta decisão apelando à 4ª. Região do TRF.

Propaganda enganosaEnquanto isso, como se fosse pos-

sível subtrair os fatos recentes e atuais de desrespeito e afronta aos direitos Guarani praticados pela Itaipu e pelo governo brasileiro, Lula e a própria Itaipu, hipocritamente, vangloriam-se e fazem propaganda por estarem “ceden-do”, por tempo determinado, aos Gua-rani que residem na aldeia Avá Guarani do Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, o “direito” de utilizarem as águas do lago da hidroelétrica para produzirem peixe em cativeiro.

Bem próximo de Guaíra, no municí-pio de Terra Rocha, outro grupo Guarani retomou uma antiga aldeia, por eles denominada de Tekoha Araguajú, e tam-bém enfrenta processo de reintegração de posse, que foi impetrado por um fazendeiro e pela Associação Náutica e Recreativa. De acordo com os Guarani, eles vêm sofrendo freqüentes ameaças a sua integridade física e moral no local.

Desde que retomaram suas terras, em Guaíra e Terra Rocha, os Guarani reivindicam que a Fundação Nacional do Índio (Funai) constitua um Grupo Técnico para fazer os estudos de iden-tificação e delimitação dos territórios a fim de que lhes seja devolvido de fato o que lhes pertence por direito.

d Linhas de transmissão de energia da Itaipu Binacional invadem a terra indígena Avá Guarani

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12Abril-2008

Formação

Judite NadjaAdvogada do Cimi Norte I

s oficinas “Operadores do Direito” são realizadas pela assessora jurídica do Regional Norte I do Cimi nos estados do

Amazonas e de Roraima desde 2002. Elas têm como objetivo proporcionar às lideranças indígenas uma visão das dis-posições normativas através das quais o Estado brasileiro regula atualmente as mais diversas situações de seu relacio-namento com os povos, comunidades e indivíduos indígenas.

Visa também, conscientizar os participantes tanto dos principais avan-ços deste relacionamento - colocados a partir da Constituição Federal de 1988 - quanto das mais preocupantes investidas dos setores antiindígenas no sentido de fazer recuar as conquistas alcançadas.

Outra finalidade é refletir sobre a importância da questão indígena no âm-bito dos direitos humanos e o seu papel frente à discussão da própria concepção e projeto político de Estado.

Dinâmica participativaProcura-se sempre envolver as co-

munidades na oficina, tanto chamando as pessoas mais velhas para contar as historias da luta, quanto através de dramatizações. Os grupos encenam os principais problemas que as comunida-

des enfrentam, discutindo porque eles acontecem e como superá-los a partir da organização do povo e dos conheci-mentos adquiridos no curso.

A dinâmica privilegia a participação coletiva, a troca de conhecimentos onde todos ensinam e todos apren-dem. Na medida em que o conteúdo vai sendo discutido, os participantes vão relatando casos reais de violação de seus direitos. Estes casos são utili-zados para elaboração de denúncias à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Ministério Público Federal e enca-minhadas a estes órgãos.

Cada oficina é realizada em três mó-dulos, com duração de cinco dias cada um. No primeiro módulo, iniciamos fazendo um paralelo entre o funciona-mento das sociedades indígena e não indígena. O objetivo é trabalhar a partir da realidade. Depois falamos sobre o funcionamento da sociedade não indí-gena e em seguida é feito um debate sobre as diferenças destas sociedades. É assim que falamos sobre o que é Estado, como se organiza, quais suas funções e poderes. Fazemos uma reflexão sobre o direito e a lei, e os direitos indígenas garantidos pela Constituição.

No segundo módulo, discutimos temas como saúde, educação, direitos territoriais, procedimento de demarca-ção de terras indígenas, funcionamento de um processo judicial, direito am-biental e mecanismos de proteção das

terras indígenas. Também trabalhamos a prática de elaboração de documentos como representações ao Ministério Público Federal, Petições, Ofícios e Habeas Corpus.

No terceiro módulo tratamos do Estatuto do Índio e das propostas na nova legislação indigenista. Esclarece-mos sobre os direitos internacionais, priorizando a Convenção 169 da OIT e outros temas escolhidos pela comuni-dade para aprofundamento.

Após a conclusão dos três módulos é escolhida uma comissão para elabo-rar uma cartilha com o conteúdo das oficinas em linguagem simples e com exemplos concretos daquela realidade específica que será utilizado pelos parti-cipantes, como agentes multiplicadores em suas respectivas comunidades.

ResultadosEsta experiência na área de forma-

ção tem sido muito positiva, princi-palmente porque atingiu diretamente as comunidades. Essa formação exige uma preparação cuidadosa que precisa levar em conta a realidade sociopolítica e cultural dos povos beneficiados e o contexto conjuntural no qual estão in-seridos. Por isso essa tarefa vem sendo realizada pela assessora jurídica com a contribuição fundamental das equipes locais do Regional que conhecem essa realidade e têm condições de acompa-nhar os operadores do direito indígena

equipe do Cimi trabalha noções de direito com lideranças indígenasAs oficinas privilegiam a participação coletiva e a troca de conhecimentos com as lideranças mais velhas

nos processos de formação em suas comunidades.

Desde 2002 já foram realizadas 13 oficinas nos estados do Amazonas e de Roraima. Já concluíram as oficinas um total de 763 lideranças indígenas dos povos Tenharim, Torá, Munduruku, Apurinã, Parintintin, Paumari, Jarawara, Sateré Mawé, Tikuna, Kokama, Kambe-ba, Maioruna, Mura, Macuxi e Wapixa-na, representando 196 comunidades indígenas. Atualmente, 113 lideranças ainda estão em processo de formação no estado do Amazonas.

A partir das oficinas de operadores do direito os participantes indígenas identificam rapidamente quais as viola-ções de direitos que acontecem em suas comunidades o que gera importantes debates sobre as melhores estratégias para enfrentá-las. A apropriação de algumas ferramentas para o encami-nhamento de denúncias ao Ministério Público Federal, Ibama, Funai, Polícia Federal, traz maior autonomia às co-munidades indígenas para encaminhar as suas demandas.

Como resultado do curso é possível perceber maior segurança das lideran-ças indígenas na luta por seus direitos, manifestada em diversas ações reali-zadas na própria comunidade, através de sua organização interna, na defesa da terra, expulsando caçadores, pesca-dores, posseiros e outros invasores de seu território.

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13 Abril-2008

Ameríndia

Pedro CarranoAgência Brasil de Fato

prisionamentos marcados por torturas físicas, psicológicas e a acusação de crime camuflando uma verdadeira perseguição

política. Falta de garantias judiciais de um Estado onde o crime e a fraude elei-toral são visíveis. Em Chiapas, estado no Sudeste mexicano, 14 presos políticos de uma mesma ala iniciaram uma greve de fome, desde o dia 26 de fevereiro, contra a injustiça das condenações.

Em um contexto no qual a militari-zação se acentua no México, apenas em Chiapas 100 militantes políticos estão presos, de acordo com o Indymedia-Chiapas.

As ameaças, perseguições e prisões intensificaram-se desde a posse do atual presidente, Felipe Calderón Hinojosa (Partido de Ação Nacional – PAN), no final de 2006. A exemplo do Plano Co-lômbia, fala-se em um Plano México no país, uma situação visível no estado de Michoacán, estado do país altamente militarizado sob o pretexto do combate ao narcotráfico.

m razão da visita do Comitê de Direitos Humanos da Or-ganização das Nações Unidas (ONU) ao Panamá, organiza-

ções agregadas à Rede de Direitos Humanos - Panamá elaboraram um relatório para contribuir com diálogo entre o organismo internacional e o Estado panamenho.

O documento constata uma série de violações aos direitos de moradia, circu-lação, reunião, associação e expressão. As comunidades indígenas estão entre as mais afetadas, pois têm suas vidas e seus territórios atingidos por projetos de mineração, hidrelétricos e de turis-mo residencial.

As áreas indígenas não são prote-gidas por nenhuma legislação especial. Assim, esses “projetos de desenvolvi-mento” estão expulsando os indígenas de suas casas, sem garantir-lhes mora-

Méx i co

Presos políticos indígenas entram em greve de fome

Em Chiapas, entre os presos, oito deles são aderentes da Outra Campanha (frente de luta contrária ao governo), quatro deles são zapatistas. Todos são indígenas de etnia tzotzil ou tzeltal. “Os presos políticos indígenas recorreram a esta medida como mecanismo de denún-cia pública e acusação ao Estado mexica-no pela violação aos direitos humanos, que trouxe a perda de sua liberdade pes-

soal e suas expectativas futuras de vida pelos anos que transcorreram dentro do centro de detenção”, afirma documento do Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas.

Outra tática utilizada pelo poder é o uso de paramilitares para reprimir as comunidades que são bases de apoio zapatistas. Os zapatistas recuperaram terras dos latifundiários durante o

levante de 1994. “O mundo sabe que recuperamos no ano de 1994 estas terras que já estão em nossas mãos. As seguiremos defendendo porque sabemos que são nossa mãe e porque dela vivemos. De entregá-las, nunca, renunciar à terra jamais, custe o que custe, com nosso sangue e com nossa vida a defenderemos”, escrevem os zapatistas em comunicado.

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Panamá

Organizações entregam relatório sobre direitos humanos à OnuLevantamento aponta graves violações aos direitos dos povos indígenas

dia e terra adequadas. O relatório atribui essa inde-finição sobre os territórios à não ratificação do Con-vênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre direitos dos povos indígenas e à não criação de uma lei especí-fica que garanta os direitos para esses povos.

O descaso com os in-dígenas panamenhos se evidencia nos números da pobreza no país. Em 2003, a pobreza atingia a 98,5% dos morado-res da área rural indígena, enquanto na área rural não indígena esse número era 54,2%. A pobreza total no país - incluída zona rural e urbana - era 37,2%, e a pobreza urbana, 20%.

O II Informe de Desenvolvimen-to Humano mostrou que a pobreza

extrema afeta a 90% dos indígenas. “Isso nos mostra que a situação so-cioeconômica dos povos indígenas piorou, pois em 2002 a pobreza geral dos povos indígenas era de 95,4% e a pobreza extrema era de 86,4%”, disse o Informe.

A situação se reflete em todas as outras áreas básicas para a segurança dos direitos humanos, por isso os

indígenas enfrentam dificuldades no acesso à saúde, educação, moradia. Assim, eles convivem com a insegurança alimentar e a desnutrição. De acordo com o levantamento, fatores geográ-ficos, climatológicos, econômicos e culturais contribuem para a gravidade da situação de saúde.

Enquanto a média geral para a po-pulação panamenha é de 8,9 médicos para cada 10 mil habitantes, entre os indígenas essa média cai para 2,1 a cada 10 mil.

A insuficiência e ineficácia dos re-cursos judiciais, humanos e materiais para a proteção dos direitos humanos e das formas de discriminação se manifes-tam ainda na crítica situação do sistema penitenciário, na vulnerabilidade dos direitos das crianças de dos adolescen-tes e na inexistência de proteção aos refugiados. (Fonte: Adital)

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Mulheres e crianças chiapanecas participam de Encontro Internacional Contra o Neoliberalismo, em Chiapas, no México, em 1996

Indígena Guapuri, de Cerro Otoe, e povo Emberá, da aldeia Jaqué, no Panamá. O descaso com os indígenas panamenhos se evidencia nos números da pobreza no país que atinge estes povos

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14Abril-2008

A vidA dos povos

Jorge VieiraCimi NE

povo Koiupanká vive no município de Inhapi, região do alto sertão de Alagoas. É formado por cerca de 186 famílias organizadas nas comu-

nidades Baixa Fresca, Baixa do Galo e Aldeia Roçado – que é centro das reuniões e decisões políticas. Outras famílias se encontram espa-lhadas pelas serras e periferias das cidades próximas.

Suas relações de parentesco, as matrizes cultural e religiosa estão diretamente ligadas ao povo Pankararu. Isso é resultado da relação interétnica imposta pela colonização à loca-lidade conhecida por Brejo dos Padres, nos municípios de Tacaratu e Petrolândia, estado de Pernambuco.

Entretanto, percebe-se que a identidade cosmológica dos Koiupanká, em que se iden-tifica o “dono do terreiro” ou “Encantado”, é oriunda do povo Pankararé, do município de Nova Glória, sertão da Bahia.

No período da colonização e das missões católicas, a área dos Pankararu foi utilizada como espaço de confinamento de indíge-nas de várias etnias para a catequização e preparação de mão-de-obra para o trabalho agropastoril ao longo das margens do rio São Francisco e de seus afluentes. Esse trabalho procurava abastecer a metrópole de couro e carne, enquanto as missões tinham o objetivo de tornar católicos os indígenas e ampliar o número de fiéis sob seu domínio. Muitos povos com tradições culturais, línguas, cos-tumes e valores diferentes foram obrigados a conviverem numa mesma aldeia.

Na medida em que os colonizadores ampliaram seus domínios, a população indí-gena foi aumentando e seu espaço territorial diminuiu. Com pouca terra, aumentaram os conflitos internos, a fome e as doenças. Com isso, a convivência interna se inviabilizou, iniciando assim um processo de dispersão de vários grupos em busca de condições de sobrevivência. Atualmente, há grupos de Pankararu em outros estados do Brasil, a exemplo de São Paulo e Minas Gerais.

Reconhecimento da identidade étnica

Os primeiros a chegarem a Alagoas, atra-vessando o rio Moxotó – na divisa dos estados de Alagoas e Pernambuco -, espalharam-se pelas serras e caatingas, até então pouco habitadas, ou foram morar com outros povos da região, possibilitando o casamento e a participação nos rituais religiosos.

Entre os descendentes dos Pankararu, o primeiro a se identificar como indígena foi o povo Geripankó, no município de Pariconha,

A “Queimada do Murici” do povo KoiupankáNesse ritual, o milho simboliza a criação do homem; a mandioca, a da mulher; e o murici celebra a criação do povo

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os Koiupanká têm o ritual da cura, onde a “mesa” é dirigida por dona Iracema, matriarca e uma das principais lideranças da comunidade, durante todo o ano. Além disso, existem mais dois rituais: a dança do toré e a dos praiás. o toré pode ser dançado em alguns momentos por todos, inclusive por não-indígena convidado. É uma dança tipicamente religiosa, que tem muitas finalidades, entre elas: agradecimento, festa, louvor, penitência, selar amizades.

os praiás são entidades religiosas, assumidas exclusiva-mente por homens, chamados de “encantados” ou o “homem”. cada um tem o seu “dono”, cuja responsabilidade é de zelar pelas vestes e de determinar a participação, ou não, nos mo-mentos do ritual. eles se apresentam totalmente cobertos, dos pés à cabeça, com um maracá na mão direita. As roupas são confeccionadas de um cipó colhido na região, chamado crauá ou croá (suas folhas fornecem longas fibras, de grande resistência e durabilidade).

Durante o ano, há vários rituais com os praiás: flechada do imbu, puxada do cipó e menino do rancho. Um dos rituais mais importantes, para os Koiupanká, é um que dura três semanas consecutivas, a Queimada do Murici. É quando celebram a criação do povo, com rituais do milho, mandioca e murici, realizado logo após o primeiro final de semana depois do sábado de Aleluia.

o milho lembra a criação do homem; a mandioca, a da mulher; e o murici, a criação do povo e é o alimento do “dono do terreiro”. os homens que se revestem dos encantados – es-

píritos dos antepassados -, nos três dias que antecedem o ritual e durante as três semanas em que é realizado, se abstêm de sexo, bebida alcoólica, tomam banho de ervas e ficam reclusos no Poró – lugar onde só é permitida a entrada de homens; lá dentro eles fumam, rezam e dançam.

A cada entrada dos praiás no terreiro, é feita uma abertura oficial: o pajé conduz os praiás, tocando o maracá e fumando, cruza e dá voltas pelo terreiro por três vezes. Quando a dança está em ritmo frenético, os pés dos praiás parecem flutuar. em alguns momentos da dança, entram duas mulheres protegendo os praiás postos nas extremidades – as mesmas têm de estar, rigorosamente, dentro das regras de abstinência.

Nos dias dos rituais, toda a dieta é preparada do alimento que está sendo celebrado. o ritual começa com a colheita feita pelos homens e depois o alimento é preparado pelas mulheres, na casa onde reside o cacique. A alimentação é então “abençoada” pelos praiás e servida a todos, sendo primeiramente, aos “homens” (encantados). o ritual é iniciado, oficialmente, às 19 horas do sábado e prolonga-se, intercalado por vários atos religiosos, até o nascer do sol, no domingo. Às oito horas é reiniciado, parando para o almoço, e retornando às 14 horas até o final da tarde.

No último final de semana do ritual da Queimada do Murici, homens e mulheres se penitenciam, enquanto circulam nove vezes o terreiro, carregando nas costas um feixe de cansanção (urtiga). Ao término, colocam-no no centro do terreiro e dançam sobre os galhos, até exterminá-los.

a 370 km de Maceió, em 1980. Depois, em 1998, foi a vez dos Kalankó, em Água Branca. Em 2000 e 2001, foram os povos Karuazu e Katökinn, respectivamente. No ano de 2002, o povo Koiupanká assumiu sua identidade e iniciou a luta pela demarcação de seu território tradicional.

Todos esses povos tiveram praticamente a mesma motivação para chegarem a Alagoas. No caso Koiupanká, chegaram os membros da família Bispo que, em busca de terra, encontra-ram em pleno sertão uma pedra que juntava água (daí a palavra “inhapi”) e começaram o trabalho de roça no seu entorno.

Aos poucos foram trazendo outros pa-rentes, e a população foi aumentando. Com a chegada dos coronéis à região, os Koiupanká foram expulsos da terra e forçados a trabalhar nas fazendas e usinas. Como conseqüência, os rituais que eram praticados regularmente e abertamente começaram a sofrer persegui-ção e, em vista disso, tornaram-se ocultos. Segundo o cacique Zezinho Koiupanká, o instrumento utilizado no ritual, muitas vezes, era uma caixa de fósforos, para substituir o maracá, cujo som identificaria o ritual.

CrençAS e rItOS

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15 Abril-2008

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Plantados no chão – assassinatos políticos no Brasil hojeNatalia VianaSão Paulo : Conrad Editora do Brasil, 2007. 182 p.

Resenha

P R e ç o s

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Formas de Pagamento:

História dos povos indígenas será ensinada nas escolas

gora é lei. Publicada em 11 de março, a Lei nº 11.465/08 inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “His-

tória e Cultura Afro-brasileira e Indígena”. A medida vale para todos os estabelecimentos de ensinos fundamental e médio, públicos e privados, no Brasil.

O conteúdo programático deverá incluir diversos aspectos da história e da cultura que caracterizaram a formação da população brasileira, a partir dos grupos de afro-des-cendentes e dos povos indígenas. Temáticas como História da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira, o negro e o índio na formação da sociedade nacional irão pautar os debates em sala de aula.

A iniciativa é uma forma de resgatar as contribuições dos afro-descendentes e dos indígenas em todas as esferas da vida social, seja ela de ordem econômica, política, or-ganizativa, cultural. A lei entrou em vigor na data de sua publicação.

Leda BosiSedoc Cimi

título do livro, conforme esclarece a autora, foi ins-pirado pela fala de Zenilda Maria Araújo, esposa de

Xicão, líder indígena Xukuru assas-sinado em maio de 1998. Nos ritos funerários ela proferiu a seguinte frase: “Recebe teu filho, minha Mãe Natureza. Ele não vai ser sepultado, vai ser plantado na tua sombra, como ele queria. Para que dele nasçam novos guerreiros”. Basta perguntar a qualquer Xukuru se seu cacique foi enterrado ele responderá: “Não foi; foi plantado no chão”.

A presente publicação trata do assassinato de lideranças populares e aborda o período compreendido entre os anos de 2003 e 2006, quan-do ocorreram mais de 200 casos. Mortes que representam não so-mente a defesa dos próprios ideais, mas também dos direitos de toda uma parcela da população. O livro faz uma denúncia ao mostrar que, embora esses crimes não sejam mais cometidos abertamente por agentes do Estado, as mortes aqui relatadas são a versão contemporânea dos assassinatos políticos e ocorrem em todo o território nacional.

Os pesquisadores enfrentaram grandes dificuldades para reunir nomes, devido ao desencontro de informações que não possuem fonte oficial e à falta absoluta de um levan-tamento rigoroso dos casos de assas-sinato político no Brasil. A tarefa mais complicada foi levantar a situação ju-dicial de cada caso. As fontes utiliza-das pela autora são os Relatórios de

Violência publicados pela CPT (Comissão Pastoral da Terra), pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), a ONG Justiça Global, a CUT (Central Única dos Trabalha-dores) e o movimento GLT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros). Foram con-sultadas também pessoas que há anos trabalham dire-tamente com esses crimes, como advogados, juristas, professores, militantes.

O livro destaca seis histórias de assassinatos políticos. Três casos de assassinatos no meio ru-ral – o de Dorothy Stang, o massacre de Felisburgo e o dos indígenas Xukuru Josenilson José dos Santos e José Ademilson Barbosa da Silva – e três mortes no meio urbano – a do militante do movimento estudantil Anderson Amaurílio e a dos sindica-listas Jair Antonio da Costa e Ander-son Luís. Complementando foram relatados 80 casos com informações essenciais para a compreensão do que se passou. Na seção de anexos, e a título de homenagem, há uma re-lação de 70 outros casos com dados referentes somente ao nome, local e data do assassinato.

Na esmagadora maioria os crimes foram cometidos por problemas liga-dos à posse da terra e atingiram os líderes que lutavam pela preservação de seus direitos. Eram sindicalistas, indígenas e trabalhadores sem terra. De outra parte, há elementos comuns em todos os casos: o tratamento

displicente ou até agressivo contra os defensores de direitos, a falta de proteção aos líderes ameaçados e a impunidade para os assassinos.

“Um país que deixa matar seus líderes populares está se ferindo, se mutilando. Cada assassinato repre-senta uma vitória para o atraso, a barbaridade, a raiva, a estupidez. Essa sangria permanente das mulheres e dos homens mais corajosos e dinâmi-cos, mais idealistas e generosos, tem um custo alto. A morte de um líder não é simplesmente a eliminação de uma pessoa inconveniente, mas um golpe contra a esperança. Contra o futuro”, declarou Jan Rocha, jornalis-ta, escritora, defensora dos direitos humanos, no prefácio da edição.

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APOIADORES

UNIÃO EUROPÉIA

16Abril-2008

AcAmpAmentoterrA Livre

5 anosMarca de resistência, luta,

indignação, conquistas e alegrias, o Acampamento Livre demonstra a força e a organização dos povos

indígenas brasileiros.Brasil, esta terra tem dono!