raphael botelho de moura - espiritualidades.com.br...clássico", foi fundada nas obras de friedrich...

53
1 RAPHAEL BOTELHO DE MOURA O Cristianismo Primitivo Segundo o Marxismo Clássico Rio de Janeiro 2013

Upload: others

Post on 15-Feb-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 1

    RAPHAEL BOTELHO DE MOURA

    O Cristianismo Primitivo Segundo o Marxismo Clássico

    Rio de Janeiro

    2013

  • I

    O CRISTIANISMO PRIMITIVO SEGUNDO O MARXISMO CLÁSSICO

    Raphael Botelho de Moura

    Instituto de História / CFCH

    Bacharelado em História

    Demian Bezerra de Melo

    Doutor

    Rio de Janeiro

    2013

  • II

    O CRISTIANISMO PRIMITIVO SEGUNDO O MARXISMO CLÁSSICO

    Raphael Botelho de Moura

    Monografia submetida ao corpo docente do Instituto de História da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Bacharel.

    Aprovada por:

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo - Orientador

    (Substituto do IH-UFRJ)

    _____________________________________________

    Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese

    (Associado do IH-UFRJ)

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Felipe Abranches Demier

    (Departamento de Direito da UNIFOA)

    Rio de Janeiro

    2013

  • III

    BOTELHO de Moura, Raphael. O Cristianismo Primitivo segundo o Marxismo Clássico. Orientador: Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de História, 2013. Monografia (Bacharelado em História).

    M929c Moura, Raphael Botelho de

    O Cristianismo Primitivo segundo o Marxismo Clássico / Raphael Botelho de Moura – 2013.

    50 f. Monografia (Bacharelado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    Instituto de História. Rio de Janeiro, 2013. Orientador: Demian Bezerra de Melo

    1. Cristianismo – História – Séc. XIX 2. Cristianismo –História – Séc. XX I. Melo, Demian Bezerra de (orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Título

    CDD 209

  • IV

    RESUMO

    BOTELHO de Moura, Raphael. O Cristianismo Primitivo segundo o Marxismo Clássico. Orientador: Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de História, 2013. Monografia (Bacharelado em História). A geração intelectual que o historiador britânico Perry Anderson chama de "marxismo clássico", foi fundada nas obras de Friedrich Engels (1820-1895) e Karl Marx (1818 - 1883) e termina com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ao longo deste momento, produziu um trabalho pioneiro em diversas áreas de conhecimento social, filosofia e até mesmo as ciências naturais. Entre essas obras estão os estudos sobre a origem do cristianismo. Este trabalho tem por objetivo reconstruir sinteticamente as formulações intelectuais desta geração sobre o início do cristianismo, identificando suas influências e impulsos criativos.

  • V

    ABSTRACT

    BOTELHO de Moura, Raphael. O Cristianismo Primitivo segundo o Marxismo Clássico. Orientador: Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de História, 2013. Monografia (Bacharelado em História). The intellectual generation that the british historian Perry Anderson calls "Classical Marxism", has founding in the works of Friedrich Engels (1820-1895) and Karl Marx (1818 - 1883) and ends with the Second World War (1939-1945). Over this period, produced one pioneering work in several fields of social knowledge, philosophy, and even the natural sciences. Among these works are studies on the origin of Christianity. This work aims to synthetically reconstruct the intellectual formulations of this generation on the early Christianity, identifying their influences and creative impulses.

  • VI

    AGRADECIMENTOS

    Esta simples e despretensiosa obra não seria possível sem a ajuda, incentivo e paciência dos

    amigos Demian Melo, Daniel Justi, e André Chevitarese.

    Muito menos sem as conversas de bar com os amigos que criticaram, apontaram as dúvidas,

    apresentaram questões e me forneceram muitos “porquês?”.

    Nem sem os camaradas de militância, que me apresentaram o marxismo, e tem a

    responsabilidade de renovar a cada dia minha “fé inabalável no futuro comunista da

    humanidade”.

    Nem sem a paciência e incentivo de minha família e de Priscilla, minha namorada.

    Meu muito obrigado.

  • VII

    SUMÁRIO

    1. O surgimento do interesse do marxismo na origem do cristianismo. 01

    2. A crítica bíblica neotestamentária alemã e suas influências em Engels. 12

    3. Os estudos do marxismo clássico sobre o cristianismo primitivo. 26

    4. Referências bibliográficas. 43

  • 1

    1. Introdução: O surgimento do interesse do marxismo na origem do cristianismo

    Quando hoje falamos “marxismo”, normalmente nos referimos a uma tradição teórica

    bem delineada, embora constantemente o termo possa ser visto sendo empregado de maneira

    genérica1. O dicionário Aurélio, por exemplo, define o termo como a “Doutrina dos teóricos

    do Socialismo, os filósofos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-

    1895)...”, e por sua vez “doutrina” como um “Conjunto de princípios que servem de base a

    um sistema religioso, político, filosófico, científico,...” 2. Porém, nos indagar se esse termo

    sempre carregou essa conotação, ou se foram operadas mudanças qualitativas em seu

    entendimento ao longo do tempo, ou seja, nos indagar sobre a história do termo pode ser um

    bom caminho para nos revelar “a natureza, as transformações e as metamorfoses que sofreu

    essa teoria revolucionária designada com um termo tão genérico.” 3.

    O tema é bastante discutido na historiografia, e é importante frisar que pretendemos

    nos distanciar de uma leitura que entenda o que se definiu por “marxismo” como uma rígida

    doutrina de natureza messiânica, pois tal entendimento, a nosso ver, pouco agrega à

    compreensão da historicidade da teoria e do termo. Pretendemos sim, compreende-lo como

    uma tradição intelectual dinâmica. Para isso buscaremos discutir em primeiro lugar a

    emergência dessa tradição teórica de modo a capturar não um conjunto de princípios rígidos,

    mas um processo ativo de elaboração e reelaboração do materialismo histórico. O fio

    condutor será reconstituir como a geração pioneira do marxismo lançou-se no estudo do

    cristianismo primitivo para compreender a religião que exercia uma acachapante influencia no

    operariado europeu de fins do século XIX e início do século XX, setor esse que constituía o

    foco do discurso marxista. 4

    Incorporando esse conjunto de questões, no fim dos anos 1970 o historiador francês

    Georges Haupt apontou que, em primeiro lugar, na época em que Marx viveu, em geral, o

    termo “marxista” ou “marxiano”, quando usado, não se referia propriamente a um corpo

    doutrinário ou a um sistema político-filosófico bem organizado. No início da segunda metade

    do século XIX, por exemplo, tais termos serviam “mais para acusar Marx e seus partidários

    do que para definir-lhes as ideias”.5 A expressão parece ter emergido nos embates com os

    anarquistas e revolucionários de outros matizes ainda no contexto da Associação Internacional 1 Cf. HAUPT, Georges. “Marx e o marxismo.” In HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo I: O Marxismo no Tempo de Marx: Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ªEd. Curitiba: Positivo, 2004, pp. 703 e 1287. Grifo nosso. 3 HAUPT, op. cit. p. 348. 4 Cf. BENSAÏD, Daniel. Marx, o Intempestivo. Grandezas e misérias de uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 5 HAUPT, op. cit. p. 349.

  • 2

    dos Trabalhadores (A.I.T.).6 A alcunha de “partido de Marx” 7 surge nos debates internos da

    organização, que até então agrupa variadas vertentes ideológicas do movimento operário e

    socialista8, mas ainda não designa um “conjunto de princípios”. Em 1882 o termo já pode ser

    visto com um significado diferente no panfleto “O Marxismo na Internacional”. De tom

    polêmico, já declina para uma visão do “marxismo” como “a prática e o objetivo da social-

    democracia” 9. De qualquer maneira, até durante os anos 80 do século XIX o termo ainda se

    prestará a “diferentes acepções”.10 Circulam neste ambiente Marx e Lassalle, Bakunin e

    Proudhon, Dühring e Benoit Malon, todos teóricos importantes que exerceram influência

    considerável sobre parcela do movimento operário agrupado em tono da A.I.T., cada um

    frequentemente acompanhado da classificação derivada de seu nome (“lassaniano”,

    “marxista”, “proudhoniano”, etc.).11 É de se supor, que essa variedade de classificações, ainda

    por cima acompanhada de uma significativa polissemia, trouxesse problemas de entendimento

    aos debates da época. Sugere isso, a repercussão que o indiscriminado uso dos termos

    “marxistas” e “bakuninistas” na imprensa europeia da época, e a reação negativa de alguns

    membros e simpatizantes da AIT, que convocavam seus companheiros a abandonar o léxico.12

    Sucessivamente, porém, essa confusão seria substituída por uma acepção positiva. Na época

    da Segunda Internacional já podemos ver o termo “marxismo” ser usado como posição

    afirmativa, especialmente depois que é adotado oficialmente pelo Congresso do

    Sozialdemokratische Partei Deutschlands (S.P.D.) de Erfurt, em 1891.13 Mas como se operou

    essa resignificação, de alcunha negativa a corpo ideológico positivo?

    6 Posteriormente também conhecida como Primeira Internacional, foi fundada em 1864, e funcionou até 1876, envolvendo-se em diversas campanhas internacionais, como pela redução da jornada de trabalho e da escravidão nas Américas. A nomenclatura em ordem crescente surgiu dos debates em torno da fundação da Terceira Internacional. Uma abordagem sobre esta questão pode ser encontrada em ANDREUCCI, Franco. “A difusão e a vulgarização do marxismo.” In HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo II: O Marxismo na Época da Segunda Internacional: Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982, pp. 15-73. 7 RUBEL apud: HAUT, op. cit. p. 349. 8 Terry Eagleton escreveu sobre as dificuldades do termo "ideologia", devido aos seus múltiplos significados. Achamos conveniente a definição de Martin Seliger de que as ideologias podem ser pensadas enquanto "conjuntos de ideias pelas quais os homens postulam, explicam e justificam os fins e os meios da ação social organizada, e especialmente da ação política, qualquer que seja o objetivo dessa ação, se preservar, corrigir, extirpar ou reconstruir uma certa ordem social". Ainda que o próprio Eagleton tenha advertido sobre as adversidades em se "ampliar de tal forma o âmbito do termo", achamos oportuna essa definição para os fins à que esse trabalho se dedica, e o termo será pensado dessa forma quando aparecer. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997. p. 20. 9 HAUPT, op. cit. p. 353. 10 Idem, p. 355. 11 Idem, p. 361. 12 Idem, pp. 351-352. 13 “(...) o uso dos termos marxista e marxismo adquire então um sentido preciso no seio da social-democracia alemã. Ao invés de alcunhas pejorativas, tornam-se indicações positivas e penetram no vocabulário político com um novo sentido.” Idem, p.357.

  • 3

    Embora seja um caminho intrincado, a historiografia sugere que a resposta possa ser

    encontrada no estudo do crescimento do movimento operário europeu de meados do XIX,

    terreno onde as ideias de Marx e Engels se difundiram, disputando influência com

    proposições rivais. Ainda segundo Haupt: “As várias etapas de cristalização do novo termo

    (marxismo) estão ligadas às etapas percorridas pelo movimento operário” 14, ou seja, na

    medida em que podemos observar a penetração e aceitação desse marxismo enquanto doutrina

    no espoco teórico que orientava a ação dos militantes desse movimento. Franco Andreucci

    liga essa aceitação a certa sistematização do marxismo que está em curso:

    Em um quarto de século, o marxismo – nascido numa área geográfica relativamente limitada e no âmbito de um movimento político e social ainda em busca de sua definitiva identidade - torna-se o credo de milhões de milhões de homens, a arma teórica da social-democracia internacional; percorre caminhos sinuosos e longuíssimos até conquistar uma dimensão planetária. As vias de sua afirmação foram também, contudo, as da sua sistematização. 15.

    O historiador inglês Perry Anderson parece concordar:

    (...) nos últimos anos de vida de Marx e após sua morte, Engels produziu as primeiras exposições sistemáticas do materialismo histórico que converteram este numa força política popular na Europa e, na casa dos setenta anos, comandou o crescimento da Segunda Internacional, na qual o materialismo histórico se tornou a doutrina oficial dos principais partidos operários do continente.16.

    E também:

    (...) Marx nunca apresentou qualquer exposição geral mais extensa do materialismo histórico em si. Foi desta tarefa que Engels, com o Anti-Dühring e seus complementos, se incumbiu, no final da década de 1870 e ao longo da de 1880, respondendo ao crescimento de novas organizações operárias no continente. 17.

    Essa hipótese nos parece particularmente interessante para o objetivo desse estudo.

    Naturalmente, não são apenas os esforços intelectuais de Engels e outros intelectuais

    socialistas da época que autorizam o “marxismo” a se tornar hegemônico no movimento

    operário europeu, que “converteram este numa força política popular”. O próprio Haupt

    destaca:

    14 Idem, p. 348. 15 ANDREUCCI, Franco. op. cit. p. 25. Grifo nosso. 16 ANDERSON, Perry. Considerações Sobre o Marxismo Ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 26. Grifo nosso. 17 Ibid. p.24. Grifo nosso.

  • 4

    A evolução semântica ocorrida num lapso de tempo relativamente curto deve ser entendida em relação com os profundos fenômenos de transformação do movimento operário no período de transição da I para a II Internacional. 18

    Manifestamente, para Hans-Josef Steinberg a “grande depressão” econômica aberta na

    Europa a partir de 1873, que gerou um “grave índice de desemprego e, até o final dos anos 70,

    uma sensível diminuição dos salários nominais e mesmo reais”, ofereceu um terreno fértil

    onde o marxismo pode florecer.19 Considera que, com a derrota sofrida pela França na guerra

    franco-prussiana e a queda da “Comuna de Paris” em 1871, aconteceu que:

    o epicentro do movimento deslocou-se da França para a Alemanha, em fenômeno que Marx e Engels não só tinham previsto, mas também apreciado positivamente, na medida em que implicava um enfraquecimento da ideologia rival mais importante, o proudhonismo. 20

    Além disso, os anarquistas já experimentavam divisões e enfraquecimentos

    importantes durante e após o processo da comuna. É possível enumerar outros pontos, mas o

    importante para Haupt é que:

    Assim os partidários da luta política se tornam majoritários no movimento operário e, a exemplo da SPD, acelera-se a formação de partidos independentes; num decênio, entre 1884 e 1892, completa-se a constituição dos principais partidos socialistas europeus. Nesse processo, o instrumental ideológico muda suas funções, e a formação de partidos operários coloca as premissas para a difusão e a aceitação do marxismo, que oferece as bases para suas ideologias oficiais: o princípio da luta política, meio de ação e de autolegitimação, e o princípio da luta de classes, elemento constitutivo de sua identidade e de sua consciência coletiva. 21.

    O cientista político polonês Adam Przeworski segue o mesmo raciocínio de Haupt ao

    formular resumidamente que:

    “Aqueles que se tornaram socialistas eram os que decidiam utilizar os direitos políticos dos trabalhadores nas sociedades em que os trabalhadores tinham estes direitos e decidiam lutar por aqueles direitos, onde ainda não tinham conseguido êxito. A corrente abstencionista perdeu seu apoio dentro da Primeira Internacional depois de 1873, e os novos partidos socialistas, a maioria fundada entre 1884 e 1892, abraçaram os princípios da ação política e da autonomia dos trabalhadores”.22.

    18 HAUPT, op. cit. p.357. 19 STEINBERG, Hans-Josef. “O partido e a formação da ortodoxia marxista.” In HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo II: O Marxismo na Época da Segunda Internacional: Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982. 20 Idem, p.202. 21 HAUPT, op. cit., p. 357. Grifo nosso. O Sozialdemokratische Partei Deutschlands ou Partido Social-Democrata da Alemanha, fundado em 1875, é uma agremiação atuante até hoje. 22 Por “abstencionistas” o autor designa aqueles que defendiam que o movimento tinha que se abster da atividade política. PRZEWORSKI, Adam. “A social-democracia como fenômeno histórico” Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n.15, São Paulo, p.41-81, outubro de 1988, p.42. O mesmo artigo foi publicado em _____. Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

  • 5

    Assim, cristalizaram-se no bojo do movimento operário europeu do XIX aqueles que

    defendiam uma atividade política como forma de alcançar a “emancipação do proletariado”.

    Ao mesmo tempo, no mesmo processo, ocorre uma sistematização do que acaba por ser

    definido como marxismo: “Como sistema concluído em si mesmo e como visão política do

    mundo”, na definição de Steinberg.23 Não nos parece coincidência. Temos em fins da década

    de 1870 e 1880, uma nova conjuntura de formação de partidos nacionais, mais sob a

    influência direta do marxismo do que quando daquela antiga polissemia. “O verdadeiro

    surgimento de partidos operários ocorreu após a morte de Marx”. 24 Ao mesmo tempo,

    “Engels produziu as primeiras exposições sistemáticas do materialismo histórico”, como no

    livro Anti-Dühring (Leipzig, 1878), onde o autor utiliza uma polêmica com Eugen Dühring

    para apresentar uma das primeiras grandes sínteses do que também passou a ser conhecido

    como “socialismo científico”.25 Essa sistematização do marxismo ocorre precisamente nessa

    época. “Como sistema (...) e como visão política do mundo, o marxismo se organizou

    posteriormente, no período que vai do fim dos anos 70 à morte de Engels”, e foi o norte com o

    qual se forjou o programa da social-democracia alemã da época.26 As condições de

    aceitabilidade do marxismo nessa nova conjuntura de fundação de partidos nacionais, cuja

    matriz é o partido alemão é exposta por Steinberg:

    Essas condições são formadas pelo longo período de crise atravessado pela economia capitalista; pela repressão estatal contra a classe operária, ligada diretamente a essa crise e que culminou nas leis contra os socialistas; pela influência exercida pelo Anti-Dühring de Engels sobre toda uma geração de jovens intelectuais socialistas (...) 27.

    No mesmo sentido, Haupt sintetiza a questão nos seguintes termos:

    A partir do início dos anos 80 determina-se uma distinção entre a escola marxista e o “socialismo eclético”, e o fenômeno se verifica no seio da social-democracia alemã. O impulso parte do próprio Engels, com a sua polêmica contra Dühring, cuja influência sobre os socialistas alemães era enorme. O Anti-Dühring assinala sob vários aspectos um momento crucial na formação do “marxismo” como sistema. 28.

    Vejamos como o próprio Engels, já em 1892, aborda a questão:

    “Em 1875, o Dr. E. Dühring, docente da Universidade de Berlin, anunciou inopinadamente e com bastante alarido sua conversão ao socialismo e apresentou ao público alemão não só uma teoria socialista

    23 STEINBERG, op. cit. p. 208. 24 ANDERSON, op. cit. p. 25. 25 Idem, p. 24. 26 STEINBERG, op. cit. p. 208. 27 Idem, p. 208. 28 HAUPT, op. cit. p. 362. Grifo nosso.

  • 6

    minuciosamente elaborada, como também um plano prático completo para a reorganização da sociedade. (...)”.

    “Isso ocorria num momento em que os dois setores (...) acabavam de fundir-se. (...) O Partido Socialista da Alemanha convertia-se numa potência. Mas para que isso acontecesse a condição essencial residia em que não fosse posta em perigo a unidade recém-conquistada. E o Dr. Dühring dispôs-se publicamente a formar em torno de sua pessoa uma seita (...). Não havia, pois, outro remédio, senão aceitar a luva que nos atiravam e entramos na luta, (...).”

    “(...) Nada menos que (...) três grossos volumes, pesados por fora e por dentro, três corpos de exército de argumentos, mobilizados contra todos os filósofos e economistas anteriores, em geral, e contra Marx em particular; em realidade, uma tentativa de completa “subversão da ciência”. Tive de defrontar-me com tudo isso (...). É certo que a sistemática universalista de meu adversário me oferecia a oportunidade para desenvolver diante dele, numa forma mais coerente do que até então se havia feito, as ideias sustentadas por Marx e por mim acerca de tão grande variedade de matérias. E foi essa a razão principal que me leva a empreender essa tarefa, de resto tão ingrata.”29.

    Fica claro, portanto que o Anti-Dühring de Engels foi a primeira grande apresentação

    sistemática do marxismo, como atestaram as já citadas afirmações de Anderson, Haupt e

    Steinberg. “Pode-se falar em “escola marxista” somente depois da difusão e assimilação dessa

    obra” 30. De fato ele exerceu uma grande atração na intelectualidade de esquerda da época. O

    histórico dirigente socialdemocrata Karl Kautsky (1954 - 1938) se referiu a essa obra como a

    que mais “contribuiu para tornar acessível a amplos estratos do partido o grandioso mundo do

    pensamento marxista, até agora pouco compreendido, e condicionou seus desenvolvimentos”. 31. Também considerou que “a subversão que produziu em nossas cabeças A Subversão de

    Dühring,... só são capazes de avaliá-lo aqueles que viveram o processo” 32. Kautsky é nada

    mais nada menos a quem se atribui a “paternidade das noções de “marxista” e de “marxismo”

    no sentido que assumiu em nosso vocabulário. 33 Para Andreucci, “foi então que –

    propriamente – nasceu o marxismo. Nasceu nas revistas do partido, que eram dirigidas por

    Kautsky e Bernstein;” 34. E completa afirmando que: “A formação (...) dessa ortodoxia

    marxista, (está) substancialmente associada ao nome de Karl Kautsky.” 35.

    29 ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição inglesa de Do socialismo utópico ao socialismo científico. 2ªed. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2008, pp. 8-9. Grifos nossos. 30 STEINBERG, op. cit. p. 209. 31 KAUTSKY apud: STEINBERG, op.cit, p. 209. 32 KAUTSKY apud: HAUPT, op. cit. p. 362. 33 HAUPT, op.cit, p. 364. 34 ANDREUCCI, op cit. p. 27. 35 STEINBERG, op cit. p. 208.

  • 7

    Isso é importante, pois mesmo sendo o Anti-Dühring “uma síntese enciclopédica de

    nossa concepção dos problemas filosóficos, naturalistas e históricos” 36, naturalmente, não

    podia dar respostas ao conjunto de questões circulantes. E foi “o grupo de teóricos da geração

    que sucedeu Marx e Engels” 37, que Kautsky, pode-se dizer, foi o membro mais profícuo, que

    tomou para si essa tarefa: a de sistematizar, aprofundar e desenvolver o pensamento de Marx

    e Engels de forma a constituir um sistema doutrinário global. “Os objetivos prioritários desses

    sucessores eram a sistematização e a recapitulação de uma herança ainda muito recente.” 38.

    Perry Anderson destaca quatro membros dessa nova geração de marxistas: O italiano

    Antonio Labriola (1843-1904), o alemão Franz Mehring (1846 – 1919), o tcheco radicado na

    Alemanha Karl Kautsky (1854-1938) e o russo Guiorgui Plekhanov (1856-1918):

    Esses quatro homens mantiveram correspondência pessoal com Engels, que exerceu forte influência em suas formações. A direção principal dos seus trabalhos pode ser vista, na verdade, como uma continuação da última fase do próprio Engels. Em outras palavras, eles estavam interessados, de diferentes maneiras, em sistematizar o materialismo histórico como uma teoria geral do homem e da natureza, capaz de substituir disciplinas burguesas rivais e dotar o movimento operário de uma visão de mundo ampla e coerente que pudesse ser facilmente apreendida por seus militantes. Tal tarefa envolveu esses “novos teóricos”, da mesma forma que ocorrera com Engels, com um duplo compromisso: elaborar os princípios filosóficos gerais do marxismo como concepção da história e estendê-lo a domínios que não tinham sido diretamente abordados por Marx. 39.

    E neste contexto que esta tradição produz suas primeiras obras históricas sobre a

    origem do cristianismo e das primeiras comunidades que se identificavam como cristãs. O

    tema não é exatamente recorrente, embora apareça com certa frequência, principalmente no

    fim da vida de Engels.40 Este escreve em 1882, por ocasião da morte do orientador de Marx

    na Universidade de Bohn, o artigo Bruno Bauer e o Início do Cristianismo, obra que

    reconstitui a produção de Bauer sobre a história do cristianismo, mas oferece suas próprias

    conclusões acerca do tema. Treze anos depois, em seu último ano de vida, publica

    Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo, seu mais importante artigo sobre a

    questão 41.

    36 Carta de Engels a Bernstein, 11 de abril de 1884, apud: STEINBERG, op. cit. p. 208. 37 ANDERSON, op. cit. p. 26. 38 Idem, p. 28. 39 Idem, pp. 27-28. Grifos nossos. 40 Cf. KIERNAN, V. G. “cristianismo”. In BOTTOMORE, Tom (coord.). Dicionário do Pensamento Marxista. 2ª ed, Jorge Zahar editor. Rio de Janeiro, 1988. 41 O artigo foi publicado em duas partes entre os anos de 1894 e 1895. Leandro Konder diz que sobre as origens do cristianismo “Engels lhe dedicou três artigos e lhe fez referências de passagem em textos dedicados à outros problemas”. KONDER, Leandro. “Cristo Existiu?”. In ENGELS, Friedrich. O Cristianismo Primitivo. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969. p. 66.

  • 8

    Cristianismo, Religião, Igreja e afins, sempre apareceram de certo modo na produção

    de Marx e Engels. Marx deu seus primeiros passos numa caracterização sobre o Estado

    moderno em A Questão Judaica (1843). Uma breve associação do cristianismo – talvez mais

    especificamente da Igreja Católica – a um tipo de “socialismo feudalístico” aparece no

    Manifesto Comunista (1848). 42 Marx observou a influência clerical francesa na segunda parte

    de As lutas de classes na França, de 1848 a 1850. Engels, por sua vez, observou em seu

    trabalho sobre as Guerras Camponesas de 1524-1525 o papel da reforma protestante.43.

    Porém o centro dos trabalhos aqui abordados não é exatamente a crítica filosófica ou

    teológica da religião confessional cristã, ou o papel da religião e suas instituições na vida

    social. Marx considerava que a “crítica da religião, no caso da Alemanha, foi na sua maior

    parte completada” 44 com a crítica bíblica moderna. Talvez por isso pouco se dedicou a

    análise da religião especificamente, muito embora no seu mais ambicioso projeto, da crítica

    da economia política, a ironia com a religião fosse recorrente, como revela o seu conceito de

    fetichismo da mercadoria.45 Além disso, a partir de 1845, o trabalho em conjunto de Marx e

    Engels havia se tornado constante, o que lhes fez realizar uma “divisão de trabalho”: “...

    tocou-me a tarefa de apresentar nossos pontos de vista na imprensa periódica, (...) ; de modo

    que sobrasse tempo a Marx para a elaboração de sua obra maior.” 46 Todavia, o tema aqui

    tratado é o que seria hoje chamado de uma história social das primeiras comunidades cristãs,

    designadas genericamente aqui de cristianismo primitivo.

    A primeira referência a uma certa doutrina de Marx (“marxiano”) que encontrou

    Haupt, foi num debate entre os anos de 1853 e 1854, em que partidários das posições de

    Wilhelm Weitling, importante revolucionário alemão de origem operária (era artesão) e

    membro fundador da Liga dos Comunistas, organização para quem Marx e Engels escreveram

    o Manifesto Comunista (1848). Os atritos entre esses últimos e Weitling foram, aliás,

    constantes. Esse mesmo Weitling, ao que parece, foi quem introduziu uma aproximação ente

    comunismo e cristianismo primitivo no ambiente intelectual circunscrito às esferas do

    movimento operário da época. Em tom de severa crítica, Engels disso só nos diz que:

    42 “Nada mais fácil do que dar ao ascetismo cristão uma demão socialista. Não bradou também o cristianismo contra a propriedade privada, contra o casamento, contra o Estado? Não pregou em vez deles a caridade e a pobreza, o celibato e a mortificação da carne, a vida monástica e a Igreja? O socialismo cristão é apenas a água benta com que o padre abençoa a irritação do aristocrata." MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 43 Cf. KIERNAN, V. G. “cristianismo”. In BOTTOMORE, Tom (coord.). op.cit. 44 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 29. 45 Cf. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1983, 5 vols. 46 JONES, G. Stedman. Retrato de Engels. In HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo I: O Marxismo no Tempo de Marx. op. cit. p. 416. A “obra maior” a que Engels se refere aqui são os tomos do livro O Capital: crítica da economia política.

  • 9

    A regressão, introduzida por Weitling, do comunismo ao cristianismo primitivo — por muitos pormenores geniais que se encontrem no seu Evangelium des armen Sanders [Evangelho do Pobre Pecador] — tinha entregado o movimento, na Suíça, em grande parte, nas mãos (...) de loucos como Albrecht e, (...) de pseudoprofetas como Kuhlmann. 47.

    A historiadora Elizete da Silva afirma que o livro de Weitling sustenta que:

    Jesus foi o primeiro revolucionário, cuja luta contra os fariseus e os ricos dava ao Evangelho o seu significado Socialista e que Karlstadt e Thomas Münzer provaram que todas as ideias democráticas são consequências do cristianismo. (...) Engels retomaria tais ideias, mesmo reconhecendo em Weitling um socialista utópico, não cientista como ele e seus companheiros. 48.

    Weitling sempre foi respeitado tanto quanto combatido por Marx e Engels, num

    momento em que a se delineavam definições hoje bem marcadas entre ideologias. Esse talvez

    tenha introduzido o interesse histórico, o qual Engels só abordará mais tarde, nas primeiras

    comunidades que se identificavam enquanto cristãs. Para Engels, “Uma religião que tinha

    desempenhado um papel tão amplo na história do mundo (...) não podia ser posta de lado

    como mera ilusão;” em suas próprias palavras: A religião que subjugou o Império Romano e dominou sem dúvida a maior parte da humanidade civilizada por 1.800 anos, não pode ser explicada apenas declarando ser ela uma tolice resultante de fraudes. Não se pode elucidar esta questão e ter sucesso na explicação da sua origem e do seu desenvolvimento sem partir das condições históricas sob as quais surgiu e alcançou o domínio da situação. Isto se aplica ao Cristianismo. 49.

    Engels aqui combatia o que considera “exagero” de determinados teóricos do século

    XIX que reduziam a religião em geral, e o cristianismo em especial a uma “tolice” articulada

    historicamente por uma série de “fraudes”. Pode-se dizer que as matrizes teóricas tanto destes

    autores quanto dos marxistas clássicos, são os intelectuais enquadrados pela historiografia na

    assim chamada “Primeira Busca pelo Jesus Histórico”, que realizaram no final do século

    XVIII e durante todo o XIX as primeiras obras de crítica bíblica modera. Podemos falar de

    David Friedrich Strauss (1808-1874), e Bruno Bauer (1809-1882), mais centralmente e Ernst

    Renan (1823-1892) mais marginalmente. Estes são os autores, em especial Bauer, de que

    Engels parte para escrever a sua Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo.

    47 ENGELS, Friedrich. Para a História da Liga dos Comunistas. . Acessado em 27/01/2013. 48 SILVA, Elizete da. “Engels e a abordagem científica da religião”. In FERREIRA, Muniz; MORENO Ricardo; CASTELO BRANCO, Mauro (orgs.). Friedrich Engels e a ciência contemporânea. Salvador: EDUFBA, 2007.. p. 179. 49 ENGELS, Friedrich. Bruno Bauer e o Início do Cristianismo. < http://www.marxists.org/portugues/marx/1882 /05/11.htm>. Acessado em 27/01/2013.

  • 10

    Eles são parte daqueles que fizeram os primeiros estudos laicos com o objetivo de

    compreender Jesus como um personagem histórico, além de observarem a vida social das

    primeiras comunidades cristãs. 50

    Com efeito, Kautsky posteriormente também abordaria o tema. Em 1908 tornaria

    público se volumoso livro sobre as origens do cristianismo deixando clara sua preocupação:

    “Qualquer que seja a atitude diante do cristianismo, não se pode deixar de considera-lo um dos fenômenos mais gigantescos da história da humanidade. O fato de que a Igreja cristã haja perdurado cerca de dois milênios e ainda permaneça cheia de vigor, e, em muitos países, mais poderosa que o Estado, não pode deixar de provocar enorme admiração. Assim, tudo o que possa contribuir para a compreensão desse colossal fenômeno, e o estudo das origens dessa organização, tem extrema importância, atualidade e significação prática.” 51.

    Também um pouco mais tarde, Rosa Luxemburgo (1871-1919) se dedicaria à questão

    em O Socialismo e as Igrejas, em que busca reconstruir o itinerário que o cristianismo

    percorreu, de religião oprimida à religião oficialmente reconhecida pelo império. Esse

    interesse histórico no cristianismo primitivo – parece significar o interesse desta geração de

    “fazer seu juízo” sobre o cristianismo, talvez, num momento de popularização do marxismo

    enquanto doutrina que encontrava uma massa de operários profundamente influenciados pelas

    Igrejas e praticantes das religiões cristãs. Essa característica fica mais marcada na obra de

    Luxemburgo, escrita em resposta à condenação clerical pública da revolução de 1905 na

    Rússia.52.

    Na coletânea de cartas de Antônio Labriola publicadas em dezembro de 1897 com o

    nome de Filosofia e Socialismo, vemos na carta IX também seu esforço de compreensão do

    cristianismo primitivo. Direcionada a G. Sorel, logo no primeiro parágrafo, vemos uma

    indicação que também sugere que o marxismo naquele momento era impelido a oferecer uma

    compreensão da história do cristianismo:

    Você faz alusão aos críticos de todas as tendências, que pensam, por muitas distintas razões, que o cristianismo escapa a inteligencia materialista da história, e por isso estimam que haja nele uma objeção de dificuldade insuperável.

    Devo me empenhar nesta selva, que sem ser confusa, é, no entanto, bastante obscura para mim?(...) Bem, até agora eu nunca fiz estudos ex profeso sobre a história da igreja cristã para me permitir falar dela tão livremente; Sei muito bem, por outro lado, que muitos dos que a criticam falam de acordo com impressões puramente genéricas (...) agora, como

    50 Cf. CHEVITARESE, André L. & FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma brevíssima Introdução - Rio de Janeiro: Kline, 2012; 51 KAUTSKY, Karl. A Origem do Cristianismo. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 52 Cf. KIERNAN, V. G. “cristianismo”. In BOTTOMORE, Tom (coord.). Ibid.

  • 11

    tantos outros, poderia, com uma pequena variante, repetir a exclamação de Fausto: ich habe, leider, auch Theologie studirt! (Infelizmente, eu também estudo teologia). 53.

    Portanto presumimos que o movimento de transformação do pensamento de Marx em

    doutrina sistemática, tenha desafiado Engels – que no fim da vida se deu a tarefa de

    “divulgador” do marxismo – e seus discípulos a apresentarem também a formulação do

    marxismo sobre a história do cristianismo.

    Esse trabalho visa reconstituir sinteticamente a caracterização que os autores filiados à

    tradição clássica do marxismo faziam da origem histórica das primeiras comunidades cristãs,

    e esboçar brevemente algumas de suas referências, de forma a demonstrar suas similaridades

    e eventuais dissimetrias. Consideramos que suas aproximações são mais volumosas que suas

    diferenças – justamente por estarem engajadas num esforço comum: autorizar o marxismo

    como uma doutrina capaz de oferecer respostas a todo um conjunto de questões circulantes,

    inclusive, a origem do cristianismo.

    53 LABRIOLA, Antônio. Filosofia y socialismo. < http://www.marxists.org/espanol/labriola/1899/filosoc/ index.htm>. Acessado em 27/01/2013.

  • 12

    2. A Crítica bíblica neotestamentária alemã e suas influências em Engels

    Com a pretensão de delimitar nosso objeto, expressamos que quatro obras serão

    levadas em consideração neste trabalho para que possamos reconstruir as considerações da

    geração chamada por Perry Anderson de “marxismo clássico” acerca do cristianismo

    primitivo. Já apontamos no capítulo anterior que as produções destas obras se localizam num

    contexto geral de difusão e sistematização do marxismo localizado entre as duas últimas

    décadas do século XIX e a primeira do século XX, que desafiava seus teóricos a apresentarem

    sua formulação acerca da gênese e desenvolvimento do cristianismo. São elas: Bruno Bauer e

    o Início do Cristianismo (1882) 54 e Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo

    (1895) 55, artigos de Friedrich Engels. O texto O Socialismo e as Igrejas (1905), de Rosa

    Luxemburgo 56. E por fim, a obra mais importante desta geração sobre este tema, o livro A

    Origem do Cristianismo (1908) de Karl Kautsky 57.

    O filósofo italiano Antônio Labriola no capítulo IX do livro Filosofia e Socialismo

    (1899), que consiste numa carta ao teórico francês Georges Sorel, também fala das

    possibilidades da produção histórica sobre o cristianismo primitivo do ponto de vista do

    materialismo histórico, além de traçar alguns princípios metodológicos. Porém, como este

    trabalho não constrói um discurso sobre este objeto, e sim visa persuadir seu interlocutor

    sobre as possibilidades deste tipo de pesquisa, não trataremos dela aqui 58.

    É possível afirmar que essas obras já aplicam esse novo sistema de princípios

    denominado de marxismo 59. Já é notável a incorporação dos princípios da teoria da história

    marxista para a produção dessa então nova forma de abordar a questão. Podemos sintetizar

    este novo paradigma teórico-metodológico com uma citação do próprio Engels, contido no

    Anti-Dühring, já exposta como primeira grande obra que apresenta o marxismo enquanto

    sistema, mesmo correndo o risco de produzir um efeito de compreensão por demais

    sistemático:

    54 Utilizaremos aqui a versão em português disponível em < http://www.marxists.org/portugues/marx/1882 /05/11.htm>. Acessado em 27/01/2013. 55 Utilizaremos aqui a versão publicada em português pela Editora Laemmert em 1969 sob o nome O Cristianismo Primitivo comparando-a à versão em espanhol publicada pela Revista Marxismo Vivo. Ano 2011, nº2. 56 Utilizaremos aqui a versão em espanhol publicada pela Revista Marxismo Vivo. Ano 2011, nº2. Considerar, portanto, a tradução do título e citações desta obra como traduções livres do autor deste trabalho. 57 Utilizaremos para esse trabalho a tradução para o português de Luiz Alberto Moniz Bandeira publicado pela editora Civilização Brasileira em 2010. KAUTSKY, Karl. A Origem do Cristianismo. op. cit. 58 Uma versão em espanhol está disponível em < http://www.marxists.org/espanol/labriola/1899/filosoc/ index.htm>. Acessado em 27/01/2013. 59 O especialista Maximilien Rubel considerou o uso dos termos “marxista” e “marxismo” “abusivos e injustificáveis” (RUBEL apud: HAUPT, op. cit. p. 347); Embora controverso, fomos obrigados até aqui a utilizar a expressão que foi hegemonizada. Daqui pra frente utilizaremos o termo que os próprios Marx e Engels usaram para definir sua teoria, materialismo histórico.

  • 13

    Os novos fatos obrigaram a submeter toda a história anterior a um novo exame, e aí se mostrou que toda a história anterior era, com exceção dos estágios primitivos, a história das lutas de classe, que essas classes sociais em luta entre si são, toda vez, fruto das relações de produção e de troca, em suma, das relações econômicas de sua época; que, portanto, a estrutura econômica da sociedade constitui toda vez o fundamento real a partir do qual deve, em última instância, ser esclarecida toda a supra-estrutura (sic) das instituições jurídicas e políticas, bem como os modos de concepção religiosa, filosófica, etc., de cada uma das épocas históricas.60.

    Esta definição pode ser contrastada com o que o mesmo autor afirma numa carta a

    Joseph Bloch anos depois:

    A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura – as formas políticas das lutas de classes e os seus resultados, as Constituições estabelecidas uma vez, a batalha ganha pela classe vitoriosa, etc. -, as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e o seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos exercem igualmente a sua ação no curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam-lhe de maneira preponderante a forma. 61.

    A primeira citação é de 1875, enquanto que a segunda de 1890. Mais do que

    considerar “contraditória”, ou enxergar aqui “dois Engels”, preferimos, como manifestamos

    no primeiro capítulo, ao invés de observar um conjunto de princípios rígidos, observar neste

    contraste um processo ativo de elaboração e reelaboração do materialismo histórico. Na

    medida em que a teoria é contrastada e enriquecida pela observação empírica, identificamos

    na segunda citação o resultado mais acabado do desenvolvimento intelectual do autor, que em

    nossa opinião, é o mais visível nas obras que pretendemos analisar aqui.

    Tratada resumidamente esta questão, podemos falar agora de um traço peculiar destas

    obras. Trata-se da incorporação das formulações da crítica bíblica neotestamentária alemã 62,

    porém, abordadas do ponto de vista do materialismo-histórico. Isso fica mais evidente nas

    obras de Engels e Labriola. Engels explicitamente afirma que, para construir sua visão acerca

    do cristianismo primitivo, se utiliza das formulações de Bruno Bauer, e Friedrich Strauss.

    Acontece que ambos eram filósofos pós-hegelianos idealistas. Engels e Marx se propunham a

    60 FERNANDES, Florestan (org.). Marx Engels. São Paulo, Ática, 1983 (Col. Grandes Cientistas Sociais, História, 36). p. 407. 61 ENGELS, apud: SILVA, Elizete da. op. cit. p. 177. 62 Na definição de Samuel Nunes dos Santos: “O criticismo neotestamentário compreende um segmento do criticismo bíblico, onde um variado número de eruditos empregou as técnicas literárias para investigar os escritos do Novo Testamento. Tais técnicas, geralmente, buscavam analisar: a construção textual original, a data de composição, as fontes utilizadas, a autoria, entre outras. Tentavam assim, estabelecer o grau de autenticidade destes escritos e sua base histórica.” – SANTOS, Samuel N. Criticismo neotestamentário e os evangelhos enquanto fontes histórico-biográficas para construção de uma Vita de Jesus. Revista Jesus Histórico, ano III, v. 4, p. 54-78, 2010.

  • 14

    superar o pensamento de Hegel sobre a disciplina histórica, o trazendo para o campo

    materialista da filosofia. Sobre esta época intelectual Elizete da Silva também nos diz que:

    As ideias de G.W.F. Hegel tornaram-se o sistema filosófico dominante da Alemanha do período e tanto Engels, quanto Marx estudaram o pensamento hegeliano e o tomaram como ponto de partida para a construção do materialismo histórico e para sua própria crítica da religião. 63

    Para realizar essa superação materialista, é de fundamental influência a filosofia de

    Ludwig A. Feuerbach (1804 – 1872), em especial seu livro A Essência do Cristianismo

    (1841). Podemos notar o impacto de Feuerbach ao mesmo tempo em que observamos uma

    definição sintética do que se objeta chamar por materialismo na citação:

    Veio então a Wesen des Christenthums (A Essência do Cristianismo) de Feuerbach. Com um só golpe, pulverizou a contradição, ao pôr de novo no trono, sem rodeios, o materialismo. A Natureza existe independentemente de toda a filosofia; ela é a base sobre a qual nós, homens, nós mesmos produtos da Natureza, crescemos; fora da Natureza e dos homens não existe nada, e os seres superiores que a nossa fantasia religiosa criou são apenas o reflexo fantástico do nosso próprio ser. O encantamento foi quebrado; o sistema foi feito explodir e atirado para o lado, a contradição, porque existente apenas na imaginação, foi resolvida. — Uma pessoa tem, ela própria, que ter vivido o efeito libertador deste livro, para fazer uma ideia disso. O entusiasmo foi geral: momentaneamente fomos todos feuerbachianos. Quão entusiasticamente Marx saudou a nova concepção e quanto ele — apesar de todas as reservas críticas — foi por ela influenciado, pode ler-se na Heilige Familie. (A Sagrada Família) 64.

    Foi sob o influxo dessa obra que Marx esboça as famosas “Teses sobre Feuerbach”,

    tido por muitos como o documento fundante do que a posteriori seria chamado de sistema

    marxista. Em Hegel a ideia é a categoria fundante do devir histórico. A filosofia de Feuerbach

    inverte essa relação priorizando causas materiais (política, sociedade, etc.). Ela, no entanto,

    ainda era limitada, segundo Marx, pois ignorava que a ideia tanto brotava quanto também

    fazia parte deste mundo material. Porém, fundamentalmente, Feuerbach havia conseguido

    “explodir o sistema” hegeliano. “O materialismo de Ludwig Feuerbach (1804-1872) o

    possibilita a fazer a crítica ao idealismo de Hegel”. 65.

    Ao acoplar a percepção de religião de Feuerbach dando-lhe uma nova roupagem,

    agora chamada de materialista-histórica, Marx e Engels produziram uma nova forma de

    abordar a questão religiosa em seu ambiente social. Agora:

    63 SILVA, Elizete da. ibid. Op. cit. pp. 172-173. 64 ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. < https://www.marxists.org /portugues/marx/1886/mes/fim.htm >. Acessado em 23/10/13. 65 SANT’ANNA, Silvio L. “Introdução: A cosmovisão dialético-materialista da história”. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 13.

  • 15

    Destituída de origem transcendente e de carácter sobrenatural, a religião vai sendo progressivamente desvendada na sua origem e feição humanas e interpretada como resposta a necessidades profundas que o homem religioso julga não poder resolver nesta vida e com os meios disponíveis na existência do real. O ‘além’, ou a ‘outra vida’, é uma componente essencial da consciência religiosa, compensação de um viver empobrecido em que até a morte é desvanecida como simples aparência e mera passagem para um aspirado e prometido mundo melhor. 66.

    A citação acima, ainda que seja sobre a obra de Feuerbach, se encaixa perfeitamente

    na produção de Marx e Engels. Segundo o próprio Engels:

    Hegel havia libertado da metafísica a concepção de história, ele a havia tornado dialética – mas a sua concepção de história era essencialmente idealista. Agora o idealismo estava desalojado de seu último refúgio, da concepção de história, estava proposta uma concepção materialista de história para explicar a consciência dos homens através do ser deles, ao invés de, como até então, o seu ser através da sua consciência. 67.

    Estamos de acordo com Silva, portanto, quando ela afirma que:

    Engels, na juventude um hegeliano de esquerda, mergulhou nesse caudal filosófico e teórico com as armas da crítica, e de forma dialética produziria na contra-corrente (sic) um novo olhar, novos paradigmas para compreenderem-se as relações da religião com a sociedade, com seu contexto histórico 68.

    Podemos afirmar, portanto, que os textos sobre história do cristianismo aqui

    abordados, ao mesmo tempo em que são produzidos pelos mecanismos teórico-metodológicos

    do materialismo histórico, indexam criativamente as formulações do criticismo

    neotestamentário alemão a partir do ponto de vista desta nova corrente de pensamento (Em

    especial as formulações de Strauss e principalmente Bruno Bauer), de modo a criar, a nosso

    ver, uma forma original de observar a questão no ambiente intelectual do final do século XIX

    e início do XX.

    Como já dito, Engels utiliza as formulações de Bruno Bauer e Friedrich Strauss para

    produzir seu juízo sobre o cristianismo primitivo. Este revolucionou a crítica bíblica moderna

    aplicando o conceito de mito aos evangelhos, enquanto que aquele foi considerado por Albert

    Schweitzer o autor da “primeira vida de Jesus cética” 69, ou seja, estendeu o ceticismo,

    66 SERRÃO, Adriana Veríssimo. Prefácio à 2ª Edição. FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Fundação Calouste Gulbenkian. 2ª Ed. 2002 67 FERNANDES, Florestan (org.). Marx Engels. Op.cit. p. 407. 68 SILVA, Elizete da. op. cit. p. 173.. 69 SCHWEITZER, Albert. A Busca do Jesus Histórico. São Paulo: Novo Século, 2003. p.169.

  • 16

    característica da investigação de pretensão científica, ao extremo 70. Ambos os autores

    publicaram seus trabalhos durante a juventude de Engels, que nasceu em 1820. A Vida de

    Jesus de Strauss é publicada em 1835 e 1836, enquanto Bauer publica seu primeiro livro de

    crítica bíblica, a Crítica da História do Apocalipse em 1838. O historiador Gareth Stedman

    Jones nos traz a informação de que já na Inglaterra, para onde partiu em fins de 1842, Engels

    teria ficado “estupefato”: (...) ao descobrir que o socialismo obtinha apoio somente na camada inferior da sociedade e que as obras de Strauss, Rousseau, Holbach, Byron e Shelley, embora fossem lidas pelos operários, eram praticamente inomináveis entre as classes médias e os ambientes “cultos”. (...) não conseguiu encontrar melhor explicação para o fato de o iluminismo se limitar às classes inferiores, a não se a de que se tratava de uma situação análoga à dos primitivos cristãos. 71.

    Ou seja, Engels critica o “elitismo dos filósofos especulativos que tratavam os

    trabalhadores, a massa, como seres inferiores que precisavam ser conduzidos pelos

    iluminados.” 72, enquanto que eles mesmos, não ‘precisariam’ desses autores, por isso a sua

    não difusão nas elites. Esse contraste que Engels identificou e comparou aos primitivos

    cristãos pode ser explicado pela importância que tiveram (entre eles autores da crítica bíblica

    alemã) em sua formação de juventude 73, e é possível que ao produzir sua leitura histórica

    sobre o cristianismo primitivo, tenha levado em consideração essas mesmas leituras de

    juventude. A biografia de Engels indica que o ambiente em que viva o tenha impelido a estes

    autores. Vejamos um pouco, portanto, do ambiente em que passou sua juventude.

    Friedrich Engels nasceu em Barmen, na província renana do reino da Prússia, numa

    família de industriais. Em 1938 é enviado pela família à Bremen, para trabalhar na firma

    Heinrich Leopold. A região de Wuppertal 74 no final dos anos 1830/40 era importante polo

    70 O termo “ceticismo” é abrangente, mas para fins de definição podemos classifica-lo como uma postura crítica e oposta à “tradição”. Segundo Richard H. Popikin: “O ceticismo (...), centrado principalmente em questões acerca da confiabilidade das exigências concernentes ao conhecimento, era entendido também como a principal arma contra as crenças religiosas. O termo “cético” deixou de significar apenas um questionador sobre as inúmeras aspirações relacionadas ao saber acerca de uma realidade exterior, e passou a ter um significado maior: um questionador da revelação judaico-cristã.” POPKIN, Richard H. Novas Considerações sobre o papel do ceticismo no Iluminismo. Revista Eletrônica Sképsis, ano IV, Nº 6, 2011. P. 67. 71 JONES, op. cit. p. 402. 72 SILVA, Elizete da. Op. cit. p. 174. 73 É o que sugere Jones quando diz, sobre Engels, que: “As fases que teve de atravessar para afastar-se do cristianismo ortodoxo – indo do cristianismo liberal, através da leitura de Schleiermacher, à de Strauss – podem ser acompanhadas por suas cartas de Bremen aos irmãos Graber, seus companheiros de escola.”. JONES, op. cit. p. 390. 74 Wuppertal é uma cidade independente alemã localizada na região da Renânia do Norte-Vestfália, que surgiu em 1929 pela fusão dos distritos de Barmen, Elberfeld, Vohwinkel, Ronsdorf, Cronenberg, Langerfeld e Beyenburg. O nome da cidade era, inicialmente, Barmen-Elberfeld e após 1930, Wuppertal. Em < http://pt.wikipedia.org/wiki/Wuppertal >. Acessado em 23/10/13.

  • 17

    comercial que na era pós-napoleônica, sofrera com dificuldades como a carestia, redução do

    nível de vida e aumento do ritmo de trabalho. 75 Combinada com essa relação de crise

    emergem cada vez mais seitas milenaristas com discursos cada vez mais apocalípticas.

    Segundo historiador Jean Delemeau “há em geral uma ligação entre febres milenaristas e

    grupos sociais em crise” 76. Jones nos oferece uma imagem desde ambiente no que diz

    respeito às suas características mais culturais:

    A prece em família e a leitura da Bíblia, a meditação sobre a literatura devota, uma ética feita de religiosidade e de trabalho incansável, e uma teologia sectária transmitida através da terrificante retórica de púlpito de pregadores como Krummacher eram as principais componentes culturais das famílias de mercadores durante a juventude de Engels. 77.

    Não é de se surpreender, portanto, que o espírito profundamente crítico de Engels

    tenha empenhado seus primeiros escritos contra o obscurantismo religioso que encontrava no

    teólogo Friedrich Wilhelm Krummacher um de seus principais representantes, ainda que o

    intelecto de Engels aqui, se revelara ainda profundamente ligado ao romantismo alemão. “Foi

    com este pano de fundo que Engels, aos dezenove anos, lançou seu primeiro ataque, sob

    pseudônimo, contra o filisteísmo dos crentes do Wuppertal.” 78 Seus primeiros escritos que se

    tem registro ganharam o título de Cartas de Wuppertal e foram publicas no periódico

    hamburguês Telegraph fur Deutschaland, causando grande escândalo à época devido suas

    críticas. Em uma das cartas de 1839 lê-se:

    Em um sermão recente em Elberfeld sobre Josué 10: 12-13, onde Josué ordena que o Sol pare, Krummacher desenvolveu a tese interessante que os pios Cristãos, os Eleitos, não deveriam supor que, nessa passagem, Josué estava aceitando as visões do povo, mas deveriam acreditar que a Terra fica parada e o Sol gira em tono dela. Na defesa dessa visão, ele mostrou o que é expresso ao longo da Bíblia. O chapéu de bobo que o mundo dará a eles por isso, eles, os Eleitos, deverão alegremente coloca-lo em seus bolsos com os diversos que já receberam. – Nós devemos estar felizes por receber uma refutação dessa triste anedota, que vem a nós proveniente de uma fonte confiável. 79.

    Assim, esse jovem que fora forçado a abandonar o liceu para cuidar dos negócios da

    família, expressava seu repúdio à interpretação difundida por F. W. Krummacher, que sugeriu

    75 Cf. JONES, op. cit. 76 DELEMEAU, apud: SILVA, Elizete. op. cit. 77 JONES, op. cit. p. 388. 78 JONES, ibid. 79 ENGELS, Friedrich. Sermão de F. W. Krummacher sobre o livro de Josué. Em: < https://www.marxists.org/ portugues/marx/1839/05/sermao.htm> Acessado em 23/10/2013.

  • 18

    em um de seus discursos que “o sol gira em torno da terra.”. Em outra carta, um ano depois,

    continua:

    Ele desenha tal quadro de importância no qual os mais pobres membros de sua congregação poderiam, inevitavelmente, se classificarem como mais altivos e sábios que Kant, Hegel, Strauss, etc., cujos nomes Krummacher constantemente execra em seus sermões. Não é possível que na raiz do âmago do ser de Krummacher haja tal ambição frustrada, um descontentamento por distinção? Há muitas mentes que lutaram pela altivez, falharam em consegui-la através da diligência, talento e trabalho duro e, então, acreditam que podem consegui-la, a coroa eterna, por uma única virtude da fé. Isso, e nada mais, podemos acreditar, explica a constante polêmica de Krummacher contra tudo que é famoso no mundo. – É verdadeiramente doloroso encontrar nesses sermões tão poucos elementos leves, tão poucos pathos, sentimento ou verdadeiro pesar. 80.

    Ou seja, suas cartas de juventude expõe uma preocupação significativa com o

    antirracionalismo difundido por homens de autoridade religiosa como Krummacher. Por que

    não vemos essa preocupação tão evidente, por exemplo, na produção do jovem Marx, já

    resolutamente ateu e interessado numa crítica materialista do sistema de Hegel? Talvez os

    ambientes de que vêm esses dois nomes do pensamento oitocentista expliquem essa diferença:

    A formação de Engels foi completamente diferente (da de Marx). O pietismo protestante dos comerciantes de Barmen opunha-se ferozmente às associações pagãs da Aufklärung, a qualquer coloração racionalista da interpretação bíblia e à filosofia ambiguamente protestante de Hegel. 81.

    Passava-se, portanto, por uma polarização muito grande no interior da vida intelectual

    da sociedade de Wuppertal do final dos anos 1830. De um lado a leitura pietista, de

    interpretação literal da Bíblia, de cunho antirracionalista. De outro, as diferentes correntes do

    liberalismo, do racionalismo e da crítica bíblica pós-hegeliana. Nesse ambiente polarizado,

    uma postura intelectual progressista, quase necessariamente empurrava o indivíduo para uma

    crítica da reação pietista e para o cristianismo liberal. Em outubro de 1839 escrevera “sou

    straussiano entusiasta”. Foi a leitura de Strauss, que havia marcado época na crítica bíblica,

    que o fez entrar em contato com Hegel. 82 Mas a ruptura com a educação cristã-protestante

    não seria simples, e sua formação ainda seria de difícil percurso. Segundo Jones “nesse

    80 ENGELS, Friedrich. Dois Sermões de F. W. Krummacher. Em: < https://www.marxists.org/portugues/ marx/1840/09/semao2.htm> Acessado em 23/10/2013. 81 JONES, op. cit. p. 387. O termo Aufklärung pode ser genericamente traduzido como “esclarecimento” e foi consagrado como conceito importante do pensamento iluminista por conta do texto de 1784 de Immanuel Kant “O que é esclarecimento (Aufklärung)?”. 82 Cf. JONES, op. cit.

  • 19

    período o problema da fé religiosa foi predominante para Engels (...); podia abandonar a fé só

    depois de haver encontrado outra” 83; Teria a “nova fé” de Engels recaído sobre a ciência?

    Após o impacto do movimento intelectual genericamente conhecido por iluminismo,

    que priorizava princípios racionais para compreensão da realidade, todo o conhecimento

    deveria ser revisto, inclusive o conhecimento religioso ou bíblico. Agora, a verdade seria um

    estatuto atribuído por verificações racionais através de métodos específicos. Um dos esforços

    intelectual de Marx e também de Engels foi estender essa postura também aos domínios da

    narrativa histórica. Em suas palavras:

    A religião, a observação da natureza, a propriedade, a ordem pública, tudo era submetido a mais desapiedada crítica; tudo que existia devia justificar sua existência perante o tribunal da razão ou renunciar a continuar existindo. A tudo, aplicava-se, como crivo único, a razão. 84..

    Realmente, uma das características do iluminismo mais presentes até hoje foi “jogar

    por terra o pressuposto que alguns pontos e aspectos da vida não poderiam ser objetos de

    verificação” 85. Antes do iluminismo (ou ilustração), não podemos observar obras que

    busquem reconstruir a figura de Jesus de Nazaré ou das primeiras comunidades cristãs do

    século I com base a referências históricas, pelo menos não históricas como a compreendemos

    hoje. Por exemplo, podemos falar das reconstruções que foram produzidas a partir do

    incômodo causado pelas incongruências contidas nos quatro evangelhos (Marcos, Mateus,

    Lucas e João), principais documentos acerca da vida de Jesus. Este incômodo levou à

    tentativas de harmonia como o Diatessaron ou como a empresa levada a cabo por Calvino de

    apresentar as diferenças dos evangelhos em colunas paralelas 86. Porém, essas tentativas

    consideravam os evangelhos como relatos fidedignos. Isso engessava qualquer

    problematização histórica, já que se encaravam estes documentos como suficientemente

    fidedignos, não haviam questões a serem levantadas 87. Não por coincidência, a primeira

    movimentação alheia às interpretações tradicionais foi acerca da “crítica das fontes”:

    No começo houve a crítica das fontes. Perguntava-se se nas narrativas evangélicas tudo era histórico, autêntico. Não se tratava de descobrir que uns poucos “versos satânicos” se infiltraram nas fontes, mas que muitos versos sobre Jesus foram envolvidos numa aura a-histórica de mito e poesia. 88

    83 JONES, op. cit. p. 390. 84 ENGELS, Friedrich. “O Anti-Dühring”. In FERNANDES, Florestan (org.). Marx Engels. Op. cit. 85 CHEVITARESE, André & FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma brevíssima Introdução. - Rio de Janeiro: Klíne, 2012; p. 41. 86 Ibid. p. 40. 87 Ibid. p. 38. 88 THEISSEN, Gerd. & MERZ, Annette. O Jesus Histórico: Um Manual. São Paulo: Loyola, 2002. p. 20.

  • 20

    Esta metodologia de crítica das fontes é num mecanismo mais geral de compreensão

    de origem iluminista, como considera Francisco Falcon:

    A historiografia da Ilustração abrange na realidade dois tipos de histórias e historiadores – a história interpretada pelos filósofos e as histórias produzidas por historiadores eruditos – os antiquários. Enquanto os filósofos criticaram a natureza meramente descritiva, factual e essencialmente política das histórias eruditas, propondo como alternativa uma história filosófica – uma história racional e explicativa do devir histórico – cujo núcleo seria dados por valores universais expressos através de conceitos como cultura, civilização, liberdade, os historiadores eruditos, analisados Gusdorf, apesar de serem quase todos ilustres desconhecidos, aperfeiçoaram o instrumental da crítica das fontes documentais, além de revelarem novos acervos à investigação histórica. 89.

    A partir das considerações desta crítica, outros modos de ver a questão foram

    brotando. Em artigo, Samuel Nunes dos Santos apresenta resumidamente a catalogação feita

    pelo estudioso norte-americano Donald A. Carlson. Ele:

    Divide a crítica aos evangelhos em três escolas: a primeira, intitulada de Crítica das Fontes, foca a sua análise no estudo das fontes utilizadas pelos evangelistas; a segunda, a Crítica da Redação (Redaktionsgeschichte, traduzido também por História da Redação), analisa a etapa final de composição dos evangelhos; e, por último, a Crítica da Forma (Formgeschichte, traduzido também por História da Forma), que trabalha a etapa das tradições orais (CARLSON, 2006: 21). 90.

    Devido à amplitude da pesquisa, e por se desviar demais do objetivo deste trabalho,

    não vamos tratar diretamente destas considerações. Achamos somente importante destacar

    que ao se debruçar sobre o material bíblico e encara-lo, pela primeira vez, de forma crítica,

    como uma fonte privilegiada para uma produção histórico-científica, tanto sobre a

    personagem Jesus, quanto sobre as primeiras comunidades que foram fundadas reivindicando

    seus ensinamentos, esses autores produziram um movimento intelectual que a historiografia

    chamou de a “Primeira busca pelo Jesus Histórico”. 91.

    O primeiro a empreender essa busca crítica foi o professor de línguas orientais de

    Hamburgo, Hermann Samuel Reimarus (1694 – 1768). “Com Reimarus se inicia o tratamento

    da vida de Jesus em perspectiva puramente histórica”. 92 No entanto, seus trabalhos só foram

    publicados postumamente por G. E. Lessing durante os anos de 1774 – 1778. Seus volumosos

    ensaios chegaram a reunir mais de mil e quatrocentas páginas, e foram fundamentais na

    89 FALCON, Francisco. “História e Poder”. In CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de metodologia. Rio de Janeiro, Campus, 1997.p 64. 90 SANTOS. Op. cit. p 60. 91 CHEVITARESE & FUNARI. op. cit. p. 41. 92 THEISSEN & MERZ. Op. cit. p. 21.

  • 21

    definição de bases metodológicas para esse tipo de estudo. Ainda que dedicado ao estudo da

    personagem Jesus, as bases metodológicas de Reimarus fixaram o ponto de partida dos

    estudos puramente histórico do material bíblico, e, portanto, das primeiras sociedades cristãs.

    Assim, podemos definir estas bases sinteticamente em três pontos:

    1) Jesus deve ser interpretado no contexto judaico: “Considero uma grande causa

    separar totalmente o que os apóstolos apresentam em seus escritos daquilo que Jesus de fato

    disse e ensinou em sua vida” 93 diz Reimarus. Disso deriva que, tratado como homem, suas

    mensagens só podem ser compreendidas a partir da compreensão do ambiente social que

    estava inserido. Assim, “Jesus é uma figura judaica profético-apocalíptica, enquanto o

    cristianismo, que se destaca do judaísmo, é uma invenção dos apóstolos.” 94.

    2) Diferenciação entre o Jesus Histórico e o Cristo Eclesiástico: “O Jesus Histórico,

    não seria um messias religioso, mas segundo a esperança judaica do tempo, um libertador

    político da linha messiânica davídica”; 95

    3) A teoria de fraude objetiva explica discrepância entre o Jesus histórico e o Cristo da

    Fé: “Para não verem a si mesmos como fracassados, como o como o próprio Jesus, os

    discípulos teriam roubado o cadáver (cf. Mateus 28, 11-15) e depois de cinquenta dias

    (quando o corpo já não poderia ser identificado) anunciado sua ressurreição e seu retorno

    iminente” 96.

    Tais paradigmas, em maior ou menor escala, podem ser vistos na produção da época

    dessa “Primeira busca”. “Multiplicaram-se as Vidas de Jesus nas quais ele aparecia como um

    sábio, um mestre de virtudes racionais, modelo de uma autêntica humanidade, segundo a

    maneira como o século XIX a concebia” 97. Porém sobre a teoria de fraude objetiva, se

    desenvolveria um debate caloroso. Após o abatimento de Jesus, e a falência de um projeto

    messiânico-libertador, teriam as primeiras comunidades cristãs deliberadamente fraudado o

    conteúdo que anunciariam como vindo dessa personagem, adaptando-a à uma mensagem

    puramente teológico-filosófica (ou seja, abstraído seu conteúdo político)?

    Sobre essa questão, não houve crítica mais fundamental que a de D. F. Strauss. Aos

    problemas levantados por Reimarus, Strauss incorporou a Teoria do mito religioso: a tradição

    sobre Jesus nos textos bíblicos (especialmente visível no Evangelho de João) é pesadamente

    93 REIMARUS apud: THEISSEN & MERZ. Ibid. 94 THEISSEN & MERZ. Ibid. 95 CORNELLI, Gabriele. “História da Busca do Jesus Histórico”. In CHEVITARESE Leonardo, André, CORNELLI, Gabriele e SELVATICI, Mônica (orgs.), Jesus de Nazaré: uma outra história. Eds. FAPESP & Annablume, 2007. p. 17. 96 THEISSEN & MERZ. Op.cit. 97 CORNELLI.. Op. cit. p. 18.

  • 22

    revestida por mitos. Ou seja, “O a-histórico não se deve, como supunha Reimarus, a uma

    fraude deliberada, mas a um processo inconsciente de imaginação mítica” 98. Para Strauss:

    Uma apresentação puramente histórica da vida de Jesus era completamente impossível neste primeiro período; o que era possível era uma reminiscência criativa agindo sob o impulso da ideia que a personalidade de Jesus tinha chamado à vida entre a humanidade 99.

    Na definição de Schweitzer, o mito religioso era “... nada mais do que as ideias

    religiosas vestidas em uma forma histórica, modeladas pelo inconsciente poder inventivo da

    lenda, e corporificado numa personalidade histórica.” 100. Assim, se cristalizava a percepção que exprimia, segundo o próprio Strauss, a superação dialética entre as visões racionalistas (que traçava

    Jesus como um sábio, ou um mestre de virtudes racionais) e as supranaturalistas (Jesus como o

    messias que realiza milagres). A bíblia deveria ser lida pelo cientista, portanto, como uma

    série de alegorias que emergiram daquele ambiente judaico, mas que emergiram de uma base

    objetiva, histórica. Seria a tarefa do historiador determinar o que devia ser lido como história.

    Acontece que esse sistema, embora divisor de águas, poderia ser aplicado à revelia,

    quase à totalidade das passagens, esterilizando, mais uma vez, a crítica bíblica, pois “se pode

    considerar como histórico tudo quanto se gosta nas narrações do Evangelho.” 101. Como

    continuar então a pesquisa e responder a perguntas ainda abertas como “Quais foram as fontes

    escritas utilizadas pelos evangelistas na composição dos evangelhos? Qual foi o primeiro

    evangelho a ser escrito? O primeiro evangelho serviu de fonte para os demais? ...” 102.

    Paralelamente a Strauss, varias teorias surgem:

    Em 1830, Karl Lachmann observou que várias passagens em Mateus e em Lucas não constavam em Marcos; e que os pontos coincidentes entre Mateus e Lucas só existem quando seguem Marcos. Outro resultado importante de sua análise é que as passagens de Mateus que não se apresentavam em Marcos possuíam o estilo de “sentenças” (KARL LACHMANN, apud: CARLSON, 1997: 35; KARL LACHMAN, apud: MACK, 1994: 25). Christian Wilke, em 1938, além de concordar com a teoria de Lachmann, defendia que Marcos foi o primeiro a ser escrito (CHRISTIAN WILKE, apud: CARLSON, 1997: 35; KARL LACHMAN, apud: MACK, 1994: 25). E no mesmo ano, Christian H. Weisse propôs “a hipótese das duas fontes”, ou seja, segundo ele, Mateus e Lucas utilizaram-se tanto de Marcos quanto de um outro documento que possuía as sentenças de Jesus, convencionado posteriormente como Q (CHRISTIAN H. WEISSE, apud: CARLSON, 1997: 35; KARL LACHMAN, apud: MACK, 1994: 25). 103

    98 THEISSEN & MERZ. Op. cit. p. 22. 99 SCHWEITZER. op. cit. p. 99. 100 Ibid. p. 98. 101 ENGELS, Friedrich. Bruno Bauer e o Início do Cristianismo. Op. cit. 102 SANTOS. op. cit. Pp. 60-61. 103 Ibid. p. 63.

  • 23

    “A influência marcante de Strauss consiste no fato de ele ter removido do caminho da

    crítica subsequente o perigo e o problema de uma colisão com o sistema ortodoxo anterior. ”

    104, disse Bruno Bauer. Abria-se assim, uma liberdade de crítica até então inédita.

    Bauer encontra seu material precedente registrado para sua utilização por Weisse e Wilke, Weisse percebeu em Marcos a fonte da qual a crítica – tornada estéril na obra de Strauss – poderia tirar um renovo de vida vigorosa; e Wilke, que Bauer coloca acima de Weisse, elevou esta feliz conjectura ao nível de um resultado cientificamente seguro. Marcos não estaria mais sujeito a teste. 105

    Inicialmente straussiano, as opiniões de Bauer foram evoluindo para um ceticismo

    crescente. Ao se utilizar das formulações de Wilke e Weisse combinando-as com um método

    de crítica literária, chegaria à conclusão que os evangelhos poderiam ter inicialmente uma

    origem meramente literária. Ou seja, de certa forma, ainda que não se voltasse à questão da

    fraude levantada por Reimarus, agora essa questão toma uma nova roupagem106. Com certeza

    os textos bíblicos não eram produtos de uma fraude objetiva, mas também não podiam, dado a

    carga literária que carregavam, serem resultados de um inconsciente impelido a pensar de

    forma mítica. Eram criações literárias. Segundo Schweitzer:

    O conceito de mito e lenda de que este fez uso (Strauss), pensa Bauer, é muito vago para explicar esta ‘transformação’ deliberada de uma personalidade. Em lugar de mito Bauer coloca ‘reflexão’. A vida que pulsa na história do Evangelho é demasiado vigorosa para ser explicada como criada por uma lenda; ela é ‘experiência’ real, só que não a experiência de Jesus, mas a da Igreja. 107.

    Assim, Bauer resolve a questão propondo que talvez todos os evangelhos sejam na

    verdade invenções literárias, produzidas por um único evangelista original, da história

    daquelas comunidades que a produziram. Ou seja, em muitos dos casos, “um dogma da Igreja

    primitiva foi lançado na forma de um dito histórico de Jesus” 108. Bauer havia assim,

    estendido o ceticismo ao extremo chegando a questionar a possibilidade dessa personagem,

    Jesus, ter realmente existido, e se existiu, se há realmente, algum vestígio histórico dela no

    que se conhece por “Novo Testamento”. Sobre a oposição entre Strauss e Bauer, Engels diz:

    A política era, nessa altura, um domínio muito espinhoso e, por isso, a luta principal virou-se contra a religião; esta era, (...), indirectamente também uma luta política. A Leben Jesu (Vida de Jesus) de Strauss, em 1835, tinha

    104 BAUER apud: SCHWEITZER. Op. cit. p. 170. 105 Ibid. 106 “O único critico com quem Bauer pode ser comparado é Reimarus. Cada um exerceu uma influência terrificante e incapacitante sobre seu tempo. Ninguém mais foi tão agudamente consciente como eles da extrema complexidade e importância oferecido pela vida de Jesus” - SCHWEITZER, op. cit. p. 192. 107 Ibid. p. 176. 108 Ibid. p. 184.

  • 24

    dado o primeiro impulso. Mais tarde, Bruno Bauer opôs-se à teoria da formação evangélica de mitos aí desenvolvida, com a demonstração de que toda uma série de narrativas evangélicas haviam sido fabricadas pelos próprios autores. (...) ; a questão de se as histórias de milagres evangélicas surgiram no seio da comunidade por formação não-consciente tradicional de mitos ou se foram fabricadas pelos próprios evangelistas foi empolada na questão de se na história mundial era a “substância” ou a “autoconsciência” o poder activo decisivo; 109.

    Marx já havia tocado tangencialmente essa questão quando critica Bruno Bauer em A

    Questão Judaica (1841). Para Marx, Bauer resumia questões políticas, a questões teológicas,

    e essa postura acabava por distorcer a questão. Assim, a consequência direta da postura de

    Bauer era que “... se o judeu deseja emancipar-se, deve também empreender, além da própria

    tarefa, o trabalho do cristão – a ‘crítica dos Sinópticos, da ‘Vida de Jesus. ’”, em referência

    direta à Crítica da História do Evangelho dos Sinópticos (1841 - 1842) de Bauer e à Vida de

    Jesus (1835-1836) de Strauss 110; Ou seja, Marx e Engels consideram que o impulso destes

    autores em escrever críticas à teologia oficial e estudar a fundo o material neotestamentário

    provém das necessidades impostas pela luta política contra o Estado prussiano, ainda

    teocrático, o qual fundamentara sua autoridade no protestantismo. Para Marx, no entanto, a

    crítica não deveria ser teológica e sim crítica ao próprio Estado. Pode ser que por isso havia

    afirmado que no caso da Alemanha “a crítica bíblica havia sido completada” e se dedicasse a

    análise da sociedade enquanto que Engels, ao surgir o interesse de produzir sua visão sobre a

    origem do cristianismo se utilizasse destes autores, de posições republicano-liberais, que

    lutavam contra elementos feudais-aristocráticos ainda presentes na sociedade alemã.

    Bauer também havia exposto, a revelia de qualquer demonstração histórica, que a

    literatura neotestamentária havia se utilizado de elementos greco-alexandrinos, em especial,

    da filosofia de Filon, filósofo judeu-helênico que viveu entre 25 a.e.c e 50 e.c. e tentou uma

    interpretação do Antigo Testamento à luz das categorias elaboradas pela filosofia grega, em

    especial por Platão. Essa noção também seria retomada nas produções de Engels.

    Sobre o embate entre Bauer e Strauss, Engels afirma que “A verdade situa-se entre

    estes extremos”, ainda que considere Bauer uma inovação frente à de Strauss. Labriola

    também cita a escola de Tübingen111, de matriz straussiana como fonte, mas foca seu trabalho

    109 ENGELS, Friedrich. Lwdvig Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica alemã. Em < http://www.marxists.org/ portugues/marx/1886/mes/fim.htm>. Acessado em 23/10/2013. 110 MARX, Karl. “A Questão Judaica”. In Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2005. Pp. 38-39 111 Na definição de Leandro Konder: “A referida ‘escola’ deu grande ênfase à luta de tendências que se teria verificado no interior do cristianismo primitivo entre os que desejavam a ruptura enérgica com os aspectos particularistas da tradição judaica (cujo líder seria São Paulo) e os que temiam precipitações e conciliavam com

  • 25

    numa apresentação geral das possiblidades de se realizar uma leitura do cristianismo com base

    aos fundamentos do materialismo histórico. Podemos dizer que as obras de Rosa Luxemburgo

    e de Karl Kautsky112, mesmo que não façam referências a estes autores, são permeadas de

    preocupações cuja matriz teórica, pode-se dizer são as formulações de Engels, baseadas em

    Bauer e Strauss, a partir de mecanismos teóricos e conceituais contidos em Feuerbach, Hegel

    e naturalmente, em Marx. É o que objetivamos demonstrar a seguir.

    3. Os estudos do marxismo clássico sobre o cristianismo primitivo.

    o judaísmo, freiando o movimento da nova doutrina no sentido da universalização (cuja expressão mais responsável estaria em São Pedro). A influência alcançada por tais ideias foi imensa.”. KONDER. op. cit. p. 56. 112 Kautsky chega a ilustrar algumas de suas afirmações com alguns dos estudos de Bauer, mas não o reivindica teórica e metodologicamente como faz Engels.

  • 26

    Talvez a primeira boa oportunidade que Engels tenha tido de expor suas considerações

    acerca do cristianismo primitivo tenha sido por ocasião da morte de Bruno Bauer. Ele é figura

    ainda hoje ostracizada nos estudos do cristianismo antigo. Segundo Engels “durante anos,

    dificilmente se ouvia falar dele, somente atraindo a atenção pública eventualmente como um

    ‘literato excêntrico. ’”. Schweitzer concorda:

    Seus contemporâneos não podiam suspeitar que a anormalidade de suas soluções era devida à intensidade com que ele percebia os problemas como problemas, ... Assim, para seus contemporâneos, ele era meramente um excêntrico. 113.

    Conforme ele avança, seus escritos tornam-se mal humorados, e tomam a forma de diálogos controversos com “os teólogos”, que ele apostrofa de forma mordaz e injuriosa. E que ele continuamente acusa de não ousar, devido a seus preconceitos apologéticos, enxergar as coisas como realmente são, e de recusar-se a encarar os resultados finais da crítica por medo de que a tradição possa sofrer maior perda de valor histórico do que a religião pode suportar. Apesar desde ódio aos teólogos, que é patológico em seu caráter, assim como sua pontuação sem sentido, suas análises críticas são sempre extremamente agudas. 114.

    Essa postura de crítica ao compromisso apologético, que se desdobra em crítica a toda

    mistificação e falsificação histórica parece ter atraído fortemente Engels. Mesmo que em sua

    produção Bauer não se utilizasse do rigor histórico, suas obras levantaram questões

    fundamentais:

    Mas sua excentricidade escondia uma percepção penetrante. Ninguém mais tinha percebido com a mesma perfeição a ideia de que o cristianismo primitivo e o cristianismo inicial não eram meramente o resultado direto da pregação de Jesus, não meramente um ensinamento posto em prática, mas antes, muito mais, já que à experiência da qual Jesus foi objeto juntava-se a experiência da “alma do mundo” numa época em que seu corpo – a humanidade sob o Império Romano – estava nas garras da morte. 115.

    Curiosamente, portanto, mesmo não se utilizando do “método histórico” Bauer foi um

    dos que mais contribui para a percepção da historicidade contida nos evangelhos e da

    historicidade da dogmática cristã. Em meados do século XIX (e ainda hoje), a compreensão

    da religião a partir do que nos chega pela tradição ainda pesava fortemente, e por vezes se

    enfrentava com a análise de pretensão científica. Por isso, esse trabalho de Bauer em estender 113 SCHWEITZER, Albert. Op. cit. p. 193. 114 Ibid. p. 175. 115 Ibid. p. 193.

  • 27

    o ceticismo ao extremo, é encarado por Engels com naturalidade: “Bauer exagerou bastante,

    como acontece a todos que combatem preconceitos inveterados”. E considera que ele “valia

    mais do que todos eles (teólogos oficiais) e fez mais que todos eles em uma questão (...) (a)

    origem histórica do cristianismo”. Ainda que admita uma fragilidade no método idealista de

    Bauer: “... o filósofo alemão é impedido por seu idealismo de ver claramente e formular

    precisamente”.

    O ponto de partida de Engels é a definição de que a religião tem um início espontâneo,

    mas “através dos sacerdotes” passa a realizar um trabalho de “engano e falsificação histórica”.

    Este é o Engels tributário da filosofia de Feuerbach, onde a religião originalmente surge de

    questões internas do ser humano, da ordem psicológico-filosófica, existencial. No entanto,

    suas perpetuações através das instituições religiosas acabam por ter que falsificar a história a

    fim de apresentar uma formulação estanque e eterna quando, na verdade, os dogmas também

    são ideias produzidas tendo como base condições histórico-sociais específicas.

    Ou seja, ao mesmo tempo em que a existência da religião não pode ser atribuída a uma

    fraude, na medida em que já foi demonstrado por Hegel que a história não pode sobreviver

    sem ser por uma evolução racional, e que para Marx a base dessa “evolução racional” é a

    produção e reprodução da vida material, como explicar “A religião que subjugou o Império

    Romano e dominou sem dúvida a maior parte da humanidade civilizada por 1.800 anos...”?

    Para a resolução do caso do cristianismo, o autor recorre à Bauer. Na medida em que as ideias

    contidas na percepção de mundo cristãs não podem ser compreendidas como fruto da

    revelação divina, por desejar-se realizar uma investigação de estatuto científico e que,

    portanto, considere a realidade inteligível por ela mesma (exclui-se assim a categoria da

    transcendência), ao mesmo tempo, que não se pode considera-la simplesmente produto de

    fraudes, pois essas fraudes não poderiam se sustentar na “evolução racional da história”,

    conclui-se duas coisas: Primeiro, as ideias devem ter uma existência primeira anterior, e

    segundo devem ter emergido com base a eventos sociais específicos. Essa genealogia do

    sistema de pensamento cristão, Bauer encontrou nos filósofos Filon e Sêneca, mas por ser

    idealista, não se interessou em traçar “a base material de eventos sociais específicos”. Esse

    trabalho que Engels se debruçaria em fazer.

    Para Engels, o que