raios x e radioatividade

4

Click here to load reader

Upload: vodat

Post on 08-Jan-2017

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Raios X e radioatividade

19

Attico Chassot

A seção “História da química” traz artigos sobre ahistória da construção do conhecimento científico.Em nosso primeiro encontro, quando falamos dahistória da ciência e, mais particularmente, da história da química,buscamos mostrar o quanto estava distante o início de nossacaminhada. Hoje vamos comentar duas descobertas muito próximas: osraios X e a radioatividade, mistérios que fizeram revelações no ocasodo século passado.

raios X, radioatividade, Becquerel, Röntgen, ciência no final do século XIX

Primeira radiografiarealizada no mundo,mostrando a mão deuma senhora de 79anos. Note o anel nodedo anular.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Raios X e Radioatividade N° 2, NOVEMBRO 1995

transformações que modificam nossomundo. É recomendável que nós —professoras e professores de química— colaboremos para que estas modi-ficações visem uma melhoria de vida.

Uma sugestão importante é quemostremos a nossos alunos o quantoé importante seu papel nos avançosda ciência nos diasatuais. É recomendávelolhar com eles as mo-dificações que a ci-ência faz a cada dia emnosso mundo. Se hádois anos vocês vissemalguém falando em umtelefone celular, prova-velmente o olhariamcom desconfiança, e se há cinco anosalguém lhes contasse que uma men-sagem, com desenhos e fotografias,poderia ser mandada quase instanta-neamente por fax para o Japão, talvezdissessem se tratar de ficção científica.Ou se alguém, há dez anos, lhesmostrasse um CD e dissesse que omesmo continha mais músicas e commelhor qualidade de reprodução que

um enorme disco de vinil, isso seriaquase incrível, como ainda nos pareceimpossível que apenas um CD possaconter mais informações (e com muitomais recursos visuais e sonoros) queuma enciclopédia de dezenas de vo-lumes.

Talvez seja importante mostrar quequando seus alunosnasceram o fato deserem meninas oumeninos já não erasurpresa para aque-les que os espera-vam, mas quando ospais deles nasceramos avós ficaram sa-bendo o sexo do filho

ou da filha no dia do nascimento...Quando e como tudo isso aconteceu?Uma sugestão importante é que nos-sos alunos perguntem aos pais ouavós como era o mundo em que elesviviam quando tinham a idade deles— por exemplo, como eram feitos osdiagnósticos médicos quando aindanão eram usados os raios X. Com isso,poderão entender um pouco como

Em “Alquimiando a química”(QNE, n° 1, 1995), referi-meque poderíamos considerar

entre as primeiras conquistas da físicaa descoberta de um ancestral nosso(talvez ainda mais próximo do macacodo que o homem) ao verificar que comuma vara poderia alcançar um frutomais alto em uma árvore. Vimos que,muito provavelmente, as primeirasdescobertas da química relacionam-se à conservação de alimentos; àextração, produção e tratamento demetais; à produção de pomadas,óleos aromáticos e venenos; a técni-cas de mumificação; à produção deesmalte e corantes. O fantásticodomínio do fogo, entre muitas alterna-tivas, ofereceu oportunidades para ofabrico de utensílios de cerâmica,vidro, porcelana e metal e para aprodução de materiais de construção,como argamassa, tijolos, ladrilhos.

Vamos nos deter, aqui, em temposmenos remotos, um tempo de magní-ficas descobertas de que não somosapenas espectadores. Com nossosalunos, somos participantes das

O que pensar se há dezanos atrás nos mostrassem

um CD dizendo que elepoderia conter uma

enciclopédia com dezenasde volumes? Sugira aos

alunos imaginarem comoserá o mundo do futuro

HISTÓRIA

da

QUÍMICA

Raios Xe Radi Radi Radi Radi Radi atividadeatividadeatividadeatividadeatividade

Page 2: Raios X e radioatividade

20

comunicação era o cor-reio, tanto dentro dascidades como entre lu-gares distantes. Porexemplo: Paris tinha umsistema bastante rápidode correio pneumático:uma rede de tubos emque as cartas eram im-pulsionadas por ar com-primido. Então, as ruaseram iluminadas a gás,pois a eletricidade malcomeçava a ser usada.

As descobertas dosraios X e da radioativi-dade foram aconteci-mentos que marcaram oocaso do século passa-do. Neste texto vamosoferecer alguns subsídi-os sobre essas duasgrandes descobertas —ocorridas há cem anos,mas ainda significativaspara nós —, para quevocês possam recordaresses dois centenáriosem suas aulas.Wilhelm Conrad Röntgen

(1845-1923) espantou o mundo aoanunciar, no final de 1895, a des-coberta de “um novo tipo de raio” edemonstrar que com esses raios sepodia ‘ver’ dentro do corpo humano.Henri Becquerel acreditou inicialmenteserem os raios descobertos porRöntgen os que percebia nos sais deurânio que estudava, mas em 9 de

março de 1896 anun-ciava a descoberta denovas radiações.

Röntgen, na noitede 8 de novembro de1895, trabalhava comuma válvula com aqual estudava a con-dutividade de gases1.A sala estava total-mente às escuras. A

certa distância da válvula havia umafolha de papel, usada como tela, tra-tada com platinocianeto de bário.Röntgen viu, com espanto, a tela

brilhar, emitindo luz. A válvula estavacoberta por uma cartolina negra, enenhuma luz ou raio catódico poderiater vindo dela. Surpreso, fez váriasinvestigações. Virou a tela, expondo olado sem o revestimento de platino-cianeto de bário, e esta continuava abrilhar. Colocando diversos objetosentre a válvula e a tela, viu que todospareciam transparentes. Não demoroua ter a surpresa maior: viu na tela osossos de sua mão.

Intrigado com sua descoberta,Röntgen trabalhava sozinho, fazendonovas investigações. Sua mulhernotou suas inquietações e ele lhe disseapenas que trabalhava em algoimportante, mas confessava-se incré-dulo e precisava convencer-se de suadescoberta. Registrou em chapasfotográficas suas observações, e sóentão teve certeza do que estavadescobrindo. Anunciou que, com suadescoberta, se poderia pela primeiravez ver dentro do corpo humano semprecisar abri-lo. É fácil imaginar asurpresa de muitos, pois ainda haviaquem desaconselhasse certas cirur-gias porque o bisturi poderia cortar aalma.

Em 28 de dezembro de 1895,Röntgen entregou à Sociedade Físico-Médica de Würzburg, Alemanha, umrelatório preliminar de sua descoberta,descrevendo as pesquisas ‘secretas’que fizera nas sete semanas ante-riores: os objetos tornavam-se trans-parentes diante dos novos raios, quepor serem desconhecidos chamou deraios X. As chapas fotográficas eramsensíveis aos raios X; não se podia verqualquer reflexo ou refração dignos denota ao se desviá-los com um campo

acontecem essas modificações, tãoconstantes a menos de 50 meses doano 2000. Sugira a seus alunos queprocurem imaginar como será omundo do futuro.

Esta véspera de um novo século ede um novo milênio nos enseja per-guntas: Como foram os tempos queantecederam a última virada deséculo? Que descober-tas ocorreram então?Vocês sabem, porexemplo, que há cemanos não havia aviões,e que mesmo os auto-móveis eram vistoscom espanto, pois erainconcebível uma car-ruagem que andassecom a inacreditávelvelocidade de 20 km por hora e aindapor cima sem nenhum cavá-lo a puxá-la? Há um século, praticamente nãohavia telefones e a principal forma de

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Raios X e Radiotividade N° 2, NOVEMBRO 1995

Wilhelm Konrad Röentgen (1845-1923)

Raio-X é radiaçãoeletromagnética com

comprimento de onda nointervalo de 10-11 a 10-8 m

(0,1 a 100 Å), resultante dacolisão de elétrons

produzidos em um catodoaquecido contra elétrons de

anodo metálico

Röntgen anunciou que,com sua descoberta, se

poderia ver por dentro docorpo humano, sem

necessidade de abri-lo.Imagine a surpresa,numa época em que

muitos acreditavam queum bisturi pudesse cortar

a alma...

Page 3: Raios X e radioatividade

21

magnético. Os raios X se originavamna área da ampola de descarga ondeos raios catódicos colidem com aparede de vidro.

Em janeiro de 1896, era enorme acomoção em todo o mundo com anotícia da descoberta dos raios X. Éfácil imaginar o deslumbramento coma novidade, pois esses raios tornavamquase tudo transparente, e com elesse podiam ver os próprios ossos.Podiam-se ver os dedos sem osmúsculos, mas com anéis, ou umabala que estivesse alojada no corpo.A medicina debruçou-se de imediatosobre as possibilidades da desco-berta. Podemos avaliar as repercus-sões disso num momento em que secomeçava a buscar explicações sobrea natureza da matéria.

Em 23 de janeiro, Röntgen fez seuúnico pronunciamento público sobrea descoberta e foi aplaudidíssimo.Físicos e estudiosos ligados à medi-cina começaram a investigar os novosraios. No ano de 1896 já havia maisde mil trabalhos publicados sobre oassunto, mas por pelo menos 16 anosnão houve dados convincentes parase explicar a natureza dos raios X. Porfim, os trabalhos de Max von Laue ede Friedrich e Knipping esclareceramque os raios misteriosos eram resul-tado da colisão de raios catódicos(elétrons) contra os elétrons do cáto-do.

Atualmente, são consideradosraios X as radiaçõese le t romagnét icascom comprimento deonda no intervaloaproximado de 10-11 a10-8 m (0,1 a 100 Å),resultantes da colisãode elétrons produzi-dos em um cátodoaquecido (ocorre umaemissão termoiônica)contra elétrons de um ânodo metálico.Ao contrário, portanto, das radiações,originadas nos núcleos atômicos, comas quais se assemelham em in-tensidade, os raios X têm origem ex-tra-nuclear.

Em 1901, Röntgen foi laureado como primeiro Prêmio Nobel de Física. Em1914, assinou com outros cientistasalemães um documento de solidarie-dade a uma Alemanha belicista.Posteriormente, arrepen-deu-se muito por estaadesão ao milita-rismo, sofrendocom o envolvi-mento de seupaís na Primei-ra Guerra Mun-dial. Faleceuem Munique,em 10 de fev-ereiro de 1923,com 78 anos.

Uma outradescoberta re-volucionaria asconcepções so-bre a natureza damatéria: a radioativi-dade. Entre os cientistasque se surpreenderamcom as descobertas deRöntgen estava o ma-temático francês Henri Poincaré. Em20 de janeiro de 1896, ele mostrava aseus colegas da Academia de Ciên-cias da França as fotografias queRöntgen lhe enviara. Um deles, HenriBecquerel, perguntou-lhe de que parteda válvula emergiam os raios, ePoincaré respondeu que estes prova-velmente eram emitidos da área da

válvula oposta ao cáto-do, a área em que ovidro se tornara fluores-cente. Becquerel ime-diatamente procurouuma relação entre raiosX e fluorescência, e jáno dia seguinte iniciousuas próprias experiên-cias a respeito.

Membro de uma fa-mília de quatro gerações de físicos derenome, Henri Becquerel tinha inte-resse pela fosforescência e pelafluorescência, e a descoberta deRöntgen o levou a fazer observaçõespara verificar se substâncias fosfores-

centes ou fluorescentes emitiam raiosX. Os primeiros resultados foramnegativos.

Eis parte do relatório (SEGRÈ,1987, p. 29) que ele fez à

Academia em 24 de feve-reiro de 1896, após ex-

periências com umsal de urânio:

“Cobri umachapa foto-gráfica comduas folhasde papel ne-gro grosso,tão grossoque a chapanão ficoum a n c h a d aao ser expos-

ta ao sol umdia inteiro. Colo-

quei sobre o pa-pel uma camada de

substância fosfores-cente e expus tudo aosol por várias horas.Quando revelei a cha-

pa fotográfica, percebi a silhueta dasubstância fosforescente sobre o ne-gativo... A mesma experiência podeser feita com uma lâmina de vidro finacolocada entre a substância fosfores-cente e o papel, o que exclui a possi-bilidade de uma ação química resul-tante dos vapores que poderiamemanar da substância quandoaquecida pelos raios solares. Portanto,podemos concluir dessas experiên-cias que a substância fosforescenteem questão emite radiações quepenetram no papel opaco à luz...”

Era como se os raios X fossememitidos pelo composto de urânio.Quando a Academia voltou a se reunir,em 2 de março, Becquerel já tinhaoutros resultados. Como o tempomudara em Paris e nos dias 26 e 27 defevereiro houvesse muito pouco sol, elecolocou as chapas fotográficas em umgaveta escura, deixando sobre elas osal de urânio, envolto em papel. Extraídada mesma fonte antes citada, eis aquiuma parte de seu relatório à Academia:

Antoine Henri Becquerel

Em janeiro de 1896 acomoção da comunidadecientífica em torno dos

raios X foi enorme. Agorapodia-se ver os dedos semos músculos. A medicinadebruçou-se de imediato

sobre as possibilidades darecente descoberta

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Raios X e Radioatividade N° 2, NOVEMBRO 1995

Page 4: Raios X e radioatividade

22

“Como o sol não voltou a aparecerdurante vários dias, revelei as chapasfotográficas a 1º de março, na expec-tativa de encontrar imagens muitodeficientes. Ocorreu o oposto: assilhuetas apareceram com grandenitidez. Pensei imediatamente que aação poderia ocorrer no escuro.”

Este é um relato em que o acaso ea perspicácia foram decisivos.Becquerel creditou méritos dessadescoberta a seu pai e a seu avô, quetrabalharam com o mesmo assunto.Mas ele, no momento propício, fezuma descoberta muito importante, quenão teve a princípio, no entanto, arepercussão do trabalho de Röntgen.Já em 9 de março de 1896, Becquereldescobrira que a radiação emitida pelourânio não apenas escurecia aschapas fotográficas, mas tambémionizava gases, transformando-os emcondutores.

Dois anos depois da descoberta deBecquerel, Pierre e Marie Curie entramem cena nos eventos que modificaram

o panorama da ciênciana última virada do sé-culo. Primeiro, pesqui-saram os ‘raios deBecquerel’ em outroselementos além do urâ-nio, descobrindo entãoo polônio e o rádio,modificando comple-tamente a nova ciênciada radioatividade. Asdescobertas mostraramque, diferente dos raiosX, as radiações desco-bertas por Becquereleram de origem nuclear.As descobertas deBecquerel — eviden-ciando que alguns áto-mos eram instáveis eemitiam diferentes partí-culas e radiações —exigiram, então, novaspropostas de modelospara os átomos, quenão mais podiam serconsiderados indivisí-

veis.Essas grandes modificações que

ocorreram e ainda ocorrem naciência provavelmente serão assun-to para outros números de QuímicaNova na Escola.

Attico I. Chassot, licenciado em química e doutorem educação, é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Valedo Rio dos Sinos (UNISINOS) - São Leopoldo, RS.

Nota1. A descoberta do elétron — as-

sunto que será abordado no número 3de QNE — e muitos outros estudos dofinal do século passado estão relacio-nados com esse terceiro tipo de con-dutor de eletricidade (os outros são osmetais e as soluções eletrolíticas). Paraestudar esse tipo de condução elétricaconstruíam-se tubos de vidro com pres-sões muito baixas, próximas ao vácuo(pressão inferior à pressão atmosférica)e depois se estabeleciam diferenças depotenciais entre eletrodos para verificara condução de corrente elétrica pelosgases dos tubos, nas diferentes condi-ções de baixas pressões.

mais a biografia de Pierre e Marie Cu-rie. Entre as várias biografias do casalCurie existe uma escrita por uma dasfilhas do casal, Eva Curie — a outra,Irene, casou-se com Frederic Joliot,com quem ganhou o Prêmio Nobel deQuímica em 1935 —, publicada pelaBiblioteca de Seleções em 1962. Existetambém um excelente filme, que tempassado nos canais por assinatura: Ma-dame Curie (USA, 1944, 117 min).& Sugira a seus alunos e alunas

pesquisar sobre a contribuição dobrasileiro Manuel Abreu para a radiolo-gia e qual a importância da abreugrafia.& Outra sugestão é procurar co-

nhecer, também, quais são os perigosprovocados pelas radiações, tanto asdos raios X quanto as emitidas por subs-tâncias radioativas. Organize em sala deaula uma discussão sobre os cuidadosque se deve ter com as radiações eparticularmente com os raios X. Convideum profissional da área de radiologiapara discutir esses assuntos em classe,mostrando também os cuidados que sedeve ter com as radiações produzidaspelos aparelhos de televisão.

Referência bibliográficaSEGRÈ, Emilio. Dos raios X aos

quarks. Físicos modernos e suas des-cobertas. Brasília: Editora da UnB, 1987.

Para saber mais& O livro de Emilio Segrè —

Prêmio Nobel de Física em 1959 —acima referido traça um agradável pa-norama da ciência no final do séculoXIX, mostrando o quanto, por exemplo,as descobertas dos raios X e da radioa-tividade determinaram alterações na físi-ca que atingiram de imediato a biologia(e nesta, a genética em particular), ageologia, a medicina e a química.& O capítulo 10 de A ciência atra-

vés dos tempos, de Attico Chassot —resenhado no nº 1 de QNE —, trata dasmodificações havidas na ciência porocasião da última virada de século ecomplementa o texto acima. Nessecapítulo, apresenta um pouco dabiografia de Pierre e Marie Curie.& Uma recomendação para quem

quiser conhecer uma história marcadapelo amor entre marido e mulher e peloamor à ciência é conhecer um pouco

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Raios X e Radiotividade N° 2, NOVEMBRO 1995

Apenas um mês após Roentgen tirar a primeira radiografia, oprofessor Michael I. Pupin, da Universidade de Columbia, radio-grafou a mão de um caçador que sofrera um acidente com suaespingarda. As bolinhas negras representam cerca de 40pedaços de chumbo que estavam ali alojadas.