racionalidade e organizaÇÕes -...
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RACIONALIDADE E ORGANIZAÇÕES
O Fenômeno das Organizações Substantivas
Volume I e II
Maurício Serva
Escola de Administração de Empresas de São Paulo Fundação Getúlio Vargas
Tese de Doutorado 1996
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SERVA DE OLIVEIRA, Maurício Roque. Racionalidade e organizações: o fenômeno das organizações substantivas. São Paulo: EAESP/FGV, 1996. 633p. (Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação da EAESP/FGV, Área de Concentração: Organização, Planejamento e Recursos Humanos). Resumo: Sob a perspectiva geral da emancipação do homem no âmbito do trabalho, trata do tema da racionalidade em organizações produtivas, enfocando-o mediante a abordagem substantiva da organização, conforme proposta por Guerreiro Ramos. Empreende a complementaridade entre essa abordagem de Guerreiro Ramos e a teoria da ação comunicativa, de Habermas, donde elabora um quadro de análise, através do qual, examina empiricamente três empresas de Salvador, Bahia, com o intuito de demonstrar como a razão instrumental e a razão substantiva se concretizam na prática administrativa. Daí, define organizações substantivas e, estabelece uma escala de intensidade de racionalidade substantiva que pode ser aplicada para a análise de qualquer organização produtiva. Palavras-Chaves: Racionalidade Substantiva — Organizações Substantivas — Teoria das Organizações — Emancipação.
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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO
MAURÍCIO ROQUE SERVA DE OLIVEIRA
RACIONALIDADE E ORGANIZAÇÕES: O fenômeno das organizações substantivas
Tese apresentada ao Curso de Pós- Graduação da EAESP/FGV Área de Concentração: Organização, Planejamento e Recursos Humanos como requisito para obtenção do grau de doutor em Administração. Orientador: Prof. Peter Kevin Spink
SÃO PAULO 1996
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AGRADECIMENTOS
Este texto é fruto de um esforço coletivo. Ele marca, exatamente, dez anos de minha
dedicação ao estudo das organizações substantivas. Nesse período, contei com valiosas
contribuições de inúmeras pessoas, vindas de espaços e tempos os mais diversos, sem as
quais este trabalho jamais se concretizaria.
Tal reconhecimento, me causa felicidade e dor, ao mesmo tempo. Felicidade, por me
sentir como uma via de expressão da esperança de tantas pessoas, que crêem firmemente
na possibilidade do trabalho em organizações se constituir uma fonte de autorealização
humana. Dor, por não conseguir, neste momento, lembrar-me dos nomes de todas essas
pessoas e, assim, não fazer o devido e merecido agradecimento. Resta-me, ao menos, o
reconhecimento de que todos aqueles que contribuíram, verdadeiramente fazem parte
deste trabalho.
A primeira pessoa a quem agradeço, é o amigo-irmão Pedro Jaime Júnior. Pesquisador
de grande brilho, cientista social de profunda sensibilidade. Acima de tudo, um amigo-
irmão em que pude me apoiar em todos os momentos da elaboração deste trabalho, não
importando a distância física que, durante anos, marcou as nossas trajetórias. Pedro,
além de empreender toda a pesquisa de campo comigo, foi a pessoa com a qual pude
“pensar” aquelas realidades visitadas; nesse sentido, suas críticas, sugestões e os textos
que ele me forneceu até o último instante, foram fundamentais para tudo o que virá nas
próximas páginas. Paralela e, curiosamente, confesso que sou grato à oportunidade de
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realizar este trabalho, sobretudo por ela ter me dado a chance de aprofundar a amizade
com um ser humano do quilate de Pedro Jaime Júnior.
Allain Joly, foi muito mais que um co-orientador durante os dois anos que passei em
Montreal. O calor humano, o apoio, a energia que brota da sua pessoa e que nos faz ter
forças para enfrentar as dificuldades da vida, foram tão importantes quanto a
perspicácia, a inteligência e a competência científicas pelas quais ele orientou os meus
passos.
Ao professor Peter Spink, os meus mais sinceros agradecimentos, por ter aceito me
orientar — como já o fizera durante o meu mestrado — num projeto de estudos
audacioso e inovador, o que certamente causaria incômodos a outros membros da
academia.
Com Guilhermo Ruben, cientista de renome internacional, pude não só aprender
elementos essenciais da maravilhosa ciência da antropologia, como também consolidar
definitivamente a certeza de que viver vale à pena, uma vez que podemos encontrar seres
humanos como ele.
A Antonio Sérgio Fernandes e a Geraldo Bahiense, amigos-irmãos que também trilham o
caminho da ciência, agradeço-os de coração, pela força humana e incentivo intelectual
que vocês nunca cessaram de me dar.
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“Para não dizer que não falei de flores”... felizmente, elas estão aqui: Carolina, teu
amor e tua energia espiritual me trouxeram a paz interior e a fé, justamente durante a
fase crucial do trabalho — a redação.
Outras flores também contribuíram muito: Marizilda Faia, sempre me ensinando a viver;
Maria Teresa Ribeiro, com a sua inesgotável disposição para ajudar; Luciana Garcia,
com a sua ternura e apoio permanentes.
Como frisei acima, pessoas, de vários lugares, me ajudaram bastante. De Caracas,
Santiago Bilbao, antropólogo que dedicou a sua vida ao estudo e ao desenvolvimento de
organizações emancipatórias na América Latina e, Hebe Vessuri, muito me auxiliaram
com materiais e depoimentos sobre as iniciativas emancipatórias no nosso continente.
Santiago Bilbao é uma ilustração da “história viva”, de páginas apaixonantes da
história recente dos povos latinoamericanos em sua busca pela libertação.
A Montreal, cidade que, definitivamente, conquistou o meu ser, o meu muitíssimo
obrigado. De lá vieram grandes contribuições. Na École des Hautes Études
Commerciales, os professores Thierry Pauchant, Omar Aktouf, Jean-Pierre Dupuis,
Jean-François Chanlat e Alain Chanlat, acreditaram na minha proposta e a ela
agregaram valorosas adições e questionamentos; também os pesquisadores brasileiros
que encontrei na HEC, Luiz Bignetti, Norberto Hoppen e, particularmente, Juvêncio
Braga de Lima (com o seu belíssimo conceito de “cotidiano administrativo”), muito me
ajudaram. Na Université de Montréal, o professor Gabriel Gagnon, mestre que há
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muitos anos se dedica ao estudo das organizações emancipatórias no Québec, me deu
orientações e incentivos fundamentais; também agradeço ao professor Robert Crépeau,
com quem tive a oportunidade de me aprofundar no estudo da antropologia. Da
Université du Québec à Montréal, recebí do professor Jean Pasquero, epistemólogo de
primeira linha, orientações inesquecíveis sobre as questões epistemológicas com as quais
me debatia para a construção da argumentação e do encadeamento lógico do texto.
Aos membros de todas as organizações que foram pesquisadas no trabalho de campo, o
meu agradecimento caloroso. Sem a aceitação e a cooperação deles, não se teria a
condição de realizar este trabalho. Particularmente, gostaria de externar a minha
profunda gratidão a Kennedy Almeida, Alba, Rui César, Rô Reyes, Déa Freitas, Lígia,
Maria, Nair Spinelli, Kátia Nascimento e Fátima.
A todos que trabalharam comigo no Grupo de Pesquisas em Organizações Substantivas,
o qual fundei, na UFBA, em 1988 e, funcionou até 1993, o meu profundo agradecimento.
Boa parte do que está aqui, foi iniciado naquele Grupo.
Ao inesquecível amigo e, para sempre meu mestre, professor Ramon Moreira Garcia — a
quem dedico este modesto trabalho — o meu eterno agradecimento, por ter-me feito
redescobrir a essência humana da obra de Guerreiro Ramos — nosso grande inspirador.
Com o mestre Ramon, pude muito aprender sobre a racionalidade e organizações
substantivas, sobretudo como pautar a minha vida nesta racionalidade.
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Aos professores membros da banca examinadora desta tese: Peter Spink, Osmar Bertero,
Anita Kon, Anna Maria Campos e Guilhermo Ruben, os meus agradecimentos por terem
aceito participar deste evento. Gostaria de dizer que é uma honra contar com cientistas
desse quilate para o exame do meu trabalho; significa, para mim, um verdadeiro prêmio,
após todos esses anos de estudo do tema aqui abordado.
A Nilce e a Albertino, meus pais, por tudo.
Por fim, gostaria de terminar como comecei: reconhecendo que este é um trabalho
coletivo. Obrigado a todos que ajudaram, direta ou indiretamente, a sua realização,
muito obrigado por estarem aqui.
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SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................11 Capítulo I - Racionalidade e Estudo de Organizações.................................................39
Notas s/ abordagens da racionalidade em filosofia e em algumas ciências humanas ...40 A teoria da ação comunicativa ......................................................................................80 Racionalidade substantiva e análise organizacional em Guerreiro Ramos .................115 A revalorização do sujeito e da ação nas ciências humanas........................................130 Racionalidade substantiva e análise organizacional - estudos recentes no Brasil .......139 Delimitação da contribuição deste estudo ...................................................................157
Capítulo II - Organizações Substantivas.....................................................................168
Algumas iniciativas históricas.....................................................................................196 Organizações produtivas não convencionais de cunho emancipatórios......................180 Organizações substantivas...........................................................................................272
Capítulo III - O Trabalho de Campo ..........................................................................289 Capítulo IV - Constituição do Quadro de Análise .....................................................316
Razão substantiva e ação comunicativa - perspectivas de complementaridade ..........317 Quadro de análise ........................................................................................................337 Procedimentos operacionais ........................................................................................346 Considerações de ordem epistemológica.....................................................................355
Capítulo V - As organizações estudadas e seu contexto.............................................366
Apresentação das organizações ...................................................................................366 Notas sobre o contexto sócio-histórico da cidade de Salvador ...................................381
Capítulo VI - Análise da Casa Via Magia ...................................................................388 Capítulo VII - Análise da Espaço Lumiar ..................................................................461 Capítulo VIII - Análise da Espaço Aquarius..............................................................522 Capítulo IX - Uma visão de conjunto das três organizações .....................................559 Conclusões......................................................................................................................573 BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................593 A N E X O ......................................................................................................................616
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Introdução
Ao final do século XX, temos testemunhado o estabelecimento de determinadas
configurações materiais e tecnológicas verdadeiramente espetaculares no seio da
sociedade. O progresso da industrialização e o avanço técnico-científico proporcionaram
um grau de conhecimento sobre a natureza tal que o homem pôde transformá-la e moldá-
la, em muitos aspectos, na medida da satisfação de suas necessidades.
Nas últimas décadas, observa-se a mais recente “geração” do avanço tecnológico — a
revolução da informação — prometendo mudanças ainda mais profundas na esfera da
vida humana associada. Os sinais destas promessas já são mais do que claros, eles já
constituem evidências indiscutíveis: hoje, a chamada “aldeia global”, expressão criada
pelo sociólogo canadense Marshall McLuhan para designar um mundo integrado pela
comunicação tecnológica, já é realidade.
Ademais, é inegável o desenvolvimento dos meios de transporte, interligando facilmente
pessoas e grupos organizados que vivem em partes distantes do mundo, como também
das técnicas produtivas que cada vez mais substituem o esforço físico no trabalho.
Podemos perceber o grau de sofisticação atingido no conhecimento sobre as variáveis
inerentes ao mercado, bem como do comportamento do indivíduo enquanto consumidor.
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Todos esses fatores, aliados definitivamente à integração e volatização dos recursos e
mercados financeiros, desembocam numa conjuntura geral de interdependência
econômica e política mundial nunca antes vista. Tal fenômeno vem sendo chamado
“globalização”. A sua continuidade parece prometer novas configurações econômicas e
tecnológicas ainda mais espetaculares do que aquelas que testemunhamos presentemente.
Por outro lado, todo esse extraordinário avanço vem sendo acompanhado, notadamente a
partir dos anos 70, por uma crise multifacetada em âmbito mundial.
O espectro da crise é suficientemente amplo. Podemos apontar, apenas a título de
ilustração, os graves problemas representados pelo desequilíbrio ecológico, a crescente
desigualdade entre nações ricas e pobres, as desiguldades sociais também crescentes no
interior das nações, sejam pobres ou ricas, o desemprego crônico e os padrões de controle
social que a expansão da burocracia impõe aos indivíduos, comprometendo sobretudo o
alcance da autorealização individual.
Assim, o fantástico desenvolvimento das forças produtivas, que poderia ser um grande
passo para a emancipação do homem, parece tê-lo enclausurado sob novos e inusitados
grilhões. As necessidades humanas que orientaram o desenvolvimento do conhecimento
ao estágio atual, ao invés de representarem a alavanca da emancipação, tornaram-se
verdadeiras fontes de patologias sociais (Freitag & Rouanet, 1990). Se por um lado o
progresso do conhecimento trouxe mais riqueza e bem-estar material, sob outro ponto de
vista este mesmo progresso provocou e continua provocando mais desajuste no ser
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humano (Martins, 1994). Aquilo que poderia servir como meio de libertação do homem,
converteu-se em instrumento de dominação e infelicidade (Marcuse, 1982).
Segundo Toffler & Toffler (1992), à sensacional chegada da “Terceira Onda” de
revoluções, corresponde também a nova tintura da sociedade com as “cores da violência”,
designando por tal expressão, as manifestações agressivas de revolta dos grupos (cada vez
mais numerosos) impiedosamente excluídos do fenomenal estágio atual de progresso do
capitalismo tardio.
A dimensão das organizações produtivas neste contexto:
Neste complexo e paradoxal contexto, as organizações produtivas exercem um papel
crucial. Segundo Martins (1994), devido ao fato de que as organizações atuais são
sistemas construídos para atender às necessidades econômicas e administrativas da
sociedade, constituindo-se assim numa dimensão extremamante ativa dessa sociedade,
acabam por funcionar como uma segunda instância de socialização dos indivíduos. Essa
segunda instância de socialização implica a complementação dos processos educativos e,
é implementada pela submissão dos indivíduos aos procedimentos organizacionais de
reprodução cultural e de integração social.
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Por este ponto de vista, a organização produtiva, percebida através do conceito ampliado
de agente social, é considerada como um dos artífices principais na configuração desse
contexto ambíguo de desenvolvimento material/tecnológico em paralelo ao impedimento
à emancipação.
Mesmo um olhar desprentensioso para a condição humana no interior da maioria das
organizações produtivas poderá facilmente constatar que a vida nessas organizações não
parece espelhar o brilho e o fascínio difundidos por boa parte dos estudos administrativos,
tais como os de Peters & Waterman (1982), Ouchi (1981) e Archier & Sérieyx (1984).
Bem ao contrário, a vida nas organizações tornou-se um empecilho a autorealização
individual (Guerreiro Ramos, 1981). Para Dejours (1990), “beneficiário da produção, o
homem é frequentemente no mesmo movimento, vítima do trabalho.”
Abandonando o olhar desprentensioso e, consultando os estudos de diversos autores,
elaborados em várias partes do mundo, podemos encontrar uma literatura consistente,
dando conta do colapso da emancipação do homem no âmbito do trabalho, nos moldes
em que este é desenvolvido na ampla maioria das organizações produtivas
contemporâneas. As correntes são inúmeras, tal é a diversidade de aspectos e temas que
compõem essa complexa questão. Nem sempre todos os autores utilizam o termo
“emancipação”, mas o que emerge do conjunto dessas obras é, de fato, a preocupação
com a autorealização, a felicidade, a libertação, a satisfação, a autonomia, a igualdade, e
idéias correlatas, que revelam, no fundo, um humanismo voltado para a emancipação.
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Sem ter o objetivo de realizar um levantamento por demais amplo e, sim, apenas para
fornecer um panorama genérico que possa dar ao leitor uma idéia da riqueza e da
diversidade dessa literatura, podemos indicar alguns temas e autores:
O poder:
Por exemplo, a submissão, à qual se refere Martins (1994), imposta pelas organizações
aos indivíduos para viabilizar os processos de socialização, reprodução cultural e
integração social, é analisada criticamente por diversos autores sob o tema do poder nas
organizações. Mintzberg (1983, 1989) constata que grande parte das organizações
atingiram um estágio em que fica quase impossível administrá-las, pois elas tornaram-se
doentes de um management profissional, abstrato, onde o poder é exercido como um fim
em si mesmo.
Clegg (1992) reconhece a concentração de poder em mãos dos administradores mas,
chama a atenção que devido a complexidade das relações sociais, o poder está sujeito a
mudanças daí, a adoção de novas tecnologias não deve ser vista sempre como causa do
aumento de poder da administração.
Pagès (1979) notabilizou-se, dentre outros estudos, pela notável análise psicanalítica do
poder em grandes organizações. Dignos de destaque no campo de estudos sobre o poder
nas organizações, também numa perspectiva psicanalítica, são os trabalhos de Enriquez
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(1983, 1992). Thiry-Cherques (1993), ao examinar as lutas de poder, os impactos do jogo
e da manipulação nas organizações, conclui que “Erasmo elogiou a loucura esperando
que o relato da estupidez humana a fizesse desaparecer. Como sabemos, não teve
sucesso. Também a compreensão do político nas organizações não o fará desaparecer.”
A psicopatologia do trabalho:
Outros autores se concentraram nos efeitos da opressão que as organizações impõem aos
indivíduos, principalmente os efeitos desastrosos ao nível da saúde mental. Dejours
(1990) clama por uma psicopatologia do trabalho, no sentido de dar conta dos resultados
perversos do sofrimento humano nas organizações. Para o autor, a administração tem
mais um tipo de responsabilidade perante a sociedade civil: assegurar a manutenção de
um espaço público (de palavra e de decisão) nas organizações, onde se possa confrontar
opiniões de todos os segmentos, face não só às questões relativas a produção, como
também aquelas referentes ao sofrimento humano no trabalho.
Chanlat (1990) examina os fatores de stress no trabalho, demonstrando a relação de
vários deles com determinadas representações e práticas precisas da gerência. Chanlat
acredita que só a com a transformação das organizações se poderá “fazer do trabalho um
verdadeiro meio para a vida.”
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Os estudos de Aubert (1990) também se enquadram nesse grupo, a autora analisa vários
casos de neurose profissional, destacando algumas práticas gerenciais como um dos
fatores críticos de desencadeamanto de patologias psíquicas nas organizações,
notadamente o que ela denomina “gestão kleenex”, isto é, a prática de gestão que não
atribui nenhum valor humano aos indivíduos, usando-os e descartando-os ao bel prazer,
fazendo da ameaça permanente de dispensa um verdadeiro sistema de gestão de pessoal
(tão comum hoje em dia). A autora estabelece as diferenças conceituais entre a “neurose
profissional traumática”, “psiconeurose profissional” e “neurose de excelência”,
ensejando uma tipologia de patologias psíquicas no trabalho.
A discriminação da mulher:
Uma área de estudos digna de destaque é a que aborda os processos discriminatórios
contra a mulher no âmbito das organizações.
Tais estudos, dentre outros ângulos da questão, enfocam as barreiras ao acesso das
mulheres às posições de poder nas empresas, os preconceitos contra a mulher no
ambiente de trabalho, os mitos sobre a atuação e o desempenho que juntos estabelecem
expectativas diferenciadas para a mulher face ao trabalhador masculino. Abordam
também o grave problema das diferenças de remuneração entre os sexos e a dualidade de
papéis severamente exigidos para a mulher dona de casa - trabalhadora.
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Em profundidade, esses estudos revelam a porosidade da organização face à sociedade
que a contém. Os preceitos e preconceitos existentes no meio social mais amplo são
transferidos e confirmados no ambiente microssocial da organização. Podemos indicar
nesse grupo os trabalhos de Betiol & Tonelli (1991), Symons (1990), Giasson (1990) e
Belle (1990).
Crises e perda do sentido:
Fruto da nova configuração global a qual nos referimos acima, surge nos últimos dez anos
um particular domínio da teoria organizacional destinado a analisar a questão das crises
de grande amplitude geradas pela ação das organizações. Parte-se da premissa da
globalidade do efeito das ações das organizações e, portanto, também do seu efeito
profundo sobre o indivíduo. Os desastres e catástrofes que nos vêm à memória ao
ouvirmos os nomes de Bhopal, Tchernobil, ou Exxon Valdez, por si só já justificaria o
interesse dos estudiosos sobre o tema.
Desde 1984, o Center for Crisis Management, situado na Universidade do Sul da
Califórnia vem realizando pesquisas nesse campo, sendo seguido pelo Groupe d’Études
et de Recherche sur le Management et l’Écologie, na Escola de Altos Estudos Comerciais
de Montreal. Assim, podemos classificar os estudos em três estágios de desenvolvimento.
O primeiro estágio foi marcado pelo subtema das medidas de urgência e da gestão dos
efeitos das crises, abordagem característica dos estudos de Denis (1990) e Lagadec
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(1991). No segundo estágio, avança-se para uma concepção preventiva das crises e de
outros fatores paradoxais gerados pelas organizações, como a poluição. Aqui podemos
indicar os trabalhos de Denis (1993), Pauchant & Mitroff (1992), dentre vários outros.
A terceira geração aprofunda os parâmetros da gestão das crises e perpassa a questão da
busca do sentido perdido no trabalho, mesclando elementos de filosofia existencialista e
do paradigma científico da complexidade. Nesta atual fase, podemos indicar, dentre
outros, os trabalhos de Pauchant & Mitroff (1995) e Pauchant (1993). Para Pauchant &
Mitroff (1995), a resistência dos gerentes em enfrentar a realidade das crises não é um
fenômeno isolado, é mais uma das manifestações da enorme dificuldade de fazer face aos
problemas de natureza existencial em geral.
O anacronismo e a ideologia gerenciais:
Sob esta classificação bastante genérica, queremos fazer significar a crítica geral ao
caráter ultrapassado das teorias e modelos gerenciais de forte inspiração funcionalista que
ainda circulam nos meios acadêmicos e de divulgação.
As críticas vão desde a “desumanização” da administração, a denúncia ao caráter
ideológico da gerência e, até a repressão à palavra tão característica dos modelos
gerenciais tradicionais. Uma vasta gama de estudos têm sido realizados nessas direções,
entre os quais podemos citar os de Aktouf (1989), Chanlat & Dufour (1985), Chanlat &
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Bédard (1990), Serva (1993 b), Vergara & Branco (1993). Dentre os temas aqui
arrolados, esse talvez seja o que conta com maior número de estudos.
A abordagem da racionalidade:
Uma outra corrente a ressaltar é a da abordagem da racionalidade. A busca da
compreensão da razão, enquanto fundamento das ações humanas também no interior das
organizações produtivas, tem guiado o interesse de diversos pesquisadores. Uma boa
parte deles tem buscado no estudo da racionalidade predominante nas organizações mais
uma fonte de explicação dos processos opressivos de toda a ordem que impedem a
emancipação humana no trabalho, principalmente na sociedade moderna.
Os estudos de Guerreiro Ramos (1981), Symons (1990), Tenório (1990), Pizza Júnior
(1994), Martins (1994) e muitos outros se inserem no rol daqueles que visam examinar a
racionalidade que embasa as ações dos indivíduos nas organizações numa perspectiva
crítica.
Os temas e autores acima relacionados representam apenas um pequenino extrato do
vasto leque de opções para aqueles que desejem conhecer, através da literatura já
disponível, os problemas e deformações sociais e individuais causados pela ação das
organizações contemporâneas. Gostaríamos de insistir na informação de que, tanto a
quantidade de temas neste campo é bem maior do que a simples enumeração que fizemos
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há pouco, quanto a existência de autores dentro de cada tema em muito ultrapassa o
panorama geral aqui fornecido.
Este trabalho situa-se no bojo do tema referente aos estudos sobre a racionalidade nas
organizações. Dentro desta temática, queremos esclarecer que o nosso estudo situa-se no
mesmo plano daqueles que são guiados pela perspectiva da emancipação humana na
esfera do trabalho, mais precisamente no universo das organizações produtivas
contemporâneas. Portanto, a este tema vamos nos dedicar em seguida.
A racionalidade substantiva nas organizações:
O alicerce central de nosso estudo está fundamentado nas idéias de Guerreiro Ramos,
eminente sociólogo brasileiro que em vida, no ano de 1981, sistematizou as suas idéias
sobre o tema em questão através da “abordagem substantiva da organização”, a qual foi
apresentada pela publicação do seu último livro, intitulado A nova ciência das
organizações - uma reconceituação da riqueza das nações.
Antes de promover a apresentação das linhas gerais do estudo de Guerreiro Ramos,
gostaríamos, o quanto antes, de dar um aviso importante. É possível, eventualmente,
encontrar textos que utilizem a expressão “racionalidade substantiva” com outro
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referencial e dentro de outras perspectivas gerais. É o caso, por exemplo, do estudo de
Clegg (1990). Deve-se ter o cuidado de não confundir tal estudo com a proposta de
Guerreiro Ramos, pois eles apresentam diferenças essenciais entre si.
Em primeiro lugar, Clegg (1990) não trabalha com a mesma perspectiva geral daquela de
Guerreiro Ramos (e também nossa) — a emancipação humana — , essa não é a
preocupação central desse seu estudo e, sim as formas de adaptação das organizações
empresariais de alguns países do leste asiático aos ditames do capitalismo tardio. Ele não
esboça uma crítica radical ao capitalismo, antes disso interessa-se em entender como as
empresas daquela região adaptam-se e obtém sucesso econômico na concorrência
internacional do “mundo pósmoderno”. Em segundo lugar, ele afirma partir do referencial
de Weber sobre racionalidade, daí elaborando o conceito de “modos de racionalidade”, o
qual declara ser fundamentado no sentido que Weber empregava para a racionalidade
substantiva. Veremos que os fundamentos, a perspectiva geral e as referências de
Guerreiro Ramos são muito distintas desse estudo de Clegg.
Portanto, voltemos a Guerreiro Ramos.
Em A nova ciência das organizações ..., Guerreiro Ramos afirmava que a referida
abordagem estava inserida na “teoria substantiva da vida humana associada”, a qual,
segundo o autor, possui três qualificações essenciais que a diferenciam da teoria social
formal. A primeira é que a razão substantiva é a sua principal categoria de análise. A
segunda qualificação é a que reconhece que os elementos dessa teoria já vinham desde
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muito tempo sendo trabalhados por diversos pensadores e sendo harmonizados ao
significado que o senso comum atribui à razão. A terceira qualificação, aponta a teoria
substantiva como uma elaboração que envolve a superordenação ética da teoria política,
sobre qualquer outra disciplina que aborde a vida social (Guerreiro Ramos, 1981).
Em suma, uma teoria que tem como ponto de partida a razão substantiva harmonizada ao
senso comum e que prevê a dimensão ético-valorativa como superior a qualquer outra
enfocada pelos estudos do social.
A formulação de Guerreiro Ramos apresenta uma forte influência dos estudos de Polanyi
(1975, 1983), complementados pelo grupo de intelectuais que juntamente com Polanyi,
na Columbia University nos anos 40 e 50, fundaram a concepção substantiva da
economia, impulsionando ainda mais o campo de estudos da antropologia econômica.
Polanyi (1975) rejeitava terminantemente a idéia de que a racionalidade utilitária tem que
ser empregada como o ponto de partida para a análise de toda e qualquer atividade
econômica. Ele defendia que a economia deveria ser analisada como um processo social,
isto é, inserido e dependente da configuração institucional própria de cada sociedade
historicamente percebida. A racionalidade utilitária e o mercado não serviriam como
categorias gerais de análise para todas as economias. Assim, Polanyi cunhou a expressão
concepção substantiva, a qual implica a institucionalização do econômico. O autor
afirmou claramente que a concepção substantiva concentra o interesse sobre “os valores,
a motivação e a política.” (Polanyi, 1975).
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Daí, a formulação de Polanyi se constituir numa das principais fontes de inspiração para
Guerreiro Ramos, provavelmente, inclusive, de onde o autor brasileiro retirou o termo
substantiva.
Guerreiro Ramos defendia a idéia de uma razão substantiva de amplo espectro,
confessadamente no sentido aristotélico, pelo qual a racionalidade excede em muito as
operações de antecipação da ação por meio do cálculo. Como muitos outros estudiosos,
Guerreiro Ramos denominou a razão baseada em cálculo como “instrumental”, termo
com significação equivalente às denominações “utilitária”, “formal”, “técnica”,
“econômica”, “com respeito a fins”, empregadas por diversos autores. A este tipo de
racionalidade, contrapôs radicalmente a razão substantiva. Para ele, a razão substantiva é
um atributo natural do sujeito, reside na psique humana. Por meio dela, os indivíduos
poderiam ordenar a sua vida pessoal na direção da autorealização, contrabalançando a sua
própria busca de emancipação/autorealização com o alcance da satisfação social, ou seja,
levando em conta também o direito dos outros indivíduos de buscá-la. As chaves para
esse balanceamento seriam o debate racional e, sobretudo o julgamento ético-valorativo
permanente das ações.
O que soa completamente diferente da busca do êxito individual despreendido do debate
racional e do julgamento ético-valorativo, apenas pautado no cálculo utilitário de
consequências; esta atitude é típica do embasamento fornecido pela lógica da razão
instrumental. Guerreiro Ramos reconheceu que, na maioria das organizações produtivas
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contemporâneas, a razão instrumental prevalece como lógica embasadora das atitudes e
ações, determinando o padrão (comportamento organizacional) de “sucesso” a ser
atingido, um “sucesso” baseado na lógica econômica utilitarista, orientado pelas “leis” do
mercado e egoísta por essência.
Por conseguinte, liberado de premissas ético-valorativas, o ambiente organizacional
tornou-se propício aos abusos de poder, à dominação, ao mascaramento de intenções pela
substituição da comunicação por padrões informativos, dentre outras consequências,
conduzindo os indivíduos a se lançarem numa competição permanente, produtora de
ansiedades e patologias psíquicas. Assim, Guerreiro Ramos também ressalta que a
“sociedade centrada no mercado”, isto é, dominada pela lógica da razão instrumental de
suas organizações produtivas, seria responsável pelas insegurança psicológica,
degradação da qualidade de vida, poluição, desperdício e exaustão dos recursos naturais
do planeta, além de produzir uma teoria organizacional incapaz de ensejar espaços sociais
gratificantes aos indivíduos.
Como podemos ver, a análise das organizações através do tema da racionalidade
demonstra a sua fecundidade, pois toca em várias questões abordadas pelas outras
correntes críticas que vimos acima.
Ao propor uma abordagem substantiva das organizações, Guerreiro Ramos o fêz,
confessadamente, de maneira conceitual. Menos do que fornecer ilustrações factuais de
suas teses, ele preferiu, naquele momento, apresentá-las por meio de um discurso teórico
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por excelência, elaborado em alto grau de abstração (Guerreiro Ramos, 1982). Eis aqui a
origem do problema que a nossa pesquisa assume enfrentar. Voltaremos a este problema
mais tarde.
Não obstante ter apresentado a abordagem substantiva das organizações de forma
eminentemente conceitual, o autor chamou a atenção de que mesmo na sociedade atual,
centrada no mercado, existem diversos “cenários” ou “enclaves” sociais, onde a razão
instrumental não necessariamente prevalece. No interior desses enclaves ele constatou a
existência de diversas organizações onde a razão substantiva era dominante. A tais
organizações denominou isonomias, construindo sobre elas uma espécie de tipo ideal,
uma categoria de análise sociológica de inspiração weberiana.
A morte prematura de Guerreiro Ramos, aos 67 anos, em plena atividade intelectual e
apenas um ano depois da publicação de A nova ciência das organizações ..., não deixa
dúvidas de que o seu projeto foi interrompido, pois no prefácio daquele livro ele afirmava
que uma vez lançada as bases da nova ciência, caberia a ele dar continuidade à proposta.
O problema enfocado por esta pesquisa:
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As idéias de Guerreiro Ramos vêm tendo grande ressonância nos meios acadêmicos,
notadamente no Brasil, onde a abordagem substantiva da organização tem muitos
adeptos. Desde a publicação de A nova ciência das organizações ... diversos autores
brasileiros vêm elaborando estudos pautados na análise de organizações tomando como
base a racionalidade substantiva tal como definida por Guerreiro Ramos, ensejando
gradativamente mais um tema específico de estudos organizacionais no nosso país.
Visitando os estudos desse gênero, principalmente os mais recentes (Vasconcelos, 1993;
Tenório, 1990; Pizza Júnior, 1994; Caldas, 1994; Barreto, 1993; Oliveira, 1993), para
termos uma idéia do “estado da arte” no Brasil, constatamos que todos esses trabalhos,
apesar de muito bem elaborados, não avançam sobre a práxis administrativa, não
conseguem sair do prisma conceitual.
Os autores brasileiros criticam e denunciam a razão instrumental, baseando-se em
Guerreiro Ramos para declarar que existe uma outra razão que lhe é oposta, a
racionalidade substantiva, mas não conseguem comprovar empiricamente como esta
racionalidade pode ser empregada nos processos administrativos de organizações
produtivas reais, isto é, na gestão de empresas, de fins lucrativos ou não, em pleno
funcionamento. Em outras palavras, os autores não demonstram claramente, por meio de
exemplos retirados de organizações reais, como se concretiza a razão substantiva ao nível
prático da tomada de decisão, da divisão do trabalho, do controle, do estabelecimento de
normas, da gestão de conflitos, da comunicação e de outras variáveis tipicamente
administrativas. Não sabemos exatamente a causa dessa “dificuldade”; talvez ela advenha
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do fato de Guerreiro Ramos ter apresentado inicialmente a sua proposta em termos
puramente conceituais e em elevado grau de abstração.
Decorridos 14 anos da morte de Guerreiro Ramos, seus seguidores ainda não conseguem
ilustrar factualmente aquilo que defendem. Para nós, este é um grave problema para o
avanço da teoria, uma substancial lacuna nesse campo de estudos, ao que tachamos de
impasse.
Entendemos que o desenvolvimento da abordagem da racionalidade substantiva nas
organizações produtivas, face aos estudos empreendidos pelos autores brasileiros após a
morte de Guerreiro Ramos, exige imediatamente uma mudança de eixo. Urge um
redirecionamento do foco das pesquisas, sob pena dos estudos perderem-se em
intermináveis discussões, repetições, críticas sem propostas concretas, e elocubrações
exclusivamente conceituais que servem quase que somente aos acadêmicos,
enfraquecendo (pela discussão repetitiva sem evidências factuais) a potencialidade
“explosiva” de mudança contida na memorável proposta de Guerreiro Ramos. Essa
mudança de eixo implica direcionar o foco das pesquisas à práxis.
Os difusores da razão substantiva nas organizações produtivas precisam, ao nosso ver,
urgentemente demonstrar a exequibilidade dessa racionalidade na prática administrativa,
ou então assumir definitivamente que trata-se de uma utopia, ou até, em última instância,
aceitar que essa racionalidade é incompatível com a gestão, com a ação administrativa
nas organizações contemporâneas. Não podemos jamais esquecer que atuamos num dos
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campos mais pragmáticos da atualidade. A teoria administrativa e seus modelos de
análise organizacional devem advir da prática, para que seja para sempre eliminada essa
duvidosa distinção (teoria x prática), ou pelo menos, diminuída a distância entre esses
dois termos.
Eis, então, o problema central que, por meio deste estudo, assumimos enfrentar: o
impasse representado pela incapacidade de demonstrar a concretização da racionalidade
substantiva na práticas administrativas desenvolvidas em organizações produtivas reais.
Natureza e objetivos deste estudo:
Para fazer face ao problema detonador (acima descrito) deste estudo, evidentemente,
teríamos que realizar um meticuloso trabalho de campo. Devido à própria natureza do
problema que desencadeou a pesquisa, o trabalho de campo dentro de organizações
produtivas em funcionamento se impunha como essencial.
O primeiro passo foi voltar ao estudo de Guerreiro Ramos, de modo a retirar dalí as
diretrizes que poderiam inicialmente orientar as decisões sobre o trabalho de campo a
realizar.
30
Assim, reexaminando o texto elaborado por Guerreiro Ramos, encontramos referências a
um tipo de organização que ele denominou isonomias, como assinalamos acima. O autor
descrevera as características principais das isonomias enquanto um tipo ideal, embora
afirmasse que nos Estados Unidos, país onde escreveu o seu livro, havia muitas
organizações que se aproximavam daquele tipo ideal. Eis a orientação que precisávamos
para começar a planejar o trabalho de campo: se nos propomos a demonstrar a razão
substantiva na prática, nada mais evidente do que buscar organizações que, supostamente,
apresentassem traços em comum com o tipo ideal isonomias, pois segundo Guerreiro
Ramos, nelas a razão substantiva é predominante. Sintetizando a caracterização fornecida
por Guerreiro Ramos, uma isonomia é:
a) Uma organização onde o objetivo essencial é permitir a autorealização dos seus
membros. As normas são estabelecidas por consenso;
b) Amplamente gratificante para os seus membros;
c) Uma organização onde as atividades são promovidas por vocações, a recompensa
básica dos participantes está na realização dos objetivos. A maximização da utilidade
econômica é secundária;
d) Marcada pela tomada de decisões, pelo estabelecimento de políticas e pela autoridade
distribuídos no grupo;
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e) Eficaz na medida em que mantém relações primárias entre os seus membros, portanto
não podendo aumentar exageradamente de tamanho.
Guerreiro Ramos indicou que várias organizações reais aproximavam-se das isonomias,
citou, nos Estados Unidos, as empresas de propriedade dos trabalhadores, grupos de
cidadãos interessados em solucionar problemas da comunidade, associações urbanas,
associações de estudantes e de minorias, associações artísticas, dentre outras.
Examinando a literatura disponível, pudemos encontrar vários estudos que mesmo, em
sua grande maioria, não voltados diretamente para a teoria das organizações, davam conta
da existência de organizações assemelhadas às isonomias em diversas partes do mundo
(Rothschild-Whitt, 1982; Huber, 1985; Gagnon & Rioux, 1988; Dupuis, 1985; Bhérer &
Joyal, 1987; Boursier, 1985 a; Defournyi, 1992 a; Habermas, 1987; Joyal, 1987, 1995;
Marré, 1987; Nerfin, 1988; Santana, 1992; Sommaire, 1985; Temple, 1987).
Restava-nos, então, ir ao “campo”. Nos dirigimos a três pequenas empresas privadas,
atuantes no setor de serviços (educação infantil, produção artística, editora e clínicas
médico-psicológicas) na cidade de Salvador, capital do estado da Bahia. Uma vez que
tínhamos o interesse em analisar as práticas administrativas dessas empresas, as ações dos
seus participantes, estabelecemos que a principal metodologia do trabalho de campo seria
a observação participante. Durante 8 meses seguidos (abril a dezembro/1993) realizamos
o trabalho de campo nas três empresas, empreendendo um esforço etnográfico balizado
por variáveis tipicamente administrativo-organizacionais, isto é, as ações cotidianas dos
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seus membros ao implementar processos de tomada de decisões, estabelecimento de
hierarquia e normas, divisão do trabalho, gestão de conflitos, comunicação, controle,
estabelecimento de objetivos e outras.
Este é um estudo de natureza eminentemente qualitativa. A sua perspectiva analítica
segue uma orientação que poderíamos, por analogia, caracterizar como autoreferencial.
Tal analogia tem inspiração nos estudos de Varela & Maturana (1980), Varela
(1979,1983). Nesses estudos, Varela e Maturana, cientistas reconhecidos mundialmente
como dos mais importantes no desenvolvimento do paradigma da complexidade (Dupuy,
1982), examinando as estruturas e o funcionamento do sistema nervoso central humano,
estabeleceram uma perspectiva analítica que implica examinar o fenômeno, que se quer
conhecer, em si mesmo. Isto quer dizer que opta-se por prioritariamente “penetrar” nas
dimensões internas do fenômeno ou sistema analisado, suas operações singulares, visando
desvelar a sua lógica interna e sua identidade, porém não desprezando o ambiente e, sim,
examinando como o sistema integra em suas operações as variáveis ambientais.
Tal perspectiva analítica autoreferencial ficou mundialmente celebrizada como a Teoria
da Autopoiesis, ou lógica dos sistemas auto-organizados. Os autores argumentam que este
é um bom caminho para analisar e compreender a lógica interna e a identidade dos
sistemas que têm um elevado grau de autonomia a ponto de produzir a sua auto-
organização, isto é, seus parâmetros organizativos não são definidos por modelos
externos e, sim pela autonomia de seus fatores internos.
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Essa perspectiva analítica pode ser bastante útil, se empregada por meio de analogias ou
de metáforas, no campo da teoria organizacional. Morgan (1989) percebera essa
possibilidade ao declarar que,
“Dentre outras consequências interessantes sobre a nossa
compreensão das organizações, a autopoiesis nos ajuda a
ver que as explicações da evolução, da mudança e do
desenvolvimento das organizações devem dar um lugar
especial aos fatores que determinam a identidade de uma
organização, e por consequência as suas relações com o
mundo.” (Morgan, 1989, p. 278, trad. livre).
Desde alguns anos tentamos difundir no Brasil o emprego, utilizando analogias e
metáforas, dessa perspectiva na análise de organizações (Serva, 1992).
Os estudos sobre organizações assemelhadas às isonomias, têm sido, em geral,
focalizados sob pontos de vista não administrativos. Pertencem, quase sempre, aos
campos da sociologia, ciência política e economia. Um dos melhores estudos do gênero, o
de Rothschild-Whitt (1982), mundialmente reconhecido, chega a abordar com precisão
algumas aspectos de cunho administrativo. Porém, o objetivo da autora é elaborar um tipo
ideal de organização que ela denominou coletivista contrapondo-o ao tipo ideal de
organização burocrática, construído por Weber. Assim, Rothschild-Whitt baliza o seu
estudo, desde o ponto de partida, no tipo ideal de burocracia, suas variáveis são os
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mesmos 8 elementos essenciais definidos por Weber (1963), ensejando assim um estudo
de natureza comparativa.
O presente trabalho não é um estudo comparativo. Aqui, não pretendemos comparar
sistematicamente as organizações da pesquisa com nenhuma construção de tipo ideal, ou
real, de natureza burocrática ou não. A intenção, repetimos, é de aprofundar ao máximo o
estudo das organizações pesquisadas, visando desvelar a sua lógica interna, a sua
racionalidade predominante e como ela se concretiza diretamente nos atos administrativos
dos indivíduos que a compõem. Daí a analogia com a perspectiva analítica
autoreferencial de Varela e Maturana. Uma forma, enfim, de tentar compreender a “auto-
organização” dos sistemas sociais estudados.
Tendo em vista o problema gerador da pesquisa, o impasse ao qual nos referimos na
seção anterior, este estudo tem como objetivos:
1) Identificar e demonstrar empiricamente como a racionalidade substantiva se concretiza
nas práticas administrativas numa organização produtiva, isto é, como ela se concretiza
através das ações cotidianas dos indivíduos referentes à tomada de decisões, divisão do
trabalho, controle, comunicação, estabelecimento de normas e outras práticas
administrativas numa organização produtiva;
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2) Detectar e demonstrar empiricamente que tipo de racionalidade — entre os tipos
substantivo e instrumental — é predominante nas práticas administrativas desenvolvidas
nas organizações produtivas estudadas.
Se lográssemos alcançar esses dois objetivos, cremos que poderíamos, então, identificar
se uma organização, analisada nos moldes que proporemos aqui, é substantiva ou não: se
nela predomina a racionalidade substantiva, então a chamaremos organização
substantiva.
Sintetizando em poucas palavras o que foi dito até aqui e, partindo do geral para o
particular:
— sob a perspectiva geral da emancipação do homem no âmbito do trabalho;
— inserimo-nos no tema da racionalidade nas organizações produtivas, e;
— enfocando-o mediante a abordagem substantiva da organização (Guerreiro Ramos,
1981);
— através da realização de um estudo de natureza qualitativa em três organizações reais;
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— objetivamos demonstrar empiricamente como a razão substantiva se concretiza na
práxis administrativa e, também qual a racionalidade predominante numa organização
produtiva.
Ao tentar alcançar os dois objetivos que norteiam este trabalho, em última instância,
buscamos contribuir, modestamente, para a continuidade no Brasil dos estudos voltados
para a análise da racionalidade substantiva nas organizações produtivas contemporâneas.
A seguir, forneceremos um breve roteiro do conteúdo geral deste texto.
Conteúdo do texto:
O Capítulo I parte de algumas considerações sobre a origem da abordagem do tema da
razão na filosofia para, em seguida, apresentar alguns estudos da racionalidade em
determinadas ciências humanas. É dado destaque para a concepção substantiva da
economia, inaugurada por Polanyi (1975). Apresenta também os dois suportes teóricos
principais deste trabalho, a teoria da ação comunicativa, de Habermas (1987) e, a
abordagem substantiva da organização, proposta por Guerreiro Ramos (1981). Ao final, é
dado um balanço da produção científica mais recente no Brasil voltada para a análise
organizacional com base na abordagem de Guerreiro Ramos e, é delimitada a
contribuição específica deste estudo.
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O Capítulo II inicia-se por um relato de iniciativas emancipatórias no âmbito da
produção, decorridas ao longo da história. Avançando na história, promove um
levantamento de estudos que, de alguma forma, relatam experiências e/ou analisam
aspectos relativos à perspectiva geral da emancipação humana nas organizações
produtivas. É dada a definição de organizações substantivas e são comentadas as suas
decorrências, dentre elas destacando as questões abordadas neste estudo.
O Capítulo III fornece uma descrição dos procedimentos utilizados no trabalho de campo.
Enquanto estudo de natureza qualitativa, faz breves considerações sobre o estudo de caso
e a observação participante.
O Capítulo IV detalha a montagem do quadro de análise aqui proposto. Inicia-se pelo
detalhamento da complementaridade entre as teorias de Habermas e de Guerreiro Ramos,
que compõe a base conceitual do quadro de análise. Em seguida apresenta o quadro com
todos os seus elementos, para depois descrever os procedimentos seguidos para a sua
operacionalização. Ao final, são feitas algumas considerações de ordem epistemológica
que dizem respeito ao quadro de análise e, a este estudo como um todo.
O Capítulo V apresenta as três organizações da pesquisa e delineia os contornos
principais do contexto social e histórico da cidade de Salvador, onde as três organizações
estão situadas.
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Os Capítulos VI, VII, e VIII são dedicados exclusivamente a análise das organizações
enfocadas pela pesquisa. Cada capítulo traduzirá a análise de cada uma delas.
O Capítulo IX pretende proporcionar uma visão de conjunto das três organizações,
sintetizando o que foi visto nos três capítulos anteriores.
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Capítulo I - Racionalidade e Estudo de Organizações
Neste primeiro capítulo, pretendemos transmitir ao leitor uma clara visão sobre os
alicerces teóricos sobre os quais funda-se este estudo, apresentar detalhadamente a
problemática em que o esforço aqui desenvolvido se insere e delimitar a contribuição que,
modestamente, pretendemos fornecer à continuidade dos estudos sobre a racionalidade
substantiva nas organizações produtivas.
Para atingir as metas acima, necessitaremos galgar algumas etapas cujo roteiro será o
seguinte:
1) Primeiramente, fazer algumas considerações sobre as origens da abordagem da
racionalidade na filosofia e, logo em seguida, sintetizar de forma sistemática os estudos
da racionalidade no âmbito das ciências humanas das quais o tema de nosso trabalho se
aproxima. Assim, examinaremos alguns estudos nos campos da sociologia, da
administração, da economia e da antropologia, dando maior destaque a partes escolhidas
das obras de Weber, Polanyi, Hopkins e Godelier;
2) Em seguida, nos dedicaremos a apresentar um resumo de uma das teorias que formam
a base conceitual principal do presente trabalho: a teoria da ação comunicativa, elaborada
por Habermas. Na oportunidade, tentaremos também dar uma idéia das críticas
formuladas por alguns autores à essa teoria de ação;
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3) A segunda teoria que, junto com a da ação comunicativa, compõe a base essencial de
nosso estudo, será então sumarizada: a teoria da razão substantiva, dirigida a análise
organizacional e formulada por Guerreiro Ramos. É esta teoria que constitui o pilar
central de nossas propostas;
4) Ambas abordagens que escolhemos para embasar o presente trabalho — ação
comunicativa e razão substantiva — fazem parte de um amplo movimento no interior das
ciências humanas, o qual resgata o valor do sujeito e da ação enquanto categorias
fundamentais da análise social. Por conseguinte, forneceremos um breve relato sobre esse
movimento, abordando a sua trajetória histórica e suas linhas gerais;
5) Sendo a teoria de Guerreiro Ramos o nosso pilar central, visitaremos os trabalhos
recentes realizados por pesquisadores brasileiros que adotaram a teoria da racionalidade
substantiva com o intuito de analisar organizações produtivas. Isto conferirá ao leitor a
possibilidade de obter informações sobre o “estado da arte” dessa abordagem no Brasil;
6) Decorridas todas as etapas acima descritas, então poderemos delimitar com precisão a
contribuição que, modestamente, através do presente trabalho pretendemos fornecer a
esse campo de estudos.
I. Notas sobre abordagens da racionalidade em filosofia e em algumas ciências humanas
41
Prováveis origens da abordagem da racionalidade em filosofia:
A racionalidade ou a razão, desde muito tempo, constitui-se numa das principais e
polêmicas questões do conhecimento. Por conseguinte, é, talvez, a temática mais ampla
da filosofia ocidental.
Isto posto, nunca nos aventuraríamos a empreender um levantamento exaustivo das
variadas correntes que abordaram essa temática no âmbito da filosofia. Esboçaremos
apenas algumas notas enfocando uma discussão sobre as prováveis origens da abordagem
da racionalidade na filosofia ocidental, visando dar uma idéia ao leitor da temporalidade
que marca o tratamento deste tema.
Segundo Feyerabend (1991), diversos estudiosos modernos, tais como Eliade, Guthrie,
Popper e Schlachermayr, atribuem a origem das filosofias racionais — doutrinas que se
opunham à tradição — aos escritos de Xenófanes, filósofo grego. Tal filósofo, ao elaborar
a crítica aos costumes da sua sociedade e, principalmente ao combater e ridicularizar a
idéia de que os deuses tradicionais possuíam características humanas, teria aberto,
segundo alguns cientistas modernos, o caminho para as filosofias racionais. Xenófanes
substitui os deuses gregos com paixões, falhas e desvios típicos dos humanos, por um
deus onipresente, onisciente e que a tudo movimenta, tendo como pano de fundo um
conceito de verdade que revela-se válido em quaisquer circunstâncias.
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A perspicácia de sua crítica é, entretanto, duramente contestada por Paul Feyerabend.
Mesmo considerando Xenófanes como o “primeiro pensador europeu”, Feyerabend,
enaltecendo o relativismo, afirma que,
“o escárnio de Xenófanes é o primeiro, o mais breve e o
mais manifesto exemplo de semelhantes falsidades
[verdades universais]” (Feyerabend, 1991, p. 122).
A disputa infinda entre os partidários das correntes racionalista e relativista ressalta ainda
mais a importância do conceito de razão. Nos demonstra a sua origem longíqua e as
consequências observadas no desenvolvimento do conhecimento no Ocidente, a partir das
suas concepções aceitas e/ou recusadas por grupos de estudiosos em cada época.
Ainda remetendo-nos à Grécia Antiga, podemos constatar que Aristóteles concebia a
razão como um atributo da alma. A alma teria, então, duas partes distintas, porém
conexas: o princípio racional e, uma outra parte destituída de razão. Cinco “disposições”
comporiam o princípio racional, elas seriam modos de alcance da verdade:
1) A arte, disposição para produzir;
2) O conhecimento científico, juízo sobre coisas universais e necessárias;
43
3) A sabedoria prática, capacidade de deliberar bem, sendo passível de demonstração;
4) A sabedoria filosófica, mais elevada capacidade do homem;
5) A razão intuitiva, aquela que versa sobre as premissas limitadoras do uso da razão
(Aristóteles, 1987).
Desse modo, Aristóteles não opunha ações a valores, no tocante aos seus conceitos de
“artes” e de “ciências”. Para ele, a política, entendida como o conhecimento determinante
sobre todas as artes e todas as ciências, deveria indicar através de juízos (bom, mal, falso,
verdadeiro) aquilo que deveria ser produzido, bem como estudado, aquilo que cada
cidadão deveria aprender, enfim, julgando os fins de cada ação com vistas ao bem
humano (Aristóteles, 1987).
Segundo Habermas (1987), o pensamento grego não buscava nem uma teologia nem uma
cosmogonia ética como o faziam os grandes sistemas religiosos, e sim uma espécie de
ontologia. A filosofia, desde a Grécia antiga, viria tentando estabelecer explicações do
mundo através de princípios centrados na razão. Nesse sentido, a razão seria o tema
fundamental da filosofia.
Habermas crê num padrão emergente nas relações entre a filosofia e a ciência, ocasionado
pelo “fracasso dos intentos de fundamentação última da Filosofia Primeira” (Habermas,
1987). Tal argumentação é desenvolvida na direção de que as teorias sobre as ciências
44
experimentais modernas não poderiam mais ser respaldadas por pressupostos
fundamentalistas, sejam do tipo ontológico ou do tipo transcendental. Consequentemente,
tais teorias poderiam apenas contar com o respaldo de estudos que se apoiassem no
destaque de aspectos internos da história da ciência em si, explicando sistematicamente
essa história efetiva com a ajuda de análises do tipo empírico no contexto da evolução
social. Assim, a explicação formal das condições de racionalidade (tema da filosofia da
ciência) estaria se entrelaçando estreitamente com a análise empírica da materialização e
evolução histórico-sociais das chamadas “estruturas de racionalidade”. O que ressalta a
importância atual da relação entre os estudos da racionalidade e a sociologia.
A abordagem da racionalidade em algumas ciências humanas:
Do mesmo modo que na subseção anterior, temos que reconhecer a extrema amplitude
que caracteriza a abordagem do tema da racionalidade, desta vez aqui concernente ao
conjunto das ciências humanas. Em vista dessa realidade, é que decidimos elaborar
algumas notas sobre essa área de produção do conhecimento, distribuídas pelos campos
científicos aos quais recorremos para interpretar o fenômeno enfocado em nosso estudo, a
saber, sociologia, antropologia, administração e economia.
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Esclarecemos que, primeiramente tentaremos fornecer um breve panorama em cada
campo face à temática da razão, através de alguns comentários gerais. Em seguida, nos
concentraremos nos estudos de determinados autores (Weber, Polanyi e seu grupo,
Godelier) que consideramos essenciais para o desenvolvimento do presente trabalho.
Nas seções subsequentes empreenderemos um aprofundamento nos estudos (e suas
decorrências) fundamentais para a análise aqui desenvolvida, são eles: a teoria da ação
comunicativa, elaborada por Habermas e, a abordagem da razão substantiva para o estudo
de organizações, elaborada por Guerreiro Ramos.
Notas sobre a abordagem da racionalidade na sociologia e na antropologia:
No vasto campo das ciências sociais, a sociologia parece ser a disciplina mais conectada
intrinsecamente com a questão da racionalidade. Malgrado as diversas tentativas de torná-
la mais uma ciência especializada em integração social, ela tem-se mantido ancorada aos
problemas da sociedade global. Desde os seus primórdios, a sua démarche em analisar as
transformações sociais ocorridas nas antigas sociedades européias, fruto do surgimento
dos Estados nacionais modernos e de um sistema econômico autoregulado, conduz a
sociologia ao estudo dos problemas da racionalização crescente nas sociedades
46
ocidentais. As conexões da sociologia e também da antropologia com o tema da
racionalidade, são assim vistas por Habermas:
“Tanto a sociologia como a antropologia cultural se vêm
confrontadas com o espectro completo dos fenômenos da
ação social e não com tipos de ação relativamente bem
delimitados que possam ser interpretados como variantes
da ação ‘racional com respeito a fins’, relativas aos
poblemas de maximização do lucro ou da aquisição e
utilização do poder político. Essas duas disciplinas se
ocupam da prática cotidiana nos contextos do mundo da
vida e têm, portanto, que levar em consideração todas as
formas de orientação simbólica da ação” (Habermas,
1987, v. I, p.21, trad. livre).
Nesse estudo, assumiremos, com o auxílio da sociologia e da antropologia, dentre outras
disciplinas, a tarefa de analisar outra forma simbólica de orientação da ação no interior de
organizações produtivas contemporâneas. Não nos limitaremos ao exame das condições
geradoras, da adoção e consequências da ação racional com respeito a fins; tentaremos
também examinar, como será visto mais adiante, o tipo de ação racional ao qual
denominaremos substantiva.
47
Uma vez que as organizações produtivas são também objeto de estudo da administração e
da economia, julgamos importante estender esse breve mapeamento do tratamento do
tema da racionalidade a essas disciplinas.
Notas sobre a abordagem da racionalidade na administração:
No campo da administração, segundo Guerreiro Ramos, “...a teoria corrente dá um
cunho normativo geral ao desenho implícito na racionalidade funcional” (Guerreiro
Ramos, 1981, p. 23).
As correntes teóricas tradicionais, isto é, a escola clássica, a escola de relações humanas,
o estruturalismo, a teoria sistêmica, a orientação contingencial, a teoria da decisão e suas
similares, são centradas quase que unicamente na racionalidade funcional ou
instrumental. Privilegiam, indubitavelmente, os comportamentos relativos à excelência no
manejo dos meios, entendida como eficiência. Quanto aos fins, não são objeto de
julgamento ético, apenas cabe atingí-los com a máxima eficiência possível, configurando
assim a eficácia. A combinação ótima entre eficiência e eficácia é a manifestação
concreta do mais alto grau de racionalidade organizacional, tornando evidente o seu pano
de fundo: a racionalidade instrumental, ou como a denomina Habermas, a “racionalidade
com respeito a fins”.
48
Tomaremos como exemplo, algumas passagens da obra de Herbert Simon, reconhecido
mundialmente como um dos autores mais importantes na teoria das organizações. Seus
trabalhos têm uma larga influência em inúmeras correntes da teoria administrativa, tais
como a teoria da decisão e toda a vertente comportamental, principalmente no tocante à
questão da racionalidade. Em seu renomado livro Comportamento Organizacional,
Simon aborda com grande destaque o tema da racionalidade, ao tratar da teoria da
decisão:
“Tendo em vista que por boa administração se entende
aquele comportamento que é objetivamente adequado aos
seus fins [...] uma teoria das decisões administrativas,
terá forçosamente, que se preocupar de certa maneira
com os aspectos racionais da escolha” (Simon, 1965, p.
73).
Em seguida, Simon, explicita a natureza da escolha racional:
“O processo decisório racional envolve a comparação
permanente dos meios alternativos em função dos fins
respectivos que procurarão alcançar [...] isto significa
que a eficiência, no sentido de obtenção de resultados
máximos com meios limitados, deve constituir um critério
49
guiador das decisões administrativas” (Simon, 1965, p.
77).
O autor aponta alguns fatores limitativos ao alcance de alto grau de racionalidade, tal
como o conhecimento completo e antecipado das consequências e o conhecimento de
todas as possíveis ações. O curioso é que tal sequência de raciocínio o conduz a
conclusão de que,
“O comportamento de um único indivíduo, em condições
de isolamento, jamais pode apresentar um grau elevado
de racionalidade” (Simon, 1965, p.93).
Disso, decorre então que,
“Os sistemas de comportamento a que chamamos
organização, são imprescindíveis, portanto, à consecução
da racionalidade humana num sentido mais amplo. O
indivíduo racional é, e deve ser, uma pessoa organizada e
institucionalizada” (Simon, 1965, pp.120-121).
Além de estreitar a concepção da racionalidade, mediante a sua redução à racionalidade
instrumental e consequentemente à ação racional com respeito a fins, Simon também
retira do nível individual a possibilidade de atingimento de uma racionalidade elevada,
50
transpondo-a forçosamente para o âmbito da organização. Tal opção é oposta àquelas
defendidas por Habermas e também por Guerreiro Ramos, como veremos mais adiante
em detalhes. Por enquanto, gostaríamos de remarcar que a construção lógica elaborada
por Simon representa bem a noção de racionalidade que embasa as correntes teóricas
tradicionais da administração.
Ao lado da vertente comportamental, o estruturalismo pode também ser considerado
como uma das vertentes principais da teoria administrativa. Aqui, destacamos alguns
trechos da abordagem da racionalidade empreendida por Etzioni, um dos mais célebres
autores estruturalistas.
Ao constatar que a sociedade moderna é uma “sociedade de organizações”, Etzioni
aponta a importância das organizações, destacando que,
“Ao contrário das sociedades anteriores, a sociedade
moderna atribui um elevado valor moral ao racionalismo,
à eficiência e à competência. A civilização moderna
depende, em grande parte, das organizações, como as
formas mais racionais e eficientes que se conhecem de
agrupamento social. A organização cria um poderoso
instrumento social, através da coordenação de grande
número de ações humanas” (Etzioni, 1964, p. 7).
51
A noção de racionalidade com a qual trabalha Etzioni é, da mesma forma que Simon,
restrita à razão instrumental. Isto fica evidente ao examinarmos a continuidade do seu
raciocínio e argumentações formuladas. Por exemplo, ao referir-se ao aumento do
racionalismo, o autor declara que,
“Esse aumento do alcance do racionalismo das
organizações não se produziu sem um preço social e
humano. Muitas pessoas que trabalham para
organizações estão profundamente frustradas e alienadas
em seu trabalho. A organização, em vez de ser uma
obediente servidora da sociedade, passa, às vezes, a
dominá-la” (Etzioni, 1964, p. 8).
Ao desenvolver a sua análise, Etzioni envereda por uma discussão que pode ser
considerada como atípica, dentro da teoria administrativa: a abordagem do racionalismo x
felicidade. O autor finda por reconhecer um dilema:
“Até certo ponto, o racionalismo da organização e a
felicidade humana são concomitantes. Todavia, em tôda
organização existe um ponto em que a felicidade e a
eficiência deixam de se apoiar mutuamente. Nem todo
trabalho pode ser bem pago e satisfatório, e nem todos os
regulamentos podem tornar-se aceitáveis. Enfrentamos,
então, um dilema real” (Etzioni, 1964, p. 9).
52
Etzioni aponta o dilema ao qual conduz a aplicação ampla da razão instrumental nas
organizações modernas. O autor não considera um outro tipo de racionalidade possível
nas organizações.
Nos últimos anos, alguns autores vêm realizando estudos no campo da teoria
organizacional, abordando direta ou indiretamente o tema da racionalidade sem
necessariamente comungar com a linha de pensamento dominante nas correntes teóricas
tradicionais (marcadas pelo paradigma funcionalista e pela predominância da razão
instrumental).
Entre esses autores, podemos destacar Stewart Clegg, um dos mais ativos analistas
organizacionais da atualidade. Clegg (1990), ao abordar o fenômeno organizacional numa
era pós-moderna, examina colateralmente a questão da racionalidade implícita na
diversidade de modelos organizacionais de sucesso, face a expansão do capitalismo tardio
em regiões como o leste asiático. Clegg baseia o seu exame da racionalidade nas
formulações de Weber. Daí, extrai o conceito de “modos de racionalidade”, pelo qual
analisa como os fatores culturais e institucionais, próprios de cada região, intermediam ao
nível das organizações, as pressões características do empreendimento capitalista
moderno (condições e estratégias referentes a lógica do mercado, exigências padronizadas
de eficiência, etc.) sobre o contingente humano em sua dimensão sócio-cultural.
No caso da região do leste asiático, por exemplo, o autor conclui que,
53
“Em nenhum desses países a estruturação de
organizações tem seguido claramente os padrões de
racionalização prognosticados pelo mercado, pela
eficiência ou por contingências. Em todos esses países, tal
como a Coréia do Sul, as pressões foram largamente
institucionalizadas e transmitidas através do Estado. Em
outros elas foram amplamente transmitidas através da
armação institucional das cultura e práticas locais. O
quadro é constantemente complicado pela
disponibilidade, ou não, dos recursos locais pelos quais
modos de racionalidade devem ser construídos, mantidos
ou transformados.” (Clegg, 1990, p. 174).
Apesar dos esforços de alguns autores como Clegg, a extensa maioria dos estudos que
abordam a racionalidade no campo da administração ainda continuam a privilegiar
unidirecionalmente a razão instrumental, na grande maioria dos casos tomando-a como
único significado do termo racionalidade (Serva, 1990).
Notas sobre a abordagem da racionalidade na economia:
54
Na economia, principalmente na área da economia política, observava-se inicialmente
uma pertinência relacional aos problemas da sociedade global, devido ao destaque do
questionamento da legitimidade de um sistema de ação — o sistema econômico —
integrado socialmente através de funções e não de normas. No entanto, a ciência
econômica ocupa-se hoje da economia enquanto um subsistema da sociedade,
desprezando o questionamento de sua legitimidade, tornando-se dessa forma uma ciência
especializada (Habermas, 1987). Assim, vê-se envolvida no mesmo empreendimento,
analogamente, que aquele da administração, ou seja, operando uma sensível redução da
questão da racionalidade a considerações de equilíbrio econômico, escolha racional,
eficiência do sistema, crescimento econômico, etc.
Portanto, para fundamentarmos a orientação a qual optamos seguir nesse estudo, ou seja,
de examinar prioritariamente um outro tipo de racionalidade presente em organizações
produtivas que não aquele da racionalidade instrumental, abordaremos sinteticamente
alguns estudos da racionalidade que são reconhecidos como marcos, tanto dentro do
espectro da sociologia como no da antropologia, seguindo o pensamento de Habermas de
que tais disciplinas “se ocupam da prática cotidiana nos contextos do mundo da vida e
têm, portanto, que levar em consideração todas as formas de orientação simbólica da
ação”, conforme vimos acima. Esperamos assim, descortinar o horizonte teórico-
metodológico no qual nos pautaremos no decorrer deste trabalho.
A partir da sociologia, abordaremos, em linhas gerais, a tese da “racionalização” das
sociedades modernas, elaborada por Max Weber. Da antropologia, tentaremos expor as
55
linhas principais do do projeto interdisciplinar que consolidou a concepção substantiva da
economia e os estudos de Godelier no campo da antropologia econômica.
A tese da “racionalização” da sociedade ocidental em Weber:
Como “racionalização”, Weber interpretou as consequências do avanço técnico-científico
nas estruturas do quadro institucional das sociedades empreendedoras da chamada
modernização. Interessou-se Weber pela demonstração e explicação de como, no
Ocidente, os subsistemas da economia capitalista e do Estado atingiram um grau tão
elevado de conexão a ponto de criar condições propícias para uma modernização
autoregulada.
Afirma Weber que,
“Decisivamente, o capitalismo surgiu através da empresa
permanente e racional, da contabilidade racional, da
técnica racional e do Direito Racional. A tudo isto se deve
ainda adicionar a ideologia racional, a racionalização da
vida, a ética racional da economia.” (Weber, 1980, p.
169).
56
Alguns aspectos são fundamentais na sua explicitação da racionalização enquanto
processo:
a) A substituição progressiva das imagens míticas do mundo e da diversidade religiosa
pela tradição judaica-cristã e também pela linha de pensamento da tradição especulativa
grega, ocasionando o que se costuma chamar de racionalização das imagens do mundo ou
mesmo desencantamento do mundo;
b) O comportamento padronizado, na vida dos empresários, trabalhadores e funcionários,
sujeitos a uma determinada ética de profissão e a procedimentos metódicos estabelecidos
pelas organizações burocráticas;
c) O meio de organização social representado no direito formal, sistematizado enquanto
direito natural racional.
A penetração crescente dos preceitos jurídicos modernos nas relações entre os agentes
econômicos e na administração burocrática estatal, sustentada pela ciência jurídica
desenvolvida em universidades, ao lado da adoção da ética protestante como orientadora
dos códigos profissionais e do trabalho em si mesmo, todos esses fatores, acabam por
concretizar determinadas estruturas prático-morais em instituições. As instituições assim
estabelecidas, são capazes de engolfar todos os subsistemas econômicos, administrativos
57
e boa parte dos demais subsistemas sociais, mediante orientações de ação racional com
respeito a fins.
Habermas (1987) distingue os estudos de Weber sobre a racionalização em duas grandes
jornadas: a primeira, que se ocupa da ética econômica das religiões universais
(racionalização das imagens do mundo), e a segunda, que aborda o desenvolvimento da
economia capitalista e do Estado moderno, incluída aqui a análise da ética protestante
(transformação da racionalização cultural em racionalização social).
Embora reconhecendo a importância da análise weberiana, autores como Habermas e
Guerreiro Ramos teceram críticas a essa abordagem. Tais críticas desencadearam novas
formulações, as quais, ao nosso ver renovam, sob outro prisma, a importância da tese de
Weber. A causa de abordarmos aqui as linhas gerais da tese da racionalização proposta
por Weber é justamente a intenção de empreender o exame das formulações elaboradas a
partir das suas críticas e não propriamente a proposta de Weber em si. Queremos dizer
que a contribuição essencial para a démarche que adotaremos no decorrer desse estudo se
fundamenta nas proposições desenvolvidas por Habermas e por Guerreiro Ramos, as
quais tiveram ponto de partida nas debilidades que esses autores puderam identificar na
tese proposta por Weber para explicar o fenômeno da racionalização do Ocidente.
Críticas de Habermas e Guerreiro Ramos à tese de Weber:
58
Em primeiro lugar, Habermas (1987) aponta a pretensão universalista da proposição
weberiana. Em seu entender, Weber propôs uma explicação da modernização das antigas
sociedades européias enquanto um processo histórico-universal de racionalização. A
análise da história das grandes religiões pretende ser um exame do “processo universal de
desencantamento”, em que tal exame para Weber seria suficiente para explicar a
produção das condições internas para a aparição do racionalismo ocidental. A
interpretação habermasiana é também compartilhada por vários outros estudiosos, como
por exemplo, Loewith:
“Weber demonstrou a ocorrência da racionalização em
sentido universal, bem como fundamental, mundialmente
histórico e antropológico em seu prefácio à Sociologia da
religião. [...] Para Weber, racionalização significa o
caráter fundamental do estilo de vida ocidental […] O
tema básico de sua pesquisa ‘científica’ acaba sendo a
tendência à secularização. Weber, contudo, sumariza o
especial caráter problemático de nossa realidade
contemporânea sob o título de ‘racionalidade’ (Loewith,
1978, p. 151).
Em segundo lugar, Habermas identifica que na análise da racionalização do social, Weber
se deixa levar unicamente pelo conceito de racionalidade enquanto razão com respeito a
fins. Assim, Weber teria concentrado toda a essência de sua proposição reduzindo o que
59
chamou de racionalização do social ao aumento da racionalidade instrumental nos
contextos da ação. O autor sustenta que ainda que Weber tenha vislumbrado um conceito
mais amplo de racionalidade, o qual aparece apenas como pano de fundo em sua análise,
esse conceito mais amplo deveria ser identificado empiricamente no mesmo plano que os
subsistemas de ação racional com respeito a fins.
Habermas lamenta tal lacuna e afirma que ela se dá em função de duas causas imediatas:
primeiramente, os conceitos de ação utilizados por Weber não são bastante complexos
para apreender nas ações sociais todos os aspectos que pode assumir a racionalização do
social. A segunda causa apontada é a falha em mesclar categorias de ação com categorias
sistêmicas. Em relação a esta última causa, Habermas afirma categoricamente que,
“A racionalização das orientações de ação e das
estruturas do mundo da vida não é o mesmo que o
aumento de complexidade dos sistemas de ação.”
(Habermas, 1980, v. I, p.199, trad. livre).
É nítida a importância da tese de Weber nas formulações de Habermas sobre a
racionalidade. Partindo da crítica, Habermas inicia a sua própria construção teórica:
“Para dar uma nova formulação teórica àquilo que Max
Weber chamou de ‘racionalização’, gostaria de não me
ater ao ponto de partida subjetivo que Parsons
60
compartilha com Weber, e de propor um outro quadro
categorial. Partirei da distinção entre trabalho e
interação. Entendo por ‘trabalho’, ou agir racional com
respeito a fins, seja o agir instrumental, seja a escolha
racional, seja a combinação dos dois. [...] Por outro lado,
entendo por agir comunicativo uma interação
mediatizada simbolicamente. Ela se rege por normas que
valem obrigatoriamente, que definem as expectativas de
comportamento recíprocas e que precisam ser
compreendidas e reconhecidas por, pelo menos, dois
sujeitos agentes. [...] Dispondo desses dois tipos de ação,
podemos classificar os sistemas sociais conforme neles
predomine o agir racional com respeito a fins ou a
interação” (Habermas, 1980, pp.320-321).
A distinção entre agir racional com respeito a fins e agir comunicativo, elaborada por
Habermas, é de importância capital para o nosso estudo. A referida distinção vai cimentar
a base para as definições de ações racionais que apresentaremos no Capítulo IV, quando
discutiremos o quadro de análise proposto nesse trabalho.
A opção de Habermas em trabalhar com outra modalidade de racionalidade, alternativa à
razão instrumental, é evidente na reconceituação dos tipos de ação. Desse modo ele inicia
a elaboração da sua teoria da ação comunicativa, a qual nos ateremos posteriormente.
61
Por seu lado, Guerreiro Ramos pressupõe uma certa tensão em Weber, com referência a
abordagem dos tipos de racionalidade. Conclui que:
“Na verdade, ele foi incapaz de resolver essa tensão
empreendendo uma análise social do ponto de vista da
racionalidade substantiva. De fato, a Wertrationalität é
apenas, por assim dizer, uma nota de rodapé em sua obra,
não desempenha papel sistemático em seus estudos. Se o
fizesse, a pesquisa de Weber teria tomado um rumo
completamente diferente” (Guerreiro Ramos, 1981, pp. 5-
6).
Ao pautar a sua análise da vida humana associada no conceito de racionalidade
substantiva, a pesquisa de Guerreiro Ramos realmente tomou um rumo muito diferente
daquele seguido por Weber. Sua elaboração é essencial para o desenvolvimento do nosso
estudo, e a ela nos dedicaremos após examinar alguns de seus fundamentos, contidos nos
trabalhos dos autores da concepção substantiva da economia e da antropologia
econômica.
Polanyi e a concepção substantiva da economia:
62
Nascido em Budapeste no ano de 1886, Karl Polanyi fêz seus estudos em direito e em
economia política. Em 1944, ele publicou nos Estados Unidos o seu famoso livro
intitulado The great transformation, onde Polanyi difunde a idéia de que a economia ao
se organizar totalmente sobre a base do mercado se separou radicalmente das outras
instituições sociais forçando o resto da sociedade a funcionar segundo as suas leis.
Em 1947, Polanyi foi nomeado professor de história econômica geral na Columbia
University e diretor de um projeto interdisciplinar que atraiu antropólogos, economistas,
historiadores e sociólogos. Polanyi dirigiu os trabalhos do grupo para três direções
básicas: a crítica à teoria econômica, a construção de uma tipologia dos sistemas
econômicos e a origem e história das instituições econômicas. Uma primeira publicação
desses trabalhos se deu em 1957, sob o título Trade market in the early empires,
traduzido em língua francesa em 1975 sob o título Les systèmes économiques dans
l’histoire et dans la théorie.
Em texto publicado naquela coletânea, Polanyi, Arensberg e Pearson (1975) afirmam que
após o advento dos estudos de Comte, Quételet, Marx, Weber, Malinowski, Durkheim e
Freud, ampliou-se a percepção de que o processo social é um tecido de relações entre o
homem (enquanto entidade biológica) e a estrutura única dos símbolos e das técnicas que
permitem a continuidade de sua existência. No entanto, lamentam tais autores, tal
proposição não alcançou a popularidade da imagem tradicional do individualismo
atomístico. Esta imagem, apresenta o homem como um átomo utilitário, isto é, um ser
que possui uma propensão inata a trocar uma coisa pela outra, dentro de um ambiente
63
natural. Afirmam que em nenhuma outra ciência como na economia, tal visão atomística
e utilitária é tão aparente.
A mecânica desse racionalismo econômico é então explicitada por Polanyi, Arensberg e
Pearson (1975): o “ator”, seja o indivíduo, a família ou até a sociedade global é concebido
em relação com um ambiente que lhe concede lentamente os elementos para a sua
subsistência. A essência da racionalidade que embasa a ação econômica se manifesta na
forma pela qual é utilizado o tempo e a energia concernente à realização de um máximo
de objetivos através da relação homem-natureza. Assim, a economia torna-se a dimensão
prioritária dessa ação.
Contra tal linha de pensamento, rebelam-se:
“É evidentemente admitido que em realidade a ação
econômica pode ser influenciada de várias formas por
outros fatores não econômicos, quer sejam de ordem
política, militar, artística ou religiosa. Mas a idéia de
racionalidade utilitária se perpetua como sendo o modelo
da economia. [...] É extremamente necessário um ponto de
partida fundamentalmente diferente para a análise da
economia humana concebida como processo social.”
(Polanyi, Arensberg & Pearson, 1975, pp. 235-236, trad.
livre, grifo nosso).
64
Polanyi (1975) aprofunda a questão ao abrir o espaço para o debate teórico ao empreender
a análise da economia enquanto processo institucionalizado. Acreditamos ter sido Polanyi
o primeiro autor a empregar o termo substantivo na abordagem de fenômenos
econômicos. Ele propõe duas significações para o termo “econômico”: a formal e a
substantiva, numa clara analogia aos tipos de racionalidade definidos por Weber. O
sentido formal, segundo Polanyi, deriva do caráter lógico da relação entre meios e fins, tal
sentido remeteria a uma bem determinada escolha entre o emprego alternativo de
diferentes meios devido à sua escassez. Por outro lado,
“O sentido substantivo tem a sua origem na dependência
do homem com relação à natureza e aos seus
semelhantes para assegurar sua sobrevivência. Ele
remete às transações entre o homem e seu ambiente
natural e social” (Polanyi, 1975, p. 239, grifo nosso, trad.
livre).
Podemos perceber claramente que o sentido formal proposto por Polanyi é aquele
embasado na racionalidade instrumental, uma vez que representa a escolha ótima entre
meios e fins, desta feita centrado no argumento da escassez. No sentido substantivo,
ressaltamos através de grifos o aspecto social da atividade econômica; outro aspecto
importante é a não utilização do argumento da escassez. Sobre esse elemento e seus
correlatos, Polanyi afirma que,
65
“O sentido substantivo não subentende nem escolha nem
meios insuficientes; a subsistência do homem pode ou não
impor uma escolha, e se escolha há, ela não é
obrigatoriamente determinada pela ‘escassez’ dos meios;
de fato, algumas das condições físicas e sociais mais
importantes para viver, tais como o ar e a água ou o amor
de uma mãe à sua criança, não são, em geral, tão
limitados.” (Polanyi, 1975, p. 239, trad. livre).
A contundência de suas afirmações se expressa na sua intenção em separar radicalmente
os dois sentidos:
“A lógica imperativa contida num dos conceitos difere
daquela contida no outro conceito, como a força do
silogismo difere da força da gravitação. [...] As duas
significações não poderiam estar mais afastadas uma da
outra; do ponto de vista semântico, elas são
diametralmente opostas.” (Polanyi, 1975, p. 239, trad.
livre).
O arremate vem imediato e firme, onde o autor toma claramente posição por um dos
sentidos:
66
“Em nossa opinião, somente o sentido susbstantivo do
‘econômico’ é capaz de produzir os conceitos que exigem
as ciências sociais para analisar todas as economias
empíricas do passado e do presente. O quadro geral de
referência que tentaremos construir nos obriga então a
tratar o problema em termos substantivos.” (Polanyi,
1975, pp. 239-240, trad. livre).
Partindo de tais premissas, Polanyi elabora um arcabouço conceitual e metodológico que
demonstra como a atividade econômica nasce, desenvolve-se e retorna ao contexto social,
dependendo deste. Tal movimento ele denominava institucionalização. A consideração da
economia enquanto processo institucionalizado, conduz Polanyi a elaborar um de seus
mais famosos conceitos: a atividade econômica é embedded (engastada) no social. Pela
importância que esse conceito assume no nosso trabalho (bem como no estudo de
Guerreiro Ramos), convidamos o leitor a acompanhar o encadeamento da argumentação
de Polanyi na construção do referido conceito:
“Estudando o papel da economia na sociedade humana, o
antropólogo, o sociólogo ou o historiador se encontram
cada um confrontados a uma grande variedade de
instituições outras que não só os mercados e nas quais
estavam engastados os meios de subsistência do homem.
67
[…] A economia é então um processo institucionalizado.
[…] A institucionalização do processo econômico confere
a este unidade e estabilidade; ela cria uma estrutura
tendo uma função determinada na sociedade; ela
modifica o lugar do processo na sociedade, dando assim
uma significação a sua história; ela concentra o interesse
sobre os valores, as motivações e a política. […] A
economia humana é então engastada e englobada nas
instituições econômicas e não econômicas. Importa dar
conta do aspecto não econômico. (Polanyi, 1975, pp. 240,
244, trad. livre, grifo nosso).
O conceito de economia embedded é, em profundidade, uma crítica à centralização do
mercado como instituição fundamental da atividade econômica. Polanyi salienta que a
centralização do mercado serve apenas para analisar as sociedades capitalistas modernas.
A sua crítica a assunção do mercado como pedra angular da análise econômica abriu
espaços para diversas abordagens teóricas. Daí, Guerreiro Ramos (1981) busca inspiração
para elaborar as críticas tanto à tais sociedades como às ciências sociais e econômicas que
as legitimam, utilizando muitas vezes em seu estudo a expressão “sociedade centrada no
mercado”, como veremos com detalhes mais adiante.
Polanyi (1975) estabelece que a consideração da economia enquanto processo
institucionalizado é o cerne da concepção substantiva, a qual, para ser desenvolvida
68
necessita de um conjunto de categorias particulares. Assim, utilizando as categorias
reprocidade e redistribuição, além da categoria troca (única empregada como padrão pela
teoria econômica tradicional), o autor analisa diversas formas de comércio, de utilização
da moeda e os elementos do mercado em várias sociedades edificadas em períodos
históricos passados, tecendo uma obra reconhecida como uma das maiores contribuições
ao estudo da atividade econômica.
Em seguida, apresentaremos uma síntese da contribuição de Hopkins à visão substantiva
dos fenômenos econômicos.
A contribuição sociológica de Hopkins à concepção substantiva da economia:
Terence Hopkins, então professor de sociologia na Columbia University e também
componente do grupo dirigido por Polanyi, consubstancia a pesquisa, revendo a
interpretação do econômico que é fornecida pelas ciências sociais. Constata (em 1957)
que no domínio das ciências sociais a opção pelo sentido formal da economia é a regra:
“Que eu saiba, nenhum sociólogo apresentou uma
interpretação sistemática da economia que não fosse em
termos formais.” (Hopkins, 1975, p. 262, trad. livre).
69
Hopkins ressalta que na obra de Weber, por exemplo, as concepções de economia não são
inseridas para elaborar uma teoria geral e sim para ajudar a resolver um problema
histórico particular, isto é, o das condições sociais necessárias ao desenvolvimento e à
manutenção do capitalismo moderno. Tais concepções e análises foram incorporadas
gradualmente à sociologia americana, gerando consequências indesejáveis, como a não
distinção clara entre as condições da ação considerada racional daquela concernente aos
diversos tipos de estruturas que intervêm em diversas economias. Hopkins também
visualiza uma outra consequência ainda mais grave:
“Esta confusão da história e do funcionamento de um tipo
de economia com o problema da comparação das
economias conduz ao preconceito, que nós consideramos
gratuito, segundo o qual a economia de mercado é o
protótipo estrutural e funcional da economia em geral.”
(Hopkins, 1975, p. 271, trad. livre).
Hopkins reconhece que após a primeira publicação do livro de Polanyi, The great
transformation, faz-se um esforço para desenvolver o que é designado concepção
substantiva da economia. Daí autor aponta as razões da institucionalização (retomando o
pensamento de Polanyi) do processo econômico:
“Pois, mesmo que as atividades econômicas se
harmonizem com as condições ambientais, elas não são
70
essencialmente o produto dessas condições, mas sim o
produto das maneiras organizadas de viver em grupo,
quer dizer dos modelos de interação; e a coerência que
manifestam claramente essas atividades decorre
principalmente de sua pertinência ao sistema de modelos
de interação.
O processo econômico é então um ‘processo
institucionalizado’ no sentido evidente que uma parte
essencial desse processo — a parte composta pelas
atividades humanas que contribuem para o
aprovisionamento em meios materiais — constitui
igualmente uma parte do sistema social. [...] Assim os
objetivos perseguidos, seja com relação ao processo
econômico, ou a outro, e a maneira pela qual os objetos
materiais são definidos (isto é, as significações que lhes
são atribuídas) podem ser consideradas como modeladas
pelas definições dos papéis sociais” (Hopkins, 1975, p.
282, trad. livre).
Segundo Hopkins, a institucionalização do econômico se dá mediante quatro níveis em
que os modelos de ação econômica são integrados àqueles de ação não econômica:
71
1) O primeiro nível seria aquele em que as ações econômicas são empreendidas através
de papéis constituídos majoritariamente por ações cujos efeitos sobre o processo
econômico são praticamente insignificantes. Como exemplo de integração nesse nível, o
autor cita a distribuição de comida, por um padre, aos pobres;
2) No segundo nível, as ações econômicas podem constituir os principais elementos dos
papéis, mas tais papéis econômicos podem ser as unidades de estruturas que se compõem
essencialmente de papéis não econômicos. Seria o caso de um gestor financeiro de uma
universidade, o qual exerce um papel econômico num contexto organizacional
originariamente não econômico;
3) O terceiro nível é observável quando os modelos de ação econômica e não econômica
são integrados operando em contextos estruturais não econômicos. O exemplo dado é o
de uma comuna israelita, o kibutz;
4) Finalmente, no quarto nível a estrutura das relações entre as organizações econômicas
pode ser eminentemente econômica, como no interior do sistema de mercado de uma
sociedade complexa moderna.
Conclui Hopkins que ao utilizar-se o modelo de mercado como teoria explicativa do
funcionamento de todas as economias, é o mesmo que supor que as atividades
econômicas em todas as sociedades decorrem sempre com a predominância do quarto
nível acima, desprezando-se todos os três níveis anteriores.
72
Para o autor, a predominância do quarto nível revela um tipo de sociedade em que o
econômico é organizado como um subsistema estruturalmente distinto da sociedade, o
que não se verifica para uma infinidade de sociedades diferentes das capitalistas
modernas. Assim, para analisar aquelas sociedades, “o modelo de mercado é não só
inútil, ele é realmente enganador” (Hopkins, 1975, p. 285, trad. livre).
A influência das teses dos autores da concepção substantiva da economia é facilmente
verificável nas proposições de Guerreiro Ramos. Podemos ver, por exemplo, a estreita
relação dessa concepção com a “abordagem substantiva da organização”, proposta por
Guerreiro Ramos. Por exemplo, enquanto Hopkins descreve os quatro níveis de
institucionalização do econômico no social, dentre os quais o modelo centrado no
mercado corresponde a apenas um nível, Guerreiro Ramos estabelece as diretrizes gerais
para a reformulação da teoria das organizações em direção à abordagem substantiva. Tais
diretrizes contêm a noção de que o homem tem diferentes tipos de necessidades cuja
satisfação requer diversos tipos de “cenários sociais”; sendo o sistema de mercado apenas
um tipo particular de cenário e, portanto, atendendo a limitadas necessidades humanas.
Se compararmos os “níveis de institucionalização”, propostos por Hopkins, aos “cenários
sociais”, advogados por Guerreiro Ramos, constatamos aí mais uma das concepções
teóricas que serviram de base ao autor brasileiro para o desenvolvimento da abordagem
substantiva da organização.
73
De igual modo, ao elaborar o “paradigma paraeconômico” (um modelo multidimensional
de sistemas sociais), Guerreiro Ramos também demonstra uma clara filiação intelectual
aos autores da concepção substantiva da economia. Os “enclaves” que compõem o
referido paradigma, são espaços de ação (muitas vezes econômica) que só atendem aos
requisitos das interações do tipo de mercado — indicados por Hopkins no quarto nível de
institucionalização — na sua área específica, isto é, na área onde as relações e objetivos
predominantemente utilitaristas são a regra. Isto quer dizer que o enclave dominado pela
lógica do mercado é apenas um dentre outros. Nos demais enclaves, mesmo que se
desenvolvam ações de cunho econômico, as interações sociais são marcadas pela
institucionalização das atividades econômicas segundo os outros três níveis descritos por
Hopkins.
Godelier e a análise da racionalidade econômica:
Maurice Godelier, um dos expoentes da antropologia econômica, de certa forma também
herdou o conhecimento produzido por Polanyi e seu grupo.
Godelier (1975) elabora uma crítica de algumas opções adotadas por Polanyi e, tenta ir
mais além no exame das atividades econômicas próprias de sociedades anteriores ao
advento do capitalismo. Para Godelier (1975), a intenção de Polanyi em ultrapassar a
teoria econômica é correta, pois como Polanyi, ele não aceita que a análise econômica
aplique os mesmos instrumentos para o exame de economias anteriores ou diferentes
74
daquela típica do capitalismo moderno, onde o mercado é o centro e o ponto de partida
analítico da teoria econômica tradicional.
No entanto, a forma pela qual a teoria econômica tradicional seria ultrapassada é que
divide as visões de Polanyi e de Godelier, ensejando, de fato, uma riqueza de opções
epistemológicas digna do processo de real avanço científico.
Godelier critica a opção confessa de Polanyi pelo empirismo, enquanto ele defende que só
a opção estruturalista/marxista poderia dar conta das tarefas de ultrapassar a teoria
tradicional e atingir um estágio onde se possa efetuar análises comparativas contundentes
entre economias distantes entre si na história. Para Godelier,
“Aqui aparecem com toda a clareza a natureza e os
limites do empreendimento de Polanyi: ele não busca de
maneira nenhuma explicar as razões da presença no seio
de uma sociedade determinada de uma tal ou qual
estrutura social […] Ele não busca também descobrir por
quais razões o processo de produção dos meios materiais
se encontra ‘alojado’ no interior das relações de
parentesco. […] A abordagem empírica resulta de fato em
conceitos abstratos […] Somente uma abordagem
estruturalista ou uma abordagem marxista se preocupam
em explicitamente buscar, sob a diversidade das
75
semelhanças ou das diferenças, uma ordem subjacente, a
lógica invisível das propriedades objetivas das relações
sociais e de suas leis de transformação.” (Godelier, 1975,
pp. 18, 23, 24, trad. livre).
A crítica se mescla com elogios, revelando, no fundo, a importância das idéias defendidas
por Polanyi para o desenvolvimento posterior dos estudos de Godelier:
“O grande mérito — e o limite — do esforço de Polanyi é
de ter explicitado e codificado claramente em um ‘corpus’
coerente conceitos que eram largamente utilizados por
historiadores e antropólogos.” (Godelier, 1975, p. 24,
trad. livre).
O aprofundamento da querela entre empirismo e estruturalismo/marxismo na análise dos
processos econômicos em sociedades pré-capitalistas não faz parte de nosso objetivo
neste estudo. Apresentamos alguns dos posicionamentos críticos de Godelier face à obra
de Polanyi com o intuito apenas de demonstrar a importância dos trabalhos de Polanyi e
seu grupo para o desenvolvimento posterior da antropologia econômica e, a medida em
que Godelier é influenciado por tais trabalhos, ainda que tenha optado por caminhos
diversos. A crítica é um dos instrumentos mais válidos para o avanço da ciência.
Ademais, resta ao estudioso da antropologia econômica escolher quais fundamentos e
76
conceitos utilizar, pois Godelier e outros, ao examinar a obra de Polanyi fizeram
aumentar o leque de opções interpretativas do fenômeno econômico.
Centraremo-nos agora na contribuição específica de Godelier ao estudo da racionalidade
econômica.
O autor dedica uma parte importante de seus trabalhos ao tema da racionalidade
econômica. Primeiramente admite que o econômico se apresenta como uma realidade
social complexa, pois é ao mesmo tempo um campo particular de atividade voltado para a
produção, a distribuição e o consumo de bens, e devido aos próprios mecanismos de
implementação dessas subatividades, o econômico torna-se um aspecto particular de
todas as atividades não econômicas.
A atividade econômica, então, seria uma atividade específica que delimitaria um campo
particular de relações sociais e, também, uma atividade engajada no funcionamento das
outras estruturas sociais. Consequentemente, o econômico não possuiria no seu próprio
nível a totalidade de seu sentido e também da sua finalidade, apenas uma parte delas
(Godelier, 1966, v.1).
Partindo desses princípios, Godelier desmistifica a racionalidade econômica:
“A racionalidade econômica só se mostra então através
da racionalidade epistemológica, da ciência econômica
77
[...] O conhecimento da racionalidade econômica
depende inteiramente da verdade das hipóteses
elaboradas pelos economistas (e outros especialistas das
ciências sociais).” (Godelier, 1966, v. 1, p. 29, trad. livre).
Tal posição choca-se frontalmente com a do atomismo utilitário, tão criticada também por
Polanyi, segundo a qual o homem teria uma propensão inata para efetuar trocas dentro de
um ambiente natural. Ora, se a racionalidade econômica é essencialmente um constructo
epistemológico, ela nunca poderia ser inata, como um atributo da psique do indivíduo.
Nesse ponto, a posição de Godelier encontra-se também com aquela defendida por
Guerreiro Ramos (1981), pois o sociólogo brasileiro, como veremos adiante, afirmava
que a racionalidade funcional ou instrumental (a mesma que a chamada de “econômica”
por Godelier) é apenas uma definição, uma elaboração lógica.
Godelier constata que a noção de racionalidade econômica é a mais contestada de todas
as categorias da economia política. Adianta que se a antropologia econômica pretende ser
uma ampliação da economia política, ela deve conduzir a uma renovação da noção de
racionalidade econômica. Essa tarefa passa a ser uma das maiores contribuições do autor
ao avanço das ciências sociais.
Para Godelier, desde o seu início a economia política engajou-se na crítica, na explicação
ou na justificação da economia industrial e mercantil. Tais críticas e justificações se
queriam absolutas, pois acreditava-se que as regras da economia nova se encontravam em
78
plena consonância com a Razão Natural transcendente a toda contingência histórica. Daí
ele demonstra que,
“Assim os mecanismos da economia mercantil se
encontravam ao mesmo tempo descritos e ‘valorizados’.
Os fatos tornavam-se ‘normas’. O sistema econômico
novo era posto e ‘vivido’ como um ‘modelo’ diante do
qual as regras do antigo regime e de outras sociedades
eram traduzidas, julgadas e reconhecidas culpadas de
‘irracionalidade’” (Godelier, 1966, p. 192, trad. livre).
Analisando diversas sociedades, antigas e modernas, Godelier propõe a ampliação do
conceito de racionalidade. Chama a atenção para a correspondência entre as estruturas
econômicas, políticas, de parentesco, religiosas e culturais. Tal gênero de correspondência
faz relativizar a concepção da racionalidade:
“Uma conduta econômica que nos parece ‘irracional’
encontra uma racionalidade própria, reinserida no
funcionamento do conjunto da sociedade. [...] O racional
de hoje pode ser o irracional de amanhã, o racional de
uma sociedade pode ser o irracional de outra. [...] Em
definitivo, a noção de racionalidade remete a análise do
fundamento das estruturas da vida social, de sua razão de
79
ser e de sua evolução.” (Godelier, 1966, p. 206, trad.
livre).
Novamente gostaríamos de chamar a atenção para a influência dos estudos de Polanyi nos
trabalhos de Godelier. A idéia de que o exame da racionalidade remete às estruturas da
vida social e de que o econômico não possuiria no seu próprio nível a totalidade de seu
sentido e finalidade, não só faz lembrar Polanyi e sua noção de embedded, como também
as formulações de Guerreiro Ramos no tocante aos “cenários” e “enclaves” sociais,
mesmo ressalvando que o estudo de Godelier que aqui tratamos é anterior ao de Guerreiro
Ramos.
Em Godelier e em Guerreiro Ramos, o conceito de racionalidade é abordado diretamente,
ou seja, a racionalidade é um tema explícito em suas obras. Mesmo que esse tema não
seja o alvo prioritário da abordagem de Polanyi e seu grupo (como vimos, tal tema é
mencionado colateralmente por Polanyi), é aos trabalhos dos fundadores da concepção
substantiva da economia que podemos creditar uma parte significativa do ponto de
partida dos desenvolvimentos posteriores efetuados por grandes cientistas sociais da
estirpe de Godelier e Guerreiro Ramos.
Para o nosso estudo, os trabalhos de Polanyi e seu grupo, desembocando no tratamento
desmitificador da racionalidade econômica/instrumental — única considerada pela
maioria dos autores da teoria administrativa — têm um valor inestimável, pois
fundamentam toda a démarche, os conceitos e a análise que nos propusemos a
80
operacionalizar. A própria expressão “organização substantiva”, que empregamos aqui,
advém de toda a corrente “substantivista” (se o leitor nos permite, fazemos uso aqui de
um neologismo), compreendendo Polanyi, seu grupo e Guerreiro Ramos. Ao empregar tal
expressão, queremos declarar nitidamente a nossa filiação a tal corrente, além de também
fazer emergir o conceito de um tipo de racionalidade que não se confunde com a razão
instrumental, como detalharemos mais tarde.
Após empreendermos esta síntese de alguns desenvolvimentos do tema da racionalidade,
tanto na filosofia quanto em determinados campos das ciências humanas, gostaríamos de
apresentar duas outras abordagens do mesmo tema, as quais utilizaremos como
referências básicas do nosso estudo. Tratam-se, respectivamente, da Teoria da Ação
Comunicativa, elaborada por Jürgen Habermas e a da Razão Substantiva, desenvolvida
por Guerreiro Ramos.
II. A teoria da ação comunicativa
O nome de Habermas está definitivamente ligado ao que se convencionou chamar
“Escola de Frankfurt”. Segundo Freitag (1986), por esta expressão tenta-se designar a
institucionalização dos estudos de um grupo de autores marxistas, não ortodoxos, que nos
anos 20 permaneceram à margem de um marxismo-leninismo “clássico”, seja em sua
versão teórico-ideológica, seja em sua linha militante e partidária.
81
A Escola de Frankfurt começa pela fundação do Instituto de Pesquisas Sociais (Institut
fuer Sozialforschung), em 1923, pelo intelectual Felix Weil, ficando vinculado a
Universidade de Frankfurt. O objetivo inicial do instituto era criar um grupo de trabalho
para a documentação e teorização dos movimentos operários na Europa (Freitag, 1986).
Em 1930, Max Horkheimer, filósofo, assume a direção do instituto. Daí em diante, a
organização toma um direcionamento diferente, com propostas mais amplas e ambiciosas,
tornando-se um centro de pesquisa voltado para a análise crítica dos problemas do
capitalismo moderno. Horkheimer atraiu para o instituto os intelectuais que, de fato,
celebrizaram aquela entidade, dentre eles podemos citar Adorno, Marcuse, Benjamim,
Fromm, que se filiaram diretamente à entidade ou colaboravam frequentemente através
da realização de estudos.
Ali foi produzido um conjunto de obras que marcou decisivamente a filosofia e as
ciências sociais neste século. Balizados sob três temas principais — a dialética da razão
iluminista e a crítica à ciência; a dupla face da cultura e a discussão da indústria cultural;
e a questão do Estado e suas formas de legitimação na moderna sociedade de consumo —
a “teoria crítica”, como também é conhecida a produção central do grupo, tornou-se uma
passagem obrigatória aos intelectuais contemporâneos que se dedicam a estudar diversos
temas, tais como a racionalidade na sociedade moderna e as relações entre a ciência e o
desenvolvimento social. A crítica da razão instrumental e a preocupação com a
emancipação humana são dois aspectos também marcantes nas obras dos frankfurtianos.
82
Jürgens Habermas nasceu em 1929, em Gummersbach. A partir de 1956 até os anos 60,
colaborou com o instituto durante a fase marcada pela direção de Adorno. Habermas é
considerado o herdeiro direto da Escola de Frankfurt. Desde os anos 70 Habermas já
esboçava uma crítica à própria “teoria crítica” elaborada por Horkheimer e Adorno;
porém, é nos anos 80 que esta crítica se sistematiza e faz avançar o conhecimento
produzido na primeira fase do antigo instituto. Habermas se volta abertamente contra a
Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer e, proclama o fim da filosofia da
consciência, bem como a necessidade de uma mudança radical de paradigma na
abordagem da racionalidade. Essa fase coincide com o lançamento dos dois volumes da
Teoria da ação comunicativa.
Para Freitag,
“Através de Habermas, a teoria crítica transformou-se
num fato mundial. Graças a ele, essa teoria entrou numa
nova fase. Longe de deixar-se bater pelo pessimismo dos
‘velhos’, Habermas propõe uma reflexão radical coletiva,
democrática, e uma renegociação política na qual todos
deveriam participar.” (Freitag, 1986, p. 151).
Habermas elaborou um dos estudos mais profundos sobre o tema da racionalidade,
tocando os campos da filosofia e das ciências sociais. Seu trabalho, ancorado à teoria da
83
ação, vem desde a sua publicação influenciando dezenas de autores em todo o mundo,
suscitando críticas, adições e comentários que o enriquecem enquanto proposta de
explicação das possibilidades de ação racional na sociedade contemporânea, com vistas à
emancipação do homem face aos constrangimentos impostos por essa sociedade.
Não temos, evidentemente, a pretensão de discutir aqui todas as bases, bem como o
“edifício” teórico das proposições habermasianas contidas na teoria da ação comunicativa
(o que, também, fugiria ao espectro do nosso estudo). Gostaríamos de destacar, neste
momento, alguns aspectos da sua teoria, os quais poderão nos auxiliar a cumprir os
objetivos aos quais nos propomos atingir mediante a elaboração deste trabalho. Tais
aspectos se referem principalmente à sua tipologia de ação.
Um dos pontos de partida fundamentais da proposição de Habermas, como dissemos
acima, é a crítica aos escritos de Weber. Portanto, antes de apresentar a tipologia de ação
elaborada por Habermas, faremos uma breve referência à classificação dos tipos de ação
social definida por Max Weber.
Weber (1978) inicia sua proposta conceituando a ação social, em geral, como aquela que
é orientada pelas ações de outros, aí também levando em conta a tolerância e a omissão. É
importante ter-se em mente que, o que Weber assume como “outros”, tanto podem ser
indivíduos conhecidos, tanto pode ser uma pluralidade de indivíduos não determinados e
totalmente desconhecidos. A sua classificação estabelece quatro tipos de ação social:
84
1) Ação racional com relação a fins - determinada por expectativas no comportamento
tanto de objetos do mundo exterior como de outros homens, e utilizando essas
expectativas como condições ou meios para o alcance de fins próprios racionalmente
avaliados e perseguidos;
2) Ação racional com relação a valores - aquela ação que é determinada pela crença
consciente no valor, seja ele percebido como estético, ético, religioso, etc., — próprio e
absoluto de uma conduta determinada, considerada em si mesma e independente de êxito;
3) Ação afetiva - especialmente emotiva, determinada por afetos e estados sentimentais
atuais;
4) Ação tradicional - determinada por um costume arraigado (Weber, 1978).
Um aspecto de particular importância para Weber é a questão do sentido da ação social.
No caso da ação tradicional, ela está na fronteira e muitas vezes até além do que se
poderia chamar de uma ação “com sentido”, devido à sua natureza: uma reação à
estímulos habituais, em conformidade a atitudes ja arraigadas. A ação afetiva também
estaria na fronteira ou além do sentido, pois ela pode ser uma reação sem limites a um
estímulo incomum.
Já a ação racional com relação a valores, distingue-se das anteriores pelo fato de ser uma
elaboração consciente dos princípios últimos da ação e por orientar-se por eles de modo
85
conscientemente planejado. No entanto, Weber chama a atenção que elas têm em comum
a característica de que o sentido não reside no resultado e sim na própria ação em sua
peculiaridade. Consequentemente,
“Uma ação racional com relação a valores é sempre (no
sentido de nossa terminologia) uma ação segundo
‘mandatos’ ou de acordo com ‘exigências’ que o agente
acredita serem dirigidas para ele (e diante das quais o
agente se acredita obrigado). Falaremos de uma
racionalidade com relação a valores, somente na medida
em que a ação humana se oriente por essas exigências —
o que apenas ocorre numa fração, o mais das vezes
modesta, dos casos.” (Weber, 1978, p. 141).
Para Weber, aquele que age racionalmente com relação a fins, orienta a sua ação
conforme o fim, meios e consequências implicadas nisso e, avalia a adequação entre esses
meios e esse fim. Daí, podemos deduzir que o autor atribui “racionalidade” somente às
ações “com sentido”.
A primeira crítica de Habermas à classificação de Weber destina-se justamente à questão
do sentido. Habermas acusa-o de partir de um conceito de ação “estruturado
monologicamente”: o conceito de sentido é fundamental na teoria de ação de Weber, mas
o que ele define como sentido não é explicado como modelo de significados linguísticos,
86
nem tampouco o sentido é relacionado com o meio linguístico da compreensão ou
entendimento possíveis; logo, para Habermas, Weber não tem como pano de fundo uma
teoria do significado, e sim,
“Uma teoria intencionalista da consciência. […] ele
relaciona o sentido com as opiniões (Meinungen) e
intenções de um sujeito de ação, a quem em princípio se
concebe como um sujeito ilhado.” (Habermas, 1987, v. I,
p. 359, trad. livre).
Habermas conclui esse primeiro contraponto afirmando categoricamente que, como
Weber partiu de um conceito de ação estruturado monologicamente, ele não pode
desenvolver o conceito de “ação social” através da via da explicação do sentido.
O segundo contraponto indentifica que o interesse que guia a tipologia de Weber é o de
distinguir graus de racionalização da ação, onde o único aspecto susceptível de
racionalização é a relação meio-fim de uma ação teleológica percebida numa ótica
monológica. Assim, o único elemento que cabe julgar nas ações seria a eficácia da
intervenção causal da ação numa situação dada e a “verdade” dos enunciados empíricos
nos quais se baseiam o plano, ou seja, a opinião que o sujeito tem a respeito da
organização racional dos meios (Habermas, 1987).
87
Habermas declara-se plenamente convencido de que Weber partiu de um modelo
teleológico de ação e não um modelo de interação social, logo, na sua explicação do
processo de racionalização social, como vimos acima, ele teria considerado apenas como
aspectos susceptíveis de racionalização aqueles que são consequentes do modelo de
atividade teleológica: os aspectos relacionados com a racionalidade meio-fim. Habermas
clama por uma via distinta para a explicação da racionalização da sociedade moderna em
toda a sua extensão:
“Tratarei de dar uma base categorial adequada àqueles
aspectos da ação susceptíveis de racionalização que
passam subrepticiamente na teoria oficial da ação de
Weber. […] Partirei de uma classificação das ações que
se inspira na versão não oficial da teoria weberiana da
ação …” (Habermas, 1987, v. I, p.366, trad. livre).
A tipologia habermasiana se apóia sob dois eixos: a orientação para o êxito e a orientação
para o entendimento. Por êxito, Habermas entende a implantação no mundo de um estado
de coisas desejado, que em uma dada situação pode ser gerado causadamente através de
uma ação ou omissão calculadas. Os efeitos da ação compreendem:
a) Os resultados da ação, na medida em que se tenha realizado o fim desejado;
88
b) As consequências da ação, que o sujeito as tenha previsto ou que tenha tido que contar
com elas;
c) As consequências laterais, as quais o sujeito não as tenha previsto.
Por entendimento, Habermas define um processo de obtenção de acordo entre sujeitos
linguística e interativamente competentes. Assim, os processos de entendimento têm
como meta um acordo que satisfaça as condições de aceitação, racionalmente motivada,
do conteúdo de uma emissão.
Três tipos compõem a classificação de Habermas:
“A uma ação orientada para o êxito chamamos
instrumental quando a consideramos sob o aspecto de
observância a regras de ação técnicas e avaliamos o grau
de eficácia da intervenção que essa ação representa em
um contexto de estados e sucessos; a uma ação orientada
para o êxito chamamos estratégica quando a
consideramos sob o aspecto da observância a regras de
escolha racional e avaliamos seu grau de influência sobre
as decisões de um oponente racional. As ações
instrumentais podem estar associadas a interações
sociais. As ações estratégicas representam, em si mesmas,
89
ações sociais. Falo, em contraposição, de ações
comunicativas quando os planos de ação dos atores
implicados não se coordenam através de um cálculo
egocêntrico de resultados e sim mediante atos de
entendimento. Na ação comunicativa os participantes não
se orientam primariamente para o próprio êxito; antes
perseguem seus fins individuais sob a condição de que
seus respectivos planos de ação possam harmonizar-se
entre si sobre a base de uma definição compartilhada da
situação.” (Habermas, 1987, v. I, p. 367, trad. livre).
Habermas esclarece que um acordo alcançado por meio de ações comunicativas tem que
ter uma base racional, ele não poderia jamais ser imposto por nenhuma das partes, quer
seja instrumentalmente por uma intervenção direta na situação da ação, quer seja
estrategicamente por meio de um influxo calculado sobre as decisões de um oponente. “O
acordo se baseia em convicções comuns.” (Habermas, 1987, v. I, p.369, trad. livre).
Este aspecto é muito importante ao compararmos as tipologias de Weber e de Habermas.
Weber considera como racionais somente as ações com respeito a fins e as ações com
respeito a valores, porém ressalvando que estas últimas só poderiam ser racionais se o
agente se percebe obrigado a agir por mandatos ou exigências, e por isso mesmo o autor
as identifica como extremamente raras. Habermas nos parece ampliar substancialmente
tanto o espectro como a possibilidade da racionalidade de uma ação; ele parte de um
90
ponto de vista interativo, agregando variáveis inteiramente novas com relação à
proposição de Weber e sem negar o aspecto teleológico da ação comunicativa.
A argumentação de Habermas leva-o a afirmar que o seu modelo comunicativo não faz
coincidir ação com comunicação; nele, a linguagem é um meio de comunicação que serve
ao entendimento, enquanto que os agentes, ao entender-se entre si para coordenar suas
ações, perseguem cada um determinadas metas. Daí que,
“Neste sentido a estrutura teleológica é fundamental para
todos os conceitos de ação. Não obstante, os conceitos de
ação social se distinguem pela forma em que estabelecem
a coordenação das ações teleológicas dos diversos
participantes da interação. […] Em todos os casos se
pressupõe a estrutura teleológica da ação, já que se supõe
nos atores a capacidade de propor fins e de atuar
teleologicamente e, portanto, também um interesse na
execução de seus planos de ação. […] No caso da ação
comunicativa os rendimentos interpretativos de que se
constróem os processos cooperativos de interpretação
representam o mecanismo de coordenação da ação; a
ação comunicativa não se esgota no ato de entendimento
realizado em termos de interpretação.” (Habermas, 1987,
v. I, p.146, trad. livre).
91
Julgamos de grande importância, aqui, dar o devido destaque e insistir sobre este ponto.
A ação comunicativa não deve ser confundida ou limitada a atos de palavra, o seu
conceito não deve ser confundido ou interpretado como um mero exercício discursivo. O
nível do discurso é inserido no plano da interação, onde a palavra é essencial ao
entendimento, mas a interação mediatizada pelo entendimento visa coordenar ações
posteriores que se dirigem a objetivos.
Tal aspecto é crucial para a compreensão da opção que fizemos em fundamentar parte de
nossa análise das organizações pesquisadas na teoria de Habermas. Os membros de
organizações produtivas, sejam substantivas ou não, também visam o alcance de
objetivos, individuais e coletivos. Interessa-nos entender como tais membros estabelecem
seus processos de coordenação de ações (processos organizacionais), como veremos mais
adiante.
Neste contexto, acreditamos que a formulação de Habermas é de grande utilidade para a
compreensão das interações fundamentais que ocorrem no interior das organizações
substantivas. Voltaremos a discutir outros pontos dessa formulação, na oportunidade em
que tentaremos estabelecer alguns paralelos com o estudo de Guerreiro Ramos sobre a
razão substantiva.
Face a alguns estudos sintetizados na seção anterior, é por demais evidente que o esforço
de Habermas não se situa especificamente no mesmo âmbito da concepção substantiva da
92
economia, nem no da antropologia econômica. Contudo, ao aprofundar-se na esfera da
interação simbólica, elaborando uma tipologia da ação racional, Habermas acaba também
por brindar-nos com uma série de constructos que nos permite ir mais além na
compreensão dos processos de institucionalização das atividades econômicas, no sentido
empregado por Polanyi e seu grupo.
Esta possibilidade de ampliação da compreensão aponta justamente para o âmbito da
interação. Cremos que podemos refletir no sentido de que as ações orientadas ao êxito,
quer sejam instrumentais ou estratégicas, predominam num contexto onde as atividades
econômicas desvencilharam-se das instituições sociais, autonomizando-se como um
sistema à parte na sociedade. É o domínio da razão instrumental/utilitária, espelhado na
teoria econômica que Polanyi, seu grupo e também Godelier incumbem-se de criticar e
desmistificar.
Por outro lado, num contexto onde o econômico está essencialmente embedded no social,
as ações relacionadas também com a atividade econômica seriam predominantemente
ações orientadas ao entendimento, uma vez que estariam livres do imperativo utilitarista
que caracteriza a busca do êxito e se sobrepõe ao contexto ético-normativo do grupo (e
sua moldura institucional).
Apesar de trabalhar numa dimensão e num campo do conhecimento diferentes das
concepções teóricas descritas anteriormente, pois centra-se na interação simbólica, na
ação social e nos processos comunicativos, Habermas aporta-nos uma significativa
93
contribuição ao tratamento do tema da inserção/desprendimento do econômico no social,
ao demonstrar os tipos de ações (e sua operacionalização) racionais desenvolvidas nos
diversos processos sociais, abrindo-nos uma nova via para a explicação do fenômeno que
Polanyi e seu grupo denominavam institucionalização da economia.
Enquanto Godelier, como vimos acima, apontava e praticamente limitava a explicação à
via do estruturalismo e do marxismo, defendendo a busca do invariante estrutural
(“ordem subjacente”, “lógica invisível”), observamos que Habermas, em outro
campo/perspectiva de estudos, trilha um caminho diverso para a explicação dos
fenômenos sociais: ele investe no ator social, descortinando para nós uma outra via, a via
do sujeito e da ação, pela qual nos propomos caminhar ao longo deste trabalho.
É do emprego da teoria da ação comunicativa, disposta numa perspectiva de
complementaridade com o pilar central do nosso trabalho — a teoria da razão substantiva
dirigida a análise organizacional, elaborada por Guerreiro Ramos — que advém o quadro
de análise e a lógica de interpretação que adotamos na abordagem do fenômeno
examinado neste estudo.
Voltaremos a comentar vários outros aspectos da teoria da ação comunicativa no Capítulo
IV, onde detalharemos os termos da complementaridade acima referida.
A vasta obra de Habermas vem suscitando um grande interesse em todo o mundo.
Diversos autores, em vários países, têm publicado comentários, análises e contraposições
94
com respeito aos seus escritos, fato que atesta a fecundidade de suas idéias, a
profundidade de sua obra e que também confirma a condição de Habermas como um dos
pensadores mais importantes deste século. Assim sendo, gostaríamos de apresentar um
extrato de alguns comentários críticos a abordagem da ação comunicativa, formulados
por renomados autores da ciência social. Um levantamento dos comentários à obra
integral de Habermas, por certo fugiria em muito aos objetivos do nosso estudo.
Algumas críticas à teoria da ação comunicativa:
A crítica de Giddens:
Giddens (1977, 1982) empreende críticas a uma série de aspectos da obra de Habermas,
alimentando o debate e enriquecendo o conhecimento sobre os temas abordados pelo
autor alemão. Entre as críticas elaboradas por Giddens, sintetizaremos aquelas que se
dirigem à teoria de ação habermasiana, pelo fato de que essa teoria se constitui num dos
suportes fundamentais do nosso estudo.
Partindo da distinção entre trabalho e interação, pela qual Habermas relaciona trabalho a
ação instrumental e interação a ação comunicativa, Giddens afirma que,
95
“Isto é, no melhor, muito ilusório querer usar ‘trabalho’
como equivalente de um elemento analítico da ação e ao
mesmo tempo continuar a usá-lo no sentido de ‘trabalho
social’; e utilizar ‘interação’ similarmente como um
elemento analítico e um tipo substantivo, oposto ao
‘monológico’ ou ação solitária. Eu penso que esta
confusão vem de uma infeliz mistura de idéias extraídas
de fontes entre as quais não há realmente muita em coisa
em comum. Estas fontes são, de um lado, a distinção
weberiana entre ação racional com respeito a fins e ação
racional com relação a valores, e, de outro lado, a
diferenciação feita por Marx entre forças e relações de
produção. A distinção de Weber pressupõe um ‘tipo ideal’
analítico, mas a de Marx, não. Porém, ele [Habermas]
continua a assimilar ‘forças de produção’, ‘trabalho’ e
‘ação racional com relação a fins’; e a assimilar
‘relações de produção’, ‘interação’ e ‘ação
comunicativa’.” (Giddens, 1982, p. 156, trad. livre).
Complementando, Giddens (1982) acusa Habermas de equiparar ação a interação e
adverte que “teoria de ação” não é o mesmo que “teoria da interação”. Para ele, essas
“ambiguidades ou confusões” acarretam sérias consequências conceituais para o trabalho
de Habermas como um todo.
96
Uma outra crítica, consequente dessa primeira, refere-se ao tratamento da questão do
poder. Giddens (1977) declara que Habermas substitui o poder por uma noção de
dominação equivalente a uma comunicação distorcida, assim,
“Poder entra na interação somente filtrado através da
inclinação ideológica das condições de comunicação, não
como fundamental nas relações entre atores pelos quais a
interação é constituída como uma atividade progressiva.”
(Giddens, 1977, p. 152, trad. livre).
Por outro lado, de igual importância são as seguintes declarações de Giddens ao final de
suas críticas:
“Concluindo estas seções de discussão, eu me concentrei
em comentários críticos. É muito necessário dizer que isto
não é uma refutação da importância dos escritos de
Habermas. Ao contrário, Habermas deve ser classificado
como o mais preeminente dos filósofos sociais
contemporâneos, que tem feito mais do que ninguém uma
ponte entre a separação das filosofias continental e
anglo-saxã.” (Giddens, 1972, p.163, trad. livre).
97
Por sua vez, Habermas (1982) inicia a réplica às críticas de Giddens reconhecendo que
nos seus trabalhos mais antigos não teria se expressado o suficientemente claro,
originando a má compreensão de Giddens sobre alguns conceitos. Defende-se da suposta
“confusão”, identificada por Giddens, da seguinte maneira:
“Eu estou longe de equiparar ação com interação. A
distinção entre orientação para o êxito e orientação para
o entendimento é decisiva para a minha tipologia de ação.
[…] Eu não identifico nem ação, nem ação social, nem
ação comunicativa com atos de palavra. Padrões de ação
social só podem ser desenvolvidos onde algum mecanismo
assegure que os planos dos participantes da ação possam
ser coordenados de forma suficientemente livre de
conflito, e que as proposições de um possam ser aceitas
por outro.” (Habermas, 1982, pp. 264-265, trad. livre).
Assim Habermas remete a ação, seja ela de que tipo fôr, para o plano teleológico.
Podemos deduzir da sua defesa, que o caráter teleológico desse tipo de comunicação — a
coordenação de planos de ação futura dos indivíduos — distingue-a dos simples atos de
palavra.
98
Consequentemente, Habermas esclarece que o conceito de ação comunicativa não é o
mesmo que está embutido no modelo normativo de ação, rejeitando a proposição de
Giddens:
“Contrariamente à visão de Giddens, o conceito de ação
comunicativa vai decididamente mais além que o modelo
normativo de ação. De acordo com o conceito, a
interação não é regulada através de um consenso
normativo que é fixado a priori, mas através dos
conhecimentos falíveis dos próprios participantes.”
(Habermas, 1982, p. 265, trad. livre).
Quanto aos pares de assimilação forças produtivas/ação instrumental, e relações de
produção/ação comunicativa, criticados por Giddens, Habermas (1982) esclarece que
ambos pares conceituais referem-se a diferentes níveis. Mesmo reconhecendo uma
“conexão analiticamente explicável” em cada par de conceitos, Habermas declara que
forças produtivas e relações de produção relacionam-se a um nível conceitual que se
refere a sociedade como um todo, portanto, diferente daquele que congrega conceitos
referentes a simples interações.
Habermas (1982) também contra-argumenta sobre a crítica de que a sua teoria de ação
minimizaria a consideração do poder como um aspecto fundamental nas relações sociais.
Demonstra que o conceito de violência (Gewalt) ocupa uma posição central na sua
99
tipologia de ação, pois quando chega-se ao ponto onde as interações não podem ser mais
coordenadas através do entendimento, então a única alternativa é a violência, seja esta
refinada ou latente: “a distinção tipológica entre ação comunicativa e ação estratégica
quer dizer exatamente isso.” (Habermas, 1982, p. 269, trad. livre).
Habermas confessa a sua concordância com a visão de Hannah Arendt sobre a
legitimidade de um poder originado de convicções compartilhadas, obtidas mediante a
prática comunicativa cotidiana no mundo da vida, gerando assim a aceitação do poder
sem coerção. Afirma também guardar a utilidade do conceito weberiano de dominação
(Herrschaft), e assim, através da integração dos conceitos de violência, poder e
dominação, Habermas afirma estar tentando chegar a “uma abordagem adequada para a
análise crítica das estruturas de classes.” (Habermas, 1982, p. 269, trad. livre).
A crítica de Thompson:
Thompson (1982) também empreende uam crítica de muitos aspectos da obra de
Habermas. Seus comentários centram-se mais na formalização habermasiana de uma
“pragmática universal”, examinando detalhes ao nível da filosofia relacionada a
linguagem, evocando formulações de Austin, Chomsky, Wittgenstein, dentre outros. A
abordagem a tais comentários ultrapassa em muito o nosso âmbito de discussão neste
trabalho. Para o que toca mais diretamente a parte da elaboração de Habermas que serve
como fundamento neste estudo, ressaltaremos dois pontos:
100
a) Thompson põe em questão o processo de estabelecimento da “verdade” de uma
declaração numa ação comunicativa, tal como proposta por Habermas;
b) Questiona também a idéia de consenso racional enquanto consenso que é atingido de
forma argumentativa sob as condições de uma situação ideal de palavra (conversação).
Quanto ao problema da verdade, Habermas (1982) demonstra que para ser estabelecida a
verdade de um enunciado afirmado por um sujeito na comunicação, é preciso que as
“pretensões de validez” que o enunciado implica sejam confirmadas em três dimensões: a
verdade (pressuposições de existência do conteúdo proposicional mencionado); a
correção (com relação ao contexto normativo ou à retidão subjacente à norma em si
mesma); e a sinceridade da intenção expressada pelo sujeito.
No Capítulo IV abordaremos com mais detalhes a questão das “pretensões de validez”.
A crítica à situação ideal de palavra é replicada veementemente por Habermas:
“Eu não afirmo que um consenso válido só possa advir
das condições de uma situação ideal de palavra. A prática
comunicativa cotidiana está imersa num mar de auto-
evidências culturais, isto é, de certezas consensuais. Ao
mundo da vida enquanto pano de fundo do real processo
101
de alcance do entendimento, pertencem também
convicções e identificações empáticas com os sentimentos
de outrem.” (Habermas, 1982, p. 272, trad. livre).
A crítica de Sfez:
Em um trabalho recente, Sfez (1992) examina criticamente várias abordagens da
comunicação humana, dentre elas a teoria da ação comunicativa.
Podemos reunir as críticas de Sfez em três pontos, a saber:
1) As dicotomias e o mito subjacente - para o autor, Habermas elabora um regime de
dicotomias, tais como, entendimento x êxito, sociedade crítica x Estado, manipulado x
manipulador. Sfez interpreta essas dicotomias como portadoras de um mito, ao qual ele
critica duramente:
“O bem e o mal, a sombra e a luz, tantas oposições
enraizadas na utopia de uma reconciliação definitiva dos
homens entre eles e com a natureza. Que este mito,
sempre ressuscitado, seja chamado reino de Deus sobre a
Terra, ou mais tarde comunismo, não parece incomodar
nosso profeta.” (Sfez, 1992, p. 158, trad. livre).
102
Sfez argumenta que tais categorias são de ordem moral e psicológica, além de marcadas,
em Habermas, por uma forte característica kantiana. Sfez prossegue a sua crítica às
dicotomias questionando:
“Não são elas indissociáveis dos sistemas poderosos de
manipulação ? Quem nos diria se essas dicotomias não
são todas produzidas por um sistema de manipulação que
as valorizaria cada vez mais à medida em que elas o
afrontasse menos ? (Sfez, 1992, p. 159, trad. livre);
2) A descrição sem provas - para Sfez, Habermas elabora uma descrição de teorias de
forma rica e detalhada, conduzindo o leitor a refletir sobre um tema pouco decifrado
atualmente. No entanto, argumenta que uma descrição não é uma prova e, que discutir
teorias não é criar conceitos. Sfez afirma que empreender uma cronologia de grandes
autores, tal como Habermas o faz, não é necessariamente o mesmo que elaborar uma
teoria;
3) A ausência de análises sobre a comunicação atual - o autor lamenta a ausência de
abordagens às formas de comunicação contemporâneas. Sfez argumenta que, se para
Habermas a comunicação está no centro das relações sociais, é curioso não encontrar em
seu estudo nenhuma referência às tecnologias que estão no centro das práticas
comunicativas atuais:
103
“Nada sobre a inteligência artificial, nada sobre a ciência
cognitiva, nada sobre as transformações da biologia,
nada sobre as psicoterapias individuais ou de massa,
nada sobre as mudanças de paradigma nas ciências,
indissociáveis das teorias da comunicação, nada sobre a
linguística a não ser generalidades. Tratar da
comunicação sem dar lugar a esses campos, sem inseri-
los num aparato crítico, não é tratar de comunicação. E
crer que a crítica da comunicação de massa escrita ou
audiovisual esgota a questão, é tomar uma árvore pela
floresta.” (Sfez, 1992, p. 159, trad. livre).
Ao final de suas observações críticas, Sfez indica um ponto de concordância com
Habermas:
“Resta-nos o acordo sobre a idéia que Habermas deve a
Weber e desenvolve: a dificuldade da sociedade onde nós
estamos em se ressacralizar e sobretudo a fazê-lo a partir
da ciência. Mas não é uma certeza que o sagrado —
mesmo discutido pelo comentário — nos tenha
definitivamente escapado. A questão se coloca, em todo o
caso, pela comunicação em si mesma que se mostra hoje
104
em dia como fonte de todos os consensos que virão.”
(Sfez, 1992, p. 160, trad. livre).
Não há, ainda, registro disponível de uma réplica de Habermas às críticas de Sfez.
A teoria da ação comunicativa já desperta o interêsse de autores ligados ao campo das
organizações, provando a abrangência e a riqueza de suas propostas e enfoques. Assim é
que, antes de encerrarmos esta seção, gostaríamos de apresentar as linhas gerais de dois
bons estudos organizacionais recentemente produzidos com base na teoria da ação
comunicativa. O primeiro, foi realizado no Brasil, enfocando o tema da mudança
organizacional. O segundo, foi elaborado na França e, aborda a questão da comunicação
em indústrias automatizadas
Mudança organizacional e ação comunicativa em Martins:
Martins (1994) elabora uma interpretação crítica dos processos de mudança
organizacional em curso nas organizações produtivas e propõe novas bases para
mudanças organizacionais mais substanciais do que aquelas por ele criticadas, apoiando-
se na teoria da ação comunicativa.
O autor inicia o seu estudo por uma análise histórica do desenvolvimento do
conhecimento, admitindo que tal processo, dentre outras consequências, também
contribuiu para reprimir, ocultar e distorcer a comunicação humana, dificultando o
autoquestionamento e a autoreflexão. Para ele, a predominância da razão instrumental
105
acabou por distorcer a comunicação e assim, “o que deveria ser um processo
emancipador, tornou-se escravizador, colonizador, anti-humano.” (Marins, 1994, p. 3).
Nesse contexto, o autor aponta o papel crucial das organizações no estabelecimento de tal
configuração. As organizações funcionariam como uma segunda instância de socialização
dos indivíduos, pois submete-os a processos complementares de reprodução cultural e de
integração social, forjando e impondo um mundo da vida guiado pela orientação
sistêmica e baseado na razão instrumental. Assim, os indivíduos teriam suas percepções e
seus padrões de comunicação distorcidos, ocasionando a patologização e a coisificação
dos mesmos. Aqui, o autor cita como reforço de suas afirmativas a visão de Habermas
sobre a “colonização do mundo da vida pelo mundo sistêmico”.
Analisando os estudos e as práticas ditas de “mudança organizacional”, comumente
encontradas na literatura administrativa e nas ações em empresas, tais como
desenvolvimento organizacional, modernização administrativa, reforma administrativa e
outros, Martins vaticina :
“Em essência mudança organizacional, como vista por
acadêmicos e praticada pelas organizações, é a
transformação de algo ou alguma situação, cuja
eficiência e eficácia é deficiente e insatisfatória, em algo
mais produtivo, menos desgastante e economicamente
melhor. […] Neste contexto organizacional e social o ser
humano não é mais que uma peça da engrenagem, um
106
agente de mudanças; um recurso, um investimento que,
bem utilizado, pode ser compensador em termos do
retorno que pode dar para a organização enquanto
empreendimento econômico ou a serviço da economia.”
(Martins, 1994, p. 13).
Daí, Martins declara que o seu estudo está voltado para buscar as raízes antropológicas e
sociais para a mudança do quadro acima delineado, como também para a análise dos
progressos e discutir as teorias e metodologias que podem conduzir à “emancipação do
humano”. Por conseguinte, o autor põe as questões específicas as quais pretende abordar:
o que seria essa nova organização ? em que ela seria diferente das hoje existentes ? o que
muda nessa nova organização ? o que impede ou facilita a mudança ? o que fazer e como
fazer para que essa nova organização venha a existir ?
Primeiramente, Martins reconhece que uma práxis ritual tal qual se observa nas
organizações não muda se os indivíduos nela implicados não tomarem consciência dos
processos (reprodução cultural, integração social e socialização) que estruturam as ações
dessa práxis. A chave, então, seria uma nova práxis:
“Esta tomada de consciência só e´possível através de uma
nova práxis que, como foi dito acima, precisa não só ser
apreendida como aprendida. Esta nova práxis que em si
mesma é um processo de aprendizagem, ao mesmo tempo
107
social e individual, é o processo indutor das mudanças do
social pelo individual e do individual pelo social. […] É
através dela que os seres humanos podem autonomizar-se
e autodeterminar-se em relação ao outro e em relação ao
contexto social. É ela, por fim, o caminho da
emancipação humana.” (Martins, 1994, pp. 75-76).
À nova práxis que Martins se refere, ele denomina “práxis dialética crítica”. O caminho
para a emancipação humana no âmbito organizacional se faria então pelo estabelecimento
da práxis dialética crítica. Para demonstrar em que consiste uma práxis dessa natureza o
autor formula um constructo que parte principalmente da teoria da ação comunicativa e é
complementado por duas vertentes, cada qual numa dimensão específica: na dimensão
individual, pelo modelo gestáltico elaborado por Vera Campos e, na dimensão empírico-
organizacional pela teoria de ação de Argyris & Schön que trata da aprendizagem
organizacional. Abaixo reproduzimos uma síntese formulada pelo autor dos cinco pontos
principais da praxis dialética crítica:
“Esta práxis dialética implica: (1) em uma ação
comunicativa que ela desenvolve e que a realimenta; (2)
em uma situação de ação onde os protagonistas se
permitem mútua e livremente concordar, discordar,
argumentar, contra-argumentar, enfim, chegar ao
entendimento de maneira cooperativa e compartilhada;
108
(3) em um processo de aprendizagem que desenvolva a
competência interpessoal comunicativa de lidar com os
erros, os enganos e as controvérsias de maneira aberta,
franca e sincera; (4) em um processo de aprendizagem
que ajuda o aprendiz a aprender sobre ele próprio, sobre
os outros enquanto alter, e sobre o contexto; (5) implica,
enfim, em um processo de aprendizagem que se
retroalimenta, ou seja, que ajuda a aprender sobre a
própria aprendizagem.” (Martins, 1994, p. 76).
Um aspecto também importante a destacar é o ponto de vista do autor sobre a mudança
face a racionalidade nas organizações:
“Se a questão for pensada em termos de organizações,
sejam elas economicamente orientadas ou não, pode-se
chegar a conclusão que, embora a organização seja um
grupo heterogêneo artificialmente criado, como é o caso
das organizações formais, mudanças podem acontecer ao
se ter em mente que a racionalidade substantiva pode
conviver com a racionalidade instrumental.” (Martins,
1994, pp. 94-95, grifo nosso).
109
Buscando examinar “as experiências de aprendizagem e mudança por um lado, e o grau
de autonomia e autodeterminação de seus membros, por outro”, Martins analisa uma
série de textos que portam análises organizacionais. Ele os divide em dois grupos. No
primeiro, examina relatos sobre a IBM e sobre empresas brasileiras focalizadas sob a
ótica da mudança via “cultura organizacional”. No segundo grupo são examinados, dentre
outros, os estudos de Rothschild-Whitt (1982) sobre organizações coletivistas, Huber
(1985) sobre organizações alternativas e de Serva (1993 a) sobre organizações
substantivas. Desse exame resulta que,
“No primeiro grupo as organizações formais,
burocráticas, hierarquicamente constituídas em papéis,
primordialmente orientadas para a consecução de
resultados, a partir da busca da eficiência e da eficácia.
Segundo a classificação de Habermas, estas são empresas
orientadas para o sucesso.
No segundo grupo, as organizações que vêm sendo
denominadas de alternativas, coletivistas ou substantivas,
geralmente pequenas empresas, espontaneamente
formadas e geridas coletivamente, cuja principal
característica é a convivência social de grupos de pessoas
que se propõem produzir bem ou serviços (ou solucionar
problemas) que a coletividade necessita. Estas empresas
110
ou arranjos organizacionais, dentro da classificação
habermasiana, seriam aquelas cujos membros têm uma
racionalidade comunicativa e, portanto, seriam
orientadas para o entendimento.” (Martins, 1994, p. 136).
Quatro razões principais nos levaram a apresentar, aqui, as linhas gerais do estudo de
Martins:
a) Em primeiro lugar, trata-se de um estudo bem elaborado, no campo da teoria das
organizações que tem como fundamento central a teoria da ação comunicativa, o que
comprova a grande fecundidade dessa teoria e indica-nos que ela pode ser empregada
com êxito para a análise de organizações, mostrando-se também adequada para essa
finalidade;
b) O autor examina textos que tratam de organizações substantivas e similares,
concluindo que em tais organizações os membros apresentam uma razão comunicativa
em ação;
c) Martins comunga com o nosso ponto de vista que nas organizações as racionalidades
substantiva e instrumental podem conviver. Tal posição nós detalharemos no Capítulo IV;
d) O autor declara que a emancipação humana é uma das motivações centrais do seu
estudo.
111
Por todas essas compatibilidades com o nosso esforço e, pelos aportes que traz a todos
que se propõem analisar organizações sob uma visão habermasiana e emancipadora,
descortinando novos horizontes intelectuais, o estudo de Martins não poderia ser omitido
no bojo dessa nossa modesta contribuição ao tema.
O estudo de Zarifian sobre a comunicação face a automação:
Philippe Zarifian, professor de sociologia no Conservatoire National des Arts et Metiers
(Paris), realizou um estudo o qual é iniciado por uma crítica a análise clássica da
automação, que por sua vez parte de uma dissociação física entre a atividade humana e a
atividade mecânica.
Segundo o autor, na versão clássica destaca-se um elemento mediador entre os
trabalhadores e o sistema técnico: o sistema de informações. Assim, o trabalho dos
operários seria desenvolvido em três domínios: uma atividade de supervisão (controle
realizado através do processo de informação); uma atividade de otimização (cujo objetivo
seria o de aprimorar os desempenhos do sistema técnico); e uma atividade de manutenção
industrial.
Criticando esta interpretação, Zarifian afirma que o trabalho não pode mais ser
apreendido em termos energéticos ou símiles energéticos, como o consumo de um recurso
físico através da ativação de uma “força” de trabalho. Daí, remete a seguinte questão:
112
“Como redefinir o trabalho, dito intelectual, na oficina ?
Diríamos que o trabalho aparece como uma atividade de
relacionamento e de elaboração/aplicação de decisões
formalizadas de gestão” (Zarifian, 1991, p. 122).
Fazendo acréscimos a esta versão interpretativa do trabalho automatizado, o autor
desenvolve uma análise desse fenômeno, através de quatro aspectos: informação,
cooperação, lutas e móveis (“trajetória pessoal e colocação em jogo do mundo pessoal”),
comunicação e seus limites.
Ao discorrer sobre a informação, Zarifian afirma que é preciso abandonar a idéia de que o
sistema de informação é unicamente um intermediário entre o sistema de trabalho e o
sistema técnico, pois o desenvolvimento de uma atividade especificamente orientada
sobre o informacional já constitui uma mudança maior. Assim,
“O conceito de informação não basta se se quer
especificar qual tipo de racionalidade e em quais tipos de
relações sociais nos colocamos” (Zarifian, 1991, p. 124,
grifo nosso).
A partir de então, vai ficando cada vez clara a inspiração habermasiana no texto de
Zarifian. Ao analisar a cooperação, ele ressalta a dimensão intersubjetiva desta:
113
“A cooperação se entrelaça com coordenações de
atividade, asseguradas de maneira intersubjetiva, assim
como com novas divisões de trabalho e fraturas sociais.
[...] Queremos sublinhar a importância da dimensão
intersubjetiva das coordenações de atividade, implicadas
nas cooperações. De fato, o vetor central da comunicação
intersubjetiva é, verdadeiramente, a linguagem” (Zarifian,
1991, pp. 124 e 125).
No aspecto “lutas e móveis”, o autor destaca a questão da racionalidade, baseando-se em
Weber e em Habermas:
“Se se refere à meta, ao objetivo, a performance não
pertence aos assalariados da oficina. Ela é imposta pela
direção da empresa. Ela está, como o ato de visar, fora
da atividade comunicacional, e concerne, tipicamente o
que Max Weber denominava uma racionalidade
instrumental. [...] Ao nível interindividual, pode haver
uma tensão entre:
- uma racionalidade orientada para o sucesso
de maneira individualista e que se aproveita da
performance industrial para dela fazer uma ocasião de
performance individual marcante;
114
- uma racionalidade orientada em direção à
intercompreensão e ao entendimento, no sentido que lhe
dá Habermas, e solicitada pelas necessidades da
solidariedade. [...] Estamos convencidos de que a
racionalidade comunicacional orientada para a
intercompreensão é, de qualquer maneira, presente e
necessária nos contextos automatizados de que falamos.
Temos o material empírico para prová-lo” (Zarifian,
1991, pp. 126-127).
Ao tomar conhecimento de tais afirmações, tão contundentes, verificamos que Zarifian
comunga com o mesmo ponto de vista nosso, o qual reconhece a existência de um outro
tipo de racionalidade, que não só a instrumental, no âmbito das organizações produtivas.
Tal ponto de vista é um dos conteúdos centrais do presente estudo e, será devidamente
tratado no decorrer deste texto.
Quanto ao aspecto da comunicação, último dos quatro utilizados pelo autor para analisar
o trabalho automatizado, Zarifian continua baseando sua interpretação na teoria de
Habermas, na medida em que indica a existência de um tipo de comunicação cuja
validação não é a performance industrial em si, mas a “qualidade do acordo”
estabelecido entre os trabalhadores. O que nos remete à noção de entendimento definida
por Habermas.
Zarifian conclui o seu provocante trabalho com frases curtas e por demais significativas:
115
“Conclusão :
Habermas propõe substituir o paradigma do trabalho
pelo da linguagem. Pensamos, no que nos toca, que é
preciso procurar não uma substituição, mas uma nova
síntese entre trabalho e comunicação. Um paradigma do
tipo: o trabalho comunicativo” (Zarifian, 1991, p. 130).
Finalizando, por ora, as abordagens à teoria da ação comunicativa e suas decorrências no
campo do estudo das organizações — voltaremos a discutir aspectos dessa teoria no
Capítulo IV — , faremos a seguir uma síntese da proposta de Guerreiro Ramos, pela qual
ele lançou as bases de uma nova ciência das organizações.
III. Racionalidade substantiva e análise organizacional em Guerreiro Ramos
Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), sociólogo brasileiro, dedicou grande parte de sua
vasta obra ao estudo das organizações. Após 30 anos de pesquisa e reflexão, dez livros
publicados e numerosos artigos disseminados em inglês, espanhol, francês e japonês,
Guerreiro Ramos publica em 1981 seu último livro, A nova ciência das organizações -
uma reconceituação da “riqueza das nações”, onde expressa o desenvolvimento maior
do seu pensamento sobre a vida humana associada em geral e, em particular sobre a
administração e a análise organizacional. Robert Biller, então Vice-Reitor da
116
Universidade do Sul da Califórnia, comentou sobre essa que foi a última publicação de
Guerreiro Ramos em vida:
“Concentrando sua teoria na racionalidade substantiva,
tomando em conta todo o escopo dos valores humanos, ao
invés de deter-se apenas nos valores econômicos e
instrumentais, Guerreiro Ramos amplia a obra de Max
Weber.” (Robert Biller, prefácio à Nova ciência das
organizações - uma reconceituação à riqueza das nações,
1981).
Para Guerreiro Ramos,
“A razão é o conceito básico de qualquer ciência da
sociedade e das organizações. Ela prescreve como os
seres humanos deveriam ordenar a sua vida pessoal e
social.” (Guerreiro Ramos, 1981, p.23).
Visando introduzir o tema geral de seu trabalho, o autor faz um balanço histórico da
concepção de razão, na filosofia e nas ciências. Inicialmente compara a noção de razão
em Aristóteles, exemplificando o pensamento clássico grego, com a noção “moderna”.
Guerreiro Ramos identifica o séc. XVII como o período histórico onde se inicia a
mudança drástica do conceito de razão, apontando Thomas Hobbes como o primeiro
autor a articular clara e sistematicamente o conceito “moderno” de razão.
117
Julgamos importante e até fundamental para o nosso presente estudo, reproduzir algumas
afirmações de Hobbes quanto ao tema em questão, encontradas em sua obra mais famosa,
o Leviatã:
“Quando alguém raciocina, nada mais faz do que
conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas,
ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma
por outra […] a partir do que podemos definir (isto é,
determinar) que coisa é significada pela palavra razão,
quando a concebemos entre as faculdades do espírito.
Pois razão, neste sentido, nada mais é do que cálculo,
(isto é, adição e subtração) das consequências das
normas gerais estabelecidas para marcar e significar
nossos pensamentos.” (Hobbes, 1979, p. 27).
Sem dúvida, pode-se constatar uma drástica redução do conceito de razão em Hobbes
face àquele elaborado por Aristóteles. Como pudemos ver acima, Aristóteles entendia a
razão num prisma muito mais amplo que Hobbes, abarcando as diversas “disposições”
para a artes, ciências, filosofia, etc., e, principalmente ressaltando o importante papel que
o julgamento ético, enquanto componente da razão, teria para ações racionais humanas.
Com Hobbes, no entanto, a razão é limitada ao cálculo, ao cálculo das consequências. Na
118
proposição aristotélica o cálculo também está presente mas, restrito ao campo da
sabedoria prática, ou seja, apenas uma entre as cinco “disposições racionais da alma”.
A esse processo, Guerreiro Ramos denominou “transavaliação da razão”, cuja intenção
era a de legitimar a sociedade moderna exclusivamente em bases utilitárias.
Em seguida, Guerreiro Ramos faz um breve levantamento de estudos concernentes à
racionalidade elaborados por Max Weber, Karl Mannheim, pelos estudiosos da chamada
“Escola de Frankfurt” (destacando o trabalho de Habermas), Eric Voegelin, visando
demonstrar que a noção de racionalidade enquanto cálculo utilitário de consequências é
fruto de uma mudança operada desde 300 anos no contexto do conhecimento ocidental.
Tal mudança teria determinado o tipo de ciência social dominante atualmente e deve ser
analisado à luz da história, o que significa promover “a análise empírica da
materialização e evolução histórico-sociais das chamadas “estruturas de racionalidade”,
conforme vimos acima em Habermas.
No trabalho de Guerreiro Ramos, a análise crítica do conceito de razão é imediatamente
acompanhada por uma outra constatação crítica: a assunção do mercado como dimensão
central e ordenadora, tanto da ciência social como da vida humana em geral na sociedade
ocidental moderna. Ainda que o autor reconheça que nos últimos 300 anos a
racionalidade funcional e a centralização do mercado tenham aumentado
consideravelmente o domínio sobre a natureza e o consequente aumento da capacidade de
119
produção, ele adverte que agora há indícios de que semelhante sucesso está a ponto de se
transformar numa vitória de Pirro, devido a vários fatores:
a) A expansão do mercado atingiu um ponto de rendimentos decrescentes, em termos de
bem-estar humano;
b) A insegurança psicológica;
c) A degradação da qualidade de vida;
d) A poluição;
e) O desperdício à exaustão dos limitados recursos do planeta;
f) E no que tange à teoria das organizações, a incapacidade de oferecer diretrizes para a
criação de espaços sociais em que os indivíduos possam participar de relações
verdadeiramente autogratificantes.
A expressão “sociedade centrada no mercado”, é utilizada diversas vezes por Guerreiro
Ramos no decorrer da sua análise. Aqui podemos começar a detectar a influência direta
dos trabalhos de Polanyi sobre o pensamento de Guerreiro Ramos. Ele aponta com
firmeza a relação existente entre o desenvolvimento desse tipo de sociedade e o declínio
do emprego da razão substantiva:
120
“Nenhuma sociedade, no passado, esteve jamais na
situação da sociedade desenvolvida centrada no mercado
de nossos dias, na qual o processo de socialização está,
em grande parte, subordinado a uma política cognitiva
exercida por vastos complexos empresariais que agem
sem nenhum controle. Em sociedade alguma do passado,
jamais os negócios foram a lógica central da vida da
comunidade. Somente nas modernas sociedades de hoje o
mercado desempenha o papel de força central,
modeladora da mente dos cidadãos. […] Escravos de um
sistema de comunicação de massa dirigido por grandes
complexos empresariais, os indivíduos tendem a perder a
capacidade de se empenhar no debate racional. Cedendo
a influências projetadas, a maioria das pessoas perde a
capacidade de distinguir entre o fabricado e o real e, em
vez disso, aprende a reprimir padrões substantivos de
racionalidade, beleza e moralidade, inerentes ao senso
comum.” (Guerreiro Ramos, 1981, p.114).
A influência dos estudos de Polanyi e seus seguidores é intensa no estudo de Guerreiro
Ramos. A idéia de que a sociedade centrada mercado historicamente é episódica, como
também a premissa de que o processo econômico é um enclave na realidade social mais
121
ampla, constituem, como vimos, o eixo fundamental da teoria substantiva da economia e
da antropologia econômica. Ao propor uma abordagem substantiva, Guerreiro Ramos
pretende filiar-se intelectualmente a um esforço global que lhe é antecedente,
reconhecendo também a relação da antropologia econômica com esse amplo esforço:
“Uma teoria substantiva da vida humana associada é
algo que existe há muito tempo e seus elementos
sistemáticos podem ser encontrados nos trabalhos dos
pensadores de todos os tempos, passados e presentes,
harmonizados ao significado que o senso comum atribui à
razão, embora nenhum deles tenha jamais empregado a
expressão razão substantiva. […] A propósito, aquilo que
o campo da economia e, mais especificamente, o campo
da antropologia econômica referem presentemente como
sendo teoria substantiva, é apenas subsidiário a esta
análise. […] Karl Polanyi, fundador da teoria econômica
substantiva, assinala que os conceitos formais, extraídos
da dinâmica específica do mercado, na melhor das
hipóteses são válidos como instrumentos gerais de análise
e formulação dos sistemas sociais apenas numa sociedade
capitalista, durante um período em que o mercado esteja
relativamente livre da regulação política. […] Polanyi
corretamente afirma que, uma vez que a economia sempre
122
esteve ‘engastada’ na sociedade, a sociedade capitalista
tem que ser entendida como um caso excepcional e não
como um padrão para avaliar a história econômica e
social.” (Guerreiro Ramos, 1981, pp. 27-28).
Partindo desses dois aspectos críticos, o conceito de razão e a centralidade do mercado na
sociedade, Guerreiro Ramos parece inspirar-se em Polanyi ao utilizar o termo substantivo
e esclarece que a racionalidade substantiva, diferentemente da racionalidade instrumental,
é aquela racionalidade inerente à psique humana, num claro resgate do pensamento
clássico, notadamente o pensamento aristotélico.
Enquanto força ativa na psique humana, a racionalidade substantiva guarda estreitas
relações com o senso comum, pois origina-se do exercício de um senso da realidade
comum a todos os indivíduos, em todos os tempos e em todos os lugares. Podemos ver a
forte oposição que o autor estabelece com relação aos autores da tradicional teoria das
organizações, como Simon, que afirma que um indivíduo jamais poderia alcançar um alto
grau de racionalidade, e sim a organização.
Segundo Guerreiro Ramos, a racionalidade substantiva habilita o indivíduo a ordenar a
sua vida eticamente, gerando ações, através do debate racional, que buscam concretizar
um equilíbrio dinâmico entre a satisfação pessoal e a satisfação social, como também
atingir a autorealização pela concretização de suas potencialidades humanas.
123
Em seguida, Guerreiro Ramos empreende o estabelecimento de novas bases para a
ciência social (“teoria substantiva da vida humana associada”), como também para a
teoria das organizações (“abordagem substantiva das organizações”):
“A racionalidade substantiva sustenta que o lugar
adequado à razão é a psique humana. Nessa
conformidade, a psique humana deve ser considerada o
ponto de referência para a ordenação da vida social,
tanto quanto para a conceituação da ciência social em
geral, da qual o estudo sistemático da organização
constitui domínio particular.” (Guerreiro Ramos, 1981, p.
23).
Assim, cinco pontos básicos delimitam a “teoria substantiva da vida humana associada”:
1) Os critérios para a ordenação das associações humanas são racionais, isto é, evidentes
por si mesmos ao senso comum individual, independentemente de qualquer processo
particular de socialização;
2) Uma condição fundamental da ordem social é a regulação política da economia;
3) O estudo científico das associações humanas é normativo: a dicotomia entre valores e
fatos é falsa, na prática, e, em teoria, tende a produzir uma análise defectiva;
124
4) A história torna-se significante para o homem através do método paradigmático de
auto-interpretação da comunidade organizada. Seu sentido não pode ser captado por
categorias serialistas de pensamento;
5) O estudo científico adequado das associações humanas é um tipo de investigação em si
mesmo, distinto da ciência dos fenômenos naturais, e mais abrangente que esta (Guerreiro
Ramos, 1981).
Por sua vez, a formulação de uma “abordagem substantiva das organizações” exigiria, em
termos gerais, duas grandes tarefas: a primeira residindo numa análise que pudesse
conceber os elementos epistemológicos de variados cenários organizacionais, e a segunda
seria o desenvolvimento de um tipo de análise organizacional livre de padrões distorcidos
de linguagem e conceptualização. Para a execução de tais tarefas, seria de suma
importância rever os chamados “pontos cegos da teoria organizacional corrente”, a saber,
o reexame da noção de racionalidade, a não distinção sistemática entre os significados
substantivo e formal da organização, a falha compreensão do papel da interação simbólica
e, por fim, a visão mecanomórfica da atividade produtiva do homem.
Podemos resumir também em cinco pontos básicos a proposta da “abordagem substantiva
das organizações”:
125
1) Uma vez que as necessidades humanas são variadas e portanto atendidas por múltiplos
cenários sociais, é possível categorizar e formular as condições operacionais singulares de
cada cenário social;
2) Apenas limitadas necessidades humanas são atendidas pelo sistema de mercado, o qual
determina um tipo próprio de cenário social, marcado pela comunicação operacional e
critérios instrumentais. O comportamento administrativo é uma conduta humana
condicionada por imperativos econômicos;
3) Diferentes categorias de tempo e espaço vital são correlacionadas a diferentes cenários
organizacionais, assim a categoria de tempo e espaço vital dos cenários econômicos é um
caso particular entre outros;
4) Diferentes sistemas cognitivos referem-se a diferentes cenários organizacionais.
Portanto, as regras de cognição pertencentes ao comportamento administrativo
constituem também um caso particular de uma epistemologia multidisciplinar face aos
diversos cenários organizacionais;
5) Diferentes cenários sociais requerem enclaves distintos no tecido social, ainda que
hajam vínculos que os interrelacionem. Tais vínculos constituem ponto central do
interesse de uma abordagem substantiva do planejamento dos sistemas sociais (Guerreiro
Ramos, 1981).
126
Esse são os aspectos, até o momento que gostaríamos de ressaltar da vasta proposta de
Guerreiro Ramos. Como no caso da igualmente vasta proposta de Habermas, não cabe
aqui uma análise integral da teoria de Guerreiro Ramos, e sim apresentar, como tentamos
acima, os seus fundamentos, linhas gerais e determinados elementos que nos servirão
para o desenvolvimento do presente estudo.
A obra de Guerreiro Ramos tem provocado um grande impacto no Brasil, gerando
diversos estudos. Também no exterior a sua influência pode ser identificada. Dentre os
estudos elaborados no exterior, destacamos aqui um dos mais recentes, trata-se do que foi
realizado por Gladys Symons, professora da École Nationale d’Administration Publique,
no Canadá.
A influência de Guerreiro Ramos no estudo de Symons:
Ao abordar, numa perspectiva crítica, a questão da integração das mulheres no universo
da gestão das grandes empresas, Symons argumenta que para lidar corretamente com essa
questão deve-se ir além dos problemas apontados pela psicologia individual e das
políticas organizacionais, examinando a natureza da vida organizacional com destaque
para o contexto político no qual se inserem as mulheres.
Na análise desse contexto político , Symons aborda a burocracia sob três dimensões:
enquanto estrutura, enquanto processo e enquanto consciência burocrática. Nesse último
127
aspecto, dois fatores são fundamentais para a autora: a racionalidade instrumental e a
“síndrome comportamental”. Toda a caracterização desses dois fatores é empreendida
com base em Guerreiro Ramos (A nova ciência das organizações), o qual é citado
diversas vezes no decorrer do texto.
Assim, a burocracia é visualizada como um meio de dominação, o qual, dentre outras
finalidades, é utilizado para dificultar o acesso das mulheres às posições de poder nas
grandes organizações e, quando o permite, tolhe as possibilidades das mulheres
empreenderem ações que não se coadunem com a manutenção do status quo. Nas suas
conclusões, Symons afirma que,
“O caso das mulheres executivas nos fornece a
oportunidade de apresentar um ponto de vista novo e
radical. As organizações sendo essencialmente
instrumentos de dominação (Perrow, 1986; Ramos,
1984), para compreender onde as mulheres se situam na
vida organizacional, nós devemos de início abordar a
natureza da racionalidade das organizações e em seguida
o cotidiano das pessoas que dirigem essas organizações.
Em suma, se a inclusão das mulheres é funcionalmente
racional e corresponde aos objetivos das pessoas que
dirigem, então elas serão integradas. Senão, elas
encontrarão poucos lugares nos quadros da gestão. […]
128
A abordagem integracionista dá uma falsa impressão da
vida organizacional, da mesma forma que dá as mulheres
esperanças irrealistas de integração.” (Symons, 1990, p.
428, trad. livre).
Aqui constatamos um caso de emprego do estudo de Guerreiro Ramos para desvelar o
substrato racional da organização burocrática: a razão instrumental e uma de suas
consequências, o modelo de pensamento e ação ao qual Guerreiro Ramos denominava
“síndrome comportamental”.
Acreditamos que a fertilidade e a profundidade das análises e propostas veiculadas pelo
autor em A nova ciência das organizações, ainda ensejará, por muito tempo, a produção
de estudos organizacionais importantes, seja de cunho crítico — aproveitando o enfoque
da razão instrumental — seja de desenvolvimento da proposta da abordagem substantiva
das organizações.
Finalizando esta seção, há um aspecto de grande importância que julgamos necessário
destacar. Tanto o estudo de Habermas (teoria da ação comunicativa), quanto a abordagem
da razão substantiva empreendida por Guerreiro Ramos, denotam um substrato em
comum: o sujeito. Ambas são teorias que relevam sobremaneira o papel do sujeito na
criação do devir, teorias sociais de cunho antideterministas que privilegiam menos a
estrutura que o sujeito e a ação. Uma vez que estas duas teorias sociais constituem a base
principal de nosso estudo, julgamos necessário aprofundar essa questão com o objetivo de
129
esclarecer ao máximo as opções que fizemos no que diz respeito ao espectro das ciências
humano-sociais.
Para Guerreiro Ramos, o locus da racionalidade substantiva é a psique humana, logo a
razão substantiva é inata ao sujeito. O autor chega a afirmar categoricamente que a psique
humana deve ser considerada o ponto de referência para a ordenação da vida social. Daí,
deduz que os conceitos da abordagem substantiva são conhecimentos derivados do e no
processo de realidade, diferentemente da teoria formal que descreve procedimentos
operacionais.
Em Habermas podemos perceber facilmente a mesma opção fundamental em se tratando
de teoria social: o sujeito é a dimensão essencial do seu arcabouço teórico. A premissa do
sujeito autônomo, com plenas capacidades de comunicação e de total assunção da
responsabilidade pelos seus atos, é o requisito básico para que a ação comunicativa,
segundo o autor, possa ser concretizada. Acima de tudo, trata-se, obviamente, de uma
teoria de ação.
Esse substrato comum a ambas abordagens se insere num grande movimento no âmbito
da teoria social que se constitui numa contraposição a um outro que fêz “desaparecer” o
sujeito e, consequentemente, a ação, da cena central dos constructos da ciência social.
No nosso estudo, a consideração privilegiada do sujeito e da ação são essenciais para toda
a démarche trilhada para a abordagem geral do tema da pesquisa, para a elaboração das
130
definições básicas sobre as as quais pretendemos trabalhar e também para a análise das
organizações substantivas que empreenderemos. Em última instância, a relevância do
sujeito é condição sine qua non para a compreensão do significado que assume o termo
substantivo neste estudo.
Portanto, apresentaremos a seguir um breve histórico do grande movimento que restituiu
a importância do sujeito e da ação nas ciências humanas, desembocando no panorama
atual, onde o sujeito é um dos temas centrais no âmbito dessas ciências. Deste modo,
visamos sobretudo situar o leitor onde se insere os esforços das teorias que embasam o
nosso estudo e, por conseguinte, situar precisamente a nossa filiação teórica face ao
contexto das ciências humanas.
IV. A revalorização do sujeito e da ação nas ciências humanas
Podemos indicar três entre as mais fortes causas do desaparecimento do sujeito enquanto
dimensão temática privilegiada nas ciências humanas. Primeiramente, a elaboração e
grande aceitação de determinados modelos no campo da linguística que afastaram o
sujeito da problematização do conhecimento.
Em segundo lugar, a própria origem e consolidação da sociologia, consideradas,
respectivamente, a partir das obras de Augusto Comte e de Durkheim. Comte erige uma
teoria que ultrapassa a noção de indivíduo; a sua teoria enseja que o indivíduo é
considerado um obstáculo ao alcance do “espírito positivo”. Com Durkheim, o indivíduo
131
é afastado para mais longe ainda do centro da problematização, uma vez que ele,
indivíduo, é apenas e tão somente uma parte integrante do ser social.
Por último, nesta relação que não se quer exaustiva, o triunfo do movimento
estruturalista, que aliado a modelos linguísticos acabou por englobar diversos campos do
conhecimento, atingindo o seu apogeu na metade dos anos 60.
Curiosamente, é a partir de uma reorientação da própria linguística e, de um grande
redirecionamento de alguns dos maiores mestres do estruturalismo (Roland Barthes),
impulsionados por uma mudança conjuntural profunda — da qual maio de 68 representa
um marco inicial — que o estruturalismo se enfraquece paulatinamente, ao mesmo tempo
que o sujeito volta à cena prioritária nas ciências humanas. Nesta seção, faremos uma
síntese desse processo.
Já em 1966, Julia Kristeva, semioticista russa de grande renome repatriada na França,
introduziu no decorrer dos cursos dados por Roland Barthes as noções de
intertextualidade e de dialógica, a partir das idéias de um outro semioticista russo,
Mikhaïl Bakhtin. Segundo François Dosse (1992), essa introdução dos conceitos
bakhtinianos em França é fundamental para a inflexão radical de posições anteriormente
assumidas por Tzedan Todorov, semioticista búlgaro, ao final dos anos 70.
Todorov se notabiliza no decurso de um grande projeto de tradução em língua francesa
das obras de Bakhtin. Todorov declara-se profundamente envolvido e influenciado pelos
textos de Bakhtin, à medida que os examinava com vistas à sua tradução e reorganização.
132
E são justamente o processo e as consequências da interação entre sujeito e objeto de
estudo que embasam o conceito de dialógica. O que significa uma posição totalmente
oposta ao modelo linguístico de distanciamento do objeto linguístico muito utilizado no
estruturalismo.
As duas obras de Todorov que se seguiram à sua retomada de posição, La conquête de
l’Amérique, em 1982, e Nous et les autres, em 1989, alcançaram grande aceitação no
meio literário francês, fazendo rever o direcionamento da semiótica. Para Todorov, em
sua radical mudança epistemológica voltada para as questões do sentido, do sujeito e da
alteridade, “a semiótica não pode ser pensada fora da relação com o outro.”
Em 1987, a démarche da linguística e da semiótica em direção ao sujeito, em pleno fervor
desde 1970, é referendada por Coquet (1987) através de um artigo publicado na revista
Actes sémiotiques. Tal façanha chama a atenção pelo fato de ser essa revista dirigida por
Algirdas-Julien Greimas, um dos expoentes da chamada “semiótica do objeto”. Coquet
reconhece a importância de Louis Hjelmslev e de Greimas para o desenvolvimento de
uma teoria semiótica geral mas, ao mesmo tempo, louva a “semiótica do sujeito”,
inspirada nas obras de Benveniste.
A revalorização do sujeito ganha impulso decisivo com a reviravolta no posicionamento
de um dos grandes mestres do estruturalismo: Roland Barthes. Em 1975, Barthes adere
definitivamente a um processo crescente de subjetivação ao lançar Roland Barthes par
Roland Barthes, uma espécie de autobiografia não tradicional, onde o autor deixa claro o
133
seu rompimento com a orientação estruturalista. Esse rompimento é, de certa forma,
confirmado dois anos mais tarde com a publicação de Fragmentos de um discurso
amoroso, um verdadeiro elogio à subjetividade e adesão profunda à literatura. Somente
no ano de sua publicação, o livro vendeu cerca de 80.000 exemplares, em nada menos
que sete edições sucessivas. No mesmo ano, Barthes entra para o presitigioso Collège de
France.
Um outro autor, igualmente considerado como um dos grandes mestres do estruturalismo,
foi também responsável pelo renascimento do sujeito: trata-se de Michel Foucault. No
início dos anos 80, seus cursos no Collège de France já indicavam uma reviravolta em
prol do sujeito: “subjetividade e verdade”, “a hermenêutica do sujeito” e “o governo de si
e dos outros”. Com a publicação de Le souci du soi, em 1984, Foucault põe o tema no
centro das suas análises, ao examinar a crise do sujeito, ou antes, da subjetivação na
sociedade romana do séc. II.
A sociologia foi a disciplina mais atingida pela revalorização do sujeito e da ação.
Diversas correntes se impuseram no campo sociológico ao trazer de volta o sujeito, o
indivíduo, a ação social, o ator coletivo, dentre outras noções similares que deslocaram o
eixo dessa disciplina, do sistema, das estruturas em direção ao sujeito autônomo. Não
devemos esquecer que o contexto socio-histórico observado a partir dos anos 70
favoreceu sobremaneira o retorno da subjetividade nas ciências humanas, uma época em
que as grandes teorias globalizantes entraram numa crise fatal, deixando os indivíduos,
principalmente nas sociedades desenvolvidas do Ocidente, confrontados a eles mesmos,
134
isto é, sem contar mais com os grandes sistemas explicativos e deterministas do decurso
da história. Citaremos brevemente algumas das mais conhecidas correntes no campo geral
da sociologia.
Raymond Boudon, a partir da segunda metade dos anos 70, funda na França o método
sociológico conhecido como individualismo metodológico. Criticando o marxismo e o
estruturalismo, esse método, retomando as idéias de Georg Simmel, considera que um
fenômeno social deve ser concebido como efeito da agregação dos interêsses e
comportamentos individuais. Centrado nos comportamentos e ações individuais, o
individualismo metodológico questiona as escolhas dos indivíduos e formula hipóteses
sobre elas, atribuindo um substancial grau de liberdade aos atores sociais.
Erving Goffman, por sua vez, é considerado um dos maiores expoentes do
interacionismo. Seus livros obtiveram grande aceitação desde os anos 50, malgrado fosse
a época de expansão do estruturalismo. A análise do sistema de interação é que vai
permitir, segundo essa corrente, discernir as práticas sociais. Empregando uma
perspectiva de representação teatral, principalmente em A representação do eu na vida
cotidiana, Goffman torna relevante a ação do ator social, seus papéis desempenhados no
cotidiano, tomando como referência de análise a representação dramática.
A etnometodologia, provavelmente inspirada no interacionismo em seu ponto de partida,
conheceu grande destaque na França nos anos 80, contando com a adesão de nomes como
o de Georges Lapassade, curiosamente, antigo líder da análise institucional, método de
135
inspiração estruturalista. Entretanto, o marco inicial dessa corrente é considerado o livro
Studies in ethnomethodology, publicado nos Estados Unidos por Harold Garfinkel em
1967. Busca analisar a produção de uma situação social através da atividade comunicativa
dos atores sociais.
Entre as correntes da sociologia que recuperaram a importância do sujeito, podemos
destacar a sociologia da ação, talvez a mais célebre. Fundada pelo sociólogo francês
Alain Touraine, esse enfoque ganhou enorme celebridade em todo o mundo, notadamente
pela sua abordagem aos movimentos sociais. Touraine defende uma sociologia nova,
atualizada, compatível com as novas e desconcertantes realidades do mundo
contemporâneo; neste sentido, a tarefa da sociologia é de compreender os atores e seus
conflitos, o que significa renunciar totalmente a buscar “as leis da vida social”,
abandonando definitivamente a orientação da sociologia clássica. A mudança da tarefa
básica da sociologia implica, no nível analítico, mudança da análise social para um outro
tipo de análise no centro da qual será privilegiada a ação social.
Touraine proclama uma radical transformação do trabalho do sociólogo e de seu aparato
conceitual, tendo em vista a nova tarefa da sociologia e a noção de ator social. Em uma
das passagens mais significativas de sua vasta obra, ele afirma categoricamente:
“O ator social de antigamente protestava contra as
tradições, convenções, formas de repressão e privilégios
que o impediam de ser reconhecido. Ele protesta hoje com
136
a mesma força, mas é contra os aparelhos, os discursos,
as evocações de perigos exteriores, que o impedem de
fazer ouvir seus projetos, definir seus próprios objetivos e
se engajar diretamente nos conflitos, nos debates e nas
negociações que ele deseja. O retorno do ator não é o do
anjo, mas sobretudo o do impertinente, e o trabalho da
sociologia consiste em perfurar o muro das ideologias
mortas, e portanto das ilusões do puro individualismo ou
a fascinação da decadência, para dar espaço à presença
do ator e ajudar a fazer ouvir a sua palavra. A análise do
sociólogo se situará então além do discurso que a
sociedade mantém oficialmente sobre ela mesma; ela será
mais próxima das emoções, dos sonhos, das feridas de
todos aqueles que vivem como atores mas não são
reconhecidos como tais — porque as formas de
organização política e as ideologias são extremamente
atrasadas com relação as práticas, as idéias e as
sensibilidades realmente contemporâneas” (Touraine,
1984, p. 52, trad. livre).
Com referência às relações entre a história e a sociologia e também à interpretação
histórica dos fenômenos sociais, Touraine tenta revolucionar a orientação sociológica
tradicional, ele propõe uma inversão radical:
137
“Hoje em dia, a visão da história e do progresso herdado
do Iluminismo e do evolucionismo do séc. XIX está
desqualificada. Mas seu esgotamento, longe de afastar a
atenção dos movimentos sociais, deveria fazer surgir a
necessidade de uma análise que, em lugar de colocar o
ator na história, se questione sobre a produção das
situações históricas pelos atores” (p.38).
“Assim, a decomposição da idéia de sociedade dá lugar,
por um lado, à idéia de mudança permanente, quer dizer
à uma concepção inteiramente política da vida social,
mas também, de outro lado, à idéia de sujeito, cuja
capacidade criativa substitui os antigos princípios de
unidade da vida social. O essencial é que o sujeito não
pode mais ser definido em termos históricos. A sociedade
estava na história; agora, a história está nas sociedades,
as quais são capazes de escolher sua organização, seus
valores e seus processos de mudança, sem dever legitimar
essas escolhas por sua conformidade com leis naturais ou
históricas” (Touraine, 1984, p. 97, trad. livre).
138
Aplicando o seu método, ao qual denominou intervenção sociológica, Touraine fez
diversos estudos sobre os ditos novos movimentos sociais, especialmente nas fábricas da
Renault, a revolta estudantil de maio de 68, de trabalhadores agrícolas, dentre outros. A
profundidade de sua abordagem e a celebridade adquirida marcaram definitivamente o
retorno do ator e da ação social à cena principal das ciências humanas.
Apesar de ter como substrato comum o sujeito e/ou a ação, as diversas correntes da teoria
social, entre as quais apresentamos uma síntese acima, não trazem uma unanimidade de
visões sobre outros aspectos dos fenômenos sociais. Gostaríamos de esclarecer que não
arrolamos tais teorias no sentido de uma uniformidade de pontos de vista analíticos e de
métodos empregados. Ao contrário, entre os autores que relevam o papel do sujeito,
existem divergências e até debates calorosos, o que só vem a enriquecer as ciências
humano-sociais. O traço geral em comum entre essas abordagens é, repetimos, o seu
ponto de partida: a assunção do sujeito como a dimensão básica da produção do
fenômeno social, engajando assim a pesquisa numa direção proveniente do estudo do
indivíduo e de sua ação no mundo. A nossa intenção não foi realizar um levantamento
exaustivo dessas teorias e, sim, apenas apresentar uma síntese de algumas das mais
célebres.
Após esse breve relato da revalorização do sujeito nas ciências humanas, pelo qual
revelamos a opção de construção de ciência social que filiamos o nosso estudo,
retornaremos ao âmbito da abordagem da racionalidade substantiva na análise
organizacional, desta feita examinando os estudos recentemente produzidos no Brasil a
139
partir do trabalho de Guerreiro Ramos. Assim, esperamos traçar o panorama atual do
desenvolvimento do tema da racionalidade substantiva no campo da teoria organizacional
no Brasil.
V. Racionalidade substantiva e análise organizacional - alguns estudos recentes no Brasil
As idéias de Guerreiro Ramos têm causado uma forte influência no meio acadêmico
brasileiro, notadamente no âmbito das escolas de administração. Desde a publicação de A
nova ciência das organizações - uma reconceituação da riqueza das nações, vários
pesquisadores vêm desenvolvendo estudos sobre o tema da racionalidade substantiva nas
organizações.
Nesse contexto, é digno de destaque o esforço empreendido por Ramon Garcia no sentido
de disseminar no meio acadêmico nacional o pensamento de Guerreiro Ramos. Os
estudos realizados por Ramon Garcia abordavam, em sua maioria, a questão da mudança
organizacional com vistas à emancipação humana (Garcia, 1980, 1983), dentre outros
temas correlatos. Apesar de ser o principal divulgador das idéias de Guerreiro Ramos no
Brasil, Garcia não centrou sua produção científica no tema específico da racionalidade
substantiva, motivo pelo qual vamos nos ater àqueles autores que abordaram esse tema.
140
Assim, examinaremos a seguir seis estudos recentes sobre a racionalidade substantiva
realizados no Brasil, esperando assim fornecer um quadro representativo e atualizado do
esforço pela continuidade e aperfeiçoamento da proposta lançada por Guerreiro Ramos.
O estudo de Tenório (1990):
Tenório (1990) elaborou um estudo com os objetivos de confrontar a racionalidade
instrumental com a racionalidade substantiva e identificar o “paradigma habermasiano de
racionalidade comunicativa”. Do confronto entre as duas racionalidades, Tenório constata
um impasse entre elas no âmbito das organizações produtivas. Uma das facetas desse
impasse foi assim descrita:
“O que podemos verificar, a partir do taylorismo no
conjunto das teorias organizacionais, é a promoção
constante do ajustamento do empregado ao processo de
produção, independentemente do potencial racional-
substantivo que o homem traz consigo para dentro das
organizações.” (Tenório, 1990, p. 7).
Em seguida, o autor apresenta a teoria da ação comunicativa de Habermas, ensejando que
“...aceitamos por enquanto que a solução do impasse entre as duas racionalidades pode
ocorrer por meio do agir comunicativo” (Tenório, 1990, p. 7). É curioso observar que na
141
formulação de Tenório, a ação comunicativa aparece como um meio de solucionar o
“impasse” ao qual se referiu o autor; ele contrapõe a uma solução “subjetiva” (entendida
como a predominância da razão substantiva), uma solução respaldada “num processo
dialógico, intersubjetivo” representado pela ação comunicativa. O seu estudo é finalizado
com a colocação de algumas provocantes questões aos leitores:
“Como fomentar o paradigma da razão comunicativa
dentro dos espaços sócio-formais nos quais predomina a
razão instrumental ? Que estratégias devemos utilizar
para melhor socializar o processo de tomada de decisão
nas organizações ? Será que a utilização de algum tipo de
estratégia não instrumentalizaria a razão comunicativa ?
Ou tem razão a administração em manter a sua
racionalidade instrumental ?” (Tenório, 1990, p. 9).
Julgamos tais questões elaboradas por Tenório extremamente significativas, pois elas
indicam, dentre outras coisas, uma “dificuldade” generalizada observada nos textos de
autores brasileiros sobre a racionalidade substantiva em organizações produtivas: a não
explicitação da manifestação da razão substantiva diretamente na práxis administrativa
dos membros de organizações produtivas.
142
A esse gênero de “dificuldade” voltaremos a nos referir mais tarde, quando dedicaremos
parte de nosso estudo ao seu exame sucinto. Por enquanto, continuaremos com a
apresentação dos trabalhos dos demais autores.
O estudo de Pizza Júnior (1994):
Pizza Júnior (1994) analisa diversas concepções de racionalidade. Inicialmente resgata a
visão clássica, dando ênfase aos escritos de Platão e Aristóteles. Em seguida, demonstra
que a visão moderna opera uma sensível transformação do conceito relativamente aos
clássicos. As idéias de Descartes e Hobbes são examinadas como exemplos.
A apresentação da visão moderna abre caminho para que Pizza Júnior discuta a
predominância da razão instrumental nas organizações formais, ressaltando que a teoria
organizacional defende a eliminação da subjetividade e da individualidade nas
organizações, fazendo coincidir racionalidade com metas e procedimentos
organizacionais. Aqui, Pizza Júnior dá grande destaque às afirmações de Simon contidas
em seu livro Comportamento administrativo.
O estudo de Mannheim — O homem e a sociedade — é, então, criticado por Pizza Júnior
em função de eliminar impulsões, desejos e sentimentos do âmbito da razão. Críticas
também são feitas ao trabalho de Max Horkheimer, indicando-o como defensor de uma
concepção de razão exterior ao homem e coerente com o postulado marxista. Embora
143
reconhecendo a originalidade da contribuição de Habermas, Pizza Júnior também a ele
não poupa críticas:
“A contribuição de Habermas é original […] mas não
consegue superar o caráter ideológico da proposta
marxista ao vinculá-la a movimentos sociais e nega-lhe o
caráter intrínseco de condição básica do indivíduo.”
(Pizza Júnior, 1994, p. 12).
Pizza Júnior opta claramente pelo conceito de razão substantiva concebido por Guerreiro
Ramos, enquanto resgate da herança clássica. No entanto, ao constatar o esmagamento da
subjetividade nas organizações formais e a consequente padronização de comportamentos
e valores imposta aos seres humanos enquanto membros de tais organizações, o autor
demonstra uma certa perplexidade:
“... sem contato com o grupo, com o social, o indivíduo
não pode desenvolver sua capacidade crítica nem alargar
sua consciência e seus horizontes; submetido a
imperativos grupais, tem que se anular em benefício de
opiniões e conveniências coletivas. Como resolver esse
problema, se é que há solução ? […] Que fazer, se
vivemos grande parte do tempo de nossas vidas em
sistemas sociais planejados, muitos deles voltados para
144
atividades produtivas e de mercado ?” (Pizza Júnior,
1994, pp. 13-14).
Sua perplexidade sugere-nos um fatalismo pessimista, ao passo que a manifestação
concreta (efetivamente no âmbito do trabalho, nas organizações produtivas) da razão no
sentido clássico ou mesmo no sentido substantivo não são demonstradas, não são
exemplificadas. No seu texto, há exemplos apenas da materialização da razão
instrumental.
O estudo de Oliveira (1993):
Oliveira (1993) empreende uma análise histórica da “totalização da racionalidade
instrumental”, relacionando-a ao pensamento da Escola de Frankfurt e também à teoria
das organizações. Ainda que o autor não tenha utilizado a expressão razão substantiva em
seu texto, julgamos importante tecer alguns comentários sobre o seu conteúdo, uma vez
que nele é abordado o conceito clássico de racionalidade, há várias referências a
Guerreiro Ramos e também há uma clara preocupação com a emancipação do homem ao
nível das organizações e na vida social como um todo.
Partindo de considerações sobre a noção clássica de razão, Oliveira avança pelo projeto
do iluminismo visto sob a ótica dos frankfurtianos, até atingir o período histórico em que
predomina a razão instrumental — o capitalismo. Denominando tal período
“descaminhos da razão”, Oliveira comenta a proposta analítica de Weber e, em seguida,
145
detalha o processo de totalização da razão instrumental na sociedade moderna,
relacionando-o à expressão “sociedade unidimensional”, cunhada por Herbert Marcuse.
Oliveira identifica e se afasta do pessimismo dos frankfurtianos, face à totalização da
racionalidade instrumental. Aponta uma série de possibilidades de busca da emancipação,
entendida como liberdade e autonomia dos indivíduos.
Essas possibilidades são denominadas, em seu conjunto, “grande recusa”:
“Nem todos trilham o caminho da recusa
conscientemente. A grande maioria não toma
conhecimento do que se passa em seu redor. Uma boa
parte finda por se conformar. Outra é cooptada. Outra
protesta e consegue reformas. Outra se ausenta. Por fim,
uma fração se rebela, contesta e nega o sistema. De uma
forma ou de outra, fica a sensação de falta de alguma
coisa, o peso da repressão e exploração tão
compreendido e explicado por Marx, Freud, Adorno,
Foucault e outros.” (Oliveira, 1993, p. 31).
Oliveira lista uma série de ações consideradas como de recusa à totalização: niilismo,
obscurantismo, enquanto tentativas “irracionais”; opondo-se à formas “racionalistas”, a
146
saber, a prática de soluções tecnocráticas, a contestação “bem intencionada” que não
rompe as amarras estruturais do sistema e,
“Por fim, ficam os ‘iluministas’ no sentido clássico. Não
advogam soluções conciliadoras, nem internas ao sistema
ou à sua racionalidade. Assumem os ensinamentos
oriundos do processo histórico. Atualmente, pugnam por
um novo racionalismo capaz de transformar a ‘sociedade
totalitária’ e o ‘homem unidimensional.’” (Oliveira, 1993,
p. 31).
O autor sustenta que as possibilidades de recusa devem ser vistas como especulações que
se aplicam em larga dimensão, ou seja, ao senso comum, ao homem do povo, pensadores
sociais, elites estratégicas, “e principalmente, aos produtores, professores e estudantes de
Teorias Sociais de uma forma geral e Teoria das Organizações praticadas na academia,
na universidade.” (Oliveira, 1993, p. 32).
Mesmo relativizando a sua lista de possibilidades de recusa, “estas considerações não se
propõem a ser uma classificação exaustiva […] Merecem ser aprofundadas e
sistematizadas na observação da realidade empírica”(Oliveira, 1993, p.31), o autor
confere uma importância maior não a uma práxis renovadora ao nível das organizações e
sim à especulação, pois conclui o seu texto exaltando unicamente o pensamento
sistematizado:
147
“Em síntese, é no ‘irrefreável movimento do pensamento’,
e na crítica e autocrítica do mesmo, que o homem, em
última instância, encontra saídas para a sua emancipação
e construção de sentido.” (Oliveira, 1993, p. 34).
O estudo de Vasconcelos (1993):
Vasconcelos (1993) propõe um quadro de análise dos modos de racionalidade e os efeitos
de mudanças tecnológicas nos processos decisórios nas organizações. Afirmando basear-
se em Weber, Vasconcelos distingue três tipos de racionalidade: a instrumental, a
substantiva-ética e a objetiva.
Segundo Vasconcelos,
“No conceito weberiano, a racionalidade substantiva é
um processo voltado para a elaboração do quadro de
referências que serve de base para a ação adaptativa dos
processos de racionalidade instrumental.” (Vasconcelos,
1993, p. 11).
Vejamos o que o autor discute sobre um outro possível significado da racionalidade
substantiva:
148
“Outra visão possível é a de que a racionalidade
susbstantiva seria um processo autônomo de
racionalidade, voltado para as propriedades intrínsecas
dos atos e radicalmente diferente da racionalidade
instrumental.
Esta visão tende a introduzir um dualismo na análise dos
atos humanos, e separa o substantivo do instrumental.”
(Vasconcelos, 1993, p. 11).
Estabelecido assim o espectro da “escolha”, o autor faz a sua opção e a justifica:
“Prefiro adotar a primeira definição que integra a
racionalidade substantiva à instrumental na medida em
que a primeira consiste nos processos de associação
simbólica que resultam nos fins e objetivos que devem ser
operacionalizados pela operação da racionalidade
instrumental. Nesta visão, os dois modos de racionalidade
não existem separadamente, sendo indissoluvelmente
ligados, pois o lado instrumental do processo de
racionalidade pressupõe logicamente um fim a ser
atingido e a racionalidade substantiva não existe sem a
149
possibilidade de efetivação. Na prática, a
instrumentalidade e a substantividade são dois lados da
mesma moeda.” (Vasconcelos, 1993, pp. 11-12).
Vasconcelos não se dá conta que a estrutura teleológica está presente em todos os tipos de
ação. E, portanto, o fato de contar com essa estrutura não quer dizer que toda ação efetiva
seja obrigatoriamente de natureza instrumental. Despreza também a questão crucial da
orientação que é subjacente a toda e qualquer ação.
Como vimos em Habermas (1987), uma ação pode ser orientada para êxito ou para o
entendimento, e tais orientações são mutuamente excludentes; o fato dela ser orientada
para o entendimento não quer dizer que ela seja privada de operacionalidade, pois a
estrutura teleológica é parte do seu processo. O autor usa o termo “operacionalização”
como única forma de ação, ligando-o exclusivamente à razão instrumental, o que o leva a
afirmar que as racionalidades substantiva e instrumental “são dois lados da mesma
moeda”. Uma ação orientada para o entendimento é fruto da racionalidade, só que uma
racionalidade fundamentalmente diferente da racionalidade instrumental.
O autor parece não perceber que na sociedade moderna, a razão instrumental orienta
ações através do cálculo egocêntrico de utilidades, liberado de contextos normativos que
tenham um fundo de responsabilidade social. Os atores, liberados do julgamento ético,
não necessitam responder pelos seus atos face à pretensões de validez susceptíveis de
crítica moral, o que interessa é o fim, o êxito. O debate racional é desprezado, a utilidade
torna-se o valor generalizado e a rentabilidade, a eficácia e a eficiência tornam-se as
150
medidas de alcance do êxito. Uma racionalidade puramente econômica, técnica, portanto,
instrumental. Querer equiparar este tipo de racionalidade à racionalidade substantiva nos
parece um engano, no mínimo, lamentável. O próprio Weber, no qual o autor declara
basear-se, já havia diferenciado radicalmente dois tipos de racionalidade.
Talvez o autor considere como razão instrumental a orientação do fazer e razão
substantiva a orientação do pensar, ao afirmar que “a racionalidade substantiva não existe
sem a possibilidade de efetivação”, o que não deixaria de ser um outro grande equívoco,
pois assim estaria confundindo “efetivação” com “instrumentalidade”.
Julgamos conveniente esclarecer devidamente o significado desses dois termos. Segundo
o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (2ª ed., 1986), efetivação é “ato ou efeito
de efetivar”, sendo que efetivar é “tornar efetivo, realizar, efetuar”, complementando, lá
encontramos que efetivo significa “que se manifesta por um efeito real”. Da mesma fonte
reproduzimos aqui o significado de instrumental: “que serve de instrumento”; e, também,
de instrumento: “recurso empregado para se alcançar um objetivo, um resultado; meio.”
Como se pode ver claramente, instrumental, ou o neologismo empregado pelo autor —
“instrumentalidade” — refere-se unicamente, neste contexto, ao alcance de um fim, o
instrumento é primordialmente um meio, corroborando a denominação utilizada por
Habermas e por Guerreiro Ramos para designar um tipo específico de racionalidade: a
“racionalidade com respeito a fins”, ou a “razão instrumental”, que é marcada
fundamentalmente pela adequação dos meios para o alcance dos fins.
151
Por outro lado, efetivação diz respeito à realização, a tornar efetiva alguma coisa, ou seja
manifestar essa coisa através dum efeito real.
Assim, a concretização, ou ainda, a manifestação de um efeito real de algo, não implica
obrigatoriamente um processo em que a racionalidade (que fundamenta a lógica da ação)
seja aquela que “serve como um instrumento”, primordialmente utilizado para adequar
meios a fins. A concretização de algo pode ser guiada por uma racionalidade
instrumental, mas não necessariamente.
A nossa intenção não é estabelecer uma querela de cunho semântico com o autor. Muito
mais além, o que queremos é identificar e demonstrar aquilo que subjaz a esta
“dificuldade” de Vasconcelos, que o leva, inclusive, a confundir termos ocasionando
equívocos em seu estudo: a incapacidade de demonstrar claramente a efetivação da
razão substantiva, a manifestação dos efeitos reais dessa racionalidade nas ações
administrativas de participantes de organizações produtivas.
Sustentamos, como Guerreiro Ramos, que a racionalidade substantiva é, de fato,
radicalmente diferente da racionalidade instrumental. Segundo Guerreiro Ramos (1981), a
racionalidade substantiva é inerente ao indivíduo, à sua psique, ela se materializa em
ações através da mediação do debate racional, onde o julgamento ético é a pedra angular
(o que é muito diferente da condição de “recurso empregado para alcançar um resultado”,
152
essência do que é “instrumental”). De tal debate racional, Habermas (1987) nos fornece
uma abordagem profunda e suscinta, com a sua teoria da ação comunicativa.
No plano da ação, Habermas (1987) esclarece que a ação instrumental e a ação estratégica
são radicalmente diferentes da ação comunicativa, e não podemos nunca afirmar que
todas elas correspondem à mesma racionalidade, ou ainda a racionalidades integradas
como “dois lados da mesma moeda”.
Ainda no plano da ação, vimos em Weber (1978) que a “ação racional com relação a
valores” só se verifica quando o indivíduo age de determinada maneira porque “se
acredita obrigado” perante a certos valores. Devido a essas e outras considerações
essenciais na formulação weberiana é que Habermas (1987) a identifica como
“estruturada monologicamente”. Apesar de Weber (1978) denominá-la “ação social”,
muito pouco de “social” há nesse constructo e sim, como afirma Habermas (1987), uma
“teoria intencionalista da consciência”.
Vasconcelos acaba optando por uma via da qual discordamos veementemente: a
“integração” entre as racionalidades substantiva e instrumental. Infelizmente, o seu
estudo padece da mesma “dificuldade” observada nos de Tenório (1990), Pizza Júnior
(1994) e Oliveira (1993): não há uma base empírica. O mundo não é visitado, não há
dados empíricos, suas afirmações não são provadas por dados provenientes de alguma
realidade organizacional situada no tempo e no espaço. Por exemplo, Vasconcelos não
demonstra como as racionalidades substantiva e instrumental podem ser “integradas” no
153
cotidiano das organizações. A praxis administrativa e o cotidiano de organizações
produtivas estão ausentes no seu estudo.
Supomos que esta ausência tenha sensivelmente prejudicado a explanação do autor e que,
até mesmo, o tenha conduzido a não rever determinadas concepções e opções. O
confronto do pensamento com os dados colhidos em organizações produtivas pode,
muitas vezes, fazer refletir e alterar a percepção dos conceitos e a sistematização que se
queira estabelecer entre eles.
O estudo de Caldas (1994):
Caldas (1994) elaborou um estudo tentando examinar modelos alternativos de
organização, com o intuito de “analisar formas organizacionais das mais diversas
espécies e rationales, buscando entender aspectos mínimos de sua natureza
fundamental.” (Caldas, 1994, p. 102).
Citando Guerreiro Ramos, Habermas, Skolimowski, Arendt, Harman & Hormann, Ross,
dentre outros estudiosos, o autor empreende um tour de force conceitual, onde discute a
questão da racionalidade e de cenários alternativos à burocracia. Caldas tenta demonstrar
a existência de grupos que apresentam, no interior dos cenários alternativos, formas
diversificadas de design organizacional, relativamente aos grupos burocraticamente
organizados.
154
Apesar do esforço realizado, as contundentes afirmações de Caldas ao longo do texto são
prejudicadas pela ausência de evidências originadas do “campo”. Ao discutir importantes
aspectos tais como escolha, diversidade, transição ética, substantividade, o autor não
remete a discussão ao como e em quais condições sociais, econômicas e históricas os
membros de grupos com design organizacional diferentes do burocrático estariam
realizando escolhas e alcançando a diversidade; bem como não identifica claramente as
singularidades desses designs. Estas dimensões, que poderiam certamente conduzir ao
aprofundamento da questão e, sem dúvida, brindar as assertivas e conclusões do autor
com evidências, somente poderiam ser trabalhadas através da pesquisa junto a
organizações reais e contando com instrumentos de interpretação adequados à absorção
das lições do terreno.
O estudo de Barreto (1993):
Barreto (1993) realizou um importante estudo crítico sobre a aplicação do conceito de
racionalidade na teoria das organizações e nas ciências sociais. Sua preocupação avança
no descortino de novos horizontes para a pesquisa sobre a racionalidade humana.
Após analisar semânticamente o termo razão, remetendo-o à dimensão do raciocínio,
Barreto discute o processo biológico do raciocínio, enfatizando a importância da
neurologia. Em seguida, empreende uma análise crítica de várias abordagens da razão,
155
comentando os trabalhos de vários autores como Kant, Weber, Voegelin, dentre outros.
Deste ponto em diante, o autor ultrapassa a crítica e avança com propostas concretas:
“Doravante, o texto encaminha-se para a abordagem de
alternativas possíveis nas concepções e elucidações da
racionalidade que, a nosso juízo, podem fornecer um novo
arcabouço teórico para as relações sociais do futuro.”
(Barreto, 1993, p. 43).
Após o exame da racionalidade comunicativa e da racionalidade substantiva, Barreto
estabelece uma conclusão que para o nosso estudo é fundamental:
“Percebe-se que as concepções de Habermas e de Ramos,
no que se referem a uma nova orientação, não-
disciplinadora e não-opressiva, da conduta social, não
são contraditórias e sim complementares.” (Barreto,
1993, p. 44).
O autor prossegue enfocando aspectos da neurociência, da visão de racionalidade limitada
encontrada em Simon e da relação entre razão e intuição. Dentre as boas contribuições e
propostas do seu estudo, gostaríamos de destacar aquela que, ao nosso ver, se reveste de
maior riqueza e perspicácia:
156
“Prevemos, e desejamos, a intensificação de estudos e
reflexões sobre a racionalidade comunicativa, de
Habermas, e sobre a razão substantiva, fundada na
psique humana, e reencontrada por Guerreiro Ramos. A
possível noção racional do futuro, emergente da
intersubjetividade e do senso comum, não torna
excludentes as propostas de Habermas e as do sociólogo
brasileiro.
Portanto, julgamos ter encontrado uma das dimensões
teóricas da razão do futuro nas concepções estabelecidas
por esses autores.” (Barreto, 1993, p. 49).
Esta amostra da produção recente no campo da teoria das organizações no Brasil, relativa
ao enfoque da racionalidade substantiva, nos dá uma concreta percepção do estado atual
da pesquisa pautada nesse enfoque. Como podemos perceber, há um traço comum, apesar
das diferentes abordagens realizadas. Provavelmente, há outros traços comuns entre os
textos aqui examinados, porém o que gostaríamos de destacar é aquele a que nós vimos
nos referindo até aqui como uma “dificuldade”, um verdadeiro impasse: apesar de muito
bem elaborados, eles não se fundam em uma base empírica sólida, consequentemente,
não conseguem ir além da crítica e da denúncia da razão instrumental nas organizações,
pois não conseguem demonstrar empiricamente como a razão substantiva se concretiza
nas organizações produtivas.
157
Constatado este fato, que para este estudo é crucial, passaremos à seção seguinte, onde
vamos comentar cada estudo apresentado acima, face ao impasse constatado e, delimitar a
contribuição que, através do presente trabalho, tentamos fornecer ao campo da análise da
racionalidde organizacional baseada na razão substantiva.
VI. Delimitação da contribuição deste estudo
Os textos examinados na seção anterior são extremamante importantes na medida em
que, através deles, os seus autores dão continuidade ao aprofundamento da questão da
racionalidade nas organizações e, principalmente, chamam a atenção para a racionalidade
substantiva. O pensamento de Guerreiro Ramos permanece na pauta das discussões,
dando provas de sua potência e fecundidade.
Entretanto, criticar a racionalidade instrumental e chamar a atenção para a existência da
racionalidade substantiva, apenas supondo a possibilidade de aplicação desta última nas
organizações, ao nosso ver, não é o bastante. Após 15 anos do lançamento de A nova
ciência das organizações - uma reconceituação da riqueza das nações e, de 14 anos da
morte de Guerreiro Ramos, se quisermos que o seu pensamento dê frutos, temos que
fazer avançar a teoria.
O problema que se apresenta é que os estudos realizados no Brasil sobre a razão
substantiva nas organizações, embora apresentem uma ótima qualidade, continuam
158
restritos ao nível conceitual. Mesmo durante os anos 80, não temos nenhum registro de
estudos organizacionais que tenham apresentado evidências empíricas — dados colhidos
em organizações produtivas e bem interpretados — que dêem conta do emprego da razão
substantiva diretamente nos processos organizacionais, nas práticas administrativas. Nós
gostaríamos, inclusive, de acrescentar: principalmente em organizações produtivas que
operam no Brasil, ou seja, em nosso contexto sócio-histórico.
A ausência de análises oriundas de dados empíricos compromete o avanço da teoria,
compromete o avanço do conhecimento. Se desejarmos desenvolver a abordagem
substantiva das organizações, necessitamos demonstrar claramente o que significa a
adoção da razão substantiva nos processos administrativos e examinar a sua influência na
dinâmica organizacional. Não podemos nunca nos esquecer de que trabalhamos na
produção de conhecimentos referentes a um dos campos mais pragmáticos da atualidade;
conhecimentos que tentam dar conta dos fenômenos inerentes ao homem no trabalho, nas
organizações produtivas, praticando administração. Guerreiro Ramos apontou-nos,
brilhantemente, o caminho, abrindo avenidas, cabe-nos dar continuidade ao processo.
Permanecer para sempre no nível conceitual é, ao menos, ficar confortavelmente situado
no debate das idéias; é preciso ousar e assumir o desafio de confrontar as idéias com o
“mundo da vida”, com as organizações e as modalidades pelas quais seus membros
praticam administração. Fazer avançar a teoria é também utilizar a profunda formulação
conceitual de Guerreiro Ramos como base para a interpretação de fatos oriundos de dados
concretos e atuais.
159
A crítica à razão instrumental nas organizações, que se limita apenas a indicar que outros
tipos de racionalidade são passíveis de fundamentação do trabalho humano, alerta mas,
infelizmente, em geral pouco acrescenta, uma vez que muito já foi anteriormente
produzido nessa linha. Nesse sentido, a “desvantagem”, face ao que criticam — a razão
instrumental — é flagrante e, facilmente perceptível por aqueles que lidam com
problemas concretos em seu labor cotidiano: os verdadeiros praticantes da administração,
os administradores e todos aqueles que lidam com administração nas organizações
produtivas. Pois, se de um lado não se consegue explicitar claramente uma práxis
substantiva nas organizações, permanecendo apenas no nível conceitual, de outro lado a
teoria econômica e as teorias ditas funcionalistas das organizações já vêm, há muito
tempo, fornecendo indicadores, instrumentos de mensuração, definições claras, e milhares
de exemplos do emprego da razão instrumental colhidos em organizações reais.
Com relação aos estudos dos autores brasileiros apresentados na seção anterior, temos
algumas considerações a fazer, à luz desta questão.
Tenório (1990) propõe o agir comunicativo como a solução de um certo “impasse”
percebido pelo autor entre a razão substantiva e a razão instrumental. Mas a sua
proposição esbarra na pergunta óbvia: “como fomentá-la ?” O texto termina justamente
aí, na fronteira entre a idéia e a ação. Não apresenta resposta. Face ao impasse, julgamos
conveniente e oportuno que o autor tivesse pelo menos tentado verificar se já existem
grupos que estariam ousando praticar a racionalidade substantiva no trabalho em
conjunto, seja mediante o emprego do agir comunicativo ou não. Assim, ele poderia
colocar a sua idéia à prova e alargar futuras proposições.
160
Pizza Júnior (1994) opta decididamente pela racionalidade substantiva como meio de
emancipação do homem no trabalho. Entretanto, mostra-se perplexo ao constatar o
esmagamento da subjetividade no interior das organizações produtivas. Trilha um
caminho muito semelhante ao de Tenório, ao terminar o seu texto com praticamente a
mesma pergunta: “que fazer ?” Nós gostaríamos, então, de lhe sugerir: por quê não tentar
ver “quem está fazendo” e, sobretudo, “como estão fazendo” ?
Oliveira (1993) chega a listar uma série de posturas e ações face ao que ele chama
“totalização da razão instrumental”. A sua lista não contempla com clareza as ações
empreendidas por indivíduos que movimentam organizações produtivas baseando-se em
outra racionalidade que não a instrumental, apesar de pretender situar o seu estudo no
âmbito da administração. Sem referências específicas nem situadas historicamente, não é
de se surpreender que o autor aposte sobretudo no “irrefreável movimento do
pensamento” como a alavanca da mudança social, revelando um academicismo
exacerbado. Lembramos a todos aqueles que priorizam o pensamento sobre todas as
ações humanas, que esta crença, no seu limite, pode criar espaços propícios a idealismos
muitas vezes desconectados das condições reais das ações de mudança social.
Vasconcelos (1993) não consegue ancorar as especulações da sua formulação conceitual
numa práxis organizacional observável, constatável. Acaba por optar, inusitadamente, por
uma “integração” entre as razões instrumental e substantiva, colocando-as no mesmo
plano. Tal proposta de interpretação teórica, verdadeiramente original, não nos consegue
161
convencer, pois a sua originalidade não é sustentada por evidências empíricas que possam
invalidar as formulações de Habermas e de Guerreiro Ramos, os quais consideram a
razão instrumental como radicalmente diferente da substantiva. O mais curioso é
constatar que Vasconcelos afirma basear-se nestes autores.
Caldas (1994) nos declara que pretende “analisar formas organizacionais das mais
diversas espécies e rationales”, com o intuito de entender a sua “natureza fundamental”.
A sua análise se limita a apresentar modelos conceituais alternativos de visualização das
possibilidades de existência de organizações diferentes das burocráticas. O autor afirma
pretender explorar “outros viveres”, no entanto essa exploração não conta com nenhum
exemplo, nenhuma referência, nenhum caso de organização real, seja no Brasil ou
alhures, onde tais “outros viveres” a nível do trabalho estejam sendo implementados e,
principalmente, através de quais formas estariam sendo implementados. A sua tentativa
de analisar formas organizacionais e “rationales” das mais diversas fica, portanto, um
tanto quanto incompleta e não evidente.
Barreto (1993) é o único, dentre os autores aqui consultados, que consegue ultrapassar a
barreira da crítica e ousar propôr avenidas frutuosas, embora ainda permanecendo, como
todos os outros, no campo conceitual. A sua visão de que as propostas de Habermas e a
de Guerreiro Ramos são complementares e portanto devem ser aprofundadas em
conjunto, nos serviu como um poderoso insight, como veremos a seguir, para tentar,
modestamente, acrescentar algo de útil — no sentido da aplicabilidade — ao estudo da
racionalidade substantiva em organizações produtivas. Ainda assim, gostaríamos de
162
registrar o nosso lamento pelo fato do autor não nos brindar com a concretização de sua
memorável proposta, levando-a ao confronto com o mundo das organizações em ação, ao
“cotidiano administrativo” — expressão criada por Lima & Teixeira (1994). Cremos que
certamente Barreto o teria feito com muito mais propriedade do que nós, uma vez que o
referido autor tem o mérito de primeiro visualizar tal démarche.
Todos os estudos acima citados têm como pano de fundo um humanismo digno de
destaque. Voltamos a ressaltar que as evidências empíricas que lhes faltam, poderiam em
muito enriquecer e tornar mais contundentes suas propostas de cunho inegavelmente
humanistas.
A esse gênero de “dificuldade” que apontamos e tentamos esclarecer, chamaremos
doravante impasse. A dificuldade em demonstrar explicitamente como e quando a
racionalidade substantiva se manifesta ao nível do cotidiano de indivíduos que
implementam processos organizacionais, significa para nós um sério impasse ao
desenvolvimento da teoria. Pode significar também, uma limitação à expansão do
emprego da razão substantiva no trabalho.
Queremos deixar claro, aqui, que o referido impasse não é, de maneira alguma, gratuito.
Sentimos o seu peso, o incômodo provocado pela dificuldade que lhe acompanha e da
qual se é acometido ao tentar impulsionar o estudo da razão substantiva nas organizações.
163
Ao iniciarmos o planejamento do quadro de análise dos dados coletados no campo,
visando o desenvolvimento deste presente estudo, nós nos deparamos com o mesmo
problema provavelmente vivenciado pelos autores acima citados: a natureza
fundamentalmente conceitual da abordagem que nos foi legada, “em alto grau de
abstração”, por Guerreiro Ramos.
O próprio autor o confessa, ao comentar sobre a decisão básica que teve que tomar
quando da elaboração do livro A nova ciência das organizações - uma reconceituação da
riqueza das nações:
“Deveria eu apresentar ‘A nova ciência’ provida do
máximo possível de ilustração factual de suas teses, ou
deveria dar-lhe um caráter de discurso conceitual por
excelência ? O estudo da ‘Teoria geral’ (elaborado por
Keynes em alto grau de abstração) me convenceu de que
a segunda diretiva seria a mais aconselhada, e decidí
firmemente segui-la. […] Em resumo, ‘A nova ciência’
deveria ser, tanto quanto possível, mero discurso teórico.”
(Guerreiro Ramos, 1982, p. 93).
No prefácio (escrito em 1980) da edição brasileira daquele livro, o autor esclarece que,
164
“A nova ciência das organizações é, assim, produto de
cerca de 30 anos de pesquisa e reflexão. Mas ele não
articula tudo aquilo em que a nova ciência consiste.
Apenas começa uma nova fase da explicação da proposta
de trabalho teórico e operacional, que espero consumar
durante o resto de minha vida” (Guerreiro Ramos, 1981, p
.XVII).
Guerreiro Ramos deixara claras, tanto a opção conceitual para o seu livro, quanto a
importante constatação de que o referido livro, apesar de se constituir no resultado de
muitos anos de pesquisa, era, de fato, o início da construção da nova ciência, a qual ele
mesmo denominou abordagem substantiva das organizações. Infelizmente, o autor
faleceu em 1982, deixando incompleta a sua proposta.
Diante do impasse ao qual nos vimos confrontados, buscamos a sua solução, uma vez que
cremos firmemente que não podemos continuar, após todo o monumental esforço
empreendido por Guerreiro Ramos, a elaborar estudos sobre a razão substantiva restritos
ao nível puramente conceitual. Não abrimos mão de assumir o desafio de confrontar as
nossas idéias com realidades organizacionais concretas, isto é, com empresas existentes,
com organizações substantivas reais, situadas no tempo e no espaço, preferencialmente
em funcionamento no Brasil. Essa démarche, já estamos trilhando há algum tempo (ver
Serva, 1993 a). Com o presente estudo, objetivamos aprofundar e aperfeiçoar o
instrumental de análise. Para tanto, optamos por tomar e aprofundar o caminho sugerido
165
por Barreto (1993): trabalhar com os estudos de Habermas e de Guerreiro Ramos numa
perspectiva de complementaridade. Assim pudemos elaborar um quadro de análise que
nos servisse de instrumento para interpretar os dados empíricos colhidos em organizações
produtivas, através da metodologia etnográfica da observação participante.
Isto posto, podemos agora delimitar a contribuição que pretendemos, modestamente, dar
ao campo de estudos aqui enfocado:
1) Fornecer um quadro de análise que ao ser operacionalizado, possibilite-nos identificar
a presença da racionalidade substantiva e, demonstrar como ela é efetivada no
desenrolar dos processos organizacionais. Mais claramente, demonstrar empiricamente
como a racionalidade substantiva é concretizada nas ações dos membros de
organizações produtivas, ao nível dos processos organizacionais e da práxis
administrativa, compreendendo a tomada de decisões, a comunicação, os valores e
objetivos organizacionais, a resolução de conflitos, a divisão do trabalho, o controle, as
normas, a hierarquia, a ação social da organização, etc.
2) Procedendo do mesmo modo descrito no item anterior, ou seja, por intermédio da
utilização do mesmo quadro de análise e dentro das mesmas condições específicas,
identificar e demonstrar também a presença e a concretização da razão instrumental,
permitindo assim detectar qual dos dois tipos de racionalidade é predominante numa
organização produtiva;
166
3) Consequentemente, partindo da predominância revelada pela análise, identificar se
uma determinada organização produtiva é uma organização substantiva ou não.
Com este empreendimento, acreditamos piamente que podemos contribuir para criar
condições propícias a novos desenvolvimentos no campo dos estudos organizacionais
baseados na abordagem da racionalidade substantiva inaugurada por Guerreiro Ramos. A
nossa preocupação específica, insistimos, é de abrir caminhos que conduzam tais estudos
a análise direta e sem rodeios das práticas utilizadas pelos indivíduos no cotidiano
administrativo (Lima & Teixeira, 1994). Então, esses estudos poderiam revelar
factualmente se a razão substantiva pode (ou não) guiar a gestão de organizações
produtivas e, em caso positivo, detalhar com clareza como os participantes dessas
organizações o fazem efetivamente.
Cremos ser esta um boa via para cooperar ao esforço realizado por muitos colegas no
sentido de fazer a teoria avançar, propiciando oportunidades sistematizadas de confrontá-
la com a prática. Em última instância, a nossa preocupação mais geral é com a
continuidade dos esforços pela emancipação do homem no e pelo trabalho.
A fundamentação da complementaridade acima citada e o quadro de análise dela
decorrente, propostos neste trabalho, serão minuciosamente explicitados no Capítulo IV.
167
No capítulo que se segue, definiremos suscintamente o que entendemos por organizações
substantivas, além de situá-las historicamente face ao amplo espectro dos movimentos
emancipatórios originados no âmbito global das organizações produtivas.
168
Capítulo II - Organizações Substantivas
Os nossos objetivos neste capítulo são, primeiramente situar o fenômeno do surgimento
desse tipo de organização num panorama histórico de iniciativas emancipatórias ao nível
da esfera produtiva e, em seguida, esclarecer o conceito de organização substantiva.
I. Organização da produção e emancipação - algumas iniciativas
históricas
Iniciaremos este capítulo empreendendo uma breve retrospectiva de algumas iniciativas
históricas marcantes, a qual, em nenhuma hipótese pretende ser exaustiva, e sim apenas
uma referência a alguns movimentos de destaque na história que atestam a ação de muitos
homens, em épocas diferentes, voltada para a emancipação a partir da reorganização da
produção.
Começaremos arbitrariamente por ressaltar alguns movimentos ocorridos já dentro do
período histórico marcado pelo capitalismo, embora reconhecendo que iniciativas de
cunho emancipatório originadas na produção têm registro histórico bem anterior a esse
período.
169
O cooperativismo industrial - origens:
Inicialmente, abordaremos brevemente o movimento do cooperativismo industrial. Sua
origem data da primeira metade do século XIX, embora o cooperativismo considerado
globalmente tem suas raízes em épocas muito distantes. Entre as manifestações históricas
consideradas como raízes do cooperativismo, podemos citar as associações de
arrendamento de terras na Babilônia, as sociedades de drenagem e construção de diques
na Alemanha, os pastos coletivos e as associações de pescadores na Romênia, as
coletividades agrícolas entre os sérvios e os russos, as comunidades de trabalho na Rússia
e mais tarde as confrarias ou corporações de ofícios durante a Idade Média.
Robert Owen (1771-1858) e Charles Fourier (1772-1837) são tidos como os pais do
cooperativismo industrial. Owen, industrial britânico, criou várias comunidades nos
Estados Unidos, México e Inglaterra sob o princípio da propriedade coletiva, onde
tentava-se socializar a produção e o consumo. Em 1839, chega a fundar uma associação
internacional “de todas as classes e de todas as nações sediada em Londres”, a Universal
Comunity Society of National Religionist. Todas as comunidades fracassaram, com
exceção da situada em New Lanark (Escócia), onde fundou uma empresa com
participação dos empregados nos lucros e na gestão.
Fourier não foi um homem de ação, mais o primeiro ideólogo cooperativista na França.
Publicou em 1882 a sua obra principal: Traité de l’Association Domestique Agricole,
170
onde apresenta uma comunidade denominada “Falanstério”, à qual Fourier atribuía a base
da transformação da sociedade, através de um sistema coletivizado de produção e
consumo. Sua obra influenciou a criação de várias colônias na França e na América.
O cooperativismo industrial desenvolveu-se primeiramente na França e na Inglaterra.
Embora sem atingir um consenso, sabe-se que vários autores, como Gascón (1983),
consideram como a primeira cooperativa operária de produção a Association Chrétienne
des Bijoutiers en Doré, fundada em Paris por um grupo de joalheiros em 1834, atingindo
oito sucursais e funcionando até 1863.
O cooperativismo industrial expandiu-se consideravelmente em várias partes do mundo,
assumindo diversas modalidades. Não é nosso intento aqui realizar um levantamento
exaustivo das iniciativas cooperativistas, apenas estamos registrando este importante tipo
de organização no bojo dos movimentos emancipatórios ao nível da esfera produtiva. Sob
essa orientação, abordaremos, como exemplo de experiência moderna de sucesso, alguns
aspectos do complexo cooperativo Mondragón.
O complexo cooperativista de Mondragón:
Em outubro de 1943, o padre José Maria Arizmendiarrieta, da paróquia de San Juan
Bautista de Mondragón, na Espanha, fundou a Escuela de Formación Profesional,
difundindo ideais cooperativos e sociais. Alguns egressos dessa escola, encontrando
dificuldades de adaptação à estruturas rígidas de gestão nas empresas da região, decidem,
em 1955, fundar a sua própria empresa, a metalúrgica ULGOR. O nome da empresa
171
corresponde às iniciais dos seus cinco fundadores: Usatorre, Larrañaga, Gorroñogoitia,
Ormaechea e Urtubay.
Em agosto de 1956, transferem a fábrica para Mondragón, e este é considerado o marco
inicial do complexo cooperativo. Vale ressaltar que a transformação da empresa em
cooperativa se deu em razão de ser essa a única forma legal possível, na Espanha da
época, de constituir um empreendimento democraticamente administrado, onde o capital
estivesse submetido ao trabalho. Em 1959, o Ministério do Trabalho oficializa a ULGOR
como uma cooperativa.
Na mesma época, outras cooperativas de produção surgiram na região, como a FUNCOR
e a ARRASATE. A identificação de problemas comuns a todas elas, tais como as
dificuldades financeiras internas e as dificuldades em obter crédito junto às instituições
financeiras, as quais não viam com bons olhos essas iniciativas, levaram as três
cooperativas citadas a criar, no ano de 1959, em conjunto com a cooperativa de consumo
de San José, a Caja Laboral Popular, uma sociedade cooperativa de crédito, com o
intuito de apoiar as cooperativas existentes e incentivar a criação de novas.
A partir de então, o empreendimento alcançou um grande sucesso. Segundo Gascón
(1983), em fins de 1980, o complexo Mondragón contava com 149 cooperativas, assim
distribuídas por ramo de atividade: 55,7% na indústria, 26,8% no ensino, 9,4% em
habitação, 4% no ramo agro-alimentício, 3,4% em serviços diversos e 0,7% em
cooperativas de consumo. A ULGOR figurava já entre as cem maiores empresas do país.
172
O complexo como um todo, já empregava 18.053 sócios trabalhadores, sendo a ULGOR
a maior empresa, com mais de 3.000 sócios trabalhadores, seguida de sete empresas com
mais de 500 membros, outras nove contando entre 250 e 500 membros, e as demais em
menor proporção. O faturamento global atingiu 73.705 milhões de pesetas, sendo que
19,7% sob a forma de exportações.
Quanto à produtividade, em 1978 havia aumentado de 4%. Em 1979, o aumento real do
faturamento em 16% foi alcançado apenas com o acréscimo de 6,4% de pessoal.
Refletindo sobre os problemas enfrentados pelo complexo Mondragón, Gascón (1983)
comenta a questão do crescimento das empresas face ao risco dos entraves ao
cooperativismo, sob o ponto de vista das relações humanas, da gestão democrática e
participativa e das comunicações. O autor reconhece que tais problemas, como era de se
esperar, se faziam sentir com mais intensidade na ULGOR. Estava já em curso, na época
(fins de 1980), uma série de esforços visando superar essa situação provocadora de
tensões: subdivisão das maiores empresas em unidades menores, com um determinado
número de membros como limite; criação de um Conselho Social, eleito
democraticamente e com reuniões frequentes, visando tratar de questões como política de
pessoal, remunerações, seguridade social, condições de trabalho, fluxo de comunicação,
dentre outras.
Após o exemplo de cooperativismo industrial vitorioso do complexo de Mondragón,
tentaremos remontar o fio do tempo, começando por revisitar o séc. XIX para sumarizar
173
uma das experiências emancipatórias mais célebres da história, a Comuna de Paris e, em
seguida prosseguir com o relato de outras iniciativas emancipatórias.
Um marco histórico: a Comuna de Paris
Um dos movimentos emancipatórios mais famosos e também dos mais efêmeros ficou
conhecido como a Comuna de Paris. Ele se deu em março de 1871, no bojo da guerra
franco-prussiana.
Aproveitando-se da derrota do exército francês, numa Paris sitiada, o operariado assumiu
o controle da cidade e, o mais importante, as unidades produtivas, conferindo-lhe uma
nova organização.
Estruturaram-se os Conselhos Operários, os quais nomeavam os chefes de oficina e
chefes de equipe, fixavam salários e horários de trabalho. O ritmo, a programação e os
volumes de produção, dentre outras questões eram decididos por comitês de fábrica.
O aspecto mais importante da Comuna de Paris, trágica e rapidamente aniquilada em
poucos meses, foi a demonstração factual de que os trabalhadores podiam assumir a
gestão da produção e, por extensão, da comunidade, sem prejuízo para a continuidade das
funções de abastecimento, compreendendo a coordenação das atividades de produção,
distribuição e consumo, como também o estabelecimento dos princípios e normas
referentes à dinâmica das relações sociais no seio da coletividade.
174
A organização anarquista durante a guerra civil espanhola:
Muito mais consistente e duradouro, entretanto, foi o grande movimento organizativo
desenvolvido durante a revolução espanhola, notadamente na segunda metade dos anos
30. De inspiração fundamentalmente anarquista, esse movimento estabeleceu um grau de
organização da produção pelos trabalhadores jamais visto até então na história. O sistema
autodenominado “coletivista” funcionou durante cerca de 30 meses, sem paralelo com
nenhuma outra revolução social anterior, seja russa ou chinesa. Ao aniquilar a resistência
dos militares fascistas que se rebelaram contra a República, as organizações operárias se
concentraram, após 19 de julho de 1936, na retomada da produção, uma vez que todas as
grandes empresas foram abandonadas por seus proprietários e gestores.
Implantou-se uma estrutura de gestão social e da produção totalmente singular, baseada
numa prática autogestionária. Em cada unidade produtiva criou-se um Conselho, o qual
geria as atividades naquela unidade. Tais Conselhos relacionavam-se entre si por
afinidades funcionais, formando os Sindicatos de Indústria ou Ofício, que eram
organismos representativos da produção local em cada ramo produtivo especial. Os
Sindicatos se coligavam de acordo com as funções básicas da economia, configuradas em
número de dezessete (Santillán, 1980), formando, por sua vez, os Conselhos de Ramo:
175
a) Necessidades fundamentais - Conselho do ramo da alimentação, Conselho do ramo da
habitação e Conselho do ramo do vestuário;
b) Matérias-primas - Conselho do ramo da produção agrícola, Conselho do Ramo da
produção pecuária, Conselho do ramo da produção florestal, Conselho do ramo da
mineração e beneficiamento, Conselho do ramo da pesca;
c) Conselhos relacionadores - Conselho do ramo do transporte, Conselho do ramo das
comunicações, Conselho do ramo da imprensa e do livro, Conselho do crédito e do
intercâmbio;
d) Indústrias de elaboração - Conselho da indústria metalúrgica, Conselho do ramo da
indústria química;
e) E ainda, Conselho do ramo da luz, força motriz e água; Conselho da saúde e higiene;
Conselho da cultura.
Para coordenar os processos de produção e distribuição como um todo, formaram-se
Conselhos locais, regionais e federal de economia.
O mais importante aspecto dessa engenhosa estrutura para o nosso estudo, é que a
organização e a administração da produção em cada fábrica, setor, estabelecimento,
176
unidade econômica enfim, ficava a cargo de um Conselho eleito pelos próprios
trabalhadores podendo ser destituído a qualquer momento por eles.
As tentativas posteriores de implemento da autogestão em nível nacional:
Algumas outras tentativas históricas de organização de atividades econômicas inspiradas,
em maior ou menor grau, em princípios autogestionários foram analisados por Guillerm
& Bourdet (1976). Trata-se dos casos da antiga Iugoslávia, Argélia e da antiga Tcheco-
Eslováquia, dos quais apresentaremos uma síntese a seguir.
A autogestão na Iugoslávia:
A partir de 1950, por decretos governamentais, um regime administrativo híbrido foi
implantado em boa parte das empresas iugoslavas. Proclamado como “autogestão”, o
regime iugoslavo viveu o seu apogeu entre os anos de 1960-1966, alcançando a
Iugoslávia nesse período uma elevada taxa de crescimento econômico.
A modalidade iugoslava implicava um modelo de gestão nos seguintes moldes: um
Conselho Operário, composto por quinze a vinte membros eleitos pelos trabalhadores
mas, quase em sua totalidade indicados pela Liga dos Comunistas ou suas organizações
complementares. Esse Conselho, por sua vez, elege um Conselho de Direção, com três a
177
onze membros, ao qual delega os poderes executivos. O Conselho de Direção nomeia um
Diretor estranho à empresa que pode constituir a sua equipe de gerentes.
Pode-se ver, então, a sutileza da continuidade do afastamento do poder aos trabalhadores.
Com o passar do tempo, o Estado tomou para si o poder de nomeação do Diretor,
transferindo-o posteriormente para a comuna. A reação do operariado aconteceu sob a
forma da criação de “unidades de trabalho”, encarregadas de organizar a produção na
oficina. Em 1960, foi organizada uma “conferência das unidades de trabalho”, que se
opunha, quando necessário ao Conselho de Direção inaugurando a fase áurea da
“autogestão” iugoslava. No entanto, a participação forçosa e massiva do partido único nos
Conselhos Operários e nos Conselhos de Administração, aliados a fatores conjunturais,
fêz decair gradativamente a solução iugoslava,enfraquecendo-a bastante nos anos 70 até o
seu total desaparecimento.
De qualquer sorte, a experiência iugoslava revelou-se marcante, não só pelo êxito
econômico atingido entre 1950 e 1966, como também pela originalidade de seu modelo.
A autogestão na Argélia:
Na Argélia, após a guerra de libertação terminada em 1962, os trabalhadores tomaram as
empresas agrícolas e algumas industriais abandonadas pelos colonizadores. Em 22 de
março de 1963, o governo central baixa decretos instituindo a autogestão dos “bens
178
vagos”, isto é, aquelas empresas anexadas pelos operários. A estrutura do poder
oficializada em cada empresa apresentava muitas semelhanças com aquela utilizada na
Iugoslávia: Assembléia Geral dos Trabalhadores que elegia o Conselho dos
Trabalhadores e este elegia o Comitê de Gestão composto de 3 a 11 membros.
Entretanto, o governo central tinha a prerrogativa de nomear um Diretor, o qual era
membro de direito, não eleito, do Conselho de Gestão, com grandes poderes. Ele detinha
os fundos, assinava as folhas de despesas e as ordens de pagamento, zelava pela
legalidade e tinha direito de veto sobre as decisões dos Conselhos, além disso,
obviamente, representava oficialmente o Estado.
Portanto, a autogestão argelina era bem mais limitada que a iugoslava. Sua duração teve
fim, na prática, com a queda do governo de Ben Bella, derrubado por um golpe de estado
em junho de 1965 chefiado pelo coronel Boumedienne.
Em verdade, a autogestão argelina fêz-se sentir com alguma intensidade apenas no ramo
agrícola, no comércio jamais existiu e no ramo industrial limitou-se aos pouquíssimos
casos de pequenas empresas que foram gradativamente absorvidas por empresas maiores.
A tentativa de autogestão na Tcheco-Eslováquia:
Na antiga Tcheco-Eslováquia, um movimento de inspiração autogestionária iniciou-se em
meados de 1966. A sua marca particular originava-se do fato de que tratava-se de uma
179
reivindicação de autonomia nacional num país então dominado pela antiga União
Soviética. Entre 1966 e 1968, criaram-se centenas de Conselhos Operários nas fábricas
estatizadas. Acreditava-se que os Conselhos era uma das vias indispensáveis à retomada
da autonomia do país. Os Conselhos, onde foram instalados, tinham o direito de nomear o
Diretor da empresa e de intervir na administração. Possuia também o direito de veto.
Após a famosa “Primavera de Praga”, todos os Conselhos eleitos foram gradativamente
revogados. Temos assim, na antiga Tcheco-Eslováquia, um caso de autogestão
interrompida, abortada.
Os movimentos emancipatórios não se perdem sem destino no tempo. Eles constituem, ao
nosso ver, páginas essenciais na história das sociedades. Eles se tranformam e se
renovam, ganhando novas cores, reciclando o ideal de liberdade a partir das experiências
passadas, porém à luz dos desafios sempre novos que enfrentam.
Todas essas experiências realizadas na esfera do trabalho, embora apresentando graus
variados de sucesso e também de práxis emancipatória, compõem um acervo histórico
importante, um imaginário herdado por inúmeros indivíduos que em épocas mais recentes
vêm teorizando ou mesmo construindo organizações produtivas não convencionais de
cunho emancipatório, certamente influenciados direta ou indiretamente por esse
imaginário. Arriscamo-nos a supor que esses indivíduos são como que tributários de
todas essas experiências gravadas na história.
180
Na próxima seção, tentaremos reunir estudos que abordam a criação e o desenvolvimento
de organizações produtivas nas últimas décadas, experiências realizadas em várias partes
do mundo que, através da organização do trabalho, concretizam, divulgam e mantém
vivos os ideias emancipatórios.
II. Organizações produtivas não convencionais de cunho emancipatório - estudos recentes
Infelizmente, não é volumosa a literatura que aborde aspectos administrativos desse tipo
de organização, embora tais organizações existam, sob diversas facetas, em toda a parte.
Quando comparada à literatura sobre organizações produtivas de natureza burocrática,
por exemplo, observa-se uma distância incomensurável entre as quantidades de obras já
produzidas. No que concerne à teoria das organizações, essa constatação é extremamente
significativa (Guerreiro Ramos, 1981; Rothschild-Whitt, 1982).
Por conseguinte, não é possível estruturar uma vasta revisão bibliográfica, entretanto,
buscaremos indicar e destacar alguns estudos de boa qualidade realizados nos últimos
anos.
181
As organizações coletivistas:
No final dos anos 70, Joyce Rothschild-Whitt realizou um importante estudo em cinco
organizações nos Estados Unidos, situadas numa cidade de médio porte no estado da
Califórnia. Mais precisamente, tratava-se de uma clínica médica, um escritório de
advocacia, uma cooperativa de alimentos, uma escola infantil alternativa e um jornal
alternativo. A tais organizações, Rothschild-Whitt denominou “coletivistas”.
A autora declara explicitamente que este tipo de organização é modelada pela lógica da
racionalidade substantiva mais do que pela racionalidade formal. O seu estudo teve como
objetivo principal a construção de tipo ideal de organização democrático-coletivista. A
inspiração em Weber é evidente, confirmada pela natureza epistemológica do estudo:
uma análise comparativa entre a os tipos ideais de organização coletivista e burocrática.
Rothschild-Whitt afirma que nos Estados Unidos dos anos 70, o legado dos movimentos
antiautoritários da década de 60 gerou milhares de organizações popularmente conhecidas
como alternativas. Tais organizações teriam sido criadas por seus fundadores para atuar
em variados ramos como educação, alimentos, saúde, mídia, advocacia, livrarias,
vestuário, energia, etc., sem o recurso a autoridade burocrática. Os números então
disponíveis atestam a expansão do fenômeno: enquanto em 1967, existiam cerca de 30
escolas alternativas nos EUA, em 1973 esse número salta para 800 e, em 1976 mais de
5.000 organizações alternativas já funcionavam naquele país.
182
O estudo destaca 8 aspectos que serviram de pontos para a análise comparativa com o
tipo ideal burocrático. Ao apresentar esses aspectos, transcreveremos apenas a
caracterização que a autora fêz para as organizações coletivistas, uma vez que a
abordagem da burocracia não faz parte da proposta do nosso trabalho:
1) Autoridade: há a rejeição da racionalidade burocrática como justificação da autoridade.
Observa-se processos de consenso, no qual os membros da organização formulam
coletivamente os problemas e negociam as decisões;
2) Normas: o uso de normas é minizado, principalmente as regras escritas;
3) Controle social: é atingido por meios de apelos pessoais e morais, tendo como pano de
fundo a homogeneidade dos seus membros no que tange aos seus valores básicos e visão
de mundo;
4) Relações sociais: baseadas num ideal de comunidade, elas são marcadas pela
afetividade, globalidade e pelos valores dos indivíduos;
5) Recrutamento: embora geralmente recrutando pessoal bastante qualificado, os critérios
de seleção são a rede de relações de amizade, valores políticos, traços de personalidade,
diversidade de talentos e comprometimento pessoal;
183
6) Estrutura de incentivos: em primeiro lugar, incentivos relacionados a autorealização,
em segundo lugar, incentivos ligados a solidariedade tal como amizade e, em último lugar
os incentivos de ordem material;
7) Estratificação social: busca-se concretizar, sob diversas formas, o igualitarismo, ou
seja, procura-se eliminar grandes diferenças de prestígio social e de privilégios;
8) Diferenciação: é também minimizada por meio da utilização de três meios: rotação de
papéis, equipes de trabalho, difusão/desmistificação do conhecimento especializado
através do treinamento interno.
Podemos perceber a nítida abordagem sociológica do estudo de Rothschild-Whitt, não só
pela decisão de elaborar um tipo ideal e compará-lo ao elaborado por Weber, mas
também pela escolha das categorias de análise e comparação.
A autora também relaciona as limitações e custos sociais enfrentados por tais
organizações:
a) Tempo - apontado como o maior custo social, aqui a autora repete a máxima de que a
democracia é lenta nas decisões;
184
b) Homogeneidade - a organização necessita de membros que apresentem homogeneidade
de valores e de grau de educação, o que restringe a sua base social causando empecilhos a
ampliação do movimento;
c) Intensidade emocional - relações face a face, marcadas pela pessoalidade tendem a
provocar intensa emocionalidade aravés da livre expressão dos sentimentos. A autora
considera esse aspecto um custo social;
d) Indivíduos não democráticos - devido a experiências anteriores, muitas pessoas não
estariam dispostas a participar de ambientes democráticos. A autora lembra que a grande
maioria das organizações e instituições da sociedade capitalista burocrática não são
congruentes com orientações coletivistas;
e) Limitações ambientais - dizem respeito às dificuldades nas relações com outras
organizações e também com referência às instituições que funcionam mediante lógicas,
práticas e valores bastante diferenciados do coletivismo;
f) Diferenças individuais - uma vez que a autoridade concentra-se no coletivo como um
todo, os membros mais responsáveis, enérgicos, comprometidos e verbalmente fluentes
acabam tendo mais peso no grupo.
185
Ao final do seu estudo, Rothschild-Whitt elaborou um continuum por intermédio do qual
propunha classificar organizações produtivas inserindo-as numa tipologia que varia de
acordo com o grau de concentração de autoridade empregado.
Os tipos fundamentais de organização apresentam-se no continuum na seguinte
sequência:
a) Democracia coletivista;
b) Complexa (democracia representativa);
c) Burocracia horizontal;
d) Burocracia hierárquica.
Assim, a organização coletivista e a burocracia hierárquica estão situadas nos polos
extremos do continuum, indicando a forte oposição entre elas. Para a autora,
“Fundamentalmente, burocracia e coletivismo são
orientados por princípios qualitativamente diferentes.
Enquanto a burocracia é organizada em torno do cálculo
da racionalidade formal, a democracia coletivista gira em
186
torno de uma lógica da racionalidade substantiva”
(Rothschild-Whitt, 1982, p. 46, trad. livre).
A pesquisa empreendida por Rothschild-Whitt é considerada como um marco no campo
das organizações alternativas ou coletivistas. O fato de ter-se aprofundado no exame das
ações cotidianas dos membros dos grupos pesquisados, malgrado (para nós,
administradores) sua orientação nitidamente sociológica, lhe confere um caráter inovador
e realista, fazendo jus à sua ampla difusão.
Sua démarche nos deu grande inspiração, principalmente no aspecto do acompanhamento
cotidiano das ações dos membros das organizações pesquisadas, na escolha de algumas
das variáveis a examinar e da elaboração de um continuum onde se pode situar as
organizações analisadas.
As isonomias:
Em seu último livro, Guerreiro Ramos também nos dá um panorama das organizações
semelhantes àquelas abordadas por Rothschild-Whitt nos Estados Unidos dos anos 70.
Guerreiro Ramos chamava-as “isonomias” e as inseriu com grande destaque no seu
“paradigma paraeconômico”, pedra angular da teoria da delimitação dos sistemas sociais.
187
O paradigma paraeconômico é um modelo multidimensional de organização social que
envolve dua implicações básicas:
“a) Uma visão da sociedade como sendo constituída de
uma variedade de enclaves (dos quais o mercado é apenas
um), onde o homem se empenha em tipos nitidamente
diferentes, embora integrativos, de atividades
substantivas;
b) Um sistema de governo social capaz de formular e
implementar as políticas e decisões distributivas
requeridas para a promoção do tipo ótimo de transações
entre tais enclaves sociais” (Guerreiro Ramos, 1981,
p.140).
A isonomia é um tipo de organização que representa uma das categorias delimitadoras do
paradigma. As demais categorias são a economia, a fenonomia, o motim, a anomia e o
isolado. O autor adverte que tais categorias têm que ser percebidas como tipos ideais, elas
têm uma função heurística no modelo proposto, pois no mundo concreto só existem
sistemas sociais mistos.
Nesse contexto, a isonomia é uma organização com as seguintes características:
188
1) O objetivo primordial é a autorealização dos seus membros. Para tanto, o empenho em
relações interpessoais é elevado;
2) Constitui-se num ambiente altamente gratificante, onde as pessoas desempenham
atividades compensadoras em si mesmas;
3) As atividades são cumpridas como vocações, onde a recompensa fundamental reside
na realização dos objetivos intrínsecos daquilo que as pessoas fazem. Assim, a
maximização da utilidade não tem a grande importância que tem numa “economia”;
4) A tomada de decisões é coletiva, ou ao menos, abrangente. A autoridade passa de
pessoa a pessoa conforme a natureza das questões e a qualificação de cada um para lidar
adequadamente com elas;
5) Sua eficácia depende da intensidade das relações face a face. Se ela aumenta
exageradamente de tamanho, a ponto de se estabelecer relacionamentos secundários ou
categóricos, ela deixará de ser isonomia e se transformará em democracia, oligarquia ou
burocracia.
Guerreiro Ramos afirma que a isonomia está, cada vez mais, passando a constituir uma
parte do mundo social de hoje, o que vem a confirmar as colocações de Rothschild-Whitt.
Ele aponta as tentativas de ambientes isonômicos nos Estados Unidos, citando dentre elas
as associações de pais e professores, associações de estudantes e de minorias,
189
comunidades urbanas, empresas de propriedade dos trabalhadores, algumas associações
artísticas e religiosas, associações locais e consumidores, grupos de cidadãos interessados
em assuntos e problemas da comunidade e,
“...muitas outras organizações recentemente constituídas,
nas quais, em última instância, as pessoas buscam estilos
de vida que transcendem os padrões normativos que
dominam a sociedade como um todo” (Guerreiro Ramos,
1981, p.151).
O estudo de Guerreiro Ramos é a principal fonte de inspiração deste trabalho.
Considerando a isonomia uma categoria heurística, tentamos modestamente fazer avançar
a teoria examinando sur le terrain organizações do mundo concreto.
As organizações do movimento alternativo:
Joseph Huber, sociólogo, economista e professor do Departamento de Ciências Políticas
da Universidade Livre de Berlim, fêz uma extensa pesquisa sobre organizações que ele
denominou “projetos alternativos” no inícios dos anos 80, na então Alemanha Ocidental.
190
Caracterizando o “movimento alternativo” como uma “explosão de idéias”, Huber (1985)
nos dá uma visão suficientemente ampla desse movimento na Alemanha, relacionando as
grandes áreas onde tais organizações aparecem:
a) Iniciativas civis - surgidas no final dos anos 60, configuram organizações em vários
campos de reivindicação, tais como intervenções contra a desarborização, a eliminação de
áreas verdes, a demolição de construções antigas, a construção de novos aeroportos, etc.;
b) Movimento ecológico, anti-usinas nucleares e pelas tecnologias alternativas - surgido
em meados dos anos 70, evolui para o desenvolvimento de tecnologias energéticas
alternativas, como a solar, biogás, eólica, e outras;
c) Estilos de vida alternativos e crítica ao consumismo - em estreita conexão com o
movimento ecológico, ganhou impulso a partir de 1977 e é tributário do grande
movimento estudantil de 67/68;
d) Movimento de jovens e de idosos - criação de centros de jovens, casas para a
juventude, moradias comunitárias para jovens, movimento de alunos secundaristas e de
jovens trabalhadores. Surge no final dos anos 60. Mais recentemente, observa-se a
fundação de várias organizações de idosos que lutam contra a marginalização,
dependência e a tendência da sociedade a considerá-los incapazes de discernimento e
julgamento;
191
e) Fuga da cidade e regionalismo - criação de colônias ou comunidades alternativas em
áreas rurais, já em franca desaceleração. Já o movimento regionalista ganha grande força,
principalmente nos paízes europeus vizinhos;
f) Movimento de mulheres e movimento homossexual - o movimento feminista foi o
grande pólo de reação contra a sociedade industrial contemporânea, atingindo o seu ápice
na segunda metade dos anos 70. Gerou uma infinidade de projetos auto-organizados por
mulheres, como grupos de alimentação e saúde, albergues, grupos de cinema, jornais,
editoras, livrarias, cafés, oficinas, grupos de teatro e música, dentre diversos outros.
Segundo Huber, pode-se dizer que o movimento de homossexuais, aproveitando-se da
brecha aberta pelo feminismo, ousou surgir, criando também várias organizações;
g) Movimento psicologista, emancipacionista e pró-sensibilidade - movimento que prega
que a transformação do sistema passa por uma profunda autotransformação psicológica e
também que a idéia de emancipação pessoal é parte da práxis política. Tal movimento fêz
brotar uma infinidade de organizações que oferecem uma enorme diversidade de serviços
no âmbito psicológico: terapias de grupo e individuais, grupos de treinamento, grupos de
encontro e autovivência, fortalecimento da percepção sensorial, meditação transcendental,
etc.;
h) O novo espiritualismo e as seitas religiosas - muito próximos do movimento
psicologista, foram criados grupos e redes nessa área, obedecendo a variadas correntes
diferentes entre si. O autor opina que a causa do crescimento desse movimento é a crise e
192
a crítica à visão materialista de mundo, que se impôs com a capitalização e
industrialização dos últimos séculos;
i) Movimentos pacifistas e iniciativas pró-Terceiro Mundo - nascido nos anos 50, o
pacifismo na Alemanha cresce gerando organizações que envolvem-se nas questões
ligadas às relações Leste-Oeste, enquanto as iniciativas de solidariedade para com o
Terceiro Mundo criam organizações que agem sobre políticas de desenvolvimento
interessadas nas relações Norte-Sul;
j) Movimento pela proteção ou ampliação dos direitos civis - conduzido por organizações
do tipo “União Humanista” ou “Terre des Hommes”, que se opõem à limitação dos
direitos e liberdades civis;
l) Esquerda não-ortodoxa ou espontaneísta - o autor assim considera as organizações
inseridas nesse segmento:
“O legítimo fenômeno residual do movimento de
estudantes e da oposição extraparlamentar do final dos
anos 60 [...] característico das esquerdas não dogmáticas,
tem um grau mínimo de organização e a marcante
‘independência’ dos indivíduos que a compõem. No
entanto, apesar de sua coesão, aparentemente fraca, elas
193
formam um campo social relativamente estável, uma rede
integrada no espaço alternativo” (Huber, 1985, p.31).
Um dos grandes méritos do estudo de Huber, é a realização de um levantamento
quantitativo dos “projetos alternativos” na Alemanha. De acordo com o referido
levantamento, existiam, na época, cerca de 11.500 organizações, envolvendo diretamente
80.000 pessoas, considerando a estimativa média, ou seja, desprezando as estimativas
mais otimista e a mais conservadora. O autor sofistica o mapeamento das organizações,
chegando a fornecer a composição percentual dessas organizações por ramo de atividade,
da qual apresentamos, abaixo, uma síntese:
— 70% das organizações estão no setor de serviços, 18% em trabalho político e 12% em
produção de bens;
— 71% são ativadas por trabalho considerado “intelectual”, enquanto 29% por trabalho
“manual”;
— 22% oferecem serviços profissionais, dentre os quais a grande ênfase (11%) são de
serviços terapêuticos;
— Das 18% classificadas em trabalho político, a grande maioria são voltadas para
iniciativas civis (9%) e comitês de cidadãos (8%);
194
— 17% se encarregam de serviços de informação e de relações públicas, com ênfase (9%)
em revistas, outras publicações, reuniões, congressos, etc.;
— 9% se dedicam a infra-estrutura de lazer, predominando aí bares, cafés, restaurantes,
com 4% do total e também centros de convenções, de férias e de comunicações,
igualmente com 4%;
— 9% encontram-se no ramo da circulação, se destacando o comércio (mercearias,
cooperativas) com 4,5% e as livrarias com 3% do total;
— 8% participam da indústria de transformação, com maior incidência (5%) das oficinas
de reparação e de produção, incluindo padarias, marcenarias, tecelagem;
— 8% são organizações do ramo da cultura, incluindo arte, esporte e ciência;
— 5% são considerados pelo autor como “serviços de (auto) administração”, aí incluídos
os projetos de organização e coordenação, tais como assessorias, associações e
networkings;
— Por fim, 4% são de organizações vinculadas à produção agrícola.
Dando prosseguimento à sua análise de cunho sóciopolítico dessas organizações, Huber
enumera uma série de “limites internos” do conjunto delas, abordado pelo autor como um
195
movimento social. O primeiro deles diz respeito à introversão de suas finalidades, não
refletindo portanto uma visão econômica globalizante, quando há objetivos dirigidos para
fora, estes se reduzem na maior parte à propaganda.
Em seguida, o autor aponta o preconceito com a ação empresarial, o “negócio”. Ele
explica que,
“Tem-se aí um caso irônico de contraprodutividade da
ideologia alternativa: ao invés de se avançar o movimento
alternativo o mais profundamente possível no setor
formal, e, com isto, diminuir a capacidade de pressão do
Sistema, fortalecendo o próprio movimento alternativo,
ocorre exatamente o contrário” (Huber, 1985, pp.64-65).
A ausência, em alguns casos,de competência técnica e de qualificação é também uma
característica limitante.
No tocante a implementação da autogestão, é digno de destaque o grau de realismo das
observações do autor:
“Há uma série de inevitáveis problemas de grupo a afetar
a autogestão: por exemplo, a hierarquia latente entre os
mais qualificados e os mais inexperientes, entre líderes e
196
seguidores, entre personalidades fortes e pessoas afetadas
pelo autoritarismo, entre os ‘velhos’ e os ‘novos’ e, ainda,
contradições entre formas jurídicas existentes
(companhias ltdas., sociedades civis, etc.) e os ideais da
autogestão, e, não por último, a dificílima relação entre
autodeterminação interna e influências externas, o
equilíbrio entre a abertura e a coesão do grupo” (Huber,
1985, p.66).
Huber enumera sete critérios que deveriam balizar a criação e o funcionamento dos
“projetos alternativos”, com vistas a superação desses limites internos:
1) Utilidade social - os projetos necessitam demonstrar claramente que a sua atuação é
significativa socialmente, pois o que está em jogo não é simplesmente o “direito ao
trabalho” mas, primordialmente, o “direito ao trabalho socialmente significativo”;
2) Autogestão - estabelecimento de uma estrutura de competências e decisões que permite
aos membros do grupo participação igual nas decisões e na sua implementação. O autor
lembra que autogestão significa também a superação da contradição entre empresário
(capital) e pessoal (trabalho), além do autocontrole no desenrolar do trabalho;
3) Propriedade coletiva ou neutralização do capital - para o autor, neutralizar
internamente o capital (eliminar a propriedade sobre os meios de produção) é a forma
197
teoricamente ideal para atingir a autogestão, uma vez que o direito vigente oferece
possibilidades limitadas para uma socialização ampla do capital;
4) Garantias sociais e salários equilibrados - a continuidade dos projetos dependerá
essencialmente da questão dos salários e da segurança social. Dispor apenas do
imediatamente necessário para a própria sobrevivência nunca permitiu e nem permitirá
uma vida aceitável. Portanto, os projetos devem estabelecer uma estrutura de salários
igualitária, e, em seguida, que esta seja correspondente ao nível geral dos salários no
conjunto da sociedade;
5) Condições sociais e humanas de trabalho - o trabalho não deverá provocar um stress
coletivo, sendo imprescindível o estabelecimento de acordos sobre o tempo normal de
trabalho, lazer e férias;
6) Efetividade e produtividade - os projetos devem necessariamente trabalhar a altura da
produtividade social, sem o que nada do que foi relacionado acima seria atingido;
7) Cooperação antes da concorrência - a cooperação deve ser buscada dentro e fora da
organização, através alianças com outras organizações similares e também com
organizações burocráticas.
O estudo realizado por Huber é um dos mais completos já produzidos nesse campo.
Ainda que decididamente centrado no caso da Alemanha, o autor nos revela a amplitude
198
do movimento alternativo em todo o Ocidente, pois a partir do caso da Alemanha
podemos inferir sobre a configuração desse movimento nos demais países ocidentais. Sua
abordagem, apesar de pertencer ao campo da ciência política e portanto muito mais
direcionado para as questões globais, também envereda por algumas questões internas das
organizações, pontos críticos que nos revelam facetas importantes desses grupos.
No nosso estudo, como veremos mais adiante, abordaremos casos de empresas que
poderiam até ser correlacionadas àquelas que Huber insere nas áreas do movimento
psicologista, emancipacionista e pró-sensibilidade e novo espiritualismo (aqui incluímos
os adeptos do movimento Nova Era). Faremos um aprofundamento das questões internas
de algumas organizações, sob o ponto de vista administrativo. Nesse sentido, o estudo de
Huber tem sido para nós uma grande fonte de inspiração desde os anos 80.
As contra-instituições:
Habermas, ao final do seu livro Teoria da ação comunicativa, faz longos comentários
sobre o conjunto das organizações estudadas por Huber.
Para Habermas, nas sociedades avançadas do Ocidente vem se desenrolando nas últimas
décadas, conflitos que em muitos aspectos se desviam dos padrões que caracterizam o
conflito em torno da distribuição, institucionalizado pelo Estado social. Tais conflitos não
ocorrem nas esferas de reprodução material da sociedade, não são conduzidos por
199
partidos e nem tampouco podem ser resolvidos mediante as compensações (segundo
Habermas, dinheiro e poder) tradicionalmente oferecidas pelo Sistema:
“Em uma palavra: os novos conflitos se desencadeam não
em torno de problemas de distribuição, e sim em torno de
questões relativas à gramática das formas de vida”
(Habermas, 1987, p.556, trad. livre).
Citando o mesmo estudo de Huber que examinamos acima e, utilizando a sua
classificação das grandes áreas do movimento alternativo (movimento ecológico,
iniciativas civis, movimento feminista, etc.), Habermas faz uma análise onde aponta,
dentre outras causas do movimento o sofrimento pelas renúncias impostas e pela
frustração gerada a partir de uma prática cotidiana culturalmente empobrecida e
unilateralmente racionalizada. Os novos conflitos surgem exatamente nos pontos de
sutura entre o Sistema e o mundo da vida; tais iniciativas tentam fomentar e tornar vivas
as possibilidades de expressão e comunicação que estão sepultadas.
Habermas deposita grandes esperanças nas ações dessas organizações, as quais ele
denomina globalmente “contra-instituições”:
“Tais contra-instituições anulariam precisamente aquelas
operações abstrativas e neutralizadoras mediante as
quais o trabalho e a formação da vontade coletiva estão
200
conectadas nas sociedades modernas a interações regidas
por meios [dinheiro e poder] ” (Habermas, 1987, p. 561,
trad. livre).
O autor considera que essas contra-instituições eliminariam a importância dos meios de
controle (dinheiro e poder) nas organizações (“âmbitos de ação formalmente
organizados”), e restituiriam nessas zonas liberadas o mecanismo da ação que representa
o entendimento. Afirma que o movimento é uma resistência contra a “colonização do
mundo da vida”.
Uma vez que a teoria da ação comunicativa, elaborada por Habermas, constitui-se num
dos pilares fundamentais de nosso estudo (juntamente com o trabalho de Guerreiro
Ramos), nada mais importante e auspicioso para nós do que constatar a relação conceitual
de Habermas com o tipo de organização que estamos a abordar.
Como veremos na análise das organizações apresentada por este estudo, tentaremos
justamente identificar e desvelar, também na perspectiva habermasiana, quais são os
mecanismos da ação que restituem o entendimento na práxis cotidiana das organizações
que serão alvo de nossa pesquisa.
Prosseguindo com este possível levantamento de iniciativas emancipatórias no trabalho,
gostaríamos de apresentar alguns estudos realizados sobre experiências vividas na
província do Québec, Canadá.
201
As empresas alternativas no Québec:
Bhérer & Joyal (1987) efetuaram um levantamento quantitativo várias de empresas
criadas no Québec e, denominadas por eles empresas alternativas. Mesmo afirmando não
ser um levantamento exaustivo, os autores mapearam cerca de 500 empresas, dentre as
quais 126 foram objeto de uma pesquisa mais aprofundada. Os autores definem tais
empresas como,
“Organizações com finalidades econômicas, criadoras de
empregos, cuja uma parte da renda vem da venda de bens
ou serviços susceptível de proporcioná-las o
autofinanciamento, qualquer que seja o seu estatuto
jurídico” (Bhérer & Joyal, 1987, p.26, trad. livre).
Os autores estabelecem quatro características que são observadas com maior ou menor
intensidade em todas as empresas pesquisadas:
“1) O funcionamento apoiado numa gestão coletiva;
2) A busca da rentabilidade sem objetivo de
enriquecimento;
202
3) A produção de bens e de serviços que atendem às
‘verdadeiras’ necessidades da população do seu entorno;
4) A implicação dos trabalhadores que, por seus objetivos
ou suas condições, se situam à margem da sociedade”
(Bhérer & Joyal, 1987, p.23, trad. livre).
Sob o ponto de vista jurídico, das 126 empresas estudadas com mais profundidade, 52 são
cooperativas de produção, 52 são sociedades sem fins lucrativos e 22 são empresas
privadas.
A correlação essencial do trabalho empreendido por Bhérer & Joyal com o nosso, diz
respeito a opção dos autores em mapear majoritariamente organizações econômicas, isto
é, que obtém a sua sobrevivência a partir das operações diretamente desenvolvidas num
dado mercado de bens e/ou serviços. Como os autores bem afirmam em seu estudo, esse
aspecto determina, em grande parte, a natureza e a magnitude do desafio que essas
organizações enfrentam no seio de uma sociedade que imprime e incentiva uma outra
lógica (baseada na razão instrumental) para guiar as ações dos indivíduos que criam e
desenvolvem empresas.
O trabalho de Bhérer & Joyal constituiu-se menos um esforço qualitativo do que
quantitativo. Relativamente ao nosso estudo, podemos afirmar que trilhamos a direção
203
oposta, pois trabalhamos tendo como objetivo elaborar um estudo essencialmente
qualitativo de organizações produtivas de cunho emancipatório.
As empresas alternativas na França:
Nos anos 80 foi realizado um estudo por um grupo de pesquisadores franceses ligados a
Agence de Liaison et de Développement de l’Économie Alternative - ALDEA. Outrequin
(1985), um dos pesquisadores daquele grupo, nos reporta as linhas gerais do estudo:
foram visitadas cerca de 50 empresas alternativas, todas criadas a partir dos anos 70. A
pesquisa foi dirigida a empresas formalmente estabelecidas, isto é, com estatuto jurídico.
Trata-se de empresas, em sua maioria, compostas de até 10 participantes, atuando em
diversos ramos, tais como, construção, gráfica, informática, comunicação, alimentação
(restaurantes), transportes, diversão, reparação e outros.
A motivação para a criação das empresas foi dividida em três tipos de estímulos:
a) “Queremos trabalhar de outra forma, utilizando nossa formação profissional” -
empresas com forte competência técnica e profissional, na qual a ideologia ou a
militância política não são muito evidentes. Encontra-se aí empresas do ramo da
informática, pequenas fábricas, dentre outros;
204
b) “Queremos trabalhar no sentido de nossas idéias” - trata-se muitas vezes de grupos
que vieram de um outro ambiente sócioeconômico, que buscam viver reduzindo ao mais
possível suas contradições. São empresas guiadas por ideiais ecológicos,
terceiromundistas, etc.;
c) “Queremos viver de outra forma e adaptar nosso trabalho ao modo de vida
escolhido”- aqui encontra-se experiências radicais que, para ter sucesso, exigem forte
competência técnica e financeira. Encontra-se nesse segmento experiências de modos de
vida comunitários que questionam profundamente o produtivismo e o consumismo da
sociedade burocratizada.
No entanto, Outrequin chama a atenção de que,
“A empresa não será alternativa pelas motivações dos
seus criadores mas por seu funcionamento. […] Não é
tanto no processo de trabalho que características
alternativas serão reconhecidas (tais como a polivalência
ou a rotação de tarefas que surgem frequentemente nas
pequenas empresas) mas sobretudo na natureza das
relações sociais vividas.
A organização alternativa surge como uma espécie de
teatro onde cada um vive com os outros as relações
205
afetivas e onde cada um, através do coletivo, está em
busca de sua identidade pessoal.
O indivíduo não se engaja somente no nível de suas
competências profissionais mas também de suas
competências humanas.” (Outrequin, 1985, p. 38, trad.
livre).
O autor destaca também os aspectos de transparência, circulação de informações e
preocupação com a formação, todos altamente presentes nessas organizações.
Do ponto de vista da inserção no ambiente externo, Outrequin aponta duas séries de
variáveis que, segundo ele, condicionam a empresa alternativa, a saber:
a) A independência financeira e a autonomia de decisão vis-à-vis as instituições
financeiras e administrativas formais;
b) O pertencimento a uma rede de solidariedade, de suporte e de funcionamento, não
institucional.
Cerca de 50% das empresas estudadas utilizavam redes de suporte financeiro para solver
problemas de capital de giro e similares. Outrequin sublinha a importância de tais redes
para a existência das empresas alternativas na França. As redes extrapolam o apoio
financeiro. O apoio é de natureza ampla, uma vez que tais redes são constituídas por
206
militantes ideologicamente próximos, trabalhadores sociais, amigos pessoais,
trabalhadores do meio associativo local, etc., que também aportam contribuições sob a
forma de trabalho (por vezes não remunerado), orientações e possibilidades de venda dos
produtos. Essa intensa trama de relações sociais acabaria também por criar relações
diferenciadas com os clientes e fornecedores, comparativamente às empresas tradicionais.
Outrequin conceitua como uma sinergia das empresas alternativas com uma rede
ideológica e/ou funcional o fator que as faz adquirir autonomia face as instituições
formais.
Por outro lado, o autor relaciona o esforço das empresas alternativas com uma fonte de
dispersão, de atomização que torna difícil a própria emergência de uma economia
alternativa em larga escala. Ele argüi sobre quais seriam as bases de regulação de uma
economia desse tipo. Um outro fator limitativo apontado diz respeito a implicação global
dos indivíduos numa economia alternativa: a economia e o social, o tempo de trabalho e o
tempo de lazer, os pólos funcionais e relacionais, estariam estreitamente interrelacionados
a tal ponto que tornariam a gestão dos recursos humanos muito mais árdua que a do
capital, exigindo assim uma espécie de “rodízio” para que os fundadores das empresas
alternativas não esgotassem completamente suas energias.
O estudo de Outrequin nos aporta significativas contribuições, apesar de, como a maior
parte dos anteriores, não se ater aos aspectos administrativos das organizações
pesquisadas. Suas observações sobre as externalidades, ressaltando o papel das redes de
solidariedade existentes em França, é de uma importância capital para a compreensão da
207
expansão das empresas alternativas. Sobretudo no tocante a sua inserção no meio social,
aumentando o grau de autonomia perante as instituições formais e acima de tudo
reinaugurando uma modalidade de relação com o social, seja com clientes, fornecedores,
apoiadores em geral, do tipo que lembra o conceito de atividade econômica embedded no
social, elaborado por Polanyi (1975).
No entanto, discordamos de um ponto de vista claramente expresso pelo autor. Trata-se
da pouca importância dada aos processos de trabalho: Outrequin afirma, como vimos
acima, que não são os processos de trabalho, e sim a natureza das relações sociais vividas
que confeririam as “características alternativas” a essas empresas.
Ora, acreditamos veementemente que a definição, a implantação e a prática cotidiana dos
processos de trabalho implicam relações sociais fundamentais para se compreender, em
profundidade, a natureza das organizações produtivas. Fazemos eco a afirmação de
Outrequin que as “características alternativas” se dão menos pelas motivações dos
fundadores que pelo funcionamento das empresas. Mas, daí até isolar os processos de
trabalho da idéia de “funcionamento” e, principalmente, das relações sociais, nos parece
um ledo engano, que pode comprometer uma escolha metodológica no curso da pesquisa.
Não concordamos com a separação entre processos de trabalho e relações sociais. É
evidente que as relações sociais não se resumem aos processos de trabalho mas, estes se
constituem uma faceta essencial das relações sociais numa organização produtiva e, como
tal, não podem ser excluídos da análise que visa desvelar a essência dessas organizações,
208
sob pena de se obnubilar uma fonte preciosa de dados sobre a realidade do grupo
produtivo. A não ser que o pesquisador esteja apenas interessado em situar o seu estudo
num âmbito macro, isto é, no campo da macroeconomia, da sociologia geral ou da ciência
política, por exemplo. Nestes casos, talvez seja mais importante tratar das externalidades
e empreender análises do tipo comparativo do que penetrar na realidade interior do grupo.
O que não parece ter sido o único objetivo da proposta de Outrequin, pois o autor chega a
abordar questões internas específicas, tal como a motivação dos participantes fundadores
e a busca da identidade.
O exame de estudos como o de Outrequin nos provoca insights de grande importância. A
partir de tais estudos, vamos estruturando e repensando a nossa proposta. Partimos do
ponto de vista de que o exame acurado dos processos de trabalho revela aspectos
relevantes das relações sociais. Através deles esperamos penetrar no âmago das
organizações e perceber as suas diferenças em relação às empresas tradicionais,
identificar o tipo de racionalidade que predomina na organização e como ela se concretiza
nos atos dos indivíduos. Para nós, é tão importante compreender os processos de trabalho
que nos dispomos, através da observação participante, a efetivamente vivenciá-los.
No nosso estudo, os processos de trabalho (divisão do trabalho, tomada de decisão,
controle, etc.), adicionados cuidadosamente a outras dimensões, tais como a satisfação
individual e a dimensão simbólica, compõem o que denominamos processos
organizacionais, que em verdade são as variáveis do nosso quadro de análise de dados.
Nos dois capítulos seguintes trataremos com detalhes da composição dessas variáveis. No
209
momento, vale remarcar a nossa visão de que se há algo de “alternativo”, ou ainda,
emancipatório, nesse tipo de empresa, tal característica deve começar pela própria forma
de organizar o trabalho dos seus participantes. O que enseja um movimento centrífugo,
prioritariamente de “dentro para fora” da organização, e não vice-versa.
A análise comparativa entre empresas alternativas da Bélgica, França e Québec:
Joyal (1987) empreendeu uma comparação entre empresas alternativas existentes na
Bélgica, França e Québec. Para tanto, utilizou dados oriundos de três estudos, a saber:
uma pesquisa realizada na Bélgica por Marée (1987), o já citado estudo da ALDEA
(Outrequin, 1985) e o estudo de Bhérer & Joyal (1987) que foi objeto de uma das seções
anteriores.
Inicialmente, Joyal lista algumas características que facilitam o reconhecimento das
empresas que foram examinadas nos três estudos:
“- Descentralização da produção e inserção no tecido
[social] local;
- adaptação da produção às necessidades;
- recurso às tecnologias intermediárias;
210
- experimentação de novas formas de trabalho e
democratização da tomada de decisão.
Para resumir, pode-se dizer que as empresas alternativas
têm uma finalidade ao mesmo tempo social e econômica.”
(Joyal, 1987, p. 3, trad. livre).
Joyal examina algumas dimensões comuns aos três estudos, entre as quais destacamos:
a) Setor da economia - o setor de serviços é o privilegiado nos três casos. A grande
maioria das empresas atuam no terciário;
b) Tamanho - trata-se de microempresas, nas três pesquisas. O número de empregados
varia, em geral de 5 a 10 ;
c) Nível de salários - predominantemente baixos, com relação ao mercado, no Québec e
na França. Não há dados no estudo feito enfocando a Bélgica;
d) Inserção no processo de desenvolvimento local - nos três casos, boa parte das empresas
alternativas encontram-se profundamente vinculadas ao desenvolvimento local. No
Québec tal constatação é evidente, na França a metade das empresas pesquisadas estão
integradas num plano local de desenvolvimento, de natureza institucional ou convivial.
211
Na Bélgica nota-se a atuação destacada das agências de desenvolvimento local no apoio
às empresas;
e) Nível de competência administrativa - muito baixo, nos três segmentos, principalmente
no caso belga, onde os conhecimentos administrativos são bastante falhos.
O autor dá continuidade a discussão, enveredando sobremaneira pelo tema do
desenvolvimento endógeno. A partir de então, dedica a maior parte dos seus comentários
ao caso do Québec — talvez por ser aquele mais conhecido por ele — , afastando-se
paulatinamente de uma análise comparativa propriamente dita.
O estudo de Joyal cumpre uma importante finalidade, a de ajudar a verificar as
correspondências entre empresas consideradas alternativas em regiões diferentes, o que
contribui para a ampliação da visão do fenômeno a nível global.
Infelizmente, também esse estudo não aborda com detalhes a questão administrativa em
si, limitando a constatar a falibilidade dos procedimentos gerenciais. O foco aqui, como
na maioria dos outros estudos, continua dirigido para as externalidades, nesse caso para a
questão do desenvolvimento local.
O caso da Tricofil:
212
Nos anos 80, no Québec, o Institut Québécois de Recherche sur la Culture - IQRC,
empreendeu sob a coordenação de Gabriel Gagnon uma série de pesquisas no quadro de
um grande programa intitulado Les Pratiques Émancipatoires en Milieu Populaire.
Vários trabalhos foram publicados a partir dos estudos realizados, dos quais destacaremos
dois.
O primeiro, é um livro publicado em 1988 por Gabriel Gagnon e Marcel Rioux, sob o
título A propos d’autogestion et d’émancipation, onde os autores apresentam uma série
de iniciativas emancipatórias empreendidas no Québec, ao nível da produção, da cultura e
da habitação. Além disso, promove uma profunda discussão sobre a emancipação social
do ponto de vista sociológico, enfocando o tema movimentos sociais.
Neste livro, dentre outros casos, Gagnon relata a experiência mais significativa de
autogestão no meio industrial já realizada no Québec: o caso da Tricofil. A experiência
tem início no ano de 1972, quando os proprietários da Tricofil, uma envelhecida fábrica
têxtil situada em Saint-Jerôme, no Québec, decidem demitir a maioria dos trabalhadores
devido as dificuldades econômico-financeiras enfrentadas pela empresa. Decisão que
gerou ações dos 125 trabalhadores para salvar seus empregos e, consequentemente, a
própria fábrica: obtiveram um contrato de arrendamento junto aos proprietários, cujos
fundos foram obtidos a partir da mobilização da população local (uma petição com
10.000 assinaturas) pressionando o governo provincial a ceder uma subvenção, sendo
complementados por um pequeno empréstimo do sindicato. Assim, em fevereiro de 1975,
213
os trabalhadores fundaram a Société Populaire Tricofil, empresa privada, registrada como
sociedadede por ações, cujas ações ordinárias eram reservadas aos seus trabalhadores.
Os dois anos que se seguiram forma de grande entusiasmo. Em 1976, a fábrica foi
adquirida definitivamente pelos trabalhadores. Durante esses dois primeiros anos, várias
mudanças fundamentais ocorreram nos processos internos da empresa. Foram criadas
equipes de trabalho que autogeriam a produção, substituindo os antigos contramestres, o
que favoreceu o trabalho coletivo e a polivalência dos operários. Na estrutura salarial,
algumas alterações também foram realizadas: as 52 classes salariais foram reduzidas para
26, os salários horários passaram da faixa de $ 2,18 a $ 5,25 para $ 3,15 a $ 5,50. Desta
forma, buscava-se melhorar o piso salarial e diminuir consideravelmente as diferenças
entre os membros do grupo como um todo, o que acabou por reduzir as diferenças de
remuneração entre sexos e entre os diversos métiers.
Tais inovações duraram dois anos. No entanto, não se chegou a vencer os entraves que se
apresentaram mais tarde. Diversas modificações acabaram por desmentelar todo a
sistemática autogestionária implantada nos dois primeiros anos, principalmente em
função de graves conflitos entre o sindicato e a sociedade fundada.
A experiência se encerra definitivamente em fevereiro de 1982, com o fechamento da
fábrica. Segundo Gagnon, o triste desfecho dessa iniciativa não se deu porque a gestão
operária mostrou-se incompatível com as exigências de produtividade, e sim devido a
outros fatores: os conflitos sindicais (a dificuldade que o sindicato tinha em se adaptar a
um contexto de uma empresa autogerida), o fato de estar situada num ramo de atividade
214
sujeito a moda e dominado por grandes grupos tradicionais e, sobretudo a insuficiência de
fundos para operar a modernização do equipamento e das tecnologias numa fábrica
envelhecida que, desde 1972, estava condenada ao desaparecimento.
Refletindo globalmente sobre a experiência da Tricofil, Gagnon reconhece que,
“Ela teve um impacto profundo no imaginário québécois
mostrando como um grupo determinado de trabalhadores
fôra capaz, em circunstâncias particularmente difíceis, de
fazer funcionar uma fábrica e de esboçar uma
transformação do trabalho cotidiano.
É a Tricofil e a seus líderes que se deve o
desenvolvimento subsequente das cooperativas de
produção [no Québec]. Outros trabalhadores também
inventaram em seguida diferentes formas de cogestão e de
participação para manter as suas fábricas ou lhes dar um
novo início” (Gagnon & Rioux, 1988, p.43, trad. livre).
215
O agrupamento de organismos culturais e comunitários de Rimouski:
O segundo trabalho promovido pelo IQRC, a destacar aqui, é o que foi elaborado por
Jean-Pierre Dupuis sobre a experiência do Regroupement des Organismes Culturels et
Communautaires de Rimouski - ROCCR.
Em 1978, onze organizações comunitárias e culturais da cidade de Rimouski, no interior
do Québec, fundaram o ROCCR, agrupando-se no prédio de uma antiga escola
transformada em sede comum.
Em 1981, o ROCCR já contava com vinte e uma organizações, entre cooperativa de
alimentos naturais, café-restaurante, escola de arte, creche popular, grupos de teatro,
livrarias, grupos musicais, centro popular de documentação, grupo feminista, etc. A
gestão do ROCCR baseava-se numa filosofia autogestionária, através de Conselhos
eleitos pelas organizações agrupadas. Segundo Dupuis,
“Outros reagrupamentos similares existiam no Québec na
época, mas aquele de Rimouski era o único a levar
adiante o engajamento político concernente a autogestão
e a introduzir a noção de ‘cultura popular’ na cidade. Por
isso nós o escolhemos para o nosso estudo” (Dupuis,
1985, p.20, trad. livre).
216
Em setembro de 1981, deflagra-se a primeira grande crise que assola a entidade,
provocando o início de sua ruptura fatal: vários membros manifestaram o seu mal estar
com a atuação do Conselho de Administração, que teria dado atenção somente ao centro
cultural e, por conseqûencia, negligenciado as lutas políticas assumidas por algumas de
suas organizações. É o começo de várias crises que acabaram por conduzir a clivagens no
seio da entidade, que distanciavam participantes que sobreviviam das atividades do centro
e aqueles que não tinham a necessidade fazer dele o seu meio de vida, grupos de
militância política exacerbada e outros que não adotavam essa linha de ação.
As crises aprofundam as divergências no problema enfrentado com a prefeitura local que
insistia em cobrar taxas municipais pelas atividades desenvolvidas no centro. Em 1983, a
cobrança de taxas acumuladas atingiu o montante de $ 60.000, ameaçando o centro de
interdição pelo poder público municipal. Internamente, havia uma grande divisão de
posições, entre os que eram a favor do pagamento das taxas e aqueles que não aceitavam
pagá-las em hipótese alguma, radicalizando o conflito com a prefeitura.
Apesar da posição conciliatória ter vencido, mobilizando os seus partidários uma
campanha de levantamento de fundos e o consequente pagamento das taxas atrasadas, tal
evento marcou a cisão definitiva no interior do grupo como um todo e, também, provocou
uma séria crise financeira, devido ao volume de empréstimos que foi realizado para fazer
face ao pagamento da dívida.
Para Dupuis,
217
“Essa última assembléia geral especial, sobre o
pagamento das taxas, marcou o final do consenso no
ROCCR e a quebra em pedaços de um mosaico frágil. A
partir desse momento, é a guerra fria e a coexistência
pacífica entre os dois lados do Regroupement” (Dupuis,
1985, p.183,trad. livre).
Pouco tempo depois, os grupos de ação política, que não concordaram com o pagamento
das taxas, reuniram-se à parte e realizaram um balanço da existência e atuação do
ROCCR até então, que nos parece elucidativo, apesar de ter sido efetuado apenas por uma
facção, dos grandes entraves da iniciativa. Concluíram tais grupos que a ausência de
objetivos claramente definidos foi o principal erro do projeto; teria sido necessário que,
desde o início, os objetivos perseguidos fossem claros para todos, o que não foi o caso.
Daí, não se contava com outras definições consequentes, tais como: o que é um grupo
popular ? comunitário ? cultural ? que são lutas políticas ? que é autogestão ? quais
grupos admitir no centro ? sob quais critérios ?
No inverno de 1985, a prefeitura abre o seu próprio centro comunitário e cultural,
oferecendo espaços a outras entidades e assumindo a gestão do empreendimento. Um
golpe duro num ROCCR já combalido pelas clivagens internas e problemas financeiros.
Finalmente, em abril de 1986, o ROCCR declara falência, seu principal credor põe o
218
centro à venda e as organizações que ainda lá funcionavam, dispersam-se, perdendo
gradativamente as suas interrelações.
Segundo Dupuis, o ROCCR foi o principal centro de experimentação social e de lutas
urbanas de Rimouski. Em seus oito anos de existência, tornou-se efetivamente um
catalisador de práticas autogestionárias, feministas, ecologistas e culturais. Serviu de
inspiração para a criação de diversos outros centros comunitários e culturais em outras
localidades do Québec.
Os estudos do IQRC, além de muito bem elaborados (do ponto de vista metodológico),
levantam questões que consideramos das mais agudas no que concerne ao funcionamento
de organizações produtivas emancipatórias. Problemas de natureza política, ideologias
em jogo, relações no meio ambiente com organizações burocratizadas (principalmente
estatais), estabelecimento de objetivos, dentre outros que assolam aquelas organizações.
Algumas dessas questões foram incorporadas ao nosso estudo, fazendo parte da
problemática das empresas por nós visitadas, problemática essa para a qual nos dispomos
a fornecer pistas iniciais para a sua compreensão.
As empresas do interesse geral na Alemanha:
219
A noção de “economia do interesse geral” (Gemeinwirtschaft) foi introduzida na literatura
econômica por Friedrich von Herrmann — considerado o mais importante representante
da escola clássica da economia política na Alemanha — num livro publicado em 1832,
em Munique.
Segundo Hesselbach (1973), nesse livro von Herrmann sublinhava o fato de que as
atividades econômicas não existem unicamente para favorecer a particulares e que o
princípio da maximização do lucro não é adotado por todas as empresas. Von Herrmann
defendia a idéia de que um grande número de unidades econômicas buscam sobretudo o
interesse da coletividade.
Baseados na noção de economia do interesse geral e, na experiência vitoriosa de um
grande número de organizações específicas criadas, em sua maioria, após o período de
reconstrução da Alemanha do pós-guerra, vários pesquisadores naquele país
desenvolveram, nos anos 70, o conceito de “empresas do interesse geral” para dar conta
de uma dimensão importante das atividades econômicas alí desenvolvidas. Dentre os
diversos estudos elaborados, podemos indicar os de Hesselbach (1970,1973, 1974),
Neuenkirch (1970), Thiemeyer (1973), Wallraff (1973), Kühne (1973) e Loesch (1977).
As empresas do interesse geral seriam compostas por cooperativas de consumo e aquelas
do “setor livre”, utilizando a expressão de Hesselbach. O autor esclarece que,
220
“Ao lado das cooperativas de consumo existe um tipo de
empresa do interesse geral, recentemente concebido e
desenvolvido pelo movimento operário alemão, que é
caracterizado pelo regime livre do qual ela se beneficia,
se diferenciando assim das empresas públicas e
cooperativas. […] Na maioria dos casos, esse tipo de
empresa toma a forma jurídica de uma sociedade
anônima ou de uma sociedade de responsabilidade
limitada que não se limita a transações com os sócios ou
os membros filiados à organização respectiva.
Rapidamente esboçado, seu caráter se define da seguinte
maneira: grandes associações como os sindicatos
operários, ou de grandes empresas como as cooperativas
de consumo, injetam capital social à disposição dos
fundadores. Essas organizações estabelecem ao mesmo
tempo os objetivos de inspiração pública que as empresas
devem atingir. […] No curso das duas últimas décadas,
um complexo muito considerável de tais empresas do
interesse geral se desenvolveu em diversos setores.”
(Hesselbach, 1973, p. 31, trad. livre).
221
Os ramos de atividade mais comumente procurados para a criação dessas empresas são
aqueles que abrigam as companhias de seguros , hotéis, empresas de construção civil e
imobiliárias.
A primeira empresa a ser criada nesses moldes foi a Volksfürsorge, uma companhia de
seguros, ainda na primeira década desse século. Após períodos de instabilidade, incluindo
a dominação nazista, a empresa foi reintegrada ao controle dos sindicatos de
trabalhadores e das cooperativas de consumo, mais precisamente em 1947. Em 1948 a
companhia já atendia em torno de 1.750.000 segurados. O caráter de interesse geral se
concretiza também pelo investimentos consideráveis em construção social de moradias, à
preços bastante favoráveis.
Digna de destaque é a experiência vitoriosa dos bancos criados pelos sindicatos operários,
dos quais o Bank für Gemeinwirtschaft é o de maior porte. Essa entidade zela pela saúde
financeira dos sindicatos e financia uma série de outras empresas de interesse geral
(Loesch, 1977).
Experiência também digna de destaque é a do banco cooperativo GLS-Bank, criado em
Bochum, na região do Ruhr. Sua trajetória vitoriosa no financiamento de iniciativas
cooperativas foi muito bem analisada por Erismann (1987).
Outras empresas que alcançaram grande êxito, desta feita no ramo da construção de
moradias foram aquelas do grupo Neue Heimat, que por sua atuação efetiva conseguiram
222
fazer baixar não só os preços da construção, como também dos aluguéis residenciais em
várias regiões da Alemanha.
De modo geral, os autores divulgam com ênfase que esse tipo de empresa busca atingir
objetivos ligados ao bem estar geral, seja através de suas atividades (pela realização de
lucros) ou de cotizações individuais. A noção de “bem estar geral” torna-se a pedra
angular dessa concepção.
Hesselbach (1973) afasta os métodos idealista e racionalista (referido à razão
instrumental) para a definição do conteúdo do bem estar geral. Admitindo os princípios
da democracia, do debate político e da pluralidade de interesses, o autor indica que as
bases da determinação do conteúdo do bem estar geral são as normas de valor.
Os autores não enfocam as questões organizacionais internas de tais empresas. Limitam-
se a afirmar que elas utilizam “formas modernas de administração”. As abordagens giram
em torno da importância dessas empresas para o bem estar da coletividade, o seu lugar
numa economia de mercado, as fontes de legitimação desse empreendimento, as relações
com as instituições sociais, a competição com as empresas que visam lucro, dentre outros
temas de amplo espectro. De qualquer sorte, é visível a diferença que há entre as
empresas do interesse geral e as outras que estamos examinando nesta seção. Elas
parecem adotar as mesmas soluções já institucionalizadas pelas empresas tradicionais no
tocante à organização do trabalho.
223
Entretanto, mesmo não inovando em seus processos organizacionais internos, tais
empresas representam a concretização do potencial das organizações operárias alemãs —
suas criadoras — no que tange a implementação de grandes projetos de fundo social.
Grandes empresas fundadas por iniciativa das organizações dos trabalhadores, visando
atingir objetivos que se coadunam com as necessidades dos trabalhadores e da população
em geral. A ação social dessas empresas é o aspecto que mais prende a nossa atenção.
Atuando em mercados altamente competitivos, as empresas de interesse geral enfrentam a
forte concorrência do setor tipicamente privado e fazem valer seus princípios.
Tais princípios se concretizam na noção de bem estar geral, que por sua vez tem o seu
conteúdo definido por normas de valor, e não pela racionalidade utilitarista que guia as
empresas tradicionais. Eis aqui o ponto de contato mais evidente com as demais
experiências examinadas. Ainda que seja o único, não podemos deixar de registrar a sua
importância.
Daí decorre a influência que as informações sobre a existência desse tipo não
convencional de empresa “antiutilitarista” exerce sobre o nosso pensamento e,
consequentemente sobre a concepção de nosso estudo. O fato de se constituir num tipo de
organização bastante diferente das que estudamos, porém, compartilhar com elas alguns
preceitos básicos, acaba por exercer uma influência indireta (contudo importante) no
nosso trabalho, uma vez que amplia a nossa visão, reduz os nossos preconceitos e
flexibiliza a percepção que temos dos fatos do mundo real. Em suma, abrimo-nos mais
224
para a riqueza do enorme leque de experiências inovadoras e solidárias a partir da atuação
de organizações produtivas.
As organizações da economia social:
A economia social foi fundada no séc. XIX. Seu desenvolvimento esteve ligado a
Revolução Industrial. Cooperativas, sociedades de socorros mútuos, associações, foi uma
espécie de resposta às consequências do desenvolvimento fabril que estremeceu todo um
modo de vida e trabalho estabelecido durante séculos (Boursier, 1985 a).
Boursier (1985 a) aponta 1848 como o ano do “boom associacionista” na França: em
torno de 300 associações foram criadas, notadamente na indústria do vidro.
O Conselho Wallon de Economia Social, órgão consultivo criado pelo governo da
Bélgica em 1988, adotou a seguinte definição da economia social:
“A economia social se compõe de atividades econômicas
exercidas por sociedades, principalmente cooperativas,
de organizações mutualistas e de associações cuja ética
se traduz pelos princípios seguintes:
225
1) finalidade de serviço aos membros ou à coletividade
antes que de lucro;
2) autonomia de gestão;
3) processo de decisão democrático;
4) primazia das pessoas e do trabalho sobre o capital na
repartição das rendas.” (Defourny, 1992 a, p. 5, trad.
livre).
As organizações da chamada economia social na França vêm se expandindo
extraordinariamente. Em 1985, Sommaire estimava que,
“Produzindo bens e serviços em todos os campos da
atividade humana, a economia social, que emprega
1.100.000 assalariados, representa um pouco mais de 6%
do PNB, uma parte modesta mas não negligenciável da
economia nacional.” (Sommaire, 1985, p. 3, trad. livre).
Sua marca distintiva das demais empresas capitalistas tradicionais (que visam sobretudo a
maximização do retorno do investimento financeiro) estaria centrada em pricípios e numa
ética assim resumidos por Sommaire:
226
“- Liberdade de adesão e de saída;
- não prioridade à busca do lucro individual;
- gestão democrática;
- reservas indivisíveis;
- solidariedade;
- responsabilidade;
- independência.
‘Livres empresas coletivas’, as empresas da economia
social representam então uma outra forma de empreender
portadora de relações sociais diferentes no seio das quais
o indivíduo prima sobre o dinheiro.” (Sommaire, 1985, p.
3, trad. livre).
No mesmo estudo, Sommaire elabora uma lista dos tipos de organizações componentes
da economia social em três setores:
a) Setor da cooperação: cooperativas operárias de produção, cooperativas de
consumidores, de alojamento, de comerciantes varejistas, de artesãos, de transportadores,
agrícolas, bancos e instiuições financeiras cooperativas, cooperativas escolares;
227
b) Setor da mutualidade: mutualidade de bens (seguros de caráter mútuo), mutualidade de
pessoas (sociedades mutualistas de prevenção em matérias sanitária e social);
c) Setor das associações administrativas: cerca de 135.000 produzindo bens e serviços
nos ramos do turismo, lazer, cultura e educação popular, formação, atividades sociais, etc.
Segundo Archambault (1985), nos três setores da economia social, são as associações
administrativas que são as mais desconhecidas e heterogêneas. A autora esclarece a sua
natureza:
“As associações administrativas vêm da lei de 1901; elas
produzem serviços, comerciais ou não, destinados às
residências; elas empregam pessoal assalariado e
voluntários, gerem equipamentos mais ou menos pesados
e preenchem uma missão de interesse geral, ou mesmo de
serviço público, o que legitima um financiamento parcial
sob a forma de subvenções.” (Archambault, 1985, p. 30,
trad. livre).
Archambault estimava a existência de 400.000 a 600.000 organizações desse tipo na
França em 1985.
228
Defourny (1992 a) apresenta um levantamento quantitativo das organizações da economia
social na Bélgica efetuado em 1990, indicando, dentre outras informações, que as
cooperativas detinham 1.623.330 membros e geravam 34.113 empregos diretos; as
organizações mutualistas contavam com 5.907.124 membros, empregando 11.475
pessoas; por fim, as associações contavam com mais de 2 milhões de membros,
empregando 209.100 trabalhadores.
Em outro estudo, Defourny (1992 b) indica as funções econômicas que as associações
assumem, vis-à-vis o Estado e as empresas privadas tradicionais:
a) Função de produção e alocação de bens e serviços quase coletivos - notadamente nos
setores de saúde, educação, redução da deliquência. Aqui, o Estado participa com a
cobertura quase total dos custos operacionais das associações;
b) Função de redistribuição de renda - destaca-se nessa função o papel das associações
filantrópicas e humanitárias. Segundo Defourny, a bonificação fiscal concedida em vários
países aos provedores de donativos a essas associações prova o caráter resdistributivo
dessa função;
c) Função reguladora - implementação de projetos de redução do desemprego, de
descentralização administrativa e similares.
229
Os estudos nessa área tendem a se avolumar, consolidando um campo específico da
ciência econômica. Seu foco de interesse, obviamente, são as mutações nas relações
macroeconômicas atuais e futuras a partir da interação global das organizações da
economia social com os outros agentes do sistema econômico. Esse foco define os temas
de pesquisa e engaja os estudos daí derivados numa direção claramente definida. O que
nos fornece uma visão ampla da questão, ao menos no sentido econômico.
Por conseguinte, as variáveis de caráter interno das organizações não fazem parte dos
temas desenvolvidos. Os autores limitam-se a indicar que a gestão dessas organizações é
“democrática”. Na definição de economia social, a expressão “autonomia de gestão” quer
dizer exatamente a independência administrativa face aos organismos estatais.
Contudo, ao observarmos a identificação dos princípios e da ética que rege as
organizações da economia social, percebemos a presença de valores emancipatórios tais
como a solidariedade, a primazia das pessoas sobre o lucro, dentre outros. Tal percepção
nos faz deduzir que há uma interpenetração parcial entre o fenômeno que estudamos aqui
e aquele que é o objeto da economia social. Supomos que dentre as organizações da
economia social, podería-se encontrar algumas organizações substantivas de várias
matizes, o que não significa, em absoluto, que estaríamos aqui a estabelecer uma relação
causal direta.
As organizações não-governamentais e o Terceiro Setor:
230
Nas últimas décadas, ganhou destaque em todo o mundo a criação, no seio da sociedade
civil, de pequenas organizações atuando em vários campos da ação política, serviços
públicos e cultura em geral. Essas entidades, em geral denominadas “organizações não-
governamentais” ou simplesmente ONG’s, compõem uma vasta dimensão da ação
politicamente organizada nas sociedades contemporâneas chamada “Terceiro Setor”, ou
ainda “Terceiro Sistema”.
As definições, nesse campo, não são muito claras. Há uma zona difusa, na qual os
conceitos se confundem, se mesclam e causam uma certa confusão para aqueles que se
aventuram a estudar algum aspecto do campo, suscitando uma série de dúvidas. Por
exemplo, seriam semelhantes o Terceiro Setor e a Economia Social ? O Terceiro Setor
comportaria também empresas que desenvolvem atividades comerciais ?
Diversos autores, como por exemplo Joyal (1984), consideram que o Terceiro Setor
comporta tanto atividades sem fins lucrativos como também aquelas de natureza
lucrativa. Joyal assim caracteriza as organizações que visam fins lucrativos no interior do
Terceiro Setor:
“Trata-se nesse caso de iniciativas que tendo uma
finalidade social — pelos produtos ou serviços vendidos
ou pelo tipo de indivíduos implicados — visam gerar
rendas. A maximização dos dos lucros se encontra
231
excluída mas a autonomia financeira não é tornada
possível senão pela rentabilidade dessas empresas.”
(Joyal, 1984, p. 11, trad. livre).
Vemos aqui uma opção de consideração das organizações do Terceiro Setor que se
encaminha nitidamente para uma grande semelhança com aquela empregada pelos autores
que trabalham o campo da economia social. A posição de Joyal, repetimos, é adotada por
vários autores.
Devido ao que foi dito acima, torna-se necessário, cremos, esclarecer o significado dos
termos que utilizaremos nesta seção. Uma vez que já tratamos da economia social na
seção precedente, não gostaríamos de empregar um conceito de Terceiro Sistema que
recaísse no mesmo quadro de significação e referência.
Portanto, no nosso estudo, a noção de Terceiro Sistema ou Terceiro Setor exclui toda e
qualquer iniciativa organizada que tenha como mecanismo essencial (como na definição
de Joyal) de sobrevivência e da autonomia financeira a geração de rendas e lucros, isto é,
exclui terminantemente todas as organizações que sobrevivam prioritariamente da venda
de seus serviços ou produtos.
Consequentemente, as ONG’s, na concepção aqui adotada, não têm fins lucrativos
(Landim, 1988; Santana, 1992).
232
Nem por isto todas as ONG’s estariam excluídas da categoria de organização produtiva.
Elas produzem serviços de vários tipos, assistenciais, educacionais, jurídicos, etc., como
veremos mais adiante, embora a sua área principal de atuação seja a da ação política.
Nessa linha de pensamento, encontramo-nos com a visão de Nerfin, ao centrar a definição
de Terceiro Sistema no cidadão:
“Em contraste com o poder estatal — o Príncipe — e o
poder econômico — o Mercador — há um poder imediato
e autônomo, às vezes patente, sempre latente: o poder do
povo. Alguns dentro do povo desenvolvem uma
consciência disso, se associam e atuam com outros e
assim se tornam cidadãos. Os cidadãos e suas
associações ou movimentos, quando não buscam nem
exercem o poder estatal, nem o econômico, constituem o
Terceiro Sistema.” (Nerfin, 1988, p. 2, trad. livre, grifo
nosso).
A expansão das ONG’s é impressionante. A este respeito, Nerfin (1988) nos fornece os
seguintes dados: a 24ª edição do Anuário de Organizações Internacionais (1987/1988)
indica 14.998 ONG’s com laços internacionais; em 1981, 1.702 ONG’s foram mapeadas
no âmbito da OCDE; em 1978, 1.400 foram levantadas na Índia.
233
No Brasil, o Fórum de ONG’s Brasileiras preparatório à Conferência da Sociedade Civil
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a qual se desenrolou paralelamente a
Eco/Rio/92, reuniu cerca de 1.200 entidades (Relatório do Fórum de ONG’s Brasileiras,
1992).
Visando elaborar uma classificação das atividades (não excludentes, segundo o autor)
desenvolvidas pelas organizações do Terceiro Setor, Nerfin (1988) divide-as em três tipos
distintos:
a) Atividades orientadas para um projeto imediato - visam resolver uma situação de
crise, solucionar um problema específico ou lograr um objetivo geral, por exemplo,
organizar o povo, especialmente os pobres, melhorar a vida cotidiana e o meio ambiente,
obter apoio técnico-financeiro a iniciativas locais, promover o teatro popular, relacionar a
educação com a produção, assegurar o acesso igual ao emprego, compartilhar tecnologias
alternativas, pôr ao alcance do povo os serviços de profissionais notadamente os de
advocacia, medicina, ensino e outros;
b) Atividades de advocacia - ações para advogar a paz, uma nova ordem econômica
internacional, melhores intercâmbios entre os países do Terceiro Mundo, reconhecimento
e respeito às minorias, consumo de produtos locais, proteção do meio ambiente e pelo
ecodesenvolvimento, pelo pluralismo cultural, libertação de presos políticos, etc.;
234
c) Atividades relacionadas à responsabilidade pública - criação de organizações tais
como o Tribunal Russel, o Tribunal Permanente dos Povos, a Organização Internacional
da União de Consumidores, etc.
No Brasil, as ONG’s se originaram a partir dos “centros de educação popular” ou
“centros de promoção social” que tomam corpo na década de 70 . Daí, passaram a
desenvolver um trabalho social de apoio aos setores populares, com ênfase nas ações
voltadas para a abertura de processos democrático-participativos em vários áreas
(Santana, 1992).
A reivindicação de um novo modelo de desenvolvimento socio-econômico, é um dos
temas que balizam a ação das ONG’s, permitindo assim que percebamos alguns dos
valores que povoam o seu ideário:
“O desenvolvimento unilinear que conhecemos
demonstrou ser a pura e simples imposição de um ideal
único de sociedade sobre muitas outras formas de
sociabilidade que perderam o seu poder de afirmação e
até mesmo a legitimidade e o direito de existirem. […]
Queremos um desenvolvimento embasado em valores e
princípios universalmente aceitos, a fim de que não venha
a ameaçar nenhum desses direitos.
235
O desenvolvimento que queremos é aquele em que os
povos e os grupos sociais possam definir seus anseios e
construir uma gestão democrática da diversidade, tendo
em vista o bem-estar de toda a humanidade. Portanto, o
compromisso fundamental desse novo modelo de
desenvolvimento é, acima de tudo, a manutenção da vida
sob as suas mais variadas formas. (Relatório do Fórum
das ONG’s Brasileiras, 1992, p. 163).
Complementando a explicitação dos valores, podemos também destacar os seguintes
trechos do Manifesto das ONG’s Brasileiras:
“Jamais em toda a história da civilização, a humanidade
se defrontou com desafios de igual magnitude como os
que hoje se apresentam.
O modelo econômico internacional, implantado ao longo
de anos de dominação, levou à concentração da riqueza
nas mãos de pequena parcela da população, condenando
a absoluta maioria a uma situação de miséria crescente, e
promoveu o comprometimento das condições necessárias
à reprodução da vida.
236
[…] O desafio das ONG’s e movimentos sociais face a
todo esse quadro é o de forçar o debate e obter novos
posicionamentos oficiais frente à dicotomia entre norte e
sul, ao equilíbrio homem/mulher/natureza, à socialização
dos recursos, à democratização da tomada de decisões, à
revisão dos termos de comércio internacional e da dívida
externa.” (Relatório do Fórum das ONG’s Brasileiras,
1992, pp. 13-14 ).
Apesar de já contarmos atualmente com um grande número de publicações enfocando o
Terceiro Setor e as ONG’s, dificilmente pode-se encontrar estudos que abordem
prioritariamente aspectos de gestão dessas organizações, seus processos administrativos
internos. A quase totalidade dos estudos disponíveis versam sobre aspectos gerais e
externos das ONG’s, como por exemplo as relações delas com os organismos estatais,
com os partidos políticos, com as agências financiadoras, ou, numa perspectiva ainda
mais ampla, estudos que visam delinear o Terceiro Setor como um todo face às diversas
noções e estratégias de desenvolvimento social e/ou econômico. Face a esta configuração,
o estudo que apresentaremos a seguir parece ser uma das poucas exceções.
O estudo de Santana (1992) sobre o Projeto Axé:
Um dos estudos nesse campo abordando alguns aspectos administrativos foi realizado por
Santana (1992). Em certa parte do seu estudo, a autora faz uma breve análise de uma
237
ONG, o Projeto Axé. Essa organização foi criada em Salvador no ano de 1989, a partir de
uma parceria entre duas outras ONG’s: o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de
Rua e uma organização italiana, a Terra Nova. O Projeto Axé visa dar apoio aos meninos
e meninas de rua de Salvador, propiciando-lhes educação e novas perspectivas de vida.
A organização contava, em 1992, ano de realização do estudo, com cerca de 70 membros,
entre profissionais e estagiários (29). Em seguida, resumiremos as afirmações da autora
com relação aos aspectos administrativos, ao passo que faremos algumas observações:
a) Seleção do pessoal - o processo de seleção é totalmente informal, prevalecendo, como
referência, valores socio-políticos, atributos de personalidade e uma avaliação informal
de conhecimentos e habilidades;
b) Processos decisório e de avaliação - as decisões são tomadas em reuniões semanais.
Das reuniões fazem parte os dois coordenadores gerais, a assessoria (4 profissionais das
áreas de cultura, direito e sociologia) e a equipe técnica (5 profissionais das áreas de
pedagogia e serviço social). Nenhum dos profissionais do grupo chamado de “educadores
de rua” (que somam 21), que são aqueles que realmente lidam com as crianças nas ruas,
participam das reuniões. Fato que, para nós, demonstra uma clara diferenciação
hierárquica entre os planejadores e os executores. A avaliação das ações também é feita
durante essas reuniões, da qual os educadores também não participam;
238
c) Comunicação - a autora afirma haver uma transparência nas relações entre os membros
da equipe de trabalho que explicita a certeza do acesso a qualquer tipo de informação
sobre a organização. Porém, afirma também que todos os entrevistados na sua pesquisa se
ressentem da ausência de um sistema formal de informações que permita a geração de
indicadores e a recuperação dos dados da organização;
d) Autoridade - Nesse ponto, notamos algumas contradições e imprecisões nas afirmações
da autora, vejamos a seguir. Ela inicia os comentários nesse item, declarando que,
“A idéia de autoridade, para os membros do Axé, não
reside em um indivíduo, independente da posição que
ocupa ou do conhecimento que detenha, mas no grupo
como um todo que, através do Gerenciamento, alcança o
‘processo de consenso’. Advém, daí, a legitimidade de
uma decisão, o que a leva a deter o peso da autoridade.
[…] O Projeto Axé reconhece que a participação é uma
das bases da democratização institucional e, atuando nos
moldes de uma organização autogestionária, procura
estabelecer relações de trabalho não hierarquizadas mas
com profundo respeito à pluralidade. Desenvolvem,
assim, uma cultura fortemente influenciada pelas idéias
239
de uma organização alternativa, da participação e do
consenso.
[…] Embora considerem que o programa é bem sucedido
em sua intenção de democratizar as decisões e as
reflexões internas, atestaram [os entrevistados]
entretanto, a forte influência que o coordenador exerce
sobre o grupo. (Santana, 1992, pp. 80-81).
Infelizmente, a autora parece confundir uma série de conceitos, tais como participação,
consenso, autogestão e hierarquia. Taxar de autogestionária uma organização que exclui
das decisões todos os seus membros que atuam diretamente na produção, na atividade-
fim da entidade, é desconhecer o significado explícito do termo. Do mesmo modo,
afirmar que nessa organização estabelece-se relações de trabalho não hierarquizadas e que
o peso da autoridade está numa decisão é, respectivamente, confundir conceitos e,
despersonalizar excessivamente as relações sociais no seio daquele grupo de trabalho.
Um indício do grau de personalização das relações está no fato de que os entrevistados
reconhecem a “forte influência” do coordenador geral. A autora também não explicita o
que quer dizer “Gerenciamento”, o qual, segundo ela, faz alcançar o “processo de
consenso”.
Vale ressaltar que a autora declara que no processo de coleta de dados, entrevistou os dois
coordenadores gerais, todos os membros da assessoria e da equipe técnica e, apenas um
240
membro do grupo dos “educadores de rua”. Assim, podemos verificar que todos aqueles
que tomam parte nas decisões foram ouvidos, todos os que estão, na prática, no real nível
hierárquico, enquanto apenas um (dentre todos que atuam na “linha de frente” da
organização) dos excluídos do processo decisório foi ouvido.
A pesquisa em organizações produtivas não convencionais de cunho emancipatório deve
ser planejada e realizada com um cuidado redobrado, pois o pesquisador deve se precaver
sempre contra a possibilidade de envolver-se emocionalmente em excesso com a
dimensão simbólica ou com a ação social da organização que pretende analisar, sob pena
de perder a condição de objetividade mínima que um estudo científico exige e, assim
perder o senso crítico. Eis um dos aprendizados que a leitura do estudo acima nos fêz
reforçar.
Malgrado alguns problemas na condução da pesquisa e em algumas conclusões
veiculadas pelo estudo de Santana (1992), louvamos a iniciativa da autora em ressaltar
aspectos de ordem administrativa duma ONG, constituindo um dos poucos trabalhos
disponíveis nesse campo que aborda dimensões essencialmente do interesse da teoria das
organizações.
Um olhar geral para os estudos sobre ONG’s nos faz supor que, pelos valores contidos na
base dessas organizações, pelos seus objetivos e provavelmente pelas práticas de algumas
delas, poder-se-á em seu seio encontrar diversas organizações onde a racionalidade
241
substantiva possa talvez ser predominante. Não há dados suficientes para taxar o que
acabamos de dizer como uma afirmação, vale, repetimos, apenas como suposição.
As ONG’s, componentes do Terceiro Setor (de acordo com a definição aqui adotada),
foram criadas na mesma época da expansão do fenômeno das organizações substantivas,
com ideais e valores muito semelhantes. Ao constatarmos tais correspondências, bem
como a sua pluralidade, somos inclinados a colocar a hipótese de que dentre elas várias
podem ser substantivas. É obvio que somente o exame acurado de seus processos
organizacionais, das ações efetivas de seus membros, é que se poderia constatar ou não a
veracidade de uma tal hipótese. O fato de ser ONG não acarreta, absolutamente, a
conceituação de organização substantiva. Uma coisa não remete diretamente a outra. Uma
bela declaração de princípios e valores, ou ainda a adoção de determinados objetivos
políticos não determina, em si mesmas, a natureza da racionalidade que predomina numa
organização.
No nosso estudo não tratamos de nenhuma ONG entre as organizações analisadas. No
entanto, a consideração de algumas ONG’s como componentes da vasta constelação das
organizações produtivas não convencionais de cunho emancipatório, é uma atitude
necessária a qualquer mapeamento global nesse campo, além de nos aportar as lições
específicas explicitadas acima.
A seguir, gostaríamos de direcionar um pouco o presente levantamento ao espaço rural,
palco de inúmeras iniciativas emancipatórias.
242
As empresas associativas em meio rural na América Latina:
Em 1988, a CEPAL em conjunto com a FAO elaboraram um estudo sobre o
desenvolvimento de empresas associativas rurais em vários países da América Latina,
como produto dos programas de reforma agrária empreendidos na região. A seguir,
destacaremos os aspectos referentes a organização e a administração dessas empresas,
subdivindo, por seções, o caso de cada país abordado no referido estudo.
Colômbia:
Na Colômbia, as principais formas associativas de produção agropecuária são as
empresas comunitárias promovidas pelo Instituto Colombiano de Reforma Agrária -
INCORA. A estrutura de propriedade implica que todos os sócios sejam donos da
empresa; o trabalho comum indica que todos os proprietários são trabalhadores
permanentes, a administração realizada em comum configurando empresas
autogestionárias e a participação igualitária no resultados auferidos.
As vantagens que poderiam advir de tal configuração empresarial, em verdade não foram
aproveitadas. As causas principais foram: a restrição dos serviços de apoio ao crédito,
assistência técnica e capacitação, fornecidos pelo INCORA; os problemas de integração
243
surgidos entre os sócios das empresas devido a sua heterogeneidade de origem e de
experiência de trabalho; e a carência prolongada de um estatuto jurídico para as novas
formas associativas.
O apogeu da constituição das empresas se deu entre 1970 e 1974, quando cerca de 1.300
unidades foram criadas. O aporte dos camponeses à empresa consistia em trabalho
pessoal e terra em propriedade ou usufruto. O organismo máximo era a Assembléia Geral,
a qual tomava decisões e delegava a sua execução à Junta de Administração. A avaliação
e o controle, entretanto, estavam a cargo do Estado, através de um fiscal que exercia o
controle também sobre a distribuição do excedente.
As dificuldades na gestão das empresas comunitárias surgiram por dois motivos
fundamentais, um produtivo e outro financeiro. Apesar do tamanho médio das
propriedades se situar entre 22 e 31 hectares, somente 10% a 15% dessa superfície era
considerada produtiva para a agricultura, gerando assim uma escassa rentabilidade. Por
outro lado, os juros dos créditos concedidos eram sempre muito elevados, ocasionando
diversas vezes a venda de parte dos ativos para o seu pagamento, prejudicando o processo
de capitalização.
O estudo conclui que o baixo impacto do modelo comunitário ou associativo na
Colômbia, foi resultado da pouca importância dada à reforma agrária pelo Estado.
244
Chile:
No Chile, a avaliação de formas associativas enquanto coletivo de sócios,
necessariamente deve realizar-se distinguindo os dois períodos de governo durante os
quais se desenvolveu o processo de reforma agrária.
O primeiro período diz respeito ao governo do presidente Eduardo Frei. Os camponeses
percebiam com relativa clareza que o processo expropriatório os conduziria à propriedade
da terra. Isto permitia alcançar um razoável consenso entre os camponeses da área
reformada, o que ajudou decisivamente a organização deles e reduziu a ocorrência de
conflitos. A fórmula empregada pelo governo permitia aos camponeses organizar-se e
associar-se ao Estado para enfrentar as tarefas do desenvolvimento produtivo e da
administração das ex-fazendas. O que contribuiu para estabelecer uma verdadeira
organização camponesa em cada assentamento.
A eleição democrática dos dirigentes e membros de cada comitê que formavam o quadro
orgânico de cada assentamento estimulou a participação de todos nos momentos mais
difíceis, isto é, durante e depois da expropriação, quando era indispensável substituir a
presença dos antigos patrões. Em 1970, já existiam cerca de cem cooperativas.
No período seguinte, durante o governo Allende que se inicia em novembro de 1970,
instaura-se uma nova forma de organização, chamada Centros de Produção, com um forte
caráter estatal, sendo reduzida a participação camponesa em sua gestão.
245
Nessa fase, o ritmo da reforma adquire tal intensidade que as decisões de expropriação
superam a capacidade institucional dos organismos governamentais para atender aos
requerimentos dos camponeses, os quais em número importante de unidades expropriadas
permanecem desorganizados e sem lograr dar continuidade ao processo produtivo.
Consequentemente, à margem das formas oficiais, os camponeses se organizam
informalmente em comitês, nem sempre com sucesso.
Daí resulta que em um grande número de propriedades expropriadas não se constituiu
nenhum tipo de organização camponesa, sendo então restituídos aos seus antigos donos a
partir de 11 de setembro de 1973.
Equador:
No Equador, observa-se no caso dos produtores com menos de 5 hectares e agrupados em
comunas, uma contradição entre o modelo comunal associativo (implícito na estratégia de
sobrevivência) e os modelos orientados para gerar economias de escala. A legislação
subordina a gestão comunal ao controle governamental institucional.
O esforço estatal para a gestão dessas formas associativas parece, então, orientado para
modernizar um campesinato considerado passivo e com escasso conhecimento da
246
realidade, quando o mais adequado talvez teria sido orientá-lo e apoiá-lo para mobilizar
os recursos próprios e desenvolver de forma participativa as potencialidades inerentes a
cada grupo, que eram bastante heterogêneas, o que poderia ter enriquecido a experiência.
O organismo estatal encarregado da reforma agrária, desde o início, estabeleceu um
controle tutelar ao substituir o patrão anterior nas funções de gestão, sob a justificativa de
“preparar os sócios para a autogestão”. No entanto, continuou decidindo sobre a
orientação do processo produtivo e implantou uma relação paternalista através dos seus
técnicos.
Contudo, em algumas empresas cooperativas da região costeira, notadamente aquelas
ligadas ao cultivo do arroz, constata-se o desenvolvimento de uma razoável organização,
que apesar de dar-se sobre uma base pouco homogênea, tem permitido estabelecer
articulações em federações. A produtividade, as receitas e a qualidade de vida dos seus
sócios são notavelmente melhores do que entre os trabalhadores não cooperativados.
El Salvador:
Em El Salvador, no ano de 1980, vários decretos governamentais dinamizaram
substancialmente a reforma agrária, incentivando a constituição de formas associativas do
tipo cooperativo.
247
Consequentemente, em 1986 as cooperativas formadas somavam 311, contando com uma
área total de 210.783 hectares e mais de 22.000 sócios.
Cerca de 79% das cooperativas funcionavam em regime de cogestão empresarial. Esta
atividade se concretizava em três áreas de participação: tomada de decisões, planejamento
de atividades e tramitação de créditos. Mediante a cogestão, atingira-se bons níveis de
organização e controle, retorno social e aumento da produção.
Os resultados até 1988 eram animadores, dadas as condições gerais da zona rural
salvadorenha: 46% possuíam escola, 35% desenvolviam programas de habitação
mediante sistema de mutirão onde os sócios entravam com a mão de obra, 19% possuíam
clínica médica, 35% proporcionavam remédios gratuitos aos seus associados, 39%
prestavam serviços médicos hospitalares e 26% contavam com estabelecimentos
comunais de bens de consumo não agrícolas.
Honduras:
Em Honduras, a cessão de terras para a constituição de empresas associativas tem sido
muito lenta. As terras expropriadas correspondem a apenas 16% da superfície total
afetada pela reforma agrária, o restante foi feito a partir das terras do Estado. Nesse
contexto, as empresas associativas são responsáveis somente por 9% da força de trabalho
no setor agropecuário.
248
Em geral nas formas associativas a organização jurídica é débil e a administração muito
irregular, o que evidencia as limitações de apoio institucional assim como do tipo técnico-
produtivo. 75% das formas associativas não têm títulos de propriedade, 40% operam sem
estatutos e 44% sem regulamentos internos.
O lento desenvolvimento das empresas associativas redundou na persistência de uma
baixa qualidade de vida. Estima-se que 75% das famílias nos assentamentos coletivos não
conseguem satisfazer as suas necessidades básicas, 88% das casas não dispõem de água
potável, sanitários e instalações elétricas.
O Instituto Nacional Agrícola ainda não estabeleceu um prazo para abandonar a sua
função gerencial nas formas associativas; o demasiado paternalismo institucional vem
sendo reiteradamente criticado pelo campesinato, pois, segundo ele, tem limitado a
participação real e ativa em seu próprio desenvolvimento.
Panamá:
No Panamá, a origem das formas associativas de produção partiram de três vertentes: as
lutas do movimento camponês, a política de reforma agrária e a política de modernização
da agricultura. As três deram origem a dois tipos de organização: os assentamentos
camponeses e as juntas agrárias de produção.
249
O assentamento camponês é uma forma de transição até a entrega individual da terra para
a sua exploração. O prazo da transição é de 3 a 5 anos. O seu objetivo é organizar o
campesinato para a forma comunitária, contando com o apoio do Estado.
As juntas agrárias de produção são formas associativas mais avançadas que visam
incrementar o trabalho comunitário, desenvolver a consciência e participação grupal,
elevar o nível educacional e realizar transações comerciais como outros setores e esferas
de atividades do país.
As formas associativas panamenhas obtiveram sua legalização em 1983, como resultado
da pressão exercida pelo movimento camponês, organizado há 17 anos. Mediante a
legalização, reconheceu-se oficialmente o assentamento camponês como unidade de
produção coletiva, orientado ao uso de tecnologia moderna, como instrumento factível de
transformação da agropecuária.
A administração e a organização interna das formas associativas correspondem a três
instâncias hierarquizadas: a Assembléia Geral de Sócios, o Comitê Executivo e o Comitê
de Trabalho. Por sua vez, os assentamentos e as juntas agrárias de produção se agrupam
em Federações Provinciais, as quais têm uma Junta Diretiva, eleita pelos delegados das
unidades filiadas. As Federações Provinciais se agrupam na Confederação Nacional de
Assentamentos Camponeses, instância máxima das organizações camponesas.
250
A organização do trabalho é autogestionária. Os planos de trabalho são elaborados e
aprovados pelos sócios no Comitê Executivo e na Assembléia Geral. Para a sua
elaboração, recebem assitência técnica dos técnicos do Ministério do Desenvolvimento
Agropecuário. As terras recebidas pelas organizações camponesas associativas foram
desde sempre sob a forma de patrimônio coletivo. Os bens e melhorias incorporados
formam também uma parte do patrimônio coletivo.
As condições de vida dos camponeses organizados em empresas associativas tem
melhorado notavelmente. Todos os assentamentos coletivos possuem escola, 95% contam
com canalização de água potável e 40% com serviços de luz elétrica. Observa-se uma
considerável infraestrutura de estradas, centros de saúde e aquedutos rurais. A
capacitação para a participação na produção por meio do trabalho comunitário alcançou
mais de 80% dos sócios de todos os assentamentos coletivos.
Peru:
No Peru, a promoção de empresas associativas foi paralisada a partir de 1976. Desde esse
ano, começaram a debilitar-se as empresas públicas encarregadas da capacitação e da
assistência técnica. Adicione-se também a falta de dispositivos legais de normatização
das formas associativas.
251
A gestão e a organização empresarial se deu de forma curiosa: os beneficiários da reforma
agrária que passaram a integrar as empresas associativas, na maioria dos casos, foram as
famílias já estabelecidas nas grandes fazendas. Nelas, os chefes de família passaram a ser
os sócios das empresas, os demais familiares e agregados ficaram como trabalhadores
eventuais que recebiam salário e não tinham direito ao excedente ! Em função dessa
distorção, produziram-se outras, por exemplo, a tendência a reduzir a jornada de trabalho
por parte dos sócios para viabilizar a contratação de um número maior de trabalhadores
eventuais, os quais, como só trabalhavam no campo e não participavam da gestão,
estabeleciam uma reduzida identificação com a empresa associativa. Além disso, se
produziu uma confusão entre os membros no que diz respeito ao seu papel de sócio e de
trabalhador, o que afetou significativamente as iniciativas produtivas.
Por se tratar de uma estrutura administrativa imposta, é comum encontrar processos
decisórios voltados somente para o curto prazo, e se observa a ausência de programas de
coordenação, supervisão e controle das atividades de gestão empresarial.
Tudo isso desembocou numa escassa autonomia do campesinato, que dificulta o
cumprimento de produção dos objetivos das empresas associativas. Assim, tende a
ampliar-se a brecha entre a demanda e a oferta de serviços no assentamento coletivo, o
que impulsiona os camponeses a optar por uma parcelização de terras em busca de uma
gestão direta e individual que lhes permita assegurar um bem estar futuro.
Finalizando a apresentação de aspectos do estudo promovido pela CEPAL e FAO,
transcreveremos o caso da República Dominicana.
252
República Dominicana:
Nesse país, o sistema de produção coletiva foi legalmente estabelecido em 1972. Apesar
disso, entre 1973 e 1978, 70,3% das terras cedidas pela reforma agrária foram entregues a
assentamentos individuais.
A modalidade de organização de assentamentos coletivos consistiu na criação de
associações representativas dos parceiros, que formavam parte de outra instância superior
chamada Conselho de Administração, também composto pelos técnicos do Instituto
Agrário Dominicano e um representante do poder executivo governamental. Esse
conselho encarregava-se do regulamento, da tomada de decisões e da supervisão das
associações.
A gestão dos assentamentos coletivos foi pouco programada. Isto é, simplesmente se
juntaram parceiros individuais em uma superfície para que realizassem trabalhos
coletivos. A gestão dos assentamentos não passou às mãos do camponeses até 1978, pois
a administração e a propriedade da terra eram mantidas com o Estado, os beneficiários
tinham o usufruto mediante a entrega de títulos individuais provisórios.
Após 1978 a política agropecuária foi reformulada. Foram estabelecidos objetivos de
médio e de longo prazo e também programas de apoio a produção, organização e
253
capacitação. Adotou-se a decisão de distribuir a terra exclusivamente de forma coletiva,
privilegiando-se os camponeses sem terra.
Para promover a maior participação do campesinato, foi proposta a criação das Empresas
Camponesas da Reforma Agrária - ECRA, que funcionariam como empresas privadas
geridas pelos próprios produtores. O Instituto Agrário Dominicano passaria a ter apenas
uma função de assessoria, sem tomar decisões. Esse projeto não contou com a aprovação
do parlamento, embora a autogestão tenha se concretizado de maneira pontual e
experimental, com grandes êxitos obtidos.
Assim, tal autogestão extra oficial não contou com o apoio do poder político, o qual
introduziu mudanças no Instituto Agrário Dominicano e na regulamentação dos
assentamentos coletivos, com o propósito de exercer maior controle sobre eles. Sem
autonomia para desenvolver-se verdadeiramente de forma coletiva, o campesinato volta-
se para a forma associativa, onde cada beneficiário trabalha sua própria parcela com ajuda
do grupo familiar. A provisão de insumos, crédito e canais de comercialização é de
responsabilidade da associação e o objetivo primário continua sendo a produção.
O estudo realizado em conjunto pela CEPAL e FAO nos dá uma visão global dos
esforços recentes em prol da criação e desenvolvimento de empresas associativas em
meio rural na América Latina. A dimensão espaço nessas experiências tem um peso
fundamental, pois o fato de tais experiências se passarem em meio rural condiciona uma
série de fatores que determinam o tipo de ação empreendida, as alianças estratégicas com
254
outras organizações da sociedade e também a naureza dos desafios e dificuldades
enfrentadas. Podemos perceber, por exemplo, as dificuldades no âmbito das relações com
o aparelho do Estado e sua influência no sucesso ou insucesso de muitas iniciativas.
Até então, não nos debruçamos diretamente sobre a problemática das organizações rurais.
Nossas pesquisas até o presente se passaram em meio urbano. E é justamente por essa
razão que o estudo acima desperta o nosso interesse e nos aporta contribuições
importantes. Em primeiro lugar, demonstra que organizações produtivas de cunho
emancipatório também são construídas e implementadas em outro espaço que não
somente o meio urbano, o grande centro urbano industrial. Em segundo lugar, ressalta as
especificidades que caracteriza essas iniciativas no seio do espaço rural.
Das especifidades, podemos verificar que, mesmo desenrolando-se de forma singular,
algumas delas tais como as relações ambientais da organização, principalmente a
fronteira com as organizações que compõem o aparelho do Estado, apresentam uma zona
comum de desafios, tanto para as iniciativas rurais como também no caso das iniciativas
urbanas, uma vez que Rothschild-Whitt (1982) e Huber (1985) já haviam assinalado o
mesmo gênero de dificuldades em seus respectivos estudos.
O olhar atento para o relato das experiências desenvolvidas pelo campesinato nos inspira
a incorporar algumas questões no nosso estudo sobre organizações do espaço urbano. As
relações ambientais da organização, destacando a sua faceta de conexão com o Estado,
por exemplo, se constituirá numa das variáveis do nosso quadro de análise.
255
Malgrado as dificuldades gerais e específicas, o estudo das CEPAL/FAO aponta casos de
retumbante sucesso, tais como os de El Salvador, Panamá e parte do Equador, o que
demonstra o potencial das organizações produtivas de natureza emancipatória no espaço
rural.
Associações produtivas rurais - alguns estudos brasileiros:
Uma vez que o estudo da CEPAL/FAO, acima apresentado, não contempla o Brasil,
gostaríamos de fazer referência, ainda que brevemente, a estudos recentes que analisam
experiências significativas no contexto brasileiro.
A produção acadêmica no Brasil sobre organizações associativas rurais é vasta,
notadamente no que se refere a análise de cooperativas. Entretanto, grande parte dessas
análises ou está voltada para apenas uma das áreas especializadas, tais como
comercialização, produção, ou para áreas estritamente ligadas aos princípios, doutrinas e
legislação cooperativas (Crúzio, 1991).
Portanto, emprendemos uma seleção de textos que enfocassem aspectos relacionados aos
temas discutidos em nosso trabalho. Três estudos foram escolhidos para ser alvo de
sumarização. O primeiro deles trata dos conflitos mais frequentes que ocorrem no interior
de organizações rurais com gestão coletiva, desde a sua fundação até o funcionamento
efetivo.
256
Considerando que as organizações de menor tamanho estão mais próximas da
problemática enfocada no nosso estudo, demos preferência a textos que tenham como
alvo a realidade associativa de pequenos produtores rurais, preterindo os trabalhos
realizados junto a grandes cooperativas ou as entidades ligadas ao agribusiness.
Consequentemente, o segundo estudo escolhido aborda aspectos da história, da liderança,
da participação e da ação de grupos associativos de pequenos produtores rurais, tomando
como exemplo o caso de um grupo situado no sul de Minas Gerais. Os autores utilizaram,
dentre outras metodologias, a observação participante na coleta de dados, a mesma
metodologia que foi empregada por nós no presente trabalho.
O terceiro estudo visa mapear o cotidiano de pequenos produtores de hortigranjeiros para
avançar no conhecimento de aspectos da gestão e da racionalidade alí embutida. O estudo
foi efetuado numa região tipicamente hortigranjeira, próxima a Belo Horizonte, no qual
os autores também se valeram da metodologia da observação participante.
A seguir, apresentaremos cada estudo em subseções distintas.
Os conflitos na gestão coletiva:
Os conflitos tipicamente verificados nas organizações rurais com gestão coletiva no
Brasil foram abordados por Rodrigues (1995), na perspectiva das diversas fases que
caracterizam a criação e o desenvolvimento dessas formas associativas.
257
Segundo Rodrigues (1995), partindo da fase inicial, quando a terra é adquirida através de
organismos governamentais, formaliza-se a associação, geralmente sob o modelo
oficialmente exigido de cooperativa (com estatuto, presidente, diretoria, conselhos, etc.).
Daí então, capta-se os recursos necessários à produção, demarca-se as terras e então dá-se
partida no processo de gestão coletiva da produção e da associação, com equipes
chefiadas por um dos membros e supervisionadas por um ou mais chefes dos serviços de
campo (Rodrigues, 1995).
Segundo a autora, na fase de implantação da organização, observa-se o conflito de
interesses entre associados. Geralmente, duas visões se chocam: uma que defende a
divisão de todo o terreno em lotes para posse e propriedade individual, e outra que
advoga o fracionamento do terreno em dois segmentos, sendo um para exploração
individual e o outro segmento para a exploração coletiva.
Para Rodrigues,
“Com efeito, tem prevalecido esta última alternativa
[fracionamento em dois segmentos] porém os conflitos
de interesse e de racionalidade continuam a existir no
tecido organizacional de forma latente, e vai ser
novamente expresso, reaberto em outros momentos.”
(Rodrigues, 1995, p. 126).
258
Um outro conflito típico seria o referente às relações dos associados em divergência com
os órgãos do Estado participantes do processo de co-gestão. Tais órgãos impõem
exigências de organização, planejamento e financiamento, as quais necessitam da
continuidade da exploração e da associação para ser atendidas. No entanto, muitas vezes
ocorre o fenômeno da descontinuidade, seja pela venda posterior de terras por alguns
associados ou também pela divisão das frades individuais entre vários herdeiros, no caso
de falecimento do titular.
Em seguida, um terceiro tipo de conflito ocorre frequentemente. Ele diz respeito ao
processo de tomada de decisão e de gerenciamento coletivos. A autora assim o relata:
“As características básicas da organização associativa
são a igualdade de direitos entre os associados, a gestão
participativa, a solidariedade. No entanto, a distribuição
de tarefas introduz elementos de hierarquização entre os
associados, entre pares os quais vivenciam duas
situações: uma enquanto pares na Assembléia Geral e nas
Comissões ou Equipes Especiais, outra enquanto superior
ou subordinado no campo da gestão coletiva da produção
ou de outras atividades no assentamento.
259
Esta vivência simultânea de papéis horizontal e vertical,
expõe o associado a um conflito no que se refere a idéia
de autogestão no sentido amplo do conceito, e tem gerado
um conflito intra-pessoal na realização desses papéis, o
que é expresso pela recusa do associado em obedecer às
orientações do responsável pelo trabalho de campo, ou às
decisões estabelecidas pela maioria, por equipe ou em
Assembléia Geral.” (Rodrigues, 1995, p. 127).
Desta forma, a não obediência às normas e à hierarquia estabelecidas geraria confrontos
entre associados na gestão da produção. Rodrigues reconhece que a fase de implantação
determina novas modalidades de comportamento aos associados, devido à instalação de
relações de poder entre os mesmos, gerando assim a necessidade de comportamentos de
negociação em esferas formalizadas, provavelmente nunca antes desenvolvidos por
aqueles indivíduos.
Daí, partindo da premissa de que a organização formalizada como tal não é um dado
natural da realidade social e sim uma criação, a nossa questão: e então, porque se instalam
as relações de poder hierarquizadas ? Ou ainda, por quê elas não são minimizadas na
prática cotidiana ?
A autora afirma que,
260
“Eliminar as funções de chefe de equipe, ou encarregado
de campo ou de outras atividades, suporia que todos os
associados cumpririam suas atribuições no mesmo nível
de dedicação e produtividade, prescindindo da
fiscalização e do controle. Isto está longe de ser real nas
experiências de gestão coletiva em associações rurais”
(Rodrigues, 1995, p. 129).
O estudo de Rodrigues remete-nos a dois aspectos que nos parecem cruciais em projetos
de gestão coletiva da produção. A reflexão balizada por tais questões enriquece a nossa
possibilidade de melhor aprofundar a análise das organizações da nossa pesquisa.
O primeiro aspecto diz respeito às relações entre a organização e o seu meio, notadamente
a “fronteira” com as organizações que apresentam um alto grau de burocratização, dentre
elas os organismos públicos. Vários autores já chamaram a atenção para esse aspecto
(Huber, 1985; Rothschild-Whitt, 1982; Dupuis,1985), ressaltando-o como uma área de
dificuldades para as organizações que tencionam implantar uma gestão coletiva. Huber
(1985), chega mesmo a incentivar a utilização de estratégias de caráter “misto”, ou seja,
no nível externo seguir os padrões exigidos pela burocracia (registro oficial como
empresa privada, ou cooperativa com diretoria, presidência, etc.), e no nível interno
redefinir as relações entre os membros de modo a neutralizar a impessoalidade, a
hierarquia e outros ditames burocráticos.
261
O segundo aspecto é decorrente do primeiro. A autora parece defender o estabelecimento
da hierarquia, advogando-a como uma espécie de enfrentamento da não uniformidade de
comportamentos entre os associados. Daí decorre, ao nosso ver, uma contradição de base:
a autora se refere a termos como gestão coletiva, co-gestão e gestão participativa, mas
como conciliar gestão coletiva com a presença de chefes encarregados da fiscalização e
do controle, com o estabelecimento de relações diferenciadas de poder ? Ou o modelo de
organização do trabalho proposto não tem como objetivo a gestão coletiva, ou a autora
está, no mínimo, envolvida numa certa confusão conceitual.
Esperar, de imediato, que indivíduos em início de uma experiência associativista
apresentem “um mesmo nível de dedicação e de produtividade” nos parece revelar um
certo desconhecimento do que significa, na prática, trabalhar com a autonomia e a gestão
coletiva — seus desafios e dificuldades — , daí até legitimar as práticas de “fiscalização e
controle” heterônomas e institucionalizadas em relações formais de poder, é voltar ao
ponto zero e negar a própria gestão coletiva.
De todo o modo, o estudo tem os seus méritos. Ele contribui para o debate e a reflexão
sobre o tema da gestão coletiva, aspecto que muito nos auxilia a ampliar os pontos de
vista de nossas análises que serão demonstradas mais adiante, além de permitir o avanço
do conhecimento das situações que envolvem a realidade das associações brasileiras de
pequenos produtores rurais.
262
Grupo associativo rural e pequena produção - aspectos relevantes:
O segundo estudo aqui destacado aborda elementos da história, tipo de liderança,
realizações e formas de participação na Associação de Pequenos Produtores de Poço
Fundo, região sul do estado de Minas Gerais. A pesquisa foi realizada por uma equipe do
Departamento de Economia e Administração da Escola Superior de Agricultura de
Lavras, no ano de 1994. Trata-se de um estudo de caso bastante representativo do
fenômeno associativo rural no campo brasileiro.
A origem da Associação está ligada aos “grupos de reza” existentes no município. Por
ação da Pastoral da Terra, esses grupos foram se trasformando em “grupos de reza e
reflexão”, processo que despertou o interesse pelo associativismo. No entanto, o ponto de
partida de criação da Associação se deu num encontro de produtores rurais realizado em
1987, em Belo Horizonte, ocasião em que alguns produtores, espontâneamente, decidiram
fundar a sua entidade, que hoje conta com cerca de 40 famílias.
Segundo os autores do estudo,
“Os produtores da Associação de Poço Fundo não
direcionam suas ações em função de liderança(s). […]
Percebe-se um estilo de liderança democrático onde
263
nenhum dos membros preocupa-se em sobressair-se
perante aos outros. Este estilo parece ter suas raízes na
própria origem do grupo, ou seja, os grupos de reza e
reflexão.
O caráter espontâneo do surgimento da Associação pode
ter contribuído para que todos sintam-se com o direito e
em condições de participar do funcionamento da
organização.” (Alencar et alli, 1994, p. 145).
Nos sete anos decorridos da sua fundação até a realização do estudo, a Associação já
havia promovido uma longa série de atividades extra-campo que atesta o seu dinamismo.
Dentre essas atividades, podemos destacar 5 cursos de conservação e adubação orgânica,
treinamento em apicultura, financiamento para cimentar terreiros de café, assinatura de
acordo com uma instituição belga para exportação de café, participação no Conselho
Municipal de Saúde, cursos de educação popular e aplicação do diagnóstico Rápido
Participativo Agroecológico.
A participação é viabilizada por reuniões mensais e uma avaliação anual feita em
dezembro, quando se elabora a programação base para o ano seguinte. O texto reproduz
vários depoimentos de membros da Associação, um deles diz que,
“Estamos muito animados com a Associação. Sozinhos,
cada um no seu canto a gente não ia sair do lugar.
264
Quanto mais participo, mais quero aprender e mais
desenvolvo o meu pensamento. Temos muito interesse de
trazer mais pessoas da comunidade prá cá.” (transcrito
em Alencar et alli, 1994, p. 149).
A pesquisa revela, sem dúvidas, um caso de êxito. A Associação de Poço Fundo é
assistida por um grupo de técnicos do Centro de Assessoria Sapucaí, cuja metodologia
empregada parece ter provocado bons resultados, tanto a nível da auto-organização dos
produtores, como em nível técnico-produtivo. Os autores relacionam o sucesso da
Associação às práticas de reflexão em grupo. Essa posição veio corroborar um ponto de
vista adotado por nós, o qual aponta a reflexão em grupo como um dos processos
organizacionais de grande importância para o desenvolvimento da gestão coletiva, em
termos substantivos. Assim, no nosso estudo, a reflexão sobre a organização é uma das
variáveis organizacionais a ser avaliada face a intensidade de racionalidade substantiva
nas organizações pesquisadas.
Outro ponto que gostaríamos de ressaltar é o seguinte: se a hipótese, de que o fato da
origem da Associação advir dos “grupos de reza e reflexão” influenciar o comportamento
democrático dos associados no trato das questões econômicas e de poder, estiver correta
então teríamos aqui também mais um caso onde a atividade econômica estaria embedded
no social e a ele submetida, o que nos faz recordar as posições teóricas de Polanyi, dos
demais autores da abordagem substantiva da economia e da antropologia econômica
265
elaborada por Godelier. O que viria a evidenciar que tais situações continuam a se
produzir na atualidade.
O cotidiano administrativo de pequenos produtores de hortigranjeiros - aspectos de
gestão e racionalidade:
Em 1994, Lima & Teixeira publicaram um estudo realizado junto a produtores rurais de
hortigranjeiros situados no “cinturão verde” de Belo Horizonte, mais exatamente na
comunidade de Farofa, município de Igarapé. Nessa área, há uma forte concentração de
pequenos produtores de hortigranjeiros. Nada menos que 8.000 trabalhadores estão
envolvidos com o cultivo de hortas, segundo o Sindicato de Trabalhadores Rurais local.
Primeiramente, poderíamos apontar duas características que, de início, já reveste de
grande importância esse estudo: a pequena quantidade disponível de pesquisas sobre o
setor de hortigranjeiros no campo da administração rural e a grande dificuldade de
encontrar estudos nesse setor voltados para aspectos de gestão.
Os autores edificaram o seu estudo sobre um alicerce fenomenológico, notadamente a
obra de Schutz. A qualidade da pesquisa foi acrescida pela coerência entre o seu alicerce
teórico e a principal metodologia empregada na coleta de dados: a observação
participante. Assim, o “mundo da vida” dos indivíduos que foram alvo da pesquisa foi
vivenciado e captado no cotidiano através, primordialmente, do emprego da observação
266
participante, revelando uma forte semelhança com a nossa própria opção no presente
trabalho.
A abordagem fenomenológica do processo administrativo, criou as condições para que os
autores delineassem a dimensão “cotidiano administrativo” — expressão empregada por
eles e constante do título do texto — , de marcante significação e de grande ressonância
no nosso estudo. Para Lima & Teixeira,
“A técnica de observação participante permitiu o
acompanhamento de processos de produção e
comercialização, apreendendo-se o cotidiano de ações e
decisões administrativas presentes em comportamentos e
atitudes do conjunto de atores envolvidos na produção e
comercialização de hortaliças na realidade social
estudada.” (Lima & Teixeira, 1994, p. 227).
O estudo revelou que o desenho organizacional encontrado no grupo não foi formalizado
a priori. A estrutura foi sendo construída historicamente, a partir da vivência e
convivência durante muitos anos pelos diversos agentes produtivos. Em Farofa, a
estrutura organizativa possui uma complexidade considerável devido a existência de
variados agentes — proprietários, fundiários, arrendatários, fornecedores de insumos,
atacadistas, varejistas, dentre outros — promovendo interações diretas e cruzadas,
ensejando uma teia de relações sociais de grande densidade. Segundo os autores,
267
“A estrutura organizacional se apresenta de forma
escalar e hierárquica, onde cada agente ocupa papel
específico em termos de atividades produtivas e
administrativas. Há uma estrutura hierárquica bem
definida entre o organizador da produção (proprietário
ou arrendatário) em conjunto de meeiros e trabalhadores.
A unidade fundamental de organização e produção está
constituída de forma elementar na articulação
hierárquica destes três agentes.” (Lima & Teixeira, 1994,
p. 228).
A partir do desvelamento da estrutura, os autores centram-se nos processos de decisão e
ação, pois Lima (1989) defende a idéia de que decisões e ações “constituem categorias
mais simples para a observação da racionalidade de sistemas sócio-econômicos e de
agentes de sistemas econômicos”. Consequentemente, no caso enfocado, as habilidades
administrativas se concretizam em decisões e ações com níveis diferenciados em função
de cada agente específico envolvido na atividade econômica:
“Assim sendo, um organizador da produção efetua ações
e decisões diferenciadas quanto ao nível hierárquico, na
medida em que, eventualmente, esse agente realiza
operações de produção. Além de ‘olhar’ a própria horta,
268
um organizador pode, ele próprio dirigir caminhão e,
necessariamente acompanhar as atividades de meeiros a
ele associados, lotados em diferentes áreas. Isto implica a
participação nas decisões sobre a necessidade de
adubação, verificação de problemas tais como irrigação,
visando a realização dessas atividades dentro dos prazos
e na dimensão desejável. […] São atividades de caráter
estratégico ou operacionais.” (Lima & Teixeira, 1994, p.
231).
O exame das decisões e ações leva os autores a abordar a questão da racionalidade. Eles o
fazem embasando-se na ótica weberiana, a partir das categorias controle e cálculo. Uma
análise da razão instrumental, portanto. A intenção passa a ser, então, identificar a
utilização do controle e do cálculo no cotidiano administrativo dos indivíduos
observados.
Os autores detectam o emprego do cálculo em diversas atividades, como por exemplo:
— as operações quantitativas envolvendo a decisão de obter ou não recursos advindos do
crédito agrícola;
— os acertos entre meeiros e organizadores envolvendo os custos e divisão de
responsabilidades para caixaria, descarga, frete de mercadorias e insumos;
269
— formação de preço médio a ser obtido na comercialização dependendo da variação das
quantidades de produtos já comercializados em uma mesma semana.
O controle é também uma fonte de grande atenção no processo, principalmente no que diz
respeito aos custos de produção (onde o controle se funde com o cálculo) e nas operações
e comercialização, área em que ele é mais intenso.
As lições contidas no estudo de Lima & Teixeira para o nosso trabalho são inumeráveis.
Elas vão desde a opção epistemológica, com a eleição da fenomenologia para apreender o
cotidiano administrativo; a adequação da metodologia do trabalho de campo, com o
emprego da observação participante; a observação dos processos de decisão e ação como
reveladores da racionalidade na gestão; até a consideração do elemento cálculo e sua
imbricação com o controle como indicadores da razão instrumental. Direta ou
indiretamente, todas essas opções foram feitas também por nós ao realizarmos o presente
trabalho. Assim, tivemos a oportunidade de balizar essa nossa modesta contribuição
também num estudo de qualidade como aquele realizado pelos autores citados. Eles
afirmam categoricamente ao final do texto que,
“Os resultados permitem validar a perspectiva
fenomenológica adotada para a reconstrução desses
processos administrativos [de decisão e ação] a partir do
270
discurso dos agentes e da observação participante.”
(Lima & Teixeira, 1994, p. 235).
Ademais, os autores nos forneceram uma pista de grande importância para o
desenvolvimento da nossa análise das organizações pesquisadas: mesmo centrando o foco
da sua investigação na identificação da racionalidade instrumental, Lima & Teixeira
desvelam de forma bastante sutil o “caráter substantivo” em processos marcados pela
predominância da razão instrumental.
Lima & Teixeira revelam que,
“As formas de controle são coerentes com o caráter
substantivo que permeia a racionalidade do cálculo. Isto
faz com que as operações de cálculo sejam minimizadas
face as características pessoais. Isto envolve a
experiência passada e aspectos estritamente sociais que
interferem nessa decisão.” (Lima & Teixeira, 1994, p.
234, grifo nosso).
Do exposto acima, podemos perceber claramente que os autores também compartilham
da nossa visão, a qual admite a interpenetração de aspectos instrumentais e substantivos
nas práticas administrativas, independentemente da predominância que um tipo de
271
racionalidade possa vir a ter sobre o outro na dinâmica das organizações produtivas, ou
como bem definido por Lima & Teixeira, no desenrolar do cotidiano administrativo.
Observações gerais:
Após esse breve relato de experiências históricas e estudos recentes, através do qual
intentamos fornecer um panorama que não ousa querer ser completo, mas que, cremos,
poderá permitir ao leitor configurar um quadro genérico da força, da magnitude e da
diversidade dos movimentos emancipatórios ao nível da produção, nos concentraremos
no âmbito das organizações as quais denominamos substantivas.
Como pode-se perceber, não há unanimidade entre os teóricos nesse campo no que diz
respeito às classificações e denominações. Elas são multivariadas e, muitas vezes se
interpenetram, causando uma certa dificuldade para aqueles que intentam elaborar um
levantamento sistematizado desses estudos. Ainda assim nos aventuramos nesse objetivo,
visando fornecer ao leitor uma visão ampliada de tais estudos. Novas classificações e
denominações continuam a ser desenvolvidas, como atesta recentemente Joyal (1995):
“Há algum tempo, falava-se de ‘empresas alternativas’
enquanto que hoje em dia, para esse gênero de atividades,
as expressões ‘empresas sociais’ e ‘empresas solidárias’
tendem a se expandir.” (Joyal, 1995, p. 12, trad. livre).
272
Para caminhar na direção das organizações substantivas, primeiramente partiremos de um
estudo realizado no ano de 1990 na cidade de Salvador e, em seguida, apresentaremos a
definição específica de organizações substantivas e avançar algumas questões específicas
que vão moldar o desenvolvimento do presente trabalho.
III. Organizações substantivas
O primeiro estudo em Salvador (1990):
Em 1990, o Grupo de Pesquisa em Organizações Substantivas ainda estava em pleno
funcionamento na Universidade Federal da Bahia. É no bojo de suas várias atividades que
realizamos um primeiro levantamento em Salvador visando conhecer aspectos
qualitativos de algumas das organizações substantivas que atuavam naquela capital.
Na oportunidade, foram mapeadas doze organizações que pertenciam a ramos de
atividade bastante diferenciados:
— Duas associações ecológicas;
— Uma locadora de livros;
273
— Um espaço cultural que congregava também um bar/restaurante;
— Uma escola de educação infantil;
— Uma associação de recuperação de viciados em álcool;
— Uma associação de defesa de direitos dos homossexuais;
— Uma organização que presta apoio psicológico por telefone;
— Um centro de educação popular;
— Um centro de pesquisa social e apoio a comunidades carentes;
— Um centro de difusão da macrobiótica e de filosofias orientais;
— Uma clínica psicológica alternativa.
Dentre os diversos aspectos que emergiram na pesquisa, destacaremos os seguintes:
“No mapeamento realizado, observou-se que nestas
organizações existe uma preocupação com o efetivo
resgate da condição humana. Autenticidade, respeito à
individualidade, dignidade, solidariedade, afetividade são
274
alguns dos aspectos marcantes... […] A primazia da
racionalidade substantiva constitui-se no traço mais
marcante de tais organizações. […] Nelas, não
constatamos alguns preceitos fundamentais encontrados
nas burocracias, como por exemplo, a excessiva
supremacia da organização sobre o indivíduo […] Nem
por isso elas deixam de apresentar efetividade. […] A
eficiência e a eficácia são atingidas, só que por outros
caminhos. O que não quer dizer que tais organizações
sejam modelos perfeitos de produtividade e efetividade.”
(Serva, 1993 a, pp. 41-42).
Comentando sobre as organizações que foram alvo do estudo acima citado, Martins
(1994) infere que,
“No Brasil, Serva constatou somente em Salvador cerca
de 12 delas, o que leva a inferir, para todo o Brasil, em
uma avaliação por baixo, mais de 1.000 organizações
deste tipo.” (Martins, 1994, p. 127).
Desde o ano de 1986, inspirados pelos ensinamentos do saudoso mestre Ramon Garcia, o
qual tinha sido aluno e amigo particular de Guerreiro Ramos, vimos estudando tais
iniciativas.
275
Definindo organizações substantivas:
Continuamos o esforço de aprofundamento do conhecimento dessas organizações, do
qual o presente trabalho é mais uma etapa. À medida em que nos aproximamos mais
delas, do cotidiano de seus membros, emergem com mais clareza aos nossos olhos os
seus princípios e práticas. É também por esta razão, que adotamos a metodologia da
observação participante para guiar o trabalho de campo que embasa este estudo.
Do ponto de vista administrativo, tais organizações não seguem modelos prédefinidos
para desenvolver suas operações. O grau de formalização dos procedimentos utilizados é,
na maioria das vezes, muito reduzido. Frequentemente não contam com administradores
profissionais em seus quadros de pessoal, o que talvez também concorra para a não
formalização de procedimentos. Quanto mais distantes das soluções burocráticas (que
implicam, em geral, um maior grau de padronização), maior tendência a existir uma
diversidade bastante acentuada de práticas administrativas e de despadronização entre
essas organizações.
Nesse contexto, a metodologia da observação participante (empregada neste estudo), que
exige a inserção ativa do pesquisador no cotidiano do grupo pesquisado, apresenta
grandes vantagens, dentre elas a possibilidade de registrar in loco as práticas utilizadas,
276
revelando com detalhes a diversidade dos procedimentos encontrados entre as
organizações.
Assim procedendo, esclarecemos, para os fins a que se destina este trabalho, o que
entendemos por organizações substantivas:
Organizações substantivas são organizações produtivas
nas quais predomina a racionalidade substantiva em
seus processos administrativo-organizacionais e, que
contêm o ideal da emancipação do homem entre suas
finalidades e práticas concretas.
Para a clarificação dessa definição de organizações substantivas, cremos ser necessário
detalhar a significação precisa que determinados termos e expressões utilizados na
definição acima, evitando assim a possibilidade de interpretações diferentes daquela que
objetivamos proporcionar.
Em primeiro lugar, queremos esclarecer que o termo substantiva remete a um tipo de
racionalidade que é um privilégio do sujeito. Segundo Guerreiro Ramos (1981), ela habita
a psique humana. Tal racionalidade, liberada de imperativos de ordem econômico-
instrumental, concretiza-se em ações que conduzem os indivíduos ao alcance da
autorealização harmonizada — através de julgamentos éticos constantes — com a
satisfação social.
277
Daí, emerge a dimensão da responsabilidade social na busca da autorealização individual.
O que implica uma avaliação permanente, um balanço constante entre os fatores e ações
possibilitadores da autorealização individual de um lado, e da satisfação social de outro
lado. Esse balanço é viabilizado pelo exercício contínuo do julgamento ético, do debate
racional (que conduz ao entendimento), da autenticidade, dos valores emancipatórios e da
própria autonomia do sujeito. Todos esses fatores, em conjunto, se concretizam na prática
de ações racionais substantivas.
Ao predominar no contexto organizacional, tais ações conduziriam as organizações
produtivas a um status de embedded no social, na acepção de Polanyi (1975), onde as
atividades econômicas são submetidas a critérios ético-políticos.
A definição de organizações substantivas, bem como o esclarecimento sobre o significado
do seu termo qualificador, os quais acabamos de apresentar, suscitam uma série de
questões relacionadas à práxis, a aplicabilidade efetiva do conceito, enfim questões que
dizem respeito ao cotidiano administrativo de organizações produtivas reais —
organizações concretas em pleno funcionamento. Essas questões são, justamente, aquelas
que norteiam o desenvolvimento deste estudo. A elas nos referiremos com destaque ao
final deste capítulo.
O segundo esclarecimento que gostaríamos de fornecer, nesse momento, refere-se à
expressão organizações produtivas. É imprescindível delimitar claramente o que
278
queremos significar ao utilizarmos essa expressão, tanto na definição de organizações
substantivas, como ao longo de todo o presente estudo.
Consideramos, aqui, que uma organização para ter o caráter de produtiva deve
necessariamente atender a todos os seis critérios abaixo relacionados:
1) Critério transacional - uma organização produtiva é aquela que produz bens e/ou
serviços e os coloca à disposição da coletividade. Nesse sentido, ela pode ser vista
realmente como um sistema social aberto que transaciona intensamente o produto de suas
atividades com outros sistemas sociais e/ou indivíduos presentes no seu meio ambiente. O
que define a transação é a transferência de bens e/ou a prestação de serviços e, não
necessariamente, a contrapartida financeira que daí possa advir. A transferência/prestação
pode ser compensada pelo pagamento em dinheiro, em serviços, em comportamentos
esperados, ou até não haver absolutamente nenhuma espécie de compensação denotando,
assim, a gratuidade da transação;
2) Critério profissional - pelo menos algumas das principais atividades-fim da
organização, diretamente relacionadas às transações definidas acima, devem ser objeto do
trabalho de profissionais. Seguimos estritamente, aqui, as significações estabelecidas pelo
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2ª ed., 1986), o qual nos diz que
profissão “é a atividade ou ocupação especializada, que supõe determinado preparo
(por ex., profissão de engenheiro, profissão de motorista) e, “que encerra certo prestígio
pelo caráter social ou intelectual”. O mesmo dicionário declara que por profissional
279
devemos entender aquilo que é “respeitante ou pertencente a profissão”, e também
aquele “que exerce uma atividade por profissão ou ofício (por ex., fotógrafo
profissional)”;
3) Critério da total visibilidade da ação social - a organização produtiva permite a
visibilidade das suas ações face ao meio ambiente social. Não se trata de organizações
secretas;
4) Critério do cadastramento oficial - são organizações que possuem registros em
instituições oficiais, determinando a sua personalidade jurídica e a sua razão social. Não
enquadramos aqui os casos fraudulentos, onde tais registros sirvam apenas para
dissimular as reais atividades escusas de alguns grupos. É objeto de enquadramento nesse
critério apenas e tão somente aquelas organizações que espelhem realmente as suas
atividades nos seus registros oficiais;
5) Critério da legalidade das operações - as organizações produtivas não são entidades
que desenvolvam atividades estabelecidas em lei como crime ou contravenção penal;
6) Critério da atividade-fim não-parlamentar e não-religiosa - as organizações
produtivas não têm como atividade-fim a ação política definida no quadro de um
parlamento, seja de nível municipal, estadual ou federal. Embora a ação política, em
termos amplos, esteja presente em suas atividades podendo até, eventualmente, conduzí-
la a empreender alguma ação direta ou indireta na esfera parlamentar, essa não é a
280
atividade-fim que caracteriza a organização. De igual modo, também não são
organizações que desenvolvam prioritariamente atividades religiosas.
Desta forma, estamos alijando da consideração de organizações produtivas e
consequentemente do conceito de organizações substantivas, no presente estudo, dentre
outros, os grupos que compõem:
a) sociedades secretas, tais como a maçonaria e algumas seitas religiosas;
b) organizações eminentemente religiosas como igrejas e seitas de diversas matizes;
c) partidos políticos de quaisquer ideologias;
d) organizações que praticam crimes e contravenções penais, tais como quadrilhas
organizadas, entidades do jogo do bicho e assemelhados;
e) equipes e torcidas organizadas de futebol e outros esportes, como também blocos
carnavalescos;
f) condomínios residenciais, grupos de vizinhança não oficializados, e demais
organizações que não atendam a todos os seis critérios acima detalhados.
As significações específicas de processos administrativo-organizacionais, de
emancipação, bem como a noção de predominância, que compõem a definição de
281
organizações substantivas (acima apresentada) serão detalhadas nos Capítulos III e IV
deste trabalho.
Da definição de organizações substantivas, pode-se depreender que elas, tal como as
concebemos, fazem parte de todo um grande esforço desenvolvido por mulheres e
homens em diversas épocas e sob variadas formas organizacionais — o esforço pela
emancipação humana — do qual a história e os estudos recentes nos dão uma gama
infinda de exemplos.
É o mesmo que dizer que o esforço organizado, no campo da produção, com vistas à
emancipação do homem não é inaugurado pelas organizações substantivas. Enquanto tipo
de organização produtiva, nos moldes como o conhecemos, é um fenômeno bastante
recente. A grande expansão desse fenômeno data do fim da década de 60, quando dos
movimentos mundiais pelas liberdades e pela emancipação. Não se pode negar, como
afirmam Huber (1985) e Rothschild-Whitt (1982), a fonte de inspiração que os
movimentos sociais dos anos 60 significaram para a criação de uma infinidade de
organizações de cunho emancipatório. Ousamos até a afirmar, mesmo sem contar com
dados levantados cientificamente, que a maioria dos fundadores de organizações
substantivas foram direta ou indiretamente afetados pelos referidos movimentos.
Entretanto, como vimos no breve panorama delineado na seção precedente, os esforços
empreendidos em prol da emancipação humana e, conduzidos através de organizações
282
produtivas, vem de longe na história e assumem formas variadas, em função de três
dimensões fundamentais: tempo, espaço e cultura.
Queremos dizer que cada esforço que desemboca em experiências emancipatórias
históricas é marcado fundamentalmente pelos ditames, desafios e condições específicas
de uma época definida e também pelo estágio das técnicas e tecnologias que, por um lado
limitam e, por outro lado, possibilitam a produção naquele período histórico.
A todos os fatores relacionados à dimensão temporal, adiciona-se aqueles referentes ao
lugar, ao cenário onde decorre e se delimita a vida humana associada, ao tipo de região
privilegiada pelos indivíduos que estão implicados nas ações emancipatórias, o lugar
onde vivem. Aspectos particulares do espaço também influenciam a natureza dos
processos produtivos. Segundo Guerreiro Ramos,
“Diferentes categorias de tempo e espaço vital
correspondem a tipos diferentes de cenários
organizacionais.”(Guerreiro Ramos, 1981, p. 136).
Em virtude do caráter coletivo dessas experiências, a atribuição de sentido à emancipação
é culturalmente definida. As formas e modalidades do alcance da autorealização, da
liberdade, bem como a prática da responsabilidade social adquirem seus contornos e
conteúdos em função também das práticas culturais empregadas e do sentido que é
atribuído ao poder.
283
Desse modo, da imbricação entre as dimensões tempo, espaço e cultura emergem as
organizações produtivas de cunho emancipatório, sob inúmeras matizes.
As organizações substantivas são organizações atuais, contemporâneas, quase sempre
urbanas, ligadas estreitamente aos fenômenos da massificação e complexidade urbanas,
da industrialização que desequilibra a ecologia, da padronização social, dentre outros
aspectos, que caracterizam as crises das sociedades envoltas no capitalismo tardio. As
organizações substantivas participam ativamente dessa “cultura”, fruto de uma época em
que todos os grandes sistemas e modelos sociais, políticos e produtivos encontram-se em
xeque. A partir desse caldo de cultura, os membros dessas organizações atribuem o
sentido e definem as práticas específicas que se relacionam ao ideal de emancipação. Elas
se multiplicam a partir do final dos anos 60, fazendo parte portanto de toda a ebulição
social que caracteriza a segunda metade deste século.
Novamente ressaltamos aqui a importância da imbricação entre as dimensões tempo,
espaço e cultura. Daí buscarmos estudar na presente pesquisa determinadas organizações
produtivas fundadas em períodos recentes, presentes no espaço de um grande centro
urbano industrial (Salvador, Bahia), nas quais seus membros afirmam estar ativamente
engajados na emancipação humana, indicando-a até como a própria razão de ser das suas
organizações.
284
Pode-se também deduzir que as organizações substantivas apresentam diversas
similaridades com aquelas organizações caracterizadas como “cooperativas”, “projetos
alternativos”, “contra-instituições”, “empresas alternativas”, “iniciativas emancipatórias”,
“empresas autogestionárias”, “empresas associativas”, e ainda os tipos ideais
“coletivistas” e “isonomias” desenvolvidos, respectivamente, por Rothschild-Whitt
(1982) e por Guerreiro Ramos (1981), todos apresentados na seção anterior.
O que gostaríamos de destacar, entretanto, é que para o nosso conceito de organização
substantiva, não importa a forma jurídica da organização produtiva, ou ainda a definição
teórica que estudiosos da ciência social lhe atribuam, e sim a predominância do tipo de
racionalidade que está na base das ações dos indivíduos enquanto membros do grupo e as
práticas desse grupo com respeito ao compromisso pela emancipação do homem. Disto
pode-se inferir, que uma organização substantiva estaria muito mais facilmente inserida
em quaisquer das categorias apresentadas na seção anterior (“empresas alternativas”,
“organizações coletivistas”, etc.), do que na categoria de empresa privada tradicional,
entendida aqui como a organização empresarial que persegue como objetivo primordial a
maximização do rendimento dos proprietários pelo incremento máximo possível do
retorno dos investimentos material e financeiro.
Nesse sentido, pouco importa se a organização em questão está legalizada como uma
cooperativa, uma organização não governamental, uma sociedade civil sem fins
lucrativos, uma associação ou uma empresa privada. Os critérios indicados para ser
285
considerada como substantiva superam em muito a questão da forma jurídica que assume
a organização perante a sociedade burocratizada.
Também não exigimos a priori, a obediência a modelos pré estabelecidos, como por
exemplo, os modelos de autogestão. Cremos que, pela sua diversidade, as organizações
substantivas, em seu conjunto, compõem uma multiplicidade e como tal, implica a
singularidade e a heterogeneidade. Encerrá-las numa definição que já imponha um
modelo de gestão prévio seria perder a chance de apreender a riqueza dessa
multiplicidade. Ademais, a simples prática da autogestão ou de qualquer outro modelo de
gestão em si mesmo, não implica necessariamente a predominância da razão substantiva
ou um esforço emancipatório com relação à sociedade. Segundo Jacques Godbout,
“Quando se aplica a autogestão aos consumidores, tende-
se a esquecer dos trabalhadores. […] A título de
ilustração, citamos esta frase de uma ingenuidade
alarmente dos promotores de um restaurante autogerido
pelos consumidores, que afirmava orgulhosamente: ‘os
três responsáveis são assalariados da associação ... e
portanto dispensáveis a cada semana’. […] Mas o inverso
é também verdadeiro. Assim, a autogestão pelos
trabalhadores do Café Campus, em Montréal, conduziu à
eliminação dos estudantes, dos clientes de sua estrutura e,
ao recurso à relação puramente comercial como
286
mecanismo de ligação com a clientela” (Godbout, 1986,
p. 119, trad. livre).
Obviamente que nem sempre tais fatos lamentáveis acontecem. Não são a regra. Porém,
acreditamos que também não seja regra que a adoção de um determinado modelo de
gestão, em si mesmo, implique necessariamente ideais e, principalmente, práticas
emancipatórias efetivas.
Existem muitas e muitas formas de arrefecer a concentração de poder hierárquico, de
minimizá-lo. Acreditamos, e talvez este estudo ajude modestamente a comprovar, que o
debate racional em termos substantivos (conf. Guerreiro Ramos, 1981) e as ações
orientadas ao entendimento (conf. Habermas, 1987) podem gerar formas altamente
diversificadas e criativas para lidar com as questões relacionadas ao poder nas
organizações, abrindo efetivamente o caminho para a concretização de práticas
emancipatórias com vistas ao ambiente social mais amplo.
Assim, baseados tanto na crença de que a predominância da razão substantiva numa
organização pode liberar a criatividade, engendrar formas e ações multivariadas (e até
inusitadas), tanto na dinâmica acelerada de mudança e de inovação que as organizações
contemporâneas apresentam, é que elaboramos a definição de organizações produtivas
substantivas (acima apresentada). Tal definição pretende ter o caráter amplo, frisando
apenas os aspectos e traços essenciais dessas organizações: a predominância da
287
racionalidade substantiva em seus processos e a presença do ideal da emancipação
humana em suas finalidades e em suas práticas concretas.
Questões abordadas neste estudo:
Ao observamos a dinâmica da grande maioria das organizações produtivas
contemporâneas, podemos constatar que os fundamentos que acima descrevemos para
caracterizar as organizações substantivas, não são os mesmos fundamentos
predominantes nas ações dos participantes daquelas outras organizações.
O imperativo econômico (baseado na utilidade, na rentabilidade e na maximização de
recursos) tomado em si mesmo enquanto fim e, portanto, liberado da regulação ético-
política, tende muito mais para o lado do primado do cálculo egoístico de consequências.
Essa tendência despreza o balanço/avaliação éticos, o debate racional e os outros
fundamentos da ação racional substantiva, aos quais nos referimos acima. A não
consideração desses fundamentos enseja o largo emprego de estratégias interpessoais nas
ações dos indivíduos para o alcance de finalidades técnicas, econômicas e de dominação.
Essa parece ser a “regra geral” que guia as ações dos participantes das organizações
produtivas contemporâneas, principalmente aquelas que têm o mercado como a sua fonte
de recursos necessários à sobrevivência. O que indica a larga predominância de uma
racionalidade do tipo instrumental.
288
Por conseguinte, as questões que vêm à tona são: poderiam as ações racionais
substantivas ser predominantes no conjunto de atos dos membros de uma organização
produtiva contemporânea ? Em caso positivo, como tais ações são praticadas no
desenvolvimento dos processos organizacionais ? Que tipo de práxis administrativa disso
decorre ? Quais são as condições possibilitadoras dessa predominância ? Tal
predominância não acarretaria necessariamente o insucesso econômico dessas
organizações ?
Nesse contexto, este trabalho é justamente uma tentativa de lançar algumas luzes sobre
tais questões, a partir dos resultados obtidos com um estudo de casos múltiplos, ou seja,
realizado junto a três organizações produtivas situadas em Salvador, Bahia.
Para fazer face às questões acima, empreendemos um estudo de natureza qualitativa,
mediante o emprego de três métodos de levantamento de dados: observação participante,
entrevistas e análise de documentos. No próximo capítulo, descreveremos os
procedimentos adotados no desenvolvimento do trabalho de campo.
289
Capítulo III - O Trabalho de Campo
Neste capítulo, descreveremos sinteticamente o percurso cumprido no trabalho de campo.
Enquanto estudo qualitativo, este trabalho se compõe de um estudo de casos múltiplos
(Godoy, 1995), pois levantamos dados e empreendemos a análise da racionalidade nos
processos organizacionais de três empresas situadas em Salvador, capital do estado da
Bahia. A devida apresentação dessas empresas e do contexto onde operam será objeto do
Capítulo V.
Empregamos aqui a expressão “estudo de caso” como um tipo de pesquisa qualitativa,
não confundindo-o com o instrumento de ensino-aprendizagem do “método do caso”
(muito utilizado nas escolas de administração). Segundo Becker (1993), a expressão
“estudo de caso” vem da tradição de pesquisa médica e psicológica, referindo-se a análise
detalhada de um caso individual que explica a dinâmica e a patologia de uma determinada
doença. O estudo de caso em ciências sociais enfoca, em geral, o caso de uma
organização ou comunidade.
Para Yin, o estudo de caso,
290
“É uma maneira de empreender pesquisa empírica que
examina fenômenos contemporâneos dentro de seu
contexto de vida real, em situações em que os limites
entre o fenômeno e o contexto não estão claramente
estabelecidos, utilizando-se variadas fontes de evidência.”
(Yin, 1989, p. 23, trad. livre).
Godoy (1995) aponta algumas características importantes do estudo de caso, as quais têm
uma estreita relação com os objetivos deste estudo e as organizações que nos propomos a
pesquisar:
“O estudo de caso tem se tornado a estratégia preferida
quando os pesquisadores procuram responder ‘como’ e
‘por quê’ certos fenômenos ocorrem, quando há pouca
possibilidadede de controle sobre os eventos estudados e
quando o foco de interesse é sobre fenômenos atuais, que
só poderão ser analisados dentro de algum contexto de
vida real.” (Godoy, 1995, p. 25).
Uma vez que interessa-nos identificar e, acima de tudo demonstrar “como” a razão
substantiva se concretiza na práxis administrativa de organizações atuais, a opção do
291
estudo de caso nos pareceu adequada, reforçada pelas declarações de Becker sobre os
objetivos específicos desse método:
“O estudo de caso geralmente tem um propósito duplo.
Por um lado, tenta chegar a uma compreensão
abrangente do grupo em estudo: quem são seus membros
? Quais são suas modalidades de atividade e interação
recorrentes e estáveis ? Como elas se relacionam umas
com as outras e como o grupo está relacionado com o
resto do mundo ? Ao mesmo tempo, o estudo de caso
também tenta desenvolver declarações teóricas mais
gerais sobre regularidades do processo e estrutura
sociais.” (Becker, 1993, p. 118).
Na medida em que a tentativa de demonstrar como a racionalidade substantiva se
manifesta numa organização guia os nossos passos, visando esclarecer o que seria uma
organização substantiva, faz-se mister avançar sobre a compreensão abrangente dos
membros da organização, enquanto grupo. O que implica examinar como se dão as
interações entre eles e, também a ação social da organização, mediante as práticas
administrativas que as concretizam. Assim é que optamos pelo estudo de caso, pois os
estudos sobre a razão substantiva no Brasil, como vimos no Capítulo I, se limitam à
dimensão conceitual.
292
No presente estudo de casos múltiplos, utilizamos como método principal a observação
participante, complementado por entrevistas e análise de documentos. Sobre a utilização
de múltiplos métodos na realização do estudo de caso, Godoy afirma que,
“No estudo de caso, o pesquisador geralmente utiliza uma
variedade de dados coletados em diferentes momentos,
por meio de variadas fontes de informação.[…] Os dados
devem ser coletados no local onde eventos e fenômenos
que estão sendo estudados naturalmente acontecem,
incluindo entrevistas, observações, análise de documentos
e, se necessário, medidas estatísticas.” (Godoy,1995, pp.
26-27).
A esse respeito, Becker se posiciona:
“O observador não se limita a observação apenas. Ele
pode também entrevistar membros do grupo, seja
isoladamente ou em grupos. No primeiro caso, ele pode
examinar as origens sociais e as experiências anteriores
de um participante, assim como suas opiniões
particulares sobre questões correntes. No último, ele está
com efeito ‘penetrando’ nos tipos habituais de
comunicações correntes num grupo, vendo o que os
293
membros dirão quando na companhia de outros membros.
[…] O observador também verificará que é útil coletar
documentos e estatísticas (minutas de reuniões, relatórios
anuais, recortes de jornal) gerados pela comunidade ou
organização.” (Becker, 1993, p. 122).
Sendo a observação participante o método que primordialmente guiou o nosso trabalho de
campo, gostaríamos de fazer algumas considerações específicas sobre ele.
A observação participante:
Para muitos autores, o método antropológico moderno tem a sua sistematização originada
na “Introdução” do célebre estudo Argonautas do pacífico ocidental, elaborado por
Malinowski no início deste século. Nesse texto, o autor aponta os dois conceitos
principais que caracterizam o método: o trabalho de campo e a observação participante.
Tal modelo, difundido por Malinowski, é aplicado inicialmente num estudo junto aos
nativos das ilhas Trobriand, configurando um marco histórico no desenvolvimento da
ciência da antropologia. Malinowski viveu longos períodos nas aldeias, lado a lado com
os nativos, aprendendo a sua língua, participando cotidianamente de suas vidas, enquanto
realizava as observações necessárias ao desenvolvimento do seu estudo.
294
O trabalho de Malinowski acarretou ressonâncias em vários setores das ciências sociais,
não só a nível do método, mas também do desenvolvimento da teoria. Para Peirano, “foi o
‘kula’ de Malinowski que permitiu a Marcel Mauss conceber o ‘fato social total’ e
ajudou Karl Polanyi a discernir a ‘grande transformação’ no Ocidente” (Peirano, 1992,
p. 35).
Assim, a observação participante diz respeito a uma determinada situação de pesquisa
onde o observador e os observados participam de uma relação face a face contínua,
gerando um processo de coleta de dados que se dá no próprio ambiente de ação dos
observados.
No âmbito da observação participante, há um deslocamento da percepção que se tem dos
observados, comparativamente a alguns outros métodos: os observados passam não mais
a ser vistos como objetos de pesquisa, e sim como sujeitos que interagem num dado
projeto de estudos.
Aktouf (1992), citando Bruyn, apresenta sob a forma de três axiomas a essência da
observação participante:
a) O observador participante divide a vida, as atividades e os sentimentos das pessoas,
numa relação face a face;
295
b) O observador participante é um elemento normal (não forçado, não simulado, não
estranho) na cultura e na vida das pessoas observadas;
c) O papel do observador participante é um reflexo, no seio do grupo observado, do
processo social da vida do grupo em questão.
Como Aktouf, Becker nos dá uma caracterização do método a partir do observador:
“O observador participante coleta dados através de sua
participação na vida cotidiana do grupo ou organização
que estuda. Ele observa as pessoas que está estudando
para ver as situações com que se deparam normalmente e
como se comportam diante delas. Entabula conversações
com alguns ou com todos os participantes desta situação
e descobre as interpretações que eles têm sobre os
acontecimentos que observou.” (Becker, 1993, p. 47).
A maior vantagem do método da observação participante é a posição privilegiada do
pesquisador face aos fenômenos que ele quer conhecer, a sua condição de insider permite
que ele tenha acesso direto aos dados, sem intermediações.
Contudo, o método também contém as suas limitações e desvantagens.
296
Em primeiro lugar, aquilo que proporciona a maior vantagem tem o seu preço: um
método que minimiza a filtragem do informante, transfere praticamente toda a
responsabilidade para a interpretação do pesquisador. O que equivale a um pesado
investimento na subjetividade. Fato que proporciona o debate sobre a validade das
análises e conclusões do estudo.
Com relação a validade, Becker chama a atenção para o aspecto de que a observação
participante normalmente gera uma grande quantidade de dados, colocando uma
dificuldade adicional para o pesquisador:
“Em face desta quantidade de dados ‘ricos’ e variados, o
pesquisador enfrenta o problema de como analisá-los
sistematicamente e, então, apresentar suas conclusões de
modo tal que convença outros cientistas de sua validade.
A observação participante (na verdade, a análise
qualitativa de modo geral) não se saiu bem com este
problema e, geralmente, as evidências completas para as
conclusões e os processos através dos quais elas foram
alcançadas não são apresentados, de modo que os
leitores se vêem em dificuldades para fazer sua própria
avaliação sobre elas e têm que confiar em sua fé no
pesquisador.” (Becker, 1993, p. 48).
297
O autor destaca que uma apresentação mais adequada dos dados, das operações de
pesquisa e das inferências do pesquisador pode ajudar a resolver este problema. No
entanto, face aos métodos quantitativos, a desvantagem neste aspecto é flagrante:
“Dados estatísticos podem ser resumidos em tabelas e
medições descritivas de vários tipos, assim como os
métodos através dos quais elas foram manuseadas podem,
com frequência, ser relatados de maneira precisa no
espaço necessário para imprimir uma fórmula. […] Os
dados da observação participante não se prestam a tal
resumo pronto. Eles consistem frequentemente de tipos
muito diferentes de observações, as quais não podem ser
simplesmente categorizadas e contadas sem perder algo
de seu valor como evidência.[…] Todavia, está
claramente fora de questão publicar todas as
evidências.” (Becker, 1993, p. 63, grifo nosso).
Para solucionar a questão, Becker adota uma sistemática que ele denomina “história
natural”: ela consiste em ir apresentado as evidências tal como elas chegaram a atenção
do pesquisador durante os sucessivos estágios do trabalho de campo; o que não implica a
apresentação de todos os dados, mas somente das formas características que os dados
assumiram em cada estágio. Assim, a evidência seria avaliada à medida que a análise é
apresentada. O autor acredita que desse modo o leitor poderá acompanhar os detalhes da
298
análise e ver como e em que bases se chegou às conclusões, o que daria ao leitor a
oportunidade de fazer o seu próprio julgamento quanto à prova apresentada.
Uma outra questão muitas vezes levantada no debate sobre esse método diz respeito a
influência que a presença do pesquisador causaria, levando os observados a se
comportarem de forma fictícia.
Ao nosso ver, a interinfluência observado-observador é inevitável. Não se deve fantasiar
sobre este problema. Uma vez que são pessoas em relação contínua, num dado período de
tempo, compartilhando tarefas, é muito provável que ocorra influências mútuas. O ponto
nevrálgico entretanto, situa-se no grau de influência alcançado, ou seja, se ele é suficiente
ou não para alterar substancialmente o comportamento dos observados e/ou comprometer
a capacidade analítica do pesquisador. O que remete o tratamento do problema para o
papel que o observador assume no grupo além de como ele, observador, é percebido pelos
membros da equipe.
Um dos aspectos mais desafiantes no emprego da observação participante para a pesquisa
em organizações produtivas diz respeito ao papel a ser desempenhado pelo observador.
Ele deve assumir tarefas regulares na empresa como se fosse um dos seus membros
permanentes. O seu engajamento nas atividades cotidianas é condição sine qua non para a
aplicação dessa metodologia, sem o que teríamos, no máximo, uma prática da observação
direta e não da observação participante.
299
Aktouf (1992) ressalta que o observador deve assumir um papel que ele possa bem
desempenhar, cujas tarefas sejam compatíveis com a sua capacidade e suas habilidades.
Vemos aqui um ponto importante para a pesquisa em organizações produtivas. Ao
assumir tarefas regulares na organização, seria desejável que o pesquisador atendesse às
expectativas de desempenho tal como qualquer outro trabalhador. O pesquisador não
deve ser um peso negativo na performance do grupo. A sua efetividade, sua assiduidade e
seu interesse são essenciais.
Ser aceito pelo grupo também é importante, pois assim os participantes poderão sentir-se
mais à vontade para agir naturalmente (Aktouf, 1992).
Becker (1993) ressalta que a forma como o pesquisador é percebido pelo grupo é também
um fator interveniente nessa problemática. Se o observador não é percebido como um
“espião”, os observados não terão o receio de ser autênticos.
Em suma, as desvantagens e dificuldades de ordem comportamental são, de um lado o
investimento na subjetividade no pesquisador, de outro lado, o problema da relação com
os observados e também a questão da autenticidade do comportamento destes. O
pesquisador deverá dosar/controlar o grau de identificação e envolvimento com os
observados visando não perder o seu senso crítico, como também não perder de vista o
rumo da pesquisa. A interinfluência advinda da relação observador-observados é
inevitável, o que pode ser evitado é o comprometimento da análise, o que exige
habilidades comportamentais e reflexões contínuas por parte do observador.
300
Quanto a autenticidade e veracidade do comportamento dos observados, Becker (1993)
destaca um ponto muito importante: este é um problema não só da observação
participante mas, também de todos os estudos qualitativos; neste sentido, a observação
participante é até um método privilegiado, pois não seria muito mais fácil ser inautêntico
e desonesto ao responder solitariamente um questionário, ou ainda ao responder às
perguntas de uma entrevista durante alguns minutos, do que falsear comportamentos
durante meses seguidos de convívio face a face ?
A observação participante é uma das “marcas registradas” da antropologia. Entretanto,
vê-se que este método vem sendo aplicado com sucesso na pesquisa organizacional.
Citaremos alguns dos autores que aplicaram o método com êxito.
Alguns exemplos de emprego da observação participante em estudos organizacionais:
Becker (1993) empreendeu nos anos 50 numerosos estudos no meio hospitalar,
patrocinados pela Universidade do Kansas.
Tom Lupton (1985) serviu-se da observação participante para estudar a influência da
equipe de trabalho sobre o estabelecimento das normas de produção em fábricas inglesas.
Segundo o autor,
301
“Eis aqui o método que eu utilizava para desenvolver
antropologia social: eu me engajava inicialmente como
trabalhador, eu me apresentava a todos como
pesquisador, e após eu me inseria no grupo de trabalho.
O método consiste essencialmente em sofrer em si próprio
as pressões sociais, em observar os acontecimentos e as
relações entre as pessoas, escutar as conversas e, o que é
primordial, discutir com os colegas de trabalho as razões
pelas quais eles justificam seus comportamentos e
explicam o comportamento dos outros” (Lupton, 1985, p.
324, trad. livre).
Aktouf (1992) realizou pesquisas entre 1978 e 1987, mediante o emprego da observação
participante, em oito empresas no Canadá e na Argélia. As empresas pertenciam aos
setores financeiro, produção de papel, de cerveja, de petróleo e também de produtos
artesanais. Aktouf é hoje um dos principais defensores do emprego da observação
participante em pesquisas organizacionais. Metade de um dos seus livros —
Méthodologie des sciences sociales et approche qualitative des organisations — é
inteiramente dedicado a esse método etnográfico, ressaltando as suas particularidades
quando utilizado na pesquisa em organizações.
Villemure (1994) concluiu um estudo intitulado Les particularités du management
chinois em 1994, elaborado num hospital da República Popular da China. Para realizá-lo,
302
a autora aprendeu a língua chinesa e se valeu da observação participante como método
principal para a coleta de dados.
Bouchard (1985), realizou na segunda metade dos anos 70, um notável estudo sobre a
profissão de caminhoneiro em rotas de grande distância. Sua pesquisa teve lugar na
Brazeau Transport, empresa de transporte rodoviário de cargas que cumpria regularmente
trajetos como o de Matagami - Baie James - Matagami (compreendendo 1.800 km, em
ida e volta), no nordeste do Québec, Canadá. Durante dois anos, Bouchard viajou junto
com os caminhoneiros, em média dez dias por mês. Sua orientação partia da captação da
representação que os caminhoneiros construíam de sí próprios, do seu trabalho e do seu
mundo, vivendo com eles no dia a dia, para atingir a compreensão mais profunda desse
curioso métier. Suas revelações são de uma riqueza admirável. Passando pela
decodificação dos signos presentes no imaginário dos caminhoneiros, tal como o
significado do próprio caminhão e seu singular design, até a atitude perante o risco da
estrada e a exploração a que são normalmente submetidos aqueles profissionais,
Bouchard nos demonstra como a visão que geralmente temos daquela profissão está longe
do que o que ela realmente é, pois foi forjada evidentemente fora do seu universo. Para
ele, suas conclusões “não fazem senão que testemunhar a importância do simbólico na
sociedade moderna onde nós acreditávamos tê-lo desaparecido” (Bouchard, 1985, p.
359, trad. livre).
Guigo (1992) realizou estudos nos anos 80 que visavam discernir aspectos do imaginário
dos trabalhadores numa grande indústria automobilística francesa e também numa
303
prefeitura (3.140 funcionários) de uma municipalidade próxima de Buenos Aires. Para o
autor,
“As grandes organizações surgem como um campo
promissor para a pesquisa etnológica; como no estudo
dos objetos mais ‘tradicionais’, não se trata de apreender
a totalidade da sociedade, mais ‘de discernir níveis que
sejam comparáveis, tornando-os assim significativos’.”
(Guigo, 1992, p. 47, trad. livre).
Mintzberg (1979, 1980) utilizou um método muito próximo da observação participante
— a observação direta estruturada — para elaborar uma parte importante do seu mais
célebre estudo, o qual foi publicado sob o título The nature of managerial work. Seus
comentários são também válidos para se obter conclusões sobre a observação
participante:
“Essencialmente, eu observava o que cada um (dos cinco
dirigentes) fazia durante uma semana e registrava essas
observações sistematicamente (com o que eles
trabalhavam, quando, onde, durante quanto tempo, e
porque). Esses dados me permitiram estabelecer um
conjunto de características e de papéis no trabalho
gerencial. […] O campo da teoria organizacional tem, eu
304
creio, pago muito caro à obssessão pelo rigor na escolha
da metodologia — numerosos são os resultados que só
são significativos no sentido estatístico do termo.”
(Mintzberg, 1979, pp. 582-584, trad. livre).
Como vimos no Capítulo II, Lima & Teixeira (1994) realizaram um estudo sobre a gestão
de pequenos empreendimentos no setor de produção de hortigranjeiros, na comunidade de
Farofa, município de Igarapé, nas proximidades de Belo Horizonte. O estudo implicou
uma abordagem fenomenológica do processo administrativo, combinada com a
metodologia da observação participante. Aos autores interessava conhecer o cotidiano
administrativo (feliz expressão criada por eles) daquelas unidades produtivas, sendo
então a observação participante uma pedra angular para o alcance desse objetivo.
Schwartzman (1989) elaborou um estudo etnográfico sobre reuniões administrativas no
Midwest Community Mental Health Center, uma organização situada em Midtown, no
estado de Illinois (EUA). Durante um ano e meio, entre 1975 e 1976, a autora colheu
dados mediante observação participante, totalizando mais que 700 horas de participação
efetiva em reuniões.
Aqui apresentamos apenas alguns poucos exemplos das muitas aplicações deste método
no estudo de organizações.
Em seguida, trataremos de apresentar o detalhamento do nosso trabalho de campo.
305
O trabalho de campo deste estudo:
Godoy estabelece uma relação estreita entre o estudo de caso em organizações e a
observação participante:
“A observação tem um papel essencial no estudo de caso.
Quando observamos, estamos procurando apreender
aparências, eventos e/ou comportamentos.[…] Na
observação participante, o observador deixa de ser o
espectador do fato que está sendo estudado. Nesse caso,
ele se coloca na posição dos outros elementos envolvidos
no fenômeno em questão. Este tipo de observação é
recomendado especialmente para estudos de grupos e
comunidades.” (Godoy, 1995, p. 27).
Becker também situa a observação participante num plano totalmente adequado ao estudo
de caso em organizações:
306
“O cientista social que realiza um estudo de caso de uma
comunidade ou organização tipicamente faz uso do
método da observação participante em uma de suas
muitas variações, muitas vezes em ligação com outros
métodos mais estruturados, tais como entrevistas. A
observação dá acesso a uma ampla gama de dados,
inclusive os tipos de dados cuja existência o investigador
pode não ter previsto no momento em que começou a
estudar, e portanto é um método bem adequado aos
propósitos do estudo de caso.” (Becker, 1993, p. 118).
Quatro razões nos levaram a optar pelo emprego da observação participante como método
principal do nosso trabalho de campo:
1) A plena adequação do método à natureza do trabalho aqui realizado: um estudo
qualitativo de casos múltiplos em organizações produtivas;
2) A congruência do emprego da teoria da ação comunicativa no bojo da análise dos
dados com um método que implica participação efetiva nos processos de “entendimento”.
Conforme veremos com detalhes no Capítulo IV, Habermas (1987) afirma
categoricamente que a “compreensão de uma manifestação simbólica exige a
participação em um processo de entendimento”, ele argumenta que o sujeito só tem
acesso ao mundo da vida de um dado grupo quando deste participa como membro;
307
3) Os objetivos que norteiam este trabalho. Julgamos que seria mais esclarecedor
demonstrar empiricamente a concretização da razão substantiva em organizações
produtivas por meio da realização de um estudo etnográfico, a partir do qual teríamos
mais condições de captar e relatar o desenrolar do cotidiano administrativo das
organizações estudadas;
4) O exame da literatura (comentada no Capítulo II) referente a tipos de organização que
possuem semelhanças com aquelas onde realizamos o trabalho de campo, aliado a uma
pesquisa anteriormente efetuada (Serva, 1993 a) em organizações que também guardam
semelhanças com as três empresas aqui analisadas. Tais estudos, nos deram indícios de
que poderíamos encontrar grupos que desempenham suas tarefas com um mínimo de
padronização administrativa. Em situações como essas, onde não são utilizados modelos
prévia e tecnicamente definidos de organização do trabalho, os quais são largamente
difundidos nas escolas de administração e adotados pela grande maioria das empresas,
teríamos menores dificuldades de entender o funcionamento das organizações
pesquisadas participando cotidianamente de suas atividades, pois assim estaríamos mais
livres das referências aos modelos usualmente praticados, abrindo a nossa percepção ao
novo.
A pesquisa de campo empreendida nas três organizações que são o objeto desse estudo,
implicou a nossa participação efetiva em suas atividades durante oito meses ininterruptos,
mais precisamente, de abril a dezembro de 1993. Assumimos tarefas regulares nas três
308
organizações, sendo a maioria das tarefas ligadas a administração dos negócios, embora
não somente restritas a essa área. Estabelecíamos, em conjunto com os membros daquelas
empresas, horários distribuídos pelos dias da semana, e que eram rigidamente cumpridos
por nós. A efetividade do observador enquanto membro da organização pesquisada é um
aspecto de suma importância, pois parte da aceitação e também da confiança que o
mesmo poderá angariar advêm da sua regularidade, disponibilidade, efetividade e
interesse no cumprimento das tarefas assumidas. Aceitação e confiança dos membros do
grupo para com o observador, são, dentre outras, condições propícias para a legimitidade
dos dados coletados (Aktouf, 1992).
A primeira organização é composta de três suborganizações autônomas: uma escola
infantil com cerca de trezentos alunos, uma produtora de arte voltada essencialmente para
a produção de peças teatrais e apresentações de dança contemporânea, e um “condomínio
de serviços”, isto é, um centro congregando 15 profissionais que prestam serviços de
psicoterapia individual e de grupo, aulas de música, psicopedagogia, medicina naturista e
homeopática, ajustamento corporal, aulas de teatro.
Nessa organização, realizamos trabalhos tipicamente administrativos na produtora de
arte, acompanhamos os trabalhos de montagem dos eventos e assistimos algumas peças.
No condomínio de serviços, ajudamos nos trabalhos administrativos, participamos das
reuniões gerais de coordenação e avaliação, como também de atividades coletivas não
administrativas mas, que faziam parte das práticas grupais, como por exemplo, as sessões
semanais de meditação que congregavam os elementos da equipe. Na escola infantil,
309
como não era recomendável (devido à possibilidade de perturbar o andamento das aulas)
a nossa presença dentro das salas de aula, participamos das reuniões entre o corpo
docente, coordenação pedagógica e direção, onde se discutia todos os problemas
verificados no decorrer do ano letivo; das reuniões eminentemente pedagógicas —
verdadeiras oficinas construtivistas de aperfeiçoamento em educação — quando era
desenvolvido o treinamento dos professores; dos eventos promovidos na escola , como a
festa junina; das reuniões de pais com a direção para esclarecimentos, discussões
pertinentes à pedagogia empregada e ao funcionamento da escola.
A segunda organização congrega também três subunidades. Um “condomínio de
serviços”, um pouco semelhante ao citado acima, uma editora direcionada à divulgação
da alimentação e medicina natural, filosofia e análise social. E uma terceira célula,
situada num sítio à 70 km. de Salvador, onde são levadas adiante experiências de vida
comunitária, agricultura natural e psicoterapias de grupo.
Nessa empresa, realizamos diversos trabalhos administrativos na editora, nosso principal
acesso ao cotidiano do grupo, já que obviamente seria imprudente e tecnicamente inviável
a “participação” numa consulta médica ou sessão terapêutica. Podemos destacar os
trabalhos de organização dos dados relativos às vendas, como estatísticas de desempenho
das zonas de vendas, classificação de clientes, e correlatos. A atividade mais rica,
contudo, era a participação na reunião semanal, oportunidade onde todos os membros se
reuniam e discutiam abertamente os problemas, tomavam decisões, dividiam os encargos
310
comuns. Conhecemos também o sítio, as atividades normais e extraordinárias, tais como
as comemorações e festas.
A última organização é uma pequena clínica psicológica, composta de sete profissionais
liberais e três funcionários administrativos, que pode também ser considerada um
“condomínio de serviços”, embora de amplitude menor que os anteriores, pois oferece
adicionalmente serviços de medicina homeopática, psicopedagogia e de lazer organizado,
como excursões ecológicas e “acampamento verde”.
A observação participante nessa organização centrava-se nas reuniões semanais,
oportunidade em que os profissionais se encontravam para dividir o trabalho comum,
discutir os caminhos trilhados pelo grupo, tomar decisões, etc. Por diversas vezes, éramos
solicitados a contribuir com informações específicas como legislação comercial, dados
econômicos, relacionamento com bancos, e outras do gênero, às quais procurávamos
atender com a máxima rapidez e qualidade, uma vez que tais demandas concretizavam a
nossa efetiva participação.
Outros métodos qualitativos foram empregados para complementar o levantamento de
dados nas três empresas: entrevistas estruturadas e análise de documentos. Para esclarecer
e aprofundar determinados aspectos, captar os contornos e significados de algumas
representações, levantar o histórico da organização, obter uma visão do conjunto dos
membros do grupo sobre determinadas questões, dentre outros objetivos, realizamos
diversas entrevistas, registrando-as com o auxílio de gravadores. No levantamento de
dados jurídicos, de projetos e suas avaliações, das normas e comunicações internas
311
formalizadas/escritas e do relacionamento formal com outras organizações do meio
ambiente, consultamos os documentos nos arquivos das empresas pesquisadas.
As notas tomadas durante a observação participante e os demais dados obtidos pelas
entrevistas e análise de documentos foram classificadas em conjuntos específicos.
Inspiramo-nos em Aktouf (1992) e denominamos tais conjuntos “rubricas”. Assim, cada
rubrica comporta um conjunto de processos organizacionais e práticas administrativas
específicas, aspectos, idéias e representações concernentes a uma dada dimensão do
cotidiano da empresa. Listamos abaixo as onze rubricas que guiaram as observações:
1) Hierarquia e normas - as formas, critérios e estilos pelos quais o poder é exercido. Os
métodos de influência empregados. Configuração da estrutura hierárquica. Critérios ou
requisitos para a ocupação de cargos ou espaços hierárquicos. Tipos de autoridade.
Processos de emissão de ordens. Natureza das normas, escritas ou não. Processos de
elaboração e estabelecimento das normas. Instrumentos e/ou formas de difusão das
normas. Cumprimento das normas. Consequências da infração às normas. Rigidez ou
flexibilidade;
2) Valores e objetivos organizacionais - conjunto dos valores predominates na
organização, sua origem e formas de difusão. Objetivos do grupo. Processo de
estabelecimento dos objetivos, formal ou não. Comunicação dos objetivos;
312
3) Tomada de decisão - processos decisórios, estilos mais frequentes. Diferenciação de
competências decisórias na organização, subgrupos/pessoas que decidem. Dimensões
determinantes no processo decisório;
4) Controle - formas e finalidades do controle. Indivíduos responsáveis pelo controle.
Instrumentos utilizados para controle;
5) Divisão do trabalho - critérios e formas utilizadas para a divisão do trabalho.
Intensidade de especialização. Flexibilidade e multifuncionalidade. Departamentalização;
6) Reflexão sobre a organização - processos de análise e reflexão a respeito da existência
e atuação da organização no seu meio social interno e externo. Autocrítica enquanto
grupo organizado. Regularidade e procedimentos empregados para realizá-la. Em qual
nível da organização a reflexão é efetuada;
7) Conflitos - natureza dos conflitos. Estilos de manejo dos conflitos. Formas como são
encarados e solucionados os conflitos. Percepção dos conflitos: fontes de
desenvolvimento ou de risco de desagregação do grupo, atitudes consequentes.
Autonomia ou subserviência nos conflitos. Grau de tensão provocado pelos conflitos;
8) Comunicação e relações interpessoais - estilos e formas de comunicação dominantes.
Comunicação formal e informal. Linguagens específicas e seus significados.
Comunicação aberta, com feed-back, autenticidade e autonomia, ou comunicação
313
“estratégica”. Significado e lugar da palavra no cotidiano da organização. Liberdade ou
limitação da expressão. Estilos das relações entre os membros do grupo. Formalidade e
informalidade. Clima e ambiente interno dominantes, face às relações interpessoais;
9) Satisfação individual - grau de satisfação dos membros em fazer parte da organização.
Principais fontes de satisfação ou de insatisfação;
10) Dimensão simbólica - iconografia utilizada na organização. Idéias, filosofias e
valores que embasam a dimensão simbólica. Elementos do imaginário do grupo, suas
origens e mutabilidade. Relação do imaginário com as práticas cotidianas na organização;
11) Ação social e relações ambientais - ações da organização que marcam
primordialmente a sua inserção no meio social. Importância, significado e singularidade
da ação social. Congruência entre os valores professados, os objetivos estabelecidos e a
ação social concreta. Relações com outras organizações da sociedade. Redes, conexões e
integração interorganizacional.
As rubricas ou processos organizacionais estão classificadas em dois grupos,
caracterizando o grau de importância de cada classe de dados para fins de análise:
a) Processos organizacionais essenciais: hierarquia e normas, valores e objetivos,
tomada de decisão, controle, divisão do trabalho, comunicação e relações interpessoais,
ação social e relações ambientais;
314
b) Processos organizacionais complementares: reflexão sobre a organização, conflitos,
satisfação individual, dimensão simbólica.
O sentido específico dessa distinção em dois grupos e os seus efeitos sobre a
operacionalidade da análise serão discutidos no Capítulo IV.
Para efeito de complementação do processo de tomada de notas e, para aperfeiçoar a
percepção dos atos e fatos, sobretudo a autopercepção enquanto observador,
acrescentamos duas rubricas ao conjunto das onze acima descritas. Essas rubricas
adicionais são instrumentos de operação interna no manejo dos dados (Aktouf, 1992): a
primeira é reservada aos imprevistos, onde são registrados fatos e percepções sobre
aspectos não contemplados nas onzes rubricas mas, que se revelam importantes para o
próprio aprofundamento do conhecimento sobre elas.
A segunda rubrica adicional tem uma importância capital: sentimentos do observador.
Rubrica das mais essenciais, onde são registrados nossos sentimentos nas situações
vivenciadas, uma vez que o observador participante utiliza a si próprio como mais um
instrumento para a coleta de dados. Assim, nada mais necessário e salutar do que registrar
as suas reações interiores, pois elas serão de grande valia na fase de análise dos dados.
Tais registros nos dão, inclusive, a medida do envolvimento emotivo e relacional com os
observados, criando condições para contrabalançar e bem dosar a subjetividade da qual a
metodologia da observação participante é tributária.
315
Cumprida essa breve descrição dos passos seguidos no trabalho de campo e fornecidos os
devidos esclarecimentos sobre os métodos utilizados, passaremos ao capítulo seguinte,
onde apresentaremos com detalhes o processo de elaboração, o conteúdo e a
operacionalização do quadro de análise dos dados, proposto neste estudo.
316
Capítulo IV - Constituição do Quadro de Análise
Neste capítulo, apresentaremos sucintamente todos os elementos, a lógica interna e a
fundamentação do quadro analítico criado por nós para o exame dos dados colhidos no
trabalho de campo. Por meio da operacionalização do referido quadro, pretendemos
fornecer uma modesta contribuição para a ampliação do conhecimento sobre
organizações substantivas e sobre a racionalidade nas organizações em geral.
Como bem frisamos no Capítulo I, ao iniciarmos o planejamento deste quadro de análise
vimo-nos diante do mesmo impasse observado nos estudos dos colegas brasileiros sobre a
racionalidade substantiva nas organizações: a dificuldade em demonstrar explicitamente
como e quando a razão substantiva se concretiza nos processos e na dinâmica
organizacionais. A resolução deste impasse nos conduziu ao emprego de uma teoria de
ação como recurso epistemológico na análise do fenômeno estudado, tendo em vista a
natureza decididamente conceitual do estudo de Guerreiro Ramos, o qual é o ponto de
partida não só do nosso trabalho, mas também o é da maioria dos colegas brasileiros que
abordam a razão substantiva em organizações.
Assim, a partir da próxima seção, apresentaremos a nossa démarche para a constituição
do quadro de análise, começando pela complementaridade entre as teorias de Guerreiro
Ramos e de Habermas.
317
I. Razão substantiva e ação comunicativa - perspectivas de complementaridade
Como frisamos acima, optamos por ancorar a análise dos dados empíricos numa teoria de
ação.
A teoria de ação que nos parece mais adequada a esse fim é a teoria da ação
comunicativa, elaborada por Habermas. Acatando plenamente a sugestão de Barreto
(1993), descrita no Capítulo I, buscamos trabalhar com a teoria da ação comunicativa
(Habermas) e o estudo da razão substantiva realizado por Guerreiro Ramos, numa
perspectiva de complementaridade que nos proporcionasse as devidas condições para a
análise dos dados do nosso estudo, compatibilizando o arcabouço conceitual de Guerreiro
Ramos e a dinâmica da ação comunicativa, fundamentando assim o princípio de
operacionalidade da análise.
As duas abordagens, além de ter como ponto de partida a emancipação do ser humano
face aos constrangimentos a autorealização impostos pela sociedade contemporânea,
constituem um caso flagrante de complementaridade, especialmente para os que se
arriscam a estudar a razão substantiva nas organizações. A figura 1 (página seguinte),
demonstra sinteticamente os diversos pontos de conexão entre as duas teorias.
COMPLEMENTARIDADE entre TEORIA da RAZÃO SUBSTANTIVA
318
e TEORIA da AÇÃO COMUNICATIVA Razão Substantiva (Guerreiro Ramos) ação Comunicativa (Habermas) Atributo da psique do sujeito......................⇔...................... Sujeitos capazes e autônomos Senso comum .............................................⇔............................ Mundo da vida cotidiano Conceitos são derivados do e no ................⇔....................................... Teoria de ação processo da realidade Debate racional ........................................⇔...........................Ação comunicativa baseada em pretensões de validez sujeitas a crítica Superordenação ética ................................⇔.............................. Pretensões de validez sujeitas a crítica valorativa Boa regulação da vida humana .........................⇔.......................... Ação orientada ao associada entendimento Rejeição à teoria do conhecimento....................⇔..... ..................... Rejeição à teoria do conhecimento Auto-interpretação da comunidade ...................⇔......................Teoria de ação de cunho linguístico, comunicativo Valores na interpretação de fatos .................⇔.........................Contexto normativo do mundo da vida na base da interpret. Subjetividade,intersubjetividade...................⇔.......................Subjetividade,intersubjetivd.
Figura 1
A seguir, detalharemos as perspectivas dessa complementaridade, seguindo a ordem
disposta na figura 1.
319
Atributo da psique do sujeito ⇔⇔⇔⇔ Sujeitos capazes e autônomos:
Em primeiro lugar, observa-se que ambas as teorias põem em destaque o sujeito. Para
Guerreiro Ramos, a razão substantiva é um atributo do sujeito, está contida na sua psique
como recurso potencial.
Em termos da ação, para a dinamização do potencial de racionalidade, Habermas destaca
fortemente o sujeito, apontando os seus requisitos básicos para a concretização da ação
comunicativa, que são a plena capacidade de comunicação, autonomia para agir e a
responsabilidade. Segundo Habermas, no contexto da ação comunicativa, só pode ser
considerado capaz de responder por seus atos o sujeito que seja capaz, como membro de
uma comunidade de comunicação, de orientar sua ação por pretensões de validez
intersubjetivamente reconhecidas.
Não vamos nos ater demoradamente a este aspecto, uma vez que já o fizemos com
detalhes no Capítulo I, quando discutimos o movimento de revalorização do sujeito nas
ciências humanas.
Senso comum ⇔⇔⇔⇔ Mundo da vida cotidiano:
320
Guerreiro Ramos considera como ponto de partida, origem da razão substantiva a psique
humana harmonizada no senso comum, fonte da derivação dos critérios de ordenação da
vida associada:
“Primeiro, uma teoria da vida humana associada é
substantiva quando a razão, no sentido substantivo, é a
sua principal categoria de análise. […] Segundo, uma
teoria substantiva da vida humana associada é algo que
existe há muito tempo e seus elementos sistemáticos
podem ser encontrados nos trabalhos dos pensadores de
todos os tempos, passados e presentes, harmonizados ao
significado que o senso comum atribui à razão”
(Guerreiro Ramos, 1981, p.27)
Assim, o senso comum atribui o significado à razão. Consequentemente, a regulação da
vida associada necessita da comunicação, do debate, para que o senso comum se
harmonize numa dimensão ético-política:
“Uma descoberta fundamental, resultante da herança de
ensinamentos dos pensadores clássicos, é a de que o
debate racional, no sentido substantivo, que constitui a
essência da forma política de vida, é também o requisito
essencial para o suporte de qualquer bem regulada vida
321
humana associada, em seu conjunto” (Guerreiro Ramos,
1981, p.27).
A supressão do debate racional na sociedade centrada no mercado é, para o autor, uma
grave questão, com sérios reflexos ao nível do senso comum:
“Escravos de um sistema de comunicação de massa
dirigido por grandes complexos empresariais, os
indivíduos tendem a perder a capacidade de se empenhar
no debate racional. Cedendo a influências projetadas, a
maioria das pessoas perde a capacidade de distinguir
entre o fabricado e o real e, em vez disso, aprende a
reprimir padrões de racionalidade, beleza e moralidade,
inerentes ao senso comum” (Guerreiro Ramos, 1981,
p.114).
É neste ponto que a complementaridade entre as teorias em questão ganha mais
evidência. Se o debate racional é o requisito essencial para a concretização da
racionalidade substantiva, isto é, no processo de passagem de significados do senso
comum para a boa regulação da vida humana associada, então torna-se claro que a
atividade comunicativa se reveste de suma importância na materialização dessa
racionalidade em ações concretas.
322
É justamente a explicitação dessa espécie de passagem que, entendemos, Habermas nos
fornece adequadamente com uma teoria de ação. A referida passagem já é em si uma
ação, uma ação de cunho comunicativo que proporciona o debate racional requisitado por
Guerreiro Ramos.
Nesta direção, Habermas elabora uma teoria de ação orientada ao entendimento, que visa
a coordenação das ações posteriores dos sujeitos capazes, autônomos e responsáveis,
implicados na boa regulação da vida humana associada.
Sob esse ponto de vista, uma teoria de ação necessariamente exigiria a ampliação da
dimensão do nível individual para o nível social, sob pena de cairmos no engodo de uma
estrutura monológica. Em outras palavras, a dimensão do senso comum, enquanto
instância de identificação e harmonização de significados, precisa ser ampliada,
considerada no plano da interação. Essa ampliação encontramos em Habermas através do
conceito cotidiano de mundo da vida.
Habermas se inspira, inicialmente, no conceito de mundo da vida oriundo da
fenomenologia, tal qual elaborado por Alfred Schutz.
Para Schutz, o mundo da vida significa,
“O mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso
nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos
323
predecessores, como um mundo organizado. Ele agora se
dá à nossa experiência e interpretação. Toda
interpretação desse mundo se baseia num estoque de
experiências anteriores dele, as nossas próprias
experiências e aquelas que nos são transmitidas por
nossos pais e professores, as quais, na forma de
‘conhecimento à mão’, funcionam como um código de
referência” (Schutz, 1979, p. 72).
Assim, o mundo da vida é um sistema dinâmico de códigos de referência. Porém
Habermas não se contenta com essa percepção e vai mais longe, propondo a “correção”
do conceito. Em sua visão, o mundo da vida não cumpre apenas a função de contexto; ele
oferece uma provisão de convicções, de valores, de normas, na qual os participantes de
um processo comunicativo recorrem para elaborar interpretações susceptíveis de
consenso, tendo em vista a necessidade de entendimento surgida numa determinada
situação. Ele afirma categoricamente: “como recurso, o mundo da vida cumpre, pois, um
papel constitutivo nos processos de entendimento” (Habermas, 1989, p. 495, trad. livre).
Nesta perspectiva, ganha grande importância a noção de situação:
“Uma situação representa o fragmento de um mundo da
vida delimitado com relação a um tema. […] A situação
de ação interpretada circunscreve um âmbito
324
tematicamente aberto de alternativas de ação, quer dizer,
de condições e meios para a execução de planos.”
(Habermas, 1989, p. 494, trad. livre).
Habermas pretende uma “correção” do conceito de mundo da vida. Guiado pela noção de
situação, valorizando sobremaneira este aspecto, o autor argumenta que o conceito de
mundo da vida deve ser “corrigido” para que seja plenamente utilizável pelas ciências
sociais:
“Para isso resulta mais adequado o conceito cotidiano de
mundo vida, com cuja ajuda os agentes comunicativos
localizam e datam suas emissões no espaço social e no
tempo histórico.” (Habermas, 1987, v. II, p. 193, trad.
livre).
A chave mestra para a correção do conceito de mundo da vida é a narração, pois na
prática cotidiana as pessoas não apenas se encontram, enquanto participantes de uma
comunicação, mas fazem narrações daquilo que acontece no contexto de seus mundos da
vida:
“A narração é uma forma especializada de palavra
constatativa que serve à descrição de sucessos e fatos
socioculturais. […] Pelo fato de narrar, elegemos uma
325
perspectiva que nos força ‘gramaticalmente’ a
estabelecer na base da descrição, como sistema cognitivo
de referência, um conceito cotidiano de mundo da vida.
[…] Enquanto que na perspectiva dos participantes o
mundo da vida só está dado como contexto que constitui o
horizonte de uma situação de ação, o conceito cotidiano
de mundo da vida que a perspectiva do narrador
pressupõe, se utiliza sempre com uma finalidade
cognitiva.” (Habermas, 1987, v. II, pp. 193, 194 e 195,
trad. livre).
É dessa forma que Habermas amplia a dimensão da condição de possibilidade e de
reconhecimento da ação racional de fundo ético.
Se Guerreiro Ramos ressalta a dimensão do senso comum, cujo ponto de partida está na
esfera individual — pois a razão substantiva é vista como atributo da psique — e releva
também a necessidade de bem regular a vida humana associada, a qual requer o debate
racional, então podemos daí depreender a essencialidade da atividade comunicativa. Essa
atividade comunicativa já se constitui numa ação em si mesma e tem como pano de fundo
o mundo da vida, em seu conceito cotidiano (incorporando a narração que ancora fatos no
espaço-tempo), instância possibilitadora da ação, fonte da tradição e da renovação do
saber cultural dos agentes, contexto normativo e valorativo no qual os agentes se movem
326
e interagem, visando a solidariedade e o entendimento (Habermas, 1987). Isto posto,
reafirmamos o nosso total acordo com a brilhante percepção de Barreto:
“A possível noção racional do futuro, emergente da
intersubjetividade e do senso comum, não torna
excludentes as propostas de Habermas e as do sociólogo
brasileiro” (Barreto, 1993, p. 49).
Seguindo a estrutura da figura 1, daremos prosseguimento ao detalhamento de seus itens.
Em seguida, discutiremos a terceira perspectiva de complementaridade.
Conceitos derivados “do” e “no” processo de realidade ⇔⇔⇔⇔ Teoria de ação:
Guerreiro Ramos faz uma clara distinção entre o que seria uma teoria da vida humana
associada no sentido substantivo e no sentido formal. No sentido substantivo, quando a
racionalidade substantiva é a sua principal categoria de análise; no sentido formal quando
ela apresenta a razão funcional ou instrumental como sua principal categoria de análise.
Daí, decorrem duas distinções essenciais, uma relativa à natureza intrínseca das teorias e
a outra referente aos conceitos produzidos a partir delas:
“Na medida em que a razão substantiva é entendida como
uma categoria ordenativa, a teoria substantiva passa a
327
ser uma teoria normativa de tipo específico. Na medida
em que a razão funcional é apenas uma definição, ou uma
elaboração lógica, a teoria formal é uma teoria
nominalista de tipo específico. Os conceitos da teoria
substantiva são conhecimentos derivados do e no
processo de realidade, enquanto os conceitos da teoria
formal são apenas instrumentos convencionais de
linguagem, que descrevem procedimentos operacionais.”
(Guerreiro Ramos, 1981, p. 27).
Podemos perceber uma flagrante complementaridade entre a teoria deste autor e a
proposta de Habermas: uma vez que a razão substantiva é o cerne da teoria social
substantiva, ensejando que os seus conhecimentos produzidos não sejam puramente
nominalistas, isto é, que representem fielmente a práxis social dos indivíduos, pois são
“derivados do e no processo de realidade”, observamos que Habermas elabora uma teoria
de ação como suporte da explicitação de suas teses. É através de uma teoria de ação,
incontestavelmente derivada do e no processo de realidade, que podemos compreender a
essência da atividade comunicativa de cunho emancipatório.
Devemos confessar que a constatação desse aspecto da complementaridade aqui
analisada, nos influenciou bastante na decisão de superar o impasse, ao qual nos vimos
confrontados, optando pelo emprego de uma teoria de ação. Haveria alguma outra
328
maneira mais adequada para derivar conhecimentos do e no processo de realidade ?
Talvez sim, porém cremos ser a nossa opção uma boa via.
Debate racional ⇔⇔⇔⇔ Ação comunicativa baseada em pretensões de validez sujeitas a
crítica:
Este item guarda uma íntima relação com o que lhe segue, a saber, “Superordenação
ética ⇔ Pretensões de validez sujeitas a crítica valorativa”, por esta razão vamos
aborda-los em conjunto.
Guerreiro Ramos sustenta que a razão substantiva conduz a uma teoria de sociedade, que
tem como essência da forma política de vida o debate racional. A prática permanente do
debate racional decorre do princípio da superordenação ética da teoria política sobre
qualquer disciplina eventual que focalize questões da vida humana associada. É o mesmo
que dizer que o juízo de valor é uma dimensão que rege todas as ações no sentido da
construção da sociedade requerida. É por isso que o autor sublinha diversas vezes que “a
dicotomia entre valores e fatos é falsa, na prática, e, em teoria, tende a produzir uma
análise defectiva” (Guerreiro Ramos, 1981, p.29).
Enquanto isso, Habermas centra a ação comunicativa também no julgamento ético,
detalha esse processo ressaltando o papel das pretensões de validez.
329
Como vimos acima, uma das condições básicas para a ação comunicativa é a
responsabilidade do sujeito. Esta é vista como a sua capacidade de orientar a sua ação
mediante pretensões de validez intersubjetivamente reconhecidas.
As pretensões de validez susceptíveis à crítica valorativa são a mola mestra do debate
racional. Sua importância é capital.
Habermas salienta o papel pragmático dessas pretensões ao afirmar que todo ato de
palavra pode ser negado ou rechaçado a partir da retidão com referência a um contexto
normativo que o emissor pretende para a ação que propõe, do aspecto de verdade que
porta o seu enunciado, ou ainda da veracidade que o emissor pretende para a sua emissão
ou manifestação de vivências subjetivas às quais ele tem acesso privilegiado.
Por conseguinte, numa ação comunicativa espera-se que o emissor:
a) Esteja executando uma ação correta com relação a um contexto normativo dado e
reconhecido no mundo da vida cotidiano, para que se possa estabelecer entre ele e o
ouvinte uma relação interpessoal tida como legítima;
b) Emita um enunciado verdadeiro, ou com pressupostos de existência pertinentes, para
que o ouvinte possa aceitar e compartilhar o saber do emissor;
330
c) Manifeste autenticamente suas opiniões, intenções, desejos, etc., para que o ouvinte
possa dar credibilidade ao que é dito. (Habermas, 1989).
Portanto, ao afirmar-se a validade de uma pretensão comunicativa no processo do debate
racional, transforma-se correção normativa/valorativa em legitimidade, verdade em
aceitação e autenticidade em credibilidade. Isto posto, fica claro o papel pragmático das
pretensões de validez:
“Um consenso não se pode produzir quando, por exemplo,
um ouvinte aceita a verdade de uma afirmação, mas põe
em dúvida a veracidade do emissor ou a adequação
normativa de sua emissão; e o mesmo vale para o caso
em que, por exemplo, um ouvinte aceita a validez
normativa de um mandato, mas põe em dúvida a
seriedade do desejo que nesse mandato se expressa ou os
pressupostos de existência anexos a ação que se lhe
ordena (e com isso a executabilidade do mandato)”
(Habermas, 1987, v. II, p. 172, trad. livre).
Boa regulação da vida humana associada ⇔⇔⇔⇔ Ação orientada ao entendimento:
331
Este aspecto aponta para um paralelismo entre as finalidades estabelecidas nas duas
teorias.
Guerreiro Ramos destaca que a razão substantiva é o substrato da ação e da teoria que
pretende em última instância promover a boa regulação da vida humana associada.
Na mesma linha de finalidades, Habermas declara que a orientação racional da ação
comunicativa reside no alcance do entendimento entre os homens, contrariamente a ação
racional com respeito a fins, a ação comunicativa é, acima de tudo, uma ação orientada
para o entendimento.
Aqui, julgamos de importância capital transcrever o significado do termo entendimento.
O autor define entendimento como:
“Entender-se é um processo de otenção de um acordo
entre sujeitos linguística e interativamente competentes.
[...] Devido a esta estrutura linguística, não pode ser só
induzido por um influxo exercido de fora, e sim tem que
ser aceito como válido pelos participantes. Nesse sentido
se distingue de uma coincidência puramente factual. Os
processos de entendimento têm como meta um acordo que
satisfaça as condições de consentimento, racionalmente
332
motivado, com o conteúdo de uma emissão. Um acordo
alcançado comunicativamente tem que ter uma base
racional; isto é, não pode vir imposto por nenhuma das
partes, quer seja instrumentalmente, devido a uma
intervenção direta numa situação de ação, quer seja
estrategicamente, por meio de um influxo calculado sobre
as decisões de um oponente. […] O acordo se baseia em
convicções comuns. (Habermas, 1987, v. I, p. 368, trad.
livre).
Rejeição à teoria do conhecimento ⇔⇔⇔⇔ Rejeição à teoria do conhecimento:
Em seguida, podemos constatar que ambos criticam e se afastam do âmbito da teoria do
conhecimento, em suas várias modalidades e representações.
Para Guerreiro Ramos, as correntes de pensamento que hoje prevalecem em matéria de
ciência social formal, apoiam-se numa visão sociomórfica do homem, visão que reduz o
ser humano a nada mais que um ser social. O autor denomina tais correntes de produtos
de uma “ciência social cientística”, uma vez que elas pregam que a compreensão da
realidade passa necessariamente pelos seus modelos formais de linguagem.
333
Habermas, além de rejeitar a “filosofia da consciência”, analisa várias correntes da teoria
do conhecimento e então opta, declaradamente, por uma teoria de ação, baseada na
atividade comunicativa e julgada por pretensões de validez sujeitas a críticas. Neste
sentido, acusa autores como Peter Berger e Thomas Luckmann — autores da corrente da
sociologia do conhecimento — de operar uma redução culturalista do mundo da vida.
Berger & Luckmann afirmam que a realidade está construída socialmente e então cabe à
sociologia do conhecimento investigar os processos mediante os quais isso acontece.
Segundo Habermas, nessa linha de pensamento, a atividade comunicativa é simplesmente
um mecanismo interpretativo que reproduz o estoque de saber cultural. Nada mais pode
oferecer de revelador. Para Habermas, entretanto, a unilateralidade do conceito
culturalista de mundo da vida, que embasa esta visão, fica evidente quando se considera
que a ação comunicativa é muito mais que somente um processo de interpretação, que os
atores ao entender-se sobre algo no mundo, também estão interagindo para desenvolver,
confirmar e renovar a sua pertinência aos grupos sociais e à sua própria identidade. A
ação comunicativa é ao mesmo tempo processo de interação social e de socialização. E
portanto deve ser o cerne de uma teoria de ação de cunho emancipador.
Auto-interpretação da comunidade ⇔⇔⇔⇔ Teoria de ação de cunho linguístico,
comunicativo:
334
O oitavo aspecto de complementaridade entre as duas teorias nos indica que seus
respectivos autores incorreram na mesma opção ao elaborar uma teoria particularmente
reflexiva e interpretativa, que espelha o caráter interativo da percepção da realidade e da
história dos grupos humanos.
Guerreiro Ramos prega que o sentido da história torna-se evidente para o homem através
da “auto-interpretação da comunidade organizada”, logo, nenhuma elaboração teórica de
caráter serialista poderá captar esse sentido.
Habermas nos dá uma detalhada descrição do que poderia ser e de como poderia se
desenrolar o processo da auto-interpretação da comunidade organizada. Sua teoria é, na
verdade a projeção de uma práxis linguística, comunicativa, pela qual os grupos humanos
se auto interpretam e se entendem. Como vimos acima, Habermas defende que quando os
indivíduos exercem ações comunicativas eles renovam a sua pertinência a tais grupos,
moldando a identidade grupal e individual.
Valores na interpretação dos fatos ⇔⇔⇔⇔ Contexto normativo do mundo da vida na base
da interpretação dos fatos:
A grande importância concedida aos valores é um traço característico e por demais
evidente nas duas propostas. Por tudo o que foi dito até aqui, fica evidente que os valores
em que se fundam os princípios éticos são parte substancial em ambas teorias.
335
Em Guerreiro Ramos, os valores estão fortemente presentes desde a caracterização da
racionalidade substantiva até os ditames da teoria substantiva da vida humana associada e
também da abordagem substantiva das organizações. Uma marca transversal em sua obra,
portanto. As teorias que derivam da razão substantiva, tanto a teoria do social como a
abordagem organizacional, são teorias normativas, enfatiza o autor. Interpretação e valor,
duas esferas circunscritas; a interpretação dos fatos sociais e organizacionais devem ser
guiadas por valores que apontem para a boa regulação da vida social.
Em Habermas, podemos afirmar sem sombra de dúvidas, que interpretação e valor
também são duas esferas circunscritas e a todo momento presentes na sua formulação. A
interpretação das realidades e das emissões comunicativas se dão com base no contexto
normativo do mundo da vida, em seu conceito cotidiano. Os valores fornecem a medida
da interpretação da validade das pretensões dos agentes, condicionam o consenso,
delimitando as possibilidades do entendimento. Por ter elaborado uma teoria de ação,
Habermas demonstra a mecânica interpretativa dos fatos e das comunicações através de
valores.
Subjetividade, intersubjetividade ⇔⇔⇔⇔ Subjetividade, intersubjetividade:
Por fim, a subjetividade e a intersubjetividade são também traços comuns em ambas
teorias.
336
Guerreiro Ramos ressalta com grande ênfase a importância da interação simbólica na
existência humana, citando explicitamente Habermas:
“O que mantém uma sociedade em funcionamento como
importante ordem coesiva é a aceitação, pelos seus
membros, dos símbolos através dos quais ela faz sua
própria interpretação. A interação simbólica é a essência
da vida social significativa e, portanto, para usar uma
expressão de Kenneth Burke, a ‘simbolicidade’ constitui
um atributo essencial da ação humana. […] O fenômeno
da comunicação distorcida tornou-se uma preocupação
fundamental de Habermas. Propõe ele uma distinção
entre a ação racional com propósito, ou ação
instrumental, e a ação de comunicação, ou de interação
simbólica.[…] Uma tese central de Habermas é a de que,
na moderna sociedade industrial, as antigas bases de
interação simbólica foram solapadas pelos sistemas de
conduta de ação racional com propósito (Guerreiro
Ramos, 1981, p. 14).
A interação simbólica é, inclusive um dos tópicos essenciais de sua proposta para uma
abordagem substantiva das organizações.
337
Em Habermas, a interação simbólica, ou como ele prefere, a intersubjetividade, é uma
marca constante em seus constructos, desde a própria caracterização da ação
comunicativa. A intersubjetividade é o corolário, nas duas teorias, da própria
subjetividade na qual se baseiam os autores em seus respectivos pontos de partida.
Assim, esperamos ter fornecido um detalhamento satisfatório dos aspectos dispostos na
figura 1. Voltamos a frisar que a nossa intenção é a de justificar uma escolha crucial para
a fundamentação do quadro de análise: trabalhar com as teorias da razão substantiva e da
ação comunicativa numa perspectiva de complementaridade, conforme nos fôra indicado
primeiramente por Barreto (1993).
Demonstradas as perspectivas de complementaridade que pudemos discernir entre as duas
teorias, passaremos a apresentação e detalhamento do quadro de análise, dando ênfase a
determinadas operações e formulações empreendidas a partir da referida
complementaridade.
II. Quadro de análise
A elaboração do quadro de análise foi norteada pelo objetivo de verificar qual o tipo de
racionalidade, entre a substantiva e a instrumental, é predominante nas organizações
pesquisadas. Essa verificação implica o exame da predominância diretamente nos
338
processos organizacionais que constituem a dinâmica do cotidiano das empresas aqui
estudadas.
Isto significa demonstrar como e quando a racionalidade substantiva, como também a
instrumental se manifestam nas operações desenvolvidas nas empresas pesquisadas, ou
seja, como tais racionalidades se concretizam em atos dos indivíduos enquanto membros
da organização. A verificação da predominância, pressupõe a comparação entre os
indicadores de racionalidade.
O primeiro passo para comparar configurações distintas é defini-las de forma clara,
distinguindo-as adequadamente, bem como aos seus elementos constitutivos.
Uma vez que optamos por trabalhar com teorias de ação, prosseguiremos nesta linha e
definiremos a ação racional substantiva, com base nos estudos de Guerreiro Ramos e de
Habermas:
Ação orientada para duas dimensões: na dimensão
individual, refere-se à autorealização, compreendida
como concretização de potencialidades e satisfação; na
dimensão grupal, refere-se ao entendimento, nas
direções da responsabilidade e satisfação sociais.
339
Por conseguinte, os elementos constitutivos da ação racional substantiva são:
a) Autorealização - processos de concretização do potencial inato do indivíduo,
complementados pela satisfação;
b) Entendimento - ações pelas quais estabelecem-se acordos e consensos racionais,
mediadas pela comunicação livre, coordenando atividades comuns sob a égide das
responsabilidade e satisfação sociais;
c) Julgamento ético - deliberação baseada em juízos de valor (bom, mal, verdadeiro,
falso, correto, incorreto, etc.), que se dá através do debate racional das pretensões de
validez emitidas;
d) Autenticidade - integridade, honestidade e franqueza dos indivíduos nas interações;
e) Valores emancipatórios - aqui destacam-se os valores de mudança e aperfeiçoamento
do social, bem estar coletivo, solidariedade, respeito à individualidade, liberdade e
comprometimento, presentes nos indivíduos e no contexto normativo do grupo;
f) Autonomia - condição plena dos indivíduos para poder agir e expressar-se livremente
nas interações.
340
Do mesmo modo, isto é, a partir dos trabalhos de Guerreiro Ramos e de Habermas,
definimos abaixo a ação racional instrumental e seus elementos constitutivos:
Ação baseada no cálculo, orientada para o alcance de
metas técnicas ou de finalidades ligadas à interesses
econômicos ou de poder social, através da maximização
dos recursos disponíveis.
Relacionamos, abaixo, os elementos constitutivos da ação racional instrumental:
a) Cálculo - projeção utilitária das consequências dos atos humanos;
b) Fins - metas de natureza técnica, econômica ou política (aumento de poder);
c) Maximização de recursos - busca da eficácia e da eficácia máximas no tratamento de
recursos disponíveis, quer sejam humanos, materiais, financeiros, técnicos, energéticos ou
ainda, de tempo;
d) Êxito, resultados - o alcance, em si mesmo, de padrões, níveis, estágios, situações, que
são considerados como vitoriosos face a processos competitivos numa sociedade
capitalista;
341
e) Desempenho - performance individual elevada na realização de atividades;
f) Utilidade - considerada na base das interações como valor generalizado;
g) Rentabilidade - medida de retorno econômico dos êxitos e resultados alcançados;
h) Estratégia interpessoal, entendida como influência planejada sobre outrem, a partir da
antecipação das reações prováveis desse outrem a determinados estímulos e ações,
visando atingir seus pontos fracos.
Cumprido o primeiro passo, ou seja, definidos os tipos de ação racional substantiva e de
ação racional instrumental, bem como os seus elementos constitutivos, partiremos em
direção ao segundo passo, o qual consiste no reagrupamento lógico desses elementos face
a cada processo organizacional, configurando assim o quadro de análise.
Os processos organizacionais que, em conjunto, compõem a dinâmica cotidiana das
empresas pesquisadas estão segmentados nas rubricas que orientaram o trabalho de
campo (conforme demonstrado no Capítulo III), guiando os procedimentos de coleta dos
dados.
As rubricas , ou mais propriamente, os processos organizacionais, sofrem uma distinção
básica em nosso estudo. Não podemos considerar que todos os dados coletados
constituem-se numa massa indiferenciada em termos de importância analítica. Portanto,
342
os processos organizacionais serão distinguidos em duas classes: essenciais e
complementares.
Por processos organizacionais essenciais entendemos aqueles nos quais os indivíduos
definem, mediante ações específicas, o caráter básico do empreendimento grupal ao qual
participam, delineando seus padrões de interrelação e também as fronteiras e limites da
ação do grupo perante a sociedade que o envolve. Não é por outra razão que esses
processos estão inseridos, há bastante tempo, no rol dos temas de estudo privilegiados
pela maioria dos autores da teoria das organizações. Assim, dentre os processos que
elegemos analisar, consideraremos essenciais os seguintes:
a) Hierarquia e normas;
b) Valores e objetivos;
c) Tomada de decisão;
d) Controle;
e) Divisão do trabalho;
f) Comunicação e relações interpessoais;
343
g) Ação social e relações ambientais.
As rubricas restantes serão consideradas processos organizacionais complementares.
Como a própria denominação indica, o exame desses processos nos servirá como um
complemento necessário à interpretação dos dados coletados, no sentido de fazer emergir
a lógica interna de cada organização pesquisada. Embora necessários ao aprofundamento
da análise, julgamos que os processos complementares não têm, em seu conjunto, o
mesmo peso definidor que aquele representado pelo conjunto dos processos essenciais, no
tocante ao caráter básico de uma organização produtiva. Relacionamos abaixo os
processos organizacionais complementares:
a) Reflexão sobre a organização;
b) Conflitos;
c) Satisfação individual;
d) Dimensão simbólica.
Para a configuração do quadro de análise, empreendemos o reagrupamento dos diversos
elementos constitutivos de racionalidade, observando a correspondência de cada um deles
com a natureza intrínseca de cada processo organizacional, de maneira que se possa
verificar claramente a influência dos elementos no desenrolar dos processos
344
organizacionais, espelhando o mais fielmente possível o cotidiando das empresas
estudadas.
Da adequação entre os elementos constitutivos de racionalidade e os processos
organizacionais, resultou o quadro de análise representado pela figura 2 (página seguinte).
Na primeira coluna, estão relacionados todos os processos organizacionais trabalhados,
começando pelos essenciais até os complementares. Observa-se que nas segunda e
terceira colunas faz-se uma distinção entre os dois tipos de racionalidade que serão
cotejados no estudo. Então, para cada tipo de racionalidade, faz-se corresponder os seus
elementos constitutivos, adequados à natureza intrínseca de cada um dos processos
organizacionais.
O quadro proposto será a peça fundamental, o pano de fundo permanente da análise das
empresas que nos propomos a estudar. A inspiração para a construção do referido quadro
tem origem nas obras de Guerreiro Ramos e de Habermas, amplamente citadas acima,
bem como da complementaridade que é possível perceber entre elas.
345
Tipo de Racionalidade X
Processos Organizacionais
Racionalidade Substantiva
Racionalidade Instrumental
Hierarquia e normas
Entendimento Julgamento ético
Fins Desempenho
Estratégia interpessoal
Valores e objetivos Autorealização
Valores emancipatórios Julgamento ético
Utilidade Fins
Rentabilidade
Tomada de decisão
Entendimento
Julgamento ético
Cálculo Utilidade
Maximização recursos
Controle
Entendimento
Maximização recursos Desempenho
Estratégia interpessoal
Divisão do trabalho
Autorealização Entendimento
Autonomia
Maximização recursos Desempenho
Cálculo Comunicação e
Relações interpessoais
Autenticidade Valores emancipatórios
Autonomia
Desempenho Êxito/Resultados
Estratégia interpessoal
Ação social e Relações ambientais
Valores emancipatórios
Fins Êxito/Resultados
Reflexão sobre a organização
Julgamento ético Valores emancipatórios
Desempenho Fins
Rentabilidade
Conflitos
Julgamento ético Autenticidade
Autonomia
Cálculo Fins
Estratégia interpessoal
Satisfação individual
Autorealização
Autonomia
Fins Êxito
Desempenho
Dimensão simbólica
Autorealização
Valores emancipatórios
Utilidade Êxito/Resultados
Desempenho
Figura 2 - Quadro de Análise
O desenvolvimento da construção deste quadro de análise, como tentamos evidenciar
acima, fundamenta-se nos trabalhos originais dos dois autores citados, e dirige-se para
346
definir, em termos operacionais, a ação racional substantiva e a ação racional
instrumental, detalhando inclusive os seus elementos constitutivos.
Como frisamos anteriormente, trata-se de ancorar a análise dos dados empíricos a uma
teoria de ação que seja compatível com a abordagem substantiva das organizações,
proposta por Guerreiro Ramos.
A forma específica de operacionalização desse quadro será detalhada na seção que se
segue.
III. Procedimentos operacionais
A coleta dos dados é a fase prévia de toda a análise. Antes de detalhar a
operacionalização do quadro aqui proposto, gostaríamos de eslarecer sobre a natureza das
fontes dos dados coletados.
Como já declaramos no Capítulo III, o método de coleta de dados primordialmente
empregado neste estudo foi a observação participante. No entanto, outros instrumentos e
fontes foram também utilizados visando mapear, o quanto possível, a realidade cotidiana
das empresas que foram alvo da pesquisa. Devido a diversidade dos processos
organizacionais analisados, indicaremos as fontes exploradas para o levantamento de
dados relativos a cada um dos processos.
347
É o que demonstra a figura 3, abaixo.
Processos Organizacionais
Fontes de dados
Hierarquia e normas
Observações, entrevistas, documentos
Valores e objetivos
Observações, entrevistas
Tomada de decisões
Observações, entrevistas
Controle
Observações, entrevistas, documentos
Divisão do trabalho
Observações, entrevistas, documentos
Comunicação e Relações interpessoais
Observações, entrevistas, documentos
Ação social e Relações ambientais
Observações, entrevistas, documentos
Reflexão sobre a organização
Observações, entrevistas
Conflitos
Observações, entrevistas
Satisfação individual
Observações, entrevistas
Dimensão simbólica
Observações, entrevistas, documentos, materiais diversos
Figura 3 - Fontes de dados
348
De posse dos dados já agrupados referentemente a cada um dos processo organizacionais,
procede-se a operacionalização do quadro de análise seguindo as três fases abaixo
descritas:
Fase I - Detecção dos indicadores:
Cada elemento constitutivo de ação racional, conforme definidos acima, constitui-se num
indicador de racionalidade, seja substantiva ou instrumental. Na primeira fase da análise,
deve-se detectar todos os indicadores presentes em cada situação observada, nas situações
reconstituídas e nas opiniões veiculadas por meio de entrevistas, no exame dos
documentos, etc., tendo em vista cada um dos processos organizacionais.
Assim, cada elemento passa a ser um indicador de racionalidade dentro do processo
organizacional correspondente. Passemos à fase seguinte.
Fase II - Mapeamento dos indicadores predominantes:
Analisando-se um processo por vez, pode-se então reunir todos os indicadores detectados
e então verificar o indicador predominante naquele processo examinado. A
predominância de um determinado indicador, revela que o mesmo foi o elemento que
mais determinou as ações dos indivíduos, guiou as práticas operativas na organização,
349
fundamentou e justificou a organização do trabalho, os objetivos, direcionou os interesses
e decisões, embasou os valores das pessoas e cimentou os valores organizacionais,
delimitou os modos de interação, etc.
Mapear os indicadores predominantes traduz uma posição conceitual claramente definida:
não acreditamos na exclusividade de um só tipo de racionalidade nas ações de indivíduos
que compõem organizações produtivas. A nossa posição conceitual tem por base a idéia
de que a dinâmica do cotidiano das organizações produtivas contemporâneas implica a
presença tanto da razão substantiva, quanto da razão instrumental. Os comportamentos
dos membros de um grupo produtivo não são retilíneos, as ações desenrolam-se por meio
de avanços e retrocessos nas direções substantiva e instrumental, gerando contradições,
estabelecendo contrapontos. À medida em que tais contradições e contrapontos são
enfrentados e solucionados (ou não), geram, por sua vez, novas questões que podem
conduzir a outras contradições presentes e/ou futuras. Eis aqui, em duas palavras, nossa
visão das organizações produtivas.
Por conseguinte, identificar a predominância dentro de um certo conjunto de indicadores
detectados a partir do exame dos dados, significa assumir que ambas as racionalidades
podem estar presentes em todos os processos organizacionais. O mapeamento da
predominância é a própria busca de aprofundamento da análise no sentido de perceber
qual tipo de racionalidade prevalece em cada processo organizacional estudado.
350
Assim procedendo, ao final da Fase II será possível identificar se a organização analisada
pode ser considerada substantiva. Para tanto, os resultados da análise deverão atender às
duas condições seguintes:
a) Os elementos/indicadores de racionalidade substantiva devem ser majoritariamente
predominantes no conjunto dos onze processos examinados;
b) Os elementos/indicadores de racionalidade substantiva devem ser majoritariamente
predominantes também entre os sete processos organizacionais essenciais.
A seguir, apresentaremos a última fase, a qual constitui-se num complemento da análise.
Fase III - Identificação da intensidade de racionalidade substantiva:
O cumprimento da Fase II é também um pré-requisito para inferir sobre o grau de
intensidade de racionalidade substantiva numa determinada organização.
Na medida em que num processo organizacional já se tem detectados todos os
indicadores de racionalidade, bem como aquele que alí é predominante, tal conjunto de
indicadores compõem uma configuração particular, devido à singularidade do processo,
da empresa e das ações e valores específicos dos seus membros.
351
O exame minucioso dessa configuração, que implica analisar a natureza de cada indicador
detectado, a composição da configuração como um todo e a amplitude da predominância
do indicador principal face aos demais, conduz a identificação da intensidade da razão
substantiva em cada processo organizacional, situando-a entre os graus mínima, baixa,
média, elevada e muito elevada.
Ao final da análise dos onze processos, poder-se-á identificar com facilidade a
intensidade da racionalidade substantiva para a empresa vista globalmente: basta situá-la
na média entre as intensidades já verificadas nos processos organizacionais.
Com o intuito de obter um maior proveito da identificação da intensidade de razão
substantiva, inspiramo-nos no estudo de Rothschild-Whitt e estabelecemos uma escala de
intensidades, disposta num continuum, representado pela figura 4 abaixo.
|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva
Figura 4 - Continuum de intensidade de racionalidade substantiva
352
No Capítulo II, vimos que Rothschild-Whitt desenvolveu um continuum para classificar
organizações segundo uma tipologia que seguia uma escala de modos de autoridade
empregados, partindo assim, da “democracia coletivista” até a “burocracia
hierarquizada”. Sua intenção foi enfatizar as diferenças entre esses dois tipos de
organização, polarizando-os, para demonstrar as várias nuances que poderiam haver entre
eles, na medida em que as diferenças acentuadas entre os graus de autoridade empregados
determinariam novos tipos de organização situados no continuum.
Enquanto Rothschild-Whitt no seu célebre estudo buscava comparar dois tipos ideais de
organização, daí esses tipos ideais constituirem exatamente os pólos extremos do
continuum, nós não trabalhamos com tipos ideais, eles não são os focos de nossa
démarche.
Nos pólos extremos de nosso continuum aparecem intensidades improváveis, que
denotariam — tanto pela exclusividade de racionalidade substantiva, como pela sua
ausência absoluta — a existência (igualmente improvável) de uma organização
totalmente regida pela razão substantiva ou pela razão instrumental. Tais pólos têm,
apenas, um valor heurístico, pois a construção e descrição de tipos ideais, como já bem
esclarecemos anteriormente, não é o objetivo deste estudo. Uma opção dessa natureza
teria, necessariamente, engajado este estudo em outra direção. Os pólos de nosso
continuum complementam o entendimento da proposta, possuem apenas um certo valor
conceitual, na medida em que permite ao leitor exercitar teoricamente hipóteses sobre no
353
que resultaria uma progressão retilínea na direção de qualquer uma das extremidades do
continuum.
Examinamos organizações produtivas reais no sentido de tentar construir um quadro
adequado ao mapeamento da racionalidade substantiva diretamente nas ações dos
participantes, diretamente centrado na práxis organizacional. O que chamamos de
organização substantiva não é uma construção de tipo ideal. Enquanto Rotschild-Witt
também analisou organizações produtivas reais mas, com o intuito de formalizar um tipo
ideal — nos moldes weberianos — de organização coletivista e assim confrontá-lo com o
tipo ideal de organização burocrática proposto por Weber.
É por esta razão que no continuum elaborado por Rothschild-Witt aparecem tipos de
organização, enquanto o nosso é caracterizado por intensidades de racionalidade
substantiva.
Nesse sentido, um interessante ponto de contato entre esses dois continuum situa-se a
partir da afirmação taxativa de Rotschild-Witt que uma democracia coletivista gira em
torno da lógica da racionalidade substantiva. Isto não nos causa surpresa, uma vez que os
seus dados empíricos foram coletados, ao que parece, em organizações que apresentam
claras semelhanças com aquelas nas quais realizamos o nosso trabalho de campo.
A idéia de trabalhar com um continuum também vem corroborar a posição conceitual por
nós adotada e já declarada. Queremos dizer que ao final de uma análise, realizada nos
354
moldes propostos por este estudo, identifica-se a intensidade de razão substantiva e situa-
se a organização examinada no cotinuum. Seja qual fôr o ponto em que a organização
esteja situada, isto é, da intensidade mínima à muito elevada, significará sempre que a
racionalidade instrumental também está presente, fazendo parte da dinâmica daquela
organização. Seguindo esse princípio e transpondo-o para um raciocínio lógico, cada
ponto do continuum equivaleria ao seu inverso se quiséssemos medir a intensidade da
razão instrumental, ou seja, a intensidade mínima de razão susbstantiva equivale à muito
elevada de razão instrumental, a intensidade baixa de racionalidade substantiva
corresponde à elevada de racionalidade instrumental e assim por diante.
Ao operacionalizar o continuum aqui proposto, no fundo, estamos tratando os processos
organizacionais do quadro de análise como variáveis. Variáveis contínuas, nas quais se
pode medir a intensidade dos dois tipos de racionalidade a partir da análise da ocorrência,
da configuração e da predominância dos indicadores (elementos constitutivos) da razão
substantiva e da razão instrumental.
Antes de finalizarmos o presente capítulo, gostaríamos de fazer breves considerações
sobre a adequação epistemológica entre a fundamentação teórica, a metodologia do
levantamento de dados e o quadro de análise que fazem parte deste estudo.
355
IV. Considerações de ordem epistemológica
Sob determinados pontos de vista, o presente estudo não tem precedentes que poderiam,
antecipadamente, protegê-lo do risco de uma ruptura epistemológica grave entre as suas
partes, a qual, viesse a comprometer a sua coerência interna.
Esta foi uma das nossas preocupações permanentes durante a sua elaboração. O fato de
não contarmos com modelos já testados e suficientemente criticados, gerou a necessidade
de examinarmos, passo a passo, cada escolha feita, sob o ponto de vista da adequação
epistemológica ao objeto, entre as subpartes do estudo e também ao trabalho como um
todo. O “engate” sem rupturas epistemológicas entre as opções feitas foi a nossa
orientação mestra durante o desenrolar do planejamento e da execução deste trabalho.
Entretanto, o fato de não contarmos com estudos similares anteriormente desenvolvidos
não foi uma opção. Desde o Capítulo I, temos afirmado que não conhecemos registros de
estudos realizados no sentido de demonstrar a concretização da razão substantiva
diretamente nos processos organizacionais; estudos que tenham se baseado em dados
empíricos, colhidos em empresas em funcionamento (especialmente no Brasil) e, que
pudessem ter estabelecido algum modelo específico para a interpretação de tais dados. O
impasse ao qual nos referimos anteriormente é uma consequência dessa ausência.
356
Fomos impulsionados a criar instrumentos, como o quadro de análise acima proposto, e
também a empreender novas combinações entre abordagens teóricas e metodologias
utilizadas. À complementaridade entre os estudos de Guerreiro Ramos e de Habermas
somam-se outras soluções que nos levaram constantemente a refletir sobre a sua
adequação epistemológica.
Portanto, julgamos necessário fazer algumas observações sobre a lógica global aqui
empregada e a concatenação entre as diversas partes deste estudo. Assim, oferecemo-nos
à crítica, que por certo nos ajudará a prosseguir no aperfeiçoamento desta linha de ação
após o término deste trabalho.
O primeiro aspecto que gostaríamos de destacar é a compatibilidade entre a metodologia
do levantamento dos dados e o quadro de análise. A observação participante, enquanto
processo de coleta de dados que se desenrola in loco, no próprio ambiente e no qual o
pesquisador vivencia operacionalmente o cotidiano dos observados, privilegia a
observação das ações dos indivíduos em questão. Inferências, evidentemente são feitas,
elas são um grande recurso para a compreensão dos fatos. Mas, inegavelmente, o
privilégio é concedido àquilo que é observável, ou seja, às ações dos indivíduos.
Tentamos nos manter “em linha” com este aspecto essencial da metodologia ao optarmos
por embasar a análise dos dados numa teoria de ação. Primeiramente, numa teoria de ação
(ação comunicativa) que pudesse servir de complemento, de “passagem” da abordagem
conceitual de Guerreiro Ramos a uma práxis efetiva. Em seguida, acreditando firmemente
357
na fecundidade da união dessas abordagens, fazer derivar dessa união definições de tipos
de ação (racional substantiva e racional instrumental) e de seus elementos constitutivos,
que nos fossem verdadeiramente operacionais, tendo em vista a análise dos dados.
Reafirmando a compatibilidade entre coleta de dados e análise, mantivemos as mesmas
rubricas de orientação do trabalho de campo dentro do quadro de análise.
O segundo ponto a ressaltar é o recurso às teorias de Guerreiro Ramos e de Habermas
para dar conta do fenômeno ao qual nos propomos abordar. A ampla utilização das idéias
de Guerreiro Ramos se justifica no nosso estudo sob vários aspectos. As suas formulações
são a base, a essência e a principal fonte de inspiração do nosso estudo. A caracterização
da racionalidade substantiva e também a visualização do fenômeno aqui abordado
guiaram este estudo. Guerreiro Ramos já havia percebido a existência de organizações
nas quais a razão substantiva é predominante, como vimos no Capítulo II, ele as
denominava em geral “isonomias”. Chamamos substantivas tais organizações em
homenagem à obra deste autor.
Essa adequação entre a abordagem empregada e o objeto de estudo é
epistemologicamente crucial.
Num estudo dedicado ao tema da escolha da abordagem em função do objeto, visando a
produção de conhecimentos científicos no campo da administração, Bhérer (1986) declara
que,
358
“O funcionamento coletivo de empresas constitui um
domínio novo, não somente para a ciência, mas para a
sociedade mesma. Não existe uma tipologia atual dos
funcionamentos coletivos de empresas no Québec, nem em
nenhum outro país da O.C.D.E.; uma tal tipologia não
pode existir porque a categoria de empresas de
funcionamento coletivo compreende tanto os fenômenos
de cogestão, de autogestão, de empresas comunitárias,
como de empresas, de movimentos assemelhados ao
‘movimento alternativo’ na Alemanha ou ao movimento
contracultural na Europa e na América do Norte. Seria
necessário, então, desde o início, uma ‘démarche’
normativa para apreender o funcionamento coletivo.”
(Bhérer, 1986, p. 162, trad.livre, grifo nosso).
Eis mais uma das razões pela qual empregamos a abordagem elaborada por Guerreiro
Ramos. Tendo em vista que nos propomos a estudar a racionalidade em organizações
substantivas, as quais apresentam estilos de “funcionamento coletivo” em graus variados,
nada mais justo do que partirmos de uma abordagem normativa, no nosso caso, a
abordagem substantiva, pois, segundo Guerreiro Ramos, essa abordagem tem como um
dos seus princípios fundamentais a observância de que,
359
“O estudo científico das associações humanas é
normativo: a dicotomia entre valores e fatos é falsa, na
prática, e, em teoria, tende a produzir uma análise
defectiva.” (Guerreiro Ramos, 1981, p. 29, grifo nosso).
A teoria da ação comunicativa, de Habermas, além de ter o mesmo ponto de partida da de
Guerreiro Ramos, ao qual também nos unimos — a emancipação do homem — e também
de apresentar todos os aspectos de complementaridade que arrolamos acima, manifesta
uma convergência direta com o nosso objeto de estudo. Como vimos no Capítulo II,
Habermas retoma a classificação de Huber para este tipo de organização, denominando-as
“contra-instituições”, depositando nelas grande esperança de revitalização da vida social.
O emprego da teoria de Habermas acarreta, ainda, outros importantes aspectos de
adequação a outras escolhas feitas neste estudo. Destacaremos mais dois aspectos.
O primeiro deles diz respeito ao seu arcabouço contextual da ação comunicativa: o
mundo da vida em seu conceito cotidiano. Habermas “corrige” o conceito de mundo da
vida originado na fenomenologia e o substitui por um que tem a marca do cotidiano,
representado pela narração. Daí, desenvolve as idéias mais fecundas da sua teoria. O
mundo da vida, em sua versão cotidiana, exige situar a narração das interações
comunicativas no tempo histórico e num espaço dado, segundo Habermas, solução mais
adequada à sua utilização pelas ciências sociais.
360
O nosso estudo, de certa forma, se alinha à perspectiva habermasiana, ao buscar, através
da narração advinda da observação participante, traduzir o cotidiano dos indivíduos
enquanto membros de organizações reais, situadas no tempo e no espaço, empresas em
funcionamento na cidade de Salvador. Uma narração nascida no calor das interações
vividas por nós e eles, um calor fervoroso de um cotidiano apreendido durante oito meses
seguidos de convívio, de interações diárias, pois fomos também membros ativos daquelas
organizações.
O segundo aspecto é consequente do anterior. Vejamos o que Habermas afirma sobre a
compreensão de um significado essencial de um processo de entendimento:
“A compreensão de um significado é uma experiência
impossível de ser feita com base no solipsismo, por tratar-
se de uma experiência comunicativa. A compreensão de
uma manifestação simbólica exige essencialmente a
participação em um processo de entendimento. […] O
mundo da vida só se abre a um sujeito que faça uso de
sua competência linguística e de sua competência de
ação. O sujeito só pode ter acesso a ele participando, ao
menos virtualmente, nas comunicações de seus membros e
portanto convertendo-se a si mesmo num membro ao
menos potencial.” (Habermas, 1987, v. I, pp.159-160,
trad. livre).
361
Ao refletir sobre essas afirmações tão categóricas do autor, nos perguntamos: caso
utilizássemos um método de coleta de dados que implicasse a distância entre sujeito e
“objeto”, poderíamos nos basear em Habermas para fundamentar nossa análise ? Com
qual argumentação sustentaríamos um outro processo de “compreensão do significado”,
levando em conta que estaríamos fundados na teoria da ação comunicativa ?
O que buscamos, em profundidade, foi penetrar no mundo da vida cotidiano dos
indivíduos membros das organizações. Para tanto, nos orientamos pela observação
participante. Ela nos deu as condições propícias para fazermos pleno uso de nossas
competências linguística e de ação. Além do fato de não termos sido membros virtuais e
nem tampouco potenciais. Fomos membros efetivos daquelas organizações, com tarefas e
responsabilidades operacionais a desempenhar e a cumprir.
Uma posição análoga à de Habermas podemos encontrar também em Paul Feyerabend,
um dos autores que trabalhamos no Capítulo I para introduzir o tema da racionalidade.
Célebre epistemólogo, Feyerabend defende abertamente a participação como via de
acesso ao conhecimento:
“Não procuro novas teorias da ciência, pergunto antes se
vale a pena empreender a investigação dessas teorias e
concluo pela negativa: o conhecimento não vem das
362
teorias, mas antes da participação.” (Feyerabend, 1991,
p. 331).
Uma dimensão que julgamos importante acrescentar às considerações que compõem esta
seção é a dimensão do sujeito. Ela constitui-se numa linha que perpassa transversalmente
todo este estudo.
De início, a opção básica pelo trabalho de Guerreiro Ramos como fundamento indica que
a racionalidade substantiva é um atributo do sujeito. Não partimos de uma definição
formal e fechada, nem de uma teoria de cunho nominativo para caracterizar,
respectivamente, a razão e a abordagem substantiva. Seguimos o mesmo caminho de
Guerreiro Ramos, qual seja, a razão substantiva é um atributo do sujeito, embora,
evidentemente, deva ser considerada sob alguns parâmetros, tais como o julgamento ético
das ações, visando a boa regulação da vida social, a autorealização, etc., ela deve ser
derivada do e no processo de realidade, o que quer dizer, das ações concretas dos
indivíduos em interação.
A “definição” de ação racional substantiva que equacionamos a partir dos estudos de
Habermas e de Guerreiro Ramos é suficientemente aberta, ampla, tendo assim a mesma
característica de todas as menções que Guerreiro Ramos faz a este tipo de racionalidade
(procuramos seguir a sua linha de expressão e de pensamento), sendo para nós,
entretanto, suficientemente operacional.
363
A metodologia empregada no trabalho de campo dá todo o crédito à subjetividade do
pesquisador, incorporando esta dimensão na construção do conhecimento científico.
A opção de trabalhar com uma teoria de ação no plano da análise dos dados também
remete o estudo à dimensão do sujeito enquanto ator social. Assim engajamo-nos a toda
uma ampla tendência nas ciências humanas, conforme demonstramos sinteticamente no
presente capítulo. Essa ampla tendência é composta por matizes extremamente
diversificadas, o que lhe proporciona ainda maior riqueza e, aponta inegavelmente para o
retorno do ator, a dimensão esquecida e reprimida por muito tempo nas ciências
humanas. Comentando sobre o esforço desenvolvido por seus colegas canadenses no
sentido de reelaborar uma série de concepções da teoria das organizações, Alain Chanlat
(1985) afirma que “estamos na pesquisa de um novo humanismo centrado no sujeito”. A
este movimento, agregamo-nos delideradamente.
Outra consideração a fazer refere-se ao contraponto que endossamos face à maior parte
das obras que constituem a teoria das organizações. Este contraponto é mais do que mera
crítica, ele reside numa escolha epistemológica, pois diz respeito à concepção de
racionalidade.
Ao pretender examinar a racionalidade em organizações produtivas, entidades
econômicas que atuam num mercado competitivo, não incorremos numa visão
monológica, numa concepção unidimensional da racionalidade. Não partimos do ponto de
vista fechado de que racionalidade significa racionalidade econômica (formal,
364
instrumental), como se pode constatar na maior parte dos estudos que compõem a teoria
das organizações. A nossa análise comporta também o reconhecimento explícito de uma
racionalidade diametralmente oposta à razão econômica; é portanto, uma análise de
natureza dual. Desfazendo a unidimensionalidade conceitual, mantivemo-nos fiéis às
idéias defendidas pelos autores da corrente “substantivista”, desde Polanyi, Arensberg,
Pearson, Hopkins, até o próprio Guerreiro Ramos.
Por fim, acrescentamos que a análise aqui proposta está inteiramente situada no âmbito
antropo-sociológico. A primazia é concedida ao observável, daí decorrendo todas as
inferências que auxiliam a compreensão do sentido das ações. Tomamos o cuidado de
realizar inferências que possam ser sociologicamente constatáveis, verificáveis. O
simbólico, por exemplo, é examinado pelas manifestações que guardem estreitas relações
com as esferas da análise delimitada no domínio sociológico. As variáveis que nos
ajudarão a recompor uma tradução explicativa dos fatos testemunhados estarão sempre
circunscritas ao âmbito sociológico. Esta é a linha mestra para a interpretação das
realidades visitadas. Ela delimita todo este estudo. Não há, em nenhum momento, uma
redução do sociológico ao psicológico ou psicanalítico, por exemplo.
Diversos estudos elaborados no interior das ciências humanas iniciam pelo nível antropo-
social e desembocam em outros níveis alheios justamente no momento crucial: o esforço
explicativo, a interpretação. Opera-se uma redução do sociológico, do antroplógico, a um
nível de realidade externo ao social. Este é o caso de trabalhos memoráveis nas ciências
humanas, obras de grande envergadura. Podemos citar como exemplos os trabalhos de
365
Lévi-Strauss (1971), Sperber (1982) e Turner (1972), que remetem a explicação última
dos fenômenos observados, respectivamente, às operações do intelecto (que
proporcionam a conexão com as estruturas), ao aparelho mental inato e às necessidades
inatas e universais (pertinentes à psicanálise).
Esclarecemos que a utilização do termo “redução”, aqui, está totalmente isenta de
quaisquer preconceitos pejorativos. Referimo-nos à redução enquanto opção
epistemológica conscientemente realizada, condicionando sistematicamente a natureza da
explicação de determinados fenômenos sociais tomados como objeto de estudo e,
consequentemente, engajando tal estudo numa via determinada. O que queremos deixar
bem claro é que esta não foi a nossa opção. Permaneceremos, modesta, consciente e
decididamente, sempre no âmbito do social, ou melhor, do antropo-social.
Esperamos ter deixado suficientemente claras algumas orientações de caráter
epistemológico que adotamos na elaboração deste trabalho. O critério essencial que guiou
todas as nossa escolhas foi o da coerência.
Uma vez apresentados o quadro de análise, seus fundamentos, o processo de sua
constituição e os esclarecimentos de ordem epistemológica, partiremos para a descrição
das organizações pesquisadas, o contexto social-histórico que configura o seu ambiente e
a análise dos dados coletados. Estes são os temas a ser tratados no próximo capítulo.
366
Capítulo V - As organizações estudadas e seu contexto
I. Apresentação das organizações
O presente estudo comporta a análise de três pequenas organizações de serviços, situadas
na cidade de Salvador, capital do estado da Bahia.
Nas próximas linhas, faremos uma breve apresentação delas, para que o leitor possa se
familiarizar com o objeto do nosso trabalho.
Casa Via Magia:
A primeira organização chama-se Casa Via Magia. Trata-se de uma empresa privada com
dois sócios, os seus fundadores. Ambos são profissionais de nível superior que há vários
anos vêm trabalhando simultaneamente nas áreas de arte (notadamente no teatro) e de
educação.
Em termos organizacionais, a empresa é composta de três subunidades semi-autônomas:
uma escola infantil com cerca de trezentos alunos, uma produtora de arte voltada
367
essencialmente para a produção de peças de teatro de vanguarda e apresentações de dança
moderna, e uma clínica ou “condomínio de serviços” — como é definida por vários de
seus componentes —, isto é, um centro congregando 15 profissionais que prestam
serviços de psicoterapia individual e de grupo, aulas de música, psicopedagogia, medicina
naturista e homeopática, ajustamento corporal, aulas de teatro, dentre outros.
A escola foi a origem de todo o projeto, fundada em 1984, notabilizou-se em Salvador
pelos seus avançados métodos pedagógicos e pela qualidade de seus serviços. Goza de
grande prestígio entre as escolas infantis da cidade de Salvador. Devido à experimentação
constante que empreende, por meio de pesquisas e práticas inovadoras no campo da
educação infantil, tornou-se um centro de pesquisa e formação/aperfeiçoamento de
profissionais da área de educação na Bahia. Anualmente, a escola é muito procurada por
pesquisadores e estudantes de pedagogia, psicologia e áreas afins, no sentido de
empreender investigações e enquetes científicas, realizar estágios desenvolver programas
de intercâmbio profissional. Chama-se Casa Via Magia, dando o nome à empresa como
um todo.
A escola é definida pelos seus proprietários e demais profissionais que a compõem, como
“um espaço de educação, arte e arte-educação, dinamizado por metodologias que
objetivam desenvolver o processo de educação integral da criança”. Internamente, a
escola é formada por uma pré-escola que conta com um espaço verde denominado
“quintal”, habitado por animais domésticos tais como galinhas, patos, cachorros, gatos,
etc. Possui uma divisão de alfabetização, onde as cartilhas são elaboradas pelos próprios
368
alunos, cada qual utilizando os temas e as palavras de seu interesse, que são aproveitados
no processo pedagógico. O nível mais elevado é o primeiro grau, que conta com uma
Oficina de Artes e sessões de estudos ambientais. Neste nível, os livros didáticos são
produzidos pelos alunos, com o apoio técnico dos professores. Cada classe herda os livros
didáticos elaborados pela classe que ocupava aquela série no período letivo anterior. Já
está em curso a edição dos melhores livros por parte de uma grande editora de âmbito
nacional, fato que anima o corpo docente a dar continuidade a essa prática.
O limite máximo de alunos por classe é de 15, norma válida para todos os níveis. É a
única escola infantil privada em Salvador que estabelece este número como limite
máximo, fato que, por si só, já dá um tom diferenciado ao processo pedagógico alí
desenvolvido.
As artes em geral, notadamente o teatro e a poesia, permeam todos os níveis da escola,
bem como os seus processos pedagógicos. As oficinas artísticas são extensivas também
aos pais que desejam participar delas. Frequentemente, são produzidas peças infantis que
são apresentadas nos teatros do circuito comercial de Salvador, encenadas pelos alunos e
promovidas pela unidade de produção artística da empresa.
Trabalham na escola cerca de 30 pessoas, entre professores, coordenadores pedagógicos,
pessoal de secretaria e de serviços gerais. Os salários pagos são, em geral, ligeiramente
superior à média do mercado, principalmente em se tratando dos professores. A escola é a
subunidade principal da empresa, em termos econômicos. Ela é responsável por mais de
369
60% do seu faturamento global. As retiradas financeiras dos seus proprietários não são
fixas, nem seguem uma sequência regular previamente definida. Apesar de não contar
com uma administração financeira sofisticada, que possa fornecer dados bem elaborados
sobre a atividade econômica, vê-se claramente que o empreendimento da escola é
empresarialmente bem sucedido: ele não só é autosustentado, como também suporta a
expansão do negócio, dando a base financeira necessária para a criação e
desenvolvimento das duas outras subunidades da empresa, as quais serão objeto da
descrição a seguir.
A subunidade ligada a arte, Via Magia Produções é um pouco mais recente. Está
integrada a duas redes de produtores nesse ramo: a Rede Brasil de Promotores Culturais
Independentes e a Rede Latino Americana de Produtores Independentes de Arte
Contemporânea.
A Rede Brasil é uma cadeia de promotores (produtores, diretores de festivais e de salas de
espetáculos) sediados em vários pontos do país, dedicados a realização de espetáculos
cênicos contemporâneos nas suas diversas regiões. Tais promotores, que no interior da
Rede chamam-se Núcleos, sob a direção de um Núcleo Central, se dispõem a montar um
fundo coletivo para subsidiar o estabelecimento de circuito de turnês, a troca de
informações e o intercâmbio cultural entre os artistas dos diversos estados do Brasil. O
circuito é criado a partir do compromisso que cada Núcleo assume de promover
anualmente, pelo menos, um evento envolvendo artistas ou companhias de outros
estados. O intercâmbio entre os artistas é alcançado na medida em que os Núcleos
370
realizem laboratórios, aulas e/ou palestras, entre os artistas locais e os não locais. A troca
de informações se dá no âmbito de um Encontro Anual de todos os Núcleos da Rede.
O conceito é inteiramente novo no país. A Rede foi criada no contexto de uma proposta
de modificação estrutural das artes cênicas brasileiras, visa atuar profundamente nas áreas
de distribuição e infra-estrutura dos produtos culturais. Do Conselho Consultivo do
Núcleo Central, eleito para o biênio 93/94, faz parte um dos sócios da Casa Via Magia.
A Rede Latino Americana é uma organização transnacional que reúne representantes de 9
países (Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, México, Paraguai, Peru e Venezuela)
criada em maio de 1991, em Parati, por iniciativa dos diretores do Teatro Espaço de
Parati. A razão fundamental de sua criação foi o combate ao isolamento geográfico e
cultural que caracterizava os produtores de arte independentes nos países citados.
Daí, entre os objetivos principais da Rede encontram-se o incentivo a integração
continental, promovendo o intercâmbio de idéias entre os artistas dos diferentes países
latino americanos; a criação de um circuito alternativo de espaços e de produtores
independentes de teatro, dança, performance e música contemporânea; a projeção
internacional dos artistas e companhias envolvidos na criação contemporânea, ampliando
o seu mercado de trabalho e elevando o seu grau de profissionalização.
A sua organização é um pouco semelhante a da Rede Brasil. 15 Núcleos estão
constituídos. A cada ano, um dos Núcleos é escolhido para ser o Núcleo Central,
371
assumindo as funções de coordenação e administração da Rede. Há uma Assembléia
Geral, realizada num Encontro Anual de todos os Núcleos, onde são definidas as políticas
relativas a aceitação de novos membros, mudança nos estatutos, aprovação do orçamento
e da auditoria anuais. O Encontro Anual é o eixo central da entidade, além de dar
orientação geral para a Rede, é também um fórum de troca de informações sobre
tendências latino americanas e internacionais das artes contemporâneas, de troca de
video-tapes dos melhores trabalhos desenvolvidos em cada país naquele período e de
apoio aos produtores membros nas futuras programações.
Dentre outras atividades regulares de intercâmbio, a cada dois anos, a Rede escolhe uma
das cidades onde possui filiados para realizar um grande festival. Salvador foi escolhida
para a sede do próximo festival, o qual deverá ocorrer em setembro de 1994, tendo,
evidentemente, a Via Magia Produções como o Núcleo coordenador.
A estrutura da Via Magia Produções é bastante simples e pequena, como é de praxe nas
empresas desse ramo. Conta com 4 profissionais, sendo um coordenador e responsável
por esta subunidade da empresa, e os demais como técnicos. Todos possuem experiência
comprovada no campo da produção artística. Destarte o seu pequeno tamanho, a
produtora promove regularmente espetáculos de grande envergadura, notadamente peças
teatrais, que são apresentados em todas as salas de Salvador, com a participação de
artistas locais e também de grandes nomes do teatro e da dança moderna brasileiros.
Gostaríamos de ressaltar a existência do Grupo de Teatro Via Magia, companhia
permanente e já célebre no teatro baiano.
372
Além de promover espetáculos de cunho eminentemente profissional, vinculados ao
circuito comercial artístico, a produtora também é a responsável pela promoção das peças
encenadas pelos alunos da escola e seus respectivos pais, num esforço integrativo das
atividades da escola e da produtora.
Responsável por cerca de 10 a 20% do faturamento global da empresa Casa Via Magia, a
produtora é autosustentada economicamente. O pequeno quadro de pessoal contribui para
um volume de despesas que é coberto pelas suas próprias atividades. Outro fator que
auxilia a sua autosustentação é o fato de estar instalada em um dos prédios da empresa,
anexo à escola, numa sala que se encontra no último andar. Neste prédio funciona
também a secretaria administrativa, a biblioteca, a administração central e a coordenação
pedagógica da escola. Seus técnicos recebem remunerações compatíveis com a média do
mercado de trabalho no campo das artes.
A clínica foi criada no início do ano de 1993. Foi batizada com o nome de Casa do Meio,
devido a sua posição espacial: ela encontra-se instalada numa casa que está justamente
situada entre a escola e a produtora de arte, daí a sua denominação. A idéia de criá-la
partiu dos sócios proprietários da empresa, em conjunto com uma psicóloga que, desde o
início das atividades da escola, vem colaborando com o projeto, no campo da
psicopedagogia. Partindo da intenção de fundar um centro onde vários profissionais
pudessem fornecer serviços de qualidade, na perspectiva de um conceito amplo de saúde,
373
integrada a arte e a educação, os três fundadores foram convidando profissionais que
apresentassem perfis compatíveis com a orientação básica já posta em prática na escola.
Assim, foi ocupado o prédio que se situa entre a escola e a sua secretaria, o qual antes
estava alugado a um órgão da prefeitura de Salvador. A absorção deste espaço físico pela
empresa deu uma conotação de integração ao projeto como um todo. Profissionais de
áreas não relacionadas com a saúde foram também se juntando à clínica, totalizando
quinze profissionais, distribuídos pelos campos da psicoterapia, medicina naturista e
homeopática, psicopedagogia, ajustamento corporal, healing, origami e arte em papel,
teatro e música.
Nos últimos quinze anos, observa-se na cidade de Salvador a fundação de pequenas
empresas, congregando profissionais ligados a medicina natural, psicoterapia,
massoterapia e desenvolvimento do espiritualismo em suas diversas modalidades.
Podemos inserir a criação da Casa do Meio como mais um empreendimento que pertence
a este ramo em geral, embora lá não se ofereça serviços de natureza espiritualista ou
esotérica, como em alguns outros. Tal tipo de empreendimento tem florescido bastante
nesta cidade à medida em que ela aumenta de tamanho e torna-se uma metrópole
complexa.
O funcionamento interno da Casa do Meio apresenta algumas semelhenças com as outras
clínicas do gênero: uma espécie de “condomínio” é operacionalizado, com cada
profissional tendo a sua receita própria, sua autonomia de ação e rateando as despesas
374
comuns. O prédio é alugado, trata-se de uma casa com aparência residencial, ampla e bem
divivida, com três pavimentos. O seu aluguel é rateado por todos os profissionais, a partir
de um critério de ocupação de espaços. Há uma administradora do condomínio, que lidera
quatro empregados distribuídos pelas atividades de recepção, portaria e serviços gerais. A
administradora e os demais empregados recebem salários com base na média do mercado.
Esse custo de pessoal faz parte também do rateio geral de despesas. Os donos da Casa Via
Magia não têm qualquer participação a título de lucro no empreendimento Casa do Meio.
A lanchonete da Casa do Meio é a única fonte de receita adicional proveniente da clínica.
Essa é a maior organização dentre as incluídas na nossa pesquisa. Cerca de 50 pessoas
trabalham na empresa, sendo 80% do sexo feminino.
A empresa situa-se no bairro da Federação, uma zona de classe média e também de baixa
renda da cidade de Salvador, apesar de atender a uma clientela que pertence às classes
sociais mais favorecidas economicamente.
Espaço Lumiar:
A segunda organização chama-se Espaço Lumiar e congrega também três subunidades. É
uma fundação de direito privado. Em torno de trinta pessoas participam do
empreendimento, compreendendo os membros fixos e os colaboradores eventuais.
375
A empresa foi fundada no ano de 1992, no entanto, a sua origem está ligada a uma outra
organização, a Lothlorien, uma clínica que oferecia serviços de medicina naturista e
psicoterapia. A Lothlorien notabilizou-se em Salvador, por duas razões: primeiramente,
por ter sido o centro pioneiro na oferta de serviços e de tratamentos regulares baseados
em medicina naturista na Bahia; em segundo lugar, por que era uma espécie de extensão
de uma comunidade alternativa fundada no início dos anos 80, na região do Vale do
Capão, Chapada Diamantina. Dentre as tentativas de estabelecer comunidades
alternativas rurais nos anos 70 e 80 na Bahia, a do Vale do Capão foi a única bem
sucedida que se tem notícia. Continua a existir e a florescer. Seus membros são animados
por uma filosofia existencial própria, que mescla elementos de espiritualismo e de
ciência, denominada por eles Amor Incondicional.
O crescimento da comunidade no Vale do Capão, a sua progressiva complexidade, a
singularização profunda com relação ao núcleo situado na capital — a Lothlorien — além
da distância (650 km) entre as duas organizações, foram alguns dos fatores que
contribuíram para a autonomização completa das duas entidades. As pessoas mais ligadas
à comunidade separaram-se dos outros, indo residir definitivamente no interior. Assim, a
Lothlorien encerrou as suas atividades, já desenvolvidas desde os anos 80, sendo fundada
a organização Espaço Lumiar.
Sua unidade principal é uma clínica, um pouco semelhante à Casa do Meio, pois oferece
serviços de psicoterapia, medicina naturista, ajustamento corporal e tarô de
autoconhecimento. A clínica é o coração da organização, sede principal e onde está a
376
maior parte dos seus membros. Funciona também mediante a solução de “condomínio”,
embora não possua um administrador profissional para cuidar das tarefas que lhe são
específicas como na Casa do Meio. No Espaço Lumiar, a administração é tarefa
desempenhada dentro do conjunto dos profissionais que trabalham nas atividades fins.
Dez pessoas trabalham na clínica, compreendendo duas recepcionistas. Os custos são
rateados igualmente por todos. As recepcionistas são empregadas e recebem salários
relativos ao mercado de trabalho em Salvador.
A segunda unidade é a Editora Deva, direcionada à divulgação da alimentação e medicina
natural, filosofia e análise social. Um de seus produtos, uma revista trimestral chamada
Vivências, é distribuído em vários estados do país e em alguns países estrangeiros. Sua
tiragem é de 3.000 exemplares. A revista é mais antiga que a organização Espaço Lumiar,
ela vem sendo editada desde a existência da extinta Lothlorien. Também livros são
publicados pela editora. Nela trabalham, como membros fixos, duas pessoas, o seu editor
e um auxiliar. Cerca de 15 pessoas trabalham como colaboradores (responsáveis por
seções da revista) e prestadores de serviços gráficos e jornalísticos à revista. Eles não se
fixam cotidianamente na sede e são remunerados por tarefa a cada edição.
A sede, que congrega a clínica e também o escritório da editora, está situada no bairro da
Pituba, um dos mais sofisticados da capital baiana. O editor da Deva participa do rateio
das despesas do “condomínio”, como também das reuniões e das tarefas de manutenção
do empreendimento, em pé de igualdade com os outros profissionais da clínica.
377
A terceira unidade, situa-se no interior do estado, num sítio denominado Terra Mirim, à
70 km. de Salvador, onde são levadas adiante experiências de vida comunitária,
agricultura natural e psicoterapias de grupo, além de rituais xamânicos. Alguns terapeutas
mesclam psicologia transpessoal e xamanismo no atendimento aos seus clientes. Os
membros da organização que são ligados ao xamanismo vão frequentemente ao exterior
com o intuito de aprofundar os conhecimentos sobre xamanismo, notadamente ao Peru.
Assim, o sítio Terra Mirim constitui-se num espaço adequado para a prática de rituais de
fundo xamânico. Tais eventos atraem grupos crescentes de pessoas/clientes interessados
em conhecer e participar de tais rituais.
Entretanto, não seria correto definir a Espaço Lumiar como uma organização
eminentemente religiosa. Não há uma seita normativamente estabelecida, nem uma
religião comum a todos os membros. Não se trata de uma organização que tenham como
atividade principal a difusão de uma dada religião. Não é exigido aos seus membros que
sigam ou que divulguem tal ou qual religião. Em relação ao xamanismo, apenas alguns de
seus membros (as terapeutas) praticam rituais xamânicos mesclados a atividades de
terapias em grupo. O restante dos membros da organização respeitam a realização dos
rituais, embora deles não participem.
Cinco pessoas habitam e trabalham no sítio Terra Mirim, que é de propriedade de dois
membros do grupo permanente.
378
Ao todo, a organização Espaço Lumiar conta com 17 membros permanentes e cerca de 15
a 20 colaboradores eventuais. Apenas um membro permanente é do sexo masculino,
trata-se do responsável pela editora, todo o restante é composto por mulheres. Dentre os
colaboradores eventuais, a grande maioria é também de mulheres.
A nossa análise, desenvolvida mais adiante, vai ser centrada nos membros permanentes,
preferencialmente os que atuam na sede principal, situada em Salvador, pois lá é que se
tomam as decisões gerais e também onde 90% das atividades globais são desenvolvidas,
gerando assim a renda para a existência da organização. É também lá onde funciona o
“condomínio”.
Espaço Aquarius:
A Espaço Aquarius (nome fictício) é a menor organização dentre aquelas que foram alvo
da presente pesquisa. É uma empresa privada, registrada como associação de
profissionais liberais. Foi fundada há exatamente cinco anos.
A empresa constitui-se de uma pequena clínica psicológica, composta de sete
profissionais liberais e três empregados, que pode também ser considerada um
“condomínio” de serviços, embora de amplitude menor que os anteriores.
379
Além de psicoterapia, oferece também serviços de medicina homeopática,
psicopedagogia e de lazer organizado (excursões ecológicas e “acampamento verde”).
A sua origem se reporta à segunda metade dos anos 80 e tem raízes na existência de uma
entidade fundada por profissionais ligados à saúde mental e orgânica, no interior do
estado. Esse “centro”, como é denominado pelos seus antigos membros, desenvolvia
estudos e experiências voltadas para a integração mente e corpo, numa perspectiva de
saúde global. Após alguns anos de funcionamento, o centro encerrou as suas atividades,
daí, quatro de seus membros fundaram uma clínica em Salvador, que tem alcançado
sucesso nesse mercado, atestado pela demanda crescente de seus serviços e uma ótima
imagem nesse mesmo mercado.
Uma das fundadoras saiu logo após o início do funcionamento da clínica, às três restantes
agregaram-se outras profissionais, totalizando, em 1993, período de nossa pesquisa de
campo, sete profissionais. Tais profissionais, são assistidas por duas recepcionistas e um
vigia, empregados e pagos a preço de mercado. Curiosamente, trata-se também de uma
organização quase que totalmente composta por mulheres. A única exceção é o vigia.
A sede da empresa está situada no elegante bairro da Pituba, o mesmo onde está o Espaço
Lumiar. Ocupa uma casa ampla, de aparência residencial, numa zona sofisticada da
cidade de Salvador.
380
O sistema de atendimento aos clientes obedece a autonomia de cada profissional, dentro
de seu respectivo espaço físico e domínio técnico. Cada qual possui a sua clientela,
independentemente dos demais. Os empregados prestam serviços de apoio logístico a
todos os profissionais.
As atividades de administração geral, gestão financeira e manutenção são desempenhadas
pelos próprios profissionais, mediante um sistema de rodízio de responsabilidades, o qual
será detalhado na análise dessa empresa.
Trata-se de uma empresa que goza de um conceito invejável no seu ramo em Salvador.
Não dispomos de dados cientificamente levantados e tratados mas, pode-se afirmar sem
sombra de dúvidas de que a empresa é muito bem conceituada no ramo do atendimento
psicológico em Salvador. Pudemos coletar depoimentos de alguns profissionais
autônomos que atuam neste ramo, de grupos organizados em outras clínicas, tais como os
da Casa do Meio e da Espaço Lumiar, como também de pessoas que já se beneficiaram
dos seus serviços, todos atestam as informações correntes na cidade em geral de que a
Espaço Aquarius é uma clínica que oferece serviços de alta qualidade.
Isto parece explicar o fato da empresa não sofrer problemas de ordem financeira mesmo
numa época de crise econômica generalizada. A sua demanda é relativamante estável,
assegurando também uma estabilidade econômica do negócio que reflete a qualidade dos
profissionais que compõem a empresa.
381
Há cinco anos, desde a sua fundação, a empresa vem se consolidando como uma das
melhores clínicas neste ramo em Salvador. Pode ser apontada como uma empresa de
sucesso, dentro das suas condições específicas. Confessamos que este também foi um dos
aspectos que nos levou a inserir a Espaço Aquarius na nossa pesquisa.
Em seguida, gostaríamos de fazer algumas breves considerações a respeito da cidade de
Salvador, o contexto socio-histórico no qual estão inseridas tais empresas.
Organizações são fenômenos sociais, portanto, acreditamos que algumas informações
prévias sobre o contexto que envolve as organizações por nós pesquisadas, certamente
conduzirá o leitor a uma melhor percepção da natureza do fenômeno ao qual nos
dispomos a estudar. Acreditamos também que alguns aspectos desse contexto poderão
ajudar a compreender o surgimento das organizações acima descritas.
II. Notas sobre o contexto sócio-histórico da cidade de Salvador
A cidade de Salvador é a mais antiga do país. Começou a ser habitada em 1534 e foi
oficialmente fundada em 1549 por Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil,
sendo a partir daquele ano a primeira capital do país.
382
Suas origens históricas transformaram-na num grande centro turístico, receptivo de todas
as partes do mundo. No ano de 1993, período da nossa pesquisa de campo, a cidade está
situada numa área de 324 km² e conta com 2.056.013 habitantes, já se constituindo na
terceira cidade do país, apenas atrás de São Paulo e Rio de Janeiro.
A atividade industrial é predominante na economia da cidade. Num raio de 80 km,
encontram-se três grandes centros industriais: um centro de indústrias de base,
comportando duas usinas siderúrgicas, uma refinaria de petróleo e várias zonas de
exploração de petróleo; um centro petroquímico — o maior do país — que comporta
também fábricas de química fina; um centro de produção de bens de consumo, composto
de dezenas de grandes e médias empresas. Os setores de comércio e serviços são também
bastante desenvolvidos. Podemos considerar a atividade do turismo como a principal do
setor de serviços.
No campo da educação superior, em 1993, a cidade conta com seis estabelecimentos de
ensino que oferecem 45.908 vagas.
No que concerne a comunicações e transportes, a cidade possui uma vasta rede de
estações de rádio, cinco jornais cotidianos e cinco canais de televisão. Possui também um
aeroporto internacional e seu porto marítimo serve como entreposto comercial para várias
rotas internacionais.
Portanto, Salvador é uma cidade de grande porte suficientemente ligada ao mundo.
Malgrado a visível pobreza da maioria de sua população, podemos afirmar que se trata de
383
uma cidade bastante moderna e caracterizada pela existência de alguns sistemas
produtivos de natureza pós-industrial. O que acarreta a ocorrência de fenômenos típicos
dos grandes centros urbanos ocidentais.
Nesses centros, principalmente naqueles que foram fundados antes do advento do
capitalismo, como Salvador, a entrada na fase do capitalismo tardio (bem como de suas
consequências) provocaram profundas avarias no tecido social. Vários fenômenos ou
mudanças abalaram profundamente os modos de vida nessas aglomerações urbanas.
Podemos citar aqui apenas alguns deles, para não tornar cansativa ao leitor essa lista: a
automatização industrial, a “automatização” crescente da vida social, a intensificação da
comunicação de massa, a burocratização e padronização dos comportamentos, a
competição pessoal e também profissional, o individualismo exacerbado.
Aliada aos problemas de cunho psicossocial, a crise econômica agrava sensivelmente tais
problemas. Tal crise, que se verifica em escala mundial, ganha contornos específicos,
particulares a cada região, dependendo de sua estrutura produtiva, modos de acumulação
do capital, sistemas de regulação econômica, percurso histórico, dentre outros fatores.
No caso de Salvador, os efeitos da crise são inegavelmente contundentes. O setor
secundário, base da economia local e principal responsável pelo extraordinário
crescimento da cidade nos últimos 20 anos, tem sofrido sérios abalos com a recessão
econômica global. O centro industrial petroquímico estancou o seu crescimento,
realizando difíceis ajustes: segundo o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias
Químicas, cerca de 30% da mão de obra foi dispensada nos últimos 4 anos, não havendo
384
nenhuma perspectiva concreta de reaproveitamento futuro desse contingente. Várias
unidades industriais diminuíram bastante o volume de sua produção e a média de salários
no mercado de trabalho já não consegue se manter nos padrões dos anos 70 e 80.
Paralelamente, o centro industrial que comporta majoritariamente fábricas de produção de
bens de consumo, situado em Aratu, a 30 km da capital, entrou em período de declínio
acelerado, não absorvendo praticamente nenhuma mão de obra adicional.
Como se não bastassem tais involuções do setor secundário, uma verdadeira vaga de
falências assola os grandes grupos econômicos locais. Em apenas cinco anos, várias
grandes empresas baianas, que absorviam grandes contingentes de pessoal, faliram ou
estão deixando as atividades no estado. É o caso dos outroras potentes grupos Correia
Ribeiro, Paes Mendonça, Barreto de Araújo, Manoel Chaves, que faliram no todo ou em
parte. Também os casos da OAS e das empresas de construção civil do grupo Odebrecht,
que estão que estão paulatinamente concentrando atividades em outras regiões. No setor
financeiro, tradicional reduto da economia baiana, observa-se que a sua maior empresa, o
grupo Econômico, começa a enfrentar sérias dificuldades para sobrevivência.
Assim, os abalos na estrutura econômica local aprofundam os efeitos da crise social, seja
através da instalação do desemprego estrutural e do consequentemente aumento da
violência urbana, seja pela incerteza generalizada causada pela ausência de oportunidades
no seio de uma população predominantemente jovem.
385
Não podemos esquecer que comunidades como a de Salvador viviam numa configuração
socio-histórica do tipo tradicional há não muito tempo atrás. As mudanças recentes foram
tão bruscas que provocaram neuroses coletivas e sobretudo individuais. As antigas
ligações pessoais de solidariedade estão sendo gradativamente substituídas por processos
competitivos e a sobrevivência torna-se uma luta permanente, gerando insegurança física,
econômica e psicológica.
Nesse contexto, pode-se observar uma grave crise que estremece os valores que
sustentavam a ação humana e lhe conferiam sentido. A frequência das doenças nervosas
aumenta sem cessar. Recentemente, os resultados de uma pesquisa realizada pelos
profissionais do Hospital das Clínicas de Salvador, indicaram que mais da metade das
doenças diagnosticadas nos pacientes do referido hospital (um dos maiores da cidade) no
ano de 1992, têm origem nervosa e que a tendência para os próximos anos é de aumento
substancial.
A busca de novos valores morais e o combate às doenças advindas do stress, amplia a
demanda por novos padrões de educação e também de tratamentos médico-psíquicos
generalizados. No entanto, as redes públicas de órgãos voltados para o atendimento das
necessidades nos campos da educação e da saúde deixam muito a desejar, oferecendo
serviços de péssima qualidade, além de quantitativamente insuficientes face à população.
Tal realidade, verificada em Salvador, não é muito diferente daquela encontrada na
maioria das grandes capitais brasileiras.
386
Assim, uma significativa parte da classe média, agregada aos estratos econômicos mais
elevados da sociedade local, demandam serviços especializados de educação e saúde,
dentre outros, fora do âmbito das redes públicas, ocasionando assim um mercado atraente
para o estabelecimento de agentes produtivos de natureza privada, dispostos a satisfazer
uma clientela crescente e, até certo ponto, ansiosa.
Podemos conceber, em princípio, dessa forma, a grande proliferação de clínicas e de
estabelecimentos educacionais de médio e pequeno porte que vem acontecendo desde os
anos 80 em Salvador. Tais empreendimentos constituem uma oferta de serviços altamente
especializados, em alguns casos até personalizados, como resposta direta à crescente
demanda. A flexibilidade e a diversidade desses estabelecimentos parece refletir a
natureza eclética das demandas de saúde (numa concepção ampla) e de educação numa
sociedade plural como a de um centro urbano das proporções de Salvador.
Malgrado a explosão verificada na demanda por tais serviços, a competição no lado da
oferta é feroz, uma vez que sendo requerido um volume de investimento não muito
elevado para a entrada no mercado, vários agentes se lançam nesses mercados, em luta
pela conquista e pela fidelidade do cliente. Evidentemente, o diferencial nessas atividades
não é o capital fixo, e sim a qualidade e a efetividade da prestação dos serviços a uma
clientela instruída e exigente.
Este panorama, traçado aqui em breves linhas, poderá ajudar a explicar a existência de
um novo mercado de serviços, tipicamente metropolitano, o qual caracteriza o ambiente
387
em que estão inseridas as organizações de nossa pesquisa. Passaremos, nos próximos
capítulos, a apresentar a análise de cada empresa separadamente.
388
Capítulo VI - Análise da Casa Via Magia
O estilo que empregaremos para apresentação da análise desta empresa, bem como das
outras duas que se seguem nos capítulos subsequentes, teve como fonte de inspiração o
texto do célebre estudo antroplógico de Gregory Bateson La cérémonie du naven,
elaborado nos anos 30 e publicado em língua francesa em 1971 por Les Éditions de
Minuit. O estilo utilizado por Bateson (1971) para estabelecer a argumentação,
notadamente nos capítulos 5 (sorcellerie et vengeance) e 7 (la sociologie du naven), nos
inspirou a elaborar a forma de apresentação e de argumentação da análise das empresas
aqui examinadas.
Assim, buscaremos evidenciar o quanto possível as evidências que sustentam as nossas
afirmativas e deduções sobre os processos observados no trabalho de campo, com
reproduções das situações vivenciadas, das falas dos atores em seus termos originais, dos
casos passados contados pelos atores, constituindo assim, talvez, um estilo não muito
comum aos textos herméticos e técnicos que são dedicados à teoria das organizações.
Entretanto, como o nosso estudo foi realizado numa base etnográfica, julgamos adequado
manter a coerência entre essa base e o estilo de apresentação da análise que ela
proporcionou.
389
Neste capítulo apresentaremos a análise da organização Casa Via Magia, seguindo a
sequência dos processos organizacionais enfocados. Primeiramente os essenciais e, logo
em seguida, os complementares, conforme definidos no Capítulo IV.
Hierarquia e normas:
Na produtora de arte, há um dirigente que responde por esse setor da empresa. Sua fonte
de poder, a razão pela qual foi conduzido ao posto, é o conhecimento no ramo, a
experiência acumulada de vários anos de atividades no teatro baiano e nacional, como
autor e ator em várias peças, notadamente no teatro de vanguarda. Seu estilo é fundado no
diálogo constante e proximidade para com os técnicos de sua equipe. O poder é
desconcentrado, na medida em que se agrega fortemente a ação.
Numa produtora de arte, trabalha-se com eventos. Quase tudo gira em torno dos eventos,
das “produções” agendadas. O trabalho é extremamente diversificado, conferindo uma
dinâmica acelerada ao cotidiano da equipe. As atividades não seguem uma sequência
minuciosamente programável. Ao agregar-se a ação, juntamente com os técnicos de sua
equipe, discutindo cada passo a ser dado, a chefia assume muito mais a subtarefa de
coordenação do que a de direção propriamente dita. A busca de acordos, consensos, que
facilitem o cumprimento das tarefas, segundo práticas aprovadas por todos, ressalta a
forte presença das ações de entendimento e também um forte senso de equipe.
390
O entendimento é a ação mais típica da hierarquia, em todos os níveis. Presenciamos uma
importante reunião deliberatória sobre o lançamento de um grande festival de arte
dramática e dança moderna, o qual ocuparia praticamente todas as salas de espetáculos da
cidade de Salvador, durante uma quinzena, com espetáculos apresentados por vários
grupos nacionais e internacionais. Da reunião, participaram os dois proprietários da
empresa, a chefe da produtora de arte e os seus técnicos. Todos tiveram voz e voto na
reunião, ocupando o mesmo nível que os dirigentes da empresa. Não havia distinção
específica de autoridade. A reunião foi realizada, inclusive, nas próprias instalações da
produtora.
Também detectamos a importância do desempenho. Um dos eixos nos quais centra-se a
ação da hierarquia é o desempenho, a performance dos técnicos. Estes, são livres para
estabelecer prioridades no encadeamento de suas tarefas, para que o desempenho seja o
melhor possível face ao evento que sempre tem um prazo, uma data definida para ser
realizado.
Na clínica de serviços Casa do Meio, pode-se observar também a predominância do
entendimento, embora respaldado numa solução hierárquica. O surgimento da clínica
gerou, por sua vez, a formalização de uma esfera hierárquica: o Conselho. Inicialmente
composto para implantar e coordenar o estabelecimento das políticas gerais da Casa do
Meio, o Conselho foi, pouco a pouco, abrangendo o âmbito de toda empresa, como uma
instância consultiva maior. Como ele nasceu em função da criação da clínica, e é lá que a
391
sua ação é bem mais expressiva (para o resto da empresa ele apenas começava a ter um
papel de reflexão), então avaliaremos a sua atuação a partir daquele setor.
A sua composição é a seguinte: os dois sócios da empresa, a administradora da clínica e
uma profissional psicóloga, ligada à escola quase desde a sua fundação. Essa profissional
teve uma atuação decisiva na fundação da clínica. Trata-se de uma profissional com
grande clientela em Salvador, que coordena grupos de crescimento transpessoal. Ela
convenceu os donos da empresa a implementar um projeto de uma clínica, que pudesse
contar com vários profissionais de especialidades diferentes, visando complementar
definitivamente o tripé arte-educação-saúde integrados, lema básico da empresa. Ela,
ainda, escolheu vários dos profissionais que foram convidados a fazer parte da clínica.
Ao referir-se à modalidade de atuação e significado do Conselho, ela nos revelou:
— “Ele tem uma atuação mais organizativa do que
diretiva. Ele segue como um elemento integrador do
projeto educação-arte-saúde. Ele também examina a
entrada de novos profissionais na Casa do Meio. Não é
um Conselho vertical, e sim organizativo.”
Apesar de ser membro do Conselho, ela não conseguiu fazer prevalecer a sua opinião
sobre uma questão relativamente crítica:
392
— “Uma das grandes questões que enfrentamos no início
foi a da base de rateio do condomínio. A minha proposta
foi a da divisão por pessoa, mas os mais novos, aqueles
que ainda não têm grande clientela, argumentaram em
contrário e propuseram o critério de espaço. Eu hoje
pago duas cotas de condomínio e é muito pesado para
mim. Ainda não estou plenamente convencida da justeza
dessa solução mas, aceitei a resolução do grupo.”
Alguns outros profissionais da clínica emitiram suas impressões sobre esse órgão:
— “Vejo o Conselho com tranquilidade. Não há
autoritarismo, o Conselho é um consenso. Eu vejo uma
clara correspondência da sua existência com alguns
fundamentos da antroposofia.”
— “Sinto que há diálogo, não há decisões de cima para
baixo. Eu tenho autonomia de expressão, de discordar.
Existe esse espaço.”
— “No processo administrativo existem decisões que não
necessitam de discussões coletivas, porque aqui não é
uma co-gestão, é uma empresa, o Conselho é a
393
representação de que é uma empresa. Eu não sinto o
Conselho fechado, entretanto.”
Em reuniões mensais, com a participação de todos os profissionais da clínica, não
notamos nenhuma distinção entre os membros do Conselho e os demais, no tocante ao
uso da palavra e prioridade de opiniões. Ainda assim, a sua existência é um dado
inegável, a sua composição revela a marca da formalização da hierarquia (os donos, a
gerente e a profissional mais antiga no projeto), reforçando, no nosso quadro de análise, a
presença do elemento fins com conotações de poder.
Na escola infantil, que deu o nome a empresa (Casa Via Magia), também os proprietários
ocupam posições-chave, embora prevalecendo, como nos outros setores, as ações de
entendimento. Eles desempenham a função de supervisão da coordenação pedagógica,
além de representar a escola perante a clientela.
Sobre a relação hierárquica na escola, um membro da coordenação pedagógica tem a
seguinte percepção:
— “Há a questão hierárquica, mas é muito sutil. A função
direção é diluída na supervisão e na coordenação. Os
diretores não são burocráticos, eles estão diretamente
envolvidos no desenvolvimento do projeto pedagógico,
isso é muito importante e cria o diferencial em relação a
394
várias outras escolas. Tem uma ordem, mas ela surge na
necessidade que o trabalho possa fluir, e não devido a
uma hierarquia primordial.”
Participamos das reuniões pedagógicas, ocasiões em que todo o corpo docente se reúne
para tratar de assuntos gerais do cotidiano da escola, desenvolver treinamento em grupo,
refletir sobre o processo pedagógico, etc. As reuniões foram coordenadas por um dos
proprietários. Sua atitude era, tipicamente, de facilitador dos processos grupais. Durante
as discussões, ele opinava como qualquer outro participante, sem distinção de peso ou
qualquer tipo de “voto de minerva”. Contudo, a condução das reuniões era sempre de sua
responsabilidade. A sua postura era de abertura, uma das reuniões foi aberta por ele da
seguinte forma:
— “Como vocês querem trabalhar hoje ? ”
O grupo decidiu, de fato, a metodologia de trabalho a ser utilizada naquela sessão.
Em períodos próximos de nova etapa de abertura de matrículas, faz-se reuniões com pais
que estão interessados em matricular, pela primeira vez, seus filhos naquela escola. À
reunião comparece um grupo de pais e, pelo lado da escola fala um sócio, somente
quando da sua impossibilidade, devido a possíveis outros compromissos, destaca-se
algum coordenador pedagógico para o substituir.
395
O processo de estabelecimento de normas é deixado a critério de cada unidade da
empresa — produtora de arte, clínica e escola — embora somente na escola tenha-se
alcançado uma real formalização, principalmente com o estabelecimento de normas
escritas. A esta unidade nos ateremos, pois nas demais, as normas são essencialmente ad
hoc, sem uma visível continuidade.
Existem normas escritas que disciplinam os comportamentos de alunos, professores e
pais. Em geral, as normas referentes aos alunos delimitam as zonas de respeito à
individualidade, uso de violência, jogos sexuais, presentes habitualmente nas interações
infantis, e ainda a participação em atividades extra-classe, direitos e deveres para com os
professores. Com relação aos pais, dirigem-se às questões do lanche dos filhos durante a
sua permanência nas instalações da escola, horários de entrega e busca das crianças, apoio
nas atividades escolares em casa, etc. Aos professores, determina-se, sobretudo, a forma
pela qual se desenvolve o construtivismo baseado na filosofia e valores da escola,
incluindo sua relação com os alunos, os pais e entre os colegas do corpo docente, dentre
outros temas.
Ao matricular os seus filhos, os pais recebem um exemplar das normas dirigidas a eles.
As crianças recebem o seu respectivo conjunto de normas em sessões de discussões
coletivas sobre as mesmas. As normas são elaboradas previamente nas reuniões
pedagógicas do corpo docente. Aquelas que se referem aos alunos são discutidas
exaustivamente com eles e reelaboradas em novas reuniões pedagógicas.
396
Uma das normas mais polêmicas, a do lanche limitado, em geral, a alimentos naturais, foi
elaborada após uma extensa pesquisa em supermercados, feita com as próprias crianças
em companhia de um especialista. Cada alimento de interesse das crianças era analisado
em termos de sua composição química e consequências para a saúde. Assim, foi
elaborada uma extensa lista de alimentos não obrigatoriamente “sem nenhum componente
artificial”, que podem ser trazidos de casa para o lanche. Tal lista é remetida aos pais.
Uma professora nos explicou alguns aspectos desse processo:
— “Primeiro, nos momentos de elaboração ou
reelaboração de normas, procura-se lembrar como
aquela norma nasceu. As regras surgem da prática, da
vivência. Elas surgem a partir da filosofia, por exemplo, a
alimentação natural. Essa regra foi muito questionada
pelos alunos. Então levamos as crianças a supermercados
com a profa. de educação ambiental para estudarmos
corantes, aditivos, etc. Daí surgiram concessões. Hoje é
possível trazer salgadinhos de algumas marcas menos
danosas à saude; pesquisamos os mais leves e fizemos,
juntos, uma lista. Com o tempo, passamos a observar que
os pais estão burlando a lista e enviando de outros tipos
mais pesados. Agora é hora de rediscutirmos essa regra.”
397
O julgamento ético pode ser percebido como um elemento de grande influência em todo o
processo. Nas reuniões pedagógicas, presenciamos a discussão de regras sobre a
violência, a autodefesa entre as crianças, etc. Após longos debates de fundo ético,
reforçou-se, dentre outras, as seguintes regras: vale bater, caso seja agredido por outra
criança do mesmo tamanho; nunca vale bater em colegas menores; meninos nunca
podem bater em meninas.
A questão da flexibilização das normas, também nos chamou a atenção pelo seu
fundamento ético. Uma professora nos deu o seguinte testemunho:
— “As normas podem ser flexibilizadas, mas nunca
ignoradas, vou dar dois exemplos :
‘Não pode ficar fora da sala de aula, se não estiver no
horário do intervalo’ , mas, se há um motivo justo e
sinceridade no aluno, então nós liberamos ele pelo tempo
que ele necessite, após conversarmos;
‘Refrigerante no lanche, nunca’ , mas, se a criança
trouxer esporadicamente um bolo, por exemplo, que tenha
um significado muito especial para ela, pois pode ter sido
feito pela avó, ou ainda ser uma sobra do seu aniversário,
etc., então fazemos a concessão;
398
Em quaisquer casos de flexibilização, a criança tem que
negociar conosco, e nós temos que lhe explicar as razões
daquela concessão.”
Por vezes, a resistência a determinadas normas vem da parte dos pais. Uma coordenadora
explicou a postura da escola:
— “Quando determinados pais furam frequentemente
algumas normas, então nós nos interessamos em
conversar com eles. Sabemos que eles têm algo a nos
dizer. Há atendimento disponível também para os pais.”
Como veremos adiante, a forma pela qual lida-se com as crianças na escola repercute
fortemente em todas as demais unidades da empresa. A escola foi a primeira célula a
funcionar, é compreensível a sua influência sobre os outros setores.
Assim, é que nesta rubrica, composta dos processos organizacionais hierarquia e normas,
o entendimento, elemento constitutivo da racionalidade substantiva, foi o indicador
predominante, a partir da análise das observações, das entrevistas e dos documentos. O
diálogo, a discussão constante, a comunicação intensa embasando negociações
frequentes, são como um meio de vida dessa organização.
399
De conformidade com nosso quadro de análise e das fontes de dados acima citadas,
também pudemos identificar a presença de outros elementos, embora não predominantes.
É o caso do julgamento ético, dos fins e do desempenho, estes dois últimos pertencentes à
esfera da razão instrumental. Embora atenuada, seja através da nítida predominância de
ações de entendimento, seja por meio de práticas de administração participativa, a
hierarquia se faz claramente presente no conjunto da empresa.
Assim, situamos essa rubrica/variável na escala de intensidade da racionalidade
substantiva como elevada.
Valores e objetivos organizacionais:
Na produtora de arte os técnicos gozam de grande dose de liberdade e expressam um alto
grau de comprometimento. No contexto de cada evento a ser realizado, eles desenvolvem
sua atividades sem qualquer tipo de constrangimento, impondo, cada um, o seu próprio
ritmo de trabalho (em geral, acelerado). Manuseiam recursos materiais diversos, como é o
caso dos recursos de comunicação, fax, telefone, transporte, etc., sem ter que pedir
autorização prévia para fazer telefonemas internacionais, por exemplo. O ritmo de
trabalho é intenso, principalmente nos dias que antecedem proximamente os eventos.
400
Nessas ocasiões, os horários de trabalho são significativamente ampliados. Não notamos
nenhuma insatisfação em decorrência disso.
O respeito à individualidade é também praticado. Como um exemplo, podemos citar uma
situação constrangedora, criada por um erro primário de um dos técnicos: ele enviou, por
engano, um fax contendo informações financeiras (valores de contrato, propostas de
preços, etc.) para um jornalista de um órgão da imprensa. Tal fax deveria ser remetido a
um conhecido ator. A chefia da produtora, ao saber do erro, o qual poderia acarretar
consequências nefastas para a imagem da empresa por razões óbvias, não usou de suas
prerrogativas hierárquicas para talvez pressionar exageradamente o técnico. O chefe
sublinhou o erro, e imediatamente agiu para corrigí-lo, utilizando-se de sua ampla rede de
contatos pessoais no ramo para recuperar o fax erroneamente enviado. A individualidade
e a dignidade do técnico não foram atingidas em função de um erro cometido.
Do exposto até aqui, pode-se evidenciar a importância de alguns dos valores
emancipatórios, tais como foram definidos no Capítulo IV: a solidariedade, o respeito à
individualidade, a liberdade e o comprometimento.
Fins de natureza técnica também podem ser detectados com alguma importância nos
objetivos. Eles são ligados estreitamente aos eventos, à sua concretização. Embora com
menor predominância que alguns valores emancipatórios, os quais, inclusive, estão
embutidos no estilo e textos das peças teatrais, os fins de ordem técnica também são
importantes objetivos a serem atingidos nas produções artísticas por eles desenvolvidas.
401
Na clínica, os valores emancipatórios permeiam o grupo desde a sua fundação.
Primeiramente, pudemos observar no grupo a presença de valores de cunho místico
ligados à Nova Era (Vernette, 1993; Redfield, 1994; Crema, 1989): a mudança e
aperfeiçoamento da sociedade, através da mudança do indivíduo; o conceito de “cura”; a
prática de rituais espiritualistas (semanalmente há uma sessão de meditação, quando os
profissionais da clínica se reúnem para meditar em grupo durante 30 minutos). Daí,
pudemos perceber também a presença dos valores da preservação da individualidade e da
liberdade: não há nenhuma imposição à participação nas sessões de meditação. Os
profissionais são convidados, não há cobrança da presença e, é comum notar-se a
ausência de alguns deles, por vezes dos próprios membros do Conselho. Uma profissional
que presta serviços de psicopedagogia nos declarou que não gosta de meditação; ela
nunca foi a nenhuma sessão e nunca sofreu qualquer tipo de pressão para participar.
O culto ao naturismo, em suas diversas matizes, tendo como pedra angular a alimentação
e a medicina naturista e homeopática, complementa os valores ligados à crença na Nova
Era. Mensalmente acontece uma reunião de todos os profissionais, incuindo os membros
do Conselho, visando discutir assuntos comuns, tomar decisões, etc. Essas reuniões são
realizadas sempre em horário de almoço, os participantes levam a refeição. Todos os
pratos são do cardápio naturista, destacando-se saladas de variados tipos. O naturismo, na
alimentação e na medicina, é visto como um dos meios de alcance do bem estar coletivo.
402
Para a administradora da clínica, a questão da visibilidade social dos valores do grupo,
está ainda em estágio de consolidação:
— “A Casa Via Magia já é vista há muito tempo como
escola alternativa, ou seja, que tem uma preocupação
ecológica, métodos avançados, etc. A Casa do Meio,
enquanto nova etapa do projeto Casa Via Magia, tem
uma visão integrada do ser humano, uma visão holística
de ‘saúde’. Mas, leva tempo até a comunidade perceber
assim.”
Para o médico homeopata, os valores do grupo são:
— “Simpatia, harmonia: empatia. Um composto de
energia que sustenta o concreto (hoje, pela primeira vez,
eu tenho um alvará de funcionamento, concedido pela
prefeitura). Há grande competência profissional no
grupo. Companheirismo autêntico, todos estão à procura
do seu ‘self’, mas sem atrapalhar o caminho do outro.
Não há competição, isso me dá segurança.”
Uma profissional de psicopedagogia percebe os valores da seguinte maneira:
403
— “Não vejo competição. Há uma coisa que envolve e
atrai: o humanismo. Há também uma relação com o
Cosmo, por exemplo, as práticas holísticas, a meditação
e outras.”
Um dos profissionais de psicologia, declarou que:
— “Existe a solidariedade, como postura, principalmente
partindo dos donos e da administradora. Isso contribui
para o crescimento de todos. Há uma coerência do
discurso explícito com a postura. Essa é a filosofia daqui:
crescimento e solidariedade. Não vejo um esforço voltado
exclusivamente para o lucro.”
No tocante à questão do lucro, vale ressaltar que a Casa do Meio, enquanto
empreendimento econômico, não foi concebido com objetivo da rentabilidade. Funciona
internamente como um condomínio, os profissionais alugam os espaços que utilizam e
pagam as despesas comuns. As despesas gerais são pagas pelos “condôminos”, o
equilíbrio orçamentário foi alcançado. A renda oriunda da exploração da lanchonete da
casa é revertida aos donos como forma de ressarcir as grandes obras que foram realizadas
nas instalações visando adaptar a casa, que servia antes a um órgão da prefeitura
municipal, a uma clínica de serviços de saúde e centro cultural. Esta é única fonte de
renda dos proprietários oriunda do funcionamento da Casa do Meio.
404
Sobre a questão do não retorno econômico, da ausência de lucro, um dos proprietários
assim se manifestou:
— “A Casa do Meio não nos retorna nada. Somente a sua
cantina. A Casa do Meio é um ‘canal de energia’, tem
modalidades diversas de cura. Isso é um benefício enorme
para a escola e para a Casa Via Magia como um todo. Há
um retorno de energia que não é monetário.”
A terapeuta membro do Conselho nos deu uma visão ampla dos valores e objetivos do
empreendimento:
— “Eu já vim com o meu projeto particular pronto, um
projeto de trabalho, de vida: educação, arte e saúde,
podendo conviver e se ajudar pacificamente. É um ideal
de muitos anos. Não houve longos planejamentos, a
escola já existia, os donos tinham sonhos como o meu,
então nos agregamos e chamamos outros profissionais.
Os valores que norteiam nosso trabalho são: o ser
humano visto de uma forma mais ampla que uma
determinada linha psicológica, sociológica ou médica; o
processo de cura, de emergência do que ele é em essência
e, isso implica percebê-lo de muitos pontos de vista. Aqui
405
existe uma complementaridade, até a homeopatia é assim:
não eliminar o sintoma mas, trazer à consciência a causa
e, eliminá-la. O processo terapêutico é assim. E desse
mesmo jeito agimos na escola. Para mim, o processo é um
só, da Casa Via Magia à Casa do Meio: educação, arte e
saúde. Embora cada um faça o seu trabalho, todos
buscam a integração do ser humano com a sua essência
última, nós temos a mesma visão de mundo.”
Os objetivos do grupo, enquanto configuração da Casa do Meio, decorrem diretamente
dos valores acima mencionados. A afinidade com tais valores e a competência em seu
respectivo campo de atuação, são os critérios básicos de composição do grupo. Tais
critérios servem ao Conselho como parâmetros de avaliação na entrada de novos
membros na clínica.
No processo de entrada de novos profissionais, a administradora revelou que o Conselho
examina,
— “A postura do indivíduo perante a vida. O seu estilo de
vida e de trabalho, ou seja, uma visão abrangente.”
Uma das psicólogas afirmou que a afinidade de valores e de objetivos foi fundamental
para a decisão de trabalhar no empreendimento:
406
— “Meus filhos já estudavam na escola e, eu já conhecia
a terapeuta mais antiga do grupo. Me tocou a linha de
trabalho da escola, percebí que seria a mesma linha, um
espaço de crescimento, só gosto de trabalhar em lugares
assim. Comecei a perceber a proposta de troca, de
harmonização do clima organizacional, bateu com os
meus critérios pessoais, há afinidade com minhas crenças
pessoais.”
A afinidade com os valores e objetivos organizacionais é confirmada como porta de
entrada para novos membros também na escola. A esse respeito, um dos proprietários se
pronunciou:
— “Nós [os proprietários] já trabalhávamos
anteriormente com arte e educação artística. Notamos
que a arte sempre ficava em segundo plano nas escolas.
Tivemos a idéia de fazer uma escola onde a arte ocupasse
outro plano. As pessoas que vieram para trabalhar na
escola, já atuavam com arte em algum contato conosco.
Nós já sabíamos que todas elas tinham afinidade com a
proposta naturista e ecológica. A origem dos nossos
professores está na arte, psicologia e educação,
justamente o tripé que embasa a Casa Via Magia. É
407
sempre alguém que tem, pelo menos, os pés em duas
partes desse tripé.”
Uma professora também se pronunciou sobre os valores e objetivos da escola:
— “Acho que há um holismo, mas não no sentido místico,
e sim no sentido integral: ecologia, alimentação, relações
sociais. Eu pergunto sempre: para quê educar ? Nossa
proposta não é impingir valores através das regras.
Nossa proposta é mais ‘orgânica’, ou seja, trabalhar os
valores nas relações e no trato com as crianças, na forma
pela qual passamos a educação. Acho o respeito ao outro
a grande questão.”
As relações eminentemente pessoais são o recurso mais comum para o convite à entrada
de novos membros. Através do conhecimento oriundo das relações pessoais pode-se
avaliar o grau de detenção de valores compatíveis com os valores organizacionais, bem
como a competência daquele profissional.
Da análise dos dados provenientes das fontes (observações e entrevistas) estabelecidas na
nossa proposta para a rubrica composta pelos processos valores e objetivos
408
organizacionais, ficou evidenciado que os valores emancipatórios, elemento da razão
substantiva, são predominantes.
No entanto, a importância dos fins de natureza técnica também deve ser relevada nesses
processos. Ele é um dos elementos que guiam os objetivos das atividades da produtora de
arte e também a ação da administração da clínica, na busca da eficácia em sua gestão.
Embora presente e importante, os fins de natureza técnica são amplamente superados em
predominância pelo conjunto dos valores emancipatórios.
Sendo assim, situamos essa rubrica/variável na escala de intensidade de racionalidade
substantiva na qualificação elevada.
Tomada de decisão:
No âmbito da produtora de arte, a grande maioria das decisões são tomadas por consenso,
mediante intensa comunicação verbal. Curiosamente, não confirmamos uma máxima,
muito popular no campo da administração, de que a decisão consensual é lenta. Talvez
pelo pequeno tamanho do grupo, talvez pelo elevado grau de entrosamento dos seus
membros, o fato é que as decisões não são lentas e não comprometem as ações
posteriores. A chefia quase sempre “pensa em voz alta” no momento da decisão,
significando uma espécie de convocação permanente aos técnicos para a discussão.
409
A estrutura material também é pequena. Observamos que o grupo procura e consegue
tirar proveito, ao máximo, dos poucos recursos que se têm. Este ponto revela uma
dimensão várias vezes presente nas decisões. O entendimento se sobrepõe à maximização
de recursos, mas ela é um fator decisório que não nos passou despercebido. Foi realizada
uma ampla modificação no lay out do escritório da produtora. Não houve um plano pré-
concebido, todas as decisões foram tomadas coletivamente, com base em acordos, havia
muitas sugestões e opções para a nova configuração. Decidindo coletivamente, passo a
passo, o grupo conseguiu utilizar a sua criatividade artística e acabou por produzir um
novo lay out bastante funcional e com uma decoração que primava pela beleza. Assim
procedendo, os poucos recursos que dispunham foram maximizados resultando numa
criação coletiva de boa qualidade.
Na preparação do lançamento do festival de arte dramática, pudemos constatar o
elemento cálculo influenciando nas decisões de um planejamento elaborado por fases,
ainda que decidido coletivamente.
A metodologia da observação participante nos dá a oportunidade de servimo-nos como
instrumentos da própria pesquisa. Assim, na clínica, percebemos que o julgamento ético
prevaleceu quando da decisão de início dos nossos trabalhos. A cada mudança da
observação de uma unidade da empresa para outra, tínhamos uma reunião com um dos
donos. A mudança da produtora de arte para a clínica implicava decisões de quando e
410
como começar. O proprietário não tomou tais decisões, declarou: — “é de bom tom que a
administradora decida isso com vocês”, apesar dele fazer parte do Conselho.
Durante as reuniões mensais dos profissionais, as decisões são, em sua maior parte,
referendadas, confirmadas. Boa parte delas já foram alvo de negociações anteriores,
empreendidas pela administradora, em contato com os profissionais diretamente
interessados ou afetados pela respectiva decisão. Contudo, algumas decisões coletivas são
tomadas, relativas a problemas comunicados naquele momento por intermédio de
lançamento de propostas e debate. O entendimento prevalece no processo, por meios bem
singulares.
Nessas reuniões, o pensamento do Conselho também é levado ao conhecimento do grupo
para análise e avaliação, os conselheiros se fazem presentes. Portanto, o julgamento ético
pode ser constatado, na medida em que o pensamento do Conselho assume a natureza de
pretensões de validez sujeitas a crítica, o que está de acordo com a proposição da razão
comunicativa elaborada por Habermas.
Quanto à participação dos membros da Casa do Meio nas decisões, ela é assim vista por
eles próprios:
— “O ponto que me arrebata na ação administrativa é a
sutileza em colocar os fatos e as idéias, como a
administradora quebra o impacto da decisão, negociando
411
previamente até chegar a um consenso. Na reunião, a
decisão já é de todos. O que é decidido no almoço, em
geral, já foi tratado antes, no corredor, em conversas
diversas, quando chega lá já está ‘amortizado’. Há muita
comunicação, a pauta é feita antes e discutida com os
interessados.”;
— “Sim, existe participação. Nós levamos nossas opiniões
e temos espaço para encaminhar questões, somos
ouvidos.”
Na escola, pelo fato dos donos estarem imiscuídos no desenvolvimento de todo o projeto
pedagógico, participando das funções de supervisão e coordenação, compartilhadas com
outras pessoas, trabalha-se sempre em grupo, sendo as decisões tomadas, em sua grande
maioria através de ações de entendimento.
As reuniões pedagógicas são exemplos de deliberação coletiva, com base no debate
racional. Tais decisões apoiam-se bastante no julgamento ético. Entretanto, também
notamos a influência do cálculo, devido a ênfase dada às consequências das decisões
tomadas, principalmente no que concerne às normas ali estabelecidas.
412
As observações e entrevistas, fontes de dados privilegiadas para a rubrica tomada de
decisão, nos forneceram elementos suficientes para perceber que o entendimento é o
indicador de racionalidade predominante.
Apesar de emergir da análise dos dados um outro indicador de razão substantiva, o
julgamento ético, a presença do indicador maximização de recursos tem um peso
significativo, embora não chegue a predominar sobre o entendimento. O elemento cálculo
também foi mapeado, ainda que também não seja predominante.
Tal configuração nos conduz a situar a rubrica/variável tomada de decisões na Casa Via
Magia numa escala de intensidade de razão substantiva como média.
Controle:
Devido a grande diversidade de tarefas a desempenhar, muitas das quais realizadas fora
da sede, a produtora de arte tem um instrumento de registro de despesas que transmite as
informações diretamente do setor financeiro, e deste à contabilidade externa. A
responsabilidade do controle das despesas é da chefia. No entanto, presenciamos uma
ação da chefia delegando o controle aos próprios técnicos: a chefia orientou-os como
fazer o registro, não o guardando mais para si. A base dessa delegação é o grau de
responsabilidade dos técnicos, fruto de ações de entendimento.
413
O controle financeiro era feito de forma integrada, abrangendo as três unidades da
empresa. Apenas uma conta bancária era movimentada, visando todo o fluxo monetário
das unidades. A partir de negociações entre as unidades, capitaneadas pela administradora
da Casa do Meio, decidiu-se desmembrar o controle financeiro, abrindo contas bancárias
para cada unidade. A idéia da administradora era estabelecer uma situação tal que cada
unidade gerisse o seu próprio desempenho, em termos financeiros. Assim, foi implantado
um livro-caixa para cada unidade, ficando cada qual com a responsabilidade de escriturá-
lo. Desta forma, a idéia de ressaltar o desempenho, por meio da atividade de controle
financeiro, foi aplicada às três subunidades da empresa.
No que tange à escola, o controle das atividades é realizado em grupo, viabilizado por
grande intensidade de comunicações face à face, seja nos grupos de coordenação e
supervisão, seja no grupo maior, quando das reuniões pedagógicas.
As observações, bem como as entrevistas por nós realizadas, aliadas ao exame de
documentos, forneceram-nos os dados suficientes para concluir que o entendimento
também prevalece no processo de controle da Casa Via Magia.
Tal predominância, no entanto, é acompanhada de perto, em grau próximo, pelo elemento
da razão instrumental desempenho.
414
Por conseguinte, a variável controle foi situada na escala de intensidade de racionalidade
substantiva como média.
Divisão do trabalho:
Na unidade produtora de arte, os técnicos gozam de grande autonomia, não há áreas fixas
de atuação. Há grande liberdade de expressão e ação de cada um, no contexto das
múltiplas atividades de preparação de um evento. As tarefas são negociadas através de
muita comunicação verbal, gerando acordos sustentados pela responsabilidade de cada
um. As ações de entendimento são continuamente praticadas.
Cada qual estabelece a escala de prioridades com relação aos contatos a serem efetuados
no bojo de cada evento; daí, operacionalizam, comprometem recursos, enviam
comunicações via fax, telefone, etc. É muito comum alguém não comparecer à sede
durante um turno, ou ainda, uma jornada inteira de trabalho. Os contatos externos são em
grande número. Nessas ocasiões, o técnico contrata os serviços de um táxi (já conhecido
pelo pessoal da produtora), estabelece o seu próprio roteiro, horário e só retorna ao
escritório após todos os contatos efetivados. Nunca presenciamos qualquer situação em
que os técnicos telefonassem da rua para dar satisfação de sua ausência no escritório ao
chefe.
415
Na divisão de trabalho entre os técnicos também se observa uma busca de otimização
(ainda que não como critério prevalecente), pela maximização dos recursos materiais e
financeiros disponíveis, os quais não são abundantes. Podemos dizer que a otimização
acaba sendo, na maioria das vezes em que ocorre, uma consequência e não o fator
predominante da divisão do trabalho.
Na montagem de uma determinada peça teatral, um dos técnicos foi aproveitado como
figurinista. Ele próprio se apresentou para desenhar os figurinos, foi a primeira vez que
isso aconteceu. Argumentou que já tinha estudado arquitetura e que tinha facilidade e
prazer em desenhar. Assim, a proposta foi imediatamente aceita pela chefia e o técnico
elaborou todos os figurinos da peça. A partir de então, assumiu a criação dos figurinos
das peças seguintes, tarefa pela qual ele demonstrava grande satisfação. Portanto, a
divisão do trabalho também leva em conta a questão da autorealização dos indivíduos.
A atitude dos membros da produtora revela um traço subjacente de orgulho pelo nível de
desempenho alcançado. O grupo é pequeno mas, consegue fazer acontecer eventos
artísticos de grande importância no circuito cultural da cidade. A performance é
considerada nos processos de discussão sobre as tarefas a serem assumidas por cada um.
Nesse nível, o cálculo passa também a fazer parte dos elementos constitutivos no
processo de divisão do trabalho.
Na clínica, a administradora tem grande autonomia, face aos proprietários e ao Conselho
como um todo, para implantar todo o sistema de funcionamento do apoio logístico aos
416
profissionais. Com destaque para a gestão financeira do condomínio. A extensão de sua
autonomia envolveu toda a empresa, ao modificar profundamente o sistema de controle
financeiro e contas bancárias, acima já mencionado.
A divisão de trabalho na escola é assim vista por uma coordenadora pedagógica:
— “A divisão está nas responsabilidades, pois há uma
proximidade muito grande entre as funções. A
coordenação, por exemplo, é o eixo entre a direção e os
professores, o que não quer dizer que direção e
professores estão distantes. Todos os avanços são
construídos pelas três dimensões.”
Numa determinada reunião pedagógica, veio à tona a questão da definição das tarefas das
assistentes, pessoas que prestam apoio direto às professoras em sala de aula,
principalmente nas classes em que estão as crianças mais novas. Algumas professoras
queixavam-se, pois diziam que as assistentes não queriam mais fazer o trabalho de
serventes (limpeza). Um acalorado debate se segue. Num dado momento, um dos
proprietários da escola, que coordenava a reunião, interviu e explicou que aquela era uma
séria questão, pois nas demais escolas as serventes fazem um trabalho “duro” mas que é
menosprezado: — “que satisfação têm essas pessoas e como anda a auto-estima delas ?”
Argumentou então, que não concorda com a perpetuação dessa situação, por isso na Casa
Via Magia as serventes passaram a ser assistentes e enriqueceram as sua tarefas. Mas, a
417
dificuldade é explícita e permanece, pois com a nova configuração do trabalho daquelas
pessoas, surgiram dificuldades no seu relacionamento com algumas professoras. A
questão fica sem solução. Percebemos uma tentativa de criar uma certa condição de
viabilizar autorealização das pessoas que trabalham como serventes/assistentes. Mas, a
tentativa mostrou-se, ainda, tímida.
Os dados que propiciaram o exame detalhado da rubrica divisão do trabalho, foram
retirados das fontes observações e entrevistas. Não há documentos disponíveis do tipo
organograma, descrição de cargos, etc. O exame nos fêz constatar a predominância da
autonomia, seguida de perto pelo entendimento, ambos elementos da razão substantiva.
Do lado da racionalidade instrumental, foi possível constatar os elementos desempenho e
cálculo. Gostaríamos de ressaltar ainda a identificação de traços dos indicadores
autorealização (razão substantiva) e maximização de recursos (racionalidade
instrumental).
Apesar da identificação de igual quantidade (três) de indicadores de cada tipo de
racionalidade na análise da variável divisão do trabalho, situamos essa variável na escala
de intensidade da racionalidade substantiva na posição elevada. Lembramos que, na nossa
proposição, o que mais importa não é a quantidade e sim a predominância do indicador
nos processos organizacionais (variáveis). A quantidade e variedade de indicadores
identificada é fruto da própria dinâmica que caracteriza as organizações contemporâneas,
no fundo, pode ser também considerada fruto da natureza íntima dos comportamentos
humanos no interior das organizações produtivas.
418
Comunicação e relações interpessoais:
Na unidade produtora de arte a comunicação apresenta um padrão de abertura inegável.
Ela é direta, essencialmente verbal e num tom coloquial. O lay out contribui para a
fluidez da comunicação: todos trabalham numa sala sem nenhuma divisória, todos sabem
de tudo o que se passa, não há conversas reservadas. A abertura, mola mestra da
autenticidade, é total e nos surpreendeu, pois logo no início dos nossos trabalhos, mais
precisamente no primeiro dia, o chefe teve uma longa conversa conosco, na qual explicou
os objetivos e sistema de funcionamento da produtora, a sua ligação à Rede Latino
Americana de Produtores Independentes e, acima de tudo, o chefe da produtora nos
forneceu todos os planos e metas da produtora enquanto membro da Rede. Tratava-se de
documentos da Rede e que nos foram confiados imediatamente.
O clima de liberdade estabelecido entre os membros do grupo gera uma grande
descontração nas relações. O que não quer dizer lassidão. Ao contrário, o desempenho é
um elemento considerado como de grande importância. Nesse contexto, a comunicação
livre e aberta contribui para elevar o desempenho, uma vez que as informações circulam
livre e rapidamente, todos sabem de tudo, assim um pode substituir ou responder pelo
outro a qualquer momento. As comunicações externas não sofrem de solução de
continuidade.
419
No entanto, a comunicação escrita, mais propriamente os registros, eram de péssima
qualidade. Nossa primeira tarefa enquanto membros ativos do grupo foi, não por outro
motivo, a reorganização dos registros, arquivos, informações sobre artistas e entidades
internacionais, etc. O grupo nos demandou imediatamente o cumprimento dessa tarefa.
Há uma busca de êxito ou ainda de resultados, na imagem de um evento bem realizado,
com sucesso ao menos no tocante a produção. O grupo reconheceu para nós que, naquele
ramo, alcançar resultados sem um bom sistema de informações é, pelo menos, difícil.
Entretanto, até a nossa chegada, as informações escritas deixavam muito a desejar.
As relações interpessoais são marcadas pelos valores da liberdade e da solidariedade. A
solidariedade é a base do relacionamento do grupo; todos se ajudam mutuamente. Apesar
de trabalhar num ritmo acelerado, as pessoas não apresentam no relacionamento
intragrupo uma postura que se poderia relacionar ao estereótipo da “postura profissional”.
Muito ao contrário, o extenso uso da palavra, aliado à autenticidade e a autonomia, faz
aflorar, naquele grupo, uma razoável dose de afetividade, tornando as relações muito mais
próximas do campo pessoal. A palavra e os assuntos tratados são inteiramente livres, fala-
se também da vida pessoal. As pessoas se mostram mutuamente através da palavra, onde
a narração é quase sempre o estilo preferido. Assim, o ambiente de trabalho acaba
tornando-se naturalmente uma extensão do “mundo da vida”, na acepção de Habermas.
Expressa-se claramente os sentimentos e crenças individuais. Os elementos desempenho e
êxito fazem parte dos conteúdos da comunicação e penetram nas relações interpessoais
mas, não são prioritários, nem por isso os eventos, as produções artísticas deixam de
420
acontecer com a infra-estrutura desejada. Tivemos a oportunidade de acompanhar a
montagem e realização de várias produções, de pequeno e grande porte.
Nos chamou a atenção não só o uso extensivo da palavra, mas também o conteúdo
emotivo que é embutido nela em várias ocasiões. Numa dessas ocasiões, a nossa
despedida após várias semanas de convivência, nos foi particularmente marcante: o grupo
promoveu, no escritório, uma reunião descontraída, do tipo “festa de despedida”, quando
cada membro expressou livremente o seu agradecimento pela nossa participação e
sentimentos de saudade.
Autenticidade e autonomia continuam a ser predominantes também na esfera
comunicativa e no ambiente de relacionamento interpessoal da clínica. As reuniões são
marcadas pela comunicação aberta, incluindo plena condição de expressão de opiniões
divergentes. Há, como na produtora de arte, uma ambiência de informalidade, com
aspectos lúdicos. Embora, o relacionamento não seja tão estreito, tão “familiar” quanto na
produtora. Além do grupo da clínica ser maior em tamanho, ela tinha sido inaugurada há
menos de um ano.
A autenticidade e a autonomia, aliadas a um cuidado, um respeito à individualidade, faz
brotar um equilíbrio dinâmico e desafiante entre o indivíduo e o grupo.
Na clínica, as informações são tratadas com bem mais sistematização do que na
produtora. A administração trata a comunicação como material de elevação do nível de
421
seu desempenho. Há um cuidado com as informações escritas, os registros, os controles
financeiros e contábeis. Percebemos a funcionalidade da ambiência caracterizada pela
autenticidade e autonomia: a abertura e a transparência fazem fluir rápida e precisamente
as informações, as reivindicações, as sugestões, o que serve de input para a administração
agilizar os seus procedimentos. Nas reuniões, por exemplo, todos os aspectos de conteúdo
das mensagens que são julgados importantes para operacionalização de tarefas, são
imediatamente anotados pela administradora. Há também a elaboração de atas das
reuniões, com cópias sendo distribuídas para todos os membros. Assim, dando tratamento
prioritário a informação, a administração busca melhorar o seu desempenho, agindo com
maior eficácia no atendimento às necessidades dos profissionais.
Questionada sobre como fazia para compatibilizar as necessidades individuais de 15
profissionais com o coletivo composto pela Casa do Meio, a administradora nos
respondeu:
— “A coordenação que fazemos é ‘full-time’, com a
política de ‘portas abertas’. A forma que estamos dando à
Casa do Meio está vindo no dia a dia, é um grande
aprendizado.”
Sobre o relacionamento interpessoal, alguns membros afirmaram que,
422
— “O relacionamento como um todo é agradável. A
constituição de um grupo é coisa rara. Nos encontros
mensais, fica claro até onde vai o limite da empresa e até
onde vai o limite individual. Há uma filosofia
participativa. A política é clara e aberta.”
— “O relacionamento entre nós é respeitoso. Existe
harmonia. Eu respeito muito a competência deles. A
administradora é também um elemento de ligação
harmoniosa entre os demais profissionais.”
— “Posso dizer que o relacionamento é cordial. Alguns
eu já conhecia antes. Não há competição. Na meditação
estamos vibrando juntos em função da casa. Além disso,
tudo é colocado claramente, esse é um grande ponto. A
afetividade também existe.”
Na unidade escola, a ordem de prevalência não se alterou. A franqueza pela qual os
indivíduos se relacionam, discutem questões e fornecem feed-backs, confirma, como nas
unidades anteriores, a autenticidade como elemento preponderante. O desempenho surge
como um elemento também importante na esfera comunicativa, no sentido de que se
busca antecipar problemas do dia a dia, tirar dúvidas de como agir, sobretudo as
professoras, para elevar a sua performance em sala de aula.
423
A autenticidade faz aflorar, emergir ao nível da palavra os valores emancipatórios que
guiam a prática construtivista apaixonadamente perseguida. Continua ainda, como nas
outras, a observar-se um clima geral de informalidade e descontração nas relações, as
quais, como no caso da produtora de arte, são extremamente pessoais, quase “familiares”.
Um dos donos da empresa nos revelou que na escola,
— “lutamos contra a especialização excessiva, senão fica
tudo muito separado, impessoal.”
O tempo de permanência na escola é outro fator que contribui para esse tipo de
relacionamento. Na pré-escola, a subunidade mais antiga, as professoras têm um tempo
médio de entre 5 e 7 anos. Entre as coordenadoras pedagógicas, uma está lá há 8 anos. A
rotatividade do pessoal docente é, em geral, muito baixa.
No que concerne ao emprego de termos específicos de linguagem no processo
comunicativo na empresa como um todo, observamos que a palavra “energia” adquire
uma importância digna de registro. O termo “energia” é largamente utilizado em todas as
subunidades da empresa, com um significado bastante amplo. Em geral, caracteriza algo
às vezes etéreo, porém que possui o estatuto de realidade. Significa algo que se pode
transmitir de uma pessoa a outra, de um grupo ao outro, podendo comportar uma
mensagem específica numa circunstância dada, um incentivo, uma ajuda, um meio
(inclusive o dinheiro) para realizar coisas importantes e, até conhecimentos (científicos
424
ou não) necessários e valorosos à vida profissional e pessoal. Aqui podemos identificar,
mais uma vez, a relação que o grupo mantém com alguns conceitos pertinentes ao que se
denomina comumente movimento Nova Era.
De acordo com os procedimentos de análise propostos no presente estudo, observações,
entrevistas e documentos nos forneceram os dados, dos quais reportamos alguns acima,
que propiciaram o exame da rubrica/variável comunicação e relações interpessoais.
Como ficou evidenciado acima, o exame dos dados revelou-nos a clara predominância do
elemento autenticidade. Tal predominância é respaldada fortemente, nessa organização,
em outro elemento da razão substantiva, os valores emancipatórios. Também foram
identificados os indicadores autonomia, desempenho e êxito/resultados.
A configuração resultante dos elementos de racionalidade, a importância relativa de cada
um no desenrolar dos processos de comunicação e relações interpessoais, nos fêz situar
essa variável, na escala de intensidade de racionalidade substantiva, na posição elevada.
Ação social e relações ambientais:
A produtora, pelo fato de ser filiada a duas redes de produtores independentes,
compartilha os propósitos comuns a essas redes. Os grupos ligados às redes visam levar a
425
sua arte ao grande público, independentemente do apoio seletivo de entidades detentoras
e/ou representantes do chamado grande capital. A intenção é viabilizar o intercâmbio
livre entre diversos pólos de arte vanguardistas e, promover grandes eventos em diversas
partes do mundo, num misto de autonomia e sinergia, que não fique sempre dependente
dos tradicionais patrocinadores, os quais nem sempre têm interesse em apoiar
manifestações artísticas ousadas, inovadoras. Há portanto, um componente da busca do
êxito embutido nas ações e também de valores emancipatórios.
A cada dois anos, a rede faz realizar um grande festival em uma das cidades que possui
um grupo a ela filiado. Salvador foi escolhida para sediar o festival do ano de 1994,
devido a atuação significativa da Casa Via Magia nesse ambiente social. Em setembro de
1993, foi empreendido um evento de lançamento do festival, na verdade um festival em
menores proporções.
O enraizamento da produtora na sociedade civil tem um aspecto facilitador: o chefe ocupa
o cargo de presidente do sindicato dos artistas da Bahia, o que confere à produtora
possibilidades amplas de penetração e participação do mundo cultural da cidade.
Na Casa do Meio, a ação social é assim analisada por alguns de seus membros:
— “Algumas pessoas aqui, como eu, trabalham com
grupos de cura, ou seja, expansão da consciência e
desenvolvimento do indivíduo. Nos anos 80, o movimento
426
cresceu muito porque a sociedade está sufocando o
indivíduo, ela está pipocando. Ou muda o indivíduo, ou
nada vai mudar a sociedade. Político ou política nenhuma
vai resolver as grandes questões, a não ser a partir do
momento em que o indivíduo aceite mudar como pessoa.
Nesse sentido, esse nosso trabalho é cada vez mais aceito,
pois tem mais a ver com a mudança social como um
todo.”
— “A Casa Via Magia tem uma mensagem para a
sociedade: o trabalho com o ser humano tem que ser feito
de forma integrada. Seja com o corpo físico, eliminando
as doenças que já se manifestaram. Seja desbloqueando
energias para que novas doenças não se manifestem, o
que implica todo um trabalho corporal. Seja com o corpo
em movimento, como no tai-chi. Seja os processos
mentais, nas terapias, ou o processo de autocura via
reeducação. E ainda, os processos com as crianças. Nisso
tudo há o essencial da Casa do Meio: nós acreditamos na
religação do eu com a sua essência. A Casa do Meio tem
essa mensagem ao social, o ser humano deve ser tratado
em sua completude. O processo não é religioso, embora
tenha fundamentos espiritualistas.”
427
— “Acho que se deve fazer mais eventos abertos a
comunidade, a movimentos sociais. Com o tempo, nós
vamos definir essa inserção mais ampla. Venho estudando
sobre as novas organizações e não me toca somente a
questão da qualidade do serviço, mas a qualidade das
relações, incluindo a relação com o contexto social maior
também. Eu faço um trabalho político, a partir da busca
do indivíduo, ele se posiciona também socialmente. É uma
visão do homem integrado, dando partida também a uma
reflexão social que não aliena e nem é alienada.”
— “A Casa do Meio veio por um fator de necessidade, eu
vejo assim. Há em Salvador clínicas onde trabalham
vários profissionais mas, não há uma filosofia. Temos
valores em comum e estamos construindo essa filosofia.
No decorrer do tempo vamos solidificar essa filosofia.”
Um problema que afeta a todos que participam da empresa, foi certa vez discutido numa
reunião mensal da clínica. Trata-se do difícil relacionamento com a comunidade
circunvizinha à sede da empresa. A Casa Via Magia, contrariamente a grande maioria das
escolas ditas alternativas, não se situa num bairro marcado por uma população de alta
renda. O bairro da Federação, onde está a Casa Via Magia, é habitado por populações de
428
média e baixa renda. A rua onde está a empresa dá acesso a uma favela e no início dessa
rua, justamente em frente à sede da organização, há uma grande escola pública de
primeiro e segundo graus. Vários problemas são enfrentados por todos que trabalham na
empresa, sendo os mais comuns os danos aos automóveis que ficam estacionados na rua e
o lançamento de objetos para dentro do espaço interno da sede. As queixas são constantes
e o incômodo vai assumindo proporções indesejáveis.
Fica claro que o pano de fundo de tais problemas é o desnível entre a Casa Via Magia e
seu entorno. A questão social, as gritantes diferenças sociais, econômica e educacionais,
entre os que frequentam a empresa e todos os outros que moram nas redondezas e/ou
estudam na escola pública próxima. Nesse sentido, a Casa Via Magia é um enclave
naquele meio social. E, enquanto enclave oriundo de desigualdades sociais, nada mais
natural, ao nosso ver, que problemas aconteçam, que as consequências se manifestem.
A discussão foi muito interessante, versou sobre todos os ângulos da questão. Uma
pergunta pairava no ar: qual a medida a ser tomada ? Um dos donos fêz um histórico do
problema. Ele já tinha descartado a idéia de solicitar policiamento ostensivo na rua.
Igualmente descartara a idéia de aumentar bastante a altura do muro que circunda as três
casas, pois,
429
— “Isso isolaria as pessoas, principalmente as crianças,
daqui com o mundo mais próximo”.
Partiu-se então, para uma série de iniciativas de aproximação: foi encenada
(gratuitamente) uma peça dentro da escola da escola pública, com o intuito de informar
um pouco do que se faz na Casa Via Magia e diminuir a sensação de distância entre as
duas escolas. Uma segunda medida foi a de contratar como vigia da sede da empresa, um
morador das redondezas, evitando uma atitude policialesca. Naquele momento,
aguardava-se os efeitos de tais medidas.
A tentativa de enfrentar o problema do desnível entre a empresa e a comunidade vizinha
através das medidas acima citadas, indica a esfera de valores que envolve a organização.
A fronteira com organismos altamente burocratizados sempre foi uma zona delicada.
Após muitas dificuldades, conseguiu-se finalmente legalizar a escola junto à Secretaria de
Educação do Estado. Segundo um dos donos, cerca de 80% das escolas infantis
alternativas em funcionamento na cidade, não possuem registro na Secretaria de
Educação. A legalização da escola foi considerada como uma grande realização. O
processo foi penoso, lento e complicado. Nas visitas de avaliação, os prepostos da
Secretaria questionavam e se indignavam com as práticas liberais da escola, bem como
com os currículos recheados de assuntos completamente estranhos aos praticados pela
maioria das escolas tradicionais.
430
Assistimos reuniões entre a direção e os pais que tencionavam matricular seus filhos, pela
primeira vez, na escola. Os donos falavam pela escola, apresentavam a metodologia de
ensino, as normas, os objetivos educacionais e, principalmente, os valores que embasam a
prática construtivista naquele estabelecimento. Sem nenhuma reserva, os donos relatavam
diversos casos que ocorreram com alunos, relacionados a temas como sexo, violência,
inaptidão, etc., temas delicados mas, que eram tratados abertamente com os pais, no
intuito de esclarecer completamente os valores que fundamentam a Casa Via Magia.
Assim, levantados os dados através de observações, entrevistas e dos documentos
disponíveis, para analisar os processos de ação social e de relações ambientais nessa
empresa. Da análise efetuada, emergiu a predominância dos valores emancipatórios,
elemento constitutivo da razão substantiva. Malgrado a identificação do elemento
êxito/resultados (razão instrumental) como um outro interveniente nesses processos
organizacionais, a predominância é dos valores emancipatórios, com boa margem.
Devido a tal constatação, é que situamos a variável ação social e relações ambientais na
posição elevada, concernente a intensidade da razão substantiva.
Em seguida, reportaremos a análise dos processos organizacionais complementares.
Reflexão sobre a organização:
431
Os processos efetivos e sistemáticos de reflexão sobre a organização acontecem no
interior das subunidades clínica e escola.
Na Casa do Meio, existem duas iniciativas que lidam, dentre outras atividades, com a
reflexão sobre a organização: o Conselho e a realização das reuniões mensais. A
princípio, o Conselho foi criado para coordenar a atuação da clínica mas, logo depois,
seus membros se deram conta de que, com a agregação da área de saúde, o projeto Casa
Via Magia alcançara definitivamente o estabelecimento de suas bases. Assim, o
Conselho, segundo depoimentos dos seus próprios membros, passa paulatinamente a
“pensar” a Casa Via Magia como um todo, assumindo um papel de integração entre as
três grandes vertentes do tripé educação-arte-saúde. Para um dos conselheiros,
— “Levei toda a minha vida buscando um lugar onde a
integração desses três eixos pudesse ser atingida. Sinto
que aqui ainda não chegamos a essa integração no grau
desejado mas, estamos só começando e eu acredito que
chegaremos lá.”
Os valores emancipatórios, complementados por uma visão de cunho holístico e do
movimento Nova Era, conforme detalhados acima, guiam a reflexão empreendida pelo
Conselho. No entanto, não podemos esquecer que o Conselho é uma instância formal de
432
poder, logo, de alguma forma, o processo ali realizado tem a marca do elemento fins,
relacionado ao poder.
As reuniões mensais constituem-se nos grandes foros de reflexão sobre a Casa do Meio.
À luz dos valores emancipatórios, da forma como são cultuados pelo grupo, discute-se
onde se chegou, o quanto foi avançado e o que se espera para o futuro. Devido ao pouco
tempo de lançamento do empreendimento, tais discussões começam a se consubstanciar
porém, notamos que a cada reunião, a reflexão ganhava um pouco mais de espaço. O
desempenho já dava claros sinais de seu peso no processo. Esse elemento possui um
destaque significativo no grupo da Casa do Meio. Talvez pelo projeto ter atraído, em sua
larga maioria, profissionais que já gozam de uma certa celebridade na comunidade,
profissionais que possuem uma extensa clientela.
Na escola, as reuniões pedagógicas são os grandes momentos de profunda reflexão
coletiva a respeito da organização. Os debates acabam sempre criando condições para
realizar balanços da ação e da filosofia da escola, questionando-as sob vários ângulos. Os
valores da mudança e aperfeiçoamento do social, do respeito à individualidade e da
liberdade afloram com grande intensidade, quando então os professores comprovam o seu
comprometimento com os caminhos a serem trilhados pela escola. A proposta
construtivista, adotada por todos, parece contribuir para o comprometimento. Uma
professora nos revelou que,
433
— “Aqui praticamos o construtivismo mas, não nos
moldes do modismo atual. Há várias escolas em Salvador
que se dizem ‘construtivistas’ porém, é preciso ter
cuidado. No fundo, não existe uma ‘didática
construtivista’. Aqui dissemos que há construtivismo
porque tudo foi elaborado aqui mesmo, com total
implicação dos alunos e professores.”
Ao empreender a reflexão, na análise de temas “delicados”, tais como sexo, violência,
regras, relações com os pais de alunos, o julgamento ético guia o processo. Pudemos
constatar que também na escola a questão do desempenho está presente na reflexão. Ao
realizar um balanço nas atividades da escola, preza-se o aumento do desempenho dos
professores. A Casa Via Magia possui uma ótima reputação entre as escolas infantis
alternativas de Salvador. É visível o impacto dessa reputação no grupo dos professores.
Para o aperfeiçoamento desejado, acredita-se ser mister a adequação das ações a uma
práxis construtivista, o que ressalta, em última instância, o elemento fins de natureza
técnica.
Dos dados obtidos por meio de observações e entrevistas, alguns dos quais fornecemos os
extratos acima, empreendemos a análise dessa rubrica, pela qual pudemos perceber que
os valores emancipatórios são predominantes. No entanto, o elemento desempenho ocupa
um destaque inegável, mesmo não sobrepujando os valores emancipatórios.
434
Complementarmente, os fins e o julgamento ético aparecem também como indicadores de
racionalidade no bojo desse processo organizacional.
Por conseguinte, na escala de intensidade de racionalidade substantiva para a variável
reflexão sobre a organização, indicamos a intensidade média.
Conflitos:
Na clínica, testemunhamos um descompasso de ordem financeira, entre a administração e
os profissionais. A taxa de condomínio era paga ao final de cada mês, logo, as despesas
correntes eram feitas pela administração. Num ambiente de inflação acelerada (ano de
1993), era evidente que ao realizar o pagamento das despesas durante o decorrer do mês,
segundo um raciocínio econômico-financeiro, a Casa do Meio financiava os profissionais.
Essa questão nos foi colocada pela administradora quando do início de nossas
observações na clínica. Ela a considerava, se não um conflito, ao menos “uma questão
delicada”, revelando de certa forma, em sua percepção, “choque de interesses”. A
questão nunca havia sido tratada, o pagamento do condomínio sempre se dera ao final de
cada mês, desde a abertura da clínica. A administradora demonstrava receios em abordar
o tema com os demais (alguns se queixavam do valor elevado da taxa de condomínio),
embora achasse que a situação não poderia continuar como estava.
435
A administradora decidiu então criar um fundo, com o objetivo de capitalizar o
condomínio para fazer face às despesas desde o início de cada mês. Essa decisão se
contrapunha a uma outra possível, que era a de alterar imediatamente a data do
pagamento da taxa, fazendo-a recuar para o início do mês. A implantação do fundo, por
outro lado, seria feita gradualmente, cobrando-se uma contribuição relativamente pequena
a cada mês, de modo a atenuar o impacto financeiro sobre os profissionais. Após a
tomada dessa decisão, a administradora a justificava assim:
— “Não se pretende prejudicar os profissionais,
impondo-lhes uma pesada carga porém, a Casa do Meio
também não pode continuar a assumir esse custo.”
As dificuldades previstas pela administração para operar uma brusca mudança na data de
pagamento da taxa de condomínio, iam além da questão financeira, adentrando ao nível
das interações e da comunicação. Argumentava a administradora que seria bastante difícil
explicar a pessoas que em sua maioria nunca lidaram com questões financeiras de
empresa, o que é um custo financeiro daquela natureza.
Dentre outras situações, essa nos demonstrou claramente que os fins, dessa vez de
natureza econômica, embasam a resolução de situações conflituais ou de choques de
interesses. Não entrando no mérito da questão, pois esse não é o nosso papel aqui e,
analisando friamente a situação, percebemos que embora o julgamento ético tenha
influenciado na opção por uma decisão mais amena para os profissionais, o mais
importante é que a condição econômica da Casa do Meio fosse preservada, logo, a
436
preocupação com os fins econômicos conduziu a adoção de uma medida. Pudemos
constatar também a presença do cálculo, pela antecipação das consequências, não só
financeiras, mas sobretudo comportamentais, da adoção de um determinada medida.
Entretanto, essa sutil presença do cálculo não conduziu à elaboração e prática de
estratégias interpessoais.
Nas reuniões mensais, um outro choque de interesses emergiu. Tratava-se da dificuldade
que determinados profissionais tinham para bem atender seus clientes, principalmente
alguns terapeutas, com o barulho que as crianças da escola faziam. Lembramos que as
três unidades da empresa funcionam em três casas conjugadas. A própria denominação
“Casa do Meio” surgiu em função da localização da clínica: justamente na casa que fica
entre a escola e a outra, que abriga a secretaria da escola e a produtora de arte. Com a
criação da Casa do Meio, a circulação ficou livre entre os três imóveis, e as crianças, no
horário de intervalo, brincavam nas áreas de fundos das casas, as quais foram expandidas
pela incorporação do imóvel intermediário.
Se por um lado, achava-se que não se devia proibir ostensivamente as crianças de brincar
nos espaços disponíveis durante o período de recreio, por outro lado, argumentava-se que
determinadas técnicas terapêuticas requerem uma ambiência própria, incluindo um certo
nível de silêncio. Decidiu-se, então, que as crianças seriam aconselhadas a não fazer
barulho nos espaços dos fundos da Casa do Meio, antes de interditar totalmente aqueles
locais. Essa decisão foi tomada em sentido provisório, ficando em observação para futura
avaliação dos seus efeitos. Novamente, ainda que o julgamento ético tenha sido levado
437
em consideração, no caso, a não limitação repressiva de manifestações das crianças em
seu horário de recreio, uma medida foi efetivamente tomada visando garantir o alcance
dos fins técnicos (a adequação técnica das condições de trabalho de parte dos
profissionais). Tal medida, inclusive, tinha o caráter provisório, pois se os efeitos não
fossem os esperados, pensava-se em interditar definitivamente a área.
Uma situação de conflito profundo foi observada entre a administradora da clínica e a
contabilidade contratada externamente, junto a um escritório de prestação de serviços. A
administração constatara uma gama variada de erros oriundos do descaso com o qual era
tratada a escrita contábil da empresa. Tais erros, segundo a administradora, poderiam
causar sérios riscos fiscais e comprometer o equilíbrio financeiro da empresa. O conflito
entre a administradora e a contabilidade externa foi então deflagrado. Como resultado do
embate, constatamos que apesar de vir prestando serviços à empresa por muitos anos, a
contabilidade acabou por perder o seu cliente.
Novamente, nos colocamos de modo imparcial ao analisar a situação como um todo. Os
fins econômicos prevaleceram, na medida em que foi primordial garantir o equilíbrio
financeiro da empresa. Por último, foi inegável o elevado grau de autonomia de
ação/expressão da administradora no decorrer do conflito.
A autonomia também se manifesta na conduta dos profissionais durante as reuniões
mensais. Se bem que não se pode considerar as queixas e pleitos como propriamente
conflitos, mesmo que algumas revelem choques de percepções, os membros da clínica
438
veiculam livremente suas queixas e demandas, em sua maioria relacionadas à questão das
condições técnicas adequadas de trabalho (fins).
Sobre conflitos no âmbito da clínica, alguns profissionais se manifestaram:
— “Ainda não os percebí, enquanto foco de tensão maior.
Existem situações-problema, que têm sido tratadas
realisticamente e com solidariedade. Dessa forma, vejo
que as situações-problema não evoluem para conflitos
cristalizados.”
— “Por enquanto, nada grave. Mas acho que poderá
acontecer conflitos, devido a relação comercial e, mesmo,
a relação interpesssoal.”
— “Até agora não ví nenhum conflito e sim questões e
problemas. Conflitos mesmo, não.”
— “Ainda não presenciei nenhum conflito. Eu, por
exemplo, ocupo muito determinados recursos como
telefone, dou muito trabalho a recepção, a qual serve a
todos, pois tenho cerca de 1.500 clientes cadastrados e
uns 600 rotativos. Eu sei que dou muito trabalho mas, até
agora, não tive conflitos.”
439
No âmbito da escola leva-se as narrações dos conflitos cotidianos para as reuniões
pedagógicas. Nessas sessões, a liberdade de expressão é total, muitas oposições se
estabelecem, por vezes elevando bastante o nível de tensão. A franqueza e os sentimentos
são manifestados sem constrangimentos, embora o respeito mútuo nunca seja
transgredido. Algumas discussões são duras, acaloradas, elevando sensivelmente a
“temperatura” do clima de interações, embora sem falta de respeito mútuo. O que revela
autonomia e autenticidade.
O julgamento ético está subjacente, pois o respeito é preservado todo o tempo, apesar dos
duros feed-backs. A ética é ponto marcante nas resoluções dos conflitos: cultua-se a
autocrítica do professor, ceder é bom mas, até que ponto ? qual seria o limite ótimo ? eis
uma das questões mais debatidas. O julgamento ético acaba por apontar o limite, caso a
caso.
De certa forma, também os fins ligados a interesses técnicos influenciam o curso da
resolução dos conflitos. A filiação a uma proposta de cunho construtivista conduz, por
vezes, a resolução para elementos essencialmente técnicos.
Observações e entrevistas compõem as fontes de dados para a análise dos conflitos. Pela
primeira vez, até aqui, a predominância recai num elemento constituivo da razão
instrumental, nesse caso, os fins. Eles guiam, na maior parte das vezes, os processos de
440
resolução de conflitos. Situações em que o elemento cálculo teve a sua importância foram
também mapeadas.
Indicadores de razão substantiva, tais como julgamento ético, autonomia e autenticidade
surgiram também como intervenientes nas situações de conflitos, no entanto, a
predominância dos fins não foi superada.
Assim, a intensidade de racionalidade substantiva, na variável conflitos, foi indicada
como baixa.
Satisfação individual:
Os técnicos lotados na produtora de arte apontam como causas do bom grau de satisfação
no trabalho: a autonomia que possuem, o clima descontraído de trabalho e a possibilidade
de criar, de exercitar seus dons. A condição de realizar atividades diversificadas, inclusive
concretizando os seus próprios pontos fortes e exercitando seus conhecimentos, cria a
condição de satisfação para eles. O aproveitamento das habilidades de desenho e de
criatividade de um dos técnicos para elaborar figurinos, já citado anteriormente, foi uma
grande fonte de satisfação para ele e, aqui, serve como ilustração de nossa análise.
441
O desempenho elevado de uma pequena equipe que consegue “pôr na rua” grandes
produções, é também uma fonte de satisfação, pois relaciona-se ao êxito, ao sucesso,
dimensão de grande significação no meio artístico.
Na clínica, existe satisfação individual, em parte pela participação num projeto ousado,
que integra educação, saúde e arte, em parte pela possibilidade de fazer bem o seu
trabalho e também por estar cercado de profissionais reconhecidamente competentes,
num clima agradável.
Vejamos o que é percebido pela administradora:
— “Em geral, há grande satisfação dos profissionais em
estar aqui. Alguns problemas com profissionais
debutantes, que não têm ainda uma grande clientela, para
esses é sempre mais difícil fazer face às despesas. Mas
estamos ajustando isso, por exemplo, dividindo os
horários vazios de suas salas com outros profissionais,
como é o caso do professor de música.”
E o que nos revelaram alguns outros:
442
— “Aqui a minha satisfação é o compartilhar. Eu não sei
trabalhar num ambiente de competição.”
— “Eu estou me sentindo tão bem que tomei até a decisão
de deixar a sala de aula no ano que vem, ficarei na escola
somente como coordenadora. Se essa experiência não
fosse positiva, eu não teria decidido isso. Aqui, apesar
das minhas dificuldades, eu só tenho crescido. Vou
investir de vez na psicopedagogia.”
— “A minha satisfação é muito alta. Estou muito bem
aqui. Esse espaço me ‘recupera’. O ambiente é muito
gostoso. Sinto que aqui é o meu espaço.”
— “Estou muito feliz porque estou muito integrada à
minha perspectiva de vida. Eu acredito nisso.”
— “Estou me sentindo muito bem. Eu me sinto mais
considerada do que em outros lugares onde já trabalhei.
Os empregados também são abertos e cordiais, tudo isso
cria um astral alto, fora o fato de estar entre profissionais
de grande competência.”
443
A recepcionista nos declarou:
— “Estou bastante satisfeita, principalmente pela
maneira como sou tratada pelos profissionais.”
Na escola, novamente a autorealização é o grande fator de satisfação, a liberdade e o
incentivo a criação, impulsionam o grupo a continuar a desenvolvendo uma proposta
construtivista ousada. Os livros didáticos, por exemplo, são elaborados pelos próprios
alunos, assim, quando uma classe avança de um ano letivo para o seguinte, herda os
livros didáticos elaborados pela classe que ocupava aquele nível anteriormente. A
experimentação, a ousadia (possível devido ao grau de autonomia) e a pesquisa
permanente realizada pelo corpo docente, foram fundamentais para aperfeiçoar esse
método nos últimos anos, hoje, o processo se consolida e, já existem duas editoras
oferecendo-se para publicar esses livros didáticos.
O corpo docente se entrega ao trabalho de criação com grande entusiasmo. Já dissemos
acima que a Casa Via Magia é uma célebre escola infantil alternativa da cidade. Essa
fama é um outra fonte de satisfação, relacionada ao êxito e ao desempenho. Em diversas
reuniões, os professores frequentemente relembram que,
— “somos uma escola diferente das outras, mesmo
daquelas que se dizem alternativas ou construtivistas.”
444
Os incentivos financeiros não são a fonte principal da satisfação, nem na escola nem na
empresa como um todo. Não levando em conta os profissionais da Casa do Meio, pois
esses são, em sua maioria, profissionais liberais não assalariados, os salários pagos aos
que têm vínculo empregatício com a empresa estão na média do mercado e, no caso dos
professores, ligeiramente acima dessa média. A rentabilidade da escola tende a ser menor
do que a das outras escolas particulares em geral, devido a limitação de 15 crianças por
classe e a contratação de professores especializados, tais como professsores de música, de
educação ambiental, etc. A “remuneração” mais importante e que acarreta satisfação, é a
possibilidade concreta de autorealização, seja pela liberdade de criação, ou pelo
investimento permanente em formação/desenvolvimento do pessoal.
Um dos donos se pronunciou sobre tais assuntos:
— “Dinheiro é um tipo de ‘energia’, não é ? A gente
trabalha com muita energia também, uma energia que é a
nossa base, tudo isso passa pela psicologia, arte e
pedagogia. A gente troca energeticamente com todos que
conosco trabalham. Damos muita chance de formação.
Todo o meu trabalho e conhecimento acumulado em vinte
anos eu divido, eu entrego. Em geral, as pessoas se
apóiam muito em coisas materiais. Eu me considero mal
paga pelo meu próprio projeto, mas sou superfeliz. Eu
quero é realizar coisas. Realizar um desejo.”
445
Uma das três coordenadoras pedagógicas e também professora, que foi convidada a
participar da Casa do Meio oferecendo serviços de psicopedagogia, referiu-se dessa forma
à questão dos incentivos:
— “Os professores mais antigos ganham 3 mensalidades,
os mais novos, 2,75. Acho que deveria haver um plano de
carreira. Relativamente às outras escolas particulares,
não se paga mal, levando-se em conta que só temos 15
alunos em cada classe. Em outras escolas pode-se
facilmente encontrar o dôbro ou mais de alunos. A
administração busca alternativas para aumentar o ganho
e o crescimento dos professores. Eu e mais duas colegas
estamos na Casa do Meio, iniciando um trabalho como
profissionais liberais. Eu acabei de fazer um curso de um
ano e meio sobre psicanálise.”
A escola pratica uma política econômico-financeira um tanto quanto original: a cada mês,
o índice de reajustes de mensalidades fornecido pelo sindicato das escolas particulares de
Salvador é utilizado não só para reajustar mensalidades, mas também todos os salários
daqueles que trabalham na escola, ou seja, professores, assistentes, secretária, porteiros,
etc. Efetua-se, portanto, um reajuste geral, em linha. Essa medida tem contribuído para
que nunca houvesse uma só greve de professores desde a fundação da escola Casa Via
446
Magia (o que não deixa de se constituir também num traço original dentro do seu ramo),
enquanto que nas demais escolas da cidade, as greves vêm ocorrendo com frequência há
vários anos,
A secretária geral da escola fêz uma rápida comparação com um outro emprego anterior:
— “Eu trabalhava num gabinete de um vereador. Não
aguentei de ver tanta falta de honestidade. Honestidade
para mim é tudo. Aqui eu trabalho muito mais que lá,
trabalho bastante mas, gosto muito. As pessoas,
principalmente os donos, têm muita confiança em mim.”
Enquanto fontes de dados para o exame da rubrica satisfação individual, as observações e
as entrevistas foram suficientemente esclarecedoras para nos mostrar que a
autorealização é o indicador predominante de racionalidade nesse processo. Há, em
geral, um alto grau de satisfação individual gerada pelo trabalho, pela participação na
Casa Via Magia, o entusiasmo é patente nos membros da organização. A autorealização,
nesse caso, auxiliada pela autonomia, é largamente predominante sobre alguns outros
elementos constitutivos da razão instrumental que se fazem presentes na rubrica
satisfação: o êxito e o desempenho.
447
Não é por outra razão que consideramos a intensidade de racionalidade substantiva, na
variável satisfação individual, como muito elevada.
Dimensão simbólica
Os membros da produtora de arte representam os valores nos quais se fundamentam, não
só através de suas atitudes mas, também pela maneira como se apresentam, como se
vestem. As roupas comunicam estilos de vida, valores e crenças. A maneira pela qual se
vestem os técnicos da unidade produtora de arte comunica a liberdade, a descontração, a
autonomia. Não que nas outras unidades as pessoas se apresentem formalmente, mas é
que na produtora os membros do grupo constróem uma imagem que se destaca das
demais. Talvez tenhamos que levar em conta de que são artistas desempenhando um
trabalho técnico, contudo trabalhando pela arte. Os adereços, a forma despreendida e
ousada de se vestir, combinando e recombinando ao bel prazer variados estilos de moda,
dão um tom de leveza, possibilidades, liberdade e criação. Comunicam.
Não vamos nos ater muito mais à questão dos valores que predominam no grupo, uma
vez que cremos tê-los já discutido exaustivamente. Aqui estamos apenas ressaltando
aspectos gerais do simbólico.
448
Na clínica, a simplicidade e espontaneidade são iconizados até pelo tipo de mobiliário,
lay out e decoração utilizados. Apesar de ter as suas instalações recentemente reformadas
— tudo é novo —, a Casa do Meio comunica em suas soluções arquitetônicas internas
um ar de simplicidade e bom gosto. Um jardim de inverno, muitas plantas, com o verde
combinando suavemente com a grande quantidade de objetos e paredes em cor branca.
Certamente, uma atmosfera um tanto quanto ecológica, verde, consubstanciada no
naturismo inserido no conjunto dos valores e, concretizada em manifestações como o
almoço/reunião mensal, onde só se pode levar comidas naturais. Prática extensiva à
lanchonete, onde os lanches e opções não contemplam alimentos com conservantes,
corantes e produtos químicos considerados prejudiciais à saude. Ainda, as regras do
lanche das crianças na escola e a sua lista de produtos não prejudiciais.
As sessões de meditação na Casa do Meio, abertas a todos os que trabalham na empresa,
geralmente são realizadas numa sala, sob uma tênue luz azulada e com um cristal ao
centro, acompanhada de um insenso, numa atmosfera típica das práticas de
desenvolvimento espiritual utilizadas pelos adeptos do movimento Nova Era, inspirados
em povos de determinadas regiões do Oriente.
Certa feita, um dos donos nos contou que, na abertura da Casa do Meio, ele tinha uma
grande dúvida: aceitava a proposta de arrendamento da lanchonete, que iria funcionar na
clínica, ou a explorava ele mesmo ?
449
— “Eu não sabia o que fazer, então consultei o oráculo. A
mensagem foi mais do que acertada: decidí, então,
assumir a lanchonete e nunca me arrependí disso.”
Há ainda, nas noites de lua cheia, uma sessão de meditação especial, mais ampla,
realizada no pátio da escola e aberta a amigos e convidados que não só membros da
empresa: a “meditação da lua cheia”.
No âmbito da escola é possível notar também a predominância dos valores
emancipatórios, enquadrados num pano de fundo do tipo Nova Era. Nas reuniões
pedagógicas, faz-se curtas sessões de relaxamento e meditação no início e ao final; todos
os participantes ficam sem sapatos durante todo o desenrolar da reunião.
Para nós, é evidente que o conjunto de valores emancipatórios os quais arrolamos no
nosso quadro de análise, não conduz nem se confunde, necessariamente, com a crença
atual intitulada Nova Era. Queremos dizer, em outras palavras, que a mudança e o
aperfeiçoamento do social, o bem estar coletivo, o respeito à individualidade, a liberdade
e, o comprometimento, não teriam obrigatoriamente que acarretar uma inserção causal
nas práticas do movimento Nova Era. Tais valores não são novos, como o é a onda da
Nova Era em si. Esses valores fundam aspirações libertárias há muitos séculos e estão
suficientemente testemunhados na história das civilizações. Mais particularmente, no que
tange à sociedade industrial, em seus trezentos anos de edificação, esses e outros valores
450
correlatos, fundaram, sustentaram e justificaram inúmeras ideologias e movimentos, em
diversas fases históricas.
O que percebemos e registramos aqui, é a correspondência desses valores, aos quais
denominamos emancipatórios, com aqueles defendidos pelas pessoas que compõem,
coincidentemente, as organizações que estamos analisando. O que nos interessa mais, é
perceber como tais valores, focalizados pela ótica da Nova Era ou qualquer outro
conjunto de crenças, colonizam o imaginário de um grupo, habitam-no e daí manifestam-
se numa determinada práxis administrativa. Assim, objetivamos analisar as
racionalidades embasadoras das ações dos indivíduos, no interior de organizações
produtivas.
Continuando a relação dos elementos que relevam da dimensão simbólica na Casa Via
Magia, notamos que a noção de êxito no empreendimento foi sensivelmente reforçada
pela organização, através da atenção dada pela administração aos aspectos financeiros.
Para a administradora, ter as finanças em ordem é indispensável ao sucesso da
organização. Ela conseguiu introduzir no imaginário de vários membros da empresa,
principalmente dos donos, a idéia de que a administração financeira é importante, mais
que isso, é importante e fundamental para o sucesso do negócio. Após as sua
intervenções, diversas pessoas comentam sobre as finanças. Assim, finanças acabou se
tornando um “tema na agenda da organização”, como diria Peter Spink, professor da
Fundação Getúlio Vargas.
451
As manifestações concretas desse novo elemento na dimensão simbólica, foram as
mudanças aceitas pela direção (troca de contador, implantação de novos instrumentos de
acompanhamento financeiro, divisão das contas bancárias por unidade da empresa), o que
claramente revela um maior cuidado com a atividade financeira. A idéia básica das
mudanças é de que cada unidade deve ser viável e ter autosustentação, elevando o seu
desempenho, acima de tudo sob o ponto de vista da utilidade. Dessa forma, seria
alcançado pleno êxito em toda a organização.
Os valores emancipatórios, em seu conjunto, focalizados quase sempre pela via do
movimento Nova Era, ecologismo, naturismo, etc., dominam amplamente a cena do
simbólico. Seja ao nível do imaginário, seja no plano da iconicidade. Foi o que pudemos
constatar do exame de dados que foram coletados mediante observações, entrevistas,
análise de documentos e de materiais diversos, aqui incluso também os materiais de
decoração e as soluções arquitetônicas da sede da empresa.
Não obstante a constatação acima, a razão instrumental também se faz presente através
dos elementos êxito, desempenho e traços de utilidade. Ainda que em número de três, tais
elementos estão muito aquém do grau de predominância dos valores emancipatórios na
dimensão simbólica da organização. Portanto, na escala de intensidade de racionalidade
substantiva para a variável dimensão simbólica, indicamos a posição muito elevada.
Análise global da Casa Via Magia:
452
Findo o detalhamento da análise de cada processo organizacional, apresentaremos por
meio da figura 5 (página seguinte) um quadro-resumo da análise da Casa Via Magia.
453
Processos Organizacionais
( rubricas / variáveis )
Elementos / Indicadores de Racionalidade Predominantes
Intensidade de Racionalidade Substantiva
Hierarquia e normas
Entendimento
Elevada
Valores e objetivos
Valores emancipatórios
Elevada
Tomada de decisão
Entendimento
Média
Controle
Entendimento
Média
Divisão do trabalho
Autonomia
Elevada
Comunicação e Relações interpessoais
Autenticidade
Elevada
Ação social e Relações ambientais
Valores emancipatórios
Elevada
Reflexão sobre a organização
Valores emancipatórios
Média
Conflitos
Fins
Baixa
Satisfação individual
Autorealização
Muito elevada
Dimensão simbólica
Valores emancipatórios
Muito elevada
Casa Via Magia ( análise global )
Valores emancipatórios
Elevada
Figura 5 - Quadro-resumo de análise da Casa Via Magia
454
No quadro de análise acima, destacamos:
a) Os elementos constitutivos de racionalidade que se revelaram como predominantes em
cada processo organizacional (variável);
b) A posição obtida por cada variável do nosso estudo na escala de intensidade de
racionalidade substantiva;
c) O elemento constitutivo de racionalidade que mais predominou na empresa como um
todo;
d) A posição geral da empresa, na escala de intensidade de racionalidade substantiva.
Por meio do quadro-resumo, podemos ter uma visão sintética de como a racionalidade
substantiva se mostra prevalecente no conjunto dos processos organizacionais estudados.
Dos onze processos analisados, a racionalidade substantiva prevalece em dez. Apenas no
processo conflitos, que representa a forma pela qual os conflitos são frequentemente
encarados e solucionados, observa-se a predominância da racionalidade instrumental
(elemento constitutivo fins), embora ela tenha sido detectada sem predominância — é
sempre bom frisar — em todos os demais processos, como foi demonstrado acima.
Em todos os sete processos organizacionais essenciais — hierarquia e normas, valores e
objetivos, tomada de decisão, controle, divisão do trabalho, comunicação e relações
455
interpessoais, ação social e relações ambientais — a racionalidade substantiva é
predominante.
Os valores emancipatórios são os elementos mais predominantes na organização como
um todo, seguidos de perto pelo entendimento. Uma organização fortemente calcada em
valores, fundada pelo voluntarismo dos seus donos, os quais foram agregando pessoas
que, nas mesmas áreas de atuação profissional, acreditassem nos mesmos valores, em
geral.
Os valores emancipatórios são a base dos valores dominantes na organização, bem como
são a fonte dos objetivos da empresa. Tais valores são os referenciais primordiais nos
processos de reflexão sobre a organização, quase sempre empreendidos coletivamente.
Povoam acima de qualquer outro aspecto, a dimensão simbólica do grupo, orientando o
rumo da ação social e as relações da empresa com outras organizações.
Uma tal configuração, ao nosso ver, naturalmente necessitaria de intensos esforços de
comunicação para que pudesse concretizar os valores professados e desejados. Não é por
outra razão, que o entendimento é o tipo de ação imediatamente predominante, após a
discussão e expressão dos valores. A natureza de tais valores exige um elevado
investimento em acordos, em consensos, para que possa prevalecer. As ações orientadas
ao entendimento são a ponte para a afirmação dos valores numa práxis cotidiana. Sem a
presença maciça de ações desse tipo, supomos que a tão falada “distância entre o discurso
e a prática” se verificaria e, os efeitos poderiam ser bem outros.
456
Não se trata de uma organização com ideais igualitários. Claramente, não estamos diante
de um projeto autogestionário. Nem tampouco ouvimos, de quem quer que seja, qualquer
alusão ao igualitarismo ou ainda a autogestão nos oito meses que trabalhamos nessa
empresa. Existe a hierarquia, isso é ponto pacífico. Há chefes, entre os quais, os donos
são os principais. Existem níveis decisórios que se diferenciam, embora quase sempre
compostos de colegiados. Há empregados que são completamente alijados de qualquer
participação nas decisões, seu papel se resume a cumprir tarefas, embora na Casa do
Meio a administradora lance mão de recursos de administração participativa com os
empregados: há uma reunião mensal entre ela e eles para discutir sobre o trabalho. Nesse
sentido, dificilmente chamaríamos essa organização de “coletivista”, na acepção de
Rothschild-Whitt.
Trata-se sobretudo, de uma organização em que a negociação permanente emerge com
grande força. Esse é talvez, o seu maior trunfo. Não podemos esquecer que essa é uma
empresa de sucesso no seu ramo de atividades. Que se expande mas, não na direção do
crescimento incontrolável — como a maioria das organizações de sucesso onde
elementos como êxito, desempenho e fins são predominantes. A Casa Via Magia se
expande, até então, ao ponto onde possa concretizar o ideal de integrar educação, arte e
saúde numa filosofia comum, de cunho emancipatório. Após a criação da Casa do Meio,
a empresa conta com cerca de 50 membros. A negociação permanente, expressa-se na
prevalência das ações orientadas ao entendimento justamente em processos
457
organizacionais-chave, como a hierarquia e estabelecimento de normas, a tomada de
decisão e o controle.
O intenso uso de comunicação verbal, face a face, de busca incessante de acordos que
venham a acarretar a responsabilidade e a satisfação sociais, dilui consideravelmente o
peso da hierarquia, embora não o elimine. Isto é possível porque o substrato das
comunicações e, por conseguinte, das relações interpessoais, é a autenticidade. A
franqueza, a abertura e a transparência, cimentam os valores à prática, gerando a
confiança mútua necessária para que o entendimento prevaleça em processos tão
delicados (pois intimamente ligados ao poder), tais como hierarquia, normas, tomada de
decisão e controle.
Acima de tudo, observa-se a liberação e liberalização da palavra. A palavra é livre. Vale
expressar-se, desde que seja com autenticidade e respeito ao outro. A palavra libertada
conduz processos grupais a estágios inimaginados, liberando a criatividade. Assim é que
interpretamos a constatação de que a autorealização é a maior fonte de satisfação
individual. Vale expressar, vale ousar, vale arriscar. A organização arrisca, a escola
arrisca desde o seu início, hoje já possui uma metodologia própria e detém uma reputação
invejável em seu ramo na Bahia. Há um clima permanente de experimentação.
A criatividade não é compatível com padrões rígidos, logo não nos surpreende o fato da
autonomia prevalecer na divisão do trabalho.
458
Os fins de natureza técnica prevalecem na resolução dos conflitos, os quais não são
comprometedores da sobrevivência da empresa, uma vez que o intenso investimento em
comunicações verbais face a face, orientadas ao entendimento e baseadas em
autenticidade, acabam por reduzir os riscos de graves rupturas a partir de conflitos
cristalizados. Para nós, a importância dos fins de natureza técnica na solução dos
embates, indica um senso de “cientificismo” exacerbado, uma grande dose de importância
dedicada ao conhecimento sistematizado. É uma organização composta por pessoas, em
sua larga maioria, de formação educacional superior, onde a ciência ocupa uma posição
de destaque.
É por isso que há tanta valorização do desempenho porém, um desempenho oriundo não
de estratégias organizacionais que visam desbancar concorrentes num mercado percebido
como uma “guerra” (daí o termo estratégia utilizado pela teoria de administração). Não se
tem orgulho a partir de uma esperteza, uma manobra estratégica, e sim da competência
técnico-científica. Para a produtora de arte e para a Casa do Meio, foram convidados entre
aqueles profissionais que tinham valores semelhantes aos defendidos na empresa, os
melhores, os mais competentes. Na escola, estuda-se incessantemente e investe-se
permanentemente na formação, no desenvolvimento técnico-científico do corpo docente.
Assim, face a racionalidade instrumental, fins técnicos e desempenho são, dentre os seus
elementos constitutivos, os mais marcantes. Eles dão o tom da razão instrumental na Casa
Via Magia.
459
Então, nas diversas situações conflituais mas, sem riscos de rupturas graves para a
continuidade da organização, opta-se por critérios técnicos, justamente por que trata-se,
quase sempre, de conflitos funcionais. Sendo as relações tão marcadas pela pessoalidade,
e cimentadas efetivamente por valores, dificilmente alguém poderia continuar a fazer
parte por muito tempo do grupo, alimentando um conflito indissolúvel. A nossa hipótese
é de que a sua saída nos pareceria o caminho mais provável.
Uma organização de doutos, onde o desempenho e a competência são muito respeitados.
Isso afasta mais ainda a possibilidade de uma renovação radical (com relação às
organizações tradicionais) do quadro do poder, da distância entre os que decidem e
aqueles que não decidem ou nem sequer participam de qualquer processo decisório. Essa
distância, na Casa Via Magia, corresponde à distância entre os doutos e os não doutos.
Estes últimos, são os empregados que exercem as funções de apoio administrativo e/ou
logístico. A eles são dedicadas as atenções gerais de respeito e bom relacionamento, mas
a eles não se estende os processos coletivos mais avançados. Embora, em sua totalidade,
eles declaram-se satisfeitos por trabalhar naquela empresa.
Não estamos julgando as práticas observadas à luz de valores tipicamente nossos,
oriundos do nosso dever ser; estamos constatando o fato de que existem procedimentos
diferentes para cada subgrupo da organização.
Para nós, este é o ponto, o aspecto crucial que define a hierarquia nessa empresa, não
aquela visão tradicional de hierarquia enquanto centro fixo de poder decisório. Essa linha
460
de análise não traria bons frutos para interpretar essa questão na Casa Via Magia. Para
nós, o ângulo, o foco é bem outro. Que a organização pode ser considerada substantiva,
após aplicar a nossa grade de análise, não temos a menor dúvida. Que a organização não
inovou no equacionamento da questão da distância entre os doutos e os não doutos,
também não temos a menor dúvida.
A partir dos resultados sumarizados na figura 5, podemos então formular uma análise
global, ensejando uma visão de conjunto da Casa Via Magia. É o que reportamos na
última linha da figura 5. Os valores emancipatórios foram predominantes na organização
como um todo, pois predominaram em quatro dos onze processos estudados, escore não
alcançado por nenhum outro indicador. A posição global da empresa no continuum que
mede a intensidade de racionalidade substantiva é de elevada, pois tal medida foi
atribuída para quase metade das variáveis analisadas, sendo, inclusive a medida comum a
todas as variáveis que representam processos organizacionais essenciais. É o que está
demonstrado na figura 6 abaixo.
Casa Via Magia ↑
|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva
Figura 6 - Posição da Casa Via Magia no continuum de intensidade de racionalidade substantiva
461
Capítulo VII - Análise da Espaço Lumiar
Do mesmo pelo qual procedemos no capítulo anterior, primeiramente empreenderemos a
análise dos processos organizacionais essenciais e, posteriormente, a dos
complementares.
Hierarquia e normas:
A organização Espaço Lumiar prima por estabelecer uma ordem na qual não há uma
hierarquia formalizada. Não há chefes, nem donos. Trata-se de um coletivo que dilui o
poder por todos os profissionais que participam da empresa. Para tanto, as ações de
entendimento são largamente empregadas.
Havia uma diferença de níveis entre os profissionais e as pessoas contratadas para
trabalhar na recepção em contato direto com os clientes. As recepcionistas não
participavam das decisões e sequer das reuniões semanais, quando se discute problemas
comuns, troca-se informações e delibera-se sobre as questões pendentes de resolução.
Porém, como veremos adiante, esse desnível que configurava uma diferenciação
hierárquica acabou por ser eliminado.
462
O que não quer dizer, em nenhuma hipótese, que os comportamentos sejam retilíneos,
unidimensionais. A prática constante do entendimento exige a habilidade e a perseverança
na comunicação verbal, a discussão exaustiva das questões, o debate e a argumentação.
Na dinâmica que vai se instalando no cotidiano do grupo, há oscilações, influências
mútuas, conflitos, que acarretam variações comportamentais, retrocessos e alterações de
rumo.
No fluir dessa dinâmica organizacional, pudemos verificar uma única vez, o uso da
influência com base na antiguidade para sustentar uma postura autoritária. Tratava-se de
uma questão simples mas, em etnografia, todos os fatos e situações têm o seu respectivo
valor. Havia o interesse geral em redecorar o espaço de entrada da sede da empresa,
renovando inteiramente o jardim. Alguns orçamentos foram feitos em lojas
especializadas, sendo todos considerados muito caros.
Então, numa reunião, um dos membros mais antigos do grupo, fundador da empresa,
propôs que o jardim fosse renovado pelos próprios membros, na medida em que cada um
doaria ao menos uma planta e o responsável pela manutenção do jardim se encarregaria
do novo arranjo. A proposta foi aceita e marcou-se um prazo para receber as plantas.
Findo o prazo, aproximadamente de uma quinzena, poucos tinham efetivamente doado as
plantas necessárias.
463
Em nova reunião, o membro que havia sugerido a solução, tomou uma decisão sem antes
colocá-la em discussão:
— “Se até a próxima reunião, as doações não forem
feitas, então o Espaço Lumiar comprará as plantas e os
faltosos pagarão ! ”
Ao fazer tal afirmação, ele imediatamente transcreveu para a ata da reunião (que nesse dia
era elaborada por ele mesmo) a sua decisão como se fosse do grupo. Curiosamente, o
membro mais novo, que havia entrado há poucas semanas para prestar serviços de
reajustamento corporal, lançou um imediato questionamento:
— “E isso foi decidido ?”
O que aborreceu visivelmente o outro, o qual retrucou em tom grave:
— “Eu não estava brincando, falei sério. Está escrito
aqui !”
Ele apontava para o registro da ata que tinha sido feito pelo próprio. Seguiu-se um
silêncio absoluto, ninguém o contestou.
464
Naquela situação, simples porém rica para nossas observações, pudemos perceber que o
membro mais antigo usou de seu poder pessoal junto aos demais, acionando-o como uma
influência direta e legitimando (pela omissão dos outros) uma decisão de cunho
eminentemente autoritário. Voltaria, ele, a utilizar o poder dessa maneira outras vezes ?
No decurso de nossos trabalhos, observações e entrevistas, não constatamos nenhuma
repetição de tal comportamento. Ao contrário, os processos de entendimento continuaram
a fluir, sem preponderância fixa de qualquer um dos participantes. No entanto, fica o
registro desse fato, para nós, importante pois revelou a predominância naquela situação
de fins ligados ao poder. À guisa de registro, informamos que nos dias que se seguiram,
todos, sem exceção, doaram plantas de variados tipos para o novo jardim.
Numa grande reunião, da qual participaram todas as pessoas que escrevem regularmente
na revista trimestral da editora, os responsáveis pelas seções e o editor, decidiram por
uma nova composição do Conselho Editorial da revista. Cerca de quinze pessoas
participaram da reunião, sendo apenas quatro destas pessoas, membros oficiais da Espaço
Lumiar, os demais eram colaboradores da revista. A intenção era a de ampliar o
envolvimento de todos para a expansão da revista, falava-se numa “nova fase”.
O Conselho foi recomposto, ampliando a quantidade de membros. Vários aspectos foram
discutidos, debatidos, visando desenvolver a nova fase, na qual, novas práticas seriam
estabelecidas. Uma delas dizia respeito à remuneração dos colaboradores permanentes,
465
principalmente os responsáveis pelas seções e aqueles incumbidos das atividades técnicas
como diagramação. O grupo falava em normas de remuneração. Devido aos tipos
variados de trabalho, à quantidade também variável de trabalho dedicado a revista, à
natureza dos profissionais (alguns eram jornalistas, outros não) foi adotada como norma
básica a negociação caso a caso, isto é, cada profissional com o editor.
Observamos, então, que o padrão existente no Espaço Lumiar tinha sido extendido ao
grupo de colaboradores da revista, em sua maioria não membros daquela empresa. O
padrão ao qual nos referimos diz respeito à normas não escritas, estabelecidas com base
no julgamento ético e permeadas na sua aplicação por ações de entendimento.
Assim, com base nos dados provenientes de observações e entrevistas, uma vez que os
documentos que são elaborados na organização não constam normas, nem tampouco
organogramas ou quaisquer outras informações semelhantes, detectamos a predominância
do elemento entendimento na rubrica hierarquia e normas. Julgamento ético e fins,
também foram elementos mapeados, porém sem predominar sobre o entendimento.
Gostaríamos de ressaltar que o elemento fins se fêz presente com frequência e intensidade
mínimas, no cômputo geral de dados.
Por conseguinte, situamos esta variável na escala de intensidade de racionalidade
substantiva como muito elevada.
Valores e objetivos organizacionais:
466
O grupo é profundamente ligado aos valores do movimento Nova Era. Há um fundo
espiritualista permeando as principais ações dos membros da organização. Essa relação,
em certos aspectos pode ser considerada também como religiosa, uma vez que inclui a
prática de cultos e rituais xamânicos. Todos os profissionais que prestam serviços na
clínica parecem compartilhar o mesmo conjunto de crenças, embora notássemos que
alguns praticavam ativamente os cultos, enquanto outros não.
Focalizados por meio de uma ótica que mescla valores gerais típicos do que se chama
atualmente Nova Era, com crenças baseadas em determinadas correntes do xamanismo,
os valores de transformação social, respeito ao indivíduo, solidariedade e liberdade são a
mola mestra da organização. O caminho para a concretização da mudança social passa
pela mudança individual — a “cura” — em todos os níveis da existência: físico,
psicológico e espiritual. Acredita-se que o indivíduo que passa por um processo de cura,
libera o seu potencial interior, conecta-se com o Cosmo e alcança um estágio interior que
alterará o meio em que ele vive. Em suma, a mudança parte do indivíduo para o social. A
“cura” é necessária a muitos que em virtude das pressões provocadas pela sociedade
moderna, perdem o contato com o seu eu mais íntimo e, por conseguinte com o Cosmo,
desintegrando-se da ordem natural e universal.
Nesse contexto a clínica existe para ajudar o processo de cura, os profissionais lá se
reúnem para ganhar a vida prestando um serviço ao todo. Esse é o objetivo básico da
467
organização: trabalhar para a integração harmoniosa das pessoas ao todo universal, daí
viriam as mudanças necessárias no plano social, econômico, etc. Nessa ação conjunta,
integra-se ciência e crenças. Trabalha-se a medicina floral, naturista, ao lado da
psicologia transpessoal, tarô, ajustamento corporal, massagens orientais, etc.
O naturismo, veiculado fundamentalmente pela prática da alimentação e da medicina, é o
valor essencial da mensagem divulgada pela editora, através da revista trimestral e dos
livros.
Esse é o conjunto de valores espiritualistas que guia a organização como um todo, daí
decorre os seus objetivos e a sua propria razão de ser. O resultado econômico é visto
como uma consequência da capacidade de bem concretizar aqueles valores.
Embora não comprometendo a prevalência de tais valores, percebemos em algumas
situações a presença de elementos típicos da razão instrumental guiando alguns
processos. Foi o caso da nova fase da revista, implicando a alteração do Conselho e
tomada de medidas visando claramente atingir fins de natureza econômica, tais como
aumento das rendas e remunerações decorrentes. Embora possa-se argumentar que os
valores espiritualistas estariam na base da pretendida expansão, a ampliação de sua
divulgação, etc., preferimos registrar e aqui indicar o que vimos, um claro e
preponderante direcionamento ao alcance de objetivos econômicos na reformulação da
revista.
468
Uma outra situação digna de registro foi presenciada na ocasião em que teve início a
longa e conflituosa crise relativa à função de recepção, da recepcionista, das relações de
trabalho com empregados. Essa crise será vista com detalhes nas páginas seguintes. O seu
enfrentamento provocou substanciais avanços do grupo no que tange as relações de
trabalho, porém, não podemos deixar de registrar, neste momento, que as posições que
prevaleciam no início da crise eram totalmente embasadas na utilidade enquanto valor,
denotando uma clara contradição com os valores professados pelo grupo.
Quando da divulgação em reunião, da informação que a recepcionista atual iria deixar o
emprego, um mal estar tomou conta de todo o grupo. Numa clínica, a recepção é uma
função-chave, ela é o ponto de contato crítico com a clientela. Na oportunidade discutiu-
se muito a dificuldade em encontrar alguém que desempenhasse bem as atividades
requeridas. Percebemos então, que o problema não era novo. Havia uma rotatividade que
incomodava a todos. Discutiu-se muito qual seria o perfil ideal de alguém para bem
exercer a função. O mais interessante é que o perfil em nada, em nenhum traço tinha
semelhança com os próprios membros do grupo. Ora, então a recepcionista tinha que ser
alguém bastante “diferente” deles: conformado, burocrático, capaz de repetir ações
padronizadas durante todo o tempo de trabalho, etc.. O estereótipo perfeito do “alegre
detentor de emprego”, na acepção de Guerreiro Ramos. Por trás do “perfil”, estava o não
dito, a relação de trabalho baseada no valor utilidade e manifestada pelas características
(também interditas) de subvalorização social do ser humano: no fundo, a pessoa ideal
deveria ser uma mulher, empregado, de baixa qualificação e limitada aos seus mecânicos
469
deveres. Uma pessoa assim serviria. No bojo das discussões e lamentações por não ter até
então encontrado o alguém ideal, um dos profissionais vaticinou:
— “Será preciso que a próxima saiba muito bem qual
será o seu papel aqui.”
Como veremos logo adiante, houve uma grande modificação nesse panorama, no entanto,
até a situação inicial da crise, a utilidade marcava a presença da razão instrumental.
De acordo com a nossa proposta analítica, as observações e as entrevistas são as fontes de
dados privilegiadas para o exame da rubrica em questão. Da análise dos dados assim
obtidos, emergiu o elemento valores emancipatórios com predominância sobre os outros
detectados, a saber, os fins e a utilidade.
Devido ao grau de predominância, levando-se em conta que em certas situações e
assuntos de grande importância, os valores emancipatórios foram se firmando
paulatinamente e se consolidando, indicamos a posição elevada para a variável valores e
objetivos na escala de intensidade de racionalidade substantiva.
Tomada de decisão:
470
A seguir, relataremos os processos de algumas das muitas decisões importantes que
presenciamos.
Gostaríamos de aqui reportar uma das primeiras decisões importantes cujo processo
pudemos observar integralmente: sobre a redecoração da ala interna da sede da empresa.
Vários orçamentos foram encomendados, a escolha foi feita em grupo, sem votação, com
discussão até o consenso. A predominância do entendimento foi clara. Embora tenha
pesado na opção eleita itens como a mão de obra mais barata e a compra de alguns
materiais pelos próprios membros do grupo, aproveitando o conhecimento de alguns
sobre determinados materiais requeridos. Logo, cálculo e maximização de recursos foram
intervenientes na situação, mesmo perdendo em predominância para as ações de
entendimento.
O piso da entrada da sede também sofreu uma grande reforma em seguida, a prevalência
na decisão se manteve inalterada. As duas reformas somaram um montante razoável de
recursos financeiros.
Uma das terapeutas lançou uma proposta de dividir a sua sala com um outro profissional,
externo ao grupo, no sentido de atender a crianças, oferecendo um serviço de ludoterapia.
Argumentava que assim poderia causar um aumento da receita, além da maximização do
uso das instalações, ocupando a sala em horários vazios. A proposta foi recusada, em
virtude do que poderia acarretar aquele tipo de trabalho: a possível quebra do clima atual,
de silêncio, de tranquilidade, necessário ao desenvolvimento de outros trabalhos e
471
também a uma certa ambiência desejada na sede. As avaliações se justificavam em última
instância com expressões do tipo “não é bom”, “temos que pensar nos outros colegas”.
Mesmo com a possibilidade de aumento da receita e da maximização, a proposta foi
recusada em função do julgamento ético.
A mais importante decisão durante o período de nosso trabalho no Espaço Lumiar,
decisão que alterou profundamente a postura interativa do grupo, se deu com referência a
participação de um empregado, a recepcionista, nas reuniões semanais quando o grupo
discute todos os assuntos, problemas em comum e delibera. A reunião é o momento vivo
do grupo, é quando todos os profissionais da empresa encontram-se face a face. O penoso
processo que conduziu o grupo a esse avanço, será aqui detalhado nas rubricas reflexão
sobre a organização e comunicação/relações interpessoais, pois essa verdadeira crise
passada pelo grupo, teve consequências importantes nos processos de reflexão e de
relações interpessoais. Por enquanto, reportaremos que a decisão foi tomada após
intensos e apaixonados debates e, principalmente, que o julgamento ético prevaleceu em
base valorativa, sendo que a utilidade, valor que sustentava a opção pela não participação
de empregados na reunião, foi fragorosamente vencida.
Esse episódio, nos serviu também para compreender com mais precisão, como se dá o
processo decisório na organização: discute-se, argumenta-se de todas as formas, até
mesmo apaixonadamente em alguns casos. Aí valem todas as tentativas éticas para
validar as propostas, a palavra é utilizada sem repressões, seja baseada numa lógica
formal ou invocando argumentos sentimentais. Se há um impasse, o debate continua, se
472
uma posição vai se firmando, não é necessário retirar declaradamente as outras, embora
por vezes o proponente o faça. O silêncio gradativo do proponente é o sinal (percebido
por todos) da queda dos seus argumentos. Assim, do implícito para o explícito, brota,
emerge a decisão, que é sempre confirmada em pergunta aberta e imediatamente
registrada na ata da reunião.
A contratação de novas recepcionistas, a partir da decisão anterior, passou a ser, acima de
tudo, um processo composto por ações de entendimento. Ele foi sensivelmente alterado,
pois passou a ser alvo de um tipo de decisão tomado em reunião imediatamente após uma
entrevista coletiva com a candidata, isto é, feita dentro da própria reunião. Presenciamos
duas contratações semelhantes. Antes, as candidatas eram entrevistadas por um ou dois
membros do grupo, que passavam as suas impressões aos outros e tomava-se a decisão
em reunião, a partir daquelas informações. Depois que se decidiu conceder o direito de
participação nas reuniões aos empregados, também os procedimentos de contratação
foram transformados, havendo uma maior abertura e transparência. As duas contratações
que presenciamos segundo o novo processo, foram marcadas pelo entendimento. Após
várias questões formuladas e respondidas, inclusive demandando-se da candidata que se
colocasse de forma pessoal, interior, ou seja, que situasse o trabalho no contexto sua vida
pessoal atual, a decisão foi tomada ali mesmo, no ato. Portanto, um processo
intersubjetivo de entendimento, mediado comunicativamente, como aqueles comentados e
previstos por Habermas (1987).
473
Para finalizar a ilustração da tomada de decisão, escolhemos apresentar uma decisão
totalmente extemporânea ao padrão regularmente adotado pelo grupo. Trata-se do evento,
já comentado, em que um dos membros mais antigos impôs uma decisão sobre todo o
grupo, valendo-se talvez da sua condição de antiguidade: a decisão sobre o pagamento
das plantas por parte daqueles que não trouxessem colaborações para redecorar o jardim.
Uma vez que a imposição foi aceita, para nós significa uma decisão já que foi registrada,
inclusive no livro de atas, legitimando aquele comportamento autoritário. Nessa ocasião,
podemos indicar os elementos de cálculo e de utilidade, preponderando unicamente na
decisão. Tanto pela antecipação de fundo ameaçador, punitivo, pela não realização de
uma ação desejada (a doação das plantas), como pelo fato das pessoas terem sido vistas,
naquele momento, como meros instrumentos servindo a um intuito exterior a elas
mesmas, apenas como recursos úteis à concretização de um desejo. Não obstante, o fato
delas terem falhado ao compromisso assumido, não trazendo as plantas como houvera
sido acertado. Falta de responsabilidade, talvez, mas não existiriam meios mais
democráticos de se enfrentar a questão ?
As fontes de dados, observações e entrevistas nos forneceram os “materiais” necessários
ao exame desse processo organizacional. Ao fazê-lo, evidenciou-se o entendimento como
elemento predominante. Mesmo sem predominância, foi possível evidenciar também a
presença do julgamento ético (em grau bem próximo do entendimento), do cálculo, da
maximização de recursos e, alguns traços da utilidade.
474
Portanto, na escala de intensidade de racionalidade susbstantiva, situamos a variável
tomada de decisão na qualificação elevada.
Controle:
O controle, praticamente, não é formalizado. Há poucos instrumentos formais que são
utilizados para o controle de atividades: a agenda na qual a recepcionista registra as
consultas marcadas, o livro de atas de reuniões e os balancetes mensais preparados pelo
responsável pela parte financeira.
Em verdade, fora a agenda, que tem uma função bastante específica, os dois outros
instrumentos acima citados não são frequentemente consultados como talvez pudessem
sê-lo no tocante ao controle. Ele é feito em grupo, comunicativamente, durante as
reuniões. A palavra é o seu meio e “instrumento”. O controle se transfigura em acordos,
acordos sucessivos, surgidos da narração, questionamento, respostas, argumentações e
assunção de compromissos. A informação sobre ações passadas é dada ali mesmo, na
reunião. Curiosamente, poucas são as ações narradas, reportadas, que são alvo de registro
em atas. As atas servem mais como registro de decisões e confirmação de
comprometimentos. Presente e futuro, portanto, quase nada de passado. À questão
singular das atas, voltaremos a discutir com mais detalhes nas rubricas comunicação e
dimensão simbólica.
475
Das fontes de dados, observações, entrevistas e verificação de documentos, resultou a
nossa análise constatando que o controle, empreendido coletivamente e mediatizado pela
palavra, é caracterizado pelas ações de entendimento. Eis o elemento largamente
predominante nessa rubrica.
Em muito menor grau, pôde-se constatar a presença do elemento desempenho de cada
membro, à frente de sua área de responsabilidade no bojo das tarefas comuns.
Consequentemente, a posição adequada da variável controle, na escala de intensidade de
racionalidade substantiva é muito elevada.
Divisão do trabalho
Nesse item, trataremos de descrever a análise elaborada a partir da divisão do trabalho
comum a todos os membros da clínica e da editora, unidades que funcionam anexas, na
mesma sede e, onde a maior parte das atividades regulares da organização são realizadas.
Já que o trabalho dos profissionais é especializado por natureza, cada qual atende seus
respectivos clientes, o que chamamos de trabalho comum diz respeito à manutenção das
476
instalações da sede, gestão financeira e administrativa, decoração, jardins, etc. Tais
atividades são comuns a todos, independentemente da especialidade de cada um.
O elemento autonomia, aqui, pôde ser constatado sob várias formas, tanto nas tarefas
comuns citadas acima, que são regulares e têm um respectivo responsável, como nas
tarefas de interesse comum mas que não são regulares, que surgem no decorrer de
necessidades percebidas nas diversas situações que marcam a dinâmica da organização.
Começaremos por citar casos de tarefas não regulares. Esse tipo de tarefa é assumido, e
não designado a alguém. Percebe-se e expressa-se a necessidade a partir da vivência e
discussão de situações diversas. Logo que a necessidade é percebida e então é
reconhecida coletivamente, alguém sempre se manifesta, assumindo a responsabilidade
pelo seu cumprimento. O que pesa é a disponibilidade e a vontade de assumir as tarefas.
O caso da obtenção de uma linha telefônica adicional ilustra bem essa prática. Numa
reunião, após discutir os problemas de comunicação advindos do aumento progressivo da
clientela, o grupo reconheceu que, contar apenas com uma linha telefônica, era uma
limitação que atingia já um ponto de entrave inadmissível ao desenvolvimento. Decidido
então, obter uma segunda linha rapidamente, a profissional que oferece serviços de tarô se
predispôs, por iniciativa própria, a conseguí-la.
Quando da contratação de uma recepcionista, era necessário que lhe fosse passado todo o
esquema de funcionamento da empresa, destacando as particularidades de cada
477
profissional no tocante a sua clientela e também com relação à natureza de seus serviços.
O editor da revista e uma das terapeutas se encarregaram espontaneamente de fazê-lo.
O lanche que é vendido na clínica tornou-se um problema, em virtude da sua inadequação
aos princípios alimentícios do grupo e também à irregularidade no fornecimento. Uma
terapeuta e a profissional de tarô assumiram a responsabilidade de resolver a questão,
estudando uma solução e tomando as medidas devidas, que satisfizesse aos critérios do
grupo.
Complementarmente, acontece por vezes que o grupo reforce uma dose de autonomia já
existente, já praticada por alguém. A reforma do piso da entrada da sede da empresa é um
bom exemplo: o resultado não saiu conforme os anseios da pessoa responsável pela
encomenda do serviço, embora não tivesse havido queixas por parte dos demais. O
responsável solicitou ao grupo que concedesse total liberdade para que ele recontratasse o
serviço de modo a adequá-lo às expectativas, foi-lhe concedida toda a autonomia para
tanto. A recontratação dos serviços implicava em novos custos.
No caso das tarefas comuns e regulares, é feito um rodízio na divisão das
responsabilidades a cada seis meses. As tarefas são agrupadas da seguinte maneira:
administração, limpeza, jardins, mural, decoração, divulgação, finanças. Vão se alocando
pessoas responsáveis por cada área. Faz-se o possível para mudar os responsáveis a cada
seis meses, de modo que todos vivenciem todas as áreas. Mas, a assunção de cada área
específica é espontânea, é fruto de uma escolha individual. A negociação acaba ocorrendo
478
em função disso. O entendimento é a chave, e a autonomia também, representada pela
liberdade de cada um se colocar e assumir a sua nova área.
No entanto, gostaríamos de frisar que o processo de renovação da divisão do trabalho
comum, mesmo sendo conduzido num prisma de busca de acordos, conduziu a um forte
conflito entre os membros do grupo. Nem sempre a disposição em negociar conduz a
processos tranquilos, harmoniosos e a soluções fáceis. As organizações substantivas não
são o reino da harmonia “holística”, como alguns ingênuos poderiam pensar. Autonomia e
autenticidade não significam a mesma coisa, a primeira não acarreta necessariamente a
segunda. Interesses individuais têm tendência, algumas vezes, a se sobrepor
execessivamente a interesses grupais e vice-versa, o equilíbrio é difícil e dinâmico,
portanto retrocessos ocorrem.
Esse conflito será detalhado na rubrica correspondente.
Em algumas situações os elementos desempenho e maximização de recursos puderam ser
observados no processo de divisão do trabalho. Relataremos duas dessas situações.
A primeira refere-se a uma questão lançada ao grupo pela nova responsável pela atividade
de divulgação. Uma terapeuta queria melhor compreender o conteúdo específico da
atividade de divulgação, pois para ela esse termo era suficientemente amplo e ela queria
colher opiniões sobre o que se pensava a respeito. Várias pessoas opinaram, expressaram
como viam a atividade e as necessidades que cada um apresentava no que tange à
479
divulgação do seu trabalho e da empresa como um todo. A demandante colhia
depoimentos visando ter alto desempenho na nova área.
A segunda situação abrangia a questão da limpeza da sede. Mesmo tendo um responsável
por essa atividade, em verdade ele trabalha como um coordenador, pois a limpeza é
realizada por todos. A empresa não contrata serventes/faxineiros para este fim. Há um
forte aspecto simbólico nesse ponto, o qual abordaremos na rubrica dimensão simbólica.
Todos executam a limpeza da sede, fazendo uma grande faxina nos finais de semana, em
duplas que vão se revezando a cada final de semana. O responsável pela atividade
encarrega-se de preparar uma escala, uma programação das duplas com antecedência de
90 dias, além de também se inserir na programação. Tal escala é preparada e submetida a
cada membro para os devidos ajustes antecipados. Após o rodízio dos trabalhos comuns,
o novo responsável pela limpeza apresentou ao grupo uma série de modificações nos
procedimentos visando maximizar os recursos existentes e aumentar o desempenho
individual e coletivo no cumprimento daquela tarefa.
Para o levantamento de dados visando o estudo dessa rubrica, indicamos no nosso plano
operacional do quadro de análise, as fontes observações, entrevistas e verificação de
documentos.
Assim procedendo, identificamos que a autonomia foi o elemento de destacada
predominância, podendo ser apontado ainda um outro elemento de razão substantiva que
respaldava sufucientemente a autonomia, ou seja, o entendimento.
480
Elementos de razão instrumental também foram detectados, a saber, o desempenho e a
maximização de recursos, nitidamente menos determinantes das ações nessa rubrica do
que os apontados acima.
Essa configuração e importãncia relativa dos indicadores de racionalidade nos fêz situar a
variável divisão do trabalho na posição referente a elevada, na nossa escala de medida da
intensidade de racionalidade substantiva.
Comunicação e relações interpessoais:
As comunicações seguem um padrão geral de grande informalidade, embora haja um
instrumento formal de comunicação que possui uma grande importância para o grupo: a
ata de reunião. Todas as reuniões são registradas em ata. A incumbência pela sua
elaboração é rotativa. Durante oito meses de participação na empresa, nunca
presenciamos uma reunião sequer em que a ata correspondente não fosse elaborada. Uma
característica marcante de sua elaboração é que ela é sempre elaborada inteiramente
(nunca um esboço para futura elaboração final) durante a reunião. Uma outra
característica é que nela são registrados aspectos do presente e do futuro próximo, em
muito maior quantidade do que do passado. A ata é o espelho da reunião. Como a própria
481
natureza da interação do grupo, ela privilegia muito mais o presente que o passado, o que
indica um certo desprezo por avaliações e saudosismos, em função da vivência do
presente.
A linguagem específica corrente na organização ressalta os termos “focalizar” e
“entrega”. O verbo focalizar ganha uma significação bastante especial no Espaço Lumiar.
Lá, “focalizar” quer dizer assumir a responsabilidade por alguma coisa, geralmente uma
atividade de grande importância. Quando alguém se encarrega de “focalizar” um assunto
ou área qualquer, o grupo deposita confiança naquela pessoa, desde que ela demonstre
claramente, através sobretudo de ações, que ela se “entrega” aquilo. Neste sentido a
“entrega”, é a dedicação firme e espontânea a uma causa, a uma missão, a um trabalho.
Ninguém nunca é forçado a “focalizar” alguma área de atividade nem tampouco a
concretizar uma “entrega” real àquilo. Todas as tarefas, grandes e pequenas, são
assumidas livremente pelos indivíduos, o compromisso é espontâneo. Porém, uma vez
que o compromisso seja assumido, uma vez que aquela pessoa é o “focalizador” daquela
atividade, ela será valorizada na medida em que ela se dá, faz o melhor possível, que a
“entrega” é real. Não se acredita em quem não se “entrega” às suas “focalizações”
livremente assumidas, esse é o ponto.
Relataremos uma das muitas situações vividas e observadas.
Começaremos pelo caso do lanche que era vendido na sede da empresa. Ele era produzido
por uma pessoa externa à organização. O grupo avalia o fornecimento do lanche e conclui
482
que ele não está atendendo às expectativas. A razão encontrada é a falta de dedicação da
pessoa que o fornece, segundo o próprio grupo. Decide-se, então, convocar o fornecedor
para expressar, em face de todos, qual o seu nível de compromisso para com aquela
atividade. O grupo age para com ele da mesma forma pela qual age para cada um de seus
membros: é exigida a “entrega” no cumprimento de qualquer tarefa pela qual a pessoa
seja responsável.
O valor compromisso é considerado fundamental para o grupo, indica até que ponto o
indivíduo está congruente entre o que faz e aquilo em que diz acreditar. Aí reside a base
das relações interpessoais e também da comunicação. Essa posição do grupo é bastante
aberta, ampla, despertando o nosso senso inquisitivo. Na ocasião da questão do lanche,
percebemos que, em menor grau que a congruência com os valores, a importância do
compromisso tinha a ver também com o desempenho de cada um no cumprimento de
tarefas. A título de informação, posteriormente o fornecedor do lanche foi substituído.
Os valores emancipatórios dão o enquadramento para o desenrolar das relações
interpessoais. Um outro exemplo disso foi a chegada de uma das novas recepcionistas.
No primeiro dia de participação dela na reunião, todos fizeram uma breve exposição de
como viam a empresa e a si próprios enquanto membros dela. Foi o mesmo que dizer: as
nossas relações se baseiam nesse conjunto de crenças. Nessa oportunidade, foi
expressada a crença na mudança e aperfeiçoamento da sociedade, bem estar coletivo,
transparência nas relações, respeito ao outro. Ainda nessa ocasião, pudemos inferir sobre
a autenticidade das manifestações, complementada pela visualização das dificuldades que
483
a nova recepcionista poderia enfrentar no cotidiano. Não só a autenticidade, também o
elemento desempenho surgia com alguma importância, muitas recomendações foram
feitas no sentido de esclarecer à pessoa sobre aspectos das relações interpessoais que
influenciam o desempenho no Espaço Lumiar.
A solidariedade é um dos valores emancipatórios mais presentes nas interações desse
grupo. Várias foram as situações em que tivemos a chance de observar ações de
solidariedade entre os membros da empresa. Uma das recepcionistas, a qual tem quatro
filhos pequenos, perdeu a sua empregada doméstica encontrando-se de repente numa
situação extremamente difícil para cumprir o horário da jornada de trabalho. O grupo
aceitou imediatamente que ela reduzisse o quanto fosse necessário a sua jornada até
contratar uma nova empregada, enquanto isso seu salário não sofreu nenhum desconto. A
franqueza da recepcionista foi muito ressaltada verbalmente por vários membros do
grupo. As dúvidas eventualmente surgidas em relação a novas áreas do trabalho comum
assumidas após o rodízio de responsabilidades, eram paulatinamente tiradas pelos colegas
que antes ocupavam-se daquelas áreas, muitas vezes as tarefas eram realizadas em
conjunto, para que os novos responsáveis aprendessem a desenvolvê-las.
A comunicação durante os debates e também os conflitos é marcada essencialmente pela
autenticidade e a autonomia. A palavra é livre, não há impedimentos. O respeito mútuo é
mantido, mas isso não quer dizer que os embates não sejam duros. São duros e fortes. Os
feed-backs são imediatos e não poupam aspectos dos argumentos colocados. As críticas
são severas e diretas. Observa-se que o grupo vai ganhando mais habilidade para discutir
484
profundamente as questões que o aflige sem perder o respeito à individualidade, à medida
que o tempo passa, ou seja, à medida em que mais se pratica a discussão aberta, baseada
na autenticidade e na autonomia. Os debates, por vezes, são extenuantes. Que não se
pense jamais que numa organização substantiva as relações são sempre harmônicas. Ao
contrário, nossas observações constataram um clima cambiante, com oscilações
substanciais em função dos debates e conflitos que ocorrem. Parece que quanto mais se
investe na transparência e franqueza nas relações, mais elas são dadas a oscilações, caos
momentâneos, altos e baixos.
Contudo, podemos afirmar que o clima geral das relações interpessoais no Espaço Lumiar
é descontraído, agradável e estimulante. Trabalhamos lá durante oito meses. Mas ele é
também estimulante pela natureza do desafio que é posto para todos, já que todos se
colocam autenticamente no grupo, o estímulo parece vir também do calor das
contraposições.
Nessa rubrica, as fontes de dados são as observações, as entrevistas e os documentos
disponíveis. Coletando os dados por meio de tais fontes, empreendemos a análise devida
e constatamos a grande predominância do elemento valores emancipatórios. Outros
elementos da razão substantiva também foram identificados, apresentando um peso digno
de grande destaque nesse processo organizacional, a autenticidade e a autonomia.
Apenas conseguimos identificar o elemento desempenho, do lado da razão instrumental
nesse processo. Ele dá o tom específico desse tipo de racionalidade na rubrica em
485
questão, porém, o seu peso relativo é muito pequeno quando comparado aos que acima
anunciamos.
Consequentemente, a variável comunicações e relações interpessoais foi situada na escala
de intensidade de racionalidade substantiva no ponto referente a muito elevada.
Ação social e relações ambientais:
As relações com entidades muito burocratizadas frequentemente apresentam problemas.
É o caso das relações com alguns organismos governamentais ou paragovernamentais.
Parece haver algumas diferenças fundamentais entre as lógicas seguidas pelas partes em
relação, o que acaba por complicar e afastar as percepções que os participantes das
organizações têm do mesmo fenômeno ou evento, dificultando o diálogo e as operações.
Um exemplo dessa dificuldade foi a demora de vários meses para obter o registro legal da
empresa junto ao cartório competente. Os membros desejavam registrar a entidade como
um condomínio, pois assim é que eles percebiam mais exatamente a organização. Um
condomínio de profissionais, empreendimento de caráter privado, coordenado mas sem
níveis hierárquicos formais, como numa empresa ou numa associação. Durante quase um
ano foram feitas diversas tentativas de registrá-lo sob essa forma mas, o cartório sempre
recusava. A proposta de estatuto havia sofrido várias mudanças, mas que não surtiram o
efeito desejado: o registro como um condomínio. Mas, constatamos que a maior parte das
alterações feitas no texto do pretendido estatuto eram devidas a razões internas: o grupo
486
queria que os objetivos formais ali declarados espelhassem fiel e detalhadamente os
valores da equipe, o que acarretou muitas discussões e reelaborações.
Percebíamos que o grupo tinha uma grande dificuldade em aceitar tomar algum tipo de
“atalho” jurídico, utilizando algum subterfúgio — tão comuns em questões jurídicas
envolvendo empresas e Estado — que viesse a resolver a questão através o uso de
manobras. Isto é, o grupo queria, a todo custo, manter-se fiel a seus valores, à verdade, à
transparência, a autenticidade: “se somos um condomínio, então é assim que nos
registraremos”, diziam comumente os seus membros.
O impasse se revelou insuperável, levando o grupo a transigir, sob pena de sofrer sérias
sanções, incluindo a interdição de funcionamento por falta de registro legal. A solução
enfim aceita foi de se constituir enquanto uma fundação de direito privado, incluindo
todas as unidades e seus patrimônios: o Espaço Lumiar, a Editora Deva e o sítio Terra
Mirim. Apesar do impasse ter sido aprofundado devido principalmente ao apego aos
valores, não podemos deixar de reconhecer que também houve uma influência do
elemento fins, de natureza técnica, no encaminhamento da questão: o registro oficial, uma
exigência de fundo técnico-legal para a institucionalização de um empreendimento numa
sociedade burocratizada.
Outro entrave com organizações burocráticas também estremeceu o ambiente interno da
empresa, provocando inclusive alguns choques entre os seus membros. Tratava-se de um
problema ocorrido com a companhia fornecedora de água do estado da Bahia, a
487
EMBASA. Tal companhia havia remetido uma conta de cobrança do fornecimento de
água considerada absurda pelo grupo. A cobrança representava algo em torno de doze
vezes o valor normal pago a cada mês. Era evidente que havia um erro de cálculo por
parte da EMBASA. No entanto, esta companhia tem por norma que qualquer reclamação
de clientes só pode ser dada entrada no protocolo da companhia mediante o pagamento da
conta contestada. O grupo não aceitava pagar para depois contestar. No entanto, alguns
membros se opunham ao não pagamento, temendo o corte do fornecimento. Um grande e
tenso debate ocorreu, prevalecendo, a duras penas, a posição do não pagamento. Após
dois meses de negociações difíceis com a companhia, foi sanado o problema, com a
devida correção do erro de cálculo da conta. Nesse caso, os fins econômicos foi o
elemento direcionador das ações, pois estava em jogo a realização de uma grande
despesa, a qual, mesmo podendo ser ressarcida mais tarde (após a correção do erro) não
seria ressarcida com correção monetária, portanto haveria sempre uma perda financeira
pelo adiantamento do pagamento.
A organização Espaço Lumiar se faz presente em muitos eventos promovidos na cidade
por ouras organizações que atuam no mesmo ramo de atividade. Seus membros têm
grande visibilidade no meio. Participam ativamente de seminários, conferências,
congressos, que reúnam pessoas e entidades ligadas ao movimento Nova Era, Holismo,
etc. Uma de suas terapeutas também participou de uma série de programas produzidos
por uma estação de TV local, que visava discutir e difundir os valores e práticas
consideradas alternativos aos padrões consagrados pela sociedade de consumo. Nessas
488
ocasiões e ações, os valores emancipatórios se constituem no conteúdo principal daquilo
que é difundido e defendido.
Há uma seção especial da revista trimestral publicada pela editora Deva que traz uma
grande lista contendo nomes, endereços e serviços prestados por dezenas de clínicas
semelhantes ao Espaço Lumiar, profissionais independentes e pontos de venda de livros
ligados à Nova Era, produtos naturais e artigos correlatos. Esta seção passou a ser um
referencial em Salvador para aqueles que buscam tais serviços e produtos. A Casa do
Meio e o Espaço Aquarius, por exemplo, as outras clínicas que fazem parte deste nosso
estudo, figuram na referida lista.
Observações, entrevistas e verificação de documentos foram as fontes que utilizamos para
obter os dados necessários ao exame dessa rubrica. O seu exame detalhado nos fêz
perceber a predominância, em alto grau, do elemento de racionalidade valores
emancipatórios.
Tal exame revelou que a razão instrumental se faz presente por meio do elemento fins,
embora com muita distância, no que tange ao critério de predominância, do elemento
valores emancipatórios.
Assim sendo, a medida adequada da variável ação social e relações ambientais na escala
de intensidade de racionalidade substantiva é muito elevada.
489
Reflexão sobre a organização:
A reflexão sobre a organização é empreendida coletivamente, em algumas reuniões
semanais ordinárias. Ela não é programada, surge no bojo da discussão sobre algum fato
ou situação de interesse do grupo.
Numa reunião onde severas críticas foram feitas ao responsável pela administração
devido à perda de um conjunto de chaves das portas da sede, após longas discussões e
esgotamento da questão, um membro tomou a palavra e refletiu sobre o que chamou de
“avanço”:
—“Há um avanço muito claro no nosso grupo: a
franqueza é crescente, sem comprometer a solidariedade
e o respeito.”
Quando da entrevista coletiva de uma candidata a recepcionista, cada membro foi
incitado a expressar o que significava o seu trabalho individual e o significado do Espaço
Lumiar para ele, para a sua vida. A rodada de expressões acabou se constituindo numa
reflexão coletiva e não programada sobre a organização; tal conjunto de expressões foi
totalmente respaldado nos valores já comentados no item correspondente.
490
A crise do rodízio na divisão do trabalho comum também acarretou uma reflexão sobre a
organização, num dado momento da crise, cada qual revelou verbalmente o que era
aquela empresa para si. Grande destaque para alguns dos valores emancipatórios.
Dois meses após a contratação de duas recepcionistas em paralelo, um dos membros do
grupo levantou a questão do grande aumento das despesas advindo daquela decisão.
Refletiu-se conjuntamente sobre a organização segundo a ótica dos fins econômicos
fundamentalmente, e da rentabilidade, este último elemento em menor grau. Na ocasião,
não foi evocado nenhum valor de natureza substantiva, apenas o fator econômico
determinou a base de reflexão sobre a existência da empresa.
Seguindo o modo de operacionalização do quadro de análise proposto nesse estudo,
consultamos as fontes observações e entrevistas para levantar os dados concernentes ao
exame desse processo organizacional. A análise criteriosa dos dados assim obtidos,
revelou que os valores emancipatórios tem predominância clara nessa rubrica.
Não obstante a predominância daquele elemento de razão substantiva, os fins e a
rentabilidade, elementos da razão instrumental, foram encontrados no bojo dos processos
de reflexão sobre a organização.
Daí que, na escala de intensidade de racionalidade substantiva, a variável reflexão sobre a
organização foi referendada como elevada.
Conflitos:
491
Os conflitos são vivenciados e solucionados com uma forte dose de autonomia e de
autenticidade, elementos que elevam suficientemente a “temperatura” do clima no qual
os conflitos ocorrem. Ainda que o respeito seja mantido, cultivado, a franqueza e a
liberdade de expressão conduzem a situações de tal forma transparentes, com relação a
opiniões e sentimentos que poderia levar um observador externo a pensar que a cada
embate, a cada choque de percepções e de opiniões, o grupo estaria se dissolvendo, tal é a
intensidade das discussões.
Algumas vezes, percebemos a orientação de comportamentos segundo fins, tanto ligados
a dimensão técnica quanto ao poder e, a estratégia interpessoal e o cálculo.
Passemos a alguns exemplos.
Os dois maiores conflitos que presenciamos foram aqueles relacionados a participação de
empregados nas reuniões semanais e o que ocorreu quando do rodízio dos trabalhos
comuns.
Após a constatação da rotação de pessoas encarregadas da função de recepção, o grupo
demonstrava um grande mal estar. Já não adiantava mais apelar para a inadequação dos
empregados face ao perfil idealizado. Tudo levava a crer que o problema era muito mais
profundo e mesmo de outra natureza. A função de recepção é vital para todos, na medida
492
em que ela é, no cotidiano, a ponte privilegiada de ligação dos profissionais à sua
clientela e, por extensão, ao mundo exterior. Portanto, um problema que incomodava a
todos.
Numa reunião, durante a discussão da questão, alguém relembra que numa outra clínica
onde ela havia trabalhado, a recepcionista também participava da reuniões do grupo, ela
era vista realmente como mais um membro ativo da organização, fazendo parte do
processo decisório e tomando parte de todas as informações relevantes, não havendo
distância entre ela e os outros profissionais, os doutos. Foi lançada a proposta de adotar o
mesmo procedimento no Espaço Lumiar, de acabar com o desnível interativo entre
empregado e patrões. Tal proposta detonou um conflito, um choque de opiniões que
elevou sensivelmente a temperatura do grupo.
Os argumentos em contrário começaram pela alegação do possível despreparo
psicológico e até espiritual da pessoa para participar de reuniões que as vezes são
extremamente conflituosas. Tal argumento foi duramente combatido pois
contrargumentou-se que àquele a quem não é dado o direito de participar, não terá nunca
a oportunidade de adquirir o tal preparo. No desenrolar da discussão, podia-se perceber
que esse argumento estava paulatinamente sendo vencido. O segundo argumento, era, de
fato, uma mera apelação burocrática: como a reunião começava sempre às sete horas da
manhã, a participação nela implicaria uma hora a mais de trabalho, acarretando horas
extras ou, no mínimo uma mudança no horário de trabalho, já que a jornada começava
493
oficialmente às oito horas. Esse argumento foi derrotado em virtude da participação não
ser exigida e sim facultada.
Daí, a argumentação em contrário começou a mostrar a sua verdadeira face:
— “Gente, não podemos esquecer de que há sempre
alguns assuntos que não podem ser discutidos em
presença de determinadas pessoas, eles devem ser
guardados com cuidado, principalmente os assuntos
financeiros.”
A partir dessa manifestação, a autenticidade começou a conduzir, cada vez mais, o
processo. Os sofismas pouco a pouco desapareciam. O debate “esquenta”, se intensifica.
Em um dado momento, o grupo parecia dividido entre duas posições fortemente
defendidas. Apela-se até para instâncias exteriores ao próprio grupo quando a questão
torna-se um conflito, um impasse. Reproduziremos abaixo, diálogos reveladores do que
estava em jogo na situação:
— “Tenho perguntado a Deus o que Ele quer me mostrar
com as dificuldades da recepção.”
— “É preciso preservar a pessoa do choque que ela teria
ao descobrir que ganha muito menos que os outros.”
494
—“Ora, pelo controle dos atendimentos, das consultas,
ela já sabe muito bem disso, e sempre saberá.”
A discussão prossegue até que um membro dá um xeque mate no grupo, abrindo-se
inteiramente:
— “Olha, eu estive refletindo enquanto vocês se
engalfinhavam. Eu reconheço que o que tenho é medo,
medo de receber alguém ‘de fora’ nas reuniões. Eu sou a
favor da participação, quem trabalha conosco ou é um de
nós ou não será nada. Chega de medo ! ”
A opção pela participação vai ganhando terreno, até o ponto em que apenas um membro
ainda não a aceitava. Um outro o dá um feed-back definitivo:
— “Este é o Paulo antigo, abandone-o. Será que este é o
Paulo de hoje ? Essa é a administração antiga, que você
aprendeu no seu tempo de Banco do Brasil, deixe-a lá, no
passado.”
Após mais algum tempo de discussão, o consenso enfim foi atingido com a decisão da
participação da futura recepcionista nas reuniões e também com a contratação através de
uma entrevista coletiva com a (s) candidata (s), durante uma próxima reunião.
495
O conflito verificado quando da ocasião do rodízio das tarefas comuns regulares também
abalou bastante o grupo e, de igual maneira, provocou significativo avanço no que
concerne a congruência entre os valores expressados e a prática real cotidiana.
A redistribuição do trabalho comum se tornou um processo bastante conflituoso. Ao
serem incitadas a optar por novas funções, as pessoas cotejavam suas atividades e
interesses individuais contra as necessidades ligadas ao trabalho coletivo na organização.
A indisponibilidade era a tônica. Em alguns momentos, os interesses individuais pesavam
muitíssimo mais que os do grupo, assim, os choques surgiam pelo fato de duas ou mais
pessoas insistirem em optar pela mesma função, como também ocasionando a rejeição de
todos para determinadas tarefas como por exemplo a de administração.
O impasse se estabelece a partir da cristalização de posições, o que torna o processo cada
vez mais penoso. Mal estar generalizado, clima deteriorado, são efeitos imediatos na
interação.
Quando então, uma terapeuta intervém com grande força, num tom grave, remetendo as
pequenas questões e as omissões para uma dimensão mais ampla:
496
— “O que cada um quer, pretende aqui ? O que é o
Espaço Lumiar para você, qual é o seu significado ?”
Esta chamada à conscientização, à reflexão, é seguida de um contundente discurso dessa
mesma pessoa esclarecendo o significado do Espaço Lumiar para a vida dela e, por
conseguinte, da casa que serve como sede da empresa. São feitas algumas colocações
como:
— “Sou grata imensamente a Deus por ter nos dado esta
casa. Ela representa muito para mim, gosto demais daqui,
ela me dá tudo o que eu tenho e o que eu preciso para
viabilizar o meu trabalho, a minha vida nesta fase. Foi
preciso muita luta para consegui-la, devo muito a ela,
trato-a muito bem. O que é isso ? Será que vocês não
sentem nada por esta casa ?”
A provocação cala fundo no grupo. Segue-se um longo silêncio. Aos poucos, retoma-se a
discussão, ela sai da superficialidade e alcança a profundidade, através das expressões de
cada um. Isto é, cada um atende à demanda da colega e vai se colocando com referência à
organização. Gradativamente, as pendências foram sendo eliminadas, o entendimento foi
se instalando. Embora duas pessoas pedissem para definir suas opções até a reunião
seguinte, percebemos que a tensão foi totalmente afastada. Na reunião seguinte, as duas
comunicaram suas escolhas e o rodízio completou-se, instalando-se uma nova
497
configuração da divisão do trabalho regular comum. Gostaríamos de registrar aqui que,
para nós, presenciar in loco o conflito entre individualismo x disponibilidade ou
indiferença x comprometimento, foi uma aprendizagem muito importante.
Em ambas situações conflituais, de razoável tensão, a autonomia e a autenticidade foram
a base das soluções que fizeram o grupo avançar na direção dos seus próprios valores, da
sua própria proposta de crescimento do ser humano. No primeiro conflito, foi possível
detectar, em graus de preponderância menos elevados, os fins ligados ao poder (tentativa
de manter a distância entre profissionais e empregados, guardando segrêdo em alguns
assuntos) e estratégias interpessoais (ações para impressionar o oponente, utilizando
argumentos de ordem burocrática, psicológica e espiritual). No segundo, estratégias
interpessoais e cálculo dominavam a discussão em seu início.
Nos dois casos acima descritos, os elementos de racionalidade instrumental foram
suplantados por indicadores de razão substantiva na resolução dos conflitos.
A demora no registro formal da empresa causou momentos tensos e conflituosos. Durante
muitos meses esperou-se pela legalização definitiva da empresa, enfrentando-se grandes
dificuldades em conseguí-la junto aos cartórios competentes. O detalhamento de tais
dificuldades já foi feito na seção própria para a apresentação da rubrica ação social e
relações ambientais. Para o que nos interessa no momento, podemos afirmar que um
conflito foi gerado em função da demora. Severas críticas foram feitas ao responsável
pela função de administração, o qual as rebatia e apresentava as suas justificativas. Os
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fins de natureza técnica prevaleceram nessa ocasião, pois a legalização significava, para
muitos, a possibilidade de obter vantagens fiscais e outras. Apesar de haver autenticidade
no desenrolar desse conflito, os fins prevaleceram.
Os dados para o estudo dos conflitos foram coletados, conforme propusemos no Capítulo
IV, mediante observações e entrevistas. A análise dos dados, dos quais reportamos acima
alguns extratos, evidenciou a predominância do elemento autonomia. Deve ser ressaltada
também a importância destacada do elemento autenticidade nesse processo
organizacional, conforme revelada pela análise empreendida.
Detectamos a presença dos seguintes elementos de razão instrumental: fins, estratégia
interpessoal e traços de cálculo. O que não chegou a comprometer a predominância da
autonomia.
Assim sendo, na escala de intensidade de racionalidade substantiva, a variável conflitos
recebeu a medida elevada.
Satisfação individual:
A satisfação individual é advinda do grau de autorealização alcançado. Em geral, os
membros do grupo afirmam que experimentam grande satisfação em função da
499
concretização dos seus sonhos, valores e potenciais, em termos profissionais e, na
qualidade do relacionamento instalado no grupo.
Embora visto pelos profissionais da empresa como uma consequência do esforço
conjunto, os fins de natureza econômica — a viabilização do empreendimento, mesmo
numa época de crise econômica — também são fonte de satisfação. Há uma sensação
geral de confiança crescente no negócio, ao passo que a clientela se amplia. A revista, por
exemplo, passará a ser distribuída para 350 bancas de revistas em toda a cidade.
Para o exame dessa rubrica, as fontes de dados indicadas são as observações e as
entrevistas. Do exame realizado, ressaltou a larga predominância da autorealização como
causa do elevado grau de satisfação manifesto pelos membros da empresa. Apesar do
elemento fins também fazer parte da causa de satisfação, a autorealização foi
unanimemente manifestada como a causa fundamental e quase absoluta da satisfação
experimentada pelos membros do grupo.
Donde originou-se a posição muito elevada, no tocante a intensidade de racionalidade
substantiva da variável satisfação individual.
Dimensão simbólica:
500
Particularmente, essa dimensão revelou-se tão incisiva no cotidiano da organização
Espaço Lumiar que a ela optamos por reportar aqui uma análise mais detalhada. O
imaginário é uma dimensão extremamente importante para os membros da empresa, a ele
é concedido um status altamente privilegiado na realidade percebida, construída e vivida
pelo grupo.
Os valores emancipatórios dominam amplamente a cena no imaginário, embora, em
algumas vezes, pudemos perceber a relevância do desempenho, como foi o caso de uma
queixa de um profissional contra o boicote que o mesmo supostamente teria sido vítima,
praticado por uma antiga recepcionista. O profissional queixava-se da falta de atenção
que a antiga recepcionista dava aos seus clientes; mas a queixa se estendia também ao
nível simbólico:
— “O pior é que ela foi responsável por um ‘bloqueio de
energia’, pois até o meu tarô não funcionava bem.”
Com essa alegação, o profissional queria dizer que o seu desempenho teria sido afetado
pela interferência negativa de outrem, uma interferência de ordem metafísica.
A casa que abriga a sede da empresa tem um grande valor simbólico para o grupo. Antes
de um dos rodízios periódicos das responsabilidades pelas tarefas regulares comuns,
houve críticas à qualidade da limpeza da casa. Constatou-se que o processo estava
emperrado, eventualmente acontecia absenteísmo com relação à programação (duas
pessoas a cada fim de semana), pouco esmêro, etc. Um dos membros afirmou que,
501
— “A proposta é belíssima mas, se na prática não
funciona, de nada adianta... que se contrate alguém
então ! ”
A sugestão causou um grande mal estar. Após alguns minutos de silêncio total no grupo,
um outro membro tomou a palavra:
—“Não posso concordar de jeito nenhum. Sinto-me tão
bem fazendo a limpeza, amo este lugar, sou agradecida a
ele... precisamos nos dedicar mais a cuidá-lo, não é
possível que relaxemos isso ! ”
Essa manifestação teve um forte impacto nos demais. A responsável pela tarefa promete a
melhorar a programação, enquanto todos os outros decidem manter a limpeza sendo feita
por eles próprios, apesar de reconherem que isso significa sacrificar períodos de finais de
semana.
Esse evento veio a confirmar para nós aquilo que outros já o tinham sinalizado: a
importância simbólica da casa. Pagar a alguém para fazer a limpeza, soaria como uma
“ameaça” à esfera simbólica. Não por causa do valor monetário a ser dispendido, e sim
pelo valor simbólico a ser desprezado. A espiritualidade, a transcendência mística, o
imaginário povoado por tais significados ficaria como que comprometido se a esfera
502
simbólica fosse ignorada. Logo, o grupo preferiu sacrificar horas de finais de semana
ocupando-se de um trabalho adicional, o qual poderia ser facilmente transferido a
terceiros, e manter a força do simbólico — uma viga-mestra do Espaço Lumiar.
Essa força é facilmente verificável na unidade situada fora de Salvador. O sítio Terra
Mirim. Lá é o santuário. É o lugar onde são realizados os cultos de inspiração xamânica.
Na nossa visita a Terra Mirim, constatamos que tudo é simbólico. Desde o estilo das
edificações até os rituais propriamente ditos. Há, por exemplo, uma edificação bastante
singular, no centro do sítio: algo parecido a um grande quiosque, em forma circular, com
paredes brancas e janelas de formas bem particulares. Chama-se “casa do sol”, lá ocorrem
determinados rituais xamânicos, efetuados com grupos de clientes que se deslocam de
Salvador para deles participar.
Face ao nosso campo, a administração, há um rito que é infalivelmente praticado na sede
central que nos chamou bastante a atenção. Primeiro pela disciplina, pela regularidade
absoluta: durante todo o período que lá passamos, nunca esse rito deixou de ser praticado.
Em segundo lugar porque ele mescla, de uma forma completamente original, as esferas
simbólica, informal e formal da organização. Após muito refletir sobre esse rito,
percebemos que, apesar da sua simplicidade, ele traduzia toda a complexidade das
relações entre o simbólico e a realidade visível daquele grupo. Ou seja, descobrimos que
através da sua análise detalhada, em termos antropológicos, poderíamos ter acesso a uma
melhor compreensão não só da dimensão simbólica em si, mas também da organização
como um todo. É o que faremos em seguida.
503
O rito faz parte da reunião semanal. Ele é indispensavelmente praticado sempre como
primeira atividade de cada reunião. Trata-se de um rito simples, cujos procedimentos são
os seguintes:
a) Ele é praticado no espaço interno central da sede da empresa, em consequência de ser
esse o espaço onde ocorrem as reuniões;
b) As pessoas chegam para a reunião, tiram os sapatos e sentam-se no chão, compondo
um círculo, assim continuam até o final da reunião como um todo;
c) Alguém leva ao grupo uma pequena caixa plástica que contém 50 cartões coloridos e
bem decorados — as “Cartas dos Anjos” — e retira da caixa (ao acaso, sem olhar) um
desses cartões. Ele lê em silêncio uma mensagem que vem já escrita na carta sorteada e
logo em seguida a deposita no chão, diante de si mesmo, com a face principal voltada
para baixo. Daí, ele passa a caixa para o membro que está sentado ao seu lado, o qual
repete os mesmos procedimentos. A mesma coisa é feita por todos os participantes da
reunião;
d) Após a passagem da caixa por todos, cada um lê, em sequência e em voz alta, o título e
a mensagem específica de sua carta, então ele a deposita novamente no chão, no mesmo
lugar de antes, só que desta vez, ela ficará com a face voltada para cima até o final da
reunião;
504
e) O encarregado de elaborar a ata naquela reunião vai tomando nota na ata do título das
mensagens, respectivamente a cada participante. Há um campo específico na ata que
informa o nome de cada participante e o título da mensagem que ele sorteou (ver no
Anexo I, uma reprodução de uma folha de ata);
f) Um outro membro qualquer retira, também ao acaso, uma carta da caixa. Essa carta é
considerada como aquela que porta a mensagem para o grupo como um todo. Ele lê a
mensagem em voz alta e o responsável pela ata registra o título dessa carta num campo
intitulado “grupo” (ver Anexo I);
g) Então, os participantes começam normalmente a reunião, abordando os assuntos
concernentes aquela sessão. Ao final da reunião, as cartas são novamente colocadas na
caixa de origem.
As pessoas explicam a ação de se descalçar antes do rito argumentando que com os pés
nus as energias circulam, entram e saem livremente do corpo. Crê-se que as extremidades
do corpo, tais como as mãos e os pés, são como entradas de energias.
A ação de sentar-se formando um círculo, é justificada por eles como a representação de
um todo, o grupo enquanto entidade completa, sem descontinuidade.
505
As Cartas dos Anjos são produzidas em várias línguas e exportadas para vários países
pela Narada Media, uma empresa norteamericana situada em Milwaukee. Ela pode ser
encontrada em lojas e livrarias que vendem artigos ligados à Nova Era.
A primeira questão de natureza antropológica que gostaríamos de abordar desse rito, é a
da distinção entre o ritual e as práticas cotidianas. Nós cremos firmemente que os atos
que nós descrevemos há pouco compõem um verdadeiro rito. Eles são praticados em
situações de formalização. Há um espaço e tempo específicos, e nos quais todos os
membros da empresa praticam juntos o rito: a reunião semanal, o evento mais marcante,
crucial e formal da organização. Não se trata de uma prática cotidiana. Ademais, como
veremos abaixo, na ocasião da prática desse ritual, evoca-se uma ordem subjacente, uma
totalidade integradora que exerce um papel fundamental na vida do homem, segundo as
crenças do grupo.
Nós escolhemos alguns dados observados no ritual para inferir o que pensam os
participantes, enquanto que nos demos conta de determinados aspectos concernentes à
dinâmica sociológica da organização que produzem efeitos sobre o rito em questão. Nesse
sentido, examinaremos a dimensão comunicativa do rito por meio de dois níveis.
Em primeiro nível, o rito é considerado como um meio de comunicação entre as “forças
do Universo” e o grupo. Os participantes crêem que as forças do Universo (segundo eles,
um conjunto de forças espirituais e energéticas que integram tudo o que existe no
Universo numa totalidade portadora de uma lógica global, a qual embasaria todos os tipos
506
de vida) enviam uma mensagem a cada membro da organização e ao grupo por meio das
Cartas dos Anjos. A mensagem seria uma fonte de inspiração para que o seu receptor
balizasse o seu comportamento durante aquele dia, inclusive evidentemente, a duração da
reunião. As mensagens impressas nas cartas são, em verdade, virtudes e valores.
Apresentamos, abaixo, a sua relação completa:
força graça
responsabilidade coragem
eficácia amor
boa vontade compaixão
obediência simplicidade
liberdade espontaneidade
confiança luz
gratidão educação
cura criatividade
integridade compreensão
brincadeira equilíbrio
ternura objetivo
entusiasmo fé
abundância síntese
purificação desprendimento
júbilo nascimento
harmonia clareza
inspiração abertura
507
paz humor
fraternidade flexibilidade
potência esperança
distensão paciência
beleza aventura
verdade perdão
sinceridade comunicação
Para melhor desenvolver o exame da dimensão comunicativa do rito em seu primeiro
nível, elaboramos dois esquemas de analogias, representados na figura 7 (página
seguinte).
508
ANALOGIA GLOBAL
DOMÍNIOS : METAFÍSICO TERRESTRE Forças do universo Empresa Mensagens Membros
ANALOGIA ORGANIZACIONAL DOMÍNIOS : FORMAL INFORMAL Reuniões administrativas Mensagens Atas Cartas
Figura 7 - Analogias do rito
509
A primeira analogia aborda o rito como um todo, é o que denominamos analogia global:
nós separamos os domínios em relação metafórica nesse rito, isto é, o do metafísico
comportando as forças do Universo e as mensagens, e o do terrestre, comportando a
empresa e seus membros. Por intermédio do rito, o grupo tenta ligar esses dois domínios:
evoca-se as forças do Universo para o envio de mensagens aos membros antes de
começar cada reunião. Assim, os participantes da reunião seriam encorajados a se
comportar em conformidade com a mensagem recebida, por consequência, eles tomariam
boas decisões concernentes a empresa. Em suma, as forças do Universo contribuiriam
positivamente ao estabelecimento de boas relações entre os membros do grupo e o
desenvolvimento da empresa.
Com a segunda analogia, nós trabalhamos com dois domínios que constituem um tema já
tradicional na teoria das organizações: a interdependência observada entre os domínios
formal e informal das organizações. É por esta razão que denominamos analogia
organizacional. Desta vez, os domínios em relação metafórica são o formal (reuniões
semanais e suas atas) e o informal (mensagens e cartões): sempre baseando-nos no rito
enquanto meio de comunicação, podemos ver que as mensagens “fluem” através das
cartas para as atas. Enquanto elemento do domínio informal da organização, as
mensagens são inseridas nas reuniões administrativas semanais — a dimensão mais
formal da dinâmica burocrática da empresa.
As atas são arquivadas. Elas constituem os elementos objetivos da memória burocrática
da história da empresa. Esta forma tão singular de inserir e de oficializar um elemento
510
que vem do domínio informal na peça de comunicação mais formal da empresa nos
chamou a atenção.
O segundo nível de exame da dimensão comunicativa é aquele que aborda a transmissão
de significados entre os membros do grupo, os participantes do rito. Nós acreditamos que
esse rito serve para afirmar alguns dos valores predominantes e, por consequência, para
reforçar a identidade do grupo, através de uma maneira particular e simples de estabelecer
a comunicação. Segundo Lévi-Strauss (1971) e também Dan Sperber (1982), a repetição
sistemática de um rito “evita de falar”. Essa forma de interpretação nos será muito útil.
Com relação a esse rito do Espaço Lumiar, nós cremos que ele economiza de falar, pois
não se trata de um ritual que substitui diálogos tensos, portadores de conflitos. Os
conflitos ocorrem verdadeiramente, como vimos acima, não há nenhum expediente que
os evite ou substitua. Eles ocorrem e são tensos, gerando debates acalorados.
Sistematicamente, todas as terças feiras, às 7:00 hs. da manhã, nessa organização o rito é
praticado antes de começar a reunião. Por meio de gestos precisos, manipula-se objetos
específicos, portadores de valores cultivados pelo grupo. Assim, reafirma-se os valores e,
por conseguinte, a identidade do grupo sem a necessidade de recorrer a longos e
repetitivos discursos. Daí a nossa interpretação que esse ritual economiza de falar.
Essa prática representa um instrumento de reconstrução social permanente do grupo, e
pode ser também um reforço à ligação de cada indivíduo à organização. Tal rito é um
chamamento periódico e constante aos valores do grupo, valores de natureza
emancipatória.
511
Para finalizar essa breve análise do rito, há que se reconhecer o seu aspecto “funcional”:
ele é praticado antes de começar a reunião semanal, o momento crucial dos membros do
Espaço Lumiar. O aspecto funcional vem do fato de praticar um rito que detém as
características acima mencionadas, antes de enfrentar os prováveis momentos de tensão
no interior do grupo. Portanto, esse rito contribuiria para suavizar antecipadamente a
“temperatura”. Isto pode ser possível. Entretanto, o reconhecimento dessa possibilidade
não nos conduz a uma análise do tipo funcionalista. Nós não cremos que esse rito sirva
acima de tudo para estabelecer o equilíbrio do sistema organizacional porque os membros
assumem o risco de ruptura do grupo durante as reuniões, uma vez que a autenticidade é o
ponto de partida das discussões.
O último aspecto concernente a dimensão simbólica que gostaríamos de destacar é o que
se refere aos nomes escolhidos para a empresa e para a editora. Por si só, já revelam o
caráter do empreendimento.
O nome Lumiar é uma variação da palavra limiar, a qual significa soleira de uma porta,
um patamar junto a uma porta, uma entrada de algum lugar, um espaço que prepara a
passagem para outro. A significação que se quer difundir é que a organização representa
um espaço de acesso a um lugar especial, onde o homem é integrado às “forças do
Universo”, o Cosmo, a uma totalidade integradora que abrange tudo o que existe.
512
A editora tem o nome de Deva. Esta palavra, em sânscrito, a milenar língua sacra da Índia
antiga, significa a divindade que está justamente situada entre as demais divindades
superiores e os homens.
Assim, simbolicamente, a editora Deva seria um intermédio, um meio comunicacional
que contribuiria a religar o indivíduo às instâncias superiores universais, das quais ele
sempre teria feito parte, no entanto, distorções foram operadas pela sociedade industrial
moderna, distorções que ameaçam “desligar” o homem de sua consciência de participação
ao todo universal.
Por sua natureza intrínseca, a rubrica dimensão simbólica é aquela em que indicamos uma
maior variedade de fontes de dados: observações, entrevistas, documentos e materiais
diversos.
O exame dos dados que pudemos (uma vez que, em termos semióticos, “praticamente
tudo pode ser signo”) levantar relevou o elemento valores emancipatórios como
plenamente predominante nesse processo organizacional.
O desempenho dá o toque da razão instrumental mas com uma ínfima importância
relativa quando comparado ao elemento valores emancipatórios.
Devido a tais constatações é que situamos a variável dimensão simbólica na medida
muito elevada, referente a intensidade de racionalidade substantiva.
513
Finalizada a análise detalhada da organização Espaço Lumiar, faremos um resumo dos
resultados que nos dão uma visão global dessa empresa.
Análise global da Espaço Lumiar:
Para facilitar essa breve visão de conjunto dos processos da empresa face a racionalidade
predominante, apresentamos na figura 8 (página seguinte) o quadro-resumo da análise
realizada.
514
Processos Organizacionais
( rubricas / variáveis )
Elementos / Indicadores de Racionalidade Predominantes
Intensidade de Racionalidade Substantiva
Hierarquia e normas
Entendimento
Muito elevada
Valores e objetivos
Valores emancipatórios
Elevada
Tomada de decisão
Entendimento
Elevada
Controle
Entendimento
Muito elevada
Divisão do trabalho
Autonomia
Elevada
Comunicação e Relações interpessoais
Valores emancipatórios
Muito elevada
Ação social e Relações ambientais
Valores emancipatórios
Muito elevada
Reflexão sobre a organização
Valores emancipatórios
Elevada
Conflitos
Autonomia
Elevada
Satisfação individual
Autorealização
Muito elevada
Dimensão simbólica
Valores emancipatórios
Muito elevada
Espaço Lumiar ( análise global )
Valores emancipatórios
Muito elevada
Figura 8 - Quadro-resumo de análise da Espaço Lumiar
515
Assim vemos que a racionalidade substantiva é predominante em todos os onze processos
organizacionais estudados. Entre os sete processos organizacionais essenciais, os valores
emancipatórios e o entendimento predominam em três cada, juntando-se a autonomia no
processo da divisão do trabalho.
Os valores emancipatórios são predominantes em aproximadamente metade das rubricas,
sendo o elemento constitutivo de racionalidade mais forte na organização. Eles emergem
marcadamente na conjunção dos valores organizacionais e são a base dos objetivos
perseguidos pelo grupo. Em situações de reflexão sobre a organização, os valores são o
grande referencial, servindo como pontos de apoio à reflexão, que é sempre coletiva. Eles
voltam a predominar amplamente também no bojo das relações interpessoais, fornecendo
os parâmetros para as interações e a moldura na qual a comunicação é praticada. Sua
influência é total na dimensão simbólica, que é, ao nosso ver a pedra angular da Espaço
Lumiar. O simbolismo guia as ações dos indivíduos em quase todas as instâncias que o
grupo atua, remetendo-o amplamente para a comunidade, principalmente pela ação social
ocasionada pelas atividades da editora.
Uma organização movida a valores, portanto. A configuração desses valores ultrapassa a
nossa delimitação, a qual denominamos emancipatória. Há um ecletismo inegável no
conjunto de valores da organização. Mescla-se os valores típicos do movimento Nova
Era, com os de determinadas correntes científicas (principalmente a psicologia
transpessoal e a medicina naturista/homeopática), e com uma forte ligação a uma corrente
516
de xamanismo oriunda das montanhas do Peru, onde alguns membros vão frequentemente
se aperfeiçoar.
O curioso é que a atividade empresarial é desenvolvida em meio ao apego, à férrea crença
nesse conjunto eclético de valores. Não sem dúvidas, avanços e retrocessos, do ponto de
vista substantivo.
Ao nosso ver, o grupo enfrenta pesados desafios no desenrolar de seu cotidiano,
justamente devido aos imperativos de ordem capitalista, que estabelece as ditas leis do
mercado e se alia à forma burocrática de organização social que por sua vez determina
comportamentos-padrão, constituindo-se tudo isso, em muitas situações, um sério
contraponto aos próprios valores que o grupo persegue com grande energia. Não obstante,
a empresa segue a sua marcha, com sucesso, a clientela não para de crescer e já se falava,
na época, em buscar uma sede mais ampla para atender a demanda crescente. A revista
encontra também um público cada vez mais fiel e crescente, gerando a distribuição
maciça através 350 bancas da cidade a partir do ano de 1993. Podemos afirmar, então,
que o grupo enquanto empresa inserida num mercado competitivo, encontra os
parâmetros de eficiência e eficácia por suas próprias opções, por sua via singular.
Contudo, essas hipotéticas eficácia e eficiência, são construídas em meio a caminhos
difíceis, devido ao desafio já referido, caminhos que fazem aflorar no cotidiano todas as
contradições inerentes aos indivíduos e ao próprio grupo como um todo. Não é fácil ser
empresa e ser autêntico a esse conjunto de valores, principalmente em se tratando de
517
períodos de profunda crise econômica. O debate racional é a chave, nunca uma fórmula,
para o enfrentamento dos desafios e das contradições dele advindas. O entendimento,
concretizado pela utilização massiva da palavra, da comunicação verbal face a face,
sustentados pela autonomia significando o direito à livre expressão, é o recurso
privilegiado pelo grupo, e não nos surpreendemos de ser o entendimento o segundo
elemento racional em ordem de predominância.
No entanto, enganaria-se totalmente aquele que pensa que esse entendimento é fácil de
ser praticado e obtido. A autonomia que marca a ação dos indivíduos dentro do grupo, faz
consequentemente emergir todas as diferenças pessoais e, com elas , as divergências. Os
debates são acirrados, os conflitos acontecem sem restrições, embora o respeito mútuo
seja religiosamente cultuado revelando um alto grau de maturidade nos membros do
grupo. A reflexão é sempre coletiva, todos juntos, nas reuniões, o “enfrentamento” mútuo
é já praticado com uma certa naturalidade, ele parece fazer parte da dinâmica do grupo,
um traço já aceito.
O entendimento é predominante na questão relativa a herarquia e no estabelecimento de
normas, as quais nunca são escritas. Quanto a hierarquia, notamos um avanço
significativo no processo de coletivização da organização. Não se chega a avanços a partir
de reflexões conceituais e teóricas, pura e simplesmente, os avanços são atingidos,
obtidos, poderíamos dizer conquistados, à custa de tropeços, erros, decisão e vontade
política, acima de tudo, à custa de muita tenacidade e real comprometimento (na ação)
com os valores professados. Tais aspectos são trabalhados, por assim dizer, a partir de
518
problemas, impasses, incômodos concretos do dia a dia da organização. A reflexão se dá
diretamente sobre “as pedras no caminho”, encontradas não por opção em si mesma, mas
pela opção em se comprometer seriamente com determinados valores.
Eis uma das mais profundas lições que o trabalho de campo, o terrain, nos fêz aprender.
O impasse que detonou o processo de eliminação da hierarquia formal entre membros
profissionais e empregados foi o incômodo sentido meses a fio com o problema da função
de recepção. Após várias tentativas de “encontrar alguém com o perfil desejado, ideal”, o
grupo deixou a máscara burocrática e hierárquica de lado, a pesada influência que a
sociedade (também burocratizada) exerce sobre o dever ser dos indivíduos, e
conscientizou-se da real questão em jogo: o poder.
Daí, como vimos, muitos vai-e-vem, muita hesitação e conflitos bastante acirrados,
porém a tenacidade, a autenticidade, a força dos valores e a habilidade crescente nas
ações de entendimento, conduziram a uma configuração organizacional, esta sim, que
talvez pudéssemos colocar no mesmo plano daquelas que Rothschild-Whitt denominou
“coletivistas”. O grupo avançou substancialmente na direção de uma prática de gestão
coletiva, aberta, em que pese o fato de que nunca qualquer membro ter se referido a
algum termo sequer parecido com “autogestão”. Não há lugar, ao que parece, para
lucubrações teóricas, nem a busca de modelos a serem implantados.
519
Nesse sentido, o privilégio é da ação, não da teoria. Uma ação baseada firmemente em
valores de cunho emancipatório em suas diversas matizes, que revela mais
profundamente uma visão de mundo na qual a ação econômica e as soluções burocráticas
estão embedded (conforme Polanyi) na ação social e na ação humana mais ampla, e a
estas subordinadas.
A opção feita, conscientemente, foi por uma gestão aberta, sem chefias ou qualquer coisa
semelhante. O que exige largos processos de entendimento, principalmente em áreas
como tomada de decisão e controle, dimensões nas quais a análise da Espaço Lumiar
também revelou a predominância das ações de entendimento.
A autonomia, além de prevalecer nos conflitos, também é preponderante na divisão do
trabalho comum, seja regular ou eventual. Também aqui (na divisão do trabalho comum
regular) gostaríamos de lembrar que os avanços, ou seja, a medida que demonstra que a
prática é congruente com a ousada proposta, não são obtidos por meio de
comportamentos angelicais ou elaborações conceituais.
O embate entre individualismo e solidariedade emerge em cada um e passa facilmente do
âmbito individual ao grupal, pois a autenticidade é a tônica. No conflito de interesses, os
valores sustentaram o processo de entendimento que levou a divisão do trabalho a um
bom termo, isto é, gerando comprometimento. É como se os indivíduos se vissem, em
diversas situações, em xeque, a meio caminho entre o seu condicionamento, adquirido
numa sociedade capitalista burocratizada e competitiva, e a proposta, a vontade de
520
construir uma organização produtiva, um espaço de trabalho em muitos aspectos oposto
aos fundamentos daquele condicionamento.
Portanto, se a iniciativa tende a ser vitoriosa no sentido da construção de uma
organização baseada em valores emancipatórios, e operacionalizada segundo ações
racionais substantivas, a satisfação dos membros advém da autorealização que é
experimentada. Embora auferindo bons resultados econômicos, os membros da Espaço
Lumiar expressam sempre que a sua satisfação origina-se primordialmente da certeza de
estar realizando ideais e pondo em prática os seus dons pessoais.
A modalidade de análise aqui proposta nos permite também perceber o lugar da razão
instrumental numa organização substantiva.
No caso da Espaço Lumiar, a análise revelou que os fins técnicos e econômicos e o
desempenho são os elementos mais marcantes entre aqueles constitutivos da
racionalidade instrumental. Os fins aparecem com uma frequência digna de destaque nos
processos de hierarquia e normas, valores e objetivos, reflexão sobre a organização,
satisfação individual e relações ambientais. O desempenho, por sua vez, se fêz presente
nos processos de controle, divisão do trabalho, comunicação e também na dimensão
simbólica. Todos esses elementos, embora fossem detectados, não alcançaram
predominância em nenhum dos processos organizacionais estudados.
521
Sumarizando a análise global da empresa Espaço Lumiar, podemos declarar que os
valores emancipatórios emergiu como elemento de racionalidade nitidamente
predominante, como demonstra a figura 8. Esse elemento predominou em cinco dos onze
processos organizacionais estudados.
Em termos de intensidade de racionalidade substantiva, a organização Espaço Lumiar
alcançou, após o cômputo geral das nossas avaliações, a medida muito elevada no
continuum, uma vez que tal medida foi atribuída a seis (sendo quatro essenciais) dos onze
processos analisados. A figura 9 (abaixo) apresenta a posição da Espaço Lumiar no
continuum.
Espaço Lumiar ↑
|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva
Figura 9 - Posição da Espaço Lumiar no continuum de intensidade de racionalidade substantiva
522
Capítulo VIII - Análise da Espaço Aquarius
Hierarquia e normas:
Há na organização uma separação totalmente rígida, no que tange a hierarquia, entre os
profissionais liberais e os empregados. Todas as normas são estabelecidas e também o
comando é exercido pelo grupo dos profissionais, ficando os empregados sempre alijados
de qualquer esfera de poder formal.
Há também a prática de realizar uma reunião semanal, onde os profissionais se encontram
para discutir sobre as questões comuns e deliberar. Não existe outra esfera de discussão
que comporte qualquer tipo de participação dos empregados. Nunca foi sequer cogitada a
participação de empregados na reunião, mesmo que fosse eventual, para tratar de algum
assunto do interesse deles, ou até para que o grupo de profissionais pudesse, em alguma
situação de seu próprio interesse, obter informações sobre assuntos discutidos. Há um
filtro permanente entre os empregados e seus patrões, uma linha divisória que não é
amenizada sequer por algum dispositivo interativo do tipo “administração participativa”.
523
No grupo de profissionais, um membro se encarrega da função de pessoal no rodízio da
divisão do trabalho comum. Ele exerce o papel de chefe imediato dos empregados,
filtrando as deliberaçãoes do grupo principal e emitindo ordens.
Entre os profissionais, no entanto, não há hierarquia, nenhuma relação de comando existe.
Todos os profissionais têm o mesmo nível de autoridade. Nas reuniões, o entendimento é
exercitado, busca-se atingir acordos.
Pudemos observar também a presença do elemento desempenho, contudo em menor
frequência. Uma das ocasiões em que isso se constatou foi a criação do “caderno de
comunicações”. A ele nos referiremos com mais detalhes na seção comunicação e
relações interpessoais. Por enquanto, vale esclarecer que o grupo instituiu um instrumento
de comunicação de deliberações tomadas em reunião. Não há atas de reunião. O caderno
de comunicações serviria para informar àquelas pessoas que porventura não tivessem
comparecido a reunião, o que foi decidido nela. Ele deveria ficar em lugar de fácil acesso
de todos. O que se buscava sobretudo era a melhoria do desempenho de cada um no
cumprimento da tarefa relativa ao trabalho comum. Na instituição do caderno, uma
preocupação, muito debatida no grupo, nos chamou a atenção: a veiculação de
informações consideradas “confidenciais”. Já que o caderno ficaria em local de livre
acesso, ele jamais poderia conter determinadas informações que “não deveriam ir ao
conhecimento dos empregados”. Essa medida confirmou, mais uma vez, que o processo
hierárquico é marcado pelos fins ligados ao poder.
524
Por meio de observações, entrevistas e verificação de documentos, segundo a nossa
proposta, obtivemos os dados referentes à rubrica hierarquia e normas. A análise
empreendida revelou a predominância do elemento constitutivo de racionalidade
instrumental fins.
Também foram detectados, ainda que sem predominância sobre os fins, os indicadores
entendimento (racionalidade substantiva) e desempenho.
A posição da variável hierarquia e normas foi situada em baixa, no que tange a
intensidade de racionalidade substantiva.
Valores e objetivos:
Os valores professados e divulgados pela organização são ligados ao movimento Nova
Era. A mudança social a partir da mudança do indivíduo, a integração do ser humano a
uma totalidade integradora universal, a busca da harmonia, denotam um holismo
dominante no grupo. Em alguns pontos e sob determinada ótica, esse valores apresentam
uma correlação com aqueles que aqui denominamos valores emancipatórios. Queremos
deixar claro que a proposta do grupo traduz esses valores, porquanto as dificuldades de
sua concretização será tratada em outras rubricas.
525
Os fins econômicos também transpareceram, principalmente no tocante aos objetivos e
depois do aprofundamento da crise da organização, à qual nos referiremos mais adiante.
A Espaço Aquarius é uma empresa de sucesso, uma clínica que detém um nome invejável
no mercado, conta com uma clientela crescente nos 5 anos de sua existência. Manter o
alcance dos fins econômicos, como veremos mais tarde, acabou por constituir-se também
numa dimensão importante dos seus objetivos.
Quanto aos valores e objetivos, alguns profissionais se pronunciaram assim,
— “Eu posso destacar, acima de tudo, o respeito à
individualidade do outro.”
— “Nós buscamos criar condições para que as pessoas
atinjam um equilíbrio. O tratamento de uma pessoa deve
ser feito como um todo, não em partes. Além da
homeopatia, que eu trabalho, há outros trabalhos que
visam o equilíbrio do indivíduo a partir da energia dele
mesmo.”
Os valores são professados, mas o comprometimento nem sempre foi constatado nas
interações, no cotidiano que caracteriza a organização. Esclarecemos que isto não se
aplica ao trabalho que cada profissional desempenha junto a sua respectiva clientela,
526
estamos nos referindo a dimensão grupal, a interação dos membros da organização entre
si.
Das fontes de dados, observações e entrevistas, foram coletados os dados necessários ao
exame dessa rubrica. Tal exame acurado, relevou o elemento de racionalidade valores
emancipatórios como predominante. Entretanto, tal predominância não acarreta uma
distância considerável de importância face ao outro elemento detectado a partir da análise
dos dados, os fins, indicador de razão instrumental.
Por conseguinte, a medida de intensidade de racionalidade substantiva nessa variável é
média.
Tomada de decisão:
O processo de tomada de decisão, assim como outros processos de ordem coletiva na
empresa, foi sofrendo uma deterioração gradativa. Então, a cada decisão importante, os
elementos da racionalidade instrumental, a utilidade e a maximização de recursos,
pesavam cada vez mais, embora, em última instância o julgamento ético ainda prevalecia.
Não poderíamos classificar a tomada de decisão como um processo baseado no
entendimento, devido às discordâncias não solucionadas, o que acarretava o retorno de
temas aparentemente já resolvidos para discussão e processo decisório.
527
Podemos ilustrar essa interpretação com o relato das duas situações seguintes: numa
reunião, um membro trouxe uma proposta para ser analisada sobre o aluguel de sua sala
(nos períodos em que ela estivesse vaga) a outro profissional externo à organização. Na
análise da proposta vários pronunciamentos foram feitos, delimitando-se por fim, duas
posições: uma a favor, devido à possibilidade de fazer as instalações renderem vantagens
financeiras, e a outra contra, que apresentava o seguinte argumento:
— “Independente da pessoa que possa vir, eu sou contra
porque acho que a Espaço Aquarius é outra coisa, uma
coisa mais substancial do que o aspecto econômico.”
A discussão prosseguiu por muito tempo, a sedução pela possibilidade de alugar as salas
era visível em uma parte do grupo, gerando manifestações como a que transcrevemos
abaixo:
— “Se ficar decidido assim, será bom, pois eu vou poder
alugar a minha também, já que tenho vários horários
vazios.”
O grupo viu-se então numa verdadeira encruzilhada que assumiu ares de impasse. À
duras penas, a decisão foi tomada em base de julgamento ético, do tipo:
528
— “Não é bom para nós transformar a nossa clínica
apenas num meio de ganhar dinheiro.”
Mas, a prova de que tal base não estava suficientemente sedimentada é que uma proposta
semelhante voltou a ser trazida para a discussão 45 dias depois. Então, nova discussão se
estabeleceu quase que exatamente nos mesmos moldes da anterior, como se esta não
tivesse ocorrido há tão pouco tempo. Pela segunda vez, o julgamento ético prevaleceu,
mas se fêz sentir a força da utilidade como um valor generalizado e a sedução pela
possibilidade de maximizar os recursos disponíveis, mesmo a custa de uma pretensa
filosofia grupal. Testemunhamos que a decisão foi tomada mais em razão da
argumentação enérgica de uma das terapeutas do que pela conscientização dos demais
membros a respeito do que ela alegava: a existência de uma filosofia do grupo, a qual
ultrapassava a questão econômica.
Observações e entrevistas são as fontes indicadas para o levantamento de dados, dos
quais apresentamos algumas ilustrações acima, que possibilitam a análise do processo de
tomada de decisão. O elemento julgamento ético resultou predominante, após a análise
que realizamos. Entretanto, os outros indicadores de racionalidade identificados, utilidade
e maximização de recursos, revelaram um peso de importância relativa digno de
destaque.
Portanto, levando em conta a leve predominância do julgamento ético, a medida de
intensidade de racionalidade substantiva para a variável tomada de decisão é média.
529
Controle:
O processo de controle é realizado em grupo, através de ações de entendimento. Os
acordos, neste assunto, são obtidos sem muitos problemas, eles dizem respeito as
atividades comuns, que são assumidas mediante rodízio. Não há instrumentos materiais
de controle. Durante as reuniões é discutido o andamento das tarefas, avalia-se e dá-se
sugestões.
O desempenho de cada um é um fator a levar em conta, embora não seja o elemento mais
forte no controle.
Das fontes de dados propostas para a rubrica controle, apenas a verificação de
documentos não foi explorada, uma vez que não há instrumentos formais de controle em
utilização nessa pequena empresa. O exame dos dados obtidos por meio de observações e
entrevistas, indicou uma predominância clara do elemento entendimento.
Como frisamos acima, também o elemento desempenho foi identificado, marcando assim
a presença da razão instrumental nesse processo.
Devido a clara predominância do indicador entendimento, situamos a variável na escala
de intensidade de racionalidade substantiva como elevada.
530
Divisão do trabalho:
As atividades comuns são agrupadas, formando os seguintes conjuntos: finanças, relações
públicas, jardins e decoração, pessoal, manutenção e mural. A cada 5 meses acontece um
rodízio, visando redirecionar as responsabilidades. Cada responsável tem toda a
autonomia dentro de sua área. A autonomia é reforçada mediante uma prática
interessante: o responsável por finanças tem a sua possibilidade de exercer poder sobre os
demais totalmente eliminada. Ele não controla diretamente os gastos, não há a
necessidade de lhe demandar recursos financeiros. Cada um faz um orçamento de gastos
no início de cada mês, então o recurso é repassado. Ao final do mês os responsáveis por
áreas prestam contas em reunião. As atividades do coordenador das finanças se resumem
ao controle da conta bancária, relacionamento com bancos e gestão do fluxo de caixa da
empresa.
No entanto, o elemento cálculo é que tem maior prevalência no processo.
Apresentaremos como exemplo a operacionalização do rodízio de funções. Foram
necessárias duas reuniões para definir o rodízio de funções, pois nenhum dos membros
aceitava ficar com a responsabilidade pela função de manutenção. Todos se queixavam de
que era uma função incômoda, que “dava muito trabalho”, enfim, ninguém apresentava
disponibilidade para a função de manutenção da sede da empresa, local onde o trabalho
531
do grupo é realizado. Um clima de profundo mal estar reinou nas duas reuniões, com as
pessoas dando justificativas das mais diversas. Ao final da primeira reunião, o impasse já
estava instalado, adiando-se a decisão final para a reunião seguinte. Ao final da segunda
reunião, ficou acertado que um dos membros assumiria a função por dois meses apenas e
depois seria feita uma nova discussão para transferir a responsabilidade para um outro, o
qual não tinha sido escolhido.
Visivelmente, a solução não satisfêz ao grupo, principalmente ao membro que ficou como
responsável temporário pela manutenção. As atitudes não revelavam uma boa resolução e
sim uma espécie de alívio de uma discussão desagradável. Na medida em que os
interesses pessoais se sobrepunham às necessidades do grupo, e que tais necessidades
eram detalhadamente medidas em termos de esforço pessoal adicional e não assumido,
não havia nenhuma espontaneidade no processo, tudo era fruto do cálculo de
consequências, um cálculo de fundo individualista.
Explorando as fontes observações, entrevistas e documentos (nesse caso, a consulta ao
“caderno de comunicações”), levantamos os dados e analisamos a rubrica divisão do
trabalho. Daí, emergiu como elemento predominante o cálculo, constitutivo da razão
instrumental.
O tom da razão susbstantiva nesse processo é dado pela presença da autonomia, elemento
que não chega a alcançar o mesmo peso que o indicador cálculo.
532
Por conseguinte, a posição na escala de intensidade de racionalidade substantiva para a
variável divisão do trabalho é baixa.
Comunicação e relações interpessoais:
A comunicação e as relações interpessoais foram dois dos processos organizacionais mais
abalados pela sequência de conflitos.
A comunicação tornou-se quase que meramente instrumental à medida em que decaía a
capacidade do grupo em solver positivamente os seus conflitos internos. O recurso a um
instrumento como o “caderno de comunicações”, dentro do contexto específico em que o
grupo encontrava-se, revela, dentre outras características, a fragilidade das comunicações
diretas, do tipo face a face, em se considerando o tamanho do grupo. No caderno eram
anotadas decisões das quais os outros membros não tinham tomado parte devido a
ausência nas reuniões.
Além disso, o caderno não era transparente o suficiente para espelhar todo o processo
decisório, pois não deveria veicular decisões que os empregados “não poderiam saber”.
Então, o que restava para ser comunicado eram aspectos estritamente funcionais, ligados
a detalhes operacionais, basicamente relacionados ao desempenho no cumprimento das
tarefas do trabalho comum.
533
As relações interpessoais, evidentemente, também assumiram uma feição quase que
totalmente instrumental, centradas nos aspectos funcionais da empresa. As reuniões,
momentos onde todos poderiam estar presentes, construir uma percepção coletiva dos
acontecimentos e orientar a ação, passaram a perder importância, a ausência frequente de
vários profissionais era um indício, e a qualidade da interação nas sessões de reunião
também diminuía, resultando baixa criatividade e pouca iniciativa.
O termo de linguagem específica do grupo a destacar é “incluir”. Este verbo, muito
utlizado pelos profissionais da Espaço Aquarius, adquire o significado de alguma coisa
que é conhecida (algo que está “incluído”), que é familiar ao grupo, que já foi discutido,
ou ainda algo que é importante para o grupo, que faz parte do seu mundo e, neste sentido,
que faz parte da visão de mundo de alguns dos seus membros. Um assunto ou idéia que
está “incluído” tem um valor adicional, como se tivesse já recebido o “carimbo”, a
autenticação de conhecido e importante para o grupo.
Os dados necessários ao exame dessa rubrica são provenientes de observações,
entrevistas e de documentos. Tais fontes forneceram dados que ao serem analisados
demonstraram claramente a larga predominância do elemento de razão instrumental
desempenho.
Não podemos deixar de registrar também a identificação do elemento autonomia nas
comunicações, as quais, mesmo dominadas paulatinamente pelo elemento desempenho,
534
não eram marcadas por nenhum tipo de limitação a autonomia. No entanto, os processos
de comunicação e de relações interpessoais forma fundamentalmente guiados pelo fator
desempenho.
Assim, na escala de intensidade de racionalidade substantiva para essa variável,
atribuímos a medida mínima.
Ação social e relações ambientais:
Para alguns membros do grupo, a organização tem uma ação social marcada pela difusão
dos valores que guiam as práticas profissionais oferecidas ao público. A idéia de uma
reação em cadeia com o objetivo da mudança e do aperfeiçoamento social, a partir da
mudança do indivíduo. Seguem algumas observações feitas por alguns membros:
— “Quando se ajuda a harmonizar, equilibrar uma
pessoa, ela terá influências em uma série de outras, na
família, no trabalho, etc. Não é só a Espaço Aquarius, e
sim todas as pessoas que trabalham com essa proposta.
Isso termina sendo uma rede.”
535
— “Os profissionais daqui são sérios e muito bons. O
movimento Nova Era, holístico, etc., traz muitas coisas. É
importante poder contar com pessoas sérias para fazer
tratamento de ajuda. Há um ‘ôba-ôba’ com a Nova Era.
Espaços com pessoas sérias dão uma base sólida ao
movimento, e oferecer referências de outros profissionais
contribui para consolidar essas idéias e práticas.”
Contudo, a ação social e as relações ambientais do Espaço Aquarius em nada diferem de
qualquer outra empresa privada que atua em um dado setor de mercado. Pois, apesar de
alguns dos seus membros fazerem tais declarações acima reproduzidas, não há nenhuma
participação da organização nesse “movimento” ao qual afirmam pertencer. Por exemplo,
não há nenhuma ação concreta em parceria com outras organizações que defendem tais
idéias.
Durante o período em que lá trabalhamos, não houve nenhum fato relacionado às relações
interorganizacionais da empresa que marcasse a sua atuação com uma distinção em
relação a qualquer outra clínica psicológica tradicional.
Apenas há declarações de alguns dos seus membros de que a atuação da organização
junto à sua clientela específica detona consequências sociais em cascata, numa
determinada direção de mudança social. Se há, de fato, uma “rede” conectada ao Espaço
536
Aquarius, fora da ação individual dos profissionais, tal “rede” não ficou evidente para
nós.
Assim, consideramos que a ação social e as relações ambientais são marcadas pelos fins
de natureza econômica, objetivo comum de uma empresa privada tradicional. Como há
uma crença de que a atuação da empresa produza efeitos no meio social, embora não
palpáveis, seja pela reação em cadeia ou até por se constituir numa empresa que conta
com “profissionais sérios”, que dariam maior credibilidade ao movimento holístico,
consideramos nesse rubrica também os valores emancipatórios porém, mantendo as
ressalvas feitas acima.
Uma vez que não havia nenhum documento que veiculasse alguma informação válida
para o exame dessa rubrica na Espaço Aquarius, as fontes de dados exploradas por nós
foram as observações e as entrevistas.
Como tentamos evidenciar acima, o elemento plenamente dominante nesse processo são
os fins. Os valores emancipatórios foram considerados apenas em função das declarações
de alguns membros da empresa, mas a sua importância real enquanto determinante de
ações sociais e de pano de fundo de relações ambientais — enquanto empresa — deixou
bastante a desejar quando comparada aos fins de natureza econômica, que nitidamente são
os “motores” da ação social dessa organização.
537
Portanto, na escala de intensidade de racionalidade substantiva para essa variável,
atribuímos a medida mínima.
Reflexão sobre a organização:
Não há um processo coletivo de reflexão sobre a organização. O grupo não conseguiu
estabelecer um repensar frequente sobre o Espaço Aquarius, de modo a concebê-lo como
um todo formado pelas percepções do conjunto de seus membros.
Após a primeira proposta de aluguel de salas por profissionais externos, ficou patente a
ausência de uma visão compartilhada da organização, assim, surgiu a idéia de promover
uma série de sessões de discussão onde o assunto fosse a própria organização. Imaginou-
se a possibilidade de elaborar um documento intitulado “referencial”, onde ficasse
registrado o produto de uma reflexão coletiva sobre a empresa, a qual servisse, de fato,
como um referencial para facilitar a tomada de decisão em futuras situações de dúvida,
como no caso da proposta de aluguel de salas. No entanto, a idéia da série de discussões
não foi levada adiante, nem tampouco a elaboração do documento.
Como não havia reflexões coletivas, o que por si só já representa um dado importante,
buscamos colher impressões individuais de alguns de seus membros, as quais seguem
abaixo:
538
— “Quando eu entrei, pensei que havia um grupo, depois
eu percebí que há apenas um condomínio. Hoje não
acredito que haja um grupo real, os profissionais são
muito bons mas, o que vejo é uma coisa individual, cada
um faz o seu trabalho, a Espaço Aquarius tem um nome
importante no mercado, as pessoas ganham o seu
dinheiro.”
— “Eu me peguei outro dia tendo que escrever o nome
daqui e, ao invés de Espaço Aquarius, eu escreví
‘consultório particular’. É a síntese do que é isso aqui
hoje, mais voltado para o individual.”
— “Após cinco anos, eu estou exausta, não há grupo.
Neste sentido, as pessoas têm uma imagem externa da
Espaço Aquarius, mas que internamente não
corresponde.”
Após coletar dados por meio de observações e entrevistas, pudemos empreender a análise
desse processo. Portanto, da reflexão sobre a organização, um processo que não chegou a
ser coletivo, emergiu o elemento fins de natureza econômica, como predominante, é essa
a percepção de alguns dos seus membros, dois dos quais são membros fundadores da
539
empresa. Os dados coletados para o exame da variável ação social e relações ambientais
também nos são úteis para esclarecer como as pessoas enquanto membros, percebem a
organização da qual fazem parte. Um reexame daqueles dados nos demonstra que alguns
membros verbalizam que a Espaço Aquarius contribui socialmente para o
aperfeiçoamento das relações sociais em geral, através dos serviços específicos que ali
são prestados. Detecta-se então, alguns traços do elemento valores emacipatórios, no
entanto, sendo amplamente superado pelo indicador fins.
Daí que, na escala de intensidade de racionalidade substantiva, atribuímos a medida
mínima para a variável reflexão sobre a organização.
Conflitos:
O período em que realizamos a pesquisa no Espaço Aquarius foi marcado por uma
profunda crise na organização. Vários conflitos sem resoluções que promovessem o
crescimento do grupo, sem fazer avançar em suas propostas face aos valores professados.
Ao contrário, a cada conflito o grupo decaía mais, perdendo unidade, perdendo força
integradora.
Várias foram as questões que detonaram conflitos, algumas mais simples, outras mais
complexas.
540
Um dos conflitos foi provocado pela ausência frequente às reuniões, por parte de alguns
membros. As seguidas cobranças feitas por parte dos colegas acabaram por gerar um
conflito desgastante para o grupo. Os membros que faltavam com frequência foram
pressionados e as justificativas dadas pareceram não convencer os demais. O cálculo
parecia prevalecer em detrimento da autenticidade, uma vez que a discussão nunca
atingia o centro da questão: o lugar, a importância da organização na vida de cada um dos
seus membros, ou seja, o grau de comprometimento dos profissionais com a dimensão
paraeconômica da organização.
Uma outra situação conflituosa foi ocasionada pelo pedido de liberação das recepcionistas
durante o período consagrado à celebração do São João. No nordeste do Brasil, essa
celebração faz parte de uma das manifestações mais importantes da tradição cultural e
religiosa. Naquele ano, o dia 24 de junho (dia da festa) foi uma sexta feira. É muito
comum, na Bahia, as pessoas se deslocarem para o interior do estado nesta data,
principalmente aqueles que residem na capital e têm parentes no interior, há um
verdadeiro êxodo em Salvador e, mesmo não sendo um feriado oficial, acaba sendo-o na
prática, pois poucas são as empresas que funcionam na referida data. As recepcionistas
haviam feito um pedido de liberação para viajarem para o interior, uma vez que seus
parentes lá residem e, em função de que todos os profissionais também iriam se ausentar
da capital, não tendo marcado nenhuma consulta para aquele dia.
541
Em reunião dos profissionais, alguém transmitiu o pedido das recepcionistas e a proposta
entrou em discussão. Imediatamente verificou-se uma forte oposição entre duas opiniões,
uma a favor da liberação e a outra, contra. Um dos argumentos de quem defendia a
liberação era o seguinte:
—“Acho que seria uma das formas para compensar o
salário que podemos pagar, o qual não é alto; de minha
parte, não vejo nenhum problema, pois vou viajar
também, alguém virá trabalhar, isto é, terá clientes para
atender ? ”
Todos afirmaram que haviam decidido, com antecedência não marcar consultas no
período, confirmando a informação que alicerçava o pedido das recepcionistas. Porém,
um dos profissionais se insurgiu contra a liberação, argumentando que algum cliente
poderia precisar de uma emergência. A argumentação foi questionada, seguindo-se o
diálogo:
— “Nestes 5 anos de Aquarius, quantas vezes houve
emergências? ”
— “Uma vez, apenas...”
542
— “Então, a probabilidade é muito pequena e, será muito
maçante para elas ficarem aqui sem ninguém, sem nada
para fazer, sugiro colocar uma secretária eletrônica para
qualquer eventualidade.”
Um debate muito acalorado se desenrolou, com as posições se fechando sem flexibilidade
e instalando um clima difícil na reunião. O conflito se evidenciou e a radicalização
atingiu um ponto máximo:
— “Este é o seu trabalho, elas são contratadas para isso,
se estão aqui como recepcionistas, então é assim que tem
que ser. Não concordo de jeito nenhum com a liberação!”
Gerou-se um impasse e a decisão não foi tomada uma reunião. Na semana seguinte, em
nova reunião, prevaleceu a opção da não liberação pois não houve recuo de quem a
defendia. Novamente pudemos observar um clima tenso e um mal estar reinantes no
grupo. Os fins de natureza técnica e também de poder prevaleceram nesta situação de
conflito e em outras que pudemos observar.
A deterioração dos relacionamentos foi gradativa, a cada conflito. Eles pareciam não
contribuir para o crescimento do grupo, ao contrário, a equipe demonstrava um crescente
desânimo para o desempenho de atividades coletivas. As faltas às reuniões continuaram a
acontecer, algumas até deixaram de ser realizadas pela ausência de participantes. Quando
543
havia, a reunião apresentava um panorama excessivamente hermético, as discussões
diminuíam, tratava-se apenas de pequenos assuntos de rotina, por vezes terminava-se a
reunião antes do período normalmente utilizado, e a descontração cedia lugar à tensão ou
à indiferença.
Nesse contexto, um dos membros abriu uma reunião com a seguinte manifestação:
— “Precisamos saber o que é isto aqui, o que o Aquarius
significa para cada um de nós, porque eu estou cada vez
mais esgotada. Há coisas que eu gostaria de descobri-las,
entendê-las melhor; não estou mais gostando daqui, não
tenho ânimo, não tenho vontade de vir pra cá, não me
satisfaz.”
Apesar dessa contundente provocação, o grupo não conseguiu aprofundar o que se
demandou, isto é, não conseguiu avançar na direção de uma autocrítica séria, incluindo a
abertura de cada um para se colocar perante a organização. O processo continuou a
deteriorar-se, inclusive com aumento de faltas a reuniões. Apesar da manifestação de
autenticidade daquele membro ao demonstrar o seu descontentamento, este elemento
constitutivo de racionalidade não foi predominante na maior parte dos conflitos
observados.
544
Colhemos alguns depoimentos de membros da organização sobre os conflitos que os
assolavam enquanto grupo:
— “A gente não está sempre aberta à maneira de ser de
todos, há pontos que revelam o desacordo mas, ao menos,
há a sinceridade.”
— “O conflito chegou a um ponto em que vai de encontro
à minha individualidade. Vamos tratar isso entre nós para
que não interfira na Espaço Aquarius como um todo.
Mas, é difícil, teríamos que fazer um trabalho entre nós,
eu não quero gastar energia com isso, teríamos que ver
qual é a disponibilidade prá isso... às vezes, eu não
coloco energia nas coisas do grupo, é um rebatimento
disso.”
— “Mais objetivamente, acho que a causa é a falta de
unidade de propósito. Acho que há uma divisão,
divergências de pensar e de ver. Percebi isso claramente
na questão do ‘referencial’. Penso que deve-se voltar a
545
discutir a situação da Espaço Aquarius e aceitar-se que é
um condomínio, tendo-se uma relação sociável, sem
aprofundar. As pessoas têm medo de aprofundar a
discussão das suas divergências. A Espaço Aquarius tem
um ótimo nome, as pessoas não iriam querer perder isso.
Se aprofundar, ou racha, ou une, mas eu acho que racha
devido às diferenças essenciais.”
— “Foi difícil chegar à idéia do ‘referencial’. A cada
nova situação ficávamos perdidas sem saber qual rumo
tomar. Com o ‘referencial’, poderíamos estabelecer os
valores, crenças, propósitos. Afinal, somos alguns
profissionais vivendo a fantasia de sermos um grupo ?
Mas é preciso presença, participação, disponibilidade,
isso é real.”
O cálculo prevalecia nas situações de conflito, quando explodia a insatisfação dos
membros do grupo. Evitava-se de se expôr, de expôr com clareza a sua própria visão da
organização, não aprofundando as questões que poderiam talvez conduzir a um impasse
só superável pela dissolução do grupo ou a saída de alguns membros. Não havia uma
disponibilidade generalizada para enfrentar um questionamento profundo da organização,
principalmente quando os conflitos ocorriam.
546
As fontes de dados observações e entrevistas foram exploradas por nós no sentido de
examinar os processos de conflitos. O exame revelou que o elemento cálculo predominou
maciçamente na forma como os conflitos são encarados pelo grupo. Os fins também
foram identificados com um razoável peso no desenrolar dos conflitos.
Não obstante os dois elementos de racionalidade instrumental, acima indicados,
apresentassem grande prevalência, o elemento autenticidade pôde ser mapeado, dando
um tom, ainda que frágil relativamente aos outros já mencionados, da razão susbstantiva
nas situações conflituais.
Tendo em vista essa configuração de predominância dos indicadores de racionalidade na
variável conflitos, atribuímos a medida mínima na escala de intensidade de racionalidade
substantiva.
Satisfação individual:
Com a perda da qualidade das interações, a fonte de satisfação dos membros do grupo
passou a ser a preponderantemente a condição de êxito atingida enquanto empresa. A
Espaço Aquarius é uma pequena clínica que, num mercado bastante competitivo,
alcançou uma boa situação econômica, advinda de sua reputação de bons serviços: desde
a sua fundação, há cinco anos, conta com uma clientela efetiva, que dá a possibilidade da
empresa continuar a funcionar numa casa situada num dos bairros mais elegantes da
547
cidade de Salvador; seus profissionais são bem conceituados e têm sempre uma demanda
satisfatória; não há problemas de ordem financeira no empreendimento, apesar da crise
econômica.
Os depoimentos dados pelos profissionais, alguns dos quais transcrevemos acima em
seções destinadas a outras rubricas, dão conta de que os aspectos ligados à dimensão
econômica do grupo têm um grande peso na continuidade da empresa além de representar
o motor da satisfação individual.
As observações e as entrevistas são as fontes de dados indicadas para o exame dessa
rubrica. Os dados assim obtidos permitiram-nos efetuar a análise desse processo
organizacional, indicando a grande predominância do elemento êxito, coadjuvado pelo
elemento desempenho, como determinantes principais de um certo grau de satisfação
individual, pois não é constatável uma grande dose de satisfação em todos os membros.
As crises sucessivas, sem a devida resolução, pelas quais passava a empresa pareciam
obliterar o alcance de elevado grau de satisfação generalizado na organização.
Apesar da ampla predominância desses elementos de razão instrumental, devemos
registrar também a presença do elemento autonomia, entre os profissionais liberais da
Espaço Aquarius. A liberdade de ação, sem constrangimentos mútuos (apenas entre os
profissionais liberais), também foi indicada por alguns membros como uma fonte de
satisfação individual. Mesmo assolado por crises sucessivas, cada membro tem liberdade
total de ação dentro da sua especialidade, além de não ter que submeter a imposições
hierárquicas. No entanto, a autonomia, além de não ter predominância sobre os outros
548
elementos acima citados, só se verifica ao nível dos profissionais liberais, não sendo
concedida ao grupo dos empregados. Uma autonomia, portanto, recoberta de ressalvas e
limites.
Devido a essas constatações, a posição conferida a variável satisfação individual, na
escala de intensidade de racionalidade substantiva é mínima.
Dimensão simbólica:
Inegavelmente, a esfera simbólica da organização é baseada em valores emancipatórios
concebidos sob o ponto de vista do movimento intitulado Nova Era, ou ainda, holismo,
termo muito utilizado no Brasil.
Os membros professam os valores humanos no âmbito social relacionados a harmonia,
que é vista como fonte do bem estar coletivo, a solidariedade, a mudança social que parte
da mudança do indivíduo numa perspectiva de “cura” integral, ou seja, através de
tratamentos do corpo (medicina naturista/homeopática) e da mente (terapias diversas), e o
equilíbrio dinâmico entre o indivíduo e a sociedade. A própria natureza dos serviços
oferecidos pela clínica convergem na direção dessas premissas.
549
O estilo e objetos de decoração da sede da clínica contribuem marcantemente para a
criação de um “clima” ligado aos valores do movimento Nova Era. Na sala de recepção,
por exemplo, há um mural onde são afixados diversos anúncios e notícias referentes a
esse movimento.
Em algumas das reuniões que participamos, foi realizada uma pequena sessão de alguns
minutos de meditação antes do início dos trabalhos. Pedia-se a todos que aprofundassem
a concentração em si mesmos e controlassem a respiração. As reuniões eram sempre
realizadas num ampla sala, a qual não tinha móveis, apenas grandes almofadas; as
pessoas sentavam-se no chão com o auxílio das almofadas, descalças, formando um
círculo, numa atitude muito semelhante aos procedimentos empregados na Espaço
Lumiar.
Há uma clara intenção em comunicar um clima de serenidade e relação estreita ao
movimento Nova Era e seus valores.
Entretanto, a dimensão simbólica da empresa é também marcada, embora
secundariamente, pelo êxito, pelo sucesso econômico do empreendimento, visualizado
como a continuidade sem crises financeiras já há cinco anos, mesmo apesar da recessão e
instabilidade econômica do país. Nas manifestações verbais dos profissionais,
frequentemente faz-se alusão a esse aspecto, o que nos leva a inferir sobre a sua
importância no imaginário da organização.
550
Da análise dos dados obtidos pela consulta às fontes adequadas a essa rubrica —
observações, entrevistas, exame de materiais diversos e de documentos — constatamos a
predominância do elemento valores emancipatórios, nesse caso, aqueles ligados a Nova
Era.
O êxito foi também um elemento identificado como interveniente na dimensão simbólica,
mesmo sem alcançar a predominância.
Na escala de intensidade de racionalidade substantiva, a posição dessa variável, por tudo
o que constatamos é elevada.
Análise global da Espaço Aquarius:
A figura 10 (página seguinte) apresenta uma síntese do exame dessa empresa. Ao
examinarmos a figura 10, podemos facilmente visualizar a predominância inconteste da
racionalidade instrumental nos processos organizacionais que analisamos na Espaço
Aquarius.
Em sete dos onze processos estudados, a razão instrumental é predominante.
551
Processos Organizacionais
( rubricas / variáveis )
Elementos / Indicadores de Racionalidade Predominantes
Intensidade de Racionalidade Substantiva
Hierarquia e normas
Fins
Baixa
Valores e objetivos
Valores emancipatórios
Média
Tomada de decisão
Julgamento ético
Média
Controle
Entendimento
Elevada
Divisão do trabalho
Cálculo
Baixa
Comunicação e Relações interpessoais
Desempenho
Mínima
Ação social e Relações ambientais
Fins
Mínima
Reflexão sobre a organização
Fins
Mínima
Conflitos
Cálculo
Mínima
Satisfação individual
Êxito
Mínima
Dimensão simbólica
Valores emancipatórios
Elevada
Espaço Aquarius ( análise global )
Fins
Baixa
Figura 10 - Quadro-resumo de análise da Espaço Aquarius
552
Entre os sete processos organizacionais que consideramos essenciais — hierarquia e
normas, valores e objetivos, tomada de decisão, controle, divisão do trabalho,
comunicação e relações interpessoais, ação social e relações ambientais — também pode-
se observar, pela figura 10, que a racionalidade instrumental predomina em quatro deles.
Isto posto, não podemos considerar, de acordo com o nosso quadro de análise, a Espaço
Aquarius uma organização substantiva. No entanto, manteremos a análise dessa
organização no bojo do nosso estudo, pois acreditamos que tal procedimento poderá nos
dar a oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre organizações que portam valores
emancipatórios, como também de testar o quadro de análise aqui proposto. Julgamos que
poderemos aprender muito com o exame da Espaço Aquarius.
O que levaria uma organização que defende valores emancipatórios a ter uma
predominância da razão instrumental ? Sem pretender extrair uma resposta que deva ser
generalizada, pois cremos que o exame de cada caso, de cada organização em si é que
fornecerá as respostas requeridas, faremos uma breve “leitura” dessa empresa, à luz dessa
questão.
Trata-se de uma organização na qual os seus membros cultuam determinados valores
emancipatórios, numa perspectiva de Nova Era e de holismo, mas que no âmbito da ação
não conseguem concretizar tais valores em termos de construir uma organização que
realmente espelhe aquilo que afirmam acreditar. Não conseguindo, assim, se desvencilhar
da forma tradicional, burocrática, de organização do trabalho, embora realizem alguns
553
procedimentos relativamente avançados e inovadores, mas que no conjunto dos processos
organizacionais não são suficientes para configurar um tipo de empresa profundamente
diferente do modelo tradicional de empresa capitalista, burocrática e regida pela
racionalidade instrumental.
De fato, há uma contradição permanente no seio desse grupo. Contradição não resolvida,
sequer talvez verdadeiramente assumida, no que tange ao seu enfrentamento. A
contradição entre os valores que os membros defendem e as suas práticas é, ao nosso ver,
a fonte de quase todos os conflitos que marcaram o cotidiano da organização no período
de nossa pesquisa. A contradição entre querer ser diferente, em sendo uma empresa nos
moldes semitradicionais, dilacera e divide o grupo.
Tal contradição se personaliza, na medida em que parte dos seus membros tenta pôr em
prática, ousadamente, os valores professados, não só a nível dos serviços que são
prestados à clientela, mas também a nível da organização em si, enquanto outros
membros hesitam em fazê-lo no nível da organização e acabam por entrar em conflito
direto com a outra parte. Existem membros na empresa que não desejam ou não
conseguem perceber que o próprio fato de criar uma organização produtiva já faz parte do
desafio de pôr em prática os valores emancipatórios, que o trabalho em grupo é em si
mesmo uma dimensão das mais importantes para a mudança e o aperfeiçoamento da
sociedade. Para estes membros, basta oferecer um tipo de serviço à sociedade que
contenha uma certa mensagem de mudança social, não importando a forma pela qual tal
serviço tenha sido gerado.
554
Gostaríamos de chamar a atenção para esse aspecto. A forma, na acepção aqui referida, é
dada pelo tipo de organização que possibilita o trabalho, pela racionalidade que baseia as
ações humanas no mundo da vida concernente ao trabalho.
Nesse sentido, o Espaço Aquarius é uma organização que apresenta sérios paradoxos. Por
exemplo, os valores professados são de cunho emancipatório mas, a empresa mantém a
solução hierárquica rígida no que tange aos seus empregados, prevalecendo aí os fins
concernentes ao poder, enquanto entre si os profissionais praticam ações de entendimento
não hierárquicas. Uma hierarquia para com os empregados baseada no saber, na
especialização técnico-científica e no podereconômico. Não há sequer uma prática de
“administração participativa” com os empregados, eles não têm a chance de expressar
seus pleitos ou participar de alguma decisão sobre o seu próprio trabalho, a não ser com o
seu superior hierárquico eventual, ou seja, aquele membro que se encarrega da “área de
pessoal” do trabalho comum.
Dentre outros paradoxos, podemos citar também aquele representado pela predominância
de valores emancipatórios na dimensão simbólica enquanto a ação social é
predominantemente regida por fins econômicos.
A tomada de decisão era feita com base em julgamento ético (gastando-se muita energia)
enquanto o grupo ainda tinha fôlego para funcionar como um colegiado efetivo. Com o
aprofundamento dos conflitos (sem soluções satisfatórias), foi ficando cada vez mais
555
difícil manter esse padrão nas decisões, tornando-se prática frequente o adiamento de
decisões importantes e o absenteísmo nas reuniões.
A divisão do trabalho é um processo marcado pelo cálculo nessa empresa. As pessoas que
compõem o grupo de profissionais não demonstram uma grande disponibilidade para
assumir as tarefas comuns com satisfação. Há uma disputa pela assunção das tarefas
consideradas mais simples ou fáceis, revelando o descomprometimento com a
organização, sob determinados aspectos, bem como uma substancial dose de
individualismo.
Numa organização onde a reflexão coletiva, os conflitos e as comunicações são
referendados predominantemente na razão instrumental, não nos surpreende o fato de ser
o êxito a fonte de satisfação individual. No entanto, o mal estar tornou-se a tônica,
principalmente para aqueles membros que visavam estabelecer um tipo de organização
mais congruente com os valores emancipatórios. A perda gradativa da habilidade do
grupo para gerir os conflitos, adotando primordialmente o cálculo, acabou por causar
sérias rupturas no tecido social, refletindo negativamente nas relações interpessoais.
Mais do que a habilidade em resolver conflitos, acreditamos no que um próprio membro
do grupo apontou como fator de divergência: a falta de identidade de propósitos. Será que
todos realmente queriam construir uma organização de cunho emancipatório ? Ou apenas
prestar serviços médico-terapêuticos, numa perspectiva holística, atuando no mercado
556
como mais uma clínica neste ramo e, relevando sobretudo a dimensão econômica do
empreendimento ?
O choque de posições, de intenções entre os membros do grupo parecia dizer respeito à
essência da organização.
De todo o modo, uma organização que apresenta aspectos extremamente favoráveis para
constituir-se numa organização substantiva, tais como valores emancipatórios na base dos
valores organizacionais e predominantes na dimensão simbólica, necessita contar com o
comprometimento, com o engajamento corajoso dos seus membros para vir a ser de fato
uma organização substantiva.
Em outras palavras, uma das coisas que aprendemos no desenvolvimento deste estudo e,
principalmente no curso do trabalho com o grupo da Espaço Aquarius, é que não basta
somente proferir valores. É preciso, acima de tudo, assumir o desafio de pô-los em
prática, concretizá-los a nível da organização. O que significa uma luta constante pelo
aperfeiçoamento das práticas emancipatórias, baseadas numa racionalidade substantiva
em contraposição à tendência, incentivada pela sociedade, de repetir o modelo dominante
de organização burocrática assentada em bases instrumentais.
A Espaço Aquarius é um bom exemplo de sucesso econômico e fracasso substantivo, na
medida em que os seus membros tentam sustentar determinados valores emancipatórios,
557
contidos na ação racional substantiva, mas essa sustentação mostra-se frágil ao ponto de
ser envolvida pela racionalidade instrumental.
Como ficou demonstrado na figura 10, o indicador de racionalidade predominante na
Espaço Aquarius, vista de forma global é o que diz respeito aos fins. No cômputo geral,
extraindo-se uma média das medidas de intensidade de racionalidade substantiva, a
Espaço Aquarius alcançou apenas a medida de baixa intensidade no continuum proposto
neste estudo.
É o que está representado na figura 11
Espaço Aquarius ↑
|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva
Figura 11 - Posição da Espaço Aquarius no Continuum de intensidade de racionalidade substantiva
558
Encerradas as análises detalhadas de cada organização, gostaríamos de oferecer uma
visão de conjunto das mesmas, com a finalidade de ressaltar alguns aspectos que poderão
proporcionar ao leitor uma melhor apreensão do fenômeno aqui estudado.
É o que faremos no próximo capítulo.
559
Capítulo IX - Uma visão de conjunto das três organizações
Sem pretender elaborar uma análise comparativa das organizações pesquisadas, pois isso
demandaria um outro arcabouço analítico que possui suas exigências metodológicas
específicas, empreenderemos uma breve visão de conjunto das três organizações.
O nosso intuito, repetimos, não é realizar uma análise comparativa. Se quiséssemos fazê-
lo, teríamos engajado a nossa pesquisa em outra direção, o caminho próprio dos estudos
comparativos, com seus métodos, suas exigências particulares de rigor e seus
procedimentos específicos. A nossa opção é por uma perspectiva analítica autoreferencial
— análoga aos trabalhos de Varela & Maturana (1980), que desembocaram na teoria da
autopoiesis — , e não, essencialmente comparativo. Assim, pretendemos fazer emergir a
lógica interna dos microssistemas sociais estudados, que é o mesmo que dizer, identificar
e demonstrar as racionalidades presentes e predominantes nas organizações pesquisadas.
Ao decidir fornecer uma breve visão de conjunto das três organizações, esperamos poder
clarear cada vez mais a singularidade de cada uma delas, no desejo de que o leitor possa
ter a chance de remarcar algumas particularidades observadas ao longo das análises acima
transcritas.
560
Para tanto, utilizamos a figura 12 (página seguinte), na qual indicamos os elementos
predominantes em cada um dos processos organizacionais estudados nas três empresas
que foram alvo de nossa pesquisa, como também as posições atribuídas a tais empresas
no continuum que mede a intensidade de racionalidade substantiva.
Em primeiro lugar, lançaremos um olhar sobre os processos organizacionais essenciais —
hierarquia e normas, valores e objetivos, tomada de decisão, controle, divisão do trabalho,
comunicação e relações interpessoais, ação social e relações ambientais.
561
Empresas X
Processos Organizacionais
Casa Via Magia
Espaço Lumiar
Espaço Aquarius
Hierarquia e normas
Entendimento
Entendimento
Fins
Valores e objetivos
Valores
emancipatórios
Valores
emancipatórios
Valores
emancipatórios
Tomada de decisão
Entendimento
Entendimento
Julgamento ético
Controle
Entendimento
Entendimento
Entendimento
Divisão do trabalho
Autonomia
Autonomia
Cálculo
Comunicação e Relações interpessoais
Autenticidade
Valores
emancipatórios
Desempenho
Ação social e Relações ambientais
Valores
emancipatórios
Valores
emancipatórios
Fins
Reflexão sobre a organização
Valores
emancipatórios
Valores
emancipatórios
Fins
Conflitos
Fins
Autonomia
Cálculo
Satisfação individual
Autorealização
Autorealização
Êxito
Dimensão simbólica
Valores
emancipatórios
Valores
emancipatórios
Valores
emancipatórios Intensidade de Racionalidade
Substantiva
Elevada
Muito elevada
Baixa
Figura 12 - Quadro-resumo de análise das três empresas
562
Hierarquia e normas:
Na Espaço Lumiar pratica-se uma forma de gestão coletiva por intermédio de ações
voltadas para o entendimento numa perspectiva mais aberta e ousada, avançando-se até
na participação total dos empregados no processo decisório.
Na Casa Via Magia prevalece um tipo de ação orientada ao entendimento menos ousada,
do ponto de vista do manuseio do poder, optando-se por uma postura de negociação
permanente, porém guardando alguns pressupostos hierárquicos.
A Espaço Aquarius repete o modelo empresarial tradicional no tocante a hierarquia dos
donos da empresa para com os seus empregados. No grupo de profissionais não há
distinção hierárquica, pois todos se reconhecem como detentores de autoridade de mesmo
nível.
Mas, na empresa como um todo, os fins ligados ao poder são dominantes na hierarquia e
no estabelecimento de normas.
As normas não são escritas, com exceção da unidade escolar da Casa Via Magia. O que
não quer dizer que nas demais empresas elas não existam, elas existem e são cumpridas,
são elaboradas através de processos de entendimento, salvo na Espaço Aquarius, onde
563
prevalecem os fins políticos (racionalidade instrumental), sendo o escalão hierárquico
superior (composto pelos profissionais) o responsável pelo estabelecimento das normas.
Valores e objetivos:
Vemos que as três organizações são ancoradas nos valores emancipatórios presentes em
seus membros. Em verdade, os valores que permeiam o movimento conhecido como
Nova Era (Vernette, 1993), estão presentes nas três organizações. Tais valores, em seu
conjunto, apresentam grandes semelhanças com os valores emancipatórios conforme os
definimos no Capítulo IV. Eles orientam o estabelecimento dos objetivos organizacionais,
os quais, por não serem escritos, são conhecidos pelas manifestações verbais de seus
participantes.
Tomada de decisão:
A tomada de decisão também é uma dimensão na qual a racionalidade substantiva
predomina nas três organizações, havendo apenas uma pequena diferença entre elas: na
Espaço Aquarius, o julgamento ético, mesmo com dificuldades, predominava, enquanto
nas outras duas, as ações de entendimento foram observadas com maior predominância.
564
Controle:
Não há controles rígidos nas três organizações, prevalecendo a confiança mútua através
de ações de entendimento que visam servir-se do controle para coordenar ações
posteriores, gerar aprendizagem coletiva, praticar ações de solidariedade, e não
propriamente para aumentar a parcela de poder de uns sobre outros.
Daí em diante, as diferenças entre as organizações substantivas e a Espaço Aquarius
começam a ficar cada vez mais nítidas.
Divisão do trabalho:
Na divisão do trabalho, as organizações substantivas analisadas buscam aumentar a
autonomia dos indivíduos, enquanto na Espaço Aquarius o que mais conta é o cálculo.
Aflora aqui, um baixo grau de compromisso dos membros da Espaço Aquarius com o
objetivo desafiante de estabelecer uma organização produtiva em moldes realmente
565
distintos daqueles comumente utilizados por empresas onde a razão instrumental é a
regra.
Comunicação e relações interpessoais:
A comunicação e as relações interpessoais denotam também uma profunda diferença
entre essas empresas. Os elementos substantivos da autenticidade e dos valores
emancipatórios são prevalecentes na Casa Via Magia e na Espaço Lumiar, enquanto na
Espaço Aquarius a comunicação e as relações interpessoais tornam-se um meio
instrumentalizado, quase que totalmente voltado para o aumento do desempenho
individual.
Ação social e relações ambientais:
A ação social e as relações ambientais em geral, importantes dimensões para o exame de
uma organização, são predominantemente marcadas pelos valores emancipatórios que os
membros da Espaço Lumiar e da Casa Via Magia afirmam portar. Mas, na Espaço
Aquarius, são os fins de natureza econômica que guiam a ação do grupo nessas
566
dimensões; o que demonstra a incongruência entre os valores difundidos e a ação efetiva
do grupo no seu meio social.
Assim, no que diz respeito aos processos organizacionais essenciais — o foco central de
nosso conjunto de dados — apenas a Espaço Aquarius apresenta resultados de
predominância situada em elementos constitutivos da racionalidade instrumental, mais
exatamente os elementos dos fins políticos, do cálculo, do desempenho e dos fins
econômicos, em processos tão importantes como hierarquia e normas, divisão do
trabalho, comunicação e ação social (respectivamente).
Um breve exame dos processos organizacionais complementares nos daria a confirmação
de que temos duas organizações substantivas apenas. Nos quatro processos, em apenas
um a Espaço Aquarius tem predominância da razão substantiva, mais exatamente a
dimensão simbólica.
Na Espaço Lumiar é totalmente predominante a razão substantiva, enquanto na Casa Via
Magia, três quartos dos processos são guiados pela racionalidade substantiva.
Reflexão sobre a organização:
567
Supomos que a reflexão sobre a organização dificilmente seria coletiva numa organização
não substantiva. Em geral, ela tem sido uma prerrogativa apenas dos indivíduos
detentores do poder no interior das organizações tradicionais, embasadas em forte
hierarquia.
Esta prática é referendada na Espaço Aquarius, pois somente aos profissionais é
permitido participar das discussões que implicam a reflexão sobre a organização. Na
Espaço Lumiar e na Casa Via Magia, a reflexão é realizada coletivamente e embasada em
valores emancipatórios.
Conflitos:
A gestão dos conflitos é mais aberta, mais livre e mais efetiva na Espaço Lumiar. Seus
membros fazem dos conflitos um exercício de autonomia, correndo sem temores todos os
riscos de desintegração do grupo; lá, os conflitos são aprofundados até as raízes de suas
causas. Talvez por isso mesmo seja aquele, entre os grupos estudados, que mais
habilidade possui para aproveitar a energia e a criatividade oriundas da tolerância às
diferenças, que faz dos conflitos oportunidades para o avanço da organização na direção
de seus valores e objetivos.
568
Os fins técnicos prevalecem na Casa Via Magia, dando, por meio do tratamento dos
conflitos, o tom mais agudo da razão instrumental nessa organização. Uma empresa
fortemente influenciada pela idéia de competência técnica, de crédito na ciência; há um
certo “peso” que os seus membros carregam, o mandato do alto desempenho, a fama de
uma das melhores escolas infantis, do tipo alternativa, da Bahia, além de um centro de
excelência na pesquisa pedagógica.
O cálculo é dominante nas situações de conflitos na Espaço Aquarius. Um grupo que
ainda não atingiu um estágio desenvolvido de reconhecimento da sua própria identidade,
um grupo em crise, apesar dos bons resultados econômicos que sempre auferiu. Os
membros do grupo parecem hesitar em mostrar-se abertamente nos conflitos, há um certo
receio de dissolução, desintegração, o que poderia, talvez, comprometer uma boa imagem
que o faz deter uma fatia substancial no seu mercado. Em nossa inferência, esse receio
assume um caráter de falta de disponibilidade para abrir-se devidamente e aprofundar as
questões interpessoais no grupo, ou como afirmou um dos seus membros de forma muito
significativa: “eu não quero gastar energias com isso.”
Satisfação individual:
569
No panorama conjunto das três empresas até aqui esboçado, vemos que o quadro de
análise proposto nos conduz a uma visão pela qual cada processo organizacional vai se
entrelaçando aos outros e, assim, ajudando o aperfeiçoamento de nossa perpeção dos
grupos estudados.
A fonte de satisfação individual, por exemplo, tem origem na dimensão interior de cada
indivíduo, quando observamos as organizações substantivas. A autorealização fala mais
alto em ambientes produtivos onde a divisão do trabalho, a comunicação/relações
interpessoais e a hierarquia/normas, são embasados na razão substantiva. Há espaço e
liberdade suficiente para que o indivíduo se lance, ouse, busque concretizar seu potencial.
Sob esse aspecto, a Casa Via Magia e, principalmente a Espaço Lumiar, aproximam-se
bastante das características que Guerreiro Ramos atribui às isonomias:
“As pessoas não ganham a vida numa isonomia; antes,
participam de um tipo generoso de relacionamento social,
no qual dão e recebem […] suas atividades são
promovidas como vocações, não como empregos […] sua
recompensa básica está na realização dos objetivos
intrínsecos daquilo que fazem…” (Guerreiro Ramos,
1981, p. 150).
Na Espaço Aquarius, apesar de ser uma organização onde determinados valores
emancipatórios povoam sua dimensão simbólica, os seus membros que experimentam
570
alguma satisfação, o fazem a partir de uma dimensão que lhes é, por natureza, externa,
uma dimensão que tem origem totalmente inspirada num tipo de sociedade que valoriza o
êxito, referendando-se numa idéia de competição, estabelecendo padrões de sucesso, os
quais parecem ser incompatíveis com o próprio conjunto de valores professados pelo
grupo.
Dimensão simbólica:
Na dimensão simbólica, em sua manifestação iconográfica, depreende-se que as três
organizações apresentam uma predominância dos valores emancipatórios, numa versão
bastante influenciada pela vaga da Nova Era.
Posição das organizações no “continuum”:
No que concerne o continuum que propomos neste estudo, visando medir a intensidade de
racionalidade substantiva em cada organização, vemos que a sua configuração final, de
571
fato, refletiu inteiramente as análises mais detalhadas sobre a predominância de cada
indicador de racionalidade nos processos estudados em cada empresa.
O continuum, visto unicamente em si mesmo, deslocado de todo o trabalho analítico que
o precede e o determina, não possui a essencialidade e a profundidade que o exame
minucioso, a análise exigente e elaborada, passo a passo, de tudo aquilo que foi
vivenciado, observado, sentido, registrado. Da apreciação acurada de todos os tipos de
dados disponíveis, enfim. O continuum é apenas um instrumento auxiliar na avaliação da
racionalidade substantiva nas organizações. Trata-se de uma solução de sintetização das
avaliações meticulosamente efetuadas e, pode ser também um instrumento anexo para
facilitar a visualização da classificação relativa das empresas estudadas, no que se refere
ao grau de racionalidade substantiva pelo qual os seus membros interagem no cotidiano.
Se o continuum espelha razoavelmente a análise, ao passo que adiciona uma informação
visual qualitativa e útil, então ele cumpre o seu papel.
No estudo aqui desenvolvido, verificou-se, em termos globais, que os membros da
empresa Espaço Lumiar demonstraram interagir com uma intensidade de racionalidade
substantiva mais destacada do que os participantes das duas outras organizações. Assim, a
Espaço Lumiar alcançou a medida muito elevada no referido continuum.
A Casa Via Magia, embora resultante da análise também como uma organização
substantiva, alcançou, em nossa avaliação, um menor grau de racionalidade substantiva
572
nas interações de seus membros do que aquele alcançado pela Espaço Lumiar. Portanto,
no continuum a sua posição é elevada.
Quanto a Espaço Aquarius, empresa que não emergiu da nossa análise como organização
substantiva, teve a sua posição no continuum referenciada como baixa intensidade de
razão substantiva nas interações que guiam os seus processos organizacionais.
A figura 13, nos traz o continuum numa disposição que melhor permite a visualização da
posição relativa de cada empresa analisada.
Espaço Casa Espaço Aquarius Via Magia Lumiar
↑ ↑ ↑
|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva
Figura 13 - Posição das empresas analisadas no continuum
de intensidade de racionalidade substantiva Aqui encerramos a análise conjunta das três empresas estudadas. Na próxima seção,
apresentaremos as conclusões deste trabalho.
573
Conclusões
A trajetória delineada na Introdução atinge agora o seu final. As questões levantadas ao
longo do trabalho e parcialmente respondidas, podem agora ser retomadas em seu
conjunto.
O problema central que desencadeou a realização deste estudo, foi o da ausência de
demonstração factual da exequibilidade e da concretização da razão susbstantiva, na
práxis administrativa em organizações produtivas. Um impasse — como o
caracterizamos —, dentre outros, ao avanço da teoria neste campo. A discussão
empreendida do Capítulo VI ao Capítulo IX, talvez tenha dado os subsídios para que o
próprio leitor elabore um juízo sobre a possibilidade de resolução do referido impasse.
Na perspectiva geral da emancipação do homem na esfera produtiva, esperamos ter
contribuído para evidenciar que os indivíduos, associados em organizações substantivas
(como também em outros tipos de iniciativas), podem: estabelecer relações gratificantes
entre si, alcançar níveis consideráveis de autorealização e embasar-se numa lógica não
utilitária; ao passo que, suas organizações alcançam graus de desempenho satisfatórios
num mercado competitivo.
A sociedade é composta, em sua larga maioria, por grupos organizados que interagem na
esfera econômico-produtiva embasados numa lógica marcada pelo utilitarismo. No
entanto, no caso das duas entidades que brotaram da nossa análise como organizações
574
substantivas, podemos ver exemplos atuais de atividades que Polanyi caracterizava como
embedded, ou seja, atividades econômicas engastadas no social e, com o interesse
concentrado sobre os valores, a motivação e a política, esta concretizada por meio do
debate ético-racional. Como vimos no Capítulo I, de Polanyi a Godelier, desembocando
em Guerreiro Ramos, um substancial conjunto de pesquisadores vêm demonstrando que a
sociedade centrada no mercado é apenas uma forma recente de ordenação da vida humana
associada. Assim sendo, outras formas de ordenação social e de produção podem ser
encontradas atualmente, exigindo para a sua análise outros instrumentos de interpretação
e também referenciais alternativos à lógica utilitarista.
As três organizações da nossa pesquisa podem ser consideradas como empresas que
atingiram razoável grau de sucesso econômico. Salvador, enquanto terceira maior cidade
do país, apresenta uma demanda considerável para os serviços oferecidos por essas
empresas, o que acarreta, por outro lado, uma significativa oferta que lhe é
correspondente. Sobretudo pela sofisticação da cidade, concentração de renda e suficiente
ligação com o resto do mundo (principalmente em função do turismo), a capital do estado
da Bahia, enquanto grande centro urbano industrial, constitui um mercado atraente para a
instalação de empresas que atuam nos ramos de educação infantil alternativa, produção de
arte e, clínicas reunindo medicina naturista e psicoterapia. O mercado é atraente,
logicamente a concorrência é acirrada.
575
Trabalhamos com três empresas vitoriosas num mercado competitivo, entre as quais, duas
emergiram da análise como organizações substantivas, onde a opressão cede lugar a
predominância de práticas emancipatórias.
Parafraseando Dejours (1990), esperamos ter auxiliado a demonstrar que o homem, ao ser
beneficiário da produção, não precisa necessariamente ser vítima do trabalho. Um dos
fatores cruciais no bojo dos processos que conduzem a tal constatação, é a “lógica
subjacente” às ações dos indivíduos no interior das organizações produtivas. Daí a
importância dos estudos que abordam o tema da racionalidade neste espaço social.
Cremos na potencialidade considerável do tema da racionalidade, face aos ideais
emancipatórios, no âmbito das organizações. A abordagem da racionalidade pode
desvelar processos e “mecanismos” sutis, porém condicionantes das ações humanas,
ajudando a explicá-las. Assim, esta via de elaboração de estudos pode colaborar
efetivamente ao lado de outras abordagens temáticas, tanto para a compreensão do que se
passa no trabalho, como para a crítica e formulação de propostas concretas com fins
emancipatórios. O que implica trilhar um longo percurso, ao longo do qual fatalmente
encontrar-se-á inúmeros bloqueios, pedras a remover, desvios de rota... Engana-se quem
pensa que esse percurso assenta-se sobre uma estrada reta e pavimentada, muito ao
contrário, ela é tortuosa, marcada pelo desconhecido e plena de impasses, como todas as
vias da ciência e, por quê não dizer, da própria vida. Se não desistimos, transformamos
cada impasse num desafio a superar.
576
Com a realização deste trabalho, assumimos o desafio de afrontar um dos impasses que
percebemos existir no percurso dos autores que empreendem estudos sob o tema da razão
substantiva, na acepção de Guerreiro Ramos, notadamente no Brasil. Pouco a pouco,
parece esboçar-se um espaço, um subtema, que poderá um dia se constituir num campo
de estudos organizacionais consolidado no nosso país. Tentar superar os impasses seria
não só colaborar para o desenvolvimento e continuidade desses estudos mas, também,
acreditamos que, em última instância, significa trabalhar em prol dos ideais
emancipatórios na esfera do trabalho.
A tentativa de superação desse desafio implicava atingir os objetivos declarados na
Introdução, fornecendo ao tema de estudos a contribuição delimitada no Capítulo I. Em
suma, seria preciso demonstrar empiricamente a razão substantiva na práxis
administrativa. Para tanto, adotamos desde o ponto de partida as premissas básicas
defendidas por Guerreiro Ramos: considerar que a razão substantiva é um atributo do
sujeito e, que é essencialmente diferente da razão instrumental, gerando ações e atitudes
humanas igualmente diferenciadas.
Para continuar a avançar pela estrada, tivemos que engatar duas novas marchas, ou seja,
adicionar duas outras premissas: a primeira é que os dois tipos de racionalidade fazem
parte do “cotidiano administrativo” das organizações, o que releva a importância da
noção de predominância; e a segunda é o reconhecimento da necessidade de uma teoria
de ação — complementar ao estudo de Guerreiro Ramos — que muda o sinal vermelho
do impasse e nos indica o acesso à práxis.
577
A complementaridade entre as teorias de Guerreiro Ramos e de Habermas revelou-se
extremamente frutuosa. Por meio dela, pudemos traduzir o aparato conceitual da
racionalidade substantiva no plano da ação, definindo, para fins operacionais, a ação
racional substantiva e a ação racional instrumental. Daí até transportar tais definições
operacionais para os processos organizacionais foi, justamente, o desenrolar da
construção do quadro de análise que, poderia permitir-nos fazer face ao desafio de atingir
os objetivos propostos na Introdução e, cumprir o compromisso referente a contribuição
delimitada no Capítulo I.
Assim, por meio do arcabouço teórico que empregamos, no qual a citada
complementaridade foi a pedra angular, pudemos fazer fluir os conceitos da razão
susbstantiva e da ação comunicativa na direção dos processos organizacionais e das
práticas administrativas. Nesse sentido, a complementaridade, enquanto confluência de
teorias, exerceu o papel do cruzamento de vias que nos leva ao destino desejado,
enriquecendo o percurso.
Uma vez que a estrada não é reta, gostaríamos imensamente de contar com a certeza de
que o estudo de natureza qualitativa, mais o emprego da observação participante, tenham
proporcionado demonstrar efetivamente como a racionalidade substantiva se concretiza
na práxis administrativa e, qual é a razão predominante nas empresas pesquisadas. Ao
leitor cabe julgar. De todo o modo, a análise dos dados obtidos pelo trabalho de campo
nos dá a condição de fazer algumas observações empíricas que escolhemos entre as mais
importantes.
578
A primeira das observações empíricas a destacar, é a constatação de que a presença
marcante dos valores emancipatórios e a perseverança em praticar ações orientadas ao
entendimento, revelaram-se fundamentais para uma organização ter o caráter substantivo.
Os valores emancipatórios foram primordiais para guiar a ação social da empresa, compor
o sistema de valores principais da organização, povoar suficientemente o imaginário do
grupo, dando as cores da sua dimensão simbólica e, alicerçar os processos de reflexão
coletiva.
As ações de entendimento se mostraram indispensáveis para dar o tom substantivo nos
“processos duros” da prática administrativa: as questões concernentes a hierarquia, ao
estabelecimento de normas, a tomada de decisão e o controle. Justamente aqueles
processos que estão diretamente ligados à questão do poder. As zonas mais estreitamente
relacionadas ao poder são palco de exercício, nem sempre fácil e tranquilo, do
entendimento. A noção de entendimento é ampla. Lembramos que Habermas fala em
“acordo racionalmente obtido” e elabora toda a teoria da ação comunicativa a partir deste
ponto, destacando no processo a correção, a verdade e a autenticidade dos indivíduos,
atores no acordo. Lembramos também que Guerreiro Ramos fala em “boa regulação da
vida humana associada”, ressaltando que isto é alcançado mediante o debate racional e a
superordenação ética.
Assim, nas organizações substantivas do nosso estudo, os indivíduos atuam nas áreas em
que o poder frequentemente mais se manifesta na práxis administrativa, mediante ações
579
predominantemente embasadas em correção, verdade, autenticidade e superordenação
ética, desenvolvendo — não sem tropeços, recuos momentâneos e dificuldades — o
debate racional.
A autonomia revelou-se importante no processo de divisão do trabalho. Quanto mais
autonomia se tem para assumir livremente tal ou qual atividade a desempenhar, ter viva
voz no debate que leva à distribuição das tarefas, argumentar e ver seus argumentos ser
alvo de contra-argumentações, mais engajamento com o trabalho é proporcionado. A
natureza substantiva da organização emergiu também com grande intensidade deste
aspecto.
A satisfação é o corolário, no nível individual, do esforço organizacional de cunho
substantivo. Ficou evidenciado para nós que a autorealização é o grande motivo da
satisfação em participar daquelas organizações, em realizar aquele tipo de trabalho. A
recompensa monetária existe (em geral não muito mais elevada do que em outras
empresas), são empresas privadas mas, os indivíduos apontaram como a fonte maior da
sua satisfação a possibilidade concreta, a viabilidade de realização dos seus potenciais
profissionais e pessoais. Aqui, vimos que a autonomia se complementa com a
autorealização, a divisão do trabalho com a satisfação.
Gostaríamos de destacar um aspecto de particular relação com a teoria da ação
comunicativa. Obviamente, trata-se de uma observação empírica sobre o processo
organizacional de comunicação. Foi interessante constatar que, nas organizações
580
substantivas — Casa Via Magia e Espaço Lumiar — a autenticidade e os valores
emancipatórios foram os elementos de racionalidade predominantes. Isto quer dizer que,
em sua maior parte, os atos de palavra são orientados racionalmente através da
autenticidade e dos valores emancipatórios. Ora, se levarmos em conta que tais tipos de
valores são dominantes no contexto normativo do grupo (predominam na rubrica
“Valores e Objetivos” em ambas organizações), então tivemos a oportunidade de ratificar
empiricamente uma parte importante da proposição habermasiana: autenticidade e
correção, são dois dos três fatores fundamentais da ação comunicativa, onde correção
significa exatamente,
“Uma ação correta com relação a um contexto normativo
dado e reconhecido no mundo da vida cotidiano, para que
se possa estabelecer entre ele [o emissor] e o ouvinte uma
relação interpessoal tida como legítima” (Habermas,
1989, p. 501, trad. livre).
Quanto a Espaço Aquarius, empresa que não emergiu da análise como organização
substantiva, confessamos que nos sentimos extremamente gratificados em contar com ela
na pesquisa. Ela ensejou-nos uma chance de aprendizagem inesquecível, tanto para o
nosso aprofundamento do conhecimento das organizações substantivas como para o
nosso futuro enquanto pesquisadores. Selecionamos algumas observações empíricas que
transcreveremos a seguir.
581
Em primeiro lugar, a Espaço Aquarius confirmou, em nós, a importância e a eficácia da
metodologia da observação participante. Tentaremos explicar. Trata-se de uma
organização que apresenta indícios marcantes que poderiam nos levar a incluí-la na
classificação de substantiva. Seja pela iconografia da sua dimensão simbólica, pelo
discurso dos seus membros ou, por outro lado, pela impossibilidade de aprofundar a
pesquisa devido ao emprego unicamente de instrumentos como questionários ou
entrevistas (os mais usados na pesquisa em administração). A dimensão simbólica
(iconográfica) e os valores professados pelos seus membros são marcados integralmente
por valores emancipatórios. Hoje, podemos refletir sobre o que poderia nos ocorrer se
apenas entrevistássemos aquelas pessoas e/ou pedíssemos a elas que preenchessem
questionários. É bem provável que, inafortunadamente, hoje estivéssemos a considerá-la
uma organização substantiva !
A observação participante, principalmente neste caso, mostra a sua força. Como bem
sabem os antropólogos, não há nada que possa substituir a efetiva participação no
cotidiano de um grupo se se quer profundamente conhecê-lo; aliás, não seria esta uma das
questões mais simples e límpidas de qualquer relacionamento humano ? Talvez também
por isso Habermas afirma que a participação efetiva nas interações é fundamental para se
compreender um processo de entendimento. Em termos de trabalho científico e,
especificamente, em se tratando do nosso campo — a teoria das organizações — esse é
um aprendizado empírico que levaremos para o resto de nossa vida profissional. A
observação participante nos permitiu adentrar na realidade cotidiana do grupo, viver as
situações decorridas na passagem do tempo, perceber como se produz o
582
interrelacionamento naquela organização. Perceber como se constrói o “cotidiano
administrativo” (Lima & Teixeira, 1994).
Assim, pudemos perceber que mesmo apresentando predominância substantiva nas
rubricas valores e objetivos, dimensão simbólica, tomada de decisão e controle, a
empresa não pode ser considerada por nós como substantiva. Nos demais processos,
predomina a razão instrumental.
Guardadas as enormes e devidas diferenças, poderia-se, apenas com uma finalidade
heurística, fazer-se uma analogia da configuração da Espaço Aquarius com diversas
grandes e sofisticadas empresas que estão a implementar apressadamente programas do
tipo “grupos de produtividade”, “CCQ”, “administração participativa” e demais técnicas
do gênero, sem a devida correspondência em mudanças estruturais que uma ampla
participação/implicação exigiria: nessas grandes empresas, “trabalha-se” intensamente ao
nível dos valores (professados) e da dimensão simbólica, suaviza-se o controle e algumas
decisões (principalmente voltadas para a produção) mas, mantém-se o forte peso da
hierarquia, a ação social da empresa continua a ser a mesma e, a comunicação é aberta
apenas no que toca ao aumento do desempenho (Serva, 1993 b). A esse gênero de práticas
gerenciais nas grandes empresas modernas, Lipietz & Leborgne (1992) denominaram
“tentativa de implicação com hierarquia”, ou “neofordismo”. Obviamente que não
estamos a comparar a Espaço Aquarius com uma grande empresa, nem tampouco
colocando as suas práticas em um mesmo plano de semelhança, não somos ingênuos a tal
583
ponto ! Estamos apenas imaginando as possibilidades (por meio de uma analogia) de
análise que o instrumento aqui utilizado poderia, no futuro, permitir.
Voltando ao caso da Espaço Aquarius, ele nos dá, como dizíamos, uma grata
oportunidade de aprendizagem sobre a questão substantiva. Esse caso faz emergir com
toda a clareza (e os outros dois casos o confirmam) a condição possibilitadora, sine qua
non, para a predominância da razão substantiva numa organização: o comprometimento
efetivo dos seus membros com os valores emancipatórios. Aqui tentamos responder mais
uma das questões levantadas no Capítulo II.
O fato de conduzir uma empresa que sobrevive bem num mercado competitivo e,
paralelamente, tentar concretizar uma práxis baseada naquilo que nós definimos como
razão substantiva, é o que melhor define a natureza do desafio que os membros de tais
empresas enfrentam em seu cotidiano.
Vive-se numa dualidade tensa, permanentemente, pois tenta-se construir uma empresa
dentro de uma sociedade que já lhe oferece um modelo geral, as diretrizes de base, e a
lógica das ações, todos esses elementos fundantes intuídos de uma racionalidade
utilitária, instrumental.
O dilema entre ser empresa nos moldes tradicionais ou ousar uma práxis emancipatória é
diário, expressa-se no cotidiano, nas relações com os colegas profissionais, com os
empregados se eles existem, na adoção ou não de hierarquia e em que grau, nos padrões
584
de comunicação utilizados, e em muitos outros aspectos de escolha. O dilema é constante,
no fundo, para nós, é a própria expressão do dilema entre a predominância da
racionalidade substantiva ou da racionalidade instrumental, nas ações dos membros das
organizações produtivas contemporâneas. Um dilema que, se negado, ocultado, pode
aflorar em contradições não assumidas e conflitos não resolvidos, como no caso da
Espaço Aquarius.
Na nossa concepção, para que uma organização seja realmente substantiva, é preciso que
o comprometimento com os valores que se difunde, vá além da difusão e dos serviços
postos à disposição de uma clientela qualquer, é preciso que os indivíduos se engajem
firmemente ao desafio de concretizar tais valores no próprio desenvolvimento dos
processos organizacionais. É preciso que tais valores comecem a ser praticados dentro da
organização, sejam antes de tudo, uma parte do conjunto dos elementos da razão
substantiva que embasam a ação interativa entre todos os membros da organização,
principalmente no desenrolar da práxis administrativa.
Olhando para os casos da Casa Via Magia e da Espaço Lumiar, constatamos
empiricamente que o comprometimento efetivo, gerando o firme engajamento do qual
acabamos de nos referir, é justamente o fator da ação que opera uma fusão entre os
valores emancipatórios e as ações de entendimento, acima destacados. Não se muda ou
não se molda uma realidade complexa apenas professando valores e portando signos, é
necessário, sobretudo, comprometer-se efetivamente com eles na ação cotidiana. O que
585
não é nada fácil, nas condições dadas para as organizações produtivas na
contemporaneidade.
A congruência de uma organização face a racionalidade que lhe é subjacente não começa
no produto e na imagem ao público, começa sobretudo nos seus processos internos. Ou
seja, de dentro para fora da organização, e não o contrário. Neste cenário da vida humana
moderna, o simulacro não é suficiente para concretizar a razão substantiva. Trata-se de
um dos campos mais pragmáticos da atualidade.
Temos a esperança de que o conjunto das observações empíricas que apresentamos há
pouco, aliado a constatação de que a predominância da razão substantiva nas empresas
Casa Via Magia e Espaço Lumiar não acarretou insucesso econômico e, aliado também
ao conteúdo das análises exposto nos Capítulos VI, VII, VIII e IX, tenham iluminado as
questões levantadas no final do Capítulo II.
Além dos aspectos vantajosos específicos, já comentados, que o emprego das
formulações teóricas de Guerreiro Ramos e de Habermas nos proporcionou, queremos
destacar um aspecto vantajoso geral advindo da utilização dessas formulações. Ao tomar
essas duas teorias como pilares de nosso estudo, cremos que pudemos aprofundar o nosso
conhecimento do tema da racionalidade numa direção importante, ampliar a nossa visão
para novos horizontes, devido ao fato de que os dois autores não se limitam a elaborar a
crítica à razão instrumental.
586
Eles mostram, cada um dentro de seu próprio estilo e de sua opção metodológica, o que
não é instrumental, em se tratando de racionalidade. Seja aprofundando as bases
conceituais e se concentrando no campo das organizações, seja explorando a fundo a
interação simbólica e se concentrando na ação de comunicação, respectivamente
Guerreiro Ramos e Habermas caracterizam, elaboram a crítica e vão mais além da esfera
da razão instrumental. Eles adentram com firmeza o que antes era “espaço vazio”, ou no
mínimo uma caixa preta; desvelam uma outra racionalidade, revelando assim todo um
horizonte de possibilidades, tanto ao nível conceitual como ao nível dos “mecanismos” da
ação.
Assim, pudemos entender algo que para nós era anteriormente obscuro, ou pelo menos
difuso. Pudemos sair do âmbito da crença, da suposição sobre a existência de uma outra
racionalidade possível de ser empregada no cenário organizacional, para o âmbito da
detecção e início de uma futura compreensão dessa outra racionalidade.
Julgamos este aspecto de máxima importância para os estudos organizacionais dedicados
ao tema da racionalidade. Por conseguinte, incentivamos e exortamos os estudiosos desse
tema a trabalhar com a complementaridade entre Guerreiro Ramos e Habermas, como
sugerida por Barreto (1993).
A atenção dirigida a essa perspectiva de complementaridade, poderá evitar impasses
como aquele que comentamos aqui e, mais importante do que isso, poderá ajudar a
587
afrontar os novos impasses que a tortuosa estrada da ciência comprometida com a
emancipação, a “ciência com consciência”, provavelmente nos apresentará.
Neste sentido, ficaríamos muito gratificados se o presente estudo se constituir num
esboço, num conjunto de rabiscos iniciais que, pelas mãos dos colegas pesquisadores do
mesmo tema, poderia se transformar num TEXTO.
Por fim, essa pesquisa levanta questões que poderiam desencadear outras pesquisas no
futuro.
Cremos que vale à pena destacá-las, como mais uma tentativa de contribuição ao tema:
a) Como decorre a práxis administrativa numa organização substantiva do setor
industrial ?
Uma vez que as empresas aqui pesquisadas atuam no setor de serviços, valeria à pena
realizar estudos em empresas do setor de transformação, onde as relações entre homem e
máquina, ritmo/tempo de trabalho e processo tecnológico, dentre outras, poderiam talvez
colocar novos desafios à razão substantiva na práxis administrativa;
b) No setor de serviços, como decorre a práxis administrativa numa organização
substantiva que está fora do “movimento psicologista” ?
588
Coincidentemente, as organizações substantivas do nosso estudo se aproximam, em
maior ou menor grau, da classificação estabelecida por Huber (1985), como
“organizações do movimento psicologista”, dentro do conjunto geral do “movimento
alternativo”, conforme vimos no Capítulo II. Novas pesquisas poderiam explorar outras
realidades organizacionais, mesmo que ainda no setor de serviços mas, fora do dito
“movimento psicologista”;
c) Qual o papel que o nível de educação formal dos indivíduos exerce para a constituição
de uma organização substantiva ?
Guerreiro Ramos (1981) sustenta que a razão substantiva é um atributo de todo ser
humano e, releva a importância do senso comum nesse contexto. Por outro lado,
Rothschild-Whitt (1982) chama a atenção de que uma educação formal elevada é um
fator decisivo para a construção das “organizações coletivistas”; além dos membros das
organizações de sua pesquisa ter alto grau de educação formal, vinham de famílias com
semelhante nível educacional. No nosso estudo, a educação elevada é uma característica
marcante da maioria dos membros das organizações substantivas. Fica a questão para
futuros estudos, a pesquisa poderia tentar verificar a existência de organizações
substantivas onde os participantes não tivessem formação educacional elevada e conhecer
as suas práticas, ou então confirmar que a educação em alto grau é mais uma das
condições sine qua non;
d) Até que ponto o tamanho é uma aspecto restritivo ? Quais as soluções que estão sendo
utilizadas ?
589
Guerreiro Ramos (1981) afirma que uma “isonomia” não pode aumentar de tamanho, sob
pena de descaracterizar-se. Na nossa pesquisa, a Casa Via Magia foi a empresa de maior
tamanho, conta com 50 participantes. Os estudos de vários pesquisadores, tais como
Gagnon & Rioux (1988), Huber (1985), Serva (1993 a), Rothschild-Whitt (1982), Dupuis
(1985), Bhérer & Joyal (1987) e de muitos outros, dão conta de pequenas organizações. O
número de membros é variável, mas todos os autores falam em grupos pequenos. A
pesquisa poderia aprofundar a verificação de aspectos importantes ligados ao tamanho:
em geral, qual seria o limite médio ?; também empreender análises de casos de
deterioração substantiva a partir do aumento de tamanho da organização. Acima de tudo,
detectar quais as soluções que estão sendo utilizadas na prática para fazer face à questão
do tamanho, por exemplo, seriam as redes uma das soluções ? e como estariam sendo
construídas ? qual o impacto delas na práxis administrativa substantiva ?
e) Qual a influência, se ela existe, do aspecto feminino para a construção de organizações
substantivas ?
As organizações que emergiram da nossa análise como substantivas são organizações de
ampla maioria feminina. Na Casa Via Magia, cerca de 80% do pessoal é composto de
mulheres; na Espaço Lumiar, a predominância de mulheres é mais marcante ainda, pois
apenas um dentre os membros permanentes é do sexo masculino. Estudos posteriores
poderiam ser desenvolvidos enfocando este aspecto como uma variável de estudo,
retirando conclusões importantes sobre a presença feminina em ambientes produtivos
590
onde a razão substantiva é predominante, ou até desfazer uma suposição de que haja
alguma relação entre as duas classes de fenômenos.
Todas as questões acima levantadas sugerem pesquisas em organizações substantivas. No
fundo, todas estas questões relacionam-se à perspectiva geral da emancipação humana no
trabalho, através do tema da racionalidade organizacional. Conhecer cada vez mais como
se concretiza razão substantiva nas organizações, quais são suas condições facilitadoras e
também as restritivas, em vários ramos de atividade, diversos cenários organizacionais e
situações específicas, pode significar conhecer, cada vez mais, como implementar
práticas emancipatórias face aos desafios e dificuldades do nosso tempo.
Resta-nos fazer referência a uma questão que nos sentimos no dever de colocar. O
sentimento do dever vem em função da insistência que tem marcado a reapresentação
dessa questão. Não se trata de uma questão nossa, ao contrário, ela sempre nos é remetida
por outrem. Queremos dizer que, desde o início desta pesquisa, isto é, há 5 anos atrás, que
várias pessoas, no Brasil e no exterior, nos têm insistentemente dirigido a mesma questão,
a saber:
— “As organizações substantivas se multiplicarão a
ponto de ser a forma organizacional preponderante no
futuro ? Seriam elas uma das realidades atingidas após as
insolúveis crises do capitalismo tardio ?”;
591
Alguns dos meus interlocutores, notadamente os membros do meio acadêmico, foram
mais sofisticados na elaboração da mesma pergunta:
— “Na ocorrência de uma realidade futura onde se
observe a preponderância das organizações substantivas,
isto significaria uma espécie de ‘retorno’, contudo um
‘retorno’ adequado à era pósmoderna, às economias
anteriores que foram analisadas por Polanyi, Godelier e
outros ?”
Evidentemente, são expressões de uma mesma questão que é provocadora, instigante.
Entretanto, repetimos, não é uma questão que nós formulamos. Sinceramente, não o
faríamos. O modesto estudo aqui apresentado não nos dá condições de respondê-la. Quem
sabe, a continuidade dos estudos poderá lançar alguma luz sobre esta provocadora
questão. Mas, é no irrefreável movimento da história em que devemos confiar para nos
dar a resposta demandada.
Este modesto trabalho é um esforço que se quer juntar a milhares de outros, em prol da
emancipação do homem, a qual implica várias ordens de “humanização”: dentre outras, a
humanização do mundo social, do mundo do trabalho, das organizações e, por
consequência, a humanização da ciência das organizações.
592
Iniciamos estas Conclusões afirmando que a trajetória delineada na Introdução atingia o
seu final. Curiosamente, acabamos diante de um cruzamento de várias estradas, novas
opções para continuidade da marcha.
As vozes do “senso comum”, ou do “mundo da vida”, costumam dizer que “a arte imita a
vida”, por isso “a arte é viva”. Também dizem que “viver é uma arte”, falam da “arte de
viver”. Quem nos dera, um dia, ouvir as vozes da sabedoria popular dizerem que “viver é
uma ciência” e, falarem da “ciência de viver”. Mas, para isso será preciso que a ciência
adquira vida, ou seja, que a ciência humanize-se. Para tanto, aqueles cientistas que
pensam ser a vida uma estrada reta, teriam, sobretudo, de aprender que, pela arte ser viva,
o poeta é quem tem, a razão:
“Dentro de cada um,
tem mais mistérios
do que pensa o outro;
Tem esta mágica
o dia nasce todo dia,
resta uma dúvida
o sol só vem de vez em quando;
O certo é incerto,
o certo é uma estrada reta ?
de vez em quando, acerto.”
593
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