racismo e cotas

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1 OPRESSÃO RACIAL, MOVIMENTO NEGRO E REVOLUÇÃO: PROBLEMATIZAÇÃO DAS POSIÇÕES DE SÉRGIO LESSA, VALÉRIO ARCARY E MARCELO BADARÓ MATTOS ACERCA DO DEBATE SOBRE AS COTAS RACIAIS Murillo van der Laan * GT: Trabalhadores e movimentos sociais Resumo No presente trabalho procuramos realizar a problematização de algumas posições marxistas no debate sobre as cotas. Para tanto, avançamos algumas considerações de Ellen Wood acerca de certos aspectos gerais do capitalismo e de Agnes Heller sobre o cotidiano. Por fim, chegamos ao resultado provisório da possibilidade de deslocamento da opressão racial contra o negro, o que nos remete a reflexões de aproximação e diálogo entre os movimentos que lutam pela causa negra e os partidos revolucionários que buscam a superação do capitalismo. Palavras-chave: revolução, racismo, cotas. Não são novas as discussões acerca dos movimentos sociais contemporâneos e a questão dos partidos revolucionários. Há muito, sob a suposta alegação de alguns de que a estrutura social havia passado por uma transformação qualitativa que significava a “morte” das pretensões emancipatórias que se apóiam no trabalho, a questão suscita polêmicas. Sobretudo na última década, no cenário nacional, o debate sobre as cotas econômicas e raciais pediu o posicionamento das diversas entidades revolucionárias sobre o tema. Os marxistas não fugiram de um posicionamento. Obviamente, apresentaram considerações diversas, como ficou claro, por exemplo, no debate da revista Crítica marxista, número 24, de 2007. É sobre alguns aspectos concernentes a toda problemática da opressão racial, dos movimentos que lutam pela causa negra e seu diálogo com os partidos e movimentos revolucionários dos trabalhadores que este artigo procura refletir. Comecemos nossa problematização a partir de considerações gerais acerca da estrutura do capitalismo. Para isso, nos utilizaremos das considerações de Wood, que diz: a primeira característica do capitalismo é ser ele incomparavelmente indiferente às identidades sociais das pessoas que explora. Trata-se de um caso clássico de boas e más notícias [...] Ao contrário dos modos anteriores de produção, a exploração capitalista não se liga a identidades, desigualdades ou diferenças extra-econômicas políticas ou jurídicas. A extração da mais-valia dos trabalhadores assalariados acontece numa relação entre indivíduos formalmente iguais e livres e não pressupõe diferenças de condição política ou jurídica. Na verdade, o capitalismo tem uma tendência positiva a solapar essas diferenças e a diluir identidades como gênero ou raça, pois o capital luta para absorver as pessoas no mercado de trabalho e para reduzi-las a unidades intercambiáveis de trabalho, privadas de toda identidade específica (WOOD, 2003, p.229). Logo na sequência Wood complementa: em compensação, o capitalismo é muito flexível na capacidade de usar, bem como de descartar, opressões sociais particulares. Parte das * Mestrando do programa de pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina.

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Racismo e Cotas

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    OPRESSO RACIAL, MOVIMENTO NEGRO E REVOLUO: PROBLEMATIZAO DAS POSIES DE SRGIO LESSA,

    VALRIO ARCARY E MARCELO BADAR MATTOS ACERCA DO DEBATE SOBRE AS COTAS RACIAIS

    Murillo van der Laan*

    GT: Trabalhadores e movimentos sociais Resumo No presente trabalho procuramos realizar a problematizao de algumas posies marxistas no debate sobre as cotas. Para tanto, avanamos algumas consideraes de Ellen Wood acerca de certos aspectos gerais do capitalismo e de Agnes Heller sobre o cotidiano. Por fim, chegamos ao resultado provisrio da possibilidade de deslocamento da opresso racial contra o negro, o que nos remete a reflexes de aproximao e dilogo entre os movimentos que lutam pela causa negra e os partidos revolucionrios que buscam a superao do capitalismo. Palavras-chave: revoluo, racismo, cotas.

    No so novas as discusses acerca dos movimentos sociais contemporneos e a questo dos partidos revolucionrios. H muito, sob a suposta alegao de alguns de que a estrutura social havia passado por uma transformao qualitativa que significava a morte das pretenses emancipatrias que se apiam no trabalho, a questo suscita polmicas. Sobretudo na ltima dcada, no cenrio nacional, o debate sobre as cotas econmicas e raciais pediu o posicionamento das diversas entidades revolucionrias sobre o tema. Os marxistas no fugiram de um posicionamento. Obviamente, apresentaram consideraes diversas, como ficou claro, por exemplo, no debate da revista Crtica marxista, nmero 24, de 2007. sobre alguns aspectos concernentes a toda problemtica da opresso racial, dos movimentos que lutam pela causa negra e seu dilogo com os partidos e movimentos revolucionrios dos trabalhadores que este artigo procura refletir.

    Comecemos nossa problematizao a partir de consideraes gerais acerca da estrutura do capitalismo. Para isso, nos utilizaremos das consideraes de Wood, que diz:

    a primeira caracterstica do capitalismo ser ele incomparavelmente indiferente s identidades sociais das pessoas que explora. Trata-se de um caso clssico de boas e ms notcias [...] Ao contrrio dos modos anteriores de produo, a explorao capitalista no se liga a identidades, desigualdades ou diferenas extra-econmicas polticas ou jurdicas. A extrao da mais-valia dos trabalhadores assalariados acontece numa relao entre indivduos formalmente iguais e livres e no pressupe diferenas de condio poltica ou jurdica. Na verdade, o capitalismo tem uma tendncia positiva a solapar essas diferenas e a diluir identidades como gnero ou raa, pois o capital luta para absorver as pessoas no mercado de trabalho e para reduzi-las a unidades intercambiveis de trabalho, privadas de toda identidade especfica (WOOD, 2003, p.229).

    Logo na sequncia Wood complementa: em compensao, o capitalismo muito flexvel na capacidade de usar, bem como de descartar, opresses sociais particulares. Parte das

    * Mestrando do programa de ps-graduao da Universidade Estadual de Londrina.

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    ms notcias que o capitalismo capaz de aproveitar em benefcio prprio toda opresso extra-econmica que esteja histrica e culturalmente disponvel. Tais legados culturais podem, por exemplo, promover a hegemonia ideolgica do capitalismo ao mascarar sua tendncia intrnseca a criar subclasses (WOOD, 2003, p.229).

    A nosso ver, estas so consideraes importantes para a reflexo acerca da opresso racial. Elas nos permitem um panorama geral acerca das necessidades, potencialidades e limitaes colocadas aqueles que se empenham na luta contra o preconceito racial. Considerando o mbito de uma autonomia relativa do plano ideolgico em sua conexo com aquele da reproduo material no nos parece um disparate argumentar brevemente e apoiando-nos nas consideraes de Wood que: a) a emergncia da sociedade capitalista lanou as bases para a extrao do trabalho excedente predominantemente na esfera econmica, atravs da mais-valia, o que deu lugar a construo da cidadania burguesa; b) a sociabilidade que tem lugar a partir dessas determinaes no carrega a necessidade de uma ligao ntima com os chamados bens extra-econmicos1 como verificava-se nas formaes pr-capitalistas; c) da que, a nosso ver, estruturalmente o capital no necessita absolutamente da mobilizao de aspectos como a questo racial para sua reproduo. Mais ainda, a configurao da sociabilidade burguesa pode contribuir positivamente no sentido de solapar determinadas diferenas; d) no obstante, e prximo ainda das consideraes de Wood, no necessitar no significa que de fato no se aproveite e no d continuidade a certas prticas como a da opresso racial. E isso no apenas pela frgil posio material dos escravos recm-libertos no mbito de uma economia de mercado, mas tambm pela continuidade e instrumentalizao das ideologias racistas.

    Podemos rapidamente complexificar todo esse quadro se nos remetermos s consideraes de Agnes Heller acerca da vida cotidiana (1992). Esta, para a autora hngara, est no centro da histria e traz a marca das determinaes sociais como as que colocamos acima (HELLER, 1992, p.34). A especificidade da vida cotidiana marcada pela velocidade com que demanda respostas de todos os homens. Diz Heller:

    se nos dispusssemos a refletir sobre o contedo de verdade material ou formal de cada uma de nossas formas de atividade, no poderamos realizar sequer uma frao das atividades cotidianas imprescindveis; e, assim, tornar-se-iam impossveis a produo e a reproduo da vida da sociedade humana (HELLER, 1992, p.47).

    Da que o mbito cotidiano o mbito das aes pragmticas, onde no existem distines entre o correto e o verdadeiro (HELLER, 1992, p.50). O pensamento nesta esfera utiliza-se dos juzos provisrios, de breves clculos probabilsticos, das ultrageneralizaes, da espontaneidade etc. (HELLER, 1992, p.47-50). A partir destes determinantes, conclui Heller que a vida cotidiana a que mais se presta a alienao:

    por causa da coexistncia muda, em-si, de particularidade e genericidade, a atividade cotidiana pode ser atividade humano-genrica no consciente, embora suas motivaes sejam, como normalmente ocorre, efmeras e particulares. Na cotidianidade, parece natural a desagregao, a separao de ser e essncia. Na coexistncia e sucesso heterogneas das atividades cotidianas, no h

    1 Ellen Wood, ao tratar dos contrastes entre as sociedades pr-capitalistas e a capitalista, refere-se a uma desvalorizao dos bens extra-econmicos nesta ltima (WOOD, 2003, p.236). Elementos fundamentais determinao das castas e das ordens, como o nascimento, os laos sanguneos, a cor da pele, o gnero, etc., que eram tambm determinantes a apropriao do produto excedente, adquirem outra significao sob a formao capitalista.

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    por que revelar-se nenhuma individualidade unitria; o homem devorado por e em seus papis pode orientar-se na cotidianidade atravs do simples cumprimento adequado desses papis (HELLER, 1992, p.57).

    Uma das formas de manifestao desse carter alienado da vida cotidiana o preconceito. A despeito da ultrageneralizao e dos juzos provisrios serem determinantes inescapveis da vida cotidiana, o grau e a rigidez destes, entretanto, no so sempre os mesmos. A rigor, o preconceito emerge a partir de um juzo falso, que poderia ser corrigido com base na experincia, mas que no o por ligar-se ao componente afetivo da f e atender s demandas pragmticas e conformistas do cotidiano pautadas, usualmente, pelas normas e esteretipos de sua integrao primria (classe, camada, nao).

    Este no um caminho necessrio. A conformidade, apesar de inescapvel em maior ou menor medida ao indivduo, distinta do conformismo. Diz Heller que a

    conformidade converte-se em conformismo quando o indivduo no aproveita as possibilidades individuais de movimento, objetivamente presentes na vida cotidiana de sua sociedade, caso em que as motivaes de conformidade da vida cotidiana penetram nas formas no cotidianas de atividade, sobretudo nas decises morais e polticas, fazendo com que essas percam o seu carter de decises individuais (HELLER, 1992, p.67).

    Ademais, a f no o componente afetivo que necessariamente deve estar acoplado aos juzos provisrios da cotidianidade, estes podem basear-se na confiana. Enquanto a primeira liga-se a particularidade do indivduo e ao comodismo de nossas aes, podendo inclusive dar um sentido a vida particular do homem, a segunda est em uma relao mais prxima com a genericidade humana. Diz Heller acerca da f:

    particular, de modo geral, no aquilo em que o homem acredita, mas sim sua relao com os objetivos da f e com a necessidade satisfeita pela f [...] as motivaes e a necessidades que alimentam a nossa f e, com ela, nosso preconceito satisfazem sempre nossa prpria particularidade individual. Na maioria dos casos, fazem-no de modo direto, sem mediao: crer em preconceitos cmodo porque nos protege de conflitos, porque confirma nossas aes anteriores. Mas, muitas vezes, o mecanismo tambm indireto: nossa vida, que no pde alcanar seu objetivo em sua verdadeira atividade humano-genrica, consegue ento um sentido pleno no preconceito (HELLER, 1992, p.69).

    Em troca, a confiana: enraza-se no indivduo. O indivduo est numa relao mais ou menos consciente com sua essncia humano-genrica e com sua particularidade individual. [...] o Eu assume uma certa distncia com relao prpria particularidade; e essa distncia, por sua vez, implica [...] na possibilidade de outro distanciamento com relao comunidade ou integrao de que se faz parte, com relao conscincia de ns (HELLER, 1992, p.69-70).

    Por essa via, j podemos entrever que a alienao da vida cotidiana, e uma de suas manifestaes como o preconceito, no so necessrias. J mencionamos que a estrutura do cotidiano, a despeito de configurar um terreno propcio para a existncia alienada, pode deixar ao indivduo uma margem de movimento e possibilidades de explicitao, permitindo-lhe at mesmo objetivaes nas esferas heterogneas da vida cotidiana conscientes da unidade humano-genrica e individual-particular (cf. HELLER,

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    1992, p.58). No obstante, preciso lembrar determinaes estruturais do ser social, sobretudo o momento predominante da reproduo econmica. Nesse sentido, diz Heller: quanto maior for a alienao produzida pela estrutura econmica de uma sociedade dada, tanto mais a vida cotidiana irradiar sua prpria alienao para as demais esferas (HELLER, 1992, p.58).

    No que tange a questo dos preconceitos Heller apresenta-nos uma posio balanceada que nos permite problematizar amplamente tambm a esfera do cotidiano como um todo. Para a autora, um salto qualitativo nessa dimenso seria dado no interior de uma sociedade na qual cada homem possa explicitar livremente a conduo de sua prpria vida sem, ao mesmo tempo, tomar sua particularidade independentemente do humano-genrico (cf. HELLER, 1992, p.82-83). Ainda assim, para Heller importante destacar:

    numa sociedade dinmica e mutvel (como o caso de toda sociedade construda sobre a base de um indefinido progresso da produo) sempre existem foras conservadoras e foras dinmicas, e como a possibilidade de elevar-se condio de indivduo real dada to-somente a cada ente singular (o que de nenhum modo significa que todo ente singular chegue a ser indivduo), torna-se ento evidente que os preconceitos no podem ser totalmente eliminados do desenvolvimento social. Mas possvel, em troca, eliminar a organizao dos preconceitos em sistema, sua rigidez e o que mais essencial a discriminao efetivada pelos preconceitos (HELLER, 1992, p.83).

    Nos limites desse artigo podemos apenas delinear estes aspectos da teoria do cotidiano e do preconceito colocadas por Heller. Ainda que breves e insuficientes, eles nos permitem j avanar uma problematizao da opresso racial.

    A nosso ver, a transio da explorao/opresso da mo-de-obra escrava para a explorao do trabalho assalariado no acarretou a supresso da opresso racial. Esta tem sua continuidade no mbito ideal/ideolgico disseminada pelos mais diversos complexos que compem o ser social, sendo tambm sustentada por um processo de reproduo do capital que tem como resultado o posicionamento da populao negra na camada mais explorada da economia capitalista nacional. Ademais, a presena desse estado de coisas no mbito pragmtico da cotidianidade pautado por juzos provisrios (corretos ou falsos), pela ultrageneralizao, pela espontaneidade, etc. , distorcida ainda pelo fetichismo da mercadoria, pela esfera da circulao e pela estrutura liberal, carrega a possibilidade de perpetuao, em forma de um crculo vicioso, do racismo e de sua cristalizao em preconceito que facilmente podem ser instrumentalizados ideologicamente pela burguesia ou por outras classes de transio.

    Ainda que esse seja o resultado ftico, verificvel contemporaneamente2, no conseguimos encontrar um ponto na estrutura capitalista que sustente a continuao necessria dessa situao. Em outras palavras e simplificando, ressaltamos mais uma 2 Tambm no nos possvel, em nossa problematizao inicial, retomar todo o debate em volta das estatsticas nacionais sobre a situao do negro. Para ficarmos apenas em alguns exemplos, Marcelo Paixo, utilizando-se de dados do IDH nacional chegou a concluso de que a populao negra do pas vive com qualidade semelhante a dos pases mais pobres da frica (esse estudo mencionado por MATTOS, 2007, p.192). Baseando-se em nmeros do PNAD Mattos diz: os negros com a mesma escolaridade que os brancos recebem em mdia substancialmente menos. No h como deixar de levar em conta que entre os 20% mais ricos da populao brasileira, os brancos so 88% e entre os 20% mais pobres, os negros so 74%, quando no total da populao os brancos representam pouco menos da metade dos brasileiros. Isto para no retomar os dados sobre a escolaridade, que mostram que o percentual de negros analfabetos o dobro do dos brancos e que a escolaridade mdia dos negros 2 anos inferior a dos brancos (MATTOS, 2007, p.192).

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    vez, o capital no necessita de uma cor de pele especfica a ser explorada ou superexplorada.

    Da que, a nosso ver, a constante tematizao da questo da opresso racial por parte do movimento negro e das aes afirmativas carregam a possibilidade de avanar no combate da discriminao racial. Estritamente nesta esfera como, de fato, prever at onde se pode progredir no interior mesmo do capitalismo? A mobilizao poltica dos movimentos sociais que tratam da opresso racial combatem o momento ideal racista, suas sistematizaes ideolgicas, os juzos provisrios opressores apoiados na f ou na confiana, as ultrageneralizaes dos esteretipos etc., e ao mesmo tempo tem a capacidade, maior ou menor, de interveno na vida material da populao negra.

    Neste sentido, pensamos que podemos apenas nos referir aos obstculos colocados a esse avano e em seus limites ltimos ou estruturais. Antes de tudo, destacar que a luta do movimento negro brasileiro faz-se em um contexto de reproduo neoliberal globalizada do capital e que as presses sobre a camada mais pobre da populao submetida a esse quadro so enormes. Ainda assim, se em meio a todas essas dificuldades a atuao poltica do movimento negro for bem sucedida e, no extremo, efetivar a supresso, no mbito ideolgico, do racismo contra o negro e a heterogenizao da cor da pele na posio das classes, este sucesso no interior do capitalismo pode apenas significar um deslocamento da problemtica da opresso e do preconceito. Isto , uma vez que os determinantes da reproduo do capital no so transformados e com esta continuidade no se verifica uma ruptura da produo de uma superpopulao relativa parece-nos possvel afirmar que outros aspectos poderiam ser mobilizados no interior da estrutura liberal e mistificadora do capitalismo, e do mbito pragmtico do cotidiano inserido neste contexto, dando lugar a outro tipo de discriminao atravs de juzos provisrios, ultrageneralizaes, esteretipos etc. que podem se cristalizar em preconceito e servir de obstculo ideolgico para o enfrentamento dos determinantes fundamentais do capital.

    a partir dessa posio que entendemos a questo das cotas e a luta contra a opresso racial. Cabe-nos, neste momento, algumas observaes concernentes tanto aos movimentos sociais da causa negra quanto a algumas posies no interior do marxismo sobre as mesmas.

    Quanto ao primeiro, a nosso ver, a constante tematizao da opresso racial e a possibilidade de deslocamento da problemtica do racismo no devem ter sua importncia diminuda por no resolverem efetivamente a questo da reproduo do capital e da superpopulao relativa. A despeito dessa incapacidade, a interveno do movimento negro carrega a possibilidade de enriquecimento efetivo do cotidiano. No obstante, se no conectar conscientemente sua luta afirmativa ao desenvolvimento humano-genrico, falhar em ltima instncia por permanecer preso a uma particularidade alienada. Pensamos que a discriminao racial e o preconceito impedem o desenvolvimento individual consciente de sua conexo com o gnero humano e de que tal situao sustentada e reproduzida por uma base material. Assim, a luta do movimento negro, se assumida em sua total coerncia, implica o combate discriminao e ao preconceito em sentido amplo. O que traz a questo da conexo consciente e autntica entre gnero humano e indivduo. Conexo esta que no pode ser alcanada no mbito da mercadoria, do trabalho alienado, da reproduo do capital, da extrao de mais-valia, etc. Colocando as coisas de maneira pueril, se o preconceito racial opressor e pode ser deslocado, ele ser opressor para qualquer outra camada superexplorada que o absorver uma vez que nos parece possvel afirmar que a base

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    material capitalista garantir essa continuidade. Da apontarmos que o movimento negro ser coerente se incorporar em sua pauta a luta pela superao do capital3.

    Sabemos que essa coerncia e essa incorporao no se manifesta como uma necessidade imediata da maioria dos que lutam pela causa negra. Menos ainda imaginamos que a superao do capital uma tarefa destes uma vez que ela deve remeter-se e mobilizar os trabalhadores que esto no centro do antagonismo entre capital e trabalho. Contudo, pela posio social da populao negra e pelas tarefas que deve enfrentar no mbito do capitalismo neoliberal globalizado ela pode sim assumir um carter anticapitalista. Aqui, nos parece que a interveno dos marxistas e dos partidos revolucionrios decisiva.

    Quanto a estas, entretanto, temos tambm algumas observaes. Consideremos os debates da revista Crtica Marxista, em 2007, acerca das

    cotas e as posies de Srgio Lessa e de Valrio Arcary nesta e tambm a de Marcelo Badar Mattos, na revista Outubro de 2007. Nossa posio se aproxima das dos dois ltimos, com algumas restries, porm.

    Lessa rejeita absolutamente as polticas afirmativas. Alega a pouca eficcia das cotas diante de sua impossibilidade de generalizao e, ainda, que sua efetivao poderia dar lugar a perpetuao do racismo. Diz:

    mesmo nos termos os mais conservadores, as cotas sequer atendem s necessidades da maioria da populao. Adotadas em nossos hospitais, por exemplo, um mdico, enfermeiro ou tcnico mais competente seria preterido por outro pelo fato de pertencer a uma dada raa. A eficincia dos nossos hospitais e centros de sade seria prejudicada. O mesmo ocorreria se adotada na seleo dos professores, artistas a terem suas obras expostas pelos eventos culturais, escritores a serem publicados etc. (LESSA, 2007, p.103).

    Esta, entretanto, no a consequncia mais grave que a bandeira das aes afirmativas pode ter sobre a esquerda. Para Lessa, elas ainda efetivam um desarme ideolgico das foras revolucionrias (LESSA, 2007, p.104):

    pois, em primeiro lugar, postulam que, diferente do passado, a sociedade contempornea seria muito mais complexa (velada afirmao de que seria essencialmente distinta). Por isso suas contradies no seriam mais predominantemente determinadas pela forma de produo do contedo material (Marx) da riqueza social (LESSA, 2007, p.104).

    E, ademais: desarma ainda, poltica e ideologicamente, as foras revolucionrias porque contribui para dividir o proletariado e os trabalhadores. Ao invs de, por exemplo, no caso das universidades, todos lutarmos pela universalizao do ensino pblico, gratuito e de qualidade, organizamos os negros e os indgenas a lutarem por suas cotas, reduzindo assim as vagas para os brancos, asiticos, europeus. Se os negros e brancos, ndios, cafuzos, amarelos envolvidos so operrios,

    3 Dentro da problemtica da relao entre o movimento negro e a superao do capitalismo h uma questo ainda mais sensvel que aqui podemos apenas elaborar: como fica a conexo entre a luta pela causa negra em diferentes naes e a frica negra? Isto , existe uma continuidade, atual, entre a situao de opresso racial nos pases ocidentais, por exemplo, e a situao de misria que vivenciam os pases daquele continente? E a ligao do movimento negro ocidental com estes pases africanos puramente contingente ou est disposta a intervir, em ltima instncia, tambm na questo da explorao material da frica negra? Estas so questes que, primeira vista, parecem apontar ainda mais para a necessidade de uma ntima ligao entre o movimento negro e a pauta da superao do capitalismo.

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    trabalhadores ou burgueses, para a concepo de mundo cotista no faz a menor diferena (LESSA, 2007, p.104).

    Neste sentido, conclui Lessa: os revolucionrios devem, a nosso ver, denunciar as polticas afirmativas, entre elas as cotas, pela funo social que exercem: reproduzem e renovam os preconceitos e racismos de todos os tipos ao invs de combat-los; fortalecem o particularismo e o esprito corporativo, desarmam e enfraquecem a crtica revolucionria da sociedade e, por fim, dividem os trabalhadores entre as diferentes raas dificultando a luta contra o capitalismo (LESSA, 2007, p.105).

    A posio de Lessa parece-nos problemtica em primeiro lugar por estabelecer, a priori, uma relao entre cotas e competncia que no corresponde necessariamente realidade. Apesar da possibilidade de juzos provisrios no cotidiano sustentarem tal relao e da darem continuidade, de fato, a certas prticas discriminatrias , o movimento negro e as aes afirmativas procuram tematizar e combater justamente essa impresso que no corresponde a verdade. Alguns estudos procuram demonstrar, por exemplo, como no existe uma disparidade significante entre o aproveitamento de alunos cotistas e no-cotistas (cf. estudos citados por MATTOS, 2007, p.180).

    Por outro lado, reconhecer a possibilidade de avano das aes afirmativas, no implica desconsiderar a esfera da reproduo material como momento predominante da reproduo do ser social, nem as limitaes dessas medidas. Pelo argumentamos brevemente, a reproduo material d sustentao ao momento ideal/ideolgico racista, mas estas, contudo, disseminam-se pelos diversos complexos sociais e pelas prticas cotidianas, e em sua autonomia relativa, vo alm da dimenso econmica e retroagem sobre a mesma.

    Destacar, assim, que os revolucionrios devem denunciar as aes afirmativas opor de maneira imediata as demandas de superao do capitalismo s lutas significativas do movimento negro. A nosso ver, existe uma diferena, que no deve ser negligenciada, entre apontar os limites das aes afirmativas e a possvel incoerncia de um movimento negro que permanece preso em sua particularidade e rechaar absolutamente a luta pelas cotas. Neste ltimo caso, em consonncia com o que viemos argumentando, pensamos que se pode chegar a afastar energias potencialmente anticapitalistas e mesmo revolucionrias de uma parte significativa da populao.

    Por tudo isso, consideramos que nossa posio aproxima-se daquela advogada por Valrio Arcary e Marcelo Badar Mattos, mas, como mencionamos anteriormente, tambm aqui temos nossas restries.

    Concordamos com os dois autores na medida em que apontam a necessidade de encarar de maneira indivisvel tanto a luta contra a opresso como a luta contra a explorao e, ao mesmo tempo, apontam a insuficincia das aes afirmativas. Arcary, por exemplo, diz que

    ignorar a condio oprimida especfica da populao negra, em nome de um programa comum de todos os trabalhadores contra o capital, no vai construir a unidade da classe trabalhadora, mas a sua diviso. O racismo no Brasil no uma inveno dos lderes dos movimentos negros. As polticas de cotas so insuficientes, porque no podem mudar, substancialmente, a condio do negro sob o capitalismo. A juventude negra s ter um futuro melhor se unir sua luta com toda a

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    juventude trabalhadora. A libertao dos negros s ser possvel com a libertao do povo brasileiro (ARCARY, 2007, p.109)4.

    Mattos, por sua vez, destaca que: [...] da mesma forma como nos opomos sociedade de classes e acreditamos que sua superao depende da ruptura com a ordem (a velha revoluo), mas lutamos nos sindicatos pela elevao dos salrios dos trabalhadores, tambm aqui acreditamos que seja possvel recolocar o debate sobre as cotas na perspectiva da universalizao, a partir de algumas premissas. Ou seja, defendemos as polticas afirmativas e, dentre elas, as reservas de vagas, como conquista, absolutamente insuficiente, mas importante, na direo de uma universidade com garantia de acesso a todos os que desejem curs-la (MATTOS, 2007, 194-195).

    E, logo na sequncia, Mattos destaca os limites dessa medida: o sistema de reserva de vagas no uma resoluo para o problema da desigualdade racial e do racismo e qualquer perspectiva de soluo definitiva deste problema deve referenciar-se na luta pela superao da desigualdade fundamental entre capital e trabalho, que a desigualdade racial refora (e pela qual gerada e reforada) (MATTOS, 2007, p.195).

    Da posio desses dois autores nos parece possvel inferir que o problema do racismo contra o negro, no pode ser superado e nem mesmo reduzido a uma irrelevncia social no mbito do capitalismo. A despeito de nossa proximidade com a posio de ambos, encontramos aqui nosso distanciamento da mesma. Argumentamos mais uma vez que no conseguimos encontrar nas determinaes profundas do capitalismo, algo que garanta necessariamente a opresso do negro, como seria possvel identificar, por exemplo, no escravismo colonial. Novamente, apresentamos a questo: quem pode, de fato, dizer at onde a luta do movimento negro pode avanar no interior mesmo do capitalismo? Por um lado, no podemos descartar a interveno bem sucedida no combate ao momento ideal/ideolgico racista como irrelevante apenas porque elas no podem superar a reproduo do capital; e, por outro, no nos parece correto obstaculizar, a priori, a possibilidade, no extremo, de supresso da opresso do negro no capitalismo nacional, condicionando-a a revoluo socialista. Por isso, a nosso ver, parece-nos mais apropriado apontar a problemtica do deslocamento da opresso enquanto limite ltimo do movimento negro no interior do capitalismo e ressaltar sua possibilidade de coerncia se avanar sua luta em unidade com os movimentos e partidos revolucionrios.

    Esta no uma mera questo de detalhe. Em que pese as crticas s debilidades polticas de Lukcs, o filsofo hngaro

    nos deixou alguns apontamentos tericos importantes nesse mbito. Remetendo-se as opes tticas e estratgicas de Lnin em 1917 como prottipo da ao poltica, Lukcs determinou esta como a

    4 De passagem, mencionamos aqui que concordamos com a crtica de Srgio Lessa mobilizao de Valrio Arcary do princpio de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade para a defesa das cotas. Em consonncia com a argumentao de Lessa, pensamos que esse um princpio que pode efetivar-se e servir de guia apenas para uma sociedade de transio que define democrtica e socialmente como o excedente da produo deve ser apropriado. Da que, a nosso ver, opor as cotas, como uma proposta igualitarista, equidade meritocrtica nos parece errneo, uma vez que no mbito do direito e da sociedade burgueses elas so complementares, sendo a primeira apenas uma correo se possvel temporria ltima.

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    prxis que, em ltima anlise, se dirige totalidade da sociedade, mas feita de tal modo que, no imediato, coloca em movimento o mundo social fenomnico como terreno de transformao [...] do existente, e contudo, a prxis que assim vem a ser inevitavelmente colocada em movimento, por via indireta, tambm pela essncia e visa, ainda que indiretamente, tambm essncia (apud LESSA, 2002a, p.112).

    Claro que outras determinaes da poltica so apontadas por Lukcs e no podemos aqui nem sequer nos aproximar delas. No obstante, j nos possvel entrever como a grande poltica deve mobilizar o mundo social fenomnico existente, determinante e determinado com a esfera da essncia. neste sentido que pensamos que apontar a problemtica do deslocamento da opresso, enquanto limite ltimo do movimento negro no interior do capitalismo e cobrar sua coerncia, tem uma potencialidade maior de conectar esse movimento aos determinantes essenciais e predominantes da reproduo do ser social, em contraste com outras anlises que buscam obstaculizar, de uma ou de outra maneira, a priori, os avanos desse movimento.

    Sabemos que esta uma afirmao polmica e que a questo poder ser resolvida e verificada apenas na prxis. Ressaltamos, mais uma vez, que nossas reflexes so ainda incipientes e foram elaboradas de maneira muito abstrata. No obstante, esses so os resultados aos quais chegamos at aqui. Eles permanecem totalmente abertos s crticas e aguardam a possibilidade de amadurecimento.

    Referncias bibliogrficas ARCARY, Valrio. Por qu as cotas so uma proposta mais igualitarista que a equidade meritocrtica. In: Revista Crtica Marxista. So Paulo: Renavan, n.24, p.106-109. HELLER, Agnes. O cotidiano e a histria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. LESSA, Srgio. Cotas e o renascimento do racismo. In: Revista Crtica Marxista. So Paulo: Renavan, n.24, p.102-105. ____________. Lukcs: direito e poltica. In: PINASSI, Maria Orlanda; LESSA, Srgio (Orgs.). Lukcs e a atualidade do marxismo. So Paulo: Boitempo, 2002a. MARX, Karl. O capital: crtica da economia poltica: Livro I vol. I. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004. ___________. O capital: crtica da economia poltica: Livro I vol. II. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. MATTOS, Marcelo Badar. Cotas, raa, classe e universalismo. In: Revista Outubro. So Paulo: Instituto de estudos socialistas, 2007, n.16, p.176-199. WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovao do materialismo histrico. So Paulo: Boitempo, 2003