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17 17 17 17 17 RAFAEL MONEO – KURSAAL DE SAN SEBASTIÁN – OBSERVAÇÃO, REPRESENTAÇÃO E PROJETO ORLANDO P. RIBEIRO Professor - Arquitetura e Urbanismo - UnicenP/Centro Universitário Positivo [email protected]

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da Vinci , Curitiba, v. 2 , n. 1, p. 9-16, 2005da Vinci , Curitiba, v. 2 , n. 1, p. 1-208, 2005 1717171717

RAFAEL MONEO – KURSAAL DE SAN SEBASTIÁN –OBSERVAÇÃO, REPRESENTAÇÃO E PROJETO

ORLANDO P. RIBEIROProfessor - Arquitetura e Urbanismo - UnicenP/Centro Universitário Positivo

[email protected]

da Vinci , Curitiba, v. 2 , n. 1, p. 17-32, 2005

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RESUMO

Ao isolarmos a Arquitetura como um organismo em si, e ao obtermos como resultadoa compreensão de sua natureza e desenvolvimento, seremos capazes de investigar e estabele-cer suas relações com outras atividades afins. Este breve ensaio destina-se àqueles que apreci-am a Arquitetura como cultura e carecem de subsídios para compreendê-la na sua essência.Com base em argumentos e evidências objetivas, procuro demonstrar que, apesar da aparentecomplexidade, é possível sistematizar múltiplas variáveis, de naturezas distintas e contraditó-rias, como metodologia de investigação projetual. Ao adquirir uma consciência crítica eautocrítica, por meio de uma educação permanente, Rafael Moneo, arquiteto vencedor doconcurso para o projeto arquitetônico do Kursaal de San Sebastián (Guipúzcoa, Espanha,1990/1999) destacou-se no cenário internacional com sua proposta contemporânea para estecomplexo cultural. Moneo, sensível ao poder que os volumes puros têm de criar espaço,desperta na nova geração de arquitetos o interesse pelos conceitos da concepção do espaçoarquitetônico difundidos nas origens mais remotas da arquitetura, sua força e expressão. Es-pero demonstrar a amplitude e riqueza do campo da especulação arquitetônica, e das sutilezasque devem ser dominadas para bem utilizar os meios de representação, os elementos dearquitetura e de composição e as tipologias, revelando os perigos que cercam os arquitetosdesprevenidos desses instrumentos.

Palavras-chave: arquitetura, observação, representação, Moneo, Kursaal.

ABSTRACT

To set apart the Architecture like one organic structure in itself, we get in result thecomprehension of it nature and development, we’ll be able to inquire and determine itrelationship with others activities alike. This short trial goes to that appreciate the architecturelike culture and need subsidies to understand in it essence. Based in subjects and evidences, Itry to show that, in spite of the complex appearance, is possible to codify many diversities,from several and contradictory natures, using a system of investigation scheme. In the momentthat acquired one criticism and self-criticism perception, by means of a permanent education,Rafael Moneo, architect winner of the contest to the architectonic draft of the Kursaal de SanSebastian (Guipúzcoa, Spain,1990/1999) distinguished yourself in the international scenerywith your contemporary propose for this cultural complex. Moneo, sensitive to the power ofclean volumes have to create room, bring to the new generation of architects the influence ofthe idea of the comprehension of the architectonic space propagate in the roots of theancient architecture, it strength and expression. I hope to show the vastness and richness inthe field of architectonic speculation, and the subtleness that must be well known to makeuseful the way of display, the architecture and composition elements and the interpretationof types, revealing the jeopardy that complicate the architects unfurnished of this tools.

Key words: architecture, observation, representation, Moneo, Kursaal.

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1 INTRODUÇÃO: OBSERVAÇÃO, REPRESENTAÇÃO E PROJETO

“Uma planta é, de certo modo, um resumo, como um índice analítico de matérias... contémuma enorme quantidade de idéias e uma intenção que a impulsiona.” Le Corbusier

Ao longo da história, a representação das obras de Arquitetura foi realizada de diversasformas. No Renascimento surge a perspectiva como o primeiro sistema de representaçãoarquitetônica. Esta se apresenta como a tentativa de representação fiel da experiência humana doespaço. Arquitetura é espaço, obra construída. Em meados do século XVII Gaspar Monge cria aGeometria Descritiva, que no século XVIII invade o campo da Arquitetura trocando a perspectivapor um sistema preciso de representação por projeções ortogonais muito mais abstratas.

Desde então se desfez o vínculo forte entre a experiência humana do espaço e a represen-tação do mesmo. Como em toda linguagem, um código foi criado para representar os elementosarquitetônicos e para a compreensão desta, obviamente era necessário ser um “iniciado” nestecódigo. Dessa forma, qualquer pessoa não iniciada nos códigos de linguagem de desenho técnicoarquitetônico apresenta grande dificuldade de compreensão e visualização do espaço representa-do.

Esse conflito aparece presente no dia-a-dia do arquiteto quando, após uma concepção deum espaço, tenta mostrar toda a intenção das composições volumétricas e toda a força de sua obraprojetada. O conflito está posto: a experiência tridimensional do espaço representada num sistemaortogonal bidimensional.

PIAGET, em A epistemologia da Genética, demonstra que a evolução do aprendizado huma-no caminha das operações concretas para as abstratas (PIAGET, 1983), o que nos faz pensar quemelhor seria se o cliente tivesse contato com representações do espaço mais semelhantes às suasexperiências sensoriais. Poderia a partir de então abstrair com mais facilidade as representaçõesortogonais.

No processo tradicional de projeto, as etapas desenvolvem-se como uma sucessão dedesenhos que vão realimentando a concepção inicial. Esse processo muitas vezes se inicia poresboços ou croquis rabiscados à mão em qualquer papel no momento do “insight” de definição deque chamamos de partido arquitetônico a ser adotado no projeto. Os passos subseqüentes vãosendo acrescidos de detalhes e refinamentos, à medida em que as áreas e as dimensões são fixadas.O lápis e a prancheta dão lugar ao computador. Os detalhes são incorporados aos desenhos.

Paradoxalmente, à medida em que a idéia inicial vai ganhando corpo e consistência –deixando de ser uma abstração, uma imagem mental um pouco difusa – a sua representaçãográfica vai ganhando em complexidade e, por utilizar o sistema de projeções ortogonais do

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desenho técnico, torna-se mais e mais abstrata. Para manter a compreensão e visualização deprojetos mais complexos, os arquitetos utilizam de recursos complementares como represen-tações por perspectivas, modelos de volumes e ou maquetes físicas.

Geometria tem uma reputação ambígua, associada mais com tolice que com inteligên-cia. FLAUBERT, em “The Dictionary of Accepted Ideas”, define os geômetras como “... nave-gando por estranhos mares do pensamento - sozinhos. Tem algo de incomunicável nela”.

Existem ainda arquitetos com uma visível deficiência em Geometria. Mas é precisosuperar essa dificuldade, uma vez que sem a fé de que há mensagem genética escrita no papel,não há Arquitetura. Geometria é um assunto, Arquitetura outro, mas há Geometria na Arqui-tetura. Sua presença é assumida assim como a Matemática está presente na Física. É entendi-da como uma parte constitutiva da Arquitetura, indispensável a ela, mas não dependentedesta de qualquer forma. Arquitetos não produzem Geometria, a consomem-na.

O primeiro lugar onde as pessoas procuram a Geometria na Arquitetura é na formadas construções, mas a Geometria é presente e ativa no espaço entre o início e o fim. Compo-sição, que é onde Geometria e Arquitetura são usualmente vistas, pode ser dita, por conveni-ência, a cruz do problema, mas ela não tem significado em si. Ela obtém seu valor por váriostipos de espaço projetivo, quase-projetivo ou pseudoprojetivo que o circunda. Somente dessaforma pode estar disponível à percepção. A principal preocupação de Rafael Moneo não écom a relação entre projeção arquitetônica e matemática geométrica e, sim, com a relaçãoentre projeção e arquitetura, o que é menos compreendida.

A história da projeção arquitetônica somente está começando a ser investigada. Elatem tomado um espaço pequeno no desenvolvimento da teoria de arquitetura. Somente doisgrandes arquitetos deram a ela um significativo espaço em seus escritos: Philibert Delorme eGuarino Guarini. Pouco se estudou sobre o assunto, pois a projeção sempre foi pensada comoassunto próprio das engenharias, e alienada pela arte da arquitetura.

A forma como a arquitetura está dividida entre desenho geométrico e construçãopode ser comparada à divisão entre fala e escrita, apesar de projeção ortográfica não serortografia, desenho não ser escrita e arquitetura não ser a fala. Muito pode ser aprendido coma teoria literária, mas é preciso levar em conta as especificidades da questão.

Em arquitetura o problema foi que os paradigmas superiores derivaram da matemáti-ca, das ciências naturais, das ciências humanas, pintura ou literatura, que sempre estiveram àmão. Elas alimentaram nossas necessidades a um certo custo. Por que não é possível derivaruma teoria de arquitetura de uma consideração da arquitetura? Não arquitetura sozinha, masarquitetura com outras coisas. Arquitetura pode se fazer distinguível, mas não é autônoma.Ela toca muitos campos. Uma fonte crucial de sabedoria para tal teoria seriam as inúmerastransações entre arquitetura e outros tópicos, como, por exemplo: a geometria, a fotografia, aliteratura, a pintura, entre outros.

Fernando Pérez OYARZUN, no ensaio Observacion y Representacion comenta: -“Dandoum passo mais além num esforço de compreensão, poderíamos dizer que OBSERVAÇÃO E REPRE-SENTAÇÃO correspondem a dois momentos de uma mesma interpretação transformadora e reveladora darealidade”.

Fernando Pérez analisa os temas observação e representação em arquitetura utilizan-do estudos de casos como: Henri Labrouste (Paestum e as Bibliotecas de Paris), CharlesGarnier (a nova Ópera de Paris), Bauhaus (matéria e abstração) e ainda Le Corbusier (croquis,pintura e fotografia). Neste ensaio pretendo analisar a obra KURSAAL DE SAN SEBASTIÁN,

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Guipúzcoa, Espanha, 1990/1999 de Rafael Moneo, suas relações entre formas de observa-ção, de representação e projetos.

José Rafael Moneo Vallés nasceu em Tudela (Navarra), em maio de 1937. Realizouseus estudos na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Madri, obtendo sua titulaçãoem 1961. Dentre as principais obras destacam-se ainda: a nova sede do Banco de Españaem Jaén (1982-1988), o Aeroporto de Sevilla (1987-1992), o Colégio de Arquitetos deTerragona (1983-1992), o Museu de Arte Moderna e Arquitetura de Estocolmo (1994-1998), o Auditório e Centro Musical de Barcelona (1990-1999), o Museu de Belas Artes deHouston (1992-2000). Rafael Moneo é membro da Academia Americana das Artes e dasCiências, da Academia de São Lucas de Roma e da Real Academia Sueca de Belas Artes, émembro honorário do Instituto Americano de Arquitetos e do Real Instituto de ArquitetosBritânicos.

2 RAFAEL MONEO – O ARQUITETO

- Wilian J. R. Curtis, na revista espanhola El Croquis (2000), entrevistando RafaelMoneo comenta:

“Sua arquitetura parece funcionar em vários níveis. Cada edifício tem seu própriocaráter, pois existem formas e modos de organizar os espaços, a luz, a planta e aseqüência com que são recorrentes. Você é um dos poucos que mantém um diálogocom a história. Preserva uma relação de identidade com certas obras históricas an-tigas e modernas – por exemplo a Mesquita de Córdoba ou Romchamp, de LeCorbusier. Percebemos também um compromisso intencional, quase premeditado,com as inquietudes contemporâneas e seus desenhos. Por exemplo, o Kursaal deSan Sabastián usa peles luminosas em um tempo em que muitos arquitetos prestamatenção à superfície e à materialidade”.

- Moneo responde:

Figura 1. Fotografia Noturna da Cidade de Guipúzcoa, Espanha.Detalhe: KURSAAL DE SAN SEBASTIÁNDois cubos envidraçados, iluminados sobre uma grande plataforma de concreto

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“É verdade que hoje em dia existem projetos que concentram grande parte de suaenergia na pele. Pois esse não é o caso de Kursaal. Como em tantas outras o Kursaalresponde a diversas e numerosas pressões e intenções tanto no seu espaço exteriorquanto nos espaços interiores. Quisera evitar a simplificação mal-entendida: para mimé muito difícil simplificar demasiadamente a realidade. A complexidade está presenteem todas as partes, e trato de responder a elas. Neste momento me sinto deslocadodaqueles colegas que procuram reduzir os projetos a um único gesto. Durante o pro-cesso de desenho existe uma luta por reconciliar forças opostas e por elaborar inten-ções diversas, e que isto se reflita em resultado”.

Não há um caminho simples emdireção à arquitetura de Rafael Moneo. Seusedifícios resistem a encaixar facilmente nascategorias críticas ou históricas, e inclui suaspróprias explicações, eloqüentes, encobremàs vezes os verdadeiros impulsos de seusdesenhos. Inspirado pelo passado, oscilaentre a experiência direta do existente e ummodo de reflexão mais erudito e acadêmi-co. Moneo é um ardente defensor da idéiade que cada um de seus edifícios represen-ta uma resposta singular às condicionantesque enfrenta e evita qualquer insinuação deque esteja formulando uma linguagemarquitetônica sistemática.

Figura 2. Fotografia diurna da cidade de Guipúzcoa, Espanha.Detalhe: KURSAAL DE SAN SEBASTIÁNLocalização geográfica privilegiada.No encontro da ponta da praia com a Foz do Rio Urumea (acesso por ponte)

Figura 3. Rafael Moneo

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A estratégia de desenho de Moneo consiste em encontrar uma idéia geral que respon-da aos múltiplos aspectos do cometido e do entorno, e que estabeleça também uma série dediretrizes que serão respeitadas daí por diante. Moneo utiliza muito o croquis. Às vezes, estescroquis são representações simplificadas bastante esquemáticas das plantas ou dos cortes dosedifícios, outras vezes antecipam uma vista particular (em perspectiva ou elevação). Tambémutiliza maquetes físicas para investigar as interconexões espaciais e a composição dos volu-mes em relação ao seu entorno. A primeira idéia pode antecipar ou insinuar certos aspectosmateriais do projeto final.

As estruturas e os materiais são cla-ramente fundamentais para o pensamentoarquitetônico de Moneo, a maioria de seusprojetos se visualiza tendo um sistema es-trutural concreto. Uma coisa é a estrutura,outra é a expressão dos materiais, e muitosdos edifícios de Moneo funcionam comoprovocadoras contradições entre ambas.Seja o que for esconder, mostrar ou suge-rir, a trama de um edifício de Moneo con-vida a uma exploração visual e tátil dos ma-teriais, das superfícies, das juntas, das cone-xões, das sombras, etc. Inevitavelmenteaparece o tema do peso visual. Moneo cri-tica os arquitetos que tentam reduzir a ar-

quitetura em uma caixa neutra forrada com uma pele sedutora. Moneo prefere ver o revestimentocomo uma dialética do conjunto de idéias guias. As peles envidraçadas do Kursaal, por exemplo, sebaseiam em várias exigências: a necessidade de dar resposta ao mar e à luz; e necessidade deconservar a integridade dos volumes ao mesmo tempo que a luz natural se filtra ao interior; anecessidade de evocar um mundo submarino; a necessidade de mostrar os prismas acessos à noite;a necessidade de articular a tensão visual e as formas principais; etc. As considerações formais,

Figura 4. Fotografia diurna da cidade de Guipúzcoa, Espanha.Detalhe: KURSAAL DE SAN SEBASTIÁNObservar as pedras cúbicas que conduzem as águas do Rio Urumea, alusão de Moneo quando diz quesua proposta trata-se em síntese de um “acidente geográfico”.

Figura 5. Croquis de Rafael MoneoKURSAAL DE SAN SEBASTIÁN

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práticas, metafóricas e técnicas se fundem em um todo, apresentam-se como peças escultóricasdinâmicas que respondem à paisagem, à cidade e ao mar.

Quando observa um determinado lugar, Moneo escuta o “murmúrio do lugar”,que inclui a topografia, a história e as aspirações atuais e futuras do lugar. Cada edifícioestá condenado a destruir algo que não crê, pois fazê-lo pode pôr de manifesto parte daforça latente e às vezes contraditórias que estão em jogo, pode inclusive utilizar destasforças para propor uma solução tensa. Moneo desconfia de qualquer arquitetura quepretenda ser a única representante de um presente em evolução. Não obstante, parececrer em uma versão imprecisa do Zeitgeist ou “espírito da época”. A seu juízo este espíritopode manifestar-se na arquitetura e em outras artes visuais graça aos mecanismos com-partilhados de percepção e observação. Em suas obras, Moneo se esforça por conciliaresta intuição sobre a cultura contemporânea com a bagagem que extraiu da arquiteturado passado. Esta auto-reflexão contribui para dar a sua obra um caráter especial, mas àsvezes também dificulta a liberdade de sua criação.

Figura 6. Fotografia diurna da cidade de Guipúzcoa, Espanha.Detalhe: KURSAAL DE SAN SEBASTIÁNLocalização geográfica privilegiada.No encontro da ponta da praia com a Foz do Rio Urumea (acesso porponte)

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O seguimento do processo dedesenho implica uma oscilação entre aintenção que o guia e uma série de res-postas ainda mais complexas. No pro-jeto do Kursaal de San Sebastián, a idéiaprincipal teria que ver o edifício comouma paisagem social e luminosa, umarelação dinâmica com o mar, com a ci-dade e, sobretudo, com a espetaculargeografia da encosta.

Quando elabora a forma de umprojeto, Moneo sempre se interessapelo passeio arquitetônico, gosta deantecipar o que se pode ou não podever. Para isto as maquetes têm um pa-pel fundamental. Sempre se faz umamaquete contemplando o entorno demodo que as propostas passam julgar-se em relação com os espaços exterio-res, a escala e a textura, os ângulos deincidência da luz, etc.

Figura 7. Fotografia diurna da cidade de Guipúzcoa,Espanha.

Detalhe: KURSAAL DE SAN SEBASTIÁN •Observar em primeiro plano as pedras cúbicas que

conduzem as águas do Rio Urumea, alusão de Moneoquando diz que sua proposta trata-se em síntese de

um “acidente geográfico”.

Figura 8. Fotografia da maquete física do complexoarquitetônico Detalhe: KURSAAL DE SAN

SEBASTIÁN • Maquete de estudo (em corte) –estrutura independente mantém a integridade dos

volumes cúbicos envidraçados. O fato de ser dupla aparede de vidro mantém a estanqueidade necessária

ao edifício a ainda proporciona de dia muita luznatural e à noite uma enorme luminária para a cidade

de Guipúzcoa.

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3 KURSAAL DE SAN SEBASTIÁN (GUIPÚZCOA, ESPANHA, 1990/1999)

“Durante o processo de desenho me dei conta de que o que deveria fazer neste lugarera desligar-me das ruas e dos edifícios existentes e considerar a importância de certoselementos geográficos de San Sebastián, por exemplo, o Rio Urumea. Também queriareduzir os volumes dos edifícios: os cubos manifestam essa intenção de incluir novolume todo o espaço que fosse possível. Em conjunto, esses cubos e plataformassugerem quase um acidente geográfico no território da cidade. De feito, estabelecemum conjunto novo de coordenadas, nas que o rio e a encosta julgam um papel funda-mental.” Rafael Moneo

A beleza de San Sebastián se deve, em boa medida, ao meio e à paisagem; é muito maisque um lugar comum. Poucas cidades desfrutam de condições naturais tão favoráveis. O solarde Kursaal é hoje visto como um acidente geográfico, ao final do Rio Urumea, fazendo umaalusão aos blocos de pedra paralelepipédicas, utilizadas para proteger a cidade das forças dooceano.

Pretendendo manter este caráter de acidente geográfico, Moneo propôs construir cu-bos de vidros compactos. Foi quando o auditório e a sala de câmera se manifestaram comovolumes autônomos. As salas de exposições, as salas de reuniões, os serviços, ficaram conti-dos em uma plataforma, proporcionando o devido acento das massas cúbicas e potencializandoseu protagonismo. Pequenas janelas permitem que esta plataforma seja utilizada, como umgeneroso espaço aberto. A estes espaços abertos, chegam as escadas procedentes do foyer.Este espaço é crucial para a estruturação do complexo, uma vez que é dele que se produz oencontro entre o complexo e a cidade.

Figura 9. Croquis de uma vista aéreaDetalhe: KURSAAL DE SAN SEBASTIÁNLocalização geográfica privilegiada.No encontro da ponta da praia com a Foz do Rio Urumea(acesso por ponte)

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A construção se resolveu com uma estrutura metálica que dá lugar à formação de duasparedes, com peças de vidro, planas na parte interior e curvadas na parte exterior. O cortemostra claramente o sistema de construção proposto, imaginamos que esta proposta garantetanto a estanqueidade como o condicionamento térmico necessário, produzindo um lumino-so e neutro espaço interior, cujo contato com o exterior só se produzirá nas pequenas, porémespetaculares janelas do foyer abertas sobre o mar.

Figura 12. Planta Baixa – SUBSOLO 02

Figura 11. Planta Baixa – SUBSOLO 01

Figura 10. Planta Baixa – PAVIMENTO TÉRREOA área escura corresponde à projeção dos dois cubos de vidro

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O vidro parece ser um material adequado para San Sebastián, devido à posição doKursaal, tão exposto por vezes aos ventos e à maresia. O vidro converte o volume em umamassa densa e translúcida, alternando dia e noite iluminação natural dentro do edifício e umagrande lanterna para a cidade e o oceano, respectivamente. Com esta solução, Moneo conse-gue a condição abstrata de uma fábrica urbana tão característica das construções da pequenaorla do Urumea.

Ao tomar a decisão de fazer esses cubos luminescentes, Moneo propõe ao povo localuma experiência distinta, algo que tenha a ver com a umidade, com o aquoso, com a sensaçãode retirar-se no mar. Deste modo, paradoxalmente, seria possível suscitar uma reflexão maisprofunda sobre este excepcional entorno, deixando poucas vistas emolduradas por janelaspequenas em relação aos volumes envidraçados.

Figura 13. CORTE TRANSVERSALPerpendicular à Sala de Concertos 01

Figura 14. ESTUDO DE FACHADAS

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Supostamente, os que estiverem noexterior do edifício podem desfrutar do mar edo horizonte sobre os terraços, sem limita-ções impostas pelo edifício. Podemos obser-var que o Kursaal não tem a ver com a inten-ção Miesiana de estabelecer uma continuida-de total entre o interior e o exterior. Tem maisa ver com estimular a consciência de espaçointerno e espaço externo mediante estratégiasarquitetônicas.

Percebemos claramente a intenção deMoneo em manter a integridade formal doscubos. Na busca de materiais capazes de con-viver harmoniosamente com o entorno, o oce-ano, a utilização de grandes paredes de vidrostranslúcidos em escamas foi muito eficaz. As platafor-mas de algum modo nos remetem a uma associação comedifícios desta natureza, como a Ópera de Sidney deUtzon.

O Kursaal, como episódio urbano, permite aosobservadores circularem livremente ao redor dos edifíci-os proporcionando vistas em todas as direções da cida-de. Essa estratégia, Moneo herdou de Le Corbusier, usaros edifícios como filtros que proporcionam novas visõesda cidade e do entorno. Os edifícios supõem um novomodo de ver a realidade circundante, o contexto que seinscreve.

Figura 15. Vista diurna Figura 16. Vista noturnaFachada lateral Fachada lateral

Figura 17. Vista InternaDetalhe para a vista das pequenas aberturas das caixas de vidropara a paisagem externa

Figura 18. Vista internaFoyer do grande auditório. Detalhe para a qualidade da iluminação naturalproporcionada pela parede dupla de vidro translúcido. Ao fundo pequenas

aberturas para o mar se destacam sobre a enorme superfície envidraçada.

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No Kursaal, a intenção é que as escadasestabeleçam a continuidade entre os distintosníveis, transformando os usuários em atores.O que interessa é estimular a sociabilidade doespaço. O amplo e complexo programa tornapossível que os carros penetrem no coraçãodo edifício entre os dois volumes principais,um saguão aberto, que se transformou em umalanterna acristalada.É bastante perceptiva quenão há hierarquização de fachada alguma, háuma certa condição de marcação de acessosfrontais e posteriores. Isso parece não preocu-par Moneo.

4 ANÁLISE COMPOSITIVA DO KURSAAL DE SAN SEBASTIÁN

O edifício de Moneo apresenta-se autônomo, com unidade e integridade, recorren-do à organização volumétrica simples e definida. Sua relação com o entorno é de harmoniae respeito, funciona como um fecho de composição no encontro da Foz do Rio Urumeacom o mar. Seu tratamento plástico com materiais pouco usuais na forma empregada aten-de sua intenção monumental requerida pelo programa e atende à escala do entorno. Doponto de vista compositivo, apresenta uma relação dialética entre transparência e opacida-de. A utilização de uma parede dupla de vidro translúcido permite a passagem da luz natu-ral ao interior do edifício ao mesmo tempo que se transforma em uma enorme fonte lumi-nosa à noite.

Figura 19. Imagem internaFoyer do balcão do grande auditório.

Figura 20. Imagem internaGrande Auditório

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3131313131da Vinci , Curitiba, v. 2 , n. 1, p. 17-32, 2005

Os espaços internos e irregulares do edifício são organizados de forma agrupada vin-culados aos pavimentos denominados subsolo 1 e 2 pelo projeto. As diversas circulaçõespropostas (formas secundárias) dispersam para um ponto lateral agrupando-se numa galeriade espaços regulares contíguos aos dois grandes sólidos autônomos. O pavimento denomina-do subsolo 2 abriga o estacionamento do complexo. Os acessos são independentes para osespaços externos (lojas), auditório e sala de concertos. Os espaços estão vinculados pelosólido estratificado que serve de base aos sólidos maiores e as divisões internas estão vincula-das às funções, formas e orientações dos espaços que se pretendem relacionar.

O programa de necessidade do edifício abraça um amplo campo dentro de sua lógica,diversidade e complexidade. Suas formas e seus espaços acusam a hierarquia intrínseca dasfunções que ocorrem em seu interior, dos usuários, dos objetivos e significações que transmi-tem e do panorama contextual a que se destina. Estes princípios de organização são caracte-rísticos de arquitetos que conhecem a diversidade e a complexidade de edifícios desta nature-za bem como da hierarquia do programa e da essência das edificações. O domínio destesprincípios permite a coexistência perceptiva e conceitual de várias formas e espaços inseridosdentro de um todo ordenado e unificado como a malha urbana de San Sabastián.

Figura 22. Corte Transversal - Detalhe construtivo

Figura 21. Implantação Geral

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EVANS, R. The projective cast: architecture and its three geometries. Cambridge: MITPress, 1994.

EVANS, R. Translations from drawing to building and other essays. Cambridge: MITPress,1993.

MONEO, R. Fragmentación y compacidad en la arquitectura reciente. Madrid: ElCroquis, 2000.

PÉREZ, F. Observación y representación. In: SEMINÁRIO DE ARQUITETURA PROPAR,2000. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 2000.