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1 Racionalização das Relações Intergovernamentais: federalismo e política pública no Brasil e Argentina. Ximena Simpson 1 Trabalho elaborado para a apresentação no XIII Encontro da ABCP. Gramado, 1 a 4 de agosto de 2012. Versão Preliminar Não citar sem a autorização da autora INTRODUÇÃO O objetivo do trabalho é investigar de que maneira os diferentes arranjos federativos 2 resolvem os problemas de ação coletiva que são inerentes aos processos de negociação para a produção e a implementação de políticas públicas (quase) universais e intertemporais. Desde essa problemática mais geral, parte-se do argumento de que o conflito é inerente aos contextos federais e que portanto, a implementação de políticas que busquem modificar o status quo ver-se-á condicionada à capacidade das federações de gerarem mecanismos eficientes de coordenação entre suas partes constitutivas. Dito isto, defende-se então que é a forma como se institucionaliza a relação política entre o governo central e as subunidades o que irá determinar a capacidade das federações de resolverem problemas de coordenação e de alcançarem uma interação cooperativa entre os atores dos diferentes níveis de governo. Por isso, postula-se que, para entender o funcionamento das federações e suas implicações nas políticas públicas, é preciso analisar a maneira como se estruturam as relações intergovernamentais (RIGs doravante). A partir desta perspectiva, o trabalho parte, então, de três premissas centrais. São elas: 1) Uma maior cooperação é alcançada quando se consegue estabelecer consenso em relação à distribuição de poder entre as subunidades e o governo central, questão diretamente relacionada com os mecanismos de geração e de distribuição da renda (federalismo fiscal) e a distribuição de poder 1 Doutora pelo IESP/UERJ. Professora e Pesquisadora da Escuela de Política y Gobierno /UNSAM, Argentina. Email: [email protected] 2 Para tal propósito, adotamos a definição de federalismo como organização política dividida em governos das subunidades e em um governo central, no qual os interesses das regiões são representados no processo decisório nacional, ao mesmo tempo em que mantêm áreas de autonomia em relação ao governo central (DUCHACEK, 1970). Existe, portanto, um governo da federação assim como um conjunto de governos das subunidades, em que todos são atores soberanos entre si, mas sua autonomia é partilhada (RIKER, 1969; 1975).

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    Racionalização das Relações Intergovernamentais: federalismo e política pública no Brasil e Argentina.

    Ximena Simpson1 Trabalho elaborado para a apresentação no XIII Encontro da ABCP.

    Gramado, 1 a 4 de agosto de 2012.

    Versão Preliminar Não citar sem a autorização da autora

    INTRODUÇÃO

    O objetivo do trabalho é investigar de que maneira os diferentes arranjos federativos2

    resolvem os problemas de ação coletiva que são inerentes aos processos de negociação para a

    produção e a implementação de políticas públicas (quase) universais e intertemporais. Desde essa

    problemática mais geral, parte-se do argumento de que o conflito é inerente aos contextos federais e

    que portanto, a implementação de políticas que busquem modificar o status quo ver-se-á

    condicionada à capacidade das federações de gerarem mecanismos eficientes de coordenação entre

    suas partes constitutivas.

    Dito isto, defende-se então que é a forma como se institucionaliza a relação política entre o

    governo central e as subunidades o que irá determinar a capacidade das federações de resolverem

    problemas de coordenação e de alcançarem uma interação cooperativa entre os atores dos diferentes

    níveis de governo. Por isso, postula-se que, para entender o funcionamento das federações e suas

    implicações nas políticas públicas, é preciso analisar a maneira como se estruturam as relações

    intergovernamentais (RIGs doravante).

    A partir desta perspectiva, o trabalho parte, então, de três premissas centrais. São elas: 1)

    Uma maior cooperação é alcançada quando se consegue estabelecer consenso em relação à

    distribuição de poder entre as subunidades e o governo central, questão diretamente relacionada com

    os mecanismos de geração e de distribuição da renda (federalismo fiscal) e a distribuição de poder

    1 Doutora pelo IESP/UERJ.

    Professora e Pesquisadora da Escuela de Política y Gobierno /UNSAM, Argentina.

    Email: [email protected] 2 Para tal propósito, adotamos a definição de federalismo como organização política dividida em governos das

    subunidades e em um governo central, no qual os interesses das regiões são representados no processo decisório

    nacional, ao mesmo tempo em que mantêm áreas de autonomia em relação ao governo central (DUCHACEK, 1970).

    Existe, portanto, um governo da federação assim como um conjunto de governos das subunidades, em que todos são

    atores soberanos entre si, mas sua autonomia é partilhada (RIKER, 1969; 1975).

  • 2

    político entre as esferas de governo3; 2) No que tange à distribuição vertical de poder político, este

    trabalho defende que a existência de uma burocracia com maior independência e estabilidade 4 incide

    positivamente na capacidade de os atores políticos gerarem acordos de longo prazo, pois atenuam os

    problemas de ação coletiva, ao incidirem nos custos de transação. O conceito de burocracia aplicado

    aqui se refere à existência de uma organização administrativa direcionada à gestão e regulação de

    políticas econômicas e de desenvolvimento e caracterizada pela internalização de uma cultura

    tecnocrática e meritocrática5. Por último, 3) Define-se o sistema partidário como o mecanismo

    central de coordenação entre os interesses das subunidades e o poder central (RIKER, 1969). É,

    portanto, endógeno à dinâmica das relações intergovernamentais e elemento central na análise das

    implicações do federalismo na resolução de problemas de ação coletiva.

    Por sua vez, entende-se o federalismo como um bem público, cuja legitimidade reside na

    conexão entre as preferências dos atores locais e as políticas do governo central através de seus

    sistemas de representação. Sua sobrevivência, então, depende de sua capacidade de adaptação em

    face às mudanças na estrutura de incentivos dos atores das distintas esferas de poder. Estas mudanças

    se referem não só a possíveis modificações conjunturais, mas ao resultado da aprendizagem que

    suscita processos repetidos de interação entre instituições e atores diversos.

    Seguindo esta lógica, argumenta-se que as características do funcionamento de um Estado

    federal estarão relacionadas com as modificações em seu sistema partidário, já que este é o locus

    central de expressão das preferências dos atores relevantes e para onde a aprendizagem é canalizada.

    No entanto, é importante ressaltar, processos de aprendizagem não previnem resultados ineficientes

    ou não cooperativos. Ao contrário, podem reproduzir mecanismos perversos de interação com

    resultados de soma zero.

    Nesse sentido, a capacidade de racionalizar o sistema federativo será maior quando o sistema

    partidário, de forma horizontal, for capaz de solucionar os problemas de ação coletiva. Porém, esta

    horizontalidade, é importante aclarar, não se refere à completa nacionalização do sistema de partidos.

    Ao contrário, diz respeito a interesses locais projetados na arena nacional, sem que sua identidade

    seja dissolvida. Formam-se dois interesses integradores e não contraditórios: o nacional e o local.

    Nessa linha de trabalho, tomam-se como objetos de estudo os casos do Brasil e da Argentina.

    A escolha dos casos não é aleatória. Uma análise comparativa preliminar dos processos políticos

    3 Questão diretamente relacionada aos parâmetros de autonomia e soberania dos entes de uma federação e que

    corresponde, por sua vez, às variáveis fundacionais, mesmo que flexíveis, dos federalismos modernos (na acepção

    rikeriana). 4 Para uma rica discussão sobre o termo e sua aplicação ao caso brasileiro, ver a tese de doutorado de Gilda Figueiredo

    Portugal Gouvêa (1994) e o Ex-Leviatã Brasileiro de Wanderley Guilherme dos Santos (2006). 5 Contudo, adverte-se que essa concepção não presume a inexistência de conflitos ou de práticas discricionais ou

    clientelistas.

  • 3

    desses dois países demonstra que constituem exemplos paradigmáticos e, pode-se dizer, até mesmo

    contrafactuais.

    As instituições brasileiras, amplamente assinaladas como fragmentárias (ABRÚCIO, 1997;

    MAINWARING, 1999; AMES, 2003; SAMUELS, 2003; entre outros) devido ao amplo multipartidarismo,

    aos elevados índices de fragmentação legislativa e ao efeito personalizante do sistema eleitoral de

    representação proporcional de lista aberta, alcançaram, ao longo do tempo, índices superiores de

    cooperação entre as instâncias governativas em comparação às da Argentina.

    Quanto ao caso argentino, este é classificado por vários autores como partidariamente

    disciplinado, e com baixa dispersão de poder, ambas as características reforçadas pela adoção do

    sistema de representação proporcional de lista fechada (GARMAN, HAGGARD & WILLIS, 2001;

    WIBBELS, 2005, entre outros). Porém, as relações intergovernamentais nesse país têm mostrado

    maior dificuldade em alcançar acordos intertemporais.

    No que se refere a ambos os países, a análise de sua dinâmica política não pode deixar de

    levar em conta três fatores contextuais que reforçam a perspectiva comparativa deste trabalho. Em

    primeiro lugar, estamos diante de instituições democráticas com relativamente pouco tempo de vida

    e com passados autoritários coincidentes. Em segundo lugar, os dois países têm sofrido recorrentes

    crises econômicas durante as décadas de 1980 e 1990; e, por último, essas nações contam com

    estruturas federais amplamente descentralizadas e com Executivos que apresentam forte poder de

    agenda (mesmo que haja diferenças importantes em relação às dimensões de suas prerrogativas).

    Desse modo, as diferenças nos resultados das dinâmicas políticas nos dois países sugerem

    que as características da divisão institucional de poder – inerente ao federalismo – são insuficientes

    para definir o potencial de governabilidade e gerenciamento da agenda de políticas públicas.

    A partir desta discussão, o artigo estrutura-se da seguinte forma: a próxima seção analisa os

    processos de reforma fiscal levados a cabo em ambos os países durante a década de 1990 e começo

    do ano 2000. A escolha das políticas focalizadas se justifica por três razões: a primeira, diz respeito

    ao fato de essas políticas terem como objetivo central a modificação da estrutura de incentivos dos

    atores intergovernamentais no que tange ao seu comportamento fiscal; a segunda razão é por estas

    políticas suporem benefícios dispersos a longo prazo e custos concentrados imediatos, questão que

    torna o processo de negociação muito mais problemático; e, por último, por consistirem em duas

    políticas paradigmáticas, pois ambas, mesmo partindo de conjunturas aparentemente similares,

    alcançaram, por um lado, resultados substancialmente diferentes, ao ponto de considerá-los casos

    contrafactuais e, por outro, como veremos, porque estes resultados enfatizaram uma tendência que

    vêm delineando a dinâmica das relações intergovernamentais em ambos os países.

  • 4

    A terceira seção enfoca as transformações ocorridas nos sistemas partidários no Brasil e na

    Argentina durante as últimas duas décadas do século XX e começo do XXI e seu impacto no

    processo decisório no âmbito federal. A quarta parte consiste na análise empírica das hipóteses a

    cima propostas e dos principais postulados levantados nas seções 3 e 4. Na última seção apresentam-

    se as conclusões.

    2. A POLÍTICA FISCAL NO BRASIL E NA ARGENTINA

    Esta seção examina as diferenças observadas nos graus de cooperação intergovernamental

    existentes nos processos de negociação que visam à implementação de políticas de responsabilidade

    fiscal no Brasil e na Argentina6. Enfatiza o comportamento das subunidades em relação às tentativas,

    por parte do governo central, de colocar em prática as políticas de estabilização econômica.

    Este enfoque se justifica pela característica difusa que adquirem políticas de responsabilidade

    fiscal em países federais, já que sua eficiência depende diretamente do comprometimento de todos os

    entes de governo que conformam a federação. Caso contrário, a irresponsabilidade de uma

    subunidade pode provocar uma externalidade negativa, a qual, no curto prazo, contamina o resultado

    fiscal da nação como um todo. Por isso, este tipo de política exige claramente um ente coordenador,

    que, dada sua posição privilegiada (e razão de ser), recai sobre o governo central.

    Parte-se do suposto, então, de que a eficiência desse tipo de política depende do resultado de

    negociações entre as subunidades e o poder central, o que se traduz, na linguagem da Teoria dos

    Jogos, em determinado ponto de equilíbrio. As características desses equilíbrios e sua capacidade de

    adaptar-se às mudanças de conjuntura ao longo do tempo podem favorecer processos mais

    cooperativos, não cooperativos ou não alterar o tipo de interação existente7. Os graus de cooperação,

    portanto, estão relacionados aos níveis de institucionalização das relações intergovernamentais8.

    No que tange ao federalismo fiscal, diversos trabalhos têm demonstrado que um forte

    desequilíbrio fiscal vertical ou, em outras palavras, a alta dependência econômica das subunidades

    6 A responsabilidade fiscal se refere à aplicação de regras fiscais, ou seja, a restrições permanentes em relação ao déficit

    fiscal, ao estoque permitido de dívida pública ou sobre outros indicadores globais de conduta fiscal. Em geral, essas

    regras – que podem ser implementadas através de diferentes graus de formalidade institucional – estão acompanhadas por

    critérios de transparência e de um marco orçamentário plurianual consistente. 7 Sobre este aspecto em particular, ver o trabalho de FALLETTI (2005). Em análise comparativa sobre os processos de

    descentralização na Colômbia, no Brasil, no México e na Argentina, a autora demonstra que as relações

    intergovernamentais na Argentina, em termos de distribuição de poder entre os atores pivotais, não têm sofrido

    alterações, apesar das mudanças de conjuntura e dos processos de descentralização. 8

    Utiliza-se a definição do conceito de institucionalização das relações intergovernamentais proposta por MORA (2002).

    Segundo a autora, este diz respeito à adoção de regras claras que sirvam de parâmetros para o jogo político e assume que,

    como se trata de relações políticas, a institucionalização não pressupõe a assepsia, ou melhor, as interferências na

    interação entre os atores. Essas regras, por sua vez, serão responsáveis pela flexibilidade necessária para dotar o processo

    político de maior credibilidade, pois, além de delimitarem o espaço das crises e as circunscreverem aos conflitos

    intrínsecos à Federação, conferem estabilidade suficiente ao sistema para que a instabilidade inerente ao processo político

    não cause maiores danos.

  • 5

    em relação às transferências do governo central, associado a frágeis instrumentos de controle fiscal

    por parte das autoridades centrais, tende a incentivar comportamentos não cooperativos,

    principalmente em relação às políticas de estabilização fiscal (JONES, SANGUINETTI & TOMMASI,

    2000; REMMER & WIBBLES, 2000; WIBBELS, 2005; RODDEN, 2006; ENTRE OUTROS).

    Nesse mesmo sentido, RODDEN (2006) chama a atenção para o dilema institucional

    provocado pela concepção, entre os atores subnacionais, de que a receita pública faz parte de um

    “poço comum” (common pool). Isto ocorre quando o governo central é responsável em grande parte

    pelo financiamento dos governos subnacionais e este incorre, então, em obrigações morais, políticas

    e práticas que dificultam impor limites às subunidades. Por isso afirma-se que gerar

    comprometimento fiscal em um país federal torna-se mais difícil quando o desequilíbrio vertical é

    mais notável.

    Por sua vez, a questão do controle do endividamento apresenta-se como não trivial. O

    processo de endividamento explicita tanto o limite entre a autonomia dos governos subnacionais e a

    soberania da Federação, quanto suas contradições. Desde essa perspectiva, este trabalho defende que

    a existência ou não de uma burocracia independente e estável incide positivamente na capacidade de

    os atores políticos gerarem acordos de longo prazo, pois atenuam os problemas de ação coletiva, ao

    diminuírem os custos de transação.

    Com base nessas considerações, observa-se que a situação de desequilíbrio fiscal vivida pelo

    Brasil e pela Argentina durante as décadas de 1980 e 1990, que levou os governos a buscarem

    soluções mediante a tentativa de reforma das instituições responsáveis pela redistribuição da receita

    pública e a reformularem a relação entre a União e as subunidades, teve resultados

    significativamente diversos: enquanto o caso argentino se caracterizou pelo fracasso reiterado no

    tocante à reforma para a consecução de um regime sólido de coleta e de distribuição dos recursos

    tributários, o Brasil, no ano 2000, conseguiu aprovar e sancionar a Lei de Responsabilidade Fiscal,

    cujo objetivo era a normatização das finanças públicas nos três níveis de governo.

    Enquanto o Brasil parece mostrar um processo de aprendizagem institucional, evidenciado

    pelo maior consenso a respeito de certos parâmetros de distribuição de autoridade entre os governos,

    as relações intergovernamentais na Argentina representam uma fonte de conflitos tão acirrada, que

    impedem a implementação não só de uma reforma fiscal mais ampla, como de políticas públicas de

    longo prazo.

    Com o objetivo de verificar esta afirmação, a seção seguinte estuda os países separadamente.

  • 6

    Brasil

    Transição Democrática: a nova Carta Magna e o federalismo predatório

    O contexto brasileiro da década de 1980 se caracterizou pelo início de profundas

    transformações para a federação, oriundas tanto do compromisso assumido com a redemocratização

    como do novo paradigma econômico. Nesse período, estados e municípios adquiriram o poder de

    participar mais ativa e diretamente do processo decisório nacional como consequência do processo

    de descentralização ocorrido principalmente a partir do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II

    PND/1975-1979)9. Esse aumento da autonomia representou um acréscimo na demanda por maior

    quantidade de recursos públicos disponíveis, assim como do peso político estadual no processo

    decisório.

    A eleição direta para governadores, realizada em 1982, permitiu que, com o respaldo das

    urnas, os estados passassem a requerer maior descentralização fiscal. Os estados mais desenvolvidos

    exigiam a descentralização do poder de tributar, o que lhes permitiria explorar mais intensamente

    suas bases de tributação. Porém, lançando mão de sua maioria parlamentar sedimentada no período

    militar, os estados menos desenvolvidos conseguiram aprovar uma descentralização baseada na

    ampliação das transferências fiscais já existentes. Contudo, o aumento de autonomia pela via da

    descentralização não foi paralelo à transferência de responsabilidade aos estados.

    A aprovação da Emenda Passos Porto em 198310

    , consolidada na Constituição de 1988, fez

    do Brasil o país em desenvolvimento com maior grau de descentralização fiscal11

    . Os estados e

    municípios conquistaram maiores benefícios tributários com o aumento dos repasses do governo

    federal e com a ampliação de sua participação impositiva.

    9 O II PND foi uma resposta à crise econômica decorrente do primeiro choque do petróleo no fim do chamado "milagre

    econômico brasileiro", período de seis anos consecutivos com taxas de crescimento superiores a 10% ao ano. Foi o

    último grande plano econômico do ciclo desenvolvimentista e, provavelmente, o mais amplo programa de intervenção

    estatal na economia do país. O plano firmou-se politicamente graças ao capital financeiro nacional e às oligarquias

    tradicionais. Entretanto, apesar dos investimentos feitos, a dívida externa do Brasil aumentou de maneira considerável no

    período de vigência do Plano. O II PND se propôs a realizar na economia brasileira um ajuste estrutural, que tem o

    objetivo de reorganizar as bases da economia, enquanto os ajustes conjunturais se referem a medidas de regulação da

    economia ou de gestão da política econômica no curto prazo (através da utilização de instrumentos, tais como taxa de

    câmbio, taxa básica de juros, regras para exportação e importação, tributação etc.). O plano conseguiu êxito parcial, uma

    vez que, pela primeira vez na história, o Brasil conseguiu dominar todo o ciclo produtivo industrial. Contudo, essa

    industrialização ocorreu a preço alto, pois fez a dívida externa explodir, o que resultou na moratória do final de 1982. 10

    EC: 1/12/83 (PEC 22/83) Autor: Paulo Lustosa – Relator: Passos Porto. 11

    Indicadores dos níveis de descentralização de impostos no Brasil, medidos pelos índices de participação dos governos

    subnacionais no total da receita e do gasto, somados à autonomia das subunidades na coleta de impostos e na elaboração

    de seu orçamento, colocam o Brasil em posição similar às das federações mais desenvolvidas; entre os países em

    desenvolvimento é, de longe, o mais descentralizado em termos de autonomia. O Brasil se aproxima de países como

    Canadá, Austrália, Alemanha e Estados Unidos e ultrapassa aqueles Estados unitários que baseiam suas administrações

    em estratégias de descentralização, como é o caso da França e da Inglaterra (SERRA & AFONSO, 2007).

  • 7

    No caso dos municípios, isto se deveu ao seu reconhecimento como membros da federação

    em posição de igualdade com os estados no que concernia a direitos e deveres. Assim, o aumento

    desordenado do número de municípios – de quatro mil, em 1983, para mais de cinco mil, em 1997 –

    foi incentivado pela garantia de transferências federais à região12

    . Com a proliferação de municípios,

    os prefeitos angariaram maior poder de barganha e fortaleceram seu peso político no processo

    decisório. De acordo com ABRÚCIO (2005), o resultado do processo de descentralização foi o

    federalismo “compartimentalizado”, no qual cada nível de governo procurava encontrar o seu papel

    específico e não havia incentivos para o compartilhamento de tarefas e para a atuação consociada.

    As esferas subnacionais transferiam para o governo federal o ônus da crise fiscal. De acordo

    com GONZAGA JR. (1995), a crise geral de financiamento se exacerbou ainda mais como decorrência

    do padrão de ajustamento do início dos anos de 1980: a necessidade de manter um mínimo de

    articulação no Congresso Nacional e as alianças políticas que garantiram a sustentação de SARNEY

    (1985 – 1990) no governo, acabaram tendo cunho regionalista. As discussões no interior das duas

    casas legislativas federais tinham as demandas estaduais por financiamento como elemento

    norteador, acarretando a sobreposição de critérios políticos no tratamento da crise financeira dos

    governos estaduais.

    Durante os primeiros dez anos da Nova República (1985-1995), os governos aproveitaram o

    momento de crise vivido pelo Estado Nacional e pela Presidência da República para obter benefícios

    fiscais e financeiros que significavam, a médio e a longo prazo, um agravamento do desequilíbrio

    fiscal e financeiro do setor público como um todo (ABRÚCIO & FERREIRA DA COSTA, 1998).

    Com o aparente fortalecimento do Congresso Nacional frente ao Executivo Federal, os

    estados aumentaram seu poder ante a União: os governos estaduais conseguiram se articular para

    formar coalizões de veto às mudanças que modificassem a estrutura de distribuição de recursos e de

    encargos dentro da Federação, criando dificuldades ao prosseguimento da reforma de Estado em

    várias áreas. Ao conquistar mais poder, os estados puderam adotar uma postura mais independente

    diante do governo federal.

    Ao longo dos anos de 1990, o novo federalismo fiscal – resultante da Nova Carta de 1988 –

    impôs severas dificuldades à política de estabilização no Brasil. Os esforços de austeridade do

    governo central foram parcialmente cancelados pelos gastos excessivos dos governos subnacionais.

    A busca do ajuste fiscal permanente do setor público foi igualmente limitada pela obrigação do

    12

    De acordo com estudo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI, 2006), estima-se que o “custo

    político” dos municípios, ou seja, o montante de gasto mínimo correspondente ao funcionamento de um ente municipal

    federalizado é de dez bilhões de reais (0,6% do PIB). É importante ressaltar, contudo, que, a partir da EC nº 15, de

    dezembro de 1996, apesar de ser genérica e de depender da aprovação de Lei Complementar, conseguiu-se deter o

    crescimento descontrolado do número de municípios: entre 1997 e 2005 somente foram criados cinquenta e sete.

  • 8

    governo central em transferir aos governos subnacionais grande proporção da receita advinda do

    Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados, sabendo, de antemão, que qualquer

    transferência seria imediatamente gasta. Essa vinculação reduziu, por um lado, a efetividade do

    esforço de ajuste fiscal e, por outro, a qualidade do sistema tributário (GIAMBIAGI & RIGOLON, 1990).

    A conjuntura de crise culminou, assim, com o colapso das finanças públicas estaduais no

    começo da década de 1990. Basicamente, cinco fatores contribuíram para isso. Um, com validade

    para todos os estados, foi a recessão iniciada no governo Collor (1990-1992). Outro se refere ao

    engessamento do orçamento público estadual, resultado, sobretudo, do crescimento exorbitante da

    folha salarial do funcionalismo, o que impedia a realização de investimentos de maior impacto por

    parte dos governos estaduais. Um terceiro fator diz respeito à paralisação dos investimentos federais

    nos estados a partir da segunda metade da década de 1980.

    Para piorar a situação, secaram as fontes de financiamento internacionais ou nacionais,

    caracterizando um quarto fator propulsor da crise das finanças estaduais. Por fim, um fator que

    obrigou os governos estaduais a reverem suas estratégias de atuação no campo econômico: trata-se

    da saída de empresas de seus estados de origem, motivada por incentivos fiscais de outros estados.

    Tal quadro somente pôde ser estabelecido porque os investimentos públicos federais do II

    PND – em especial, na área de infraestrutura – tinham beneficiado, em termos da distribuição de

    riqueza, um conjunto considerável de estados periféricos, os quais anteriormente não poderiam

    competir em igualdade de condições com as unidades estaduais mais ricas. A partir da

    implementação de condições mínimas, esses estados periféricos passaram a poder competir pela

    atração de novos recursos do setor privado (ABRÚCIO & FERREIRA DA COSTA, 1998).

    Começava aí a chamada guerra fiscal entre os estados. Essa competição ocorre mediante a

    manipulação dos respectivos Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)13

    e por

    meio da concessão de benefícios disfarçados na forma de empréstimos subsidiados e, até, de

    participações acionárias. O principal efeito dessa “guerra” foi a redução da receita estadual

    efetivamente disponível, como um todo, e o aumento das pressões fiscais dessas esferas de governo

    sobre a União (CAVALCANTI & PRADO, 2000).

    13

    Regulamentado pela Lei Complementar 87/1996, a chamada "Lei Kandir", o ICMS é um imposto que cada Estado e o

    Distrito Federal podem instituir por determinação da Constituição Federal de 1988. O imposto também incide sobre

    serviços de transporte interestadual e intermunicipal, de comunicações, de energia elétrica, de entrada de mercadorias

    importadas e naqueles serviços prestados no exterior. Cada Estado possui autonomia para estabelecer as próprias regras

    de cobrança do imposto, respeitando as regras previstas na Lei. Esse imposto pode ser seletivo. Na maior parte dos casos,

    o ICMS, que é embutido no preço, corresponde ao percentual de 18%. Entretanto, para certos alimentos básicos, como

    arroz e feijão, o ICMS cobrado é de 7%. Já no caso de produtos considerados supérfluos, como, por exemplo, cigarros,

    cosméticos e perfumes, cobra-se o percentual de 25%. O ICMS é imposto não cumulativo, compensando-se o valor

    devido em cada operação ou prestação com o montante cobrado anteriormente.

  • 9

    Outro ponto a ser destacado é o da política de rolagem das dívidas pelos estados desde os

    anos de 1980. Tal política consistiu na transferência do ônus da crise fiscal para o governo federal

    por parte das esferas subnacionais, ônus decorrente também da relação dos estados com seus bancos

    estaduais. Esse processo funcionava da seguinte forma: como resultado da reforma tributária de

    196614, os estados foram autorizados a contrair empréstimos junto a seus bancos comerciais, dos

    quais eram sócios majoritários.

    A partir de então, os estados usaram seus bancos como uma das principais fontes de recursos,

    em geral, tomando empréstimos, que não eram pagos, e, mais do que isso, recorrendo a subsídios que

    os próprios bancos não disponibilizavam, o que obrigava o Banco Central a cobrir o déficit, lançando

    mais moeda no mercado e gerando mais inflação e aumento exponencial das dívidas estaduais. Tal

    situação fez com que os estados passassem a dever a seus bancos estaduais US$ 22,8 bilhões, dos

    quais US$ 18 bilhões pertenciam ao estado de São Paulo.

    Desse contexto de insolvência resultou que o governo federal passou a sofrer constantes

    pressões direcionadas à suspensão do pagamento das dívidas estaduais por parte dos governos,

    levando-o a sancionar um programa de ajuste em agosto de 1996. Este previa, dentre outras medidas,

    a privatização dos bancos estaduais com financiamento de 100% ou de 50% do custo do saneamento

    financeiro do banco, caso o estado decidisse permanecer com o controle acionário. A utilização dos

    recursos obtidos com a privatização para pagar empréstimos feitos junto ao governo federal foi

    tomada como garantia do pagamento das receitas do estado e sua quota no Fundo de Participação dos

    Estados (FPE)15

    16

    .

    14

    Em linhas gerais, de acordo com VIOL (2000), a reforma de 1966 criou um sistema tributário sistematizado, com

    menores distorções e ineficiências se comparado com o modelo de tributação anterior, que fora definido na Constituição

    de 1946. Isso se deveu ao fato de os tributaristas responsáveis pela reforma de 1966 terem colocado em primeiro plano o

    fator econômico, ou seja, a tributação brasileira passou realmente a incidir sobre bases econômicas, abandonando a

    prática de tributar meras definições jurídicas. As principais modificações introduzidas pela reforma foram: 1) a criação

    do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em substituição ao antigo Imposto sobre o Consumo (IC), ambos de

    competência da União; 2) a criação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) em substituição ao antigo

    Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC), ambos de competência estadual; 3) a criação do Imposto sobre Serviços

    (ISS) sob competência municipal; 4) a transferência do Imposto de Exportação para a União, antes administrado pelos

    Estados, e do Imposto Territorial Rural, anteriormente sob competência municipal. Assim, é fácil constatar que não

    houve significativas alterações na estrutura do sistema tributário brasileiro após a reforma de 1966, pois os impostos

    anteriormente elencados continuam sendo, conjuntamente com o Imposto de Renda (instituído, no Brasil, sob

    competência federal, desde 1922), a base do sistema atual. 15

    O Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) são modalidades de

    transferências constitucionais de recursos financeiros da União para Estados, Distrito Federal e Municípios, previstos na

    Constituição Federal no art. 159, inciso I, alínea “a” e “b”. O FPE é constituído de 21,5% da arrecadação líquida

    (arrecadação bruta deduzida de restituições e incentivos fiscais) do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer

    Natureza (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Já o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) é

    constituído de 22,5% da arrecadação líquida (arrecadação bruta deduzida de restituições e incentivos fiscais) do IR e do

    IPI. 16

    A Constituição de 1988 previa um sistema de transferências intergovernamentais fundamentado por critérios

    compensatórios ou em acordo com a lógica de repartição. As disparidades regionais no Brasil exigiam um mecanismo

  • 10

    Paradoxalmente, a grave crise fiscal que atingiu os estados e provocou a limitação de suas

    margens de manobra, proporcionou incentivos para que os governos subnacionais aceitassem

    mudanças nos mecanismos que regulam as relações intergovernamentais (ABRÚCIO & FERREIRA

    COSTA, 1998). O passo principal foram os acordos de refinanciamento patrocinados pelas leis

    7.977/89; 8.727/9317

    e consolidadas na Lei 9.496/97, os quais podem ser entendidos como parte de

    um processo de consolidação das dívidas estaduais e um passo em direção à maior

    institucionalização das relações federativas.

    O Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados teve início em 1995,

    com o chamado Voto 162 do Conselho Monetário Nacional (CNM), que instituía para os estados três

    linhas de crédito destinadas pela Caixa Econômica Federal (CEF), buscando, assim, solucionar os

    problemas de ordem estrutural nas administrações públicas estaduais.

    O voto 162/95 foi o marco do processo de ajuste fiscal dos estados brasileiros. Pela primeira

    vez na história do endividamento das subunidades, a possibilidade de obtenção de novos

    financiamentos pelo Governo Federal passou a depender de compromissos de ajuste fiscal e

    financeiro assumidos pelos estados, sob o acompanhamento da Secretaria do Tesouro Nacional

    (STN). Consistiu em uma tentativa de interromper o processo cíclico de refinanciamento de dívidas,

    proporcionando aos governos estaduais uma oportunidade de equilibrar suas contas a partir da busca

    por programas de desenvolvimento autossustentável.

    Entretanto, no final de 1996, já estava evidente que o socorro financeiro que se oferecia era

    limitado, não se criando condições plenas para o ajuste fiscal dos estados. Assim, estes voltaram a

    negociar na União uma solução para o problema das dívidas já refinanciadas e para aquelas não

    abrangidas pelos refinanciamentos anteriores, principalmente a dívida mobiliária.

    Uma nova rodada de negociações teve início a partir da assinatura dos Protocolos de Acordos

    entre o Governo Federal e os Estados, os quais previam amplo programa de refinanciamento de

    longo prazo das dívidas estaduais.

    para contrabalançar, em alguma medida, as limitações impostas pela base de tributação aos governos estaduais. Como

    contrapartida ao ICMS, então, o FPE é alocado, obedecendo a determinados critérios, como o inverso do PBI per capita.

    O Fundo de Participação é formado por 44% da receita do Imposto de Renda e do IPI e distribuído entre estados (21,5%)

    e municípios (22,5%). 17

    Ao longo do ano de 1993 foram negociadas e refinanciadas as dívidas contratuais internas de responsabilidade das

    administrações direta e indireta dos estados, contratadas até 30 de setembro de 1991 junto aos órgãos e entidades

    controlados direta ou indiretamente pela União, nos termos da Lei nº 8.727, de 05 de novembro de 1993. Esse

    refinanciamento, tido como terceira e última renegociação de obrigações dos estados junto à União anteriormente

    ocorreram reestruturações de dívidas de origem externa e interna ao amparo das Leis nos 7.614, de 10 de julho de 1987, e

    7.976, de 27 de dezembro de 1989 mereceu a adesão da maioria dos devedores, proporcionando o reescalonamento de

    obrigações no valor equivalente a R$ 33,4 bilhões, posição em 31 de outubro de 1995, o que permitiu a regularização de

    grande parte do contencioso existente entre os devedores e a União. Disponível em:

    .

  • 11

    Com a edição da Lei n° 9.496 em setembro de 1997, a União ficou autorizada a assumir a

    dívida pública mobiliária dos Estados e do Distrito Federal, além de outras dívidas permitidas pelo

    Senado Federal, dentre elas aquelas assumidas a partir do Voto 162/95. Ganhou força, a partir de

    então, a busca pelo desenvolvimento autossustentável através do Programa de Reestruturação e de

    Ajuste Fiscal. A próxima seção centra-se nesse processo.

    Ponto de Inflexão? Da Renegociação das Dívidas Estaduais à implementação da LRF

    Ao longo da década de 1990 constatou-se que as negociações individuais continuaram a

    alcançar a totalidade dos estados em 1997, embora nem todos tenham aderido ao sistema de

    refinanciamento de suas dívidas em um primeiro momento. O Programa de Refinanciamento tinha

    como base um arcabouço geral estruturado em quatro pontos:

    • quitação de dívidas via privatizações das estatais;

    • cumprimento de cláusulas mais rígidas de desempenho fiscal;

    • penalidades bem definidas àqueles que não cumprissem regularmente os pagamentos;

    • assunção pela União, através de títulos públicos federais, de dívida que dificilmente

    seria refinanciada e pagaria preços muito altos no mercado.

    A preocupação da União em assegurar o ajustamento fiscal das unidades da federação e de

    impedir a ocorrência de novos desajustes futuros – suscitados pela utilização de bancos estaduais e

    das concessionárias de energia elétrica bem como pela realização de operações de crédito – decorria

    do receio de inviabilizar o pagamento das prestações do refinanciamento. Desse modo, buscava-se

    evitar que a restrição orçamentária imposta às unidades da federação fosse flexibilizada, de modo a

    resguardar a capacidade de pagamento.

    A absorção de uma dívida superior a 13% do PIB (dívida subnacional renegociável) implicou

    um ônus significativo para a União e tornou concretas as consequências do arranjo federativo em

    vigência. O potencial de desgaste decorrente das relações intergovernamentais e suas implicações

    sobre a estabilidade macroeconômica estavam explicitados (MORA & GIAMBIAGI, 2007).

    O sucesso do Programa de Reestruturação Fiscal e Financeira18

    dependia da capacidade de

    efetiva revisão das relações federativas e da imposição de limites aos governos estaduais. Era

    18

    O Programa de Ajuste Fiscal, assinado pelos governadores dos vinte e cinco Estados que refinanciaram suas dívidas

    (Amapá e Tocantins não o fizeram), apresenta metas anuais para um triênio, considerando a evolução das finanças

    estaduais, os indicadores macroeconômicos para o novo período e a política fiscal adotada pelos governos estaduais. A

    cada ano é avaliado o cumprimento das metas e compromissos do exercício anterior. Também anualmente poderá ser

    realizada a atualização de metas para novo triênio. Estes procedimentos deverão ser observados enquanto o contrato de

    refinanciamento perdurar. As propostas de metas fiscais apresentadas pelos Estados e Distrito Federal são avaliadas pelo

    Ministério da Fazenda, que manifesta sua concordância de acordo com metodologias de análise técnica, de

    responsabilidade da Secretaria do Tesouro Nacional, as quais buscam preservar a solvência do ente federado, em

    particular com relação à sua capacidade de honrar os compromissos assumidos contratualmente. Ao longo da existência

    dos Programas de Ajuste Fiscal, por conta da adoção de postura consistente com a manutenção do equilíbrio fiscal e com

  • 12

    necessário inverter o papel desempenhado pelos governos subnacionais, forçando-os a gerar

    superávit primário em níveis condizentes com o pagamento das prestações do refinanciamento junto

    à União e a contribuir para o esforço fiscal do setor público consolidado. A geração compulsória

    desses superávits primários é garantida legalmente por dispositivo constitucional, que permite à

    União, e apenas a ela, não só reter as transferências constitucionais a estados inadimplentes, como

    acessar as contas recolhedoras dos tributos próprios.

    Vislumbrava-se, portanto, a implementação de um abrangente ajuste fiscal para obter um

    resultado primário condizente com o acordado nos contratos de refinanciamento. Como nessa época

    a Receita Líquida Real (RLR)19

    beirava os 7% do PIB, a proposta do Governo de um limite de 13%

    da RLR para o pagamento das dívidas dos estados, indicavam no médio prazo uma contribuição dos

    governos estaduais para o esforço fiscal do setor público consolidado na ordem de 1,0% do PIB.

    Como consequência, a partir de 1999 verificou-se maior responsabilidade dos estados em

    relação aos seus gastos públicos, o que gerou melhora fiscal primária de 0,11% do PIB entre 1998 e

    1999 e de 0,50% do PIB no ano 2000.

    No ano 2000 foi sancionada a Lei de Responsabilidade Fiscal com o objetivo de

    normatização das finanças públicas nos três níveis de governo e de evitar a emergência de novos

    desequilíbrios fiscal-financeiros nas esferas subnacionais. Para tanto, entre outras medidas, proibiu o

    refinanciamento pela União de dívidas subnacionais como estratégia de controle ao endividamento e,

    mediante a Lei Complementar 101 (LRF), desviou do Senado a prerrogativa sobre as decisões de

    a estabilidade macroeconômica, os resultados alcançados pelos Estados foram significativos, em especial na redução do

    endividamento estadual. Ademais, as revisões dos programas se coadunam com o entendimento do Governo Federal de

    que deve haver compartilhamento dos benefícios da estabilidade econômica entre os entes que se esforçaram e mantém

    situação fiscal equilibrada. Disponível em:

    . 19

    A Receita Líquida Real (RLR) é utilizada para apurar o limite de pagamento da dívida de Estados e Municípios

    renegociada com o Tesouro Nacional e para a relação Dívida Financeira / Receita Líquida Real. É também parâmetro dos

    Programas de Reestruturação e Ajuste Fiscal de Estados. O conceito de RLR encontra-se na Lei nº 9.496/97 (disponível

    em )

    em seu Artigo 2º, Parágrafo Único, assim transcrito: RLR é a receita realizada nos doze meses anteriores ao mês

    imediatamente anterior àquele em que se estiver apurando, excluídas as receitas provenientes de operações de crédito, de

    alienação de bens, de transferências voluntárias ou de doações recebidas com o fim específico de atender despesas de

    capital e, no caso dos Estados, as transferências aos Municípios, por participações constitucionais e legais. A Lei nº

    10.195/01 determinou que o cálculo da RLR exclua da receita realizada as deduções tratadas na Lei nº 9.424/96 (que

    dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino fundamental e de Valorização do Magistério –

    FUNDEF). No que se refere aos Municípios, o conceito de RLR está definido na Medida Provisória nº 2.185/01

    (Instrumento Legal referente ao refinanciamento das dívidas dos Municípios). A RLR é apurada a partir dos dados de

    balancetes enviados pelos Estados e Municípios e obtida pela dedução dos valores permitidos pelos contratos das receitas

    orçamentárias. Os valores são calculados e divulgados mensalmente por meio de portaria da Secretaria do Tesouro

    Nacional.

  • 13

    gasto estadual, o que visava eliminar o componente político do processo decisório em torno ao

    endividamento20

    .

    Vale lembrar também, a propósito, que a Lei de Responsabilidade Fiscal tem sua origem na

    Lei Camata (Lei Complementar nº. 82), a qual propôs normas rígidas e mecanismos de controle dos

    gastos permanentes. Estes gastos são os que passam de um exercício fiscal para o outro,

    principalmente aqueles relacionados à contratação de pessoal. A Lei de Responsabilidade Fiscal não

    altera o limite imposto pela Lei Camata, que é de 60% da receita corrente líquida para os Estados e

    de 50% para o Governo Federal.

    O total de recursos envolvidos nesse processo atingiu a cifra astronômica de R$ 103 bilhões

    (incluindo os recursos necessários ao saneamento, privatização ou extinção de bancos estaduais), que

    foram incorporados ao estoque da dívida do Governo Federal. A partir do artigo 35 da LRF, a prática

    de refinanciamento, ou mesmo a postergação de dívidas contratadas por entes públicos, ficou

    efetivamente vedada. Além disso, com a publicação da LRF, a busca pelo ajuste fiscal nas contas

    públicas tornou-se obrigatória em todo o território nacional.

    Portanto, observando as metas fiscais desde 1995 (a partir da edição do supracitado Voto

    162), vê-se que os governos estaduais em 2000 estavam melhor preparados para o cumprimento das

    regras determinadas a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal.

    Um ponto importante destacado por AFONSO (2010) é o tratamento que a LRF recebeu no

    Legislativo. A Câmara dos Deputados, embora tenha preservado todos os princípios propostos pelo

    Executivo, promoveu expressivas mudanças na estruturação da lei e em sua técnica redacional, assim

    como incluiu importantes alterações, que acentuaram ainda mais a austeridade fiscal do projeto e

    sobre o Banco Central (separando as políticas fiscais e monetárias). O autor ainda sugere que o fato

    de a comissão especial da Câmara dos Deputados ter alterado muitos dispositivos do projeto do

    Executivo (com a concordância deste último), aumentou a adesão política dos parlamentares.

    À parte, vale registrar como a questão federativa apareceu no processo legislativo da LRF.

    Claro está que a autonomia foi um dos princípios mais reclamados pelos parlamentares que se

    opuseram ao projeto. No entanto, AFONSO aponta para uma contradição, em termos partidários, entre

    as posições favoráveis ao projeto por parte de prefeitos e governadores vinculados à oposição, e as

    resistências e os votos negativos dos parlamentares dos mesmos partidos (que, no final, votaram em

    20

    Em 1998, o controle ao endividamento passou a respeitar a Resolução 78/98, vigente até a promulgação da Lei

    Complementar no 101. Atualmente, o controle do endividamento não é mais da alçada do Senado Federal. A nova lei

    estabelece limites ao endividamento do setor público através das Resoluções 40/01 e 43/01. Por sua vez, o equilíbrio

    intertemporal das finanças públicas proposto no artigo 30 da Lei de Responsabilidade Fiscal é um mecanismo de controle

    ao endividamento sustentável no tempo para as três esferas de governo. Para mais detalhes ver:

  • 14

    bloco contra, nas duas Casas). Fato que denota a legitimidade, em termos federativos, que alcança a

    Lei Fiscal.

    Logo, a Lei de Responsabilidade Fiscal reforçou a autonomia dos governos subnacionais ao

    contribuir para a institucionalização das relações federais, fortalecendo suas contas públicas, aspecto

    que ilustra o crescimento da economia estadual de forma agregada. Esse aumento, que é mais

    contundente nos anos posteriores à implementação da Lei, pode ser visualizado no Gráfico 1, a

    seguir.

    Gráfico 1. Receitas Estaduais (1998 – 2009)

    Fonte: STN.

    É pertinente indicar que a implementação da LRF não significou perda de soberania fiscal e

    administrativa por parte dos estados, pois, além de incorporar regras específicas para cada órgão

    governamental, o que preservava a independência entre os poderes, também abarcou o governo

    federal, dando tratamento igual a todos os entes federados.

    Nesse sentido, o processo de ordenamento fiscal que culminou com a aplicação da LRF nos

    três níveis de governo e em todos os milhares de entes da federação brasileira, significou bem mais

    do que a implementação de uma política econômica. Teve o alcance de mudança na cultura em

    relação à gestão econômica e à coordenação federal.

    O que se procurou destacar nesta seção não foi a eficiência econômica da trajetória fiscal

    relativa às RIGs no Brasil ou à competência técnica da LRF; buscou-se chamar a atenção para as

    modificações nos incentivos aos atores subnacionais a partir da introdução de novos parâmetros de

    coordenação fiscal em direção à interação mais institucionalizada e que parece perdurar ao longo do

    tempo.

    A seção seguinte descreve o caso argentino.

  • 15

    Argentina

    Transição Democrática: Instabilidade Institucional e Crise Fiscal

    O processo de redemocratização levado a cabo na Argentina no começo da década de 1980,

    caracterizou-se pela fragilidade institucional e pela débâcle econômica resultante de um contexto de

    crise fiscal e de hiperinflação. Em termos políticos, a volta à democracia representou uma

    significativa mudança nas relações intergovernamentais, já que as províncias passaram a ter maior

    margem de negociação como consequência da ampliação de seu poder fiscal – pelo aumento da

    porcentagem de recursos coparticipados – e do poder político – pela volta à democracia.

    No que tange aos recursos fiscais propriamente ditos, a redemocratização foi acompanhada

    pela continuidade do regime de Coparticipação Fiscal de Impostos entre a Nação e as províncias (Lei

    nº 20.221), que fora instituído em 1973 e renovado ao final de 1980 ainda pelo regime militar. De

    acordo com a Lei, o regime era válido até 31 de dezembro de 1984, quando deveria ser instituído um

    novo sistema de repartição. O ano terminou sem que fosse confeccionada nova lei, fato que pode ser

    explicado pela dificuldade de se chegar a consenso entre as subunidades e o poder central.

    Nessa época, a Nação via-se condicionada pelo peso da dívida externa herdada do regime

    militar (1978 – 1982), pelos desequilíbrios econômicos e pela pressão do sistema de previdência

    social. O contundente déficit fiscal ostentado pelo conjunto das províncias, todavia, obrigava o

    governo Central a cobrir as necessidades de financiamento das subunidades através de repasses de

    recursos do Tesouro Nacional, que se faziam de forma ad hoc. Este quadro, somado ao vazio legal

    resultante da ausência de norma formal de Coparticipação de impostos, gerava tensão na já frágil

    relação entre as esferas de governo.

    Em termos políticos, o resultado das eleições de 1987 ampliou de forma contundente o

    número de províncias nas mãos do partido opositor (PJ) e sua base parlamentar, desafiando a

    governabilidade do debilitado Partido Radical, na Presidência da República com Raúl Alfonsín

    (1983 – 1989) como presidente.

    A oposição fortalecida lançou mão de seu poder de barganha para exigir maior participação

    no montante de recursos a serem distribuídos. Vale mencionar que as províncias lideradas pelo

    Partido Justicialista (Peronista) já vinham negociando com o governo militar um aumento de sua

    participação na distribuição primária antes do retorno à democracia. Pleiteavam a participação de

    56,66%, dando como justificativa a elevação de seus gastos pela transferência dos serviços

    educativos ocorridos em 197821

    .

    21

    De fato, a porcentagem que iria corresponder às províncias na nova norma de distribuição foi negociada entre

    peronistas e radicais, tendo como moeda de troca o apoio político do partido opositor (PJ), necessário para manter

    minimamente a governabilidade do país.

  • 16

    Em 1987, após várias negociações, estabeleceu-se o novo regime transitório de distribuição

    de recursos tributários entre a União e as províncias: a Lei de Coparticipação Federal de Impostos nº.

    23.548, a qual, salvo algumas modificações, está vigente até os dias de hoje. A norma consistiu na

    repetição das distribuições efetivamente realizadas durante os anos de 1985-1988, que não se

    baseavam em normas institucionalizadas, mas na distribuição herdada da anterior lei nº. 20.221 do

    ano de 1973 (CENTRÁNGOLO & JIMÉNEZ, 2004). Ampliava-se, contudo, a porcentagem que

    correspondia às províncias: de 48,5% passava a 54,66%.

    O sistema transitório de Coparticipação Fiscal estabeleceu que a maioria dos impostos

    nacionais faria parte de um fundo comum de recursos e sua distribuição se dividiria em três etapas:

    1. Em um primeiro momento, determinava quais impostos fariam parte da receita

    comum a todas as províncias, os quais seriam posteriormente divididos entre o

    governo nacional e as subunidades;

    2. Depois, fixava o percentual distribuído desses recursos comuns entre as províncias e o

    governo federal (distribuição primária);

    3. Por último, determinava o critério usado para estabelecer o percentual a ser dividido

    entre as províncias (distribuição secundária).

    A norma estipulava que 42,34% dos recursos coletados pela Nação permaneceriam nos cofres

    federais, enquanto 54,66% seriam repassados às províncias pela via das transferências federais; 2%

    iriam para Buenos Aires, Chubut, Neuquen e Santa Cruz – como recuperação de seus níveis

    tributários –; e o 1% restante faria parte do chamado “Fondo de Aportes del Tesoro Nacional”

    (ATNs), destinado às províncias com desequilíbrios econômicos, de acordo com regras definidas

    pelo Ministério da Economia.

    Uma observação importante é que, apesar de terem sido feitas modificações ao longo da

    história quanto à porcentagem de distribuição primária e secundária dos recursos coparticipados,

    todas tinham a centralização da arrecadação como fundamento comum. As subunidades delegavam

    ao governo central o recolhimento da maioria dos tributos que seriam posteriormente distribuídos22.

    Sobre esse aspecto em particular, EATON (2005) chama a atenção para a rigidez que vem

    adquirindo o sistema de coparticipação fiscal argentino, pois nas negociações acerca dos critérios de

    distribuição intergovernamental não é posta em discussão a regra mais fundamental acerca de o

    porquê o governo federal recolher impostos provinciais.

    A década de 1980 terminou, contudo, em meio a um crítico período hiperinflacionário. Em 6

    de Fevereiro de 1989, o Governo de Raúl Alfonsín decidiu desvalorizar a moeda da época, o Austral,

    22

    Os serviços de educação pré-primária e primária, que representavam ao redor de 35% do quadro de professores, foram

    transferidos às províncias mediante as Leis 21.809 e 21.810 de 1978.

  • 17

    o que disparou uma escalada de preços sem precedente na história argentina. O índice de preços ao

    consumidor alcançou uma cifra de 3.079% anual. O governo, sem praticamente nenhuma base sólida

    de sustentação política, perdeu as eleições de 1989, quando assumiu Carlos Saúl Menem, candidato

    do opositor Partido Justicialista.

    Políticas de Estabilização Fiscal: as RIGs e o círculo vicioso

    Em 1991, com Menem na Presidência (1989 – 1999) iniciou-se um amplo programa de

    estabilização econômica e de ajuste fiscal. O plano visava à restrição do gasto público, à privatização

    da maioria das empresas estatais e à descentralização dos serviços de saúde. Começava uma

    mudança significativa no contexto político e econômico do país como resultado do forte aumento dos

    recursos coparticipáveis e da recuperação da atividade econômica. Vislumbrava-se, portanto, a

    possibilidade de redefinição do frágil equilíbrio que existia entre os diferentes níveis de governo.

    Entretanto, a pressão dos representantes das subunidades por maiores recursos a sua

    disposição não cessou e acabou por diluir a oportunidade a favor de uma modificação significativa

    na estrutura das relações fiscais intergovernamentais, oferecida por uma conjuntura economicamente

    mais favorável.

    Como explica MORDUCHOWICZ (1996: 35), a estratégia das províncias não foi a de se

    comprometer com a política de estabilização lançada pelo Executivo Nacional, porém ao contrário.

    Ao vislumbrar melhora em sua situação fiscal, os líderes subnacionais se desentenderam quanto às

    responsabilidades com as regras de gasto e de endividamento propostas pelo poder Central.

    O governo federal, então, passou a sofrer constantes pressões dos governadores para ampliar

    ainda mais a porcentagem da coparticipação que correspondia às províncias. A resposta do Executivo

    Federal foi a negociação de “alocações específicas” para determinadas rubricas de gasto. As

    alocações específicas funcionavam como “pré-coparticipações”, ou seja, os recursos eram retirados

    do montante destinado às províncias antes que fosse realizada a segunda distribuição. No entanto,

    essa estratégia claramente tinha suas limitações e logo os governadores mostraram resistência através

    de seus legisladores no Congresso Nacional.

    A saída encontrada pelo Poder Central foi a de descentralizar gastos sem transferir seu

    equivalente em recursos. No final de 1991, vinte hospitais federais e os serviços de educação

    (fundamentalmente, os de ensino médio), que ainda permaneciam na órbita federal, foram

    transferidos aos governos provinciais e à Cidade de Buenos Aires.

  • 18

    Pouco depois, em abril de 1992, a Nação conseguiu refinanciar a dívida externa mediante a

    assinatura de um Plano Brady23

    . Contudo, o cumprimento das obrigações impostas pelas entidades

    financiadoras exigia um aprofundamento das medidas de ajuste anteriormente aplicadas.

    A dificuldade em regular as economias provinciais levou o governo nacional a buscar reduzir

    seus gastos, diminuindo os recursos repassados às províncias através da contínua transferência de

    serviços sem seu paralelo financiamento. No mês de abril de 1992, o governo decidiu introduzir pré-

    coparticipações mediante os decretos 559/92 e 701/92, os quais retiravam do montante da

    coparticipação os gastos referentes à própria tarefa de recoletar os impostos (os gastos da Direção

    Geral de Impostos – DGI), e o Decreto 879/92, no mês de junho, o qual modificava a distribuição do

    Imposto de Renda (Impuesto a las Ganancias), destinando o valor recuperado ao financiamento do

    sistema previdenciário.

    Era preciso estabilizar as contas fiscais da federação como um todo. Mas, a estratégia de ação

    unilateral do Executivo, através de decretos, e as medidas não populares de ajuste econômico

    acirravam ainda mais os conflitos com as subunidades e afastavam o Presidente Menem de sua base

    de sustentação política dentro do tradicional Partido Justicialista. O apoio no Congresso e entre os

    governadores peronistas mostrava-se cada vez mais escasso, minguando as expectativas do

    Executivo em relação à discussão e à aprovação de nova lei de Coparticipação Federal de recursos

    que substituísse a provisória.

    O governo Federal lançou então a proposta de um acordo entre o governo nacional e os

    provinciais para rever os parâmetros de distribuição dos recursos da Coparticipação. Após

    negociações bilaterais, a Lei 23.548 foi modificada. Duas das mais relevantes alterações aplicadas à

    normativa referiam-se aos Pactos Fiscais propostos pelo governo de Carlos Menem nos anos de 1992

    e 1993, respectivamente.

    O Pacto Fiscal I, denominado "Acuerdo de Compromiso Federal entre el Gobierno Nacional

    y los Gobiernos Provinciales", modificou a distribuição primária dos recursos coparticipáveis com o

    objetivo de auxiliar as províncias com desequilíbrios fiscais no pagamento das obrigações

    previdenciárias nacionais entre outros gastos operativos. Por sua vez, o Pacto Fiscal II, conhecido

    como o “Pacto Federal para el Empleo, la Producción y el Crecimiento”, tinha como objetivo

    23

    Em março de 1989 foi anunciado pelo secretário de tesouro dos EUA, Nicholas F. Brady, um plano que pretendia

    renovar a dívida externa de países em desenvolvimento mediante a troca por bônus novos. Estes bônus contemplavam o

    abatimento do encargo da dívida através da redução do seu principal ou pelo alívio nos juros. Além de emitir os bônus,

    os países deveriam promover reformas liberais em seus mercados. Os bônus do plano Brady ficaram conhecidos como

    bradies. Apesar do ceticismo inicial, a visão que prevalece atualmente é a de que o plano Brady levou a crise da dívida ao

    fim. A securitização da dívida dos países devedores levou à flexibilização desta dívida e permitiu que o mercado pudesse

    conviver com o risco envolvido. Este risco foi compartilhado por todos os agentes que detinham os bradies; além disso, o

    preço da dívida foi determinado pelas condições econômicas e/ou políticas dos países devedores. Desta forma, nenhuma

    instituição credora ficava exposta a risco em excesso.

  • 19

    equiparar a política tributária das províncias e melhorar a competitividade dos setores produtivos

    através de alocações específicas.

    Esses Pactos buscavam reduzir a fração das províncias na distribuição dos recursos da

    Coparticipação. Mais especificamente, o Pacto I reduzia em 15% os recursos destinados às

    províncias e os transferiam aos gastos de previdência social (os quais representavam sério déficit de

    caixa) de responsabilidade da União. A busca de maior centralização econômica24

    respondia aos

    efeitos das modificações na Coparticipação aprovada pelos legisladores em 1987, as quais

    determinavam que as províncias deveriam receber em torno de 57% dos recursos coletados pela

    Nação e não mais por volta de 48%, como previa a Lei nº. 20.221.

    Com o fim de aprovar esta modificação, entretanto, os governadores exigiram um piso

    mínimo para as transferências provinciais (nenhuma província poderia receber benefícios menores

    do que $740 milhões de pesos). Os decretos 559/92 e 701/92, que estipularam pré-coparticipações

    anteriores, foram revogados e transferências foram garantidas para cobrir os serviços antes

    descentralizados. A negociação foi economicamente possível devido aos ganhos obtidos com o

    sistema de convertibilidade lançado pelo Ministro Cavallo, uma vez que, ao controlar a inflação,

    seria possível maior coleta de impostos e, em consequência, haveria maiores recursos disponíveis.

    Em contrapartida, o governo exigia maior discrecionalidade a seu favor no processo decisório

    e a privatização de empresas estratégicas para, no melhor dos casos, desafogar o caixa deficitário.

    O Pacto Fiscal I, de 1992, também previa que tanto o Governo Federal, o Governo da Cidade

    de Buenos Aires e as Províncias, comprometiam-se a não incrementar seus níveis de gasto primário,

    na medida em que apresentassem ainda desequilíbrios fiscais, mesmo que potenciais, e

    comprometiam-se a sancionar uma “Ley de Solvencia Fiscal e Ley de Administración Financiera” 25

    .

    Contudo, como podemos ver no quadro abaixo, nem todas as províncias cumpriram o

    pactuado. Em relação à implementação das leis de solvência fiscal e à administração financeira, o

    comprometimento não ficou longe de ser unânime. O Quadro 3, a seguir, ilustra essa situação.

    Quadro 3. Leis de Solvência Fiscal e Administração Financeira

    Províncias Leis de Solvência Fiscal Adm. Financeira

    GCBA não possui Lei Nº 70

    BUENOS AIRES não possui Não possui

    CATAMARCA 26/12/2000 Lei N° 4997/m. Lei N°

    5017

    Lei Nº 4938

    CORDOBA 25/03/2000 Lei N° 8836 Não possui

    24

    A re-centralizacão econômica concerne à centralização dos recursos nas mãos do Executivo federal; não se refere à

    centralização e à federalização da política econômica. 25

    As normativas presentes nas Leis foram sancionadas com base nas diretivas da Lei de Administração Financeira e dos

    Sistemas de Controle do Setor Público Nacional (Ley Nº 24.156 de Administración Financiera y de los Sistemas de

    Control del Sector Público Nacional). A Lei completa pode-se ver em:

  • 20

    CORRIENTES não possui Não possui

    CHACO 17/05/2000 Lei N° 4725 Lei Nº 4787

    CHUBUT não possui Lei Nº 4626

    ENTRE RIOS não possui Lei N° 8964/m.

    Lei N° 5104 FORMOSA 31/12/1999 Lei N° 1298 Lei N° 1180

    JUJUY não possui Lei Nº 4958

    LA PAMPA não possui Não possui

    LA RIOJA não possui Lei Nº 6425

    MENDOZA 13/01/2000 Lei N° 6757 Não possui

    MISIONES 04/05/2000 Lei N° 3648 Não possui

    NEUQUEN não possui Lei Nº 2141

    RIO NEGRO 17/01/2001 Lei N° 3502 Lei Nº 3186

    SALTA 27/05/1999 Lei N° 7030 Não possui

    SAN JUAN 04/01/2001 Lei N° 7119 Lei Nº 6905

    SAN LUIS 03/08/1999 Lei N° 5164 Lei N° 5172

    SANTA CRUZ não possui Não possui

    SANTA FE não possui Não possui

    S. DEL ESTERO não possui Não possui

    TUCUMAN 09/09/1999 Lei N° 6964 Lei Nº 6970

    T. DEL FUEGO 22/08/2000 Lei N° 487 Lei N° 495

    Elaboração Própria com base nas informações da Secretaria de Hacienda. Dirección Nacional de

    Coordinación Fiscal con las Provincias Coordinación Fiscal con las Provincias

    É interessante fazer a respeito duas observações. Em primeiro lugar chama a atenção, em

    termos federativos, a falta de coordenação horizontal entre as subunidades e a falta de cooperação

    vertical entre estas e o governo central, uma vez que apenas 30% das subunidades (apenas oito das

    vinte e quatro) aderiram completamente às regras preestabelecidas. Em segundo lugar, é lógico supor

    que os dados observados antecipam as minguadas chances de alcançar os resultados políticos e

    econômicos esperados pelos Pactos.

    O panorama econômico, contudo, mudou significativamente na segunda metade da década de

    1990, como resultado da crise fiscal que emergia, em grande parte, pela incapacidade de o governo

    federal manter o nível dos repasses acordados com as subunidades e o aumento dos gastos públicos.

    Os Pactos, por sua vez, não só tornaram as províncias economicamente mais dependentes do

    governo central, como engessaram o orçamento da administração central. O que teoricamente

    serviria para aliviar e reordenar as relações fiscais intergovernamentais, terminou por limitar as

    margens de manobra do Executivo e ampliar, uma vez mais, o poder de negociação das subunidades.

    Paradoxalmente, o problema que o programa objetivava solucionar, acabou se agravando e o

    endividamento das subunidades aumentou de maneira considerável.

    A dinâmica de endividamento utilizada pelas províncias desde o começo da década de 1990,

    que se caracterizava pelo uso das transferências de recursos da coparticipação como garantia, acabou

  • 21

    por gerar dois resultados: incentivou o endividamento provincial e restringiu a provisão de bens e

    serviços sociais, aumentando a desigualdade entre as subunidades.

    A situação fiscal na época da negociação do segundo Pacto fiscal, em 1993, havia se

    deteriorado em comparação ao ano anterior, o que impunha limites estreitos às margens de

    negociação do Executivo. Os resultados foram parciais: a União não conseguiu implementar um

    ajuste nas subunidades e a falta de enforcement que as fizesse cumprir o acordado, impediu a

    consolidação dos objetivos do segundo Pacto.

    De fato, o texto do próprio acordo, na Cláusula 6ª, estimulava o seu não cumprimento, pois,

    em lugar de prever punição, afirmava o repasse habitual às províncias:

    ARTICULO 6°.- Las sumas destinadas a las provincias de acuerdo a lo dispuesto por los artículos 4°

    y 5°, deberán ser giradas por la Nación independientemente de la garantía mínima de

    coparticipación establecida en el Pacto Federal del 12 de agosto de 1992 y en el Pacto Federal para

    el Empleo, la Producción y el Crecimiento del 12 de agosto de 1993. (COMISIÓN FEDERAL DE

    IMPUESTOS – PACTO II)

    Em 1994, com a Constituição finalmente reformada após quase dez anos de vida democrática,

    determinou-se que a legislação que regulava a redistribuição da receita deveria ser prerrogativa do

    Senado, onde se encontravam sobrerrepresentadas as províncias mais dependentes dessas

    transferências. Tal decisão terminou por complicar qualquer iniciativa do Poder Executivo Federal

    que se direcionasse às políticas de responsabilidade fiscal. Um indicativo disso é que, apesar de a

    Constituição de 1994 estabelecer, no artigo sexto de suas Disposições Transitórias, que a nova lei de

    Coparticipação deveria ser sancionada antes do final de 1996, e apesar de o prazo ter sido prorrogado

    até 1998, as regras de distribuição não foram modificadas até hoje26

    .

    Nesse sentido, SPILLER & TOMMASI (2005) ressaltam que o país se caracteriza pela

    ineficiência do Estado em fazer cumprir suas próprias políticas e metas fiscais, o que se traduz em

    alta volatilidade no que se refere à estabilidade das políticas públicas 27

    (BID, 2006). Este contexto é

    agravado pelo observado alto conflito entre o Executivo e os governadores em questões fiscais.

    Notou-se ainda que, na primeira metade da década de 1990, houve simplificação da estrutura

    dos recursos a serem distribuídos, porém essa tendência se reverteu na segunda metade da mesma

    década como consequência da introdução de novos impostos. Esses impostos funcionavam como

    válvulas de emergência para o enfrentamento da explosão da crise fiscal. Por sua vez, no mesmo

    26

    Sexta: Un régimen de coparticipación conforme a lo dispuesto en el inc. 2 del art. 75 y la reglamentación del

    organismo fiscal federal, serán establecidos antes de la finalización del año 1996; la distribución de competencias,

    servicios y funciones vigentes a la sanción de esta reforma, no podrá modificarse sin la aprobación de la provincia

    interesada; tampoco podrá modificarse en desmedro de las provincias la distribución de recursos vigente a la sanción

    de esta reforma y en ambos casos hasta el dictado del mencionado régimen de coparticipación. (CONSTITUIÇÃO

    FEDERAL, 1994) 27

    Em medição elaborada com base na volatilidade do índice Fraser de liberdade econômica e em amostra com cento e

    seis nações, a Argentina se caracteriza por ser o sétimo país mais volátil no ramo das políticas públicas.

  • 22

    período, sucessivas decisões políticas simplificaram o acesso das províncias às fontes internas e

    externas de financiamento, o que levou a considerável aumento das dívidas provinciais, chegando ao

    seu limite no final de 2001. Nesse ano observou-se uma contundente elevação da dívida pública total

    (como % do PBI), a qual passou de 36%, em 1996, para 57%, em 2001 (Informes del Ministerio de

    Economia, 2004)28

    .

    JONES, SANGUINETTI &TOMMASI (2000) explicam que este quadro foi agravado pelo fato de a

    maioria do gasto provincial ter sido financiado por impostos coletados pelo governo nacional. Assim,

    o alto grau de desequilíbrio vertical, somado à grande fração de serviços sociais oferecidos pelas

    províncias – como é o caso da saúde e da educação –, contribuiu para a emergência do chamado

    problema de common pool, o qual induz a um comportamento irresponsável por parte dos governos

    subnacionais.

    O Gráfico 2, a seguir, mostra o desequilíbrio vertical das províncias argentinas no ano de

    2009.

    Gráfico 2: Recursos Provinciais e da Coparticipação

    Observa-se nesse gráfico que a principal fonte de recursos na maioria das províncias provém

    das transferências efetivadas pelo sistema de coparticipação, sendo os recursos próprios

    comparativamente inexistentes.

    SAIEGH & TOMMASI (1999) argumentam, então, que a configuração redistributiva – a qual

    centralizou quase 70% da arrecadação – incentivou comportamentos perversos por parte das

    subunidades, “privilegiando” posturas fiscais expansivas. Assim, o forte desequilíbrio vertical,

    somado à ausência de mecanismos que regulassem o gasto dos governos provinciais, contribuiu para

    que as subunidades com déficits elevados recebessem “ajuda” federal, embora só tendo participado

    de pequena fração dos custos políticos relacionados a sua arrecadação e mesmo tendo

    comportamento irresponsável no que concerne a esses recursos.

    28

    A dívida pública consolidada do Estado argentino em setembro de 2010 foi de 47,1% do PIB.

    Recursos provinciales + Coparticipación

    0

    2.000

    4.000

    6.000

    8.000

    10.000

    12.000

    14.000

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    Coparticipación y otras transferencias automáticas 2009

    Otros recursos provinciales 2008

    Recaudación tributaria provincial 2008

    Fuente: CIPPEC, datos del MECON

  • 23

    Nesse contexto, a história da política fiscal argentina demonstra as dificuldades de estabelecer

    um âmbito estável para transações políticas de longo prazo nas relações entre as províncias e o

    governo federal. A separação entre o recolhimento de impostos e os gastos comprometeu a

    autonomia fiscal dos governos provinciais, ao mesmo tempo em que os governadores gozavam de

    considerável poder como atores políticos: as províncias que governam se tornaram unidades

    relativamente fracas, enquanto eles se fortaleceram politicamente. As relações intergovernamentais

    acabaram por se basear na luta de forças entre o Executivo e os governadores.

    Com base nas questões apresentadas nesta seção, a seguir serão analisadas separadamente a

    dinâmica das relações intergovernamentais na arena legislativa no Brasil e na Argentina, entendendo

    que, em um sistema federal, no qual a divisão de poderes é inerente à sua razão de ser, o legislativo

    representa a arena institucional onde formalmente ou idealmente tomam forma ou são dirimidos os

    conflitos federais.

    3. COORDENAÇÃO INTERGOVERNAMENTAL E PROCESSO DECISÓRIO

    Os mecanismos de coordenação de interesses entre diferentes níveis de governo autônomo

    constituem aspectos-chave para entender a produção de políticas públicas em uma estrutura

    federativa. Assim, para garantir a coordenação nas relações intergovernamentais, as federações

    devem, em primeiro lugar, equilibrar as formas de competição existentes, levando em conta que o

    federalismo é intrinsecamente conflituoso (ABRÚCIO, 2005).

    Este trabalho postula, então, que o sistema partidário é o instrumento central de articulação

    entre os interesses das subunidades e o poder central (RIKER, 1969). Defende-se que, mesmo que o

    federalismo estruture o sistema de partidos em um primeiro momento, este último não é dependente

    daquele. Abraçando a premissa segundo a qual o sistema partidário é endógeno à dinâmica das

    relações intergovernamentais, pensamos que as transformações ao longo do tempo do próprio

    sistema partidário podem vir a reformar o federalismo, em momento posterior, em direção a

    interações mais ou menos cooperativas.

    Portanto, nesta seção buscaremos analisar, separadamente, o impacto do sistema de partidos

    no processo decisório no Brasil e na Argentina, com o objetivo de demonstrar seus efeitos na

    resolução de problemas de ação coletiva e, em consequência, na implementação de política públicas

    intertemporais, estas subordinadas às dinâmicas federais mais ou menos cooperativas.

    O caso brasileiro

    O ponto de partida de diversos estudos sobre o processo legislativo no Brasil se baseia na

    dicotomia entre um país estadualista e refém dos “Barões da Federação” (ABRÚCIO, 1998; ABRÚCIO

  • 24

    & SAMUELS, 1997) e um país que demonstra, cada vez mais, uma lógica de interação mais

    cooperativa.

    Claramente, o ponto de referência que desafia a posição estadualista são os trabalhos de

    FIGUEIREDO & LIMONGI (1999; 2005; 2010) e de CHEIBUB, FIGUEIREDO & LIMONGI (2009), os quais,

    mesmo aceitando o peso significativo dos governadores na dinâmica política brasileira, destacam que

    a lógica estadual – segundo a qual a lealdade às bases eleitorais locais dominaria as preocupações

    nacionais e partidárias – é contrarrestada por mecanismos institucionais e políticos que o governo

    federal lança mão a fim de construir coalizões de apoio às suas políticas.

    A partir da Constituição de 1988 (CF88), a organização interna dos trabalhos legislativos

    caracteriza-se por ter um formato decisório centralizado que se harmoniza com o papel

    preponderante do Executivo e por um Colégio de Líderes que esvazia o papel das comissões

    permanentes.

    As mudanças fundamentais instauradas em 1988 foram: a criação do Colégio de Líderes, com

    a prerrogativa de organizar o calendário das votações; o controle de emendas em plenário29

    ; o

    sistema de encaminhamento do voto30

    ; e em relação ao processo de formação das Comissões. Nesta

    última, a centralização da escolha dos membros se dá através da decisão dos líderes partidários,

    baseando-se a preferência na lealdade partidária e na expertise.

    Por sua vez, no que tange ao poder de agenda do Executivo, os constituintes de 1988

    preservaram as vantagens institucionais que o regime militar havia dotado o Poder31

    . Nas áreas de

    maior interesse, como tributação, orçamento, regulamentação e alterações na estrutura de cargos,

    salários e gratificações do funcionalismo público e da burocracia nomeada, o Executivo tem a

    prerrogativa exclusiva de propor legislação32

    .

    O Executivo também conta com uma arma significativa para alterar unilateralmente o estatus

    quo legal: as medidas provisórias, cuja entrada em vigor é imediata, mesmo que precise ser validada

    pelo Legislativo dentro de um período determinado. No caso da legislação orçamentária, ainda mais

    importante do que a prerrogativa da iniciativa, são as limitações impostas ao poder de emenda do

    29

    Quando um projeto é submetido à votação no plenário em regime de urgência, as emendas somente são consideradas

    quando conta com, pelo menos, um décimo da Câmara ou dos Líderes cujas bancadas representam esse número. 30

    Encaminhamento do voto pelos líderes partidários diz respeito à orientação de voto que os membros de seu partido

    devem seguir. 31

    É interessante notar que, no Brasil, em todas as Constituições, inclusive na monárquica de 1824, o Executivo foi

    contemplado com o direito de iniciativa legislativa. É possível que, nesse domínio, o Legislativo tenha exercido

    supremacia no contexto das Constituições de 1824 (salvo a fase parlamentarista) e de 1891. Mas, em 1934, a

    preeminência presidencial já se manifestava, inclusive pela criação de uma esfera de iniciativa exclusiva ou reservada, a

    qual, com algumas modificações, se mantém na Constituição atualmente em vigor. 32

    A Constituição Federal de 1988 e, em grande medida, também as Cartas anteriores (ver nota de rodapé nº 31) deram

    amplos poderes legislativos ao Governo federal em políticas estratégicas, mesmo que estas fossem implementadas pelos

    governos subnacionais.

  • 25

    Congresso que, em última análise, somente pode remanejar verbas alocadas em investimento, dado

    que as receitas são estimadas pela proposta original e pelos gastos destinados a pessoal, custeio e

    pagamento da dívida não podem ser cortados (FIGUEIREDO & LIMONGI, 2010).

    No que tange aos interesses federais propriamente ditos, no Brasil, a formação de uma

    coalizão majoritária no Congresso Nacional é suficiente para que o Executivo federal consiga a

    aprovação de sua agenda, incluindo emendas que modifiquem a Constituição, e não exige aprovação

    ou revisão das instâncias inferiores de governo quando se trata de interesses subnacionais. O jogo

    político começa e termina no Congresso Federal.

    Como destacam SANTOS (2002) E AMORIM NETO & SANTOS (2003), a mudança alocativa do

    Congresso, em comparação com o período de 1946-64, foi decisiva para uma “racionalização” do

    comportamento legislativo. Observa-se, inclusive, maior disciplina partidária no segundo período

    democrático brasileiro como resultado da ampliação das prerrogativas legislativas do presidente, as

    quais incentivaram os legisladores individuais a seguir os lineamentos de seu partido, em lugar de

    agir individualmente.

    A alteração no comportamento dos parlamentares refletiria, de acordo com os autores, uma

    solução ao problema de ação coletiva, já que os partidos passam a ter maior capacidade de

    negociação do que o legislador individual. Nesse sentido, o maior peso que o partido vai adquirindo

    no sistema político brasileiro propulsou a transformação de um presidencialismo de facções (sistema

    presidencialista faccional) para um sistema presidencialista de coalizão, em que o processo de

    formação de coalizões tem-se mostrado significativamente mais estável e preditor (ABRANCHES,

    1987; SANTOS, 2002; FIGUEIREDO & LIMONGI, 2010).

    A dimensão do impacto da mudança alocativa no processo decisório nacional é demonstrada

    em diversos trabalhos. CHEIBUB, FIGUEIREDO & LIMONGI (2009) demonstram, por exemplo, que em

    termos de conflitos especificamente federais, como é o caso das políticas centralizadoras da década

    de 1990, o índice de disciplina dos parlamentares mostra-se ainda maior.

    Nessas pesquisas, quando analisadas as medidas centralizadoras mais relevantes e,

    consequentemente, mais conflituosas (como é o caso das medidas que modificam o status quo do

    federalismo fiscal33

    ), os dados mostraram que a probabilidade de congruência do legislador

    pertencente à coalizão do governo federal porém de um estado com governo oposicionista é positiva

    com o líder do governo. Ou seja, no caso de medidas mais controvertidas federalmente, o legislador

    tende a votar de acordo com a indicação do líder do governo. Inclusive, deputados da base

    33

    As mais importantes são aquelas que redefinem a estrutura do federalismo fiscal instituído em 1988: Criação do SUS,

    LRF, Lei Camata, Lei Kandir, ICMS, ISS, ITR e FSE (FEF e DRU).

  • 26

    governista, mas de estados com governos opositores, apresentaram índices superiores de disciplina

    (89%) em comparação aos deputados de estados governistas (87%).

    Em trabalho recente, FIGUEIREDO & LIMONGI (2010) demonstraram que não há grande

    divergência no que tange às prioridades dos membros do Congresso e às do Executivo Federal. A

    agenda de um e a do outro parecem ter caráter complementar. Mesmo que isso não implique

    identidade de interesses e ausência de conflitos, significa que a atuação dos dois Poderes é baseada

    em um princípio de coordenação.

    Na mesma linha, os resultados encontrados por ARRETCHE & RODDEN (2004), ao analisarem

    o impacto da distribuição regional de recursos fiscais nas estratégias eleitorais e legislativas dos

    governadores brasileiros, mostram que os acordos entre os presidentes e o parlamento tendem a ser

    de longo prazo, e não aleatórios, em torno a cada votação legislativa. Dentre todas as variáveis

    testadas no trabalho, o pertencimento à coalizão de governo do presidente apresentou os mais

    elevados índices de correlação: os estados com maior representação na coalizão de sustentação

    legislativa do presidente recebem maiores montantes de transferências não constitucionais per capita.

    O pertencimento do governador à coalizão de governo, no entanto, não é significativa em nenhuma

    estimat