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RACIONALISMO E TUTELA PREVENTIVA EM PROCESSO CIVIL * Ovídio A. Baptista da Silva Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado da Unisinos Professor titular (aposentado) de Direito Processual Civil da UFRGS. 1. Andrea Proto Pisani, jurista italiano consagrado por suas valiosas contribuições à moderna doutrina processual, em recente conferência pronunciada no Brasil, iniciou a exposição com estas palavras: "Os institutos de direito material estão destinados, diria que naturalmente, a mudar de acordo com o surgimento e a diferente avaliação dos interesses em conflito em relação à fruição dos bens materiais e imateriais. Diferentemente dos institutos materiais, os institutos de direito processual que visam a garantir a tutela jurisdicional dos direitos ´nascem, por assim dizer, não apenas com o selo terreno, mas com aquele da eternidade, que lhes é aposto por seu próprio destino de garantir a realização da justiça´". O período grifado que encerra o parágrafo reproduz uma afirmação de Satta, que Proto Pisani aceita como "substancialmente exata", embora considere que poucas são as categorias processuais que realmente são "eternas", porque, segundo ele, "a historia do direito é também a história dos processos" 1 . Mesmo assim, a proposição revela o compromisso do Direito Processual Civil com o paradigma racionalista e, conseqüentemente, com a ideologia que concebe este ramo do conhecimento jurídico como um instrumento puramente formal, abstrato e sem qualquer compromisso com a História. Em última análise, concebe-se o Direito Processual Civil como algo dotado da mesma eternidade de que se vangloriam as matemáticas. O que chama atenção, no entanto, mais do que a proposição em si, é a circunstância de conceberem os juristas (Satta e Pisani) que o direito material está "naturalmente" submetido à contingência de mudanças constantes, segundo mudem as eventuais avaliações dos interesses em conflito, não porém o Direito Processual. * Comunicação escrita para o Segundo Congresso Internacional de Derecho Procesal a realizar-se em Lima no Perú, em junho de 2002. 1 Revista da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, nº 16, 2001, p. 23. www.abdpc.org.br

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Page 1: RACIONALISMO E TUTELA PREVENTIVA EM …dio Baptista(4) - fromatado.pdfAndrea Proto Pisani, ... * Comunicação escrita para o Segundo Congresso Internacional de Derecho Procesal a

RACIONALISMO E TUTELA PREVENTIVA EM PROCESSO CIVIL *

Ovídio A. Baptista da Silva Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado da Unisinos

Professor titular (aposentado) de Direito Processual Civil da UFRGS.

1. Andrea Proto Pisani, jurista italiano consagrado por suas valiosas

contribuições à moderna doutrina processual, em recente conferência pronunciada no Brasil,

iniciou a exposição com estas palavras: "Os institutos de direito material estão destinados,

diria que naturalmente, a mudar de acordo com o surgimento e a diferente avaliação dos

interesses em conflito em relação à fruição dos bens materiais e imateriais. Diferentemente

dos institutos materiais, os institutos de direito processual que visam a garantir a tutela

jurisdicional dos direitos ´nascem, por assim dizer, não apenas com o selo terreno, mas com

aquele da eternidade, que lhes é aposto por seu próprio destino de garantir a realização da

justiça´". O período grifado que encerra o parágrafo reproduz uma afirmação de Satta, que

Proto Pisani aceita como "substancialmente exata", embora considere que poucas são as

categorias processuais que realmente são "eternas", porque, segundo ele, "a historia do direito

é também a história dos processos"1.

Mesmo assim, a proposição revela o compromisso do Direito Processual Civil

com o paradigma racionalista e, conseqüentemente, com a ideologia que concebe este ramo

do conhecimento jurídico como um instrumento puramente formal, abstrato e sem qualquer

compromisso com a História. Em última análise, concebe-se o Direito Processual Civil como

algo dotado da mesma eternidade de que se vangloriam as matemáticas.

O que chama atenção, no entanto, mais do que a proposição em si, é a

circunstância de conceberem os juristas (Satta e Pisani) que o direito material está

"naturalmente" submetido à contingência de mudanças constantes, segundo mudem as

eventuais avaliações dos interesses em conflito, não porém o Direito Processual.

* Comunicação escrita para o Segundo Congresso Internacional de Derecho Procesal a realizar-se em Lima no Perú, em junho de 2002. 1 Revista da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, nº 16, 2001, p. 23.

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É curiosa a contradição existente no pensamento moderno. Sabemos − mais do

que sabemos, vangloriamo-nos − de viver numa democracia pluralista, em que os valores são

relativizados, mas não temos capacidade de historicizar a modernidade. Nossa ahistoricidade

convive com um mundo essencialmente hermenêutico, como anotou Ágnes Heller2, no qual

nada pode aspirar ao "selo da eternidade".

2. Georges Ripert dissera, logo na abertura de uma de suas obras mais

conhecidas, que "la notion même de droit est en elle-même une notion statique"3, mesmo

porque "les juristes, quelle que soit leur profession, forment un corps de même esprit. Ils ont

été instruits par des hommes qui ne doutaient pas de la nature statique du droit" (p. 17).

Afirmações estas que levaram, no entanto, François Ewald a mostrar que Ripert, ao fazer essa

assertiva, assumia uma posição "rigorosamente fundada na lógica do positivismo"4 e que, ao

contrário do que ele supunha, o direito evolui tanto que os franceses viram a

jurisprudência de seus tribunais modificar todo o direito civil, sem necessitar sequer mudar

o Código (p. 211). A que podemos acrescentar que a mesma revolução silenciosa criou, na

França, inicialmente pelo trabalho da jurisprudência, um novo processo civil.

A nós, no Brasil, onde o jurista pronunciava a conferência, a idéia da

eternidade das leis de processo tinha visível sabor de ironia, se considerarmos a frenética

atividade legislativa em que se encontra empenhada a comunidade jurídica, na busca de novos

caminhos, capazes de oferecer respostas aos tremendos desafios enfrentados por nossa

experiência judiciária.

3. Estas considerações revelam-nos o núcleo do paradigma sob o qual se

formaram os sistemas jurídicos modernos, especialmente aqueles pertencentes à tradição

romano-canônica, integrada por grande parte dos países europeus e toda a América Latina,

cujo epicentro é sem dúvida o racionalismo iluminista nascido no século XVII. As raízes

de nosso sistema processual, quando descobertas, explicam as dificuldades enfrentadas pela

2 Más allá de la justicia, tradução espanhola de 1990, Editorial Crítica, Barcelona, p. 199. 3 Les forces créatrices du droit, Livrairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1955, p. 1. 4 Foucault - A norma e o direito, trad. port.. Lisboa, 1993, p. 157).

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doutrina para conceber uma tutela processual que tenha natureza puramente preventiva.

Tentaremos mostrar as causas desses embaraços.

Para isso, é indispensável acrescentar ao racionalismo, tão presente na

formação da ciência jurídica moderna, especialmente no direito processual civil, mais dois

ingredientes importantes. O primeiro deve-se à doutrina política da "separação de poderes",

marcada pela influência de Montesquieu, mas que nos vem, mais propriamente, de Thomas

Hobbes, a reduzir o Poder Judiciário a um poder subordinado, ou melhor, a um órgão do

poder, cuja missão constitucional não deveria ir além da tarefa mecânica de reproduzir as

palavras da lei, de modo que a jurisdição não passasse de uma atividade meramente

intelectiva, sem que o julgador lhe pudesse adicionar a menor parcela volitiva. A este

respeito, as lições de Chiovenda são exemplares. Várias passagens de suas obras poderiam ser

oferecidas para confirmar esta assertiva. Sirva-nos apenas estas: "Nella cognizione, la

giurisdizione consiste nela sostituzione definitiva e obbligatoria dell´atività intellettiva del

giudice all´attività intellettiva non solo delle parti ma di tutti i cittadini nell´affermare

esistente o non esistente una volontà concreta di legge concernente le parti"5.

No texto, ficam demarcadas a natureza meramente "intelectiva", enquanto

pura cognição, da função jurisdicional, e o princípio de que a atividade do juiz deve limitar-

se a revelar a "vontade concreta da lei". Sua missão seria apenas verbalizar a "vontade da

lei" ou a vontade do legislador. A outra passagem que merece referência é aquela em que o

grande processualista, referindo-se à interpretação, dá-lhe a exclusiva tarefa de investigar a

"vontade da lei"6, confirmando a premissa de seu sentido unívoco, porquanto não se haverá

de supor que ela possa ter "duas vontades".

A conclusão que se deve extrair decorre necessariamente dessa premissa: como

seria impensável supor que a lei tivesse "duas vontades", toda norma jurídica deverá ter,

conseqüentemente, sentido unívoco. Ao intérprete não seria dado hermeneuticamente

"compreendê-la", mas ao contrário, com a neutralidade de um matemático, resolver o

problema "algébrico" da descoberta de sua "vontade". Torna-se fácil compreender as razões

que, no século XIX, fizeram com que os autores dos Códigos procurassem impedir que eles

fossem interpretados. Reproduziu-se no século XIX a tentativa de Justiniano. A intenção que

5 Principii di diritto processuale civile, ed. de 1965, JOVENE, Nápolis, p. 296. 6 Istituzioni di diritto processuale civile, 1º vol. § 2, nº 11.

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sustenta esse propósito é a mesma que, no início da Era Moderna, procurou eliminar a

Retórica, enquanto ciência argumentativa, do campo do Direito, basicamente do campo do

Processo. A idéia de perfeição do direito criado, que se oculta sob essa conduta, foi relevada

por uma eminente filósofa contemporânea, ao mostrar o pathos tirânico, conseqüentemente

antidemocrático desse modo de compreender o direito7. O direito "perfeito" elimina

qualquer espécie de questionamento. É o direito do tirano.

4. Antes de determo-nos na análise da doutrina processual, convém ter

presente o conceito de ação, concebido pela ciência jurídica no século XIX europeu,

procurando revelar, a partir daí, o conceito de jurisdição, que haveria de irradiar-se até

culminar na formação do processo civil, como ciência ("ciência", identificada com o modelo

das ciências lógicas, até porque os grandes construtores do pensamento moderno eram,

antes de tudo, matemáticos. Basta mencionar, dentre os mais eminentes, Leibniz e

Descartes).

5. Parece apropriado, considerando as modestas dimensões desta pesquisa,

limitar a análise à figura de Savigny, em razão de sua marcante influência na ciência jurídica

do século XIX, especialmente o duradouro reflexo de suas concepções na doutrina

processual subseqüente.

É conhecido o conceito de ação, recolhido por Savigny das fontes romanas.

Em seu clássico Tratado, que se dizia de "direito romano atual", conceituava o jurista a

ação como a relação que nasce ao titular do direito no caso de sua violação: "La relación

que de la violación resulta, es decir, el derecho conferido á la parte lesionada, se llama

derecho de acción ó acción8.

Como se vê, a ação para Savigny nascia como conseqüência de uma segunda

relação jurídica, surgida da violação do direito. Para toda a doutrina que o sucedeu, até

nossos dias, passando naturalmente por Chiovenda, o conceito de ação está ligado a dois

pressupostos implícitos, que lhe demarcam as fronteiras. O primeiro decorre do paradigma

7 Ágnes Heller, Más allá de la justicia, cit., p. 313. 8 Sistema del derecho romano atual, trad. espanhola, 2ª edição, Madrid, vol. IV, § 205, p.10).

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racionalista, como depois tentaremos mostrar. O outro liga-se ao conceito de litis

contestatio, compreendido pelo direito romano "atual", do século XIX, como um contrato

judiciário, através do qual as partes "criavam" uma relação obrigacional, transformando o

direito litígioso − fosse real ou pessoal −, em virtude desse novo vínculo, em direito

obrigacional, de modo a perpetuar a relação existente em direito romano entre obligatio -

actio - condemnatio.

Os historiadores do Direito, mostram igualmente na doutrina de Savigny, a

influência de Kant, que se universalizou, através de dois postulados. O primeiro devido ao

fenômeno depois conhecido como "pessoalização" do direito real, de que temos tratado em

obras anteriores9; o outro, pela formação do "mundo jurídico", separado e distante da

realidade social − para o qual, como veremos, muito contribuiu Savigny −, de modo que os

juristas pudessem operar apenas com o direito, com o mais absoluto desprezo pelos fatos.

Quem tiver a curiosidade de investigar a força deste princípio, considere nossa metodologia

universitária, onde se estuda somente a regra não o caso, somente o "universal", com

desprezo pelo "individual". Essa fuga da realidade social − expressão acabada do nascente

normativismo jurídico −; essa incapacidade da doutrina jurídica de tratar o individual, de

conviver com a complexidade do mundo social, é uma herança recebida por Savigny da

filosofia de Descartes que vira na neutralidade o escudo que o eximia de acatar ou refutar

as "opiniões aceitas entre os doutos", permitindo-lhe escapar das inabarcáveis incertezas

próprias da existência humana, emigrando para um "mundo novo", formado por verdades

irrefutáveis10.

6. No que diz respeito ao conceito de ação, os juristas que escreveram

sobre Processo Civil, no Brasil, na primeira metade do século XX, seguiam rigorosamente a

doutrina que provinha de Savigny. João Monteiro, lente da Universidade de São Paulo,

ensinava ser a "ação a reação que a força do direito opõe à ação contrária (violatio juris) de

terceiro; é um movimento de reequilíbrio; é um remédio"11. Segundo ele dizia, é a

"violação que cria um vínculo de direito idêntico a uma obrigação, da qual é sujeito ativo o

titular da relação de direito, e sujeito passivo, o seu violador".

9 Especialmente "Reivindicação e sentença condenatória, in Sentença e coisa julgada, 3ª ed., 1995; e Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, 2ª ed., 1998, Cap. 11. R. T., São Paulo. 10 Discours de la méthode, trad. bras. da edição francesa de 1981, Ed. Ática, 1989, p. 64.

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Não seria necessário demorarmo-nos nesta questão, mas talvez seja oportuna

a referência à doutrina sustentada por um dos mais eminentes processualistas brasileiros

contemporâneos, quando, em seu Manual, define o "interesse processual" como destinado a

"supressão do obstáculo" oposto pelo demandado ao "gozo e utilidade normal" de seu

titular12. Quer dizer, a ação será sempre caracterizada por uma atividade dirigida à

remoção do "obstáculo impeditivo" ao gozo do direito, portanto necessariamente

repressiva, nunca preventiva do surgimento do obstáculo.

Cremos ser dispensável advertir que estamos transcrevendo lições de juristas

que atribuem ao vocábulo ação o sentido tradicional, que nos vem das fontes romanas, para

indicar a ação de quem tem direito, "ação de direito material", também impropriamente

indicada como ação "civilista".

7. O que fica de certo modo oculto nessa maneira de ver o direito "em seu

aspecto estático", como dizia a doutrina ou, ao contrário, o direito em sua "atividade", é o

próprio conceito de direito, pressuposto como ordem normativa. Um dos mais consagrados

juristas alemães do século XIX, de influência marcante na doutrina processual, referia-

se não à ação (como o momento dinâmico do direito), mas ao direito subjetivo, como a

categoria jurídica que nascia da violação da norma. Esta passagem é reveladora: "A

propriedade somente torna-se um direito quando, da transgressão da norma instituída para sua

tutela, nasce ao proprietário uma pretensão dirigida à remoção dessa ilicitude"13. Nem

seria a ação, mas o próprio direito a nascer da violação da norma.

Ao racionalismo deve-se a primeira e mais significativa conseqüência desta

premissa, qual seja a revelação do pressuposto de que o direito deveria ser uma ciência

explicativa, como qualquer ciência lógica, não uma ciência da compreensão, como as

modernas correntes da Filosofia do Direito contemporâneas o consideram14. Supõe-se que a

11 Teoria do processo civil, 6ª ed., Editor Borsoi, 1956, vol. I, p. 68. 12 J. M. de Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, 2ª edição, Rev. Tribs., I/241. 13 August Thon, Norma jurídica e direito subjetivo, tradução italiana de 1951, da edição alemã de 1878, p. 158 da tradução e 156 do original. 14 Sobre isso, especialmente H. G. Gadamer, Verdad y metodo, trad. da 4ª edição alemã de 1975, Salamanda (Espanha), 1988; e no Direito, por todos, Josef Esser, Precomprensione e scelta del metodo nel processo di individuazione del diritto, Università di Camerino, 1972.

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incidência e, conseqüentemente, a atividade de aplicação da lei sirva-se do mesmo raciocínio

lógico com que o matemático demonstra a correção de um teorema qualquer.

Eliminando-se a "compreensão" hermenêutica, retira-se qualquer legitimidade

à retórica, enquanto ciência da argumentação forense, que foi, de resto, como se sabe, o

grande empenho inicial de Hobbes, depois abandonado, em suas obras da maturidade15.

Como se vê, o racionalismo, especialmente nos sistemas jurídicos herdeiros da tradição

romano-canônica, tornou a tarefa judicial conceitualmente limitada a descobrir e verbalizar

a "vontade da lei".

É necessário observar que a eliminação da retórica suprimiu, ipso facto, tanto

a possibilidade de criação jurisprudencial do direito, quanto sua essencial dimensão

hermenêutica, segundo aquela idéia ingênua de que, sendo o legislador um ser iluminado,

capaz de produzir normas de sentido transparente, deve ficar vedada a seus aplicadores a

tarefa de interpretá-las. Com efeito, se a lei contém de fato "uma" vontade − pois não

seria logicamente possível supô-la contendo duas ou mais −, resta ao julgador apenas a tarefa

de descobri-la, como quem resolve um problema algébrico. Foi apoiado neste pressuposto

que se procurou impedir, na França, no início da vigência dos Códigos Napoleônicos, que

os magistrados o interpretassem. O núcleo da resistência oferecida pelo sistema à idéia de

que o Direito, como as demais ciências do espírito, seja uma ciência da compreensão, está

no mesmo paradigma racionalista, em sua luta contra os juízos de verossimilhança que,

como dissera Descartes16, haverão de ter-se liminarmente como falsos. Ora, se a norma

pudesse admitir − como inexoravelmente o admite − duas ou mais interpretações válidas e

legítimas, como seria possível obter a segurança jurídica procurada ardentemente pelo

nascente Estado Industrial?

8. A submissão do juiz ao legislador decorria, então, de uma premissa

lançada por Thomas Hobbes, em que o pai do positivismo moderno proclamara que a

missão do juiz era dar aplicação ao que o legislador dissera ser direito, sendo-lhe

indiferente a idéia de justiça. Disse o filósofo: "En todos los tribunales de justicia quien

15 Quentin Skinner, Razão e retórica na filosofia de Hobbes, Cambridge University Press, 1996, trad. bras., 1997, Fundação Editora UNESP. 16 Discours de la méthode, cit. p. 44.

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juzga es el soberano, que tiene la representación de la república. El juez subordinado debe

considerar la razón que movió a su soberano a hacer esa ley, a fin de que su sentencia sea

acorde con ella, y entonces será la sentencia de su soberano; en otro caso es la suya propia,

e injusta"17.

9. No campo propriamente do processo civil, a "geometrização" do Direito

foi difundida por Savigny que, em seu desprezo pelo caso, foi ao extremo de escrever: "Pero

quien haya observado com atención casos litigiosos se dará cuenta fácilmente de que esta

empresa ha de ser infructuosa, porque los casos reales presentan diversidades más allá de

lo imaginable. Precisamente en los códigos más modernos se ha abandonado por completo

todo esfuerzo por aparentar esta integridad material, sin que se la haya sustituido por ninguna

otra cosa. Y evidentemente tal integridad puede conseguirse de otra manera, que puede

explicarse mediante una expresión técnica de la geometria. En efecto, en cada triángulo hay

datos conocidos, de cuya combinación se infiere necesariamente todos los demás: por

ejemplo, mediante la combinación de dos lados y el ángulo compreendido entre los mismos,

está dado el triángulo. De modo análogo, cada parte de nuestro Derecho tiene fragmentos

tales que de ellos se derivan los demás: podemos llamarlos los principios rectores"18. Como

observou agudamente Franz Wieacker, a fuga do Direito rumo ao formalismo, desligando-se

da realidade social, representou uma "trágica opção-chave"19.

10. Derivam desse paradigma os obstáculos para a construção de uma

autêntica tutela preventiva. Com efeito, costuma-se distinguir as funções atribuídas a cada

um dos três poderes do Estado, nos regimes democráticos representativos, dizendo que os

legisladores têm a missão de prover para o futuro, aos administradores incumbe cuidar do

presente, enquanto os juízes têm por missão "consertar" o passado.

A razão para isto é facilmente compreensível. Se a função do magistrado é

descobrir a "vontade da lei", para aplicá-la ao caso concreto, não lhe será possível fazê-la

17 Leviathan, Cap. XXI, 7, trad. de 1983, Madrid (consultar sobre esta questão a Quentin Skinner, Razão e retórica na filosofia de Hobbes, Cambridge 1996, tradução de 1997, Ed. UNESP/ABDR. 18 De la vocación de nuestra epoca para la legislación y la ciencia del derecho (1814), trad. de 1970, Aguilar Ediciones, Madrid, p. 64. 19 Historia do direito na idade moderna, 2ª edição alemã, Gulbenkian Lisboa, 1980, p. 458.

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incidir sobre fatos ainda não ocorridos, pois, como advertira Savigny, os casos concretos

oferecem uma desconsertante diversidade de aspectos e circunstâncias que tornam impossível

aplicar-lhes "regras uniformes".

Isto determina que toda tutela preventiva deva necessariamente apoiar-se num

juízo, mais ou menos intenso, de probabilidade, no qual a certeza matemática cederá lugar

aos juízos de verossimilhança. Se o magistrado deve prover para o que possa ocorrer no

futuro, a sentença terá de sustentar-se em juízos hipotéticos. Em última análise, seu juízo

será, nestes casos, necessariamente condicional, com o risco de a sentença não representar

a vontade do legislador, mas a "vontade do juiz", de modo que, dizia Hobbes, seria por

definição "injusta". A dificuldade encontrada pela tutela preventiva reside nisto.

11. Os obstáculos enfrentados pela doutrina, caudatária do paradigma

racionalista, tornam-se claros quando se examinam as frustradas tentativas de construção de

uma tutela que deveria ser preventiva, através do processo cautelar, de tipo italiano. O

fracasso da empreitada é total, como temos mostrado em outras ocasiões. O mesmo ocorre

com as medidas antecipatórias, recentemente introduzidas no processo brasileiro.

No que diz respeito a estas últimas, como seria de prever, ou o sistema

recusa-se a atribuir-lhes a natureza de um autêntico "julgamento sobre a lide", para

considerá-lo "decisão sobre o processo" não sobre o meritum causae; ou, no primeiro

caso, quando se cuida daquele tipo especial de tutela dita cautelar, o paradigma impõe que

se o tenha como um "pedaço" do processo principal, parcela que, como na hipótese

anterior, igualmente consistirá numa antecipação, à espera de sua confirmação ou rejeição,

pela sentença final. Quer dizer, o sistema não pode prescindir de um processo principal,

em que a "cognição exauriente" dará ao juiz as condições para descobrir a "vontade da lei".

Mas − e isto é que importa quando se procura conceituá-las −, as medidas

cautelares que descendem da matriz italiana, são efeitos da sentença principal (de

procedência) que se antecipam. Na verdade, são medidas antecipatórias, rigorosamente

idênticas àquelas introduzidas no processo brasileiro, pela Reforma de 1994, indicadas,

agora, por seu verdadeiro nome.

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12. Quem tiver o cuidado de investigar a história do chamado processo

cautelar do moderno direito italiano, a partir de Chiovenda, verá que a doutrina nunca se

afastou do princípio segundo o qual aquilo que os processualistas peninsulares denominam

"provimento" cautelar, não passa de tutela antecipatória de algum efeito da sentença de

mérito de um processo satisfativo, construído com plenitude de cognição ou, como se diz

no Brasil, com "cognição exauriente", de modo que a tutela que se antecipa possa ser

absorvida pela sentença de mérito − que haverá de ser, para o sistema, a última manifestação

do julgador − se porventura se confirme ser essa a "vontade da lei"; ou a revogue se o

julgador convencer-se de que a aparência do direito que servira de fundamento para a

concessão da tutela antecipada, não se confirmar na instrução da causa.

A confirmação da liminar será sempre sua reabsorção no conteúdo da

sentença de mérito. Aquilo que o sistema tivera por simples decisão interlocutória − algo

que não dizia respeito à lide, e sim ao processo, enquanto medida liminar − agora incorpora-

se à sentença como uma parcela da lide. O que fora interlocutória torna-se mérito...!

Para sermos mais precisos, a chamada tutela cautelar do direito italiano,

copiada pelos sistemas latino-americanos, é uma forma de proteção que o juiz "empresta",

antecipando uma parcela da provável sentença de procedência. Rigorosamente ele não a

concede. Em nosso direito, há um monumento que o Código de Processo Civil erigiu como

testemunho desta realidade. É o art. 811 que pune o litigante que, obtendo a tutela

supostamente cautelar, venha a perder a demanda principal, impondo-lhe o dever de

indenizar o adversário, independentemente de culpa. Quer dizer, a tutela que fora

"emprestada", porque o juiz considerara a medida concedida, sob forma de liminar, como

correspondendo à presumível "vontade do legislador", terá de ser "devolvida" com "juros"

ao adversário, quando o julgador se convença de que seu provimento não passou de

"vontade do juiz", não "vontade da lei", conseqüentemente, por definição, injusta (Hobbes).

13. Chiovenda considerava a ação cautelar uma "ação mera", na verdade,

"ação do Estado", uma vez que, tendo existência atual, "quando ainda não se sabe se o

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direito acautelado existe", não se poderia, segundo ele, atribuir ao réu uma obrigação de

cautela, já existente "antes do despacho do juiz"20 (Seria mesmo "despacho", ou sentença !?).

Está aqui revelada a natureza repressiva disso a que o mestre italiano

dava o nome de "medida acautelatória". O juiz, segundo Chiovenda, somente poderia

reconhecer uma "obrigação de cautela" se houvesse − "antes do despacho do juiz" − um

vínculo jurídico capaz de obrigar o demandado. O juiz somente poderia manifestar-se

sobre obrigações constituídas antes de seu despacho. Portanto, as "medidas acautelatórias"

não poderiam proteger um "direito provável" da parte. Não havendo, "antes do despacho",

direito algum vinculando os litigantes, não se poderia, segundo Chiovenda, atribuir ao réu

um "dever de cautela", porquanto a função do juiz deveria limitar-se a "consertar" o

passado, sendo-lhe vedado reconhecer um "dever de segurança" dirigido ao futuro. Se a

jurisdição segundo essa doutrina, deve ser apenas declaratória, então a lide haverá de dizer

respeito à relações jurídicas pretéritas, nunca conflitos projetados para o futuro. Como

dissera Chiovenda, a obrigação a respeito da qual o juiz deve pronunciar-se terá de nascer

"antes da sentença". Isto torna impossível conceber um "dever de segurança" destinado a

proteger conflitos inexistentes no momento de ter início o litígio. Não foi por outra razão

que Calamandrei, num conhecido ensaio21, comparou o labor do juiz ao do historiador,

enquanto ambos se dedicam a investigar o passado.

Este é o núcleo da tenaz resistência oposta pela doutrina contra a existência de

um "direito substancial de cautela", que não vem ao caso agora discutir. Basta-nos mostrar

a dificuldade encontrada por Chiovenda em conceber uma tutela preventiva. Se ela tiver

de ser preventiva, então haverá de ser necessariamente antecipatória (de uma tutela

repressiva de natureza, no máximo, repristinatória do statu quo ante, quando não apenas

indenizatória).

14. Embora a doutrina não se tenha preocupado com isso, a verdade é que

Calamandrei − o discípulo de Chiovenda que propagou para o mundo latino sua teoria da

tutela cautelar − nunca escondeu o caráter "antecipatório" que ele emprestava a esta espécie

de tutela processual. Em seu célebre ensaio sobre "provvedimenti cautelari", Calamandrei

20 Istituzioni di diritto processuale civile, vol. I, nº 82.

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dividia-os em quatro grupos, dos quais o mais relevante consistia precisamente nos

provimentos que antecipavam efeitos da sentença de mérito, quando não antecipavam o

próprio mérito. É o conhecido "terceiro grupo" de provimentos, supostamente cautelares,, nos

quais, dizia Calamandrei, "il provvedimento cautelare consiste proprio in una decisione

anticipata e provvisoria del merito"22.

Como se vê, a doutrina presta tributo ao racionalismo sempre que se defronta

com alguma categoria jurídica, particularmente processual, que não tenha o selo da

definitividade; ou, quem sabe, como diriam Satta e Proto Pisani, o "selo da eternidade". A

medida cautelar, para ela, é dependente por ser provisória. . .! Como, imagina-se, alguma

coisa provisória poderia ser terminal, autônoma, independente, no plano processual, sem

que se caia na justiça do juiz", tão temida por Hobbes? Sendo assim, não é de estranhar que

Adolfo di Majo conhcido civilista italiano, considere a tutela possessória l´énfant terrible,

do sistema de tutelas processuais, precisamente porque, segundo ele, a tutela possessória "è

pur sempre una tutela interinale e provvisoria (a fronte di quella data in sede petitória)"23.

Verifica-se que a doutrina italiana cristalizou-se no século XIX, repetindo Jhering24 e

Dernburg25, que julgavam que o litígio possessório e a (eventual !) demanda petitória

subseqüente formariam uma só lide. Como se vê, teoria da posse tornou-se, para o

normativismo europeu, a "hidra mitológica", como atesta Hans Hattenhauer26. Se lhe

cortavam a cabeça, outras sete apareciam. O paradigma, reduzindo o direito à norma, torna o

jurista incapaz de operar com a realidade.

É a natural conseqüência daquele "selo de eternidade", tão sonhado pelos

iluministas dos séculos XVII e XVIII, capaz de manter prisioneiros os juristas italianos, que

ainda não atingiram a verdade, para nós brasileiros elementar, de ter o juízo possessório como

definitivo e independente do (eventual!) juízo petitório posterior, de tal modo que a coisa

julgada material formada no possessório seja tão coisa julgada e tão definitiva quanto a que

se venha porventura a formar no petitório. E, mais significativo ainda: sem que haja conflito

21 Il giudice e lo storico, in Opere guiridiche, vol. I/393. 22 Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, CEDAM, 1936, nº 14. 23 La tutela civile dei diritti, 3º vol., Giuffrè, 1993, p. 118-199. 24 Fondement de les interdits possessoires - Études complémentaires de l´esprit du droit romain, trad. francesa de 1882, p. 82 e 86. 25 Pandette, vol. 1º. § 184, nota 8, tradução italiana, Turim, de 1907. 26 Conceptos fundamentales del derehco civil, trad. da edição alemã de 1982, Ariel Derecho, Madrid, 1987, p. 50.

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de julgados, precisamente porque a possessória é uma demanda parcial (sumária) − porém

autônoma −, que não toca as questões petitórias !

15. A premissa de Calamandrei, a respeito do caráter antecipatório da

tutela cautelar, como era de esperar, alargou seus limites, na doutrina posterior, que passou a

considerar antecipatórios todos os provimentos cautelares, a ponto de Ferrucio Tommaseo,

muitos anos depois, denominá-los, no subtítulo de sua conhecida monografia, "provimentos

antecipatórios"27. No Brasil, a introdução das "medidas antecipatórias", ao lado daquelas

que a doutrina sempre tivera como cautelares − conservadas no sistema −, tem gerado

grande embaraço à doutrina fiel à Calamandrei, pois tanto aquelas quanto estas, são

provimentos antecipatórios, de modo que as cautelares de tipo italiano, e as autênticas

liminares antecipatórias acabaram igualadas em nosso direito, tornando impossível aos fiéis

seguidores de Calamandrei distinguir as medidas urgentes decretadas com fundamento

no art. 798 daquelas outorgadas segundo o art. 273 do Código de Processo Civil. A

confusão entre inibitórias e tutela cautelar, ocorrida na doutrina italiana, a partir do primeiro

Código italiano unitário de 1865, por nós denunciada em obra anterior,28 caiu sobre o

direito brasileiro com a força de cento e cinqüenta anos de doutrina superficial e equivocada.

Essa assimilação entre medidas antecipatórias e cautelares parte do

equivocado pressuposto de que, para a concessão de qualquer delas, as exigências (fumus boni

iuris e periculum in mora) sejam idênticas, não obstante saber-se que a última delas nada

tem a ver com "tutela de simples segurança", portanto não satisfativas, como as

antecipatórias. Como temos mostrado em obras anteriores29, o "pericolo nel ritardo"

(periculum in mora), desde as fontes medievais, mas até mesmo no direito italiano atual,

nada tem a ver com as autênticas medidas cautelares, pois a tutela nos casos de "perigo na

demora" deve contar, necessariamente, com medidas antecipatórias, de que haverá de

resultar, também necessariamente, alguma forma de execução provisória (urgente), como, de

resto, vem expresso no inc. 2º do art. 642 do Código de Processo Civil italiano.

27 Provvedimenti d´urgenza - Struttura e limiti della tutela anticipatoria, CEDAM, 1983. 28 Do processo cautelar (1ª edição 1985, Ed. LeJur, Porto Alegre, 58 e sgts.).

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16. Dissemos inicialmente que o racionalismo constitui um dos pilares de

nosso sistema processual, mas é necessário examinar mais de perto essa relação. Vimos

como o sistema, através da concepção de uma forma de tutela que seria, ao mesmo tempo,

cautelar e antecipatória, acaba fazendo do processo cautelar uma porção da lide principal,

ao identificar a proteção de mera segurança às medidas que antecipam "efeitos da sentença"

final do processo satisfativo a que o processo cautelar, nessa perspectiva, deverá estar ligado

por um vínculo de dependência. Na verdade, o processo cautelar faria parte do processo

principal, gozando apenas de autonomia procedimental. Se não fora assim, como imaginar

que nele se encontre um "pedaço" da futura sentença do processo principal, cujos efeitos

ele antecipa? O "pedaço" que se destaca para formá-lo continua, segundo essa doutrina, a

pertencer à lide (única) principal. Este, como temos dito30, era o ponto de vista sustentado

por Carnelutti, que fez discípulos no Brasil, especialmente H. Theodoro Júnior31.

Por que o processo cautelar será, como diz o art. 796 de nosso Código de

Processo Civil, "sempre dependente" do processo principal? Tendo presente o compromisso

do sistema com o paradigma racionalista, não é difícil descobrir o motivo que impõe essa

dependência. Com efeito, se a função do juiz resume-se em revelar a "vontade do legislador",

então não lhe será permitido julgar com apoio em juízos de verossimilhança, pois tais

juízos corresponderiam, no máximo, à "provável" vontade da lei. O juiz, ao proferir uma

decisão de mérito, antes de havê-la descoberto, transformar-se-ia em legislador, caso se

revelasse depois não ser essa a "vontade da lei"; e a decisão corresponderia, como advertira

Hobbes, à "justiça do juiz", não à justiça da lei.

17. A doutrina encontrou solução ao problema da tutela outorgada a quem

não tivera ainda seu direito "certificado" (accertato) tendo-a como uma forma de tutela

"emprestada", sob o compromisso de que se investigue, na mesma relação processual, sob

contraditório "exauriente", se esse efeito que se "emprestara" corresponde realmente à

"vontade da lei". Na mesma relação processual.

29 Do processo cautelar, 3ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2001, p. 82 e sgts.; e Curso de processo civil, 3° vol., Rev. dos Tribs., São Paulo, 2000, p. 54 e sgts. 30 Cf. nosso Do processo cautelar, 3ª edição, 2001, p. 36. 31 Do processo cautelar, Livraria e Editora Universitária de Direito, São Paulo, 1976, n. 40.

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Mesmo que a burguesia tenha conquistado o poder sob o escudo da mais

notável ação sumária − com inversão do contraditório −, representada pelo título executivo,

ela própria cuidou de estreitar o princípio do contraditório, a tal ponto que nós brasileiros

inscrevemos na Constituição o princípio da "ampla defesa", com exclusão do contraditório

diferido e do contraditório eventual, que fora a arma responsável pela maior revolução no

direito processual civil, através da criação dos títulos executivos. Tendo eliminado as demais

formas de contraditório, acabamos, como é natural, por transformar em ordinárias todas as

demandas, pois sem liminares de mérito todas ela tornam-se ordinárias, dada a relação

essencial entre contraditório prévio e ordinariedade.

Daí a advertência de Sergio Chiarloni, aludindo a uma lição de Cappelletti, de

que "la procedura ordinaria corrisponde alle preferenze ideologiche e alle esigenze materiali

di gruppi già fermemente consolidati nel potere"32; para ressaltar que a grande revolução

ocorrida no Direito moderno, não se deveu ao lento e pesado procedimento ordinário, mas a

uma gloriosa tutela sumária, representada pelo título executivo, instrumento oferecido pelos

juristas para a construção do capitalismo industrial. A concepção do titulo executivo, no

direito medieval, é o testemunho mais eloqüente desta verdade elementar. É bom ter presente

que esse tropismo pelo contraditório prévio (audiatur et altera parte), é apenas uma

extensão ideológica da matriz racionalista, que reduz a jurisdição à mecânica descoberta da

"vontade da lei".

18. Esta é a razão pela qual o sistema expurgou todas as formas de tutela

sumárias, optando pela generalização do procedimento ordinário. A partir desta premissa,

a doutrina eliminou de seu horizonte conceitual as formas de contraditório diferido e,

especialmente, de contraditório eventual, para consagrar o contraditório prévio, como única

forma legítima de contraditório.

O direito brasileiro, submisso à premissa racionalista, como dissemos, foi ao

extremo de erigir em princípio constitucional, a exigência de "plenitude de defesa", com total

e absoluta eliminação da possibilidade de cisão entre a ação e as respectivas exceções,

como se dá no chamado "contraditório eventual", mesmo que esta técnica, como

32 Introduzione allo studio del diritto processuale civile, Ed. Giappichelli, Turim, 1975, p. 24.

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mostramos em outro lugar33, exista no processo executivo obrigacional, que sequer

admite defesa.

19. O que se disse, a respeito da exclusão das demais formas de

contraditório, quando se privilegia a ordinariedade, poderia parecer exagero, pois o

sistema convive bem com inúmeros exemplos de procedimentos capazes de produzir

medidas liminares, que é a forma comum de "contraditório diferido". Não há, porém, qualquer

exagero nessa assertiva. Se investigarmos o modo como a doutrina e a prática dos tribunais

compreendem essas liminares, veremos que elas somente são aceitas pelo sistema sob a

condição de não serem consideradas "decisões sobre a lide" − alguma coisa que pudesse ser

considerado julgamento (de mérito) antecipado.

Nem essa forma branda de inversão de contraditório é aceita pelo pensamento

formado sob o signo da ordinariedade, tanto que a doutrina recusa-se a considerar as

medidas liminares como um provimento de mérito. A resistência, na verdade, é mais radical:

dizem os processualistas que nem mesmo "julgamento" existe nessas liminares, que não

passam de "decisões interlocutórias" − provimentos sobre o processo, não sobre a lide.

20. Dissemos que o sistema "ordinarizou-se", eliminando a possibilidade

de que haja eventuais decisões de mérito em provimentos liminares. Com efeito, é essencial

ao procedimento ordinário o contraditório prévio, segundo o qual o juiz somente poderá

julgar depois de ter ouvido ambas as partes, porque somente assim estará habilitado a

"descobrir a vontade da lei", apreciar o meritum causae, o que pressupõe "cognição

exauriente" dos fatos da lide. Nosso Código de Processo Civil levou ao exagero seu

compromisso com a ordinariedade, ao dispor em um de seus artigos que "sentença é o ato

pelo qual o juiz põe termo ao processo" (art. 162, § 1º). Para o sistema, não pode haver

sequer "julgamento provisório". Julgar provisoriamente é não julgar. Para o sistema, não

há decisão provisória sobre a lide. Na verdade, decidir provisoriamente é nada decidir.

33 O contraditório nas ações sumárias, na obra Da sentença liminar à nulidade da sentença, Forense, 2001.

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Qual o princípio capaz de explicar esta doutrina tão singular? Precisamente a

idéia de que a missão do juiz reduz-se a ser o "oráculo da lei", cabendo-lhe apenas revelar-

lhe a "vontade", tarefa que pressupõe a exigência disso que nossa doutrina indica como

"cognição exauriente". Somente após esse contraditório amplo, o julgador estaria em

condições de "verbalizar" (enquanto "bouche de la loi") a "vontade da lei".

Há uma relação oculta e não tematizada entre essa "cognição exauriente" e os

"processos totais" de Carnelutti34, veículos para demandas plenárias − diga-se com outras

palavras: demandas não sumárias, pelo corte de determinadas exceções −, em que o

princípio constitucional da "plenitude de defesa" seja fielmente observado35.

Esta relação entre "cognição exauriente" e "plenitude de defesa" passa de

"contrabando", sem que aqueles que as empreguem tenham uma plena consciência dessa

interdependência, não obstante sua decisiva relevância, como arma utilizada para o expurgo

das ações materialmente sumárias, que pressupõem, justamente, alguma forma de cognição

"não-exauriente" sobre os fatos da causa.

21. Se investigarmos as raízes ideológicas que sustentam nosso paradigma,

veremos que o Direito moderno, a partir das filosofias do século XVII, passou a priorizar o

valor "segurança", como a exigência fundamental para a construção do moderno "Estado

Industrial". Como disse um notável escritor inglês36, a ciência jurídica moderna instituiu,

como tarefa fundamental, "domesticar o azar", conseguir no Direito resultados tão seguros

quanto poderá sê-lo a solução de um problema algébrico. Antes de Savigny "geometrizar" o

Direito, criando um "mundo jurídico", distante das "no imaginables diversidades" do caso

concreto e, portanto, da realidade social, Leibniz, dissera que, não apenas o direito, mas

a própria moral, seriam ciências tão demonstráveis, quanto qualquer problema matemático37.

34 Lezioni di diritto processuale civile, CEDAM, 1926, Pádua, vol. IV, p. 21 e sgts. 35 Este ponto foi objeto de nossa análise na obra Da sentença liminar à nulidade da sentença, p. 25 e sgts. 36 Jon Elster, Juicios salomónicos - Las limitaciones de la racionalaidad como principio de decisión, Cambridge, 1989, tradução de 1995, Gedisa Editorial, Barcelona, p. 40 e sgts. 37 Ensaio acerca do entendimento humano, trad. bras. 1973, Cap. III, n. 18.

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22. Dentre as hipóteses examinadas por Elster, a mais sugestiva é sem

dúvida o caso relativo à guarda dos filhos nas ações de separação judicial ou divórcio.

Nestes conflitos, o antagonismo de interesses aflora com tonalidades emocionais

verdadeiramente dramáticas. Em geral, cada um dos genitores luta denodadamente para

obter a posse dos filhos, pois, como diz o jurista, os pais, em muitos casos, consideram os

filhos uma extensão de suas personalidades. Entretanto, poderá não ser conveniente aos

menores que eles permaneçam sob a guarda de nenhum dos genitores. Estabelece-se,

portanto, um conflito triangular de interesses que ao juiz cabe resolver. Segundo que

critérios, porém, terá de fazê-lo? Com o sacrifício do legítimo interesse psicológico, afetivo

e moral dos pais de tê-los sob a guarda, ou haverá um limite para o sacrifício desses

interesses? Diz o jurista: " El niño requiere protección especial. Sin embargo, esa protección

no debe implicar pequeñas ganancias en el bienestar de niño obtenidas a expensas de

grandes pérdidas en el bienestar parental" (p. 122). O filho menor de seis anos ficará,

sempre, mais protegido quando confiado à guarda da mãe? Quando ele atingir a maioridade,

essa solução será necessariamente confirmada como a mais adequada?

Para ter-se uma pálida idéia da complexidade temática envolvida no problema

de Elster, tenha-se presente a observação do jurista de que o próprio tempo necessário

para que o juiz possa dispor de "cognição exauriente", descobrindo a problemática "vontade

da lei", poderá causar danos consideráveis ao menor, pois, nestes casos, "el divorcio parece

ser más dañino para la salud mental de los niños cuando la disputa es reñida" (p. 125).

A "vontade da lei", como é sabido, é priorizar o interesse do menor. Porém,

somente depois de alguns anos se poderia arriscar − apenas arriscar − uma avaliação da

alternativa que for adotada. Como poderá o juiz saber − hoje − se a solução de retirar o

filho do poder dos pais, para interná-lo numa instituição social, mostrar-se-á a melhor, dez

ou quinze anos depois, para o desenvolvimento físico e mental do menor?

Haveria, em tais casos, possibilidade de pleno conhecimento dos fatos e

das incontáveis variáveis independentes que o condicionam, capaz de corresponder ao que a

doutrina considera "cognição exauriente" dos fatos, das tendências e expectativas futuras, das

inclinações e temperamento que irão moldar o caráter do homem adulto, em que esse menor

se terá transformado? Ou, ao contrário, a chamada "cognição exauriente" apenas confirma

que a jurisdição cuida do passado, qual historiador, não estando apta para lidar com a tutela

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preventiva? "Cognição exauriente" não será uma singela expressão do princípio dispositivo,

que amarra, ou pretende amarrar, a cognição do juiz aos fatos conhecido e provados nos

autos (Allegata et probata partium iudicare debet)? Neste caso, a tutela que seria preventiva

fica soldada irremediavelmente ao passado, já que, nas autênticas tutelas preventivas, diz

Elster, o juiz estará navegando no domínio do mais puro indeterminismo das possíveis

conseqüências (p. 116), pois lhe serão negados os fatos, especialmente ser-lhe-á recusado

conhecer a moldura circunstancial que lhe dará, no futuro, a sonhada racionalidade

matemática.

Esta é a razão que explica a transferência para a chamada "jurisdição

voluntária" dos casos em que o julgamento se baseie em juízos discricionários, orientado por

critérios de simples conveniência, sob a falsa ilusão de que os verdadeiros juízos

jurisdicionais não seriam, em proporção de menor ou maior relevância, igualmente

discricionários. É assim que, em nosso sistema, o magistrado da jurisdição comum, mesmo

que se apoie em critérios de conveniência, finge ideologicamente decidir com a

racionalidade matemática que o paradigma lhe impõe. Esta é uma das tantas armas de

que o paradigma se vale, contra as eventuais exceções que o infirmem38. É o mesmo

mecanismo de autopreservação paradigmática que faz, por exemplo, com que o sistema

conviva com tutelas interditais, como as "medidas antecipatórias" de nosso direito,

fingindo, porém, tratarem-se de simples medidas interlocutórias, que não digam respeito

ao meritum causae. Com este expediente, preserva-se o princípio fundamental imposto

pelo paradigma, qual seja o de que ao juiz somente é permitido julgar com base em

"cognição exauriente". Quanto às demais decisões, particularmente aquelas sobre as

liminares (de mérito), finge-se que não chegam a ser julgamentos sobre a lide.

23. Indicamos acima (n. 13) a dificuldade encontrada pela doutrina de

aceitar a existência de um "direito substancial de cautela". É necessário, porém, ampliar o

exame deste ponto. A objeção levantada contra um "direito material à segurança" decorre,

a nosso ver, do mesmo paradigma racionalista, que veda os julgamentos fundados em

verossimilhança, a não ser quando − na mesma relação processual − uma sentença tomada

38 Sobre o conceito de paradigma por nós empregado, consultar Thomas Kuhn, especialmente em duas de suas obras fundamentais: a) A revolução copernicana, trad. portuguesa, 1990, Edições 70, Lisboa; b) A estrutura das revoluções científicas, trad. bras., 1975, Editora Perspectiva, São Paulo.

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sob "cognição exauriente" proclame a correção do julgamento provisório, revelando essa

inefável "vontade da lei", concebida com a ingênua intenção de impedir a criação

jurisprudencial do direito, que foi a grande esperança dos iluminados legisladores e filósofos

do século XVIII e dos legisladores do século seguinte. A ambiciosa criação de um mundo

social em que os homens não seriam mais dirigidos pelos homens, e sim pelas leis,

acabou por submeter os homens às suas máquinas, conseqüência, de resto, imanente

como tendência profunda, nascida com a idéia de "matematização" do direito e das demais

ciências do espírito, como instrumento da mais abjeta de todas as tiranias.

Se deixássemos aos aplicadores da lei qualquer margem de discricionariedade

que pudesse legitimar duas ou mais soluções diferentes contidas na norma, teríamos, com

certeza, como dissera Max Weber, impedido a "ascensão do Estado absoluto"39, do

asfixiante estado burocrático, centralizador e regulamentar em que se transformou a sociedade

contemporânea.

Mas não basta a existência dessa condição para explicar a resistência oferecida

pela doutrina ao reconhecimento de um direito material à segurança. Se quisermos

compreendê-la em toda sua extensão, é necessário recordar que o sistema eliminou a

possibilidade das "demandas parciais", nas quais "fracionam-se" a ação e as respectivas

exceções, de modo a formar, com estas, uma nova demanda igualmente parcial. Esta

questão foi examinada por nós no estudo anteriormente referido40, elaborado para mostrar

que nosso sistema tem uma especial predileção pelos processos que contenham o que

Carnelutti indicava como "processos totais", precisamente aqueles que, contendo "lides

integrais" − despreocupados com o tempo necessário para compô-las −, ainda pressupõem

a "plenitude de defesa".

24. A técnica de "parcialização" ou sumarização de lides é tão conhecida

e antiga quanto as mais remotas fontes romanas. Basta ver a relação entre os juízos

interditais do direito romano clássico e o "procedimento ordinário" das actiones, para ter-se

uma imagem precisa do que são processos sumários autônomos, nos quais as questões que

demandassem investigação probatória demorada e complexa − e que, por isso não se

39 "A política como vocação" in Ensaios de Sociologia, trad. bras., Zahar Editores, 5ª edição, 1992, p. 115).

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pudessem resolver-se através de summaria cognitio, que era a função do Praetor − , seriam

relegadas para tratamento em processo independente posterior (actio ex interdicto).

A criação dos "títulos executivos" extrajudiciais, no direito medieval, seguiu

a mesma técnica, de "fracionamento" da ação executiva, extraindo-lhe as questões que

poderiam compor as respectivas exceções, para torná-las substância de uma demanda

independente, a ser proposta − através da inversão do contraditório − pelo demandado,

agora transformado em autor, perante o processo executivo.

25. Seria possível conceber solução análoga fazendo com que nossas

liminares de antecipação de tutela adquirissem autonomia procedimental, passando a

constituir uma demanda preliminar independente, como ocorre com os falsos procedimentos

cautelares do modelo italiano, com a única − porém relevantíssima − diferença de

que, tal como na ação de embargos do executado, inverter-se-ia o contraditório, dando

autonomia ao juízo sumário, de modo a gravar a parte que nele sucumbisse com o ônus

de iniciar a demanda plenária subseqüente. Isso significaria generalizar (democratizar) o

privilégio executivo, eliminando a "elitização" desse benefício ao qual têm acesso, no direito

moderno, apenas as classes dominantes. Além da criação por lei e pelo negócio jurídico,

queremos sugerir a criação jurisprudencial de títulos executivos, fundados na mesma

verossimilhança que sustenta seus homônimos.

Por que esta solução mostra-se tão penosa para nossa doutrina? As razões

são conhecidas: a vitória no sumário, sem que o juiz tenha acesso à "cognição exauriente",

poderia resultar na proteção de alguém declarado sem razão, depois no juízo plenário,. A

autonomia do sumário permitiria que o juiz decidisse com base em juízo de verossimilhança,

aplicando não a "vontade da lei", mas a justiça do juiz (Hobbes), coisa que nosso

racionalismo não pode sequer imaginar, quanto mais permitir. O que existe de tutela

autenticamente preventiva no juízo cautelar impede que a doutrina o aceite na plenitude

de suas conseqüências, a comprovar, também aqui, a impossibilidade de tutela processual

que não se funde em "cognição exauriente", portanto, tutela que protege o passado, nunca

preventivamente o futuro.

40 O contraditório nas ações sumárias.

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26. As considerações precedentes autorizam-nos a concluir que o sistema

processual em vigor, enquanto se mantiver preso ao paradigma racionalista, supondo que a

norma jurídica tenha univocidade de sentido, permanecerá ancorado no férreo

dogmatismo que o tem dominado, impedindo a aceitação do raciocínio hermenêutico,

mesmo que as modernas correntes de Filosofia do Direito não mais duvidem deste caráter da

ciência Jurídica.

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