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RACIONALIDADE E ORGANIZAÇÕES O Fenômeno das Organizações Substantivas Volume I e II Maurício Serva Escola de Administração de Empresas de São Paulo Fundação Getúlio Vargas Tese de Doutorado 1996

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RACIONALIDADE E ORGANIZAÇÕES

O Fenômeno das Organizações Substantivas

Volume I e II

Maurício Serva

Escola de Administração de Empresas de São Paulo Fundação Getúlio Vargas

Tese de Doutorado 1996

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SERVA DE OLIVEIRA, Maurício Roque. Racionalidade e organizações: o fenômeno das organizações substantivas. São Paulo: EAESP/FGV, 1996. 633p. (Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação da EAESP/FGV, Área de Concentração: Organização, Planejamento e Recursos Humanos). Resumo: Sob a perspectiva geral da emancipação do homem no âmbito do trabalho, trata do tema da racionalidade em organizações produtivas, enfocando-o mediante a abordagem substantiva da organização, conforme proposta por Guerreiro Ramos. Empreende a complementaridade entre essa abordagem de Guerreiro Ramos e a teoria da ação comunicativa, de Habermas, donde elabora um quadro de análise, através do qual, examina empiricamente três empresas de Salvador, Bahia, com o intuito de demonstrar como a razão instrumental e a razão substantiva se concretizam na prática administrativa. Daí, define organizações substantivas e, estabelece uma escala de intensidade de racionalidade substantiva que pode ser aplicada para a análise de qualquer organização produtiva. Palavras-Chaves: Racionalidade Substantiva — Organizações Substantivas — Teoria das Organizações — Emancipação.

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO

MAURÍCIO ROQUE SERVA DE OLIVEIRA

RACIONALIDADE E ORGANIZAÇÕES: O fenômeno das organizações substantivas

Tese apresentada ao Curso de Pós- Graduação da EAESP/FGV Área de Concentração: Organização, Planejamento e Recursos Humanos como requisito para obtenção do grau de doutor em Administração. Orientador: Prof. Peter Kevin Spink

SÃO PAULO 1996

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AGRADECIMENTOS

Este texto é fruto de um esforço coletivo. Ele marca, exatamente, dez anos de minha

dedicação ao estudo das organizações substantivas. Nesse período, contei com valiosas

contribuições de inúmeras pessoas, vindas de espaços e tempos os mais diversos, sem as

quais este trabalho jamais se concretizaria.

Tal reconhecimento, me causa felicidade e dor, ao mesmo tempo. Felicidade, por me

sentir como uma via de expressão da esperança de tantas pessoas, que crêem firmemente

na possibilidade do trabalho em organizações se constituir uma fonte de autorealização

humana. Dor, por não conseguir, neste momento, lembrar-me dos nomes de todas essas

pessoas e, assim, não fazer o devido e merecido agradecimento. Resta-me, ao menos, o

reconhecimento de que todos aqueles que contribuíram, verdadeiramente fazem parte

deste trabalho.

A primeira pessoa a quem agradeço, é o amigo-irmão Pedro Jaime Júnior. Pesquisador

de grande brilho, cientista social de profunda sensibilidade. Acima de tudo, um amigo-

irmão em que pude me apoiar em todos os momentos da elaboração deste trabalho, não

importando a distância física que, durante anos, marcou as nossas trajetórias. Pedro,

além de empreender toda a pesquisa de campo comigo, foi a pessoa com a qual pude

“pensar” aquelas realidades visitadas; nesse sentido, suas críticas, sugestões e os textos

que ele me forneceu até o último instante, foram fundamentais para tudo o que virá nas

próximas páginas. Paralela e, curiosamente, confesso que sou grato à oportunidade de

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realizar este trabalho, sobretudo por ela ter me dado a chance de aprofundar a amizade

com um ser humano do quilate de Pedro Jaime Júnior.

Allain Joly, foi muito mais que um co-orientador durante os dois anos que passei em

Montreal. O calor humano, o apoio, a energia que brota da sua pessoa e que nos faz ter

forças para enfrentar as dificuldades da vida, foram tão importantes quanto a

perspicácia, a inteligência e a competência científicas pelas quais ele orientou os meus

passos.

Ao professor Peter Spink, os meus mais sinceros agradecimentos, por ter aceito me

orientar — como já o fizera durante o meu mestrado — num projeto de estudos

audacioso e inovador, o que certamente causaria incômodos a outros membros da

academia.

Com Guilhermo Ruben, cientista de renome internacional, pude não só aprender

elementos essenciais da maravilhosa ciência da antropologia, como também consolidar

definitivamente a certeza de que viver vale à pena, uma vez que podemos encontrar seres

humanos como ele.

A Antonio Sérgio Fernandes e a Geraldo Bahiense, amigos-irmãos que também trilham o

caminho da ciência, agradeço-os de coração, pela força humana e incentivo intelectual

que vocês nunca cessaram de me dar.

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“Para não dizer que não falei de flores”... felizmente, elas estão aqui: Carolina, teu

amor e tua energia espiritual me trouxeram a paz interior e a fé, justamente durante a

fase crucial do trabalho — a redação.

Outras flores também contribuíram muito: Marizilda Faia, sempre me ensinando a viver;

Maria Teresa Ribeiro, com a sua inesgotável disposição para ajudar; Luciana Garcia,

com a sua ternura e apoio permanentes.

Como frisei acima, pessoas, de vários lugares, me ajudaram bastante. De Caracas,

Santiago Bilbao, antropólogo que dedicou a sua vida ao estudo e ao desenvolvimento de

organizações emancipatórias na América Latina e, Hebe Vessuri, muito me auxiliaram

com materiais e depoimentos sobre as iniciativas emancipatórias no nosso continente.

Santiago Bilbao é uma ilustração da “história viva”, de páginas apaixonantes da

história recente dos povos latinoamericanos em sua busca pela libertação.

A Montreal, cidade que, definitivamente, conquistou o meu ser, o meu muitíssimo

obrigado. De lá vieram grandes contribuições. Na École des Hautes Études

Commerciales, os professores Thierry Pauchant, Omar Aktouf, Jean-Pierre Dupuis,

Jean-François Chanlat e Alain Chanlat, acreditaram na minha proposta e a ela

agregaram valorosas adições e questionamentos; também os pesquisadores brasileiros

que encontrei na HEC, Luiz Bignetti, Norberto Hoppen e, particularmente, Juvêncio

Braga de Lima (com o seu belíssimo conceito de “cotidiano administrativo”), muito me

ajudaram. Na Université de Montréal, o professor Gabriel Gagnon, mestre que há

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muitos anos se dedica ao estudo das organizações emancipatórias no Québec, me deu

orientações e incentivos fundamentais; também agradeço ao professor Robert Crépeau,

com quem tive a oportunidade de me aprofundar no estudo da antropologia. Da

Université du Québec à Montréal, recebí do professor Jean Pasquero, epistemólogo de

primeira linha, orientações inesquecíveis sobre as questões epistemológicas com as quais

me debatia para a construção da argumentação e do encadeamento lógico do texto.

Aos membros de todas as organizações que foram pesquisadas no trabalho de campo, o

meu agradecimento caloroso. Sem a aceitação e a cooperação deles, não se teria a

condição de realizar este trabalho. Particularmente, gostaria de externar a minha

profunda gratidão a Kennedy Almeida, Alba, Rui César, Rô Reyes, Déa Freitas, Lígia,

Maria, Nair Spinelli, Kátia Nascimento e Fátima.

A todos que trabalharam comigo no Grupo de Pesquisas em Organizações Substantivas,

o qual fundei, na UFBA, em 1988 e, funcionou até 1993, o meu profundo agradecimento.

Boa parte do que está aqui, foi iniciado naquele Grupo.

Ao inesquecível amigo e, para sempre meu mestre, professor Ramon Moreira Garcia — a

quem dedico este modesto trabalho — o meu eterno agradecimento, por ter-me feito

redescobrir a essência humana da obra de Guerreiro Ramos — nosso grande inspirador.

Com o mestre Ramon, pude muito aprender sobre a racionalidade e organizações

substantivas, sobretudo como pautar a minha vida nesta racionalidade.

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Aos professores membros da banca examinadora desta tese: Peter Spink, Osmar Bertero,

Anita Kon, Anna Maria Campos e Guilhermo Ruben, os meus agradecimentos por terem

aceito participar deste evento. Gostaria de dizer que é uma honra contar com cientistas

desse quilate para o exame do meu trabalho; significa, para mim, um verdadeiro prêmio,

após todos esses anos de estudo do tema aqui abordado.

A Nilce e a Albertino, meus pais, por tudo.

Por fim, gostaria de terminar como comecei: reconhecendo que este é um trabalho

coletivo. Obrigado a todos que ajudaram, direta ou indiretamente, a sua realização,

muito obrigado por estarem aqui.

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Dedico este trabalho ao saudoso mestre e amigo Ramon Moreira Garcia

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SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................................11 Capítulo I - Racionalidade e Estudo de Organizações.................................................39

Notas s/ abordagens da racionalidade em filosofia e em algumas ciências humanas ...40 A teoria da ação comunicativa ......................................................................................80 Racionalidade substantiva e análise organizacional em Guerreiro Ramos .................115 A revalorização do sujeito e da ação nas ciências humanas........................................130 Racionalidade substantiva e análise organizacional - estudos recentes no Brasil .......139 Delimitação da contribuição deste estudo ...................................................................157

Capítulo II - Organizações Substantivas.....................................................................168

Algumas iniciativas históricas.....................................................................................196 Organizações produtivas não convencionais de cunho emancipatórios......................180 Organizações substantivas...........................................................................................272

Capítulo III - O Trabalho de Campo ..........................................................................289 Capítulo IV - Constituição do Quadro de Análise .....................................................316

Razão substantiva e ação comunicativa - perspectivas de complementaridade ..........317 Quadro de análise ........................................................................................................337 Procedimentos operacionais ........................................................................................346 Considerações de ordem epistemológica.....................................................................355

Capítulo V - As organizações estudadas e seu contexto.............................................366

Apresentação das organizações ...................................................................................366 Notas sobre o contexto sócio-histórico da cidade de Salvador ...................................381

Capítulo VI - Análise da Casa Via Magia ...................................................................388 Capítulo VII - Análise da Espaço Lumiar ..................................................................461 Capítulo VIII - Análise da Espaço Aquarius..............................................................522 Capítulo IX - Uma visão de conjunto das três organizações .....................................559 Conclusões......................................................................................................................573 BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................593 A N E X O ......................................................................................................................616

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Introdução

Ao final do século XX, temos testemunhado o estabelecimento de determinadas

configurações materiais e tecnológicas verdadeiramente espetaculares no seio da

sociedade. O progresso da industrialização e o avanço técnico-científico proporcionaram

um grau de conhecimento sobre a natureza tal que o homem pôde transformá-la e moldá-

la, em muitos aspectos, na medida da satisfação de suas necessidades.

Nas últimas décadas, observa-se a mais recente “geração” do avanço tecnológico — a

revolução da informação — prometendo mudanças ainda mais profundas na esfera da

vida humana associada. Os sinais destas promessas já são mais do que claros, eles já

constituem evidências indiscutíveis: hoje, a chamada “aldeia global”, expressão criada

pelo sociólogo canadense Marshall McLuhan para designar um mundo integrado pela

comunicação tecnológica, já é realidade.

Ademais, é inegável o desenvolvimento dos meios de transporte, interligando facilmente

pessoas e grupos organizados que vivem em partes distantes do mundo, como também

das técnicas produtivas que cada vez mais substituem o esforço físico no trabalho.

Podemos perceber o grau de sofisticação atingido no conhecimento sobre as variáveis

inerentes ao mercado, bem como do comportamento do indivíduo enquanto consumidor.

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Todos esses fatores, aliados definitivamente à integração e volatização dos recursos e

mercados financeiros, desembocam numa conjuntura geral de interdependência

econômica e política mundial nunca antes vista. Tal fenômeno vem sendo chamado

“globalização”. A sua continuidade parece prometer novas configurações econômicas e

tecnológicas ainda mais espetaculares do que aquelas que testemunhamos presentemente.

Por outro lado, todo esse extraordinário avanço vem sendo acompanhado, notadamente a

partir dos anos 70, por uma crise multifacetada em âmbito mundial.

O espectro da crise é suficientemente amplo. Podemos apontar, apenas a título de

ilustração, os graves problemas representados pelo desequilíbrio ecológico, a crescente

desigualdade entre nações ricas e pobres, as desiguldades sociais também crescentes no

interior das nações, sejam pobres ou ricas, o desemprego crônico e os padrões de controle

social que a expansão da burocracia impõe aos indivíduos, comprometendo sobretudo o

alcance da autorealização individual.

Assim, o fantástico desenvolvimento das forças produtivas, que poderia ser um grande

passo para a emancipação do homem, parece tê-lo enclausurado sob novos e inusitados

grilhões. As necessidades humanas que orientaram o desenvolvimento do conhecimento

ao estágio atual, ao invés de representarem a alavanca da emancipação, tornaram-se

verdadeiras fontes de patologias sociais (Freitag & Rouanet, 1990). Se por um lado o

progresso do conhecimento trouxe mais riqueza e bem-estar material, sob outro ponto de

vista este mesmo progresso provocou e continua provocando mais desajuste no ser

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humano (Martins, 1994). Aquilo que poderia servir como meio de libertação do homem,

converteu-se em instrumento de dominação e infelicidade (Marcuse, 1982).

Segundo Toffler & Toffler (1992), à sensacional chegada da “Terceira Onda” de

revoluções, corresponde também a nova tintura da sociedade com as “cores da violência”,

designando por tal expressão, as manifestações agressivas de revolta dos grupos (cada vez

mais numerosos) impiedosamente excluídos do fenomenal estágio atual de progresso do

capitalismo tardio.

A dimensão das organizações produtivas neste contexto:

Neste complexo e paradoxal contexto, as organizações produtivas exercem um papel

crucial. Segundo Martins (1994), devido ao fato de que as organizações atuais são

sistemas construídos para atender às necessidades econômicas e administrativas da

sociedade, constituindo-se assim numa dimensão extremamante ativa dessa sociedade,

acabam por funcionar como uma segunda instância de socialização dos indivíduos. Essa

segunda instância de socialização implica a complementação dos processos educativos e,

é implementada pela submissão dos indivíduos aos procedimentos organizacionais de

reprodução cultural e de integração social.

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Por este ponto de vista, a organização produtiva, percebida através do conceito ampliado

de agente social, é considerada como um dos artífices principais na configuração desse

contexto ambíguo de desenvolvimento material/tecnológico em paralelo ao impedimento

à emancipação.

Mesmo um olhar desprentensioso para a condição humana no interior da maioria das

organizações produtivas poderá facilmente constatar que a vida nessas organizações não

parece espelhar o brilho e o fascínio difundidos por boa parte dos estudos administrativos,

tais como os de Peters & Waterman (1982), Ouchi (1981) e Archier & Sérieyx (1984).

Bem ao contrário, a vida nas organizações tornou-se um empecilho a autorealização

individual (Guerreiro Ramos, 1981). Para Dejours (1990), “beneficiário da produção, o

homem é frequentemente no mesmo movimento, vítima do trabalho.”

Abandonando o olhar desprentensioso e, consultando os estudos de diversos autores,

elaborados em várias partes do mundo, podemos encontrar uma literatura consistente,

dando conta do colapso da emancipação do homem no âmbito do trabalho, nos moldes

em que este é desenvolvido na ampla maioria das organizações produtivas

contemporâneas. As correntes são inúmeras, tal é a diversidade de aspectos e temas que

compõem essa complexa questão. Nem sempre todos os autores utilizam o termo

“emancipação”, mas o que emerge do conjunto dessas obras é, de fato, a preocupação

com a autorealização, a felicidade, a libertação, a satisfação, a autonomia, a igualdade, e

idéias correlatas, que revelam, no fundo, um humanismo voltado para a emancipação.

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Sem ter o objetivo de realizar um levantamento por demais amplo e, sim, apenas para

fornecer um panorama genérico que possa dar ao leitor uma idéia da riqueza e da

diversidade dessa literatura, podemos indicar alguns temas e autores:

O poder:

Por exemplo, a submissão, à qual se refere Martins (1994), imposta pelas organizações

aos indivíduos para viabilizar os processos de socialização, reprodução cultural e

integração social, é analisada criticamente por diversos autores sob o tema do poder nas

organizações. Mintzberg (1983, 1989) constata que grande parte das organizações

atingiram um estágio em que fica quase impossível administrá-las, pois elas tornaram-se

doentes de um management profissional, abstrato, onde o poder é exercido como um fim

em si mesmo.

Clegg (1992) reconhece a concentração de poder em mãos dos administradores mas,

chama a atenção que devido a complexidade das relações sociais, o poder está sujeito a

mudanças daí, a adoção de novas tecnologias não deve ser vista sempre como causa do

aumento de poder da administração.

Pagès (1979) notabilizou-se, dentre outros estudos, pela notável análise psicanalítica do

poder em grandes organizações. Dignos de destaque no campo de estudos sobre o poder

nas organizações, também numa perspectiva psicanalítica, são os trabalhos de Enriquez

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(1983, 1992). Thiry-Cherques (1993), ao examinar as lutas de poder, os impactos do jogo

e da manipulação nas organizações, conclui que “Erasmo elogiou a loucura esperando

que o relato da estupidez humana a fizesse desaparecer. Como sabemos, não teve

sucesso. Também a compreensão do político nas organizações não o fará desaparecer.”

A psicopatologia do trabalho:

Outros autores se concentraram nos efeitos da opressão que as organizações impõem aos

indivíduos, principalmente os efeitos desastrosos ao nível da saúde mental. Dejours

(1990) clama por uma psicopatologia do trabalho, no sentido de dar conta dos resultados

perversos do sofrimento humano nas organizações. Para o autor, a administração tem

mais um tipo de responsabilidade perante a sociedade civil: assegurar a manutenção de

um espaço público (de palavra e de decisão) nas organizações, onde se possa confrontar

opiniões de todos os segmentos, face não só às questões relativas a produção, como

também aquelas referentes ao sofrimento humano no trabalho.

Chanlat (1990) examina os fatores de stress no trabalho, demonstrando a relação de

vários deles com determinadas representações e práticas precisas da gerência. Chanlat

acredita que só a com a transformação das organizações se poderá “fazer do trabalho um

verdadeiro meio para a vida.”

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Os estudos de Aubert (1990) também se enquadram nesse grupo, a autora analisa vários

casos de neurose profissional, destacando algumas práticas gerenciais como um dos

fatores críticos de desencadeamanto de patologias psíquicas nas organizações,

notadamente o que ela denomina “gestão kleenex”, isto é, a prática de gestão que não

atribui nenhum valor humano aos indivíduos, usando-os e descartando-os ao bel prazer,

fazendo da ameaça permanente de dispensa um verdadeiro sistema de gestão de pessoal

(tão comum hoje em dia). A autora estabelece as diferenças conceituais entre a “neurose

profissional traumática”, “psiconeurose profissional” e “neurose de excelência”,

ensejando uma tipologia de patologias psíquicas no trabalho.

A discriminação da mulher:

Uma área de estudos digna de destaque é a que aborda os processos discriminatórios

contra a mulher no âmbito das organizações.

Tais estudos, dentre outros ângulos da questão, enfocam as barreiras ao acesso das

mulheres às posições de poder nas empresas, os preconceitos contra a mulher no

ambiente de trabalho, os mitos sobre a atuação e o desempenho que juntos estabelecem

expectativas diferenciadas para a mulher face ao trabalhador masculino. Abordam

também o grave problema das diferenças de remuneração entre os sexos e a dualidade de

papéis severamente exigidos para a mulher dona de casa - trabalhadora.

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Em profundidade, esses estudos revelam a porosidade da organização face à sociedade

que a contém. Os preceitos e preconceitos existentes no meio social mais amplo são

transferidos e confirmados no ambiente microssocial da organização. Podemos indicar

nesse grupo os trabalhos de Betiol & Tonelli (1991), Symons (1990), Giasson (1990) e

Belle (1990).

Crises e perda do sentido:

Fruto da nova configuração global a qual nos referimos acima, surge nos últimos dez anos

um particular domínio da teoria organizacional destinado a analisar a questão das crises

de grande amplitude geradas pela ação das organizações. Parte-se da premissa da

globalidade do efeito das ações das organizações e, portanto, também do seu efeito

profundo sobre o indivíduo. Os desastres e catástrofes que nos vêm à memória ao

ouvirmos os nomes de Bhopal, Tchernobil, ou Exxon Valdez, por si só já justificaria o

interesse dos estudiosos sobre o tema.

Desde 1984, o Center for Crisis Management, situado na Universidade do Sul da

Califórnia vem realizando pesquisas nesse campo, sendo seguido pelo Groupe d’Études

et de Recherche sur le Management et l’Écologie, na Escola de Altos Estudos Comerciais

de Montreal. Assim, podemos classificar os estudos em três estágios de desenvolvimento.

O primeiro estágio foi marcado pelo subtema das medidas de urgência e da gestão dos

efeitos das crises, abordagem característica dos estudos de Denis (1990) e Lagadec

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(1991). No segundo estágio, avança-se para uma concepção preventiva das crises e de

outros fatores paradoxais gerados pelas organizações, como a poluição. Aqui podemos

indicar os trabalhos de Denis (1993), Pauchant & Mitroff (1992), dentre vários outros.

A terceira geração aprofunda os parâmetros da gestão das crises e perpassa a questão da

busca do sentido perdido no trabalho, mesclando elementos de filosofia existencialista e

do paradigma científico da complexidade. Nesta atual fase, podemos indicar, dentre

outros, os trabalhos de Pauchant & Mitroff (1995) e Pauchant (1993). Para Pauchant &

Mitroff (1995), a resistência dos gerentes em enfrentar a realidade das crises não é um

fenômeno isolado, é mais uma das manifestações da enorme dificuldade de fazer face aos

problemas de natureza existencial em geral.

O anacronismo e a ideologia gerenciais:

Sob esta classificação bastante genérica, queremos fazer significar a crítica geral ao

caráter ultrapassado das teorias e modelos gerenciais de forte inspiração funcionalista que

ainda circulam nos meios acadêmicos e de divulgação.

As críticas vão desde a “desumanização” da administração, a denúncia ao caráter

ideológico da gerência e, até a repressão à palavra tão característica dos modelos

gerenciais tradicionais. Uma vasta gama de estudos têm sido realizados nessas direções,

entre os quais podemos citar os de Aktouf (1989), Chanlat & Dufour (1985), Chanlat &

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Bédard (1990), Serva (1993 b), Vergara & Branco (1993). Dentre os temas aqui

arrolados, esse talvez seja o que conta com maior número de estudos.

A abordagem da racionalidade:

Uma outra corrente a ressaltar é a da abordagem da racionalidade. A busca da

compreensão da razão, enquanto fundamento das ações humanas também no interior das

organizações produtivas, tem guiado o interesse de diversos pesquisadores. Uma boa

parte deles tem buscado no estudo da racionalidade predominante nas organizações mais

uma fonte de explicação dos processos opressivos de toda a ordem que impedem a

emancipação humana no trabalho, principalmente na sociedade moderna.

Os estudos de Guerreiro Ramos (1981), Symons (1990), Tenório (1990), Pizza Júnior

(1994), Martins (1994) e muitos outros se inserem no rol daqueles que visam examinar a

racionalidade que embasa as ações dos indivíduos nas organizações numa perspectiva

crítica.

Os temas e autores acima relacionados representam apenas um pequenino extrato do

vasto leque de opções para aqueles que desejem conhecer, através da literatura já

disponível, os problemas e deformações sociais e individuais causados pela ação das

organizações contemporâneas. Gostaríamos de insistir na informação de que, tanto a

quantidade de temas neste campo é bem maior do que a simples enumeração que fizemos

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há pouco, quanto a existência de autores dentro de cada tema em muito ultrapassa o

panorama geral aqui fornecido.

Este trabalho situa-se no bojo do tema referente aos estudos sobre a racionalidade nas

organizações. Dentro desta temática, queremos esclarecer que o nosso estudo situa-se no

mesmo plano daqueles que são guiados pela perspectiva da emancipação humana na

esfera do trabalho, mais precisamente no universo das organizações produtivas

contemporâneas. Portanto, a este tema vamos nos dedicar em seguida.

A racionalidade substantiva nas organizações:

O alicerce central de nosso estudo está fundamentado nas idéias de Guerreiro Ramos,

eminente sociólogo brasileiro que em vida, no ano de 1981, sistematizou as suas idéias

sobre o tema em questão através da “abordagem substantiva da organização”, a qual foi

apresentada pela publicação do seu último livro, intitulado A nova ciência das

organizações - uma reconceituação da riqueza das nações.

Antes de promover a apresentação das linhas gerais do estudo de Guerreiro Ramos,

gostaríamos, o quanto antes, de dar um aviso importante. É possível, eventualmente,

encontrar textos que utilizem a expressão “racionalidade substantiva” com outro

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referencial e dentro de outras perspectivas gerais. É o caso, por exemplo, do estudo de

Clegg (1990). Deve-se ter o cuidado de não confundir tal estudo com a proposta de

Guerreiro Ramos, pois eles apresentam diferenças essenciais entre si.

Em primeiro lugar, Clegg (1990) não trabalha com a mesma perspectiva geral daquela de

Guerreiro Ramos (e também nossa) — a emancipação humana — , essa não é a

preocupação central desse seu estudo e, sim as formas de adaptação das organizações

empresariais de alguns países do leste asiático aos ditames do capitalismo tardio. Ele não

esboça uma crítica radical ao capitalismo, antes disso interessa-se em entender como as

empresas daquela região adaptam-se e obtém sucesso econômico na concorrência

internacional do “mundo pósmoderno”. Em segundo lugar, ele afirma partir do referencial

de Weber sobre racionalidade, daí elaborando o conceito de “modos de racionalidade”, o

qual declara ser fundamentado no sentido que Weber empregava para a racionalidade

substantiva. Veremos que os fundamentos, a perspectiva geral e as referências de

Guerreiro Ramos são muito distintas desse estudo de Clegg.

Portanto, voltemos a Guerreiro Ramos.

Em A nova ciência das organizações ..., Guerreiro Ramos afirmava que a referida

abordagem estava inserida na “teoria substantiva da vida humana associada”, a qual,

segundo o autor, possui três qualificações essenciais que a diferenciam da teoria social

formal. A primeira é que a razão substantiva é a sua principal categoria de análise. A

segunda qualificação é a que reconhece que os elementos dessa teoria já vinham desde

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muito tempo sendo trabalhados por diversos pensadores e sendo harmonizados ao

significado que o senso comum atribui à razão. A terceira qualificação, aponta a teoria

substantiva como uma elaboração que envolve a superordenação ética da teoria política,

sobre qualquer outra disciplina que aborde a vida social (Guerreiro Ramos, 1981).

Em suma, uma teoria que tem como ponto de partida a razão substantiva harmonizada ao

senso comum e que prevê a dimensão ético-valorativa como superior a qualquer outra

enfocada pelos estudos do social.

A formulação de Guerreiro Ramos apresenta uma forte influência dos estudos de Polanyi

(1975, 1983), complementados pelo grupo de intelectuais que juntamente com Polanyi,

na Columbia University nos anos 40 e 50, fundaram a concepção substantiva da

economia, impulsionando ainda mais o campo de estudos da antropologia econômica.

Polanyi (1975) rejeitava terminantemente a idéia de que a racionalidade utilitária tem que

ser empregada como o ponto de partida para a análise de toda e qualquer atividade

econômica. Ele defendia que a economia deveria ser analisada como um processo social,

isto é, inserido e dependente da configuração institucional própria de cada sociedade

historicamente percebida. A racionalidade utilitária e o mercado não serviriam como

categorias gerais de análise para todas as economias. Assim, Polanyi cunhou a expressão

concepção substantiva, a qual implica a institucionalização do econômico. O autor

afirmou claramente que a concepção substantiva concentra o interesse sobre “os valores,

a motivação e a política.” (Polanyi, 1975).

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Daí, a formulação de Polanyi se constituir numa das principais fontes de inspiração para

Guerreiro Ramos, provavelmente, inclusive, de onde o autor brasileiro retirou o termo

substantiva.

Guerreiro Ramos defendia a idéia de uma razão substantiva de amplo espectro,

confessadamente no sentido aristotélico, pelo qual a racionalidade excede em muito as

operações de antecipação da ação por meio do cálculo. Como muitos outros estudiosos,

Guerreiro Ramos denominou a razão baseada em cálculo como “instrumental”, termo

com significação equivalente às denominações “utilitária”, “formal”, “técnica”,

“econômica”, “com respeito a fins”, empregadas por diversos autores. A este tipo de

racionalidade, contrapôs radicalmente a razão substantiva. Para ele, a razão substantiva é

um atributo natural do sujeito, reside na psique humana. Por meio dela, os indivíduos

poderiam ordenar a sua vida pessoal na direção da autorealização, contrabalançando a sua

própria busca de emancipação/autorealização com o alcance da satisfação social, ou seja,

levando em conta também o direito dos outros indivíduos de buscá-la. As chaves para

esse balanceamento seriam o debate racional e, sobretudo o julgamento ético-valorativo

permanente das ações.

O que soa completamente diferente da busca do êxito individual despreendido do debate

racional e do julgamento ético-valorativo, apenas pautado no cálculo utilitário de

consequências; esta atitude é típica do embasamento fornecido pela lógica da razão

instrumental. Guerreiro Ramos reconheceu que, na maioria das organizações produtivas

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contemporâneas, a razão instrumental prevalece como lógica embasadora das atitudes e

ações, determinando o padrão (comportamento organizacional) de “sucesso” a ser

atingido, um “sucesso” baseado na lógica econômica utilitarista, orientado pelas “leis” do

mercado e egoísta por essência.

Por conseguinte, liberado de premissas ético-valorativas, o ambiente organizacional

tornou-se propício aos abusos de poder, à dominação, ao mascaramento de intenções pela

substituição da comunicação por padrões informativos, dentre outras consequências,

conduzindo os indivíduos a se lançarem numa competição permanente, produtora de

ansiedades e patologias psíquicas. Assim, Guerreiro Ramos também ressalta que a

“sociedade centrada no mercado”, isto é, dominada pela lógica da razão instrumental de

suas organizações produtivas, seria responsável pelas insegurança psicológica,

degradação da qualidade de vida, poluição, desperdício e exaustão dos recursos naturais

do planeta, além de produzir uma teoria organizacional incapaz de ensejar espaços sociais

gratificantes aos indivíduos.

Como podemos ver, a análise das organizações através do tema da racionalidade

demonstra a sua fecundidade, pois toca em várias questões abordadas pelas outras

correntes críticas que vimos acima.

Ao propor uma abordagem substantiva das organizações, Guerreiro Ramos o fêz,

confessadamente, de maneira conceitual. Menos do que fornecer ilustrações factuais de

suas teses, ele preferiu, naquele momento, apresentá-las por meio de um discurso teórico

26

por excelência, elaborado em alto grau de abstração (Guerreiro Ramos, 1982). Eis aqui a

origem do problema que a nossa pesquisa assume enfrentar. Voltaremos a este problema

mais tarde.

Não obstante ter apresentado a abordagem substantiva das organizações de forma

eminentemente conceitual, o autor chamou a atenção de que mesmo na sociedade atual,

centrada no mercado, existem diversos “cenários” ou “enclaves” sociais, onde a razão

instrumental não necessariamente prevalece. No interior desses enclaves ele constatou a

existência de diversas organizações onde a razão substantiva era dominante. A tais

organizações denominou isonomias, construindo sobre elas uma espécie de tipo ideal,

uma categoria de análise sociológica de inspiração weberiana.

A morte prematura de Guerreiro Ramos, aos 67 anos, em plena atividade intelectual e

apenas um ano depois da publicação de A nova ciência das organizações ..., não deixa

dúvidas de que o seu projeto foi interrompido, pois no prefácio daquele livro ele afirmava

que uma vez lançada as bases da nova ciência, caberia a ele dar continuidade à proposta.

O problema enfocado por esta pesquisa:

27

As idéias de Guerreiro Ramos vêm tendo grande ressonância nos meios acadêmicos,

notadamente no Brasil, onde a abordagem substantiva da organização tem muitos

adeptos. Desde a publicação de A nova ciência das organizações ... diversos autores

brasileiros vêm elaborando estudos pautados na análise de organizações tomando como

base a racionalidade substantiva tal como definida por Guerreiro Ramos, ensejando

gradativamente mais um tema específico de estudos organizacionais no nosso país.

Visitando os estudos desse gênero, principalmente os mais recentes (Vasconcelos, 1993;

Tenório, 1990; Pizza Júnior, 1994; Caldas, 1994; Barreto, 1993; Oliveira, 1993), para

termos uma idéia do “estado da arte” no Brasil, constatamos que todos esses trabalhos,

apesar de muito bem elaborados, não avançam sobre a práxis administrativa, não

conseguem sair do prisma conceitual.

Os autores brasileiros criticam e denunciam a razão instrumental, baseando-se em

Guerreiro Ramos para declarar que existe uma outra razão que lhe é oposta, a

racionalidade substantiva, mas não conseguem comprovar empiricamente como esta

racionalidade pode ser empregada nos processos administrativos de organizações

produtivas reais, isto é, na gestão de empresas, de fins lucrativos ou não, em pleno

funcionamento. Em outras palavras, os autores não demonstram claramente, por meio de

exemplos retirados de organizações reais, como se concretiza a razão substantiva ao nível

prático da tomada de decisão, da divisão do trabalho, do controle, do estabelecimento de

normas, da gestão de conflitos, da comunicação e de outras variáveis tipicamente

administrativas. Não sabemos exatamente a causa dessa “dificuldade”; talvez ela advenha

28

do fato de Guerreiro Ramos ter apresentado inicialmente a sua proposta em termos

puramente conceituais e em elevado grau de abstração.

Decorridos 14 anos da morte de Guerreiro Ramos, seus seguidores ainda não conseguem

ilustrar factualmente aquilo que defendem. Para nós, este é um grave problema para o

avanço da teoria, uma substancial lacuna nesse campo de estudos, ao que tachamos de

impasse.

Entendemos que o desenvolvimento da abordagem da racionalidade substantiva nas

organizações produtivas, face aos estudos empreendidos pelos autores brasileiros após a

morte de Guerreiro Ramos, exige imediatamente uma mudança de eixo. Urge um

redirecionamento do foco das pesquisas, sob pena dos estudos perderem-se em

intermináveis discussões, repetições, críticas sem propostas concretas, e elocubrações

exclusivamente conceituais que servem quase que somente aos acadêmicos,

enfraquecendo (pela discussão repetitiva sem evidências factuais) a potencialidade

“explosiva” de mudança contida na memorável proposta de Guerreiro Ramos. Essa

mudança de eixo implica direcionar o foco das pesquisas à práxis.

Os difusores da razão substantiva nas organizações produtivas precisam, ao nosso ver,

urgentemente demonstrar a exequibilidade dessa racionalidade na prática administrativa,

ou então assumir definitivamente que trata-se de uma utopia, ou até, em última instância,

aceitar que essa racionalidade é incompatível com a gestão, com a ação administrativa

nas organizações contemporâneas. Não podemos jamais esquecer que atuamos num dos

29

campos mais pragmáticos da atualidade. A teoria administrativa e seus modelos de

análise organizacional devem advir da prática, para que seja para sempre eliminada essa

duvidosa distinção (teoria x prática), ou pelo menos, diminuída a distância entre esses

dois termos.

Eis, então, o problema central que, por meio deste estudo, assumimos enfrentar: o

impasse representado pela incapacidade de demonstrar a concretização da racionalidade

substantiva na práticas administrativas desenvolvidas em organizações produtivas reais.

Natureza e objetivos deste estudo:

Para fazer face ao problema detonador (acima descrito) deste estudo, evidentemente,

teríamos que realizar um meticuloso trabalho de campo. Devido à própria natureza do

problema que desencadeou a pesquisa, o trabalho de campo dentro de organizações

produtivas em funcionamento se impunha como essencial.

O primeiro passo foi voltar ao estudo de Guerreiro Ramos, de modo a retirar dalí as

diretrizes que poderiam inicialmente orientar as decisões sobre o trabalho de campo a

realizar.

30

Assim, reexaminando o texto elaborado por Guerreiro Ramos, encontramos referências a

um tipo de organização que ele denominou isonomias, como assinalamos acima. O autor

descrevera as características principais das isonomias enquanto um tipo ideal, embora

afirmasse que nos Estados Unidos, país onde escreveu o seu livro, havia muitas

organizações que se aproximavam daquele tipo ideal. Eis a orientação que precisávamos

para começar a planejar o trabalho de campo: se nos propomos a demonstrar a razão

substantiva na prática, nada mais evidente do que buscar organizações que, supostamente,

apresentassem traços em comum com o tipo ideal isonomias, pois segundo Guerreiro

Ramos, nelas a razão substantiva é predominante. Sintetizando a caracterização fornecida

por Guerreiro Ramos, uma isonomia é:

a) Uma organização onde o objetivo essencial é permitir a autorealização dos seus

membros. As normas são estabelecidas por consenso;

b) Amplamente gratificante para os seus membros;

c) Uma organização onde as atividades são promovidas por vocações, a recompensa

básica dos participantes está na realização dos objetivos. A maximização da utilidade

econômica é secundária;

d) Marcada pela tomada de decisões, pelo estabelecimento de políticas e pela autoridade

distribuídos no grupo;

31

e) Eficaz na medida em que mantém relações primárias entre os seus membros, portanto

não podendo aumentar exageradamente de tamanho.

Guerreiro Ramos indicou que várias organizações reais aproximavam-se das isonomias,

citou, nos Estados Unidos, as empresas de propriedade dos trabalhadores, grupos de

cidadãos interessados em solucionar problemas da comunidade, associações urbanas,

associações de estudantes e de minorias, associações artísticas, dentre outras.

Examinando a literatura disponível, pudemos encontrar vários estudos que mesmo, em

sua grande maioria, não voltados diretamente para a teoria das organizações, davam conta

da existência de organizações assemelhadas às isonomias em diversas partes do mundo

(Rothschild-Whitt, 1982; Huber, 1985; Gagnon & Rioux, 1988; Dupuis, 1985; Bhérer &

Joyal, 1987; Boursier, 1985 a; Defournyi, 1992 a; Habermas, 1987; Joyal, 1987, 1995;

Marré, 1987; Nerfin, 1988; Santana, 1992; Sommaire, 1985; Temple, 1987).

Restava-nos, então, ir ao “campo”. Nos dirigimos a três pequenas empresas privadas,

atuantes no setor de serviços (educação infantil, produção artística, editora e clínicas

médico-psicológicas) na cidade de Salvador, capital do estado da Bahia. Uma vez que

tínhamos o interesse em analisar as práticas administrativas dessas empresas, as ações dos

seus participantes, estabelecemos que a principal metodologia do trabalho de campo seria

a observação participante. Durante 8 meses seguidos (abril a dezembro/1993) realizamos

o trabalho de campo nas três empresas, empreendendo um esforço etnográfico balizado

por variáveis tipicamente administrativo-organizacionais, isto é, as ações cotidianas dos

32

seus membros ao implementar processos de tomada de decisões, estabelecimento de

hierarquia e normas, divisão do trabalho, gestão de conflitos, comunicação, controle,

estabelecimento de objetivos e outras.

Este é um estudo de natureza eminentemente qualitativa. A sua perspectiva analítica

segue uma orientação que poderíamos, por analogia, caracterizar como autoreferencial.

Tal analogia tem inspiração nos estudos de Varela & Maturana (1980), Varela

(1979,1983). Nesses estudos, Varela e Maturana, cientistas reconhecidos mundialmente

como dos mais importantes no desenvolvimento do paradigma da complexidade (Dupuy,

1982), examinando as estruturas e o funcionamento do sistema nervoso central humano,

estabeleceram uma perspectiva analítica que implica examinar o fenômeno, que se quer

conhecer, em si mesmo. Isto quer dizer que opta-se por prioritariamente “penetrar” nas

dimensões internas do fenômeno ou sistema analisado, suas operações singulares, visando

desvelar a sua lógica interna e sua identidade, porém não desprezando o ambiente e, sim,

examinando como o sistema integra em suas operações as variáveis ambientais.

Tal perspectiva analítica autoreferencial ficou mundialmente celebrizada como a Teoria

da Autopoiesis, ou lógica dos sistemas auto-organizados. Os autores argumentam que este

é um bom caminho para analisar e compreender a lógica interna e a identidade dos

sistemas que têm um elevado grau de autonomia a ponto de produzir a sua auto-

organização, isto é, seus parâmetros organizativos não são definidos por modelos

externos e, sim pela autonomia de seus fatores internos.

33

Essa perspectiva analítica pode ser bastante útil, se empregada por meio de analogias ou

de metáforas, no campo da teoria organizacional. Morgan (1989) percebera essa

possibilidade ao declarar que,

“Dentre outras consequências interessantes sobre a nossa

compreensão das organizações, a autopoiesis nos ajuda a

ver que as explicações da evolução, da mudança e do

desenvolvimento das organizações devem dar um lugar

especial aos fatores que determinam a identidade de uma

organização, e por consequência as suas relações com o

mundo.” (Morgan, 1989, p. 278, trad. livre).

Desde alguns anos tentamos difundir no Brasil o emprego, utilizando analogias e

metáforas, dessa perspectiva na análise de organizações (Serva, 1992).

Os estudos sobre organizações assemelhadas às isonomias, têm sido, em geral,

focalizados sob pontos de vista não administrativos. Pertencem, quase sempre, aos

campos da sociologia, ciência política e economia. Um dos melhores estudos do gênero, o

de Rothschild-Whitt (1982), mundialmente reconhecido, chega a abordar com precisão

algumas aspectos de cunho administrativo. Porém, o objetivo da autora é elaborar um tipo

ideal de organização que ela denominou coletivista contrapondo-o ao tipo ideal de

organização burocrática, construído por Weber. Assim, Rothschild-Whitt baliza o seu

estudo, desde o ponto de partida, no tipo ideal de burocracia, suas variáveis são os

34

mesmos 8 elementos essenciais definidos por Weber (1963), ensejando assim um estudo

de natureza comparativa.

O presente trabalho não é um estudo comparativo. Aqui, não pretendemos comparar

sistematicamente as organizações da pesquisa com nenhuma construção de tipo ideal, ou

real, de natureza burocrática ou não. A intenção, repetimos, é de aprofundar ao máximo o

estudo das organizações pesquisadas, visando desvelar a sua lógica interna, a sua

racionalidade predominante e como ela se concretiza diretamente nos atos administrativos

dos indivíduos que a compõem. Daí a analogia com a perspectiva analítica

autoreferencial de Varela e Maturana. Uma forma, enfim, de tentar compreender a “auto-

organização” dos sistemas sociais estudados.

Tendo em vista o problema gerador da pesquisa, o impasse ao qual nos referimos na

seção anterior, este estudo tem como objetivos:

1) Identificar e demonstrar empiricamente como a racionalidade substantiva se concretiza

nas práticas administrativas numa organização produtiva, isto é, como ela se concretiza

através das ações cotidianas dos indivíduos referentes à tomada de decisões, divisão do

trabalho, controle, comunicação, estabelecimento de normas e outras práticas

administrativas numa organização produtiva;

35

2) Detectar e demonstrar empiricamente que tipo de racionalidade — entre os tipos

substantivo e instrumental — é predominante nas práticas administrativas desenvolvidas

nas organizações produtivas estudadas.

Se lográssemos alcançar esses dois objetivos, cremos que poderíamos, então, identificar

se uma organização, analisada nos moldes que proporemos aqui, é substantiva ou não: se

nela predomina a racionalidade substantiva, então a chamaremos organização

substantiva.

Sintetizando em poucas palavras o que foi dito até aqui e, partindo do geral para o

particular:

— sob a perspectiva geral da emancipação do homem no âmbito do trabalho;

— inserimo-nos no tema da racionalidade nas organizações produtivas, e;

— enfocando-o mediante a abordagem substantiva da organização (Guerreiro Ramos,

1981);

— através da realização de um estudo de natureza qualitativa em três organizações reais;

36

— objetivamos demonstrar empiricamente como a razão substantiva se concretiza na

práxis administrativa e, também qual a racionalidade predominante numa organização

produtiva.

Ao tentar alcançar os dois objetivos que norteiam este trabalho, em última instância,

buscamos contribuir, modestamente, para a continuidade no Brasil dos estudos voltados

para a análise da racionalidade substantiva nas organizações produtivas contemporâneas.

A seguir, forneceremos um breve roteiro do conteúdo geral deste texto.

Conteúdo do texto:

O Capítulo I parte de algumas considerações sobre a origem da abordagem do tema da

razão na filosofia para, em seguida, apresentar alguns estudos da racionalidade em

determinadas ciências humanas. É dado destaque para a concepção substantiva da

economia, inaugurada por Polanyi (1975). Apresenta também os dois suportes teóricos

principais deste trabalho, a teoria da ação comunicativa, de Habermas (1987) e, a

abordagem substantiva da organização, proposta por Guerreiro Ramos (1981). Ao final, é

dado um balanço da produção científica mais recente no Brasil voltada para a análise

organizacional com base na abordagem de Guerreiro Ramos e, é delimitada a

contribuição específica deste estudo.

37

O Capítulo II inicia-se por um relato de iniciativas emancipatórias no âmbito da

produção, decorridas ao longo da história. Avançando na história, promove um

levantamento de estudos que, de alguma forma, relatam experiências e/ou analisam

aspectos relativos à perspectiva geral da emancipação humana nas organizações

produtivas. É dada a definição de organizações substantivas e são comentadas as suas

decorrências, dentre elas destacando as questões abordadas neste estudo.

O Capítulo III fornece uma descrição dos procedimentos utilizados no trabalho de campo.

Enquanto estudo de natureza qualitativa, faz breves considerações sobre o estudo de caso

e a observação participante.

O Capítulo IV detalha a montagem do quadro de análise aqui proposto. Inicia-se pelo

detalhamento da complementaridade entre as teorias de Habermas e de Guerreiro Ramos,

que compõe a base conceitual do quadro de análise. Em seguida apresenta o quadro com

todos os seus elementos, para depois descrever os procedimentos seguidos para a sua

operacionalização. Ao final, são feitas algumas considerações de ordem epistemológica

que dizem respeito ao quadro de análise e, a este estudo como um todo.

O Capítulo V apresenta as três organizações da pesquisa e delineia os contornos

principais do contexto social e histórico da cidade de Salvador, onde as três organizações

estão situadas.

38

Os Capítulos VI, VII, e VIII são dedicados exclusivamente a análise das organizações

enfocadas pela pesquisa. Cada capítulo traduzirá a análise de cada uma delas.

O Capítulo IX pretende proporcionar uma visão de conjunto das três organizações,

sintetizando o que foi visto nos três capítulos anteriores.

39

Capítulo I - Racionalidade e Estudo de Organizações

Neste primeiro capítulo, pretendemos transmitir ao leitor uma clara visão sobre os

alicerces teóricos sobre os quais funda-se este estudo, apresentar detalhadamente a

problemática em que o esforço aqui desenvolvido se insere e delimitar a contribuição que,

modestamente, pretendemos fornecer à continuidade dos estudos sobre a racionalidade

substantiva nas organizações produtivas.

Para atingir as metas acima, necessitaremos galgar algumas etapas cujo roteiro será o

seguinte:

1) Primeiramente, fazer algumas considerações sobre as origens da abordagem da

racionalidade na filosofia e, logo em seguida, sintetizar de forma sistemática os estudos

da racionalidade no âmbito das ciências humanas das quais o tema de nosso trabalho se

aproxima. Assim, examinaremos alguns estudos nos campos da sociologia, da

administração, da economia e da antropologia, dando maior destaque a partes escolhidas

das obras de Weber, Polanyi, Hopkins e Godelier;

2) Em seguida, nos dedicaremos a apresentar um resumo de uma das teorias que formam

a base conceitual principal do presente trabalho: a teoria da ação comunicativa, elaborada

por Habermas. Na oportunidade, tentaremos também dar uma idéia das críticas

formuladas por alguns autores à essa teoria de ação;

40

3) A segunda teoria que, junto com a da ação comunicativa, compõe a base essencial de

nosso estudo, será então sumarizada: a teoria da razão substantiva, dirigida a análise

organizacional e formulada por Guerreiro Ramos. É esta teoria que constitui o pilar

central de nossas propostas;

4) Ambas abordagens que escolhemos para embasar o presente trabalho — ação

comunicativa e razão substantiva — fazem parte de um amplo movimento no interior das

ciências humanas, o qual resgata o valor do sujeito e da ação enquanto categorias

fundamentais da análise social. Por conseguinte, forneceremos um breve relato sobre esse

movimento, abordando a sua trajetória histórica e suas linhas gerais;

5) Sendo a teoria de Guerreiro Ramos o nosso pilar central, visitaremos os trabalhos

recentes realizados por pesquisadores brasileiros que adotaram a teoria da racionalidade

substantiva com o intuito de analisar organizações produtivas. Isto conferirá ao leitor a

possibilidade de obter informações sobre o “estado da arte” dessa abordagem no Brasil;

6) Decorridas todas as etapas acima descritas, então poderemos delimitar com precisão a

contribuição que, modestamente, através do presente trabalho pretendemos fornecer a

esse campo de estudos.

I. Notas sobre abordagens da racionalidade em filosofia e em algumas ciências humanas

41

Prováveis origens da abordagem da racionalidade em filosofia:

A racionalidade ou a razão, desde muito tempo, constitui-se numa das principais e

polêmicas questões do conhecimento. Por conseguinte, é, talvez, a temática mais ampla

da filosofia ocidental.

Isto posto, nunca nos aventuraríamos a empreender um levantamento exaustivo das

variadas correntes que abordaram essa temática no âmbito da filosofia. Esboçaremos

apenas algumas notas enfocando uma discussão sobre as prováveis origens da abordagem

da racionalidade na filosofia ocidental, visando dar uma idéia ao leitor da temporalidade

que marca o tratamento deste tema.

Segundo Feyerabend (1991), diversos estudiosos modernos, tais como Eliade, Guthrie,

Popper e Schlachermayr, atribuem a origem das filosofias racionais — doutrinas que se

opunham à tradição — aos escritos de Xenófanes, filósofo grego. Tal filósofo, ao elaborar

a crítica aos costumes da sua sociedade e, principalmente ao combater e ridicularizar a

idéia de que os deuses tradicionais possuíam características humanas, teria aberto,

segundo alguns cientistas modernos, o caminho para as filosofias racionais. Xenófanes

substitui os deuses gregos com paixões, falhas e desvios típicos dos humanos, por um

deus onipresente, onisciente e que a tudo movimenta, tendo como pano de fundo um

conceito de verdade que revela-se válido em quaisquer circunstâncias.

42

A perspicácia de sua crítica é, entretanto, duramente contestada por Paul Feyerabend.

Mesmo considerando Xenófanes como o “primeiro pensador europeu”, Feyerabend,

enaltecendo o relativismo, afirma que,

“o escárnio de Xenófanes é o primeiro, o mais breve e o

mais manifesto exemplo de semelhantes falsidades

[verdades universais]” (Feyerabend, 1991, p. 122).

A disputa infinda entre os partidários das correntes racionalista e relativista ressalta ainda

mais a importância do conceito de razão. Nos demonstra a sua origem longíqua e as

consequências observadas no desenvolvimento do conhecimento no Ocidente, a partir das

suas concepções aceitas e/ou recusadas por grupos de estudiosos em cada época.

Ainda remetendo-nos à Grécia Antiga, podemos constatar que Aristóteles concebia a

razão como um atributo da alma. A alma teria, então, duas partes distintas, porém

conexas: o princípio racional e, uma outra parte destituída de razão. Cinco “disposições”

comporiam o princípio racional, elas seriam modos de alcance da verdade:

1) A arte, disposição para produzir;

2) O conhecimento científico, juízo sobre coisas universais e necessárias;

43

3) A sabedoria prática, capacidade de deliberar bem, sendo passível de demonstração;

4) A sabedoria filosófica, mais elevada capacidade do homem;

5) A razão intuitiva, aquela que versa sobre as premissas limitadoras do uso da razão

(Aristóteles, 1987).

Desse modo, Aristóteles não opunha ações a valores, no tocante aos seus conceitos de

“artes” e de “ciências”. Para ele, a política, entendida como o conhecimento determinante

sobre todas as artes e todas as ciências, deveria indicar através de juízos (bom, mal, falso,

verdadeiro) aquilo que deveria ser produzido, bem como estudado, aquilo que cada

cidadão deveria aprender, enfim, julgando os fins de cada ação com vistas ao bem

humano (Aristóteles, 1987).

Segundo Habermas (1987), o pensamento grego não buscava nem uma teologia nem uma

cosmogonia ética como o faziam os grandes sistemas religiosos, e sim uma espécie de

ontologia. A filosofia, desde a Grécia antiga, viria tentando estabelecer explicações do

mundo através de princípios centrados na razão. Nesse sentido, a razão seria o tema

fundamental da filosofia.

Habermas crê num padrão emergente nas relações entre a filosofia e a ciência, ocasionado

pelo “fracasso dos intentos de fundamentação última da Filosofia Primeira” (Habermas,

1987). Tal argumentação é desenvolvida na direção de que as teorias sobre as ciências

44

experimentais modernas não poderiam mais ser respaldadas por pressupostos

fundamentalistas, sejam do tipo ontológico ou do tipo transcendental. Consequentemente,

tais teorias poderiam apenas contar com o respaldo de estudos que se apoiassem no

destaque de aspectos internos da história da ciência em si, explicando sistematicamente

essa história efetiva com a ajuda de análises do tipo empírico no contexto da evolução

social. Assim, a explicação formal das condições de racionalidade (tema da filosofia da

ciência) estaria se entrelaçando estreitamente com a análise empírica da materialização e

evolução histórico-sociais das chamadas “estruturas de racionalidade”. O que ressalta a

importância atual da relação entre os estudos da racionalidade e a sociologia.

A abordagem da racionalidade em algumas ciências humanas:

Do mesmo modo que na subseção anterior, temos que reconhecer a extrema amplitude

que caracteriza a abordagem do tema da racionalidade, desta vez aqui concernente ao

conjunto das ciências humanas. Em vista dessa realidade, é que decidimos elaborar

algumas notas sobre essa área de produção do conhecimento, distribuídas pelos campos

científicos aos quais recorremos para interpretar o fenômeno enfocado em nosso estudo, a

saber, sociologia, antropologia, administração e economia.

45

Esclarecemos que, primeiramente tentaremos fornecer um breve panorama em cada

campo face à temática da razão, através de alguns comentários gerais. Em seguida, nos

concentraremos nos estudos de determinados autores (Weber, Polanyi e seu grupo,

Godelier) que consideramos essenciais para o desenvolvimento do presente trabalho.

Nas seções subsequentes empreenderemos um aprofundamento nos estudos (e suas

decorrências) fundamentais para a análise aqui desenvolvida, são eles: a teoria da ação

comunicativa, elaborada por Habermas e, a abordagem da razão substantiva para o estudo

de organizações, elaborada por Guerreiro Ramos.

Notas sobre a abordagem da racionalidade na sociologia e na antropologia:

No vasto campo das ciências sociais, a sociologia parece ser a disciplina mais conectada

intrinsecamente com a questão da racionalidade. Malgrado as diversas tentativas de torná-

la mais uma ciência especializada em integração social, ela tem-se mantido ancorada aos

problemas da sociedade global. Desde os seus primórdios, a sua démarche em analisar as

transformações sociais ocorridas nas antigas sociedades européias, fruto do surgimento

dos Estados nacionais modernos e de um sistema econômico autoregulado, conduz a

sociologia ao estudo dos problemas da racionalização crescente nas sociedades

46

ocidentais. As conexões da sociologia e também da antropologia com o tema da

racionalidade, são assim vistas por Habermas:

“Tanto a sociologia como a antropologia cultural se vêm

confrontadas com o espectro completo dos fenômenos da

ação social e não com tipos de ação relativamente bem

delimitados que possam ser interpretados como variantes

da ação ‘racional com respeito a fins’, relativas aos

poblemas de maximização do lucro ou da aquisição e

utilização do poder político. Essas duas disciplinas se

ocupam da prática cotidiana nos contextos do mundo da

vida e têm, portanto, que levar em consideração todas as

formas de orientação simbólica da ação” (Habermas,

1987, v. I, p.21, trad. livre).

Nesse estudo, assumiremos, com o auxílio da sociologia e da antropologia, dentre outras

disciplinas, a tarefa de analisar outra forma simbólica de orientação da ação no interior de

organizações produtivas contemporâneas. Não nos limitaremos ao exame das condições

geradoras, da adoção e consequências da ação racional com respeito a fins; tentaremos

também examinar, como será visto mais adiante, o tipo de ação racional ao qual

denominaremos substantiva.

47

Uma vez que as organizações produtivas são também objeto de estudo da administração e

da economia, julgamos importante estender esse breve mapeamento do tratamento do

tema da racionalidade a essas disciplinas.

Notas sobre a abordagem da racionalidade na administração:

No campo da administração, segundo Guerreiro Ramos, “...a teoria corrente dá um

cunho normativo geral ao desenho implícito na racionalidade funcional” (Guerreiro

Ramos, 1981, p. 23).

As correntes teóricas tradicionais, isto é, a escola clássica, a escola de relações humanas,

o estruturalismo, a teoria sistêmica, a orientação contingencial, a teoria da decisão e suas

similares, são centradas quase que unicamente na racionalidade funcional ou

instrumental. Privilegiam, indubitavelmente, os comportamentos relativos à excelência no

manejo dos meios, entendida como eficiência. Quanto aos fins, não são objeto de

julgamento ético, apenas cabe atingí-los com a máxima eficiência possível, configurando

assim a eficácia. A combinação ótima entre eficiência e eficácia é a manifestação

concreta do mais alto grau de racionalidade organizacional, tornando evidente o seu pano

de fundo: a racionalidade instrumental, ou como a denomina Habermas, a “racionalidade

com respeito a fins”.

48

Tomaremos como exemplo, algumas passagens da obra de Herbert Simon, reconhecido

mundialmente como um dos autores mais importantes na teoria das organizações. Seus

trabalhos têm uma larga influência em inúmeras correntes da teoria administrativa, tais

como a teoria da decisão e toda a vertente comportamental, principalmente no tocante à

questão da racionalidade. Em seu renomado livro Comportamento Organizacional,

Simon aborda com grande destaque o tema da racionalidade, ao tratar da teoria da

decisão:

“Tendo em vista que por boa administração se entende

aquele comportamento que é objetivamente adequado aos

seus fins [...] uma teoria das decisões administrativas,

terá forçosamente, que se preocupar de certa maneira

com os aspectos racionais da escolha” (Simon, 1965, p.

73).

Em seguida, Simon, explicita a natureza da escolha racional:

“O processo decisório racional envolve a comparação

permanente dos meios alternativos em função dos fins

respectivos que procurarão alcançar [...] isto significa

que a eficiência, no sentido de obtenção de resultados

máximos com meios limitados, deve constituir um critério

49

guiador das decisões administrativas” (Simon, 1965, p.

77).

O autor aponta alguns fatores limitativos ao alcance de alto grau de racionalidade, tal

como o conhecimento completo e antecipado das consequências e o conhecimento de

todas as possíveis ações. O curioso é que tal sequência de raciocínio o conduz a

conclusão de que,

“O comportamento de um único indivíduo, em condições

de isolamento, jamais pode apresentar um grau elevado

de racionalidade” (Simon, 1965, p.93).

Disso, decorre então que,

“Os sistemas de comportamento a que chamamos

organização, são imprescindíveis, portanto, à consecução

da racionalidade humana num sentido mais amplo. O

indivíduo racional é, e deve ser, uma pessoa organizada e

institucionalizada” (Simon, 1965, pp.120-121).

Além de estreitar a concepção da racionalidade, mediante a sua redução à racionalidade

instrumental e consequentemente à ação racional com respeito a fins, Simon também

retira do nível individual a possibilidade de atingimento de uma racionalidade elevada,

50

transpondo-a forçosamente para o âmbito da organização. Tal opção é oposta àquelas

defendidas por Habermas e também por Guerreiro Ramos, como veremos mais adiante

em detalhes. Por enquanto, gostaríamos de remarcar que a construção lógica elaborada

por Simon representa bem a noção de racionalidade que embasa as correntes teóricas

tradicionais da administração.

Ao lado da vertente comportamental, o estruturalismo pode também ser considerado

como uma das vertentes principais da teoria administrativa. Aqui, destacamos alguns

trechos da abordagem da racionalidade empreendida por Etzioni, um dos mais célebres

autores estruturalistas.

Ao constatar que a sociedade moderna é uma “sociedade de organizações”, Etzioni

aponta a importância das organizações, destacando que,

“Ao contrário das sociedades anteriores, a sociedade

moderna atribui um elevado valor moral ao racionalismo,

à eficiência e à competência. A civilização moderna

depende, em grande parte, das organizações, como as

formas mais racionais e eficientes que se conhecem de

agrupamento social. A organização cria um poderoso

instrumento social, através da coordenação de grande

número de ações humanas” (Etzioni, 1964, p. 7).

51

A noção de racionalidade com a qual trabalha Etzioni é, da mesma forma que Simon,

restrita à razão instrumental. Isto fica evidente ao examinarmos a continuidade do seu

raciocínio e argumentações formuladas. Por exemplo, ao referir-se ao aumento do

racionalismo, o autor declara que,

“Esse aumento do alcance do racionalismo das

organizações não se produziu sem um preço social e

humano. Muitas pessoas que trabalham para

organizações estão profundamente frustradas e alienadas

em seu trabalho. A organização, em vez de ser uma

obediente servidora da sociedade, passa, às vezes, a

dominá-la” (Etzioni, 1964, p. 8).

Ao desenvolver a sua análise, Etzioni envereda por uma discussão que pode ser

considerada como atípica, dentro da teoria administrativa: a abordagem do racionalismo x

felicidade. O autor finda por reconhecer um dilema:

“Até certo ponto, o racionalismo da organização e a

felicidade humana são concomitantes. Todavia, em tôda

organização existe um ponto em que a felicidade e a

eficiência deixam de se apoiar mutuamente. Nem todo

trabalho pode ser bem pago e satisfatório, e nem todos os

regulamentos podem tornar-se aceitáveis. Enfrentamos,

então, um dilema real” (Etzioni, 1964, p. 9).

52

Etzioni aponta o dilema ao qual conduz a aplicação ampla da razão instrumental nas

organizações modernas. O autor não considera um outro tipo de racionalidade possível

nas organizações.

Nos últimos anos, alguns autores vêm realizando estudos no campo da teoria

organizacional, abordando direta ou indiretamente o tema da racionalidade sem

necessariamente comungar com a linha de pensamento dominante nas correntes teóricas

tradicionais (marcadas pelo paradigma funcionalista e pela predominância da razão

instrumental).

Entre esses autores, podemos destacar Stewart Clegg, um dos mais ativos analistas

organizacionais da atualidade. Clegg (1990), ao abordar o fenômeno organizacional numa

era pós-moderna, examina colateralmente a questão da racionalidade implícita na

diversidade de modelos organizacionais de sucesso, face a expansão do capitalismo tardio

em regiões como o leste asiático. Clegg baseia o seu exame da racionalidade nas

formulações de Weber. Daí, extrai o conceito de “modos de racionalidade”, pelo qual

analisa como os fatores culturais e institucionais, próprios de cada região, intermediam ao

nível das organizações, as pressões características do empreendimento capitalista

moderno (condições e estratégias referentes a lógica do mercado, exigências padronizadas

de eficiência, etc.) sobre o contingente humano em sua dimensão sócio-cultural.

No caso da região do leste asiático, por exemplo, o autor conclui que,

53

“Em nenhum desses países a estruturação de

organizações tem seguido claramente os padrões de

racionalização prognosticados pelo mercado, pela

eficiência ou por contingências. Em todos esses países, tal

como a Coréia do Sul, as pressões foram largamente

institucionalizadas e transmitidas através do Estado. Em

outros elas foram amplamente transmitidas através da

armação institucional das cultura e práticas locais. O

quadro é constantemente complicado pela

disponibilidade, ou não, dos recursos locais pelos quais

modos de racionalidade devem ser construídos, mantidos

ou transformados.” (Clegg, 1990, p. 174).

Apesar dos esforços de alguns autores como Clegg, a extensa maioria dos estudos que

abordam a racionalidade no campo da administração ainda continuam a privilegiar

unidirecionalmente a razão instrumental, na grande maioria dos casos tomando-a como

único significado do termo racionalidade (Serva, 1990).

Notas sobre a abordagem da racionalidade na economia:

54

Na economia, principalmente na área da economia política, observava-se inicialmente

uma pertinência relacional aos problemas da sociedade global, devido ao destaque do

questionamento da legitimidade de um sistema de ação — o sistema econômico —

integrado socialmente através de funções e não de normas. No entanto, a ciência

econômica ocupa-se hoje da economia enquanto um subsistema da sociedade,

desprezando o questionamento de sua legitimidade, tornando-se dessa forma uma ciência

especializada (Habermas, 1987). Assim, vê-se envolvida no mesmo empreendimento,

analogamente, que aquele da administração, ou seja, operando uma sensível redução da

questão da racionalidade a considerações de equilíbrio econômico, escolha racional,

eficiência do sistema, crescimento econômico, etc.

Portanto, para fundamentarmos a orientação a qual optamos seguir nesse estudo, ou seja,

de examinar prioritariamente um outro tipo de racionalidade presente em organizações

produtivas que não aquele da racionalidade instrumental, abordaremos sinteticamente

alguns estudos da racionalidade que são reconhecidos como marcos, tanto dentro do

espectro da sociologia como no da antropologia, seguindo o pensamento de Habermas de

que tais disciplinas “se ocupam da prática cotidiana nos contextos do mundo da vida e

têm, portanto, que levar em consideração todas as formas de orientação simbólica da

ação”, conforme vimos acima. Esperamos assim, descortinar o horizonte teórico-

metodológico no qual nos pautaremos no decorrer deste trabalho.

A partir da sociologia, abordaremos, em linhas gerais, a tese da “racionalização” das

sociedades modernas, elaborada por Max Weber. Da antropologia, tentaremos expor as

55

linhas principais do do projeto interdisciplinar que consolidou a concepção substantiva da

economia e os estudos de Godelier no campo da antropologia econômica.

A tese da “racionalização” da sociedade ocidental em Weber:

Como “racionalização”, Weber interpretou as consequências do avanço técnico-científico

nas estruturas do quadro institucional das sociedades empreendedoras da chamada

modernização. Interessou-se Weber pela demonstração e explicação de como, no

Ocidente, os subsistemas da economia capitalista e do Estado atingiram um grau tão

elevado de conexão a ponto de criar condições propícias para uma modernização

autoregulada.

Afirma Weber que,

“Decisivamente, o capitalismo surgiu através da empresa

permanente e racional, da contabilidade racional, da

técnica racional e do Direito Racional. A tudo isto se deve

ainda adicionar a ideologia racional, a racionalização da

vida, a ética racional da economia.” (Weber, 1980, p.

169).

56

Alguns aspectos são fundamentais na sua explicitação da racionalização enquanto

processo:

a) A substituição progressiva das imagens míticas do mundo e da diversidade religiosa

pela tradição judaica-cristã e também pela linha de pensamento da tradição especulativa

grega, ocasionando o que se costuma chamar de racionalização das imagens do mundo ou

mesmo desencantamento do mundo;

b) O comportamento padronizado, na vida dos empresários, trabalhadores e funcionários,

sujeitos a uma determinada ética de profissão e a procedimentos metódicos estabelecidos

pelas organizações burocráticas;

c) O meio de organização social representado no direito formal, sistematizado enquanto

direito natural racional.

A penetração crescente dos preceitos jurídicos modernos nas relações entre os agentes

econômicos e na administração burocrática estatal, sustentada pela ciência jurídica

desenvolvida em universidades, ao lado da adoção da ética protestante como orientadora

dos códigos profissionais e do trabalho em si mesmo, todos esses fatores, acabam por

concretizar determinadas estruturas prático-morais em instituições. As instituições assim

estabelecidas, são capazes de engolfar todos os subsistemas econômicos, administrativos

57

e boa parte dos demais subsistemas sociais, mediante orientações de ação racional com

respeito a fins.

Habermas (1987) distingue os estudos de Weber sobre a racionalização em duas grandes

jornadas: a primeira, que se ocupa da ética econômica das religiões universais

(racionalização das imagens do mundo), e a segunda, que aborda o desenvolvimento da

economia capitalista e do Estado moderno, incluída aqui a análise da ética protestante

(transformação da racionalização cultural em racionalização social).

Embora reconhecendo a importância da análise weberiana, autores como Habermas e

Guerreiro Ramos teceram críticas a essa abordagem. Tais críticas desencadearam novas

formulações, as quais, ao nosso ver renovam, sob outro prisma, a importância da tese de

Weber. A causa de abordarmos aqui as linhas gerais da tese da racionalização proposta

por Weber é justamente a intenção de empreender o exame das formulações elaboradas a

partir das suas críticas e não propriamente a proposta de Weber em si. Queremos dizer

que a contribuição essencial para a démarche que adotaremos no decorrer desse estudo se

fundamenta nas proposições desenvolvidas por Habermas e por Guerreiro Ramos, as

quais tiveram ponto de partida nas debilidades que esses autores puderam identificar na

tese proposta por Weber para explicar o fenômeno da racionalização do Ocidente.

Críticas de Habermas e Guerreiro Ramos à tese de Weber:

58

Em primeiro lugar, Habermas (1987) aponta a pretensão universalista da proposição

weberiana. Em seu entender, Weber propôs uma explicação da modernização das antigas

sociedades européias enquanto um processo histórico-universal de racionalização. A

análise da história das grandes religiões pretende ser um exame do “processo universal de

desencantamento”, em que tal exame para Weber seria suficiente para explicar a

produção das condições internas para a aparição do racionalismo ocidental. A

interpretação habermasiana é também compartilhada por vários outros estudiosos, como

por exemplo, Loewith:

“Weber demonstrou a ocorrência da racionalização em

sentido universal, bem como fundamental, mundialmente

histórico e antropológico em seu prefácio à Sociologia da

religião. [...] Para Weber, racionalização significa o

caráter fundamental do estilo de vida ocidental […] O

tema básico de sua pesquisa ‘científica’ acaba sendo a

tendência à secularização. Weber, contudo, sumariza o

especial caráter problemático de nossa realidade

contemporânea sob o título de ‘racionalidade’ (Loewith,

1978, p. 151).

Em segundo lugar, Habermas identifica que na análise da racionalização do social, Weber

se deixa levar unicamente pelo conceito de racionalidade enquanto razão com respeito a

fins. Assim, Weber teria concentrado toda a essência de sua proposição reduzindo o que

59

chamou de racionalização do social ao aumento da racionalidade instrumental nos

contextos da ação. O autor sustenta que ainda que Weber tenha vislumbrado um conceito

mais amplo de racionalidade, o qual aparece apenas como pano de fundo em sua análise,

esse conceito mais amplo deveria ser identificado empiricamente no mesmo plano que os

subsistemas de ação racional com respeito a fins.

Habermas lamenta tal lacuna e afirma que ela se dá em função de duas causas imediatas:

primeiramente, os conceitos de ação utilizados por Weber não são bastante complexos

para apreender nas ações sociais todos os aspectos que pode assumir a racionalização do

social. A segunda causa apontada é a falha em mesclar categorias de ação com categorias

sistêmicas. Em relação a esta última causa, Habermas afirma categoricamente que,

“A racionalização das orientações de ação e das

estruturas do mundo da vida não é o mesmo que o

aumento de complexidade dos sistemas de ação.”

(Habermas, 1980, v. I, p.199, trad. livre).

É nítida a importância da tese de Weber nas formulações de Habermas sobre a

racionalidade. Partindo da crítica, Habermas inicia a sua própria construção teórica:

“Para dar uma nova formulação teórica àquilo que Max

Weber chamou de ‘racionalização’, gostaria de não me

ater ao ponto de partida subjetivo que Parsons

60

compartilha com Weber, e de propor um outro quadro

categorial. Partirei da distinção entre trabalho e

interação. Entendo por ‘trabalho’, ou agir racional com

respeito a fins, seja o agir instrumental, seja a escolha

racional, seja a combinação dos dois. [...] Por outro lado,

entendo por agir comunicativo uma interação

mediatizada simbolicamente. Ela se rege por normas que

valem obrigatoriamente, que definem as expectativas de

comportamento recíprocas e que precisam ser

compreendidas e reconhecidas por, pelo menos, dois

sujeitos agentes. [...] Dispondo desses dois tipos de ação,

podemos classificar os sistemas sociais conforme neles

predomine o agir racional com respeito a fins ou a

interação” (Habermas, 1980, pp.320-321).

A distinção entre agir racional com respeito a fins e agir comunicativo, elaborada por

Habermas, é de importância capital para o nosso estudo. A referida distinção vai cimentar

a base para as definições de ações racionais que apresentaremos no Capítulo IV, quando

discutiremos o quadro de análise proposto nesse trabalho.

A opção de Habermas em trabalhar com outra modalidade de racionalidade, alternativa à

razão instrumental, é evidente na reconceituação dos tipos de ação. Desse modo ele inicia

a elaboração da sua teoria da ação comunicativa, a qual nos ateremos posteriormente.

61

Por seu lado, Guerreiro Ramos pressupõe uma certa tensão em Weber, com referência a

abordagem dos tipos de racionalidade. Conclui que:

“Na verdade, ele foi incapaz de resolver essa tensão

empreendendo uma análise social do ponto de vista da

racionalidade substantiva. De fato, a Wertrationalität é

apenas, por assim dizer, uma nota de rodapé em sua obra,

não desempenha papel sistemático em seus estudos. Se o

fizesse, a pesquisa de Weber teria tomado um rumo

completamente diferente” (Guerreiro Ramos, 1981, pp. 5-

6).

Ao pautar a sua análise da vida humana associada no conceito de racionalidade

substantiva, a pesquisa de Guerreiro Ramos realmente tomou um rumo muito diferente

daquele seguido por Weber. Sua elaboração é essencial para o desenvolvimento do nosso

estudo, e a ela nos dedicaremos após examinar alguns de seus fundamentos, contidos nos

trabalhos dos autores da concepção substantiva da economia e da antropologia

econômica.

Polanyi e a concepção substantiva da economia:

62

Nascido em Budapeste no ano de 1886, Karl Polanyi fêz seus estudos em direito e em

economia política. Em 1944, ele publicou nos Estados Unidos o seu famoso livro

intitulado The great transformation, onde Polanyi difunde a idéia de que a economia ao

se organizar totalmente sobre a base do mercado se separou radicalmente das outras

instituições sociais forçando o resto da sociedade a funcionar segundo as suas leis.

Em 1947, Polanyi foi nomeado professor de história econômica geral na Columbia

University e diretor de um projeto interdisciplinar que atraiu antropólogos, economistas,

historiadores e sociólogos. Polanyi dirigiu os trabalhos do grupo para três direções

básicas: a crítica à teoria econômica, a construção de uma tipologia dos sistemas

econômicos e a origem e história das instituições econômicas. Uma primeira publicação

desses trabalhos se deu em 1957, sob o título Trade market in the early empires,

traduzido em língua francesa em 1975 sob o título Les systèmes économiques dans

l’histoire et dans la théorie.

Em texto publicado naquela coletânea, Polanyi, Arensberg e Pearson (1975) afirmam que

após o advento dos estudos de Comte, Quételet, Marx, Weber, Malinowski, Durkheim e

Freud, ampliou-se a percepção de que o processo social é um tecido de relações entre o

homem (enquanto entidade biológica) e a estrutura única dos símbolos e das técnicas que

permitem a continuidade de sua existência. No entanto, lamentam tais autores, tal

proposição não alcançou a popularidade da imagem tradicional do individualismo

atomístico. Esta imagem, apresenta o homem como um átomo utilitário, isto é, um ser

que possui uma propensão inata a trocar uma coisa pela outra, dentro de um ambiente

63

natural. Afirmam que em nenhuma outra ciência como na economia, tal visão atomística

e utilitária é tão aparente.

A mecânica desse racionalismo econômico é então explicitada por Polanyi, Arensberg e

Pearson (1975): o “ator”, seja o indivíduo, a família ou até a sociedade global é concebido

em relação com um ambiente que lhe concede lentamente os elementos para a sua

subsistência. A essência da racionalidade que embasa a ação econômica se manifesta na

forma pela qual é utilizado o tempo e a energia concernente à realização de um máximo

de objetivos através da relação homem-natureza. Assim, a economia torna-se a dimensão

prioritária dessa ação.

Contra tal linha de pensamento, rebelam-se:

“É evidentemente admitido que em realidade a ação

econômica pode ser influenciada de várias formas por

outros fatores não econômicos, quer sejam de ordem

política, militar, artística ou religiosa. Mas a idéia de

racionalidade utilitária se perpetua como sendo o modelo

da economia. [...] É extremamente necessário um ponto de

partida fundamentalmente diferente para a análise da

economia humana concebida como processo social.”

(Polanyi, Arensberg & Pearson, 1975, pp. 235-236, trad.

livre, grifo nosso).

64

Polanyi (1975) aprofunda a questão ao abrir o espaço para o debate teórico ao empreender

a análise da economia enquanto processo institucionalizado. Acreditamos ter sido Polanyi

o primeiro autor a empregar o termo substantivo na abordagem de fenômenos

econômicos. Ele propõe duas significações para o termo “econômico”: a formal e a

substantiva, numa clara analogia aos tipos de racionalidade definidos por Weber. O

sentido formal, segundo Polanyi, deriva do caráter lógico da relação entre meios e fins, tal

sentido remeteria a uma bem determinada escolha entre o emprego alternativo de

diferentes meios devido à sua escassez. Por outro lado,

“O sentido substantivo tem a sua origem na dependência

do homem com relação à natureza e aos seus

semelhantes para assegurar sua sobrevivência. Ele

remete às transações entre o homem e seu ambiente

natural e social” (Polanyi, 1975, p. 239, grifo nosso, trad.

livre).

Podemos perceber claramente que o sentido formal proposto por Polanyi é aquele

embasado na racionalidade instrumental, uma vez que representa a escolha ótima entre

meios e fins, desta feita centrado no argumento da escassez. No sentido substantivo,

ressaltamos através de grifos o aspecto social da atividade econômica; outro aspecto

importante é a não utilização do argumento da escassez. Sobre esse elemento e seus

correlatos, Polanyi afirma que,

65

“O sentido substantivo não subentende nem escolha nem

meios insuficientes; a subsistência do homem pode ou não

impor uma escolha, e se escolha há, ela não é

obrigatoriamente determinada pela ‘escassez’ dos meios;

de fato, algumas das condições físicas e sociais mais

importantes para viver, tais como o ar e a água ou o amor

de uma mãe à sua criança, não são, em geral, tão

limitados.” (Polanyi, 1975, p. 239, trad. livre).

A contundência de suas afirmações se expressa na sua intenção em separar radicalmente

os dois sentidos:

“A lógica imperativa contida num dos conceitos difere

daquela contida no outro conceito, como a força do

silogismo difere da força da gravitação. [...] As duas

significações não poderiam estar mais afastadas uma da

outra; do ponto de vista semântico, elas são

diametralmente opostas.” (Polanyi, 1975, p. 239, trad.

livre).

O arremate vem imediato e firme, onde o autor toma claramente posição por um dos

sentidos:

66

“Em nossa opinião, somente o sentido susbstantivo do

‘econômico’ é capaz de produzir os conceitos que exigem

as ciências sociais para analisar todas as economias

empíricas do passado e do presente. O quadro geral de

referência que tentaremos construir nos obriga então a

tratar o problema em termos substantivos.” (Polanyi,

1975, pp. 239-240, trad. livre).

Partindo de tais premissas, Polanyi elabora um arcabouço conceitual e metodológico que

demonstra como a atividade econômica nasce, desenvolve-se e retorna ao contexto social,

dependendo deste. Tal movimento ele denominava institucionalização. A consideração da

economia enquanto processo institucionalizado, conduz Polanyi a elaborar um de seus

mais famosos conceitos: a atividade econômica é embedded (engastada) no social. Pela

importância que esse conceito assume no nosso trabalho (bem como no estudo de

Guerreiro Ramos), convidamos o leitor a acompanhar o encadeamento da argumentação

de Polanyi na construção do referido conceito:

“Estudando o papel da economia na sociedade humana, o

antropólogo, o sociólogo ou o historiador se encontram

cada um confrontados a uma grande variedade de

instituições outras que não só os mercados e nas quais

estavam engastados os meios de subsistência do homem.

67

[…] A economia é então um processo institucionalizado.

[…] A institucionalização do processo econômico confere

a este unidade e estabilidade; ela cria uma estrutura

tendo uma função determinada na sociedade; ela

modifica o lugar do processo na sociedade, dando assim

uma significação a sua história; ela concentra o interesse

sobre os valores, as motivações e a política. […] A

economia humana é então engastada e englobada nas

instituições econômicas e não econômicas. Importa dar

conta do aspecto não econômico. (Polanyi, 1975, pp. 240,

244, trad. livre, grifo nosso).

O conceito de economia embedded é, em profundidade, uma crítica à centralização do

mercado como instituição fundamental da atividade econômica. Polanyi salienta que a

centralização do mercado serve apenas para analisar as sociedades capitalistas modernas.

A sua crítica a assunção do mercado como pedra angular da análise econômica abriu

espaços para diversas abordagens teóricas. Daí, Guerreiro Ramos (1981) busca inspiração

para elaborar as críticas tanto à tais sociedades como às ciências sociais e econômicas que

as legitimam, utilizando muitas vezes em seu estudo a expressão “sociedade centrada no

mercado”, como veremos com detalhes mais adiante.

Polanyi (1975) estabelece que a consideração da economia enquanto processo

institucionalizado é o cerne da concepção substantiva, a qual, para ser desenvolvida

68

necessita de um conjunto de categorias particulares. Assim, utilizando as categorias

reprocidade e redistribuição, além da categoria troca (única empregada como padrão pela

teoria econômica tradicional), o autor analisa diversas formas de comércio, de utilização

da moeda e os elementos do mercado em várias sociedades edificadas em períodos

históricos passados, tecendo uma obra reconhecida como uma das maiores contribuições

ao estudo da atividade econômica.

Em seguida, apresentaremos uma síntese da contribuição de Hopkins à visão substantiva

dos fenômenos econômicos.

A contribuição sociológica de Hopkins à concepção substantiva da economia:

Terence Hopkins, então professor de sociologia na Columbia University e também

componente do grupo dirigido por Polanyi, consubstancia a pesquisa, revendo a

interpretação do econômico que é fornecida pelas ciências sociais. Constata (em 1957)

que no domínio das ciências sociais a opção pelo sentido formal da economia é a regra:

“Que eu saiba, nenhum sociólogo apresentou uma

interpretação sistemática da economia que não fosse em

termos formais.” (Hopkins, 1975, p. 262, trad. livre).

69

Hopkins ressalta que na obra de Weber, por exemplo, as concepções de economia não são

inseridas para elaborar uma teoria geral e sim para ajudar a resolver um problema

histórico particular, isto é, o das condições sociais necessárias ao desenvolvimento e à

manutenção do capitalismo moderno. Tais concepções e análises foram incorporadas

gradualmente à sociologia americana, gerando consequências indesejáveis, como a não

distinção clara entre as condições da ação considerada racional daquela concernente aos

diversos tipos de estruturas que intervêm em diversas economias. Hopkins também

visualiza uma outra consequência ainda mais grave:

“Esta confusão da história e do funcionamento de um tipo

de economia com o problema da comparação das

economias conduz ao preconceito, que nós consideramos

gratuito, segundo o qual a economia de mercado é o

protótipo estrutural e funcional da economia em geral.”

(Hopkins, 1975, p. 271, trad. livre).

Hopkins reconhece que após a primeira publicação do livro de Polanyi, The great

transformation, faz-se um esforço para desenvolver o que é designado concepção

substantiva da economia. Daí autor aponta as razões da institucionalização (retomando o

pensamento de Polanyi) do processo econômico:

“Pois, mesmo que as atividades econômicas se

harmonizem com as condições ambientais, elas não são

70

essencialmente o produto dessas condições, mas sim o

produto das maneiras organizadas de viver em grupo,

quer dizer dos modelos de interação; e a coerência que

manifestam claramente essas atividades decorre

principalmente de sua pertinência ao sistema de modelos

de interação.

O processo econômico é então um ‘processo

institucionalizado’ no sentido evidente que uma parte

essencial desse processo — a parte composta pelas

atividades humanas que contribuem para o

aprovisionamento em meios materiais — constitui

igualmente uma parte do sistema social. [...] Assim os

objetivos perseguidos, seja com relação ao processo

econômico, ou a outro, e a maneira pela qual os objetos

materiais são definidos (isto é, as significações que lhes

são atribuídas) podem ser consideradas como modeladas

pelas definições dos papéis sociais” (Hopkins, 1975, p.

282, trad. livre).

Segundo Hopkins, a institucionalização do econômico se dá mediante quatro níveis em

que os modelos de ação econômica são integrados àqueles de ação não econômica:

71

1) O primeiro nível seria aquele em que as ações econômicas são empreendidas através

de papéis constituídos majoritariamente por ações cujos efeitos sobre o processo

econômico são praticamente insignificantes. Como exemplo de integração nesse nível, o

autor cita a distribuição de comida, por um padre, aos pobres;

2) No segundo nível, as ações econômicas podem constituir os principais elementos dos

papéis, mas tais papéis econômicos podem ser as unidades de estruturas que se compõem

essencialmente de papéis não econômicos. Seria o caso de um gestor financeiro de uma

universidade, o qual exerce um papel econômico num contexto organizacional

originariamente não econômico;

3) O terceiro nível é observável quando os modelos de ação econômica e não econômica

são integrados operando em contextos estruturais não econômicos. O exemplo dado é o

de uma comuna israelita, o kibutz;

4) Finalmente, no quarto nível a estrutura das relações entre as organizações econômicas

pode ser eminentemente econômica, como no interior do sistema de mercado de uma

sociedade complexa moderna.

Conclui Hopkins que ao utilizar-se o modelo de mercado como teoria explicativa do

funcionamento de todas as economias, é o mesmo que supor que as atividades

econômicas em todas as sociedades decorrem sempre com a predominância do quarto

nível acima, desprezando-se todos os três níveis anteriores.

72

Para o autor, a predominância do quarto nível revela um tipo de sociedade em que o

econômico é organizado como um subsistema estruturalmente distinto da sociedade, o

que não se verifica para uma infinidade de sociedades diferentes das capitalistas

modernas. Assim, para analisar aquelas sociedades, “o modelo de mercado é não só

inútil, ele é realmente enganador” (Hopkins, 1975, p. 285, trad. livre).

A influência das teses dos autores da concepção substantiva da economia é facilmente

verificável nas proposições de Guerreiro Ramos. Podemos ver, por exemplo, a estreita

relação dessa concepção com a “abordagem substantiva da organização”, proposta por

Guerreiro Ramos. Por exemplo, enquanto Hopkins descreve os quatro níveis de

institucionalização do econômico no social, dentre os quais o modelo centrado no

mercado corresponde a apenas um nível, Guerreiro Ramos estabelece as diretrizes gerais

para a reformulação da teoria das organizações em direção à abordagem substantiva. Tais

diretrizes contêm a noção de que o homem tem diferentes tipos de necessidades cuja

satisfação requer diversos tipos de “cenários sociais”; sendo o sistema de mercado apenas

um tipo particular de cenário e, portanto, atendendo a limitadas necessidades humanas.

Se compararmos os “níveis de institucionalização”, propostos por Hopkins, aos “cenários

sociais”, advogados por Guerreiro Ramos, constatamos aí mais uma das concepções

teóricas que serviram de base ao autor brasileiro para o desenvolvimento da abordagem

substantiva da organização.

73

De igual modo, ao elaborar o “paradigma paraeconômico” (um modelo multidimensional

de sistemas sociais), Guerreiro Ramos também demonstra uma clara filiação intelectual

aos autores da concepção substantiva da economia. Os “enclaves” que compõem o

referido paradigma, são espaços de ação (muitas vezes econômica) que só atendem aos

requisitos das interações do tipo de mercado — indicados por Hopkins no quarto nível de

institucionalização — na sua área específica, isto é, na área onde as relações e objetivos

predominantemente utilitaristas são a regra. Isto quer dizer que o enclave dominado pela

lógica do mercado é apenas um dentre outros. Nos demais enclaves, mesmo que se

desenvolvam ações de cunho econômico, as interações sociais são marcadas pela

institucionalização das atividades econômicas segundo os outros três níveis descritos por

Hopkins.

Godelier e a análise da racionalidade econômica:

Maurice Godelier, um dos expoentes da antropologia econômica, de certa forma também

herdou o conhecimento produzido por Polanyi e seu grupo.

Godelier (1975) elabora uma crítica de algumas opções adotadas por Polanyi e, tenta ir

mais além no exame das atividades econômicas próprias de sociedades anteriores ao

advento do capitalismo. Para Godelier (1975), a intenção de Polanyi em ultrapassar a

teoria econômica é correta, pois como Polanyi, ele não aceita que a análise econômica

aplique os mesmos instrumentos para o exame de economias anteriores ou diferentes

74

daquela típica do capitalismo moderno, onde o mercado é o centro e o ponto de partida

analítico da teoria econômica tradicional.

No entanto, a forma pela qual a teoria econômica tradicional seria ultrapassada é que

divide as visões de Polanyi e de Godelier, ensejando, de fato, uma riqueza de opções

epistemológicas digna do processo de real avanço científico.

Godelier critica a opção confessa de Polanyi pelo empirismo, enquanto ele defende que só

a opção estruturalista/marxista poderia dar conta das tarefas de ultrapassar a teoria

tradicional e atingir um estágio onde se possa efetuar análises comparativas contundentes

entre economias distantes entre si na história. Para Godelier,

“Aqui aparecem com toda a clareza a natureza e os

limites do empreendimento de Polanyi: ele não busca de

maneira nenhuma explicar as razões da presença no seio

de uma sociedade determinada de uma tal ou qual

estrutura social […] Ele não busca também descobrir por

quais razões o processo de produção dos meios materiais

se encontra ‘alojado’ no interior das relações de

parentesco. […] A abordagem empírica resulta de fato em

conceitos abstratos […] Somente uma abordagem

estruturalista ou uma abordagem marxista se preocupam

em explicitamente buscar, sob a diversidade das

75

semelhanças ou das diferenças, uma ordem subjacente, a

lógica invisível das propriedades objetivas das relações

sociais e de suas leis de transformação.” (Godelier, 1975,

pp. 18, 23, 24, trad. livre).

A crítica se mescla com elogios, revelando, no fundo, a importância das idéias defendidas

por Polanyi para o desenvolvimento posterior dos estudos de Godelier:

“O grande mérito — e o limite — do esforço de Polanyi é

de ter explicitado e codificado claramente em um ‘corpus’

coerente conceitos que eram largamente utilizados por

historiadores e antropólogos.” (Godelier, 1975, p. 24,

trad. livre).

O aprofundamento da querela entre empirismo e estruturalismo/marxismo na análise dos

processos econômicos em sociedades pré-capitalistas não faz parte de nosso objetivo

neste estudo. Apresentamos alguns dos posicionamentos críticos de Godelier face à obra

de Polanyi com o intuito apenas de demonstrar a importância dos trabalhos de Polanyi e

seu grupo para o desenvolvimento posterior da antropologia econômica e, a medida em

que Godelier é influenciado por tais trabalhos, ainda que tenha optado por caminhos

diversos. A crítica é um dos instrumentos mais válidos para o avanço da ciência.

Ademais, resta ao estudioso da antropologia econômica escolher quais fundamentos e

76

conceitos utilizar, pois Godelier e outros, ao examinar a obra de Polanyi fizeram

aumentar o leque de opções interpretativas do fenômeno econômico.

Centraremo-nos agora na contribuição específica de Godelier ao estudo da racionalidade

econômica.

O autor dedica uma parte importante de seus trabalhos ao tema da racionalidade

econômica. Primeiramente admite que o econômico se apresenta como uma realidade

social complexa, pois é ao mesmo tempo um campo particular de atividade voltado para a

produção, a distribuição e o consumo de bens, e devido aos próprios mecanismos de

implementação dessas subatividades, o econômico torna-se um aspecto particular de

todas as atividades não econômicas.

A atividade econômica, então, seria uma atividade específica que delimitaria um campo

particular de relações sociais e, também, uma atividade engajada no funcionamento das

outras estruturas sociais. Consequentemente, o econômico não possuiria no seu próprio

nível a totalidade de seu sentido e também da sua finalidade, apenas uma parte delas

(Godelier, 1966, v.1).

Partindo desses princípios, Godelier desmistifica a racionalidade econômica:

“A racionalidade econômica só se mostra então através

da racionalidade epistemológica, da ciência econômica

77

[...] O conhecimento da racionalidade econômica

depende inteiramente da verdade das hipóteses

elaboradas pelos economistas (e outros especialistas das

ciências sociais).” (Godelier, 1966, v. 1, p. 29, trad. livre).

Tal posição choca-se frontalmente com a do atomismo utilitário, tão criticada também por

Polanyi, segundo a qual o homem teria uma propensão inata para efetuar trocas dentro de

um ambiente natural. Ora, se a racionalidade econômica é essencialmente um constructo

epistemológico, ela nunca poderia ser inata, como um atributo da psique do indivíduo.

Nesse ponto, a posição de Godelier encontra-se também com aquela defendida por

Guerreiro Ramos (1981), pois o sociólogo brasileiro, como veremos adiante, afirmava

que a racionalidade funcional ou instrumental (a mesma que a chamada de “econômica”

por Godelier) é apenas uma definição, uma elaboração lógica.

Godelier constata que a noção de racionalidade econômica é a mais contestada de todas

as categorias da economia política. Adianta que se a antropologia econômica pretende ser

uma ampliação da economia política, ela deve conduzir a uma renovação da noção de

racionalidade econômica. Essa tarefa passa a ser uma das maiores contribuições do autor

ao avanço das ciências sociais.

Para Godelier, desde o seu início a economia política engajou-se na crítica, na explicação

ou na justificação da economia industrial e mercantil. Tais críticas e justificações se

queriam absolutas, pois acreditava-se que as regras da economia nova se encontravam em

78

plena consonância com a Razão Natural transcendente a toda contingência histórica. Daí

ele demonstra que,

“Assim os mecanismos da economia mercantil se

encontravam ao mesmo tempo descritos e ‘valorizados’.

Os fatos tornavam-se ‘normas’. O sistema econômico

novo era posto e ‘vivido’ como um ‘modelo’ diante do

qual as regras do antigo regime e de outras sociedades

eram traduzidas, julgadas e reconhecidas culpadas de

‘irracionalidade’” (Godelier, 1966, p. 192, trad. livre).

Analisando diversas sociedades, antigas e modernas, Godelier propõe a ampliação do

conceito de racionalidade. Chama a atenção para a correspondência entre as estruturas

econômicas, políticas, de parentesco, religiosas e culturais. Tal gênero de correspondência

faz relativizar a concepção da racionalidade:

“Uma conduta econômica que nos parece ‘irracional’

encontra uma racionalidade própria, reinserida no

funcionamento do conjunto da sociedade. [...] O racional

de hoje pode ser o irracional de amanhã, o racional de

uma sociedade pode ser o irracional de outra. [...] Em

definitivo, a noção de racionalidade remete a análise do

fundamento das estruturas da vida social, de sua razão de

79

ser e de sua evolução.” (Godelier, 1966, p. 206, trad.

livre).

Novamente gostaríamos de chamar a atenção para a influência dos estudos de Polanyi nos

trabalhos de Godelier. A idéia de que o exame da racionalidade remete às estruturas da

vida social e de que o econômico não possuiria no seu próprio nível a totalidade de seu

sentido e finalidade, não só faz lembrar Polanyi e sua noção de embedded, como também

as formulações de Guerreiro Ramos no tocante aos “cenários” e “enclaves” sociais,

mesmo ressalvando que o estudo de Godelier que aqui tratamos é anterior ao de Guerreiro

Ramos.

Em Godelier e em Guerreiro Ramos, o conceito de racionalidade é abordado diretamente,

ou seja, a racionalidade é um tema explícito em suas obras. Mesmo que esse tema não

seja o alvo prioritário da abordagem de Polanyi e seu grupo (como vimos, tal tema é

mencionado colateralmente por Polanyi), é aos trabalhos dos fundadores da concepção

substantiva da economia que podemos creditar uma parte significativa do ponto de

partida dos desenvolvimentos posteriores efetuados por grandes cientistas sociais da

estirpe de Godelier e Guerreiro Ramos.

Para o nosso estudo, os trabalhos de Polanyi e seu grupo, desembocando no tratamento

desmitificador da racionalidade econômica/instrumental — única considerada pela

maioria dos autores da teoria administrativa — têm um valor inestimável, pois

fundamentam toda a démarche, os conceitos e a análise que nos propusemos a

80

operacionalizar. A própria expressão “organização substantiva”, que empregamos aqui,

advém de toda a corrente “substantivista” (se o leitor nos permite, fazemos uso aqui de

um neologismo), compreendendo Polanyi, seu grupo e Guerreiro Ramos. Ao empregar tal

expressão, queremos declarar nitidamente a nossa filiação a tal corrente, além de também

fazer emergir o conceito de um tipo de racionalidade que não se confunde com a razão

instrumental, como detalharemos mais tarde.

Após empreendermos esta síntese de alguns desenvolvimentos do tema da racionalidade,

tanto na filosofia quanto em determinados campos das ciências humanas, gostaríamos de

apresentar duas outras abordagens do mesmo tema, as quais utilizaremos como

referências básicas do nosso estudo. Tratam-se, respectivamente, da Teoria da Ação

Comunicativa, elaborada por Jürgen Habermas e a da Razão Substantiva, desenvolvida

por Guerreiro Ramos.

II. A teoria da ação comunicativa

O nome de Habermas está definitivamente ligado ao que se convencionou chamar

“Escola de Frankfurt”. Segundo Freitag (1986), por esta expressão tenta-se designar a

institucionalização dos estudos de um grupo de autores marxistas, não ortodoxos, que nos

anos 20 permaneceram à margem de um marxismo-leninismo “clássico”, seja em sua

versão teórico-ideológica, seja em sua linha militante e partidária.

81

A Escola de Frankfurt começa pela fundação do Instituto de Pesquisas Sociais (Institut

fuer Sozialforschung), em 1923, pelo intelectual Felix Weil, ficando vinculado a

Universidade de Frankfurt. O objetivo inicial do instituto era criar um grupo de trabalho

para a documentação e teorização dos movimentos operários na Europa (Freitag, 1986).

Em 1930, Max Horkheimer, filósofo, assume a direção do instituto. Daí em diante, a

organização toma um direcionamento diferente, com propostas mais amplas e ambiciosas,

tornando-se um centro de pesquisa voltado para a análise crítica dos problemas do

capitalismo moderno. Horkheimer atraiu para o instituto os intelectuais que, de fato,

celebrizaram aquela entidade, dentre eles podemos citar Adorno, Marcuse, Benjamim,

Fromm, que se filiaram diretamente à entidade ou colaboravam frequentemente através

da realização de estudos.

Ali foi produzido um conjunto de obras que marcou decisivamente a filosofia e as

ciências sociais neste século. Balizados sob três temas principais — a dialética da razão

iluminista e a crítica à ciência; a dupla face da cultura e a discussão da indústria cultural;

e a questão do Estado e suas formas de legitimação na moderna sociedade de consumo —

a “teoria crítica”, como também é conhecida a produção central do grupo, tornou-se uma

passagem obrigatória aos intelectuais contemporâneos que se dedicam a estudar diversos

temas, tais como a racionalidade na sociedade moderna e as relações entre a ciência e o

desenvolvimento social. A crítica da razão instrumental e a preocupação com a

emancipação humana são dois aspectos também marcantes nas obras dos frankfurtianos.

82

Jürgens Habermas nasceu em 1929, em Gummersbach. A partir de 1956 até os anos 60,

colaborou com o instituto durante a fase marcada pela direção de Adorno. Habermas é

considerado o herdeiro direto da Escola de Frankfurt. Desde os anos 70 Habermas já

esboçava uma crítica à própria “teoria crítica” elaborada por Horkheimer e Adorno;

porém, é nos anos 80 que esta crítica se sistematiza e faz avançar o conhecimento

produzido na primeira fase do antigo instituto. Habermas se volta abertamente contra a

Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer e, proclama o fim da filosofia da

consciência, bem como a necessidade de uma mudança radical de paradigma na

abordagem da racionalidade. Essa fase coincide com o lançamento dos dois volumes da

Teoria da ação comunicativa.

Para Freitag,

“Através de Habermas, a teoria crítica transformou-se

num fato mundial. Graças a ele, essa teoria entrou numa

nova fase. Longe de deixar-se bater pelo pessimismo dos

‘velhos’, Habermas propõe uma reflexão radical coletiva,

democrática, e uma renegociação política na qual todos

deveriam participar.” (Freitag, 1986, p. 151).

Habermas elaborou um dos estudos mais profundos sobre o tema da racionalidade,

tocando os campos da filosofia e das ciências sociais. Seu trabalho, ancorado à teoria da

83

ação, vem desde a sua publicação influenciando dezenas de autores em todo o mundo,

suscitando críticas, adições e comentários que o enriquecem enquanto proposta de

explicação das possibilidades de ação racional na sociedade contemporânea, com vistas à

emancipação do homem face aos constrangimentos impostos por essa sociedade.

Não temos, evidentemente, a pretensão de discutir aqui todas as bases, bem como o

“edifício” teórico das proposições habermasianas contidas na teoria da ação comunicativa

(o que, também, fugiria ao espectro do nosso estudo). Gostaríamos de destacar, neste

momento, alguns aspectos da sua teoria, os quais poderão nos auxiliar a cumprir os

objetivos aos quais nos propomos atingir mediante a elaboração deste trabalho. Tais

aspectos se referem principalmente à sua tipologia de ação.

Um dos pontos de partida fundamentais da proposição de Habermas, como dissemos

acima, é a crítica aos escritos de Weber. Portanto, antes de apresentar a tipologia de ação

elaborada por Habermas, faremos uma breve referência à classificação dos tipos de ação

social definida por Max Weber.

Weber (1978) inicia sua proposta conceituando a ação social, em geral, como aquela que

é orientada pelas ações de outros, aí também levando em conta a tolerância e a omissão. É

importante ter-se em mente que, o que Weber assume como “outros”, tanto podem ser

indivíduos conhecidos, tanto pode ser uma pluralidade de indivíduos não determinados e

totalmente desconhecidos. A sua classificação estabelece quatro tipos de ação social:

84

1) Ação racional com relação a fins - determinada por expectativas no comportamento

tanto de objetos do mundo exterior como de outros homens, e utilizando essas

expectativas como condições ou meios para o alcance de fins próprios racionalmente

avaliados e perseguidos;

2) Ação racional com relação a valores - aquela ação que é determinada pela crença

consciente no valor, seja ele percebido como estético, ético, religioso, etc., — próprio e

absoluto de uma conduta determinada, considerada em si mesma e independente de êxito;

3) Ação afetiva - especialmente emotiva, determinada por afetos e estados sentimentais

atuais;

4) Ação tradicional - determinada por um costume arraigado (Weber, 1978).

Um aspecto de particular importância para Weber é a questão do sentido da ação social.

No caso da ação tradicional, ela está na fronteira e muitas vezes até além do que se

poderia chamar de uma ação “com sentido”, devido à sua natureza: uma reação à

estímulos habituais, em conformidade a atitudes ja arraigadas. A ação afetiva também

estaria na fronteira ou além do sentido, pois ela pode ser uma reação sem limites a um

estímulo incomum.

Já a ação racional com relação a valores, distingue-se das anteriores pelo fato de ser uma

elaboração consciente dos princípios últimos da ação e por orientar-se por eles de modo

85

conscientemente planejado. No entanto, Weber chama a atenção que elas têm em comum

a característica de que o sentido não reside no resultado e sim na própria ação em sua

peculiaridade. Consequentemente,

“Uma ação racional com relação a valores é sempre (no

sentido de nossa terminologia) uma ação segundo

‘mandatos’ ou de acordo com ‘exigências’ que o agente

acredita serem dirigidas para ele (e diante das quais o

agente se acredita obrigado). Falaremos de uma

racionalidade com relação a valores, somente na medida

em que a ação humana se oriente por essas exigências —

o que apenas ocorre numa fração, o mais das vezes

modesta, dos casos.” (Weber, 1978, p. 141).

Para Weber, aquele que age racionalmente com relação a fins, orienta a sua ação

conforme o fim, meios e consequências implicadas nisso e, avalia a adequação entre esses

meios e esse fim. Daí, podemos deduzir que o autor atribui “racionalidade” somente às

ações “com sentido”.

A primeira crítica de Habermas à classificação de Weber destina-se justamente à questão

do sentido. Habermas acusa-o de partir de um conceito de ação “estruturado

monologicamente”: o conceito de sentido é fundamental na teoria de ação de Weber, mas

o que ele define como sentido não é explicado como modelo de significados linguísticos,

86

nem tampouco o sentido é relacionado com o meio linguístico da compreensão ou

entendimento possíveis; logo, para Habermas, Weber não tem como pano de fundo uma

teoria do significado, e sim,

“Uma teoria intencionalista da consciência. […] ele

relaciona o sentido com as opiniões (Meinungen) e

intenções de um sujeito de ação, a quem em princípio se

concebe como um sujeito ilhado.” (Habermas, 1987, v. I,

p. 359, trad. livre).

Habermas conclui esse primeiro contraponto afirmando categoricamente que, como

Weber partiu de um conceito de ação estruturado monologicamente, ele não pode

desenvolver o conceito de “ação social” através da via da explicação do sentido.

O segundo contraponto indentifica que o interesse que guia a tipologia de Weber é o de

distinguir graus de racionalização da ação, onde o único aspecto susceptível de

racionalização é a relação meio-fim de uma ação teleológica percebida numa ótica

monológica. Assim, o único elemento que cabe julgar nas ações seria a eficácia da

intervenção causal da ação numa situação dada e a “verdade” dos enunciados empíricos

nos quais se baseiam o plano, ou seja, a opinião que o sujeito tem a respeito da

organização racional dos meios (Habermas, 1987).

87

Habermas declara-se plenamente convencido de que Weber partiu de um modelo

teleológico de ação e não um modelo de interação social, logo, na sua explicação do

processo de racionalização social, como vimos acima, ele teria considerado apenas como

aspectos susceptíveis de racionalização aqueles que são consequentes do modelo de

atividade teleológica: os aspectos relacionados com a racionalidade meio-fim. Habermas

clama por uma via distinta para a explicação da racionalização da sociedade moderna em

toda a sua extensão:

“Tratarei de dar uma base categorial adequada àqueles

aspectos da ação susceptíveis de racionalização que

passam subrepticiamente na teoria oficial da ação de

Weber. […] Partirei de uma classificação das ações que

se inspira na versão não oficial da teoria weberiana da

ação …” (Habermas, 1987, v. I, p.366, trad. livre).

A tipologia habermasiana se apóia sob dois eixos: a orientação para o êxito e a orientação

para o entendimento. Por êxito, Habermas entende a implantação no mundo de um estado

de coisas desejado, que em uma dada situação pode ser gerado causadamente através de

uma ação ou omissão calculadas. Os efeitos da ação compreendem:

a) Os resultados da ação, na medida em que se tenha realizado o fim desejado;

88

b) As consequências da ação, que o sujeito as tenha previsto ou que tenha tido que contar

com elas;

c) As consequências laterais, as quais o sujeito não as tenha previsto.

Por entendimento, Habermas define um processo de obtenção de acordo entre sujeitos

linguística e interativamente competentes. Assim, os processos de entendimento têm

como meta um acordo que satisfaça as condições de aceitação, racionalmente motivada,

do conteúdo de uma emissão.

Três tipos compõem a classificação de Habermas:

“A uma ação orientada para o êxito chamamos

instrumental quando a consideramos sob o aspecto de

observância a regras de ação técnicas e avaliamos o grau

de eficácia da intervenção que essa ação representa em

um contexto de estados e sucessos; a uma ação orientada

para o êxito chamamos estratégica quando a

consideramos sob o aspecto da observância a regras de

escolha racional e avaliamos seu grau de influência sobre

as decisões de um oponente racional. As ações

instrumentais podem estar associadas a interações

sociais. As ações estratégicas representam, em si mesmas,

89

ações sociais. Falo, em contraposição, de ações

comunicativas quando os planos de ação dos atores

implicados não se coordenam através de um cálculo

egocêntrico de resultados e sim mediante atos de

entendimento. Na ação comunicativa os participantes não

se orientam primariamente para o próprio êxito; antes

perseguem seus fins individuais sob a condição de que

seus respectivos planos de ação possam harmonizar-se

entre si sobre a base de uma definição compartilhada da

situação.” (Habermas, 1987, v. I, p. 367, trad. livre).

Habermas esclarece que um acordo alcançado por meio de ações comunicativas tem que

ter uma base racional, ele não poderia jamais ser imposto por nenhuma das partes, quer

seja instrumentalmente por uma intervenção direta na situação da ação, quer seja

estrategicamente por meio de um influxo calculado sobre as decisões de um oponente. “O

acordo se baseia em convicções comuns.” (Habermas, 1987, v. I, p.369, trad. livre).

Este aspecto é muito importante ao compararmos as tipologias de Weber e de Habermas.

Weber considera como racionais somente as ações com respeito a fins e as ações com

respeito a valores, porém ressalvando que estas últimas só poderiam ser racionais se o

agente se percebe obrigado a agir por mandatos ou exigências, e por isso mesmo o autor

as identifica como extremamente raras. Habermas nos parece ampliar substancialmente

tanto o espectro como a possibilidade da racionalidade de uma ação; ele parte de um

90

ponto de vista interativo, agregando variáveis inteiramente novas com relação à

proposição de Weber e sem negar o aspecto teleológico da ação comunicativa.

A argumentação de Habermas leva-o a afirmar que o seu modelo comunicativo não faz

coincidir ação com comunicação; nele, a linguagem é um meio de comunicação que serve

ao entendimento, enquanto que os agentes, ao entender-se entre si para coordenar suas

ações, perseguem cada um determinadas metas. Daí que,

“Neste sentido a estrutura teleológica é fundamental para

todos os conceitos de ação. Não obstante, os conceitos de

ação social se distinguem pela forma em que estabelecem

a coordenação das ações teleológicas dos diversos

participantes da interação. […] Em todos os casos se

pressupõe a estrutura teleológica da ação, já que se supõe

nos atores a capacidade de propor fins e de atuar

teleologicamente e, portanto, também um interesse na

execução de seus planos de ação. […] No caso da ação

comunicativa os rendimentos interpretativos de que se

constróem os processos cooperativos de interpretação

representam o mecanismo de coordenação da ação; a

ação comunicativa não se esgota no ato de entendimento

realizado em termos de interpretação.” (Habermas, 1987,

v. I, p.146, trad. livre).

91

Julgamos de grande importância, aqui, dar o devido destaque e insistir sobre este ponto.

A ação comunicativa não deve ser confundida ou limitada a atos de palavra, o seu

conceito não deve ser confundido ou interpretado como um mero exercício discursivo. O

nível do discurso é inserido no plano da interação, onde a palavra é essencial ao

entendimento, mas a interação mediatizada pelo entendimento visa coordenar ações

posteriores que se dirigem a objetivos.

Tal aspecto é crucial para a compreensão da opção que fizemos em fundamentar parte de

nossa análise das organizações pesquisadas na teoria de Habermas. Os membros de

organizações produtivas, sejam substantivas ou não, também visam o alcance de

objetivos, individuais e coletivos. Interessa-nos entender como tais membros estabelecem

seus processos de coordenação de ações (processos organizacionais), como veremos mais

adiante.

Neste contexto, acreditamos que a formulação de Habermas é de grande utilidade para a

compreensão das interações fundamentais que ocorrem no interior das organizações

substantivas. Voltaremos a discutir outros pontos dessa formulação, na oportunidade em

que tentaremos estabelecer alguns paralelos com o estudo de Guerreiro Ramos sobre a

razão substantiva.

Face a alguns estudos sintetizados na seção anterior, é por demais evidente que o esforço

de Habermas não se situa especificamente no mesmo âmbito da concepção substantiva da

92

economia, nem no da antropologia econômica. Contudo, ao aprofundar-se na esfera da

interação simbólica, elaborando uma tipologia da ação racional, Habermas acaba também

por brindar-nos com uma série de constructos que nos permite ir mais além na

compreensão dos processos de institucionalização das atividades econômicas, no sentido

empregado por Polanyi e seu grupo.

Esta possibilidade de ampliação da compreensão aponta justamente para o âmbito da

interação. Cremos que podemos refletir no sentido de que as ações orientadas ao êxito,

quer sejam instrumentais ou estratégicas, predominam num contexto onde as atividades

econômicas desvencilharam-se das instituições sociais, autonomizando-se como um

sistema à parte na sociedade. É o domínio da razão instrumental/utilitária, espelhado na

teoria econômica que Polanyi, seu grupo e também Godelier incumbem-se de criticar e

desmistificar.

Por outro lado, num contexto onde o econômico está essencialmente embedded no social,

as ações relacionadas também com a atividade econômica seriam predominantemente

ações orientadas ao entendimento, uma vez que estariam livres do imperativo utilitarista

que caracteriza a busca do êxito e se sobrepõe ao contexto ético-normativo do grupo (e

sua moldura institucional).

Apesar de trabalhar numa dimensão e num campo do conhecimento diferentes das

concepções teóricas descritas anteriormente, pois centra-se na interação simbólica, na

ação social e nos processos comunicativos, Habermas aporta-nos uma significativa

93

contribuição ao tratamento do tema da inserção/desprendimento do econômico no social,

ao demonstrar os tipos de ações (e sua operacionalização) racionais desenvolvidas nos

diversos processos sociais, abrindo-nos uma nova via para a explicação do fenômeno que

Polanyi e seu grupo denominavam institucionalização da economia.

Enquanto Godelier, como vimos acima, apontava e praticamente limitava a explicação à

via do estruturalismo e do marxismo, defendendo a busca do invariante estrutural

(“ordem subjacente”, “lógica invisível”), observamos que Habermas, em outro

campo/perspectiva de estudos, trilha um caminho diverso para a explicação dos

fenômenos sociais: ele investe no ator social, descortinando para nós uma outra via, a via

do sujeito e da ação, pela qual nos propomos caminhar ao longo deste trabalho.

É do emprego da teoria da ação comunicativa, disposta numa perspectiva de

complementaridade com o pilar central do nosso trabalho — a teoria da razão substantiva

dirigida a análise organizacional, elaborada por Guerreiro Ramos — que advém o quadro

de análise e a lógica de interpretação que adotamos na abordagem do fenômeno

examinado neste estudo.

Voltaremos a comentar vários outros aspectos da teoria da ação comunicativa no Capítulo

IV, onde detalharemos os termos da complementaridade acima referida.

A vasta obra de Habermas vem suscitando um grande interesse em todo o mundo.

Diversos autores, em vários países, têm publicado comentários, análises e contraposições

94

com respeito aos seus escritos, fato que atesta a fecundidade de suas idéias, a

profundidade de sua obra e que também confirma a condição de Habermas como um dos

pensadores mais importantes deste século. Assim sendo, gostaríamos de apresentar um

extrato de alguns comentários críticos a abordagem da ação comunicativa, formulados

por renomados autores da ciência social. Um levantamento dos comentários à obra

integral de Habermas, por certo fugiria em muito aos objetivos do nosso estudo.

Algumas críticas à teoria da ação comunicativa:

A crítica de Giddens:

Giddens (1977, 1982) empreende críticas a uma série de aspectos da obra de Habermas,

alimentando o debate e enriquecendo o conhecimento sobre os temas abordados pelo

autor alemão. Entre as críticas elaboradas por Giddens, sintetizaremos aquelas que se

dirigem à teoria de ação habermasiana, pelo fato de que essa teoria se constitui num dos

suportes fundamentais do nosso estudo.

Partindo da distinção entre trabalho e interação, pela qual Habermas relaciona trabalho a

ação instrumental e interação a ação comunicativa, Giddens afirma que,

95

“Isto é, no melhor, muito ilusório querer usar ‘trabalho’

como equivalente de um elemento analítico da ação e ao

mesmo tempo continuar a usá-lo no sentido de ‘trabalho

social’; e utilizar ‘interação’ similarmente como um

elemento analítico e um tipo substantivo, oposto ao

‘monológico’ ou ação solitária. Eu penso que esta

confusão vem de uma infeliz mistura de idéias extraídas

de fontes entre as quais não há realmente muita em coisa

em comum. Estas fontes são, de um lado, a distinção

weberiana entre ação racional com respeito a fins e ação

racional com relação a valores, e, de outro lado, a

diferenciação feita por Marx entre forças e relações de

produção. A distinção de Weber pressupõe um ‘tipo ideal’

analítico, mas a de Marx, não. Porém, ele [Habermas]

continua a assimilar ‘forças de produção’, ‘trabalho’ e

‘ação racional com relação a fins’; e a assimilar

‘relações de produção’, ‘interação’ e ‘ação

comunicativa’.” (Giddens, 1982, p. 156, trad. livre).

Complementando, Giddens (1982) acusa Habermas de equiparar ação a interação e

adverte que “teoria de ação” não é o mesmo que “teoria da interação”. Para ele, essas

“ambiguidades ou confusões” acarretam sérias consequências conceituais para o trabalho

de Habermas como um todo.

96

Uma outra crítica, consequente dessa primeira, refere-se ao tratamento da questão do

poder. Giddens (1977) declara que Habermas substitui o poder por uma noção de

dominação equivalente a uma comunicação distorcida, assim,

“Poder entra na interação somente filtrado através da

inclinação ideológica das condições de comunicação, não

como fundamental nas relações entre atores pelos quais a

interação é constituída como uma atividade progressiva.”

(Giddens, 1977, p. 152, trad. livre).

Por outro lado, de igual importância são as seguintes declarações de Giddens ao final de

suas críticas:

“Concluindo estas seções de discussão, eu me concentrei

em comentários críticos. É muito necessário dizer que isto

não é uma refutação da importância dos escritos de

Habermas. Ao contrário, Habermas deve ser classificado

como o mais preeminente dos filósofos sociais

contemporâneos, que tem feito mais do que ninguém uma

ponte entre a separação das filosofias continental e

anglo-saxã.” (Giddens, 1972, p.163, trad. livre).

97

Por sua vez, Habermas (1982) inicia a réplica às críticas de Giddens reconhecendo que

nos seus trabalhos mais antigos não teria se expressado o suficientemente claro,

originando a má compreensão de Giddens sobre alguns conceitos. Defende-se da suposta

“confusão”, identificada por Giddens, da seguinte maneira:

“Eu estou longe de equiparar ação com interação. A

distinção entre orientação para o êxito e orientação para

o entendimento é decisiva para a minha tipologia de ação.

[…] Eu não identifico nem ação, nem ação social, nem

ação comunicativa com atos de palavra. Padrões de ação

social só podem ser desenvolvidos onde algum mecanismo

assegure que os planos dos participantes da ação possam

ser coordenados de forma suficientemente livre de

conflito, e que as proposições de um possam ser aceitas

por outro.” (Habermas, 1982, pp. 264-265, trad. livre).

Assim Habermas remete a ação, seja ela de que tipo fôr, para o plano teleológico.

Podemos deduzir da sua defesa, que o caráter teleológico desse tipo de comunicação — a

coordenação de planos de ação futura dos indivíduos — distingue-a dos simples atos de

palavra.

98

Consequentemente, Habermas esclarece que o conceito de ação comunicativa não é o

mesmo que está embutido no modelo normativo de ação, rejeitando a proposição de

Giddens:

“Contrariamente à visão de Giddens, o conceito de ação

comunicativa vai decididamente mais além que o modelo

normativo de ação. De acordo com o conceito, a

interação não é regulada através de um consenso

normativo que é fixado a priori, mas através dos

conhecimentos falíveis dos próprios participantes.”

(Habermas, 1982, p. 265, trad. livre).

Quanto aos pares de assimilação forças produtivas/ação instrumental, e relações de

produção/ação comunicativa, criticados por Giddens, Habermas (1982) esclarece que

ambos pares conceituais referem-se a diferentes níveis. Mesmo reconhecendo uma

“conexão analiticamente explicável” em cada par de conceitos, Habermas declara que

forças produtivas e relações de produção relacionam-se a um nível conceitual que se

refere a sociedade como um todo, portanto, diferente daquele que congrega conceitos

referentes a simples interações.

Habermas (1982) também contra-argumenta sobre a crítica de que a sua teoria de ação

minimizaria a consideração do poder como um aspecto fundamental nas relações sociais.

Demonstra que o conceito de violência (Gewalt) ocupa uma posição central na sua

99

tipologia de ação, pois quando chega-se ao ponto onde as interações não podem ser mais

coordenadas através do entendimento, então a única alternativa é a violência, seja esta

refinada ou latente: “a distinção tipológica entre ação comunicativa e ação estratégica

quer dizer exatamente isso.” (Habermas, 1982, p. 269, trad. livre).

Habermas confessa a sua concordância com a visão de Hannah Arendt sobre a

legitimidade de um poder originado de convicções compartilhadas, obtidas mediante a

prática comunicativa cotidiana no mundo da vida, gerando assim a aceitação do poder

sem coerção. Afirma também guardar a utilidade do conceito weberiano de dominação

(Herrschaft), e assim, através da integração dos conceitos de violência, poder e

dominação, Habermas afirma estar tentando chegar a “uma abordagem adequada para a

análise crítica das estruturas de classes.” (Habermas, 1982, p. 269, trad. livre).

A crítica de Thompson:

Thompson (1982) também empreende uam crítica de muitos aspectos da obra de

Habermas. Seus comentários centram-se mais na formalização habermasiana de uma

“pragmática universal”, examinando detalhes ao nível da filosofia relacionada a

linguagem, evocando formulações de Austin, Chomsky, Wittgenstein, dentre outros. A

abordagem a tais comentários ultrapassa em muito o nosso âmbito de discussão neste

trabalho. Para o que toca mais diretamente a parte da elaboração de Habermas que serve

como fundamento neste estudo, ressaltaremos dois pontos:

100

a) Thompson põe em questão o processo de estabelecimento da “verdade” de uma

declaração numa ação comunicativa, tal como proposta por Habermas;

b) Questiona também a idéia de consenso racional enquanto consenso que é atingido de

forma argumentativa sob as condições de uma situação ideal de palavra (conversação).

Quanto ao problema da verdade, Habermas (1982) demonstra que para ser estabelecida a

verdade de um enunciado afirmado por um sujeito na comunicação, é preciso que as

“pretensões de validez” que o enunciado implica sejam confirmadas em três dimensões: a

verdade (pressuposições de existência do conteúdo proposicional mencionado); a

correção (com relação ao contexto normativo ou à retidão subjacente à norma em si

mesma); e a sinceridade da intenção expressada pelo sujeito.

No Capítulo IV abordaremos com mais detalhes a questão das “pretensões de validez”.

A crítica à situação ideal de palavra é replicada veementemente por Habermas:

“Eu não afirmo que um consenso válido só possa advir

das condições de uma situação ideal de palavra. A prática

comunicativa cotidiana está imersa num mar de auto-

evidências culturais, isto é, de certezas consensuais. Ao

mundo da vida enquanto pano de fundo do real processo

101

de alcance do entendimento, pertencem também

convicções e identificações empáticas com os sentimentos

de outrem.” (Habermas, 1982, p. 272, trad. livre).

A crítica de Sfez:

Em um trabalho recente, Sfez (1992) examina criticamente várias abordagens da

comunicação humana, dentre elas a teoria da ação comunicativa.

Podemos reunir as críticas de Sfez em três pontos, a saber:

1) As dicotomias e o mito subjacente - para o autor, Habermas elabora um regime de

dicotomias, tais como, entendimento x êxito, sociedade crítica x Estado, manipulado x

manipulador. Sfez interpreta essas dicotomias como portadoras de um mito, ao qual ele

critica duramente:

“O bem e o mal, a sombra e a luz, tantas oposições

enraizadas na utopia de uma reconciliação definitiva dos

homens entre eles e com a natureza. Que este mito,

sempre ressuscitado, seja chamado reino de Deus sobre a

Terra, ou mais tarde comunismo, não parece incomodar

nosso profeta.” (Sfez, 1992, p. 158, trad. livre).

102

Sfez argumenta que tais categorias são de ordem moral e psicológica, além de marcadas,

em Habermas, por uma forte característica kantiana. Sfez prossegue a sua crítica às

dicotomias questionando:

“Não são elas indissociáveis dos sistemas poderosos de

manipulação ? Quem nos diria se essas dicotomias não

são todas produzidas por um sistema de manipulação que

as valorizaria cada vez mais à medida em que elas o

afrontasse menos ? (Sfez, 1992, p. 159, trad. livre);

2) A descrição sem provas - para Sfez, Habermas elabora uma descrição de teorias de

forma rica e detalhada, conduzindo o leitor a refletir sobre um tema pouco decifrado

atualmente. No entanto, argumenta que uma descrição não é uma prova e, que discutir

teorias não é criar conceitos. Sfez afirma que empreender uma cronologia de grandes

autores, tal como Habermas o faz, não é necessariamente o mesmo que elaborar uma

teoria;

3) A ausência de análises sobre a comunicação atual - o autor lamenta a ausência de

abordagens às formas de comunicação contemporâneas. Sfez argumenta que, se para

Habermas a comunicação está no centro das relações sociais, é curioso não encontrar em

seu estudo nenhuma referência às tecnologias que estão no centro das práticas

comunicativas atuais:

103

“Nada sobre a inteligência artificial, nada sobre a ciência

cognitiva, nada sobre as transformações da biologia,

nada sobre as psicoterapias individuais ou de massa,

nada sobre as mudanças de paradigma nas ciências,

indissociáveis das teorias da comunicação, nada sobre a

linguística a não ser generalidades. Tratar da

comunicação sem dar lugar a esses campos, sem inseri-

los num aparato crítico, não é tratar de comunicação. E

crer que a crítica da comunicação de massa escrita ou

audiovisual esgota a questão, é tomar uma árvore pela

floresta.” (Sfez, 1992, p. 159, trad. livre).

Ao final de suas observações críticas, Sfez indica um ponto de concordância com

Habermas:

“Resta-nos o acordo sobre a idéia que Habermas deve a

Weber e desenvolve: a dificuldade da sociedade onde nós

estamos em se ressacralizar e sobretudo a fazê-lo a partir

da ciência. Mas não é uma certeza que o sagrado —

mesmo discutido pelo comentário — nos tenha

definitivamente escapado. A questão se coloca, em todo o

caso, pela comunicação em si mesma que se mostra hoje

104

em dia como fonte de todos os consensos que virão.”

(Sfez, 1992, p. 160, trad. livre).

Não há, ainda, registro disponível de uma réplica de Habermas às críticas de Sfez.

A teoria da ação comunicativa já desperta o interêsse de autores ligados ao campo das

organizações, provando a abrangência e a riqueza de suas propostas e enfoques. Assim é

que, antes de encerrarmos esta seção, gostaríamos de apresentar as linhas gerais de dois

bons estudos organizacionais recentemente produzidos com base na teoria da ação

comunicativa. O primeiro, foi realizado no Brasil, enfocando o tema da mudança

organizacional. O segundo, foi elaborado na França e, aborda a questão da comunicação

em indústrias automatizadas

Mudança organizacional e ação comunicativa em Martins:

Martins (1994) elabora uma interpretação crítica dos processos de mudança

organizacional em curso nas organizações produtivas e propõe novas bases para

mudanças organizacionais mais substanciais do que aquelas por ele criticadas, apoiando-

se na teoria da ação comunicativa.

O autor inicia o seu estudo por uma análise histórica do desenvolvimento do

conhecimento, admitindo que tal processo, dentre outras consequências, também

contribuiu para reprimir, ocultar e distorcer a comunicação humana, dificultando o

autoquestionamento e a autoreflexão. Para ele, a predominância da razão instrumental

105

acabou por distorcer a comunicação e assim, “o que deveria ser um processo

emancipador, tornou-se escravizador, colonizador, anti-humano.” (Marins, 1994, p. 3).

Nesse contexto, o autor aponta o papel crucial das organizações no estabelecimento de tal

configuração. As organizações funcionariam como uma segunda instância de socialização

dos indivíduos, pois submete-os a processos complementares de reprodução cultural e de

integração social, forjando e impondo um mundo da vida guiado pela orientação

sistêmica e baseado na razão instrumental. Assim, os indivíduos teriam suas percepções e

seus padrões de comunicação distorcidos, ocasionando a patologização e a coisificação

dos mesmos. Aqui, o autor cita como reforço de suas afirmativas a visão de Habermas

sobre a “colonização do mundo da vida pelo mundo sistêmico”.

Analisando os estudos e as práticas ditas de “mudança organizacional”, comumente

encontradas na literatura administrativa e nas ações em empresas, tais como

desenvolvimento organizacional, modernização administrativa, reforma administrativa e

outros, Martins vaticina :

“Em essência mudança organizacional, como vista por

acadêmicos e praticada pelas organizações, é a

transformação de algo ou alguma situação, cuja

eficiência e eficácia é deficiente e insatisfatória, em algo

mais produtivo, menos desgastante e economicamente

melhor. […] Neste contexto organizacional e social o ser

humano não é mais que uma peça da engrenagem, um

106

agente de mudanças; um recurso, um investimento que,

bem utilizado, pode ser compensador em termos do

retorno que pode dar para a organização enquanto

empreendimento econômico ou a serviço da economia.”

(Martins, 1994, p. 13).

Daí, Martins declara que o seu estudo está voltado para buscar as raízes antropológicas e

sociais para a mudança do quadro acima delineado, como também para a análise dos

progressos e discutir as teorias e metodologias que podem conduzir à “emancipação do

humano”. Por conseguinte, o autor põe as questões específicas as quais pretende abordar:

o que seria essa nova organização ? em que ela seria diferente das hoje existentes ? o que

muda nessa nova organização ? o que impede ou facilita a mudança ? o que fazer e como

fazer para que essa nova organização venha a existir ?

Primeiramente, Martins reconhece que uma práxis ritual tal qual se observa nas

organizações não muda se os indivíduos nela implicados não tomarem consciência dos

processos (reprodução cultural, integração social e socialização) que estruturam as ações

dessa práxis. A chave, então, seria uma nova práxis:

“Esta tomada de consciência só e´possível através de uma

nova práxis que, como foi dito acima, precisa não só ser

apreendida como aprendida. Esta nova práxis que em si

mesma é um processo de aprendizagem, ao mesmo tempo

107

social e individual, é o processo indutor das mudanças do

social pelo individual e do individual pelo social. […] É

através dela que os seres humanos podem autonomizar-se

e autodeterminar-se em relação ao outro e em relação ao

contexto social. É ela, por fim, o caminho da

emancipação humana.” (Martins, 1994, pp. 75-76).

À nova práxis que Martins se refere, ele denomina “práxis dialética crítica”. O caminho

para a emancipação humana no âmbito organizacional se faria então pelo estabelecimento

da práxis dialética crítica. Para demonstrar em que consiste uma práxis dessa natureza o

autor formula um constructo que parte principalmente da teoria da ação comunicativa e é

complementado por duas vertentes, cada qual numa dimensão específica: na dimensão

individual, pelo modelo gestáltico elaborado por Vera Campos e, na dimensão empírico-

organizacional pela teoria de ação de Argyris & Schön que trata da aprendizagem

organizacional. Abaixo reproduzimos uma síntese formulada pelo autor dos cinco pontos

principais da praxis dialética crítica:

“Esta práxis dialética implica: (1) em uma ação

comunicativa que ela desenvolve e que a realimenta; (2)

em uma situação de ação onde os protagonistas se

permitem mútua e livremente concordar, discordar,

argumentar, contra-argumentar, enfim, chegar ao

entendimento de maneira cooperativa e compartilhada;

108

(3) em um processo de aprendizagem que desenvolva a

competência interpessoal comunicativa de lidar com os

erros, os enganos e as controvérsias de maneira aberta,

franca e sincera; (4) em um processo de aprendizagem

que ajuda o aprendiz a aprender sobre ele próprio, sobre

os outros enquanto alter, e sobre o contexto; (5) implica,

enfim, em um processo de aprendizagem que se

retroalimenta, ou seja, que ajuda a aprender sobre a

própria aprendizagem.” (Martins, 1994, p. 76).

Um aspecto também importante a destacar é o ponto de vista do autor sobre a mudança

face a racionalidade nas organizações:

“Se a questão for pensada em termos de organizações,

sejam elas economicamente orientadas ou não, pode-se

chegar a conclusão que, embora a organização seja um

grupo heterogêneo artificialmente criado, como é o caso

das organizações formais, mudanças podem acontecer ao

se ter em mente que a racionalidade substantiva pode

conviver com a racionalidade instrumental.” (Martins,

1994, pp. 94-95, grifo nosso).

109

Buscando examinar “as experiências de aprendizagem e mudança por um lado, e o grau

de autonomia e autodeterminação de seus membros, por outro”, Martins analisa uma

série de textos que portam análises organizacionais. Ele os divide em dois grupos. No

primeiro, examina relatos sobre a IBM e sobre empresas brasileiras focalizadas sob a

ótica da mudança via “cultura organizacional”. No segundo grupo são examinados, dentre

outros, os estudos de Rothschild-Whitt (1982) sobre organizações coletivistas, Huber

(1985) sobre organizações alternativas e de Serva (1993 a) sobre organizações

substantivas. Desse exame resulta que,

“No primeiro grupo as organizações formais,

burocráticas, hierarquicamente constituídas em papéis,

primordialmente orientadas para a consecução de

resultados, a partir da busca da eficiência e da eficácia.

Segundo a classificação de Habermas, estas são empresas

orientadas para o sucesso.

No segundo grupo, as organizações que vêm sendo

denominadas de alternativas, coletivistas ou substantivas,

geralmente pequenas empresas, espontaneamente

formadas e geridas coletivamente, cuja principal

característica é a convivência social de grupos de pessoas

que se propõem produzir bem ou serviços (ou solucionar

problemas) que a coletividade necessita. Estas empresas

110

ou arranjos organizacionais, dentro da classificação

habermasiana, seriam aquelas cujos membros têm uma

racionalidade comunicativa e, portanto, seriam

orientadas para o entendimento.” (Martins, 1994, p. 136).

Quatro razões principais nos levaram a apresentar, aqui, as linhas gerais do estudo de

Martins:

a) Em primeiro lugar, trata-se de um estudo bem elaborado, no campo da teoria das

organizações que tem como fundamento central a teoria da ação comunicativa, o que

comprova a grande fecundidade dessa teoria e indica-nos que ela pode ser empregada

com êxito para a análise de organizações, mostrando-se também adequada para essa

finalidade;

b) O autor examina textos que tratam de organizações substantivas e similares,

concluindo que em tais organizações os membros apresentam uma razão comunicativa

em ação;

c) Martins comunga com o nosso ponto de vista que nas organizações as racionalidades

substantiva e instrumental podem conviver. Tal posição nós detalharemos no Capítulo IV;

d) O autor declara que a emancipação humana é uma das motivações centrais do seu

estudo.

111

Por todas essas compatibilidades com o nosso esforço e, pelos aportes que traz a todos

que se propõem analisar organizações sob uma visão habermasiana e emancipadora,

descortinando novos horizontes intelectuais, o estudo de Martins não poderia ser omitido

no bojo dessa nossa modesta contribuição ao tema.

O estudo de Zarifian sobre a comunicação face a automação:

Philippe Zarifian, professor de sociologia no Conservatoire National des Arts et Metiers

(Paris), realizou um estudo o qual é iniciado por uma crítica a análise clássica da

automação, que por sua vez parte de uma dissociação física entre a atividade humana e a

atividade mecânica.

Segundo o autor, na versão clássica destaca-se um elemento mediador entre os

trabalhadores e o sistema técnico: o sistema de informações. Assim, o trabalho dos

operários seria desenvolvido em três domínios: uma atividade de supervisão (controle

realizado através do processo de informação); uma atividade de otimização (cujo objetivo

seria o de aprimorar os desempenhos do sistema técnico); e uma atividade de manutenção

industrial.

Criticando esta interpretação, Zarifian afirma que o trabalho não pode mais ser

apreendido em termos energéticos ou símiles energéticos, como o consumo de um recurso

físico através da ativação de uma “força” de trabalho. Daí, remete a seguinte questão:

112

“Como redefinir o trabalho, dito intelectual, na oficina ?

Diríamos que o trabalho aparece como uma atividade de

relacionamento e de elaboração/aplicação de decisões

formalizadas de gestão” (Zarifian, 1991, p. 122).

Fazendo acréscimos a esta versão interpretativa do trabalho automatizado, o autor

desenvolve uma análise desse fenômeno, através de quatro aspectos: informação,

cooperação, lutas e móveis (“trajetória pessoal e colocação em jogo do mundo pessoal”),

comunicação e seus limites.

Ao discorrer sobre a informação, Zarifian afirma que é preciso abandonar a idéia de que o

sistema de informação é unicamente um intermediário entre o sistema de trabalho e o

sistema técnico, pois o desenvolvimento de uma atividade especificamente orientada

sobre o informacional já constitui uma mudança maior. Assim,

“O conceito de informação não basta se se quer

especificar qual tipo de racionalidade e em quais tipos de

relações sociais nos colocamos” (Zarifian, 1991, p. 124,

grifo nosso).

A partir de então, vai ficando cada vez clara a inspiração habermasiana no texto de

Zarifian. Ao analisar a cooperação, ele ressalta a dimensão intersubjetiva desta:

113

“A cooperação se entrelaça com coordenações de

atividade, asseguradas de maneira intersubjetiva, assim

como com novas divisões de trabalho e fraturas sociais.

[...] Queremos sublinhar a importância da dimensão

intersubjetiva das coordenações de atividade, implicadas

nas cooperações. De fato, o vetor central da comunicação

intersubjetiva é, verdadeiramente, a linguagem” (Zarifian,

1991, pp. 124 e 125).

No aspecto “lutas e móveis”, o autor destaca a questão da racionalidade, baseando-se em

Weber e em Habermas:

“Se se refere à meta, ao objetivo, a performance não

pertence aos assalariados da oficina. Ela é imposta pela

direção da empresa. Ela está, como o ato de visar, fora

da atividade comunicacional, e concerne, tipicamente o

que Max Weber denominava uma racionalidade

instrumental. [...] Ao nível interindividual, pode haver

uma tensão entre:

- uma racionalidade orientada para o sucesso

de maneira individualista e que se aproveita da

performance industrial para dela fazer uma ocasião de

performance individual marcante;

114

- uma racionalidade orientada em direção à

intercompreensão e ao entendimento, no sentido que lhe

dá Habermas, e solicitada pelas necessidades da

solidariedade. [...] Estamos convencidos de que a

racionalidade comunicacional orientada para a

intercompreensão é, de qualquer maneira, presente e

necessária nos contextos automatizados de que falamos.

Temos o material empírico para prová-lo” (Zarifian,

1991, pp. 126-127).

Ao tomar conhecimento de tais afirmações, tão contundentes, verificamos que Zarifian

comunga com o mesmo ponto de vista nosso, o qual reconhece a existência de um outro

tipo de racionalidade, que não só a instrumental, no âmbito das organizações produtivas.

Tal ponto de vista é um dos conteúdos centrais do presente estudo e, será devidamente

tratado no decorrer deste texto.

Quanto ao aspecto da comunicação, último dos quatro utilizados pelo autor para analisar

o trabalho automatizado, Zarifian continua baseando sua interpretação na teoria de

Habermas, na medida em que indica a existência de um tipo de comunicação cuja

validação não é a performance industrial em si, mas a “qualidade do acordo”

estabelecido entre os trabalhadores. O que nos remete à noção de entendimento definida

por Habermas.

Zarifian conclui o seu provocante trabalho com frases curtas e por demais significativas:

115

“Conclusão :

Habermas propõe substituir o paradigma do trabalho

pelo da linguagem. Pensamos, no que nos toca, que é

preciso procurar não uma substituição, mas uma nova

síntese entre trabalho e comunicação. Um paradigma do

tipo: o trabalho comunicativo” (Zarifian, 1991, p. 130).

Finalizando, por ora, as abordagens à teoria da ação comunicativa e suas decorrências no

campo do estudo das organizações — voltaremos a discutir aspectos dessa teoria no

Capítulo IV — , faremos a seguir uma síntese da proposta de Guerreiro Ramos, pela qual

ele lançou as bases de uma nova ciência das organizações.

III. Racionalidade substantiva e análise organizacional em Guerreiro Ramos

Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), sociólogo brasileiro, dedicou grande parte de sua

vasta obra ao estudo das organizações. Após 30 anos de pesquisa e reflexão, dez livros

publicados e numerosos artigos disseminados em inglês, espanhol, francês e japonês,

Guerreiro Ramos publica em 1981 seu último livro, A nova ciência das organizações -

uma reconceituação da “riqueza das nações”, onde expressa o desenvolvimento maior

do seu pensamento sobre a vida humana associada em geral e, em particular sobre a

administração e a análise organizacional. Robert Biller, então Vice-Reitor da

116

Universidade do Sul da Califórnia, comentou sobre essa que foi a última publicação de

Guerreiro Ramos em vida:

“Concentrando sua teoria na racionalidade substantiva,

tomando em conta todo o escopo dos valores humanos, ao

invés de deter-se apenas nos valores econômicos e

instrumentais, Guerreiro Ramos amplia a obra de Max

Weber.” (Robert Biller, prefácio à Nova ciência das

organizações - uma reconceituação à riqueza das nações,

1981).

Para Guerreiro Ramos,

“A razão é o conceito básico de qualquer ciência da

sociedade e das organizações. Ela prescreve como os

seres humanos deveriam ordenar a sua vida pessoal e

social.” (Guerreiro Ramos, 1981, p.23).

Visando introduzir o tema geral de seu trabalho, o autor faz um balanço histórico da

concepção de razão, na filosofia e nas ciências. Inicialmente compara a noção de razão

em Aristóteles, exemplificando o pensamento clássico grego, com a noção “moderna”.

Guerreiro Ramos identifica o séc. XVII como o período histórico onde se inicia a

mudança drástica do conceito de razão, apontando Thomas Hobbes como o primeiro

autor a articular clara e sistematicamente o conceito “moderno” de razão.

117

Julgamos importante e até fundamental para o nosso presente estudo, reproduzir algumas

afirmações de Hobbes quanto ao tema em questão, encontradas em sua obra mais famosa,

o Leviatã:

“Quando alguém raciocina, nada mais faz do que

conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas,

ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma

por outra […] a partir do que podemos definir (isto é,

determinar) que coisa é significada pela palavra razão,

quando a concebemos entre as faculdades do espírito.

Pois razão, neste sentido, nada mais é do que cálculo,

(isto é, adição e subtração) das consequências das

normas gerais estabelecidas para marcar e significar

nossos pensamentos.” (Hobbes, 1979, p. 27).

Sem dúvida, pode-se constatar uma drástica redução do conceito de razão em Hobbes

face àquele elaborado por Aristóteles. Como pudemos ver acima, Aristóteles entendia a

razão num prisma muito mais amplo que Hobbes, abarcando as diversas “disposições”

para a artes, ciências, filosofia, etc., e, principalmente ressaltando o importante papel que

o julgamento ético, enquanto componente da razão, teria para ações racionais humanas.

Com Hobbes, no entanto, a razão é limitada ao cálculo, ao cálculo das consequências. Na

118

proposição aristotélica o cálculo também está presente mas, restrito ao campo da

sabedoria prática, ou seja, apenas uma entre as cinco “disposições racionais da alma”.

A esse processo, Guerreiro Ramos denominou “transavaliação da razão”, cuja intenção

era a de legitimar a sociedade moderna exclusivamente em bases utilitárias.

Em seguida, Guerreiro Ramos faz um breve levantamento de estudos concernentes à

racionalidade elaborados por Max Weber, Karl Mannheim, pelos estudiosos da chamada

“Escola de Frankfurt” (destacando o trabalho de Habermas), Eric Voegelin, visando

demonstrar que a noção de racionalidade enquanto cálculo utilitário de consequências é

fruto de uma mudança operada desde 300 anos no contexto do conhecimento ocidental.

Tal mudança teria determinado o tipo de ciência social dominante atualmente e deve ser

analisado à luz da história, o que significa promover “a análise empírica da

materialização e evolução histórico-sociais das chamadas “estruturas de racionalidade”,

conforme vimos acima em Habermas.

No trabalho de Guerreiro Ramos, a análise crítica do conceito de razão é imediatamente

acompanhada por uma outra constatação crítica: a assunção do mercado como dimensão

central e ordenadora, tanto da ciência social como da vida humana em geral na sociedade

ocidental moderna. Ainda que o autor reconheça que nos últimos 300 anos a

racionalidade funcional e a centralização do mercado tenham aumentado

consideravelmente o domínio sobre a natureza e o consequente aumento da capacidade de

119

produção, ele adverte que agora há indícios de que semelhante sucesso está a ponto de se

transformar numa vitória de Pirro, devido a vários fatores:

a) A expansão do mercado atingiu um ponto de rendimentos decrescentes, em termos de

bem-estar humano;

b) A insegurança psicológica;

c) A degradação da qualidade de vida;

d) A poluição;

e) O desperdício à exaustão dos limitados recursos do planeta;

f) E no que tange à teoria das organizações, a incapacidade de oferecer diretrizes para a

criação de espaços sociais em que os indivíduos possam participar de relações

verdadeiramente autogratificantes.

A expressão “sociedade centrada no mercado”, é utilizada diversas vezes por Guerreiro

Ramos no decorrer da sua análise. Aqui podemos começar a detectar a influência direta

dos trabalhos de Polanyi sobre o pensamento de Guerreiro Ramos. Ele aponta com

firmeza a relação existente entre o desenvolvimento desse tipo de sociedade e o declínio

do emprego da razão substantiva:

120

“Nenhuma sociedade, no passado, esteve jamais na

situação da sociedade desenvolvida centrada no mercado

de nossos dias, na qual o processo de socialização está,

em grande parte, subordinado a uma política cognitiva

exercida por vastos complexos empresariais que agem

sem nenhum controle. Em sociedade alguma do passado,

jamais os negócios foram a lógica central da vida da

comunidade. Somente nas modernas sociedades de hoje o

mercado desempenha o papel de força central,

modeladora da mente dos cidadãos. […] Escravos de um

sistema de comunicação de massa dirigido por grandes

complexos empresariais, os indivíduos tendem a perder a

capacidade de se empenhar no debate racional. Cedendo

a influências projetadas, a maioria das pessoas perde a

capacidade de distinguir entre o fabricado e o real e, em

vez disso, aprende a reprimir padrões substantivos de

racionalidade, beleza e moralidade, inerentes ao senso

comum.” (Guerreiro Ramos, 1981, p.114).

A influência dos estudos de Polanyi e seus seguidores é intensa no estudo de Guerreiro

Ramos. A idéia de que a sociedade centrada mercado historicamente é episódica, como

também a premissa de que o processo econômico é um enclave na realidade social mais

121

ampla, constituem, como vimos, o eixo fundamental da teoria substantiva da economia e

da antropologia econômica. Ao propor uma abordagem substantiva, Guerreiro Ramos

pretende filiar-se intelectualmente a um esforço global que lhe é antecedente,

reconhecendo também a relação da antropologia econômica com esse amplo esforço:

“Uma teoria substantiva da vida humana associada é

algo que existe há muito tempo e seus elementos

sistemáticos podem ser encontrados nos trabalhos dos

pensadores de todos os tempos, passados e presentes,

harmonizados ao significado que o senso comum atribui à

razão, embora nenhum deles tenha jamais empregado a

expressão razão substantiva. […] A propósito, aquilo que

o campo da economia e, mais especificamente, o campo

da antropologia econômica referem presentemente como

sendo teoria substantiva, é apenas subsidiário a esta

análise. […] Karl Polanyi, fundador da teoria econômica

substantiva, assinala que os conceitos formais, extraídos

da dinâmica específica do mercado, na melhor das

hipóteses são válidos como instrumentos gerais de análise

e formulação dos sistemas sociais apenas numa sociedade

capitalista, durante um período em que o mercado esteja

relativamente livre da regulação política. […] Polanyi

corretamente afirma que, uma vez que a economia sempre

122

esteve ‘engastada’ na sociedade, a sociedade capitalista

tem que ser entendida como um caso excepcional e não

como um padrão para avaliar a história econômica e

social.” (Guerreiro Ramos, 1981, pp. 27-28).

Partindo desses dois aspectos críticos, o conceito de razão e a centralidade do mercado na

sociedade, Guerreiro Ramos parece inspirar-se em Polanyi ao utilizar o termo substantivo

e esclarece que a racionalidade substantiva, diferentemente da racionalidade instrumental,

é aquela racionalidade inerente à psique humana, num claro resgate do pensamento

clássico, notadamente o pensamento aristotélico.

Enquanto força ativa na psique humana, a racionalidade substantiva guarda estreitas

relações com o senso comum, pois origina-se do exercício de um senso da realidade

comum a todos os indivíduos, em todos os tempos e em todos os lugares. Podemos ver a

forte oposição que o autor estabelece com relação aos autores da tradicional teoria das

organizações, como Simon, que afirma que um indivíduo jamais poderia alcançar um alto

grau de racionalidade, e sim a organização.

Segundo Guerreiro Ramos, a racionalidade substantiva habilita o indivíduo a ordenar a

sua vida eticamente, gerando ações, através do debate racional, que buscam concretizar

um equilíbrio dinâmico entre a satisfação pessoal e a satisfação social, como também

atingir a autorealização pela concretização de suas potencialidades humanas.

123

Em seguida, Guerreiro Ramos empreende o estabelecimento de novas bases para a

ciência social (“teoria substantiva da vida humana associada”), como também para a

teoria das organizações (“abordagem substantiva das organizações”):

“A racionalidade substantiva sustenta que o lugar

adequado à razão é a psique humana. Nessa

conformidade, a psique humana deve ser considerada o

ponto de referência para a ordenação da vida social,

tanto quanto para a conceituação da ciência social em

geral, da qual o estudo sistemático da organização

constitui domínio particular.” (Guerreiro Ramos, 1981, p.

23).

Assim, cinco pontos básicos delimitam a “teoria substantiva da vida humana associada”:

1) Os critérios para a ordenação das associações humanas são racionais, isto é, evidentes

por si mesmos ao senso comum individual, independentemente de qualquer processo

particular de socialização;

2) Uma condição fundamental da ordem social é a regulação política da economia;

3) O estudo científico das associações humanas é normativo: a dicotomia entre valores e

fatos é falsa, na prática, e, em teoria, tende a produzir uma análise defectiva;

124

4) A história torna-se significante para o homem através do método paradigmático de

auto-interpretação da comunidade organizada. Seu sentido não pode ser captado por

categorias serialistas de pensamento;

5) O estudo científico adequado das associações humanas é um tipo de investigação em si

mesmo, distinto da ciência dos fenômenos naturais, e mais abrangente que esta (Guerreiro

Ramos, 1981).

Por sua vez, a formulação de uma “abordagem substantiva das organizações” exigiria, em

termos gerais, duas grandes tarefas: a primeira residindo numa análise que pudesse

conceber os elementos epistemológicos de variados cenários organizacionais, e a segunda

seria o desenvolvimento de um tipo de análise organizacional livre de padrões distorcidos

de linguagem e conceptualização. Para a execução de tais tarefas, seria de suma

importância rever os chamados “pontos cegos da teoria organizacional corrente”, a saber,

o reexame da noção de racionalidade, a não distinção sistemática entre os significados

substantivo e formal da organização, a falha compreensão do papel da interação simbólica

e, por fim, a visão mecanomórfica da atividade produtiva do homem.

Podemos resumir também em cinco pontos básicos a proposta da “abordagem substantiva

das organizações”:

125

1) Uma vez que as necessidades humanas são variadas e portanto atendidas por múltiplos

cenários sociais, é possível categorizar e formular as condições operacionais singulares de

cada cenário social;

2) Apenas limitadas necessidades humanas são atendidas pelo sistema de mercado, o qual

determina um tipo próprio de cenário social, marcado pela comunicação operacional e

critérios instrumentais. O comportamento administrativo é uma conduta humana

condicionada por imperativos econômicos;

3) Diferentes categorias de tempo e espaço vital são correlacionadas a diferentes cenários

organizacionais, assim a categoria de tempo e espaço vital dos cenários econômicos é um

caso particular entre outros;

4) Diferentes sistemas cognitivos referem-se a diferentes cenários organizacionais.

Portanto, as regras de cognição pertencentes ao comportamento administrativo

constituem também um caso particular de uma epistemologia multidisciplinar face aos

diversos cenários organizacionais;

5) Diferentes cenários sociais requerem enclaves distintos no tecido social, ainda que

hajam vínculos que os interrelacionem. Tais vínculos constituem ponto central do

interesse de uma abordagem substantiva do planejamento dos sistemas sociais (Guerreiro

Ramos, 1981).

126

Esse são os aspectos, até o momento que gostaríamos de ressaltar da vasta proposta de

Guerreiro Ramos. Como no caso da igualmente vasta proposta de Habermas, não cabe

aqui uma análise integral da teoria de Guerreiro Ramos, e sim apresentar, como tentamos

acima, os seus fundamentos, linhas gerais e determinados elementos que nos servirão

para o desenvolvimento do presente estudo.

A obra de Guerreiro Ramos tem provocado um grande impacto no Brasil, gerando

diversos estudos. Também no exterior a sua influência pode ser identificada. Dentre os

estudos elaborados no exterior, destacamos aqui um dos mais recentes, trata-se do que foi

realizado por Gladys Symons, professora da École Nationale d’Administration Publique,

no Canadá.

A influência de Guerreiro Ramos no estudo de Symons:

Ao abordar, numa perspectiva crítica, a questão da integração das mulheres no universo

da gestão das grandes empresas, Symons argumenta que para lidar corretamente com essa

questão deve-se ir além dos problemas apontados pela psicologia individual e das

políticas organizacionais, examinando a natureza da vida organizacional com destaque

para o contexto político no qual se inserem as mulheres.

Na análise desse contexto político , Symons aborda a burocracia sob três dimensões:

enquanto estrutura, enquanto processo e enquanto consciência burocrática. Nesse último

127

aspecto, dois fatores são fundamentais para a autora: a racionalidade instrumental e a

“síndrome comportamental”. Toda a caracterização desses dois fatores é empreendida

com base em Guerreiro Ramos (A nova ciência das organizações), o qual é citado

diversas vezes no decorrer do texto.

Assim, a burocracia é visualizada como um meio de dominação, o qual, dentre outras

finalidades, é utilizado para dificultar o acesso das mulheres às posições de poder nas

grandes organizações e, quando o permite, tolhe as possibilidades das mulheres

empreenderem ações que não se coadunem com a manutenção do status quo. Nas suas

conclusões, Symons afirma que,

“O caso das mulheres executivas nos fornece a

oportunidade de apresentar um ponto de vista novo e

radical. As organizações sendo essencialmente

instrumentos de dominação (Perrow, 1986; Ramos,

1984), para compreender onde as mulheres se situam na

vida organizacional, nós devemos de início abordar a

natureza da racionalidade das organizações e em seguida

o cotidiano das pessoas que dirigem essas organizações.

Em suma, se a inclusão das mulheres é funcionalmente

racional e corresponde aos objetivos das pessoas que

dirigem, então elas serão integradas. Senão, elas

encontrarão poucos lugares nos quadros da gestão. […]

128

A abordagem integracionista dá uma falsa impressão da

vida organizacional, da mesma forma que dá as mulheres

esperanças irrealistas de integração.” (Symons, 1990, p.

428, trad. livre).

Aqui constatamos um caso de emprego do estudo de Guerreiro Ramos para desvelar o

substrato racional da organização burocrática: a razão instrumental e uma de suas

consequências, o modelo de pensamento e ação ao qual Guerreiro Ramos denominava

“síndrome comportamental”.

Acreditamos que a fertilidade e a profundidade das análises e propostas veiculadas pelo

autor em A nova ciência das organizações, ainda ensejará, por muito tempo, a produção

de estudos organizacionais importantes, seja de cunho crítico — aproveitando o enfoque

da razão instrumental — seja de desenvolvimento da proposta da abordagem substantiva

das organizações.

Finalizando esta seção, há um aspecto de grande importância que julgamos necessário

destacar. Tanto o estudo de Habermas (teoria da ação comunicativa), quanto a abordagem

da razão substantiva empreendida por Guerreiro Ramos, denotam um substrato em

comum: o sujeito. Ambas são teorias que relevam sobremaneira o papel do sujeito na

criação do devir, teorias sociais de cunho antideterministas que privilegiam menos a

estrutura que o sujeito e a ação. Uma vez que estas duas teorias sociais constituem a base

principal de nosso estudo, julgamos necessário aprofundar essa questão com o objetivo de

129

esclarecer ao máximo as opções que fizemos no que diz respeito ao espectro das ciências

humano-sociais.

Para Guerreiro Ramos, o locus da racionalidade substantiva é a psique humana, logo a

razão substantiva é inata ao sujeito. O autor chega a afirmar categoricamente que a psique

humana deve ser considerada o ponto de referência para a ordenação da vida social. Daí,

deduz que os conceitos da abordagem substantiva são conhecimentos derivados do e no

processo de realidade, diferentemente da teoria formal que descreve procedimentos

operacionais.

Em Habermas podemos perceber facilmente a mesma opção fundamental em se tratando

de teoria social: o sujeito é a dimensão essencial do seu arcabouço teórico. A premissa do

sujeito autônomo, com plenas capacidades de comunicação e de total assunção da

responsabilidade pelos seus atos, é o requisito básico para que a ação comunicativa,

segundo o autor, possa ser concretizada. Acima de tudo, trata-se, obviamente, de uma

teoria de ação.

Esse substrato comum a ambas abordagens se insere num grande movimento no âmbito

da teoria social que se constitui numa contraposição a um outro que fêz “desaparecer” o

sujeito e, consequentemente, a ação, da cena central dos constructos da ciência social.

No nosso estudo, a consideração privilegiada do sujeito e da ação são essenciais para toda

a démarche trilhada para a abordagem geral do tema da pesquisa, para a elaboração das

130

definições básicas sobre as as quais pretendemos trabalhar e também para a análise das

organizações substantivas que empreenderemos. Em última instância, a relevância do

sujeito é condição sine qua non para a compreensão do significado que assume o termo

substantivo neste estudo.

Portanto, apresentaremos a seguir um breve histórico do grande movimento que restituiu

a importância do sujeito e da ação nas ciências humanas, desembocando no panorama

atual, onde o sujeito é um dos temas centrais no âmbito dessas ciências. Deste modo,

visamos sobretudo situar o leitor onde se insere os esforços das teorias que embasam o

nosso estudo e, por conseguinte, situar precisamente a nossa filiação teórica face ao

contexto das ciências humanas.

IV. A revalorização do sujeito e da ação nas ciências humanas

Podemos indicar três entre as mais fortes causas do desaparecimento do sujeito enquanto

dimensão temática privilegiada nas ciências humanas. Primeiramente, a elaboração e

grande aceitação de determinados modelos no campo da linguística que afastaram o

sujeito da problematização do conhecimento.

Em segundo lugar, a própria origem e consolidação da sociologia, consideradas,

respectivamente, a partir das obras de Augusto Comte e de Durkheim. Comte erige uma

teoria que ultrapassa a noção de indivíduo; a sua teoria enseja que o indivíduo é

considerado um obstáculo ao alcance do “espírito positivo”. Com Durkheim, o indivíduo

131

é afastado para mais longe ainda do centro da problematização, uma vez que ele,

indivíduo, é apenas e tão somente uma parte integrante do ser social.

Por último, nesta relação que não se quer exaustiva, o triunfo do movimento

estruturalista, que aliado a modelos linguísticos acabou por englobar diversos campos do

conhecimento, atingindo o seu apogeu na metade dos anos 60.

Curiosamente, é a partir de uma reorientação da própria linguística e, de um grande

redirecionamento de alguns dos maiores mestres do estruturalismo (Roland Barthes),

impulsionados por uma mudança conjuntural profunda — da qual maio de 68 representa

um marco inicial — que o estruturalismo se enfraquece paulatinamente, ao mesmo tempo

que o sujeito volta à cena prioritária nas ciências humanas. Nesta seção, faremos uma

síntese desse processo.

Já em 1966, Julia Kristeva, semioticista russa de grande renome repatriada na França,

introduziu no decorrer dos cursos dados por Roland Barthes as noções de

intertextualidade e de dialógica, a partir das idéias de um outro semioticista russo,

Mikhaïl Bakhtin. Segundo François Dosse (1992), essa introdução dos conceitos

bakhtinianos em França é fundamental para a inflexão radical de posições anteriormente

assumidas por Tzedan Todorov, semioticista búlgaro, ao final dos anos 70.

Todorov se notabiliza no decurso de um grande projeto de tradução em língua francesa

das obras de Bakhtin. Todorov declara-se profundamente envolvido e influenciado pelos

textos de Bakhtin, à medida que os examinava com vistas à sua tradução e reorganização.

132

E são justamente o processo e as consequências da interação entre sujeito e objeto de

estudo que embasam o conceito de dialógica. O que significa uma posição totalmente

oposta ao modelo linguístico de distanciamento do objeto linguístico muito utilizado no

estruturalismo.

As duas obras de Todorov que se seguiram à sua retomada de posição, La conquête de

l’Amérique, em 1982, e Nous et les autres, em 1989, alcançaram grande aceitação no

meio literário francês, fazendo rever o direcionamento da semiótica. Para Todorov, em

sua radical mudança epistemológica voltada para as questões do sentido, do sujeito e da

alteridade, “a semiótica não pode ser pensada fora da relação com o outro.”

Em 1987, a démarche da linguística e da semiótica em direção ao sujeito, em pleno fervor

desde 1970, é referendada por Coquet (1987) através de um artigo publicado na revista

Actes sémiotiques. Tal façanha chama a atenção pelo fato de ser essa revista dirigida por

Algirdas-Julien Greimas, um dos expoentes da chamada “semiótica do objeto”. Coquet

reconhece a importância de Louis Hjelmslev e de Greimas para o desenvolvimento de

uma teoria semiótica geral mas, ao mesmo tempo, louva a “semiótica do sujeito”,

inspirada nas obras de Benveniste.

A revalorização do sujeito ganha impulso decisivo com a reviravolta no posicionamento

de um dos grandes mestres do estruturalismo: Roland Barthes. Em 1975, Barthes adere

definitivamente a um processo crescente de subjetivação ao lançar Roland Barthes par

Roland Barthes, uma espécie de autobiografia não tradicional, onde o autor deixa claro o

133

seu rompimento com a orientação estruturalista. Esse rompimento é, de certa forma,

confirmado dois anos mais tarde com a publicação de Fragmentos de um discurso

amoroso, um verdadeiro elogio à subjetividade e adesão profunda à literatura. Somente

no ano de sua publicação, o livro vendeu cerca de 80.000 exemplares, em nada menos

que sete edições sucessivas. No mesmo ano, Barthes entra para o presitigioso Collège de

France.

Um outro autor, igualmente considerado como um dos grandes mestres do estruturalismo,

foi também responsável pelo renascimento do sujeito: trata-se de Michel Foucault. No

início dos anos 80, seus cursos no Collège de France já indicavam uma reviravolta em

prol do sujeito: “subjetividade e verdade”, “a hermenêutica do sujeito” e “o governo de si

e dos outros”. Com a publicação de Le souci du soi, em 1984, Foucault põe o tema no

centro das suas análises, ao examinar a crise do sujeito, ou antes, da subjetivação na

sociedade romana do séc. II.

A sociologia foi a disciplina mais atingida pela revalorização do sujeito e da ação.

Diversas correntes se impuseram no campo sociológico ao trazer de volta o sujeito, o

indivíduo, a ação social, o ator coletivo, dentre outras noções similares que deslocaram o

eixo dessa disciplina, do sistema, das estruturas em direção ao sujeito autônomo. Não

devemos esquecer que o contexto socio-histórico observado a partir dos anos 70

favoreceu sobremaneira o retorno da subjetividade nas ciências humanas, uma época em

que as grandes teorias globalizantes entraram numa crise fatal, deixando os indivíduos,

principalmente nas sociedades desenvolvidas do Ocidente, confrontados a eles mesmos,

134

isto é, sem contar mais com os grandes sistemas explicativos e deterministas do decurso

da história. Citaremos brevemente algumas das mais conhecidas correntes no campo geral

da sociologia.

Raymond Boudon, a partir da segunda metade dos anos 70, funda na França o método

sociológico conhecido como individualismo metodológico. Criticando o marxismo e o

estruturalismo, esse método, retomando as idéias de Georg Simmel, considera que um

fenômeno social deve ser concebido como efeito da agregação dos interêsses e

comportamentos individuais. Centrado nos comportamentos e ações individuais, o

individualismo metodológico questiona as escolhas dos indivíduos e formula hipóteses

sobre elas, atribuindo um substancial grau de liberdade aos atores sociais.

Erving Goffman, por sua vez, é considerado um dos maiores expoentes do

interacionismo. Seus livros obtiveram grande aceitação desde os anos 50, malgrado fosse

a época de expansão do estruturalismo. A análise do sistema de interação é que vai

permitir, segundo essa corrente, discernir as práticas sociais. Empregando uma

perspectiva de representação teatral, principalmente em A representação do eu na vida

cotidiana, Goffman torna relevante a ação do ator social, seus papéis desempenhados no

cotidiano, tomando como referência de análise a representação dramática.

A etnometodologia, provavelmente inspirada no interacionismo em seu ponto de partida,

conheceu grande destaque na França nos anos 80, contando com a adesão de nomes como

o de Georges Lapassade, curiosamente, antigo líder da análise institucional, método de

135

inspiração estruturalista. Entretanto, o marco inicial dessa corrente é considerado o livro

Studies in ethnomethodology, publicado nos Estados Unidos por Harold Garfinkel em

1967. Busca analisar a produção de uma situação social através da atividade comunicativa

dos atores sociais.

Entre as correntes da sociologia que recuperaram a importância do sujeito, podemos

destacar a sociologia da ação, talvez a mais célebre. Fundada pelo sociólogo francês

Alain Touraine, esse enfoque ganhou enorme celebridade em todo o mundo, notadamente

pela sua abordagem aos movimentos sociais. Touraine defende uma sociologia nova,

atualizada, compatível com as novas e desconcertantes realidades do mundo

contemporâneo; neste sentido, a tarefa da sociologia é de compreender os atores e seus

conflitos, o que significa renunciar totalmente a buscar “as leis da vida social”,

abandonando definitivamente a orientação da sociologia clássica. A mudança da tarefa

básica da sociologia implica, no nível analítico, mudança da análise social para um outro

tipo de análise no centro da qual será privilegiada a ação social.

Touraine proclama uma radical transformação do trabalho do sociólogo e de seu aparato

conceitual, tendo em vista a nova tarefa da sociologia e a noção de ator social. Em uma

das passagens mais significativas de sua vasta obra, ele afirma categoricamente:

“O ator social de antigamente protestava contra as

tradições, convenções, formas de repressão e privilégios

que o impediam de ser reconhecido. Ele protesta hoje com

136

a mesma força, mas é contra os aparelhos, os discursos,

as evocações de perigos exteriores, que o impedem de

fazer ouvir seus projetos, definir seus próprios objetivos e

se engajar diretamente nos conflitos, nos debates e nas

negociações que ele deseja. O retorno do ator não é o do

anjo, mas sobretudo o do impertinente, e o trabalho da

sociologia consiste em perfurar o muro das ideologias

mortas, e portanto das ilusões do puro individualismo ou

a fascinação da decadência, para dar espaço à presença

do ator e ajudar a fazer ouvir a sua palavra. A análise do

sociólogo se situará então além do discurso que a

sociedade mantém oficialmente sobre ela mesma; ela será

mais próxima das emoções, dos sonhos, das feridas de

todos aqueles que vivem como atores mas não são

reconhecidos como tais — porque as formas de

organização política e as ideologias são extremamente

atrasadas com relação as práticas, as idéias e as

sensibilidades realmente contemporâneas” (Touraine,

1984, p. 52, trad. livre).

Com referência às relações entre a história e a sociologia e também à interpretação

histórica dos fenômenos sociais, Touraine tenta revolucionar a orientação sociológica

tradicional, ele propõe uma inversão radical:

137

“Hoje em dia, a visão da história e do progresso herdado

do Iluminismo e do evolucionismo do séc. XIX está

desqualificada. Mas seu esgotamento, longe de afastar a

atenção dos movimentos sociais, deveria fazer surgir a

necessidade de uma análise que, em lugar de colocar o

ator na história, se questione sobre a produção das

situações históricas pelos atores” (p.38).

“Assim, a decomposição da idéia de sociedade dá lugar,

por um lado, à idéia de mudança permanente, quer dizer

à uma concepção inteiramente política da vida social,

mas também, de outro lado, à idéia de sujeito, cuja

capacidade criativa substitui os antigos princípios de

unidade da vida social. O essencial é que o sujeito não

pode mais ser definido em termos históricos. A sociedade

estava na história; agora, a história está nas sociedades,

as quais são capazes de escolher sua organização, seus

valores e seus processos de mudança, sem dever legitimar

essas escolhas por sua conformidade com leis naturais ou

históricas” (Touraine, 1984, p. 97, trad. livre).

138

Aplicando o seu método, ao qual denominou intervenção sociológica, Touraine fez

diversos estudos sobre os ditos novos movimentos sociais, especialmente nas fábricas da

Renault, a revolta estudantil de maio de 68, de trabalhadores agrícolas, dentre outros. A

profundidade de sua abordagem e a celebridade adquirida marcaram definitivamente o

retorno do ator e da ação social à cena principal das ciências humanas.

Apesar de ter como substrato comum o sujeito e/ou a ação, as diversas correntes da teoria

social, entre as quais apresentamos uma síntese acima, não trazem uma unanimidade de

visões sobre outros aspectos dos fenômenos sociais. Gostaríamos de esclarecer que não

arrolamos tais teorias no sentido de uma uniformidade de pontos de vista analíticos e de

métodos empregados. Ao contrário, entre os autores que relevam o papel do sujeito,

existem divergências e até debates calorosos, o que só vem a enriquecer as ciências

humano-sociais. O traço geral em comum entre essas abordagens é, repetimos, o seu

ponto de partida: a assunção do sujeito como a dimensão básica da produção do

fenômeno social, engajando assim a pesquisa numa direção proveniente do estudo do

indivíduo e de sua ação no mundo. A nossa intenção não foi realizar um levantamento

exaustivo dessas teorias e, sim, apenas apresentar uma síntese de algumas das mais

célebres.

Após esse breve relato da revalorização do sujeito nas ciências humanas, pelo qual

revelamos a opção de construção de ciência social que filiamos o nosso estudo,

retornaremos ao âmbito da abordagem da racionalidade substantiva na análise

organizacional, desta feita examinando os estudos recentemente produzidos no Brasil a

139

partir do trabalho de Guerreiro Ramos. Assim, esperamos traçar o panorama atual do

desenvolvimento do tema da racionalidade substantiva no campo da teoria organizacional

no Brasil.

V. Racionalidade substantiva e análise organizacional - alguns estudos recentes no Brasil

As idéias de Guerreiro Ramos têm causado uma forte influência no meio acadêmico

brasileiro, notadamente no âmbito das escolas de administração. Desde a publicação de A

nova ciência das organizações - uma reconceituação da riqueza das nações, vários

pesquisadores vêm desenvolvendo estudos sobre o tema da racionalidade substantiva nas

organizações.

Nesse contexto, é digno de destaque o esforço empreendido por Ramon Garcia no sentido

de disseminar no meio acadêmico nacional o pensamento de Guerreiro Ramos. Os

estudos realizados por Ramon Garcia abordavam, em sua maioria, a questão da mudança

organizacional com vistas à emancipação humana (Garcia, 1980, 1983), dentre outros

temas correlatos. Apesar de ser o principal divulgador das idéias de Guerreiro Ramos no

Brasil, Garcia não centrou sua produção científica no tema específico da racionalidade

substantiva, motivo pelo qual vamos nos ater àqueles autores que abordaram esse tema.

140

Assim, examinaremos a seguir seis estudos recentes sobre a racionalidade substantiva

realizados no Brasil, esperando assim fornecer um quadro representativo e atualizado do

esforço pela continuidade e aperfeiçoamento da proposta lançada por Guerreiro Ramos.

O estudo de Tenório (1990):

Tenório (1990) elaborou um estudo com os objetivos de confrontar a racionalidade

instrumental com a racionalidade substantiva e identificar o “paradigma habermasiano de

racionalidade comunicativa”. Do confronto entre as duas racionalidades, Tenório constata

um impasse entre elas no âmbito das organizações produtivas. Uma das facetas desse

impasse foi assim descrita:

“O que podemos verificar, a partir do taylorismo no

conjunto das teorias organizacionais, é a promoção

constante do ajustamento do empregado ao processo de

produção, independentemente do potencial racional-

substantivo que o homem traz consigo para dentro das

organizações.” (Tenório, 1990, p. 7).

Em seguida, o autor apresenta a teoria da ação comunicativa de Habermas, ensejando que

“...aceitamos por enquanto que a solução do impasse entre as duas racionalidades pode

ocorrer por meio do agir comunicativo” (Tenório, 1990, p. 7). É curioso observar que na

141

formulação de Tenório, a ação comunicativa aparece como um meio de solucionar o

“impasse” ao qual se referiu o autor; ele contrapõe a uma solução “subjetiva” (entendida

como a predominância da razão substantiva), uma solução respaldada “num processo

dialógico, intersubjetivo” representado pela ação comunicativa. O seu estudo é finalizado

com a colocação de algumas provocantes questões aos leitores:

“Como fomentar o paradigma da razão comunicativa

dentro dos espaços sócio-formais nos quais predomina a

razão instrumental ? Que estratégias devemos utilizar

para melhor socializar o processo de tomada de decisão

nas organizações ? Será que a utilização de algum tipo de

estratégia não instrumentalizaria a razão comunicativa ?

Ou tem razão a administração em manter a sua

racionalidade instrumental ?” (Tenório, 1990, p. 9).

Julgamos tais questões elaboradas por Tenório extremamente significativas, pois elas

indicam, dentre outras coisas, uma “dificuldade” generalizada observada nos textos de

autores brasileiros sobre a racionalidade substantiva em organizações produtivas: a não

explicitação da manifestação da razão substantiva diretamente na práxis administrativa

dos membros de organizações produtivas.

142

A esse gênero de “dificuldade” voltaremos a nos referir mais tarde, quando dedicaremos

parte de nosso estudo ao seu exame sucinto. Por enquanto, continuaremos com a

apresentação dos trabalhos dos demais autores.

O estudo de Pizza Júnior (1994):

Pizza Júnior (1994) analisa diversas concepções de racionalidade. Inicialmente resgata a

visão clássica, dando ênfase aos escritos de Platão e Aristóteles. Em seguida, demonstra

que a visão moderna opera uma sensível transformação do conceito relativamente aos

clássicos. As idéias de Descartes e Hobbes são examinadas como exemplos.

A apresentação da visão moderna abre caminho para que Pizza Júnior discuta a

predominância da razão instrumental nas organizações formais, ressaltando que a teoria

organizacional defende a eliminação da subjetividade e da individualidade nas

organizações, fazendo coincidir racionalidade com metas e procedimentos

organizacionais. Aqui, Pizza Júnior dá grande destaque às afirmações de Simon contidas

em seu livro Comportamento administrativo.

O estudo de Mannheim — O homem e a sociedade — é, então, criticado por Pizza Júnior

em função de eliminar impulsões, desejos e sentimentos do âmbito da razão. Críticas

também são feitas ao trabalho de Max Horkheimer, indicando-o como defensor de uma

concepção de razão exterior ao homem e coerente com o postulado marxista. Embora

143

reconhecendo a originalidade da contribuição de Habermas, Pizza Júnior também a ele

não poupa críticas:

“A contribuição de Habermas é original […] mas não

consegue superar o caráter ideológico da proposta

marxista ao vinculá-la a movimentos sociais e nega-lhe o

caráter intrínseco de condição básica do indivíduo.”

(Pizza Júnior, 1994, p. 12).

Pizza Júnior opta claramente pelo conceito de razão substantiva concebido por Guerreiro

Ramos, enquanto resgate da herança clássica. No entanto, ao constatar o esmagamento da

subjetividade nas organizações formais e a consequente padronização de comportamentos

e valores imposta aos seres humanos enquanto membros de tais organizações, o autor

demonstra uma certa perplexidade:

“... sem contato com o grupo, com o social, o indivíduo

não pode desenvolver sua capacidade crítica nem alargar

sua consciência e seus horizontes; submetido a

imperativos grupais, tem que se anular em benefício de

opiniões e conveniências coletivas. Como resolver esse

problema, se é que há solução ? […] Que fazer, se

vivemos grande parte do tempo de nossas vidas em

sistemas sociais planejados, muitos deles voltados para

144

atividades produtivas e de mercado ?” (Pizza Júnior,

1994, pp. 13-14).

Sua perplexidade sugere-nos um fatalismo pessimista, ao passo que a manifestação

concreta (efetivamente no âmbito do trabalho, nas organizações produtivas) da razão no

sentido clássico ou mesmo no sentido substantivo não são demonstradas, não são

exemplificadas. No seu texto, há exemplos apenas da materialização da razão

instrumental.

O estudo de Oliveira (1993):

Oliveira (1993) empreende uma análise histórica da “totalização da racionalidade

instrumental”, relacionando-a ao pensamento da Escola de Frankfurt e também à teoria

das organizações. Ainda que o autor não tenha utilizado a expressão razão substantiva em

seu texto, julgamos importante tecer alguns comentários sobre o seu conteúdo, uma vez

que nele é abordado o conceito clássico de racionalidade, há várias referências a

Guerreiro Ramos e também há uma clara preocupação com a emancipação do homem ao

nível das organizações e na vida social como um todo.

Partindo de considerações sobre a noção clássica de razão, Oliveira avança pelo projeto

do iluminismo visto sob a ótica dos frankfurtianos, até atingir o período histórico em que

predomina a razão instrumental — o capitalismo. Denominando tal período

“descaminhos da razão”, Oliveira comenta a proposta analítica de Weber e, em seguida,

145

detalha o processo de totalização da razão instrumental na sociedade moderna,

relacionando-o à expressão “sociedade unidimensional”, cunhada por Herbert Marcuse.

Oliveira identifica e se afasta do pessimismo dos frankfurtianos, face à totalização da

racionalidade instrumental. Aponta uma série de possibilidades de busca da emancipação,

entendida como liberdade e autonomia dos indivíduos.

Essas possibilidades são denominadas, em seu conjunto, “grande recusa”:

“Nem todos trilham o caminho da recusa

conscientemente. A grande maioria não toma

conhecimento do que se passa em seu redor. Uma boa

parte finda por se conformar. Outra é cooptada. Outra

protesta e consegue reformas. Outra se ausenta. Por fim,

uma fração se rebela, contesta e nega o sistema. De uma

forma ou de outra, fica a sensação de falta de alguma

coisa, o peso da repressão e exploração tão

compreendido e explicado por Marx, Freud, Adorno,

Foucault e outros.” (Oliveira, 1993, p. 31).

Oliveira lista uma série de ações consideradas como de recusa à totalização: niilismo,

obscurantismo, enquanto tentativas “irracionais”; opondo-se à formas “racionalistas”, a

146

saber, a prática de soluções tecnocráticas, a contestação “bem intencionada” que não

rompe as amarras estruturais do sistema e,

“Por fim, ficam os ‘iluministas’ no sentido clássico. Não

advogam soluções conciliadoras, nem internas ao sistema

ou à sua racionalidade. Assumem os ensinamentos

oriundos do processo histórico. Atualmente, pugnam por

um novo racionalismo capaz de transformar a ‘sociedade

totalitária’ e o ‘homem unidimensional.’” (Oliveira, 1993,

p. 31).

O autor sustenta que as possibilidades de recusa devem ser vistas como especulações que

se aplicam em larga dimensão, ou seja, ao senso comum, ao homem do povo, pensadores

sociais, elites estratégicas, “e principalmente, aos produtores, professores e estudantes de

Teorias Sociais de uma forma geral e Teoria das Organizações praticadas na academia,

na universidade.” (Oliveira, 1993, p. 32).

Mesmo relativizando a sua lista de possibilidades de recusa, “estas considerações não se

propõem a ser uma classificação exaustiva […] Merecem ser aprofundadas e

sistematizadas na observação da realidade empírica”(Oliveira, 1993, p.31), o autor

confere uma importância maior não a uma práxis renovadora ao nível das organizações e

sim à especulação, pois conclui o seu texto exaltando unicamente o pensamento

sistematizado:

147

“Em síntese, é no ‘irrefreável movimento do pensamento’,

e na crítica e autocrítica do mesmo, que o homem, em

última instância, encontra saídas para a sua emancipação

e construção de sentido.” (Oliveira, 1993, p. 34).

O estudo de Vasconcelos (1993):

Vasconcelos (1993) propõe um quadro de análise dos modos de racionalidade e os efeitos

de mudanças tecnológicas nos processos decisórios nas organizações. Afirmando basear-

se em Weber, Vasconcelos distingue três tipos de racionalidade: a instrumental, a

substantiva-ética e a objetiva.

Segundo Vasconcelos,

“No conceito weberiano, a racionalidade substantiva é

um processo voltado para a elaboração do quadro de

referências que serve de base para a ação adaptativa dos

processos de racionalidade instrumental.” (Vasconcelos,

1993, p. 11).

Vejamos o que o autor discute sobre um outro possível significado da racionalidade

substantiva:

148

“Outra visão possível é a de que a racionalidade

susbstantiva seria um processo autônomo de

racionalidade, voltado para as propriedades intrínsecas

dos atos e radicalmente diferente da racionalidade

instrumental.

Esta visão tende a introduzir um dualismo na análise dos

atos humanos, e separa o substantivo do instrumental.”

(Vasconcelos, 1993, p. 11).

Estabelecido assim o espectro da “escolha”, o autor faz a sua opção e a justifica:

“Prefiro adotar a primeira definição que integra a

racionalidade substantiva à instrumental na medida em

que a primeira consiste nos processos de associação

simbólica que resultam nos fins e objetivos que devem ser

operacionalizados pela operação da racionalidade

instrumental. Nesta visão, os dois modos de racionalidade

não existem separadamente, sendo indissoluvelmente

ligados, pois o lado instrumental do processo de

racionalidade pressupõe logicamente um fim a ser

atingido e a racionalidade substantiva não existe sem a

149

possibilidade de efetivação. Na prática, a

instrumentalidade e a substantividade são dois lados da

mesma moeda.” (Vasconcelos, 1993, pp. 11-12).

Vasconcelos não se dá conta que a estrutura teleológica está presente em todos os tipos de

ação. E, portanto, o fato de contar com essa estrutura não quer dizer que toda ação efetiva

seja obrigatoriamente de natureza instrumental. Despreza também a questão crucial da

orientação que é subjacente a toda e qualquer ação.

Como vimos em Habermas (1987), uma ação pode ser orientada para êxito ou para o

entendimento, e tais orientações são mutuamente excludentes; o fato dela ser orientada

para o entendimento não quer dizer que ela seja privada de operacionalidade, pois a

estrutura teleológica é parte do seu processo. O autor usa o termo “operacionalização”

como única forma de ação, ligando-o exclusivamente à razão instrumental, o que o leva a

afirmar que as racionalidades substantiva e instrumental “são dois lados da mesma

moeda”. Uma ação orientada para o entendimento é fruto da racionalidade, só que uma

racionalidade fundamentalmente diferente da racionalidade instrumental.

O autor parece não perceber que na sociedade moderna, a razão instrumental orienta

ações através do cálculo egocêntrico de utilidades, liberado de contextos normativos que

tenham um fundo de responsabilidade social. Os atores, liberados do julgamento ético,

não necessitam responder pelos seus atos face à pretensões de validez susceptíveis de

crítica moral, o que interessa é o fim, o êxito. O debate racional é desprezado, a utilidade

torna-se o valor generalizado e a rentabilidade, a eficácia e a eficiência tornam-se as

150

medidas de alcance do êxito. Uma racionalidade puramente econômica, técnica, portanto,

instrumental. Querer equiparar este tipo de racionalidade à racionalidade substantiva nos

parece um engano, no mínimo, lamentável. O próprio Weber, no qual o autor declara

basear-se, já havia diferenciado radicalmente dois tipos de racionalidade.

Talvez o autor considere como razão instrumental a orientação do fazer e razão

substantiva a orientação do pensar, ao afirmar que “a racionalidade substantiva não existe

sem a possibilidade de efetivação”, o que não deixaria de ser um outro grande equívoco,

pois assim estaria confundindo “efetivação” com “instrumentalidade”.

Julgamos conveniente esclarecer devidamente o significado desses dois termos. Segundo

o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (2ª ed., 1986), efetivação é “ato ou efeito

de efetivar”, sendo que efetivar é “tornar efetivo, realizar, efetuar”, complementando, lá

encontramos que efetivo significa “que se manifesta por um efeito real”. Da mesma fonte

reproduzimos aqui o significado de instrumental: “que serve de instrumento”; e, também,

de instrumento: “recurso empregado para se alcançar um objetivo, um resultado; meio.”

Como se pode ver claramente, instrumental, ou o neologismo empregado pelo autor —

“instrumentalidade” — refere-se unicamente, neste contexto, ao alcance de um fim, o

instrumento é primordialmente um meio, corroborando a denominação utilizada por

Habermas e por Guerreiro Ramos para designar um tipo específico de racionalidade: a

“racionalidade com respeito a fins”, ou a “razão instrumental”, que é marcada

fundamentalmente pela adequação dos meios para o alcance dos fins.

151

Por outro lado, efetivação diz respeito à realização, a tornar efetiva alguma coisa, ou seja

manifestar essa coisa através dum efeito real.

Assim, a concretização, ou ainda, a manifestação de um efeito real de algo, não implica

obrigatoriamente um processo em que a racionalidade (que fundamenta a lógica da ação)

seja aquela que “serve como um instrumento”, primordialmente utilizado para adequar

meios a fins. A concretização de algo pode ser guiada por uma racionalidade

instrumental, mas não necessariamente.

A nossa intenção não é estabelecer uma querela de cunho semântico com o autor. Muito

mais além, o que queremos é identificar e demonstrar aquilo que subjaz a esta

“dificuldade” de Vasconcelos, que o leva, inclusive, a confundir termos ocasionando

equívocos em seu estudo: a incapacidade de demonstrar claramente a efetivação da

razão substantiva, a manifestação dos efeitos reais dessa racionalidade nas ações

administrativas de participantes de organizações produtivas.

Sustentamos, como Guerreiro Ramos, que a racionalidade substantiva é, de fato,

radicalmente diferente da racionalidade instrumental. Segundo Guerreiro Ramos (1981), a

racionalidade substantiva é inerente ao indivíduo, à sua psique, ela se materializa em

ações através da mediação do debate racional, onde o julgamento ético é a pedra angular

(o que é muito diferente da condição de “recurso empregado para alcançar um resultado”,

152

essência do que é “instrumental”). De tal debate racional, Habermas (1987) nos fornece

uma abordagem profunda e suscinta, com a sua teoria da ação comunicativa.

No plano da ação, Habermas (1987) esclarece que a ação instrumental e a ação estratégica

são radicalmente diferentes da ação comunicativa, e não podemos nunca afirmar que

todas elas correspondem à mesma racionalidade, ou ainda a racionalidades integradas

como “dois lados da mesma moeda”.

Ainda no plano da ação, vimos em Weber (1978) que a “ação racional com relação a

valores” só se verifica quando o indivíduo age de determinada maneira porque “se

acredita obrigado” perante a certos valores. Devido a essas e outras considerações

essenciais na formulação weberiana é que Habermas (1987) a identifica como

“estruturada monologicamente”. Apesar de Weber (1978) denominá-la “ação social”,

muito pouco de “social” há nesse constructo e sim, como afirma Habermas (1987), uma

“teoria intencionalista da consciência”.

Vasconcelos acaba optando por uma via da qual discordamos veementemente: a

“integração” entre as racionalidades substantiva e instrumental. Infelizmente, o seu

estudo padece da mesma “dificuldade” observada nos de Tenório (1990), Pizza Júnior

(1994) e Oliveira (1993): não há uma base empírica. O mundo não é visitado, não há

dados empíricos, suas afirmações não são provadas por dados provenientes de alguma

realidade organizacional situada no tempo e no espaço. Por exemplo, Vasconcelos não

demonstra como as racionalidades substantiva e instrumental podem ser “integradas” no

153

cotidiano das organizações. A praxis administrativa e o cotidiano de organizações

produtivas estão ausentes no seu estudo.

Supomos que esta ausência tenha sensivelmente prejudicado a explanação do autor e que,

até mesmo, o tenha conduzido a não rever determinadas concepções e opções. O

confronto do pensamento com os dados colhidos em organizações produtivas pode,

muitas vezes, fazer refletir e alterar a percepção dos conceitos e a sistematização que se

queira estabelecer entre eles.

O estudo de Caldas (1994):

Caldas (1994) elaborou um estudo tentando examinar modelos alternativos de

organização, com o intuito de “analisar formas organizacionais das mais diversas

espécies e rationales, buscando entender aspectos mínimos de sua natureza

fundamental.” (Caldas, 1994, p. 102).

Citando Guerreiro Ramos, Habermas, Skolimowski, Arendt, Harman & Hormann, Ross,

dentre outros estudiosos, o autor empreende um tour de force conceitual, onde discute a

questão da racionalidade e de cenários alternativos à burocracia. Caldas tenta demonstrar

a existência de grupos que apresentam, no interior dos cenários alternativos, formas

diversificadas de design organizacional, relativamente aos grupos burocraticamente

organizados.

154

Apesar do esforço realizado, as contundentes afirmações de Caldas ao longo do texto são

prejudicadas pela ausência de evidências originadas do “campo”. Ao discutir importantes

aspectos tais como escolha, diversidade, transição ética, substantividade, o autor não

remete a discussão ao como e em quais condições sociais, econômicas e históricas os

membros de grupos com design organizacional diferentes do burocrático estariam

realizando escolhas e alcançando a diversidade; bem como não identifica claramente as

singularidades desses designs. Estas dimensões, que poderiam certamente conduzir ao

aprofundamento da questão e, sem dúvida, brindar as assertivas e conclusões do autor

com evidências, somente poderiam ser trabalhadas através da pesquisa junto a

organizações reais e contando com instrumentos de interpretação adequados à absorção

das lições do terreno.

O estudo de Barreto (1993):

Barreto (1993) realizou um importante estudo crítico sobre a aplicação do conceito de

racionalidade na teoria das organizações e nas ciências sociais. Sua preocupação avança

no descortino de novos horizontes para a pesquisa sobre a racionalidade humana.

Após analisar semânticamente o termo razão, remetendo-o à dimensão do raciocínio,

Barreto discute o processo biológico do raciocínio, enfatizando a importância da

neurologia. Em seguida, empreende uma análise crítica de várias abordagens da razão,

155

comentando os trabalhos de vários autores como Kant, Weber, Voegelin, dentre outros.

Deste ponto em diante, o autor ultrapassa a crítica e avança com propostas concretas:

“Doravante, o texto encaminha-se para a abordagem de

alternativas possíveis nas concepções e elucidações da

racionalidade que, a nosso juízo, podem fornecer um novo

arcabouço teórico para as relações sociais do futuro.”

(Barreto, 1993, p. 43).

Após o exame da racionalidade comunicativa e da racionalidade substantiva, Barreto

estabelece uma conclusão que para o nosso estudo é fundamental:

“Percebe-se que as concepções de Habermas e de Ramos,

no que se referem a uma nova orientação, não-

disciplinadora e não-opressiva, da conduta social, não

são contraditórias e sim complementares.” (Barreto,

1993, p. 44).

O autor prossegue enfocando aspectos da neurociência, da visão de racionalidade limitada

encontrada em Simon e da relação entre razão e intuição. Dentre as boas contribuições e

propostas do seu estudo, gostaríamos de destacar aquela que, ao nosso ver, se reveste de

maior riqueza e perspicácia:

156

“Prevemos, e desejamos, a intensificação de estudos e

reflexões sobre a racionalidade comunicativa, de

Habermas, e sobre a razão substantiva, fundada na

psique humana, e reencontrada por Guerreiro Ramos. A

possível noção racional do futuro, emergente da

intersubjetividade e do senso comum, não torna

excludentes as propostas de Habermas e as do sociólogo

brasileiro.

Portanto, julgamos ter encontrado uma das dimensões

teóricas da razão do futuro nas concepções estabelecidas

por esses autores.” (Barreto, 1993, p. 49).

Esta amostra da produção recente no campo da teoria das organizações no Brasil, relativa

ao enfoque da racionalidade substantiva, nos dá uma concreta percepção do estado atual

da pesquisa pautada nesse enfoque. Como podemos perceber, há um traço comum, apesar

das diferentes abordagens realizadas. Provavelmente, há outros traços comuns entre os

textos aqui examinados, porém o que gostaríamos de destacar é aquele a que nós vimos

nos referindo até aqui como uma “dificuldade”, um verdadeiro impasse: apesar de muito

bem elaborados, eles não se fundam em uma base empírica sólida, consequentemente,

não conseguem ir além da crítica e da denúncia da razão instrumental nas organizações,

pois não conseguem demonstrar empiricamente como a razão substantiva se concretiza

nas organizações produtivas.

157

Constatado este fato, que para este estudo é crucial, passaremos à seção seguinte, onde

vamos comentar cada estudo apresentado acima, face ao impasse constatado e, delimitar a

contribuição que, através do presente trabalho, tentamos fornecer ao campo da análise da

racionalidde organizacional baseada na razão substantiva.

VI. Delimitação da contribuição deste estudo

Os textos examinados na seção anterior são extremamante importantes na medida em

que, através deles, os seus autores dão continuidade ao aprofundamento da questão da

racionalidade nas organizações e, principalmente, chamam a atenção para a racionalidade

substantiva. O pensamento de Guerreiro Ramos permanece na pauta das discussões,

dando provas de sua potência e fecundidade.

Entretanto, criticar a racionalidade instrumental e chamar a atenção para a existência da

racionalidade substantiva, apenas supondo a possibilidade de aplicação desta última nas

organizações, ao nosso ver, não é o bastante. Após 15 anos do lançamento de A nova

ciência das organizações - uma reconceituação da riqueza das nações e, de 14 anos da

morte de Guerreiro Ramos, se quisermos que o seu pensamento dê frutos, temos que

fazer avançar a teoria.

O problema que se apresenta é que os estudos realizados no Brasil sobre a razão

substantiva nas organizações, embora apresentem uma ótima qualidade, continuam

158

restritos ao nível conceitual. Mesmo durante os anos 80, não temos nenhum registro de

estudos organizacionais que tenham apresentado evidências empíricas — dados colhidos

em organizações produtivas e bem interpretados — que dêem conta do emprego da razão

substantiva diretamente nos processos organizacionais, nas práticas administrativas. Nós

gostaríamos, inclusive, de acrescentar: principalmente em organizações produtivas que

operam no Brasil, ou seja, em nosso contexto sócio-histórico.

A ausência de análises oriundas de dados empíricos compromete o avanço da teoria,

compromete o avanço do conhecimento. Se desejarmos desenvolver a abordagem

substantiva das organizações, necessitamos demonstrar claramente o que significa a

adoção da razão substantiva nos processos administrativos e examinar a sua influência na

dinâmica organizacional. Não podemos nunca nos esquecer de que trabalhamos na

produção de conhecimentos referentes a um dos campos mais pragmáticos da atualidade;

conhecimentos que tentam dar conta dos fenômenos inerentes ao homem no trabalho, nas

organizações produtivas, praticando administração. Guerreiro Ramos apontou-nos,

brilhantemente, o caminho, abrindo avenidas, cabe-nos dar continuidade ao processo.

Permanecer para sempre no nível conceitual é, ao menos, ficar confortavelmente situado

no debate das idéias; é preciso ousar e assumir o desafio de confrontar as idéias com o

“mundo da vida”, com as organizações e as modalidades pelas quais seus membros

praticam administração. Fazer avançar a teoria é também utilizar a profunda formulação

conceitual de Guerreiro Ramos como base para a interpretação de fatos oriundos de dados

concretos e atuais.

159

A crítica à razão instrumental nas organizações, que se limita apenas a indicar que outros

tipos de racionalidade são passíveis de fundamentação do trabalho humano, alerta mas,

infelizmente, em geral pouco acrescenta, uma vez que muito já foi anteriormente

produzido nessa linha. Nesse sentido, a “desvantagem”, face ao que criticam — a razão

instrumental — é flagrante e, facilmente perceptível por aqueles que lidam com

problemas concretos em seu labor cotidiano: os verdadeiros praticantes da administração,

os administradores e todos aqueles que lidam com administração nas organizações

produtivas. Pois, se de um lado não se consegue explicitar claramente uma práxis

substantiva nas organizações, permanecendo apenas no nível conceitual, de outro lado a

teoria econômica e as teorias ditas funcionalistas das organizações já vêm, há muito

tempo, fornecendo indicadores, instrumentos de mensuração, definições claras, e milhares

de exemplos do emprego da razão instrumental colhidos em organizações reais.

Com relação aos estudos dos autores brasileiros apresentados na seção anterior, temos

algumas considerações a fazer, à luz desta questão.

Tenório (1990) propõe o agir comunicativo como a solução de um certo “impasse”

percebido pelo autor entre a razão substantiva e a razão instrumental. Mas a sua

proposição esbarra na pergunta óbvia: “como fomentá-la ?” O texto termina justamente

aí, na fronteira entre a idéia e a ação. Não apresenta resposta. Face ao impasse, julgamos

conveniente e oportuno que o autor tivesse pelo menos tentado verificar se já existem

grupos que estariam ousando praticar a racionalidade substantiva no trabalho em

conjunto, seja mediante o emprego do agir comunicativo ou não. Assim, ele poderia

colocar a sua idéia à prova e alargar futuras proposições.

160

Pizza Júnior (1994) opta decididamente pela racionalidade substantiva como meio de

emancipação do homem no trabalho. Entretanto, mostra-se perplexo ao constatar o

esmagamento da subjetividade no interior das organizações produtivas. Trilha um

caminho muito semelhante ao de Tenório, ao terminar o seu texto com praticamente a

mesma pergunta: “que fazer ?” Nós gostaríamos, então, de lhe sugerir: por quê não tentar

ver “quem está fazendo” e, sobretudo, “como estão fazendo” ?

Oliveira (1993) chega a listar uma série de posturas e ações face ao que ele chama

“totalização da razão instrumental”. A sua lista não contempla com clareza as ações

empreendidas por indivíduos que movimentam organizações produtivas baseando-se em

outra racionalidade que não a instrumental, apesar de pretender situar o seu estudo no

âmbito da administração. Sem referências específicas nem situadas historicamente, não é

de se surpreender que o autor aposte sobretudo no “irrefreável movimento do

pensamento” como a alavanca da mudança social, revelando um academicismo

exacerbado. Lembramos a todos aqueles que priorizam o pensamento sobre todas as

ações humanas, que esta crença, no seu limite, pode criar espaços propícios a idealismos

muitas vezes desconectados das condições reais das ações de mudança social.

Vasconcelos (1993) não consegue ancorar as especulações da sua formulação conceitual

numa práxis organizacional observável, constatável. Acaba por optar, inusitadamente, por

uma “integração” entre as razões instrumental e substantiva, colocando-as no mesmo

plano. Tal proposta de interpretação teórica, verdadeiramente original, não nos consegue

161

convencer, pois a sua originalidade não é sustentada por evidências empíricas que possam

invalidar as formulações de Habermas e de Guerreiro Ramos, os quais consideram a

razão instrumental como radicalmente diferente da substantiva. O mais curioso é

constatar que Vasconcelos afirma basear-se nestes autores.

Caldas (1994) nos declara que pretende “analisar formas organizacionais das mais

diversas espécies e rationales”, com o intuito de entender a sua “natureza fundamental”.

A sua análise se limita a apresentar modelos conceituais alternativos de visualização das

possibilidades de existência de organizações diferentes das burocráticas. O autor afirma

pretender explorar “outros viveres”, no entanto essa exploração não conta com nenhum

exemplo, nenhuma referência, nenhum caso de organização real, seja no Brasil ou

alhures, onde tais “outros viveres” a nível do trabalho estejam sendo implementados e,

principalmente, através de quais formas estariam sendo implementados. A sua tentativa

de analisar formas organizacionais e “rationales” das mais diversas fica, portanto, um

tanto quanto incompleta e não evidente.

Barreto (1993) é o único, dentre os autores aqui consultados, que consegue ultrapassar a

barreira da crítica e ousar propôr avenidas frutuosas, embora ainda permanecendo, como

todos os outros, no campo conceitual. A sua visão de que as propostas de Habermas e a

de Guerreiro Ramos são complementares e portanto devem ser aprofundadas em

conjunto, nos serviu como um poderoso insight, como veremos a seguir, para tentar,

modestamente, acrescentar algo de útil — no sentido da aplicabilidade — ao estudo da

racionalidade substantiva em organizações produtivas. Ainda assim, gostaríamos de

162

registrar o nosso lamento pelo fato do autor não nos brindar com a concretização de sua

memorável proposta, levando-a ao confronto com o mundo das organizações em ação, ao

“cotidiano administrativo” — expressão criada por Lima & Teixeira (1994). Cremos que

certamente Barreto o teria feito com muito mais propriedade do que nós, uma vez que o

referido autor tem o mérito de primeiro visualizar tal démarche.

Todos os estudos acima citados têm como pano de fundo um humanismo digno de

destaque. Voltamos a ressaltar que as evidências empíricas que lhes faltam, poderiam em

muito enriquecer e tornar mais contundentes suas propostas de cunho inegavelmente

humanistas.

A esse gênero de “dificuldade” que apontamos e tentamos esclarecer, chamaremos

doravante impasse. A dificuldade em demonstrar explicitamente como e quando a

racionalidade substantiva se manifesta ao nível do cotidiano de indivíduos que

implementam processos organizacionais, significa para nós um sério impasse ao

desenvolvimento da teoria. Pode significar também, uma limitação à expansão do

emprego da razão substantiva no trabalho.

Queremos deixar claro, aqui, que o referido impasse não é, de maneira alguma, gratuito.

Sentimos o seu peso, o incômodo provocado pela dificuldade que lhe acompanha e da

qual se é acometido ao tentar impulsionar o estudo da razão substantiva nas organizações.

163

Ao iniciarmos o planejamento do quadro de análise dos dados coletados no campo,

visando o desenvolvimento deste presente estudo, nós nos deparamos com o mesmo

problema provavelmente vivenciado pelos autores acima citados: a natureza

fundamentalmente conceitual da abordagem que nos foi legada, “em alto grau de

abstração”, por Guerreiro Ramos.

O próprio autor o confessa, ao comentar sobre a decisão básica que teve que tomar

quando da elaboração do livro A nova ciência das organizações - uma reconceituação da

riqueza das nações:

“Deveria eu apresentar ‘A nova ciência’ provida do

máximo possível de ilustração factual de suas teses, ou

deveria dar-lhe um caráter de discurso conceitual por

excelência ? O estudo da ‘Teoria geral’ (elaborado por

Keynes em alto grau de abstração) me convenceu de que

a segunda diretiva seria a mais aconselhada, e decidí

firmemente segui-la. […] Em resumo, ‘A nova ciência’

deveria ser, tanto quanto possível, mero discurso teórico.”

(Guerreiro Ramos, 1982, p. 93).

No prefácio (escrito em 1980) da edição brasileira daquele livro, o autor esclarece que,

164

“A nova ciência das organizações é, assim, produto de

cerca de 30 anos de pesquisa e reflexão. Mas ele não

articula tudo aquilo em que a nova ciência consiste.

Apenas começa uma nova fase da explicação da proposta

de trabalho teórico e operacional, que espero consumar

durante o resto de minha vida” (Guerreiro Ramos, 1981, p

.XVII).

Guerreiro Ramos deixara claras, tanto a opção conceitual para o seu livro, quanto a

importante constatação de que o referido livro, apesar de se constituir no resultado de

muitos anos de pesquisa, era, de fato, o início da construção da nova ciência, a qual ele

mesmo denominou abordagem substantiva das organizações. Infelizmente, o autor

faleceu em 1982, deixando incompleta a sua proposta.

Diante do impasse ao qual nos vimos confrontados, buscamos a sua solução, uma vez que

cremos firmemente que não podemos continuar, após todo o monumental esforço

empreendido por Guerreiro Ramos, a elaborar estudos sobre a razão substantiva restritos

ao nível puramente conceitual. Não abrimos mão de assumir o desafio de confrontar as

nossas idéias com realidades organizacionais concretas, isto é, com empresas existentes,

com organizações substantivas reais, situadas no tempo e no espaço, preferencialmente

em funcionamento no Brasil. Essa démarche, já estamos trilhando há algum tempo (ver

Serva, 1993 a). Com o presente estudo, objetivamos aprofundar e aperfeiçoar o

instrumental de análise. Para tanto, optamos por tomar e aprofundar o caminho sugerido

165

por Barreto (1993): trabalhar com os estudos de Habermas e de Guerreiro Ramos numa

perspectiva de complementaridade. Assim pudemos elaborar um quadro de análise que

nos servisse de instrumento para interpretar os dados empíricos colhidos em organizações

produtivas, através da metodologia etnográfica da observação participante.

Isto posto, podemos agora delimitar a contribuição que pretendemos, modestamente, dar

ao campo de estudos aqui enfocado:

1) Fornecer um quadro de análise que ao ser operacionalizado, possibilite-nos identificar

a presença da racionalidade substantiva e, demonstrar como ela é efetivada no

desenrolar dos processos organizacionais. Mais claramente, demonstrar empiricamente

como a racionalidade substantiva é concretizada nas ações dos membros de

organizações produtivas, ao nível dos processos organizacionais e da práxis

administrativa, compreendendo a tomada de decisões, a comunicação, os valores e

objetivos organizacionais, a resolução de conflitos, a divisão do trabalho, o controle, as

normas, a hierarquia, a ação social da organização, etc.

2) Procedendo do mesmo modo descrito no item anterior, ou seja, por intermédio da

utilização do mesmo quadro de análise e dentro das mesmas condições específicas,

identificar e demonstrar também a presença e a concretização da razão instrumental,

permitindo assim detectar qual dos dois tipos de racionalidade é predominante numa

organização produtiva;

166

3) Consequentemente, partindo da predominância revelada pela análise, identificar se

uma determinada organização produtiva é uma organização substantiva ou não.

Com este empreendimento, acreditamos piamente que podemos contribuir para criar

condições propícias a novos desenvolvimentos no campo dos estudos organizacionais

baseados na abordagem da racionalidade substantiva inaugurada por Guerreiro Ramos. A

nossa preocupação específica, insistimos, é de abrir caminhos que conduzam tais estudos

a análise direta e sem rodeios das práticas utilizadas pelos indivíduos no cotidiano

administrativo (Lima & Teixeira, 1994). Então, esses estudos poderiam revelar

factualmente se a razão substantiva pode (ou não) guiar a gestão de organizações

produtivas e, em caso positivo, detalhar com clareza como os participantes dessas

organizações o fazem efetivamente.

Cremos ser esta um boa via para cooperar ao esforço realizado por muitos colegas no

sentido de fazer a teoria avançar, propiciando oportunidades sistematizadas de confrontá-

la com a prática. Em última instância, a nossa preocupação mais geral é com a

continuidade dos esforços pela emancipação do homem no e pelo trabalho.

A fundamentação da complementaridade acima citada e o quadro de análise dela

decorrente, propostos neste trabalho, serão minuciosamente explicitados no Capítulo IV.

167

No capítulo que se segue, definiremos suscintamente o que entendemos por organizações

substantivas, além de situá-las historicamente face ao amplo espectro dos movimentos

emancipatórios originados no âmbito global das organizações produtivas.

168

Capítulo II - Organizações Substantivas

Os nossos objetivos neste capítulo são, primeiramente situar o fenômeno do surgimento

desse tipo de organização num panorama histórico de iniciativas emancipatórias ao nível

da esfera produtiva e, em seguida, esclarecer o conceito de organização substantiva.

I. Organização da produção e emancipação - algumas iniciativas

históricas

Iniciaremos este capítulo empreendendo uma breve retrospectiva de algumas iniciativas

históricas marcantes, a qual, em nenhuma hipótese pretende ser exaustiva, e sim apenas

uma referência a alguns movimentos de destaque na história que atestam a ação de muitos

homens, em épocas diferentes, voltada para a emancipação a partir da reorganização da

produção.

Começaremos arbitrariamente por ressaltar alguns movimentos ocorridos já dentro do

período histórico marcado pelo capitalismo, embora reconhecendo que iniciativas de

cunho emancipatório originadas na produção têm registro histórico bem anterior a esse

período.

169

O cooperativismo industrial - origens:

Inicialmente, abordaremos brevemente o movimento do cooperativismo industrial. Sua

origem data da primeira metade do século XIX, embora o cooperativismo considerado

globalmente tem suas raízes em épocas muito distantes. Entre as manifestações históricas

consideradas como raízes do cooperativismo, podemos citar as associações de

arrendamento de terras na Babilônia, as sociedades de drenagem e construção de diques

na Alemanha, os pastos coletivos e as associações de pescadores na Romênia, as

coletividades agrícolas entre os sérvios e os russos, as comunidades de trabalho na Rússia

e mais tarde as confrarias ou corporações de ofícios durante a Idade Média.

Robert Owen (1771-1858) e Charles Fourier (1772-1837) são tidos como os pais do

cooperativismo industrial. Owen, industrial britânico, criou várias comunidades nos

Estados Unidos, México e Inglaterra sob o princípio da propriedade coletiva, onde

tentava-se socializar a produção e o consumo. Em 1839, chega a fundar uma associação

internacional “de todas as classes e de todas as nações sediada em Londres”, a Universal

Comunity Society of National Religionist. Todas as comunidades fracassaram, com

exceção da situada em New Lanark (Escócia), onde fundou uma empresa com

participação dos empregados nos lucros e na gestão.

Fourier não foi um homem de ação, mais o primeiro ideólogo cooperativista na França.

Publicou em 1882 a sua obra principal: Traité de l’Association Domestique Agricole,

170

onde apresenta uma comunidade denominada “Falanstério”, à qual Fourier atribuía a base

da transformação da sociedade, através de um sistema coletivizado de produção e

consumo. Sua obra influenciou a criação de várias colônias na França e na América.

O cooperativismo industrial desenvolveu-se primeiramente na França e na Inglaterra.

Embora sem atingir um consenso, sabe-se que vários autores, como Gascón (1983),

consideram como a primeira cooperativa operária de produção a Association Chrétienne

des Bijoutiers en Doré, fundada em Paris por um grupo de joalheiros em 1834, atingindo

oito sucursais e funcionando até 1863.

O cooperativismo industrial expandiu-se consideravelmente em várias partes do mundo,

assumindo diversas modalidades. Não é nosso intento aqui realizar um levantamento

exaustivo das iniciativas cooperativistas, apenas estamos registrando este importante tipo

de organização no bojo dos movimentos emancipatórios ao nível da esfera produtiva. Sob

essa orientação, abordaremos, como exemplo de experiência moderna de sucesso, alguns

aspectos do complexo cooperativo Mondragón.

O complexo cooperativista de Mondragón:

Em outubro de 1943, o padre José Maria Arizmendiarrieta, da paróquia de San Juan

Bautista de Mondragón, na Espanha, fundou a Escuela de Formación Profesional,

difundindo ideais cooperativos e sociais. Alguns egressos dessa escola, encontrando

dificuldades de adaptação à estruturas rígidas de gestão nas empresas da região, decidem,

em 1955, fundar a sua própria empresa, a metalúrgica ULGOR. O nome da empresa

171

corresponde às iniciais dos seus cinco fundadores: Usatorre, Larrañaga, Gorroñogoitia,

Ormaechea e Urtubay.

Em agosto de 1956, transferem a fábrica para Mondragón, e este é considerado o marco

inicial do complexo cooperativo. Vale ressaltar que a transformação da empresa em

cooperativa se deu em razão de ser essa a única forma legal possível, na Espanha da

época, de constituir um empreendimento democraticamente administrado, onde o capital

estivesse submetido ao trabalho. Em 1959, o Ministério do Trabalho oficializa a ULGOR

como uma cooperativa.

Na mesma época, outras cooperativas de produção surgiram na região, como a FUNCOR

e a ARRASATE. A identificação de problemas comuns a todas elas, tais como as

dificuldades financeiras internas e as dificuldades em obter crédito junto às instituições

financeiras, as quais não viam com bons olhos essas iniciativas, levaram as três

cooperativas citadas a criar, no ano de 1959, em conjunto com a cooperativa de consumo

de San José, a Caja Laboral Popular, uma sociedade cooperativa de crédito, com o

intuito de apoiar as cooperativas existentes e incentivar a criação de novas.

A partir de então, o empreendimento alcançou um grande sucesso. Segundo Gascón

(1983), em fins de 1980, o complexo Mondragón contava com 149 cooperativas, assim

distribuídas por ramo de atividade: 55,7% na indústria, 26,8% no ensino, 9,4% em

habitação, 4% no ramo agro-alimentício, 3,4% em serviços diversos e 0,7% em

cooperativas de consumo. A ULGOR figurava já entre as cem maiores empresas do país.

172

O complexo como um todo, já empregava 18.053 sócios trabalhadores, sendo a ULGOR

a maior empresa, com mais de 3.000 sócios trabalhadores, seguida de sete empresas com

mais de 500 membros, outras nove contando entre 250 e 500 membros, e as demais em

menor proporção. O faturamento global atingiu 73.705 milhões de pesetas, sendo que

19,7% sob a forma de exportações.

Quanto à produtividade, em 1978 havia aumentado de 4%. Em 1979, o aumento real do

faturamento em 16% foi alcançado apenas com o acréscimo de 6,4% de pessoal.

Refletindo sobre os problemas enfrentados pelo complexo Mondragón, Gascón (1983)

comenta a questão do crescimento das empresas face ao risco dos entraves ao

cooperativismo, sob o ponto de vista das relações humanas, da gestão democrática e

participativa e das comunicações. O autor reconhece que tais problemas, como era de se

esperar, se faziam sentir com mais intensidade na ULGOR. Estava já em curso, na época

(fins de 1980), uma série de esforços visando superar essa situação provocadora de

tensões: subdivisão das maiores empresas em unidades menores, com um determinado

número de membros como limite; criação de um Conselho Social, eleito

democraticamente e com reuniões frequentes, visando tratar de questões como política de

pessoal, remunerações, seguridade social, condições de trabalho, fluxo de comunicação,

dentre outras.

Após o exemplo de cooperativismo industrial vitorioso do complexo de Mondragón,

tentaremos remontar o fio do tempo, começando por revisitar o séc. XIX para sumarizar

173

uma das experiências emancipatórias mais célebres da história, a Comuna de Paris e, em

seguida prosseguir com o relato de outras iniciativas emancipatórias.

Um marco histórico: a Comuna de Paris

Um dos movimentos emancipatórios mais famosos e também dos mais efêmeros ficou

conhecido como a Comuna de Paris. Ele se deu em março de 1871, no bojo da guerra

franco-prussiana.

Aproveitando-se da derrota do exército francês, numa Paris sitiada, o operariado assumiu

o controle da cidade e, o mais importante, as unidades produtivas, conferindo-lhe uma

nova organização.

Estruturaram-se os Conselhos Operários, os quais nomeavam os chefes de oficina e

chefes de equipe, fixavam salários e horários de trabalho. O ritmo, a programação e os

volumes de produção, dentre outras questões eram decididos por comitês de fábrica.

O aspecto mais importante da Comuna de Paris, trágica e rapidamente aniquilada em

poucos meses, foi a demonstração factual de que os trabalhadores podiam assumir a

gestão da produção e, por extensão, da comunidade, sem prejuízo para a continuidade das

funções de abastecimento, compreendendo a coordenação das atividades de produção,

distribuição e consumo, como também o estabelecimento dos princípios e normas

referentes à dinâmica das relações sociais no seio da coletividade.

174

A organização anarquista durante a guerra civil espanhola:

Muito mais consistente e duradouro, entretanto, foi o grande movimento organizativo

desenvolvido durante a revolução espanhola, notadamente na segunda metade dos anos

30. De inspiração fundamentalmente anarquista, esse movimento estabeleceu um grau de

organização da produção pelos trabalhadores jamais visto até então na história. O sistema

autodenominado “coletivista” funcionou durante cerca de 30 meses, sem paralelo com

nenhuma outra revolução social anterior, seja russa ou chinesa. Ao aniquilar a resistência

dos militares fascistas que se rebelaram contra a República, as organizações operárias se

concentraram, após 19 de julho de 1936, na retomada da produção, uma vez que todas as

grandes empresas foram abandonadas por seus proprietários e gestores.

Implantou-se uma estrutura de gestão social e da produção totalmente singular, baseada

numa prática autogestionária. Em cada unidade produtiva criou-se um Conselho, o qual

geria as atividades naquela unidade. Tais Conselhos relacionavam-se entre si por

afinidades funcionais, formando os Sindicatos de Indústria ou Ofício, que eram

organismos representativos da produção local em cada ramo produtivo especial. Os

Sindicatos se coligavam de acordo com as funções básicas da economia, configuradas em

número de dezessete (Santillán, 1980), formando, por sua vez, os Conselhos de Ramo:

175

a) Necessidades fundamentais - Conselho do ramo da alimentação, Conselho do ramo da

habitação e Conselho do ramo do vestuário;

b) Matérias-primas - Conselho do ramo da produção agrícola, Conselho do Ramo da

produção pecuária, Conselho do ramo da produção florestal, Conselho do ramo da

mineração e beneficiamento, Conselho do ramo da pesca;

c) Conselhos relacionadores - Conselho do ramo do transporte, Conselho do ramo das

comunicações, Conselho do ramo da imprensa e do livro, Conselho do crédito e do

intercâmbio;

d) Indústrias de elaboração - Conselho da indústria metalúrgica, Conselho do ramo da

indústria química;

e) E ainda, Conselho do ramo da luz, força motriz e água; Conselho da saúde e higiene;

Conselho da cultura.

Para coordenar os processos de produção e distribuição como um todo, formaram-se

Conselhos locais, regionais e federal de economia.

O mais importante aspecto dessa engenhosa estrutura para o nosso estudo, é que a

organização e a administração da produção em cada fábrica, setor, estabelecimento,

176

unidade econômica enfim, ficava a cargo de um Conselho eleito pelos próprios

trabalhadores podendo ser destituído a qualquer momento por eles.

As tentativas posteriores de implemento da autogestão em nível nacional:

Algumas outras tentativas históricas de organização de atividades econômicas inspiradas,

em maior ou menor grau, em princípios autogestionários foram analisados por Guillerm

& Bourdet (1976). Trata-se dos casos da antiga Iugoslávia, Argélia e da antiga Tcheco-

Eslováquia, dos quais apresentaremos uma síntese a seguir.

A autogestão na Iugoslávia:

A partir de 1950, por decretos governamentais, um regime administrativo híbrido foi

implantado em boa parte das empresas iugoslavas. Proclamado como “autogestão”, o

regime iugoslavo viveu o seu apogeu entre os anos de 1960-1966, alcançando a

Iugoslávia nesse período uma elevada taxa de crescimento econômico.

A modalidade iugoslava implicava um modelo de gestão nos seguintes moldes: um

Conselho Operário, composto por quinze a vinte membros eleitos pelos trabalhadores

mas, quase em sua totalidade indicados pela Liga dos Comunistas ou suas organizações

complementares. Esse Conselho, por sua vez, elege um Conselho de Direção, com três a

177

onze membros, ao qual delega os poderes executivos. O Conselho de Direção nomeia um

Diretor estranho à empresa que pode constituir a sua equipe de gerentes.

Pode-se ver, então, a sutileza da continuidade do afastamento do poder aos trabalhadores.

Com o passar do tempo, o Estado tomou para si o poder de nomeação do Diretor,

transferindo-o posteriormente para a comuna. A reação do operariado aconteceu sob a

forma da criação de “unidades de trabalho”, encarregadas de organizar a produção na

oficina. Em 1960, foi organizada uma “conferência das unidades de trabalho”, que se

opunha, quando necessário ao Conselho de Direção inaugurando a fase áurea da

“autogestão” iugoslava. No entanto, a participação forçosa e massiva do partido único nos

Conselhos Operários e nos Conselhos de Administração, aliados a fatores conjunturais,

fêz decair gradativamente a solução iugoslava,enfraquecendo-a bastante nos anos 70 até o

seu total desaparecimento.

De qualquer sorte, a experiência iugoslava revelou-se marcante, não só pelo êxito

econômico atingido entre 1950 e 1966, como também pela originalidade de seu modelo.

A autogestão na Argélia:

Na Argélia, após a guerra de libertação terminada em 1962, os trabalhadores tomaram as

empresas agrícolas e algumas industriais abandonadas pelos colonizadores. Em 22 de

março de 1963, o governo central baixa decretos instituindo a autogestão dos “bens

178

vagos”, isto é, aquelas empresas anexadas pelos operários. A estrutura do poder

oficializada em cada empresa apresentava muitas semelhanças com aquela utilizada na

Iugoslávia: Assembléia Geral dos Trabalhadores que elegia o Conselho dos

Trabalhadores e este elegia o Comitê de Gestão composto de 3 a 11 membros.

Entretanto, o governo central tinha a prerrogativa de nomear um Diretor, o qual era

membro de direito, não eleito, do Conselho de Gestão, com grandes poderes. Ele detinha

os fundos, assinava as folhas de despesas e as ordens de pagamento, zelava pela

legalidade e tinha direito de veto sobre as decisões dos Conselhos, além disso,

obviamente, representava oficialmente o Estado.

Portanto, a autogestão argelina era bem mais limitada que a iugoslava. Sua duração teve

fim, na prática, com a queda do governo de Ben Bella, derrubado por um golpe de estado

em junho de 1965 chefiado pelo coronel Boumedienne.

Em verdade, a autogestão argelina fêz-se sentir com alguma intensidade apenas no ramo

agrícola, no comércio jamais existiu e no ramo industrial limitou-se aos pouquíssimos

casos de pequenas empresas que foram gradativamente absorvidas por empresas maiores.

A tentativa de autogestão na Tcheco-Eslováquia:

Na antiga Tcheco-Eslováquia, um movimento de inspiração autogestionária iniciou-se em

meados de 1966. A sua marca particular originava-se do fato de que tratava-se de uma

179

reivindicação de autonomia nacional num país então dominado pela antiga União

Soviética. Entre 1966 e 1968, criaram-se centenas de Conselhos Operários nas fábricas

estatizadas. Acreditava-se que os Conselhos era uma das vias indispensáveis à retomada

da autonomia do país. Os Conselhos, onde foram instalados, tinham o direito de nomear o

Diretor da empresa e de intervir na administração. Possuia também o direito de veto.

Após a famosa “Primavera de Praga”, todos os Conselhos eleitos foram gradativamente

revogados. Temos assim, na antiga Tcheco-Eslováquia, um caso de autogestão

interrompida, abortada.

Os movimentos emancipatórios não se perdem sem destino no tempo. Eles constituem, ao

nosso ver, páginas essenciais na história das sociedades. Eles se tranformam e se

renovam, ganhando novas cores, reciclando o ideal de liberdade a partir das experiências

passadas, porém à luz dos desafios sempre novos que enfrentam.

Todas essas experiências realizadas na esfera do trabalho, embora apresentando graus

variados de sucesso e também de práxis emancipatória, compõem um acervo histórico

importante, um imaginário herdado por inúmeros indivíduos que em épocas mais recentes

vêm teorizando ou mesmo construindo organizações produtivas não convencionais de

cunho emancipatório, certamente influenciados direta ou indiretamente por esse

imaginário. Arriscamo-nos a supor que esses indivíduos são como que tributários de

todas essas experiências gravadas na história.

180

Na próxima seção, tentaremos reunir estudos que abordam a criação e o desenvolvimento

de organizações produtivas nas últimas décadas, experiências realizadas em várias partes

do mundo que, através da organização do trabalho, concretizam, divulgam e mantém

vivos os ideias emancipatórios.

II. Organizações produtivas não convencionais de cunho emancipatório - estudos recentes

Infelizmente, não é volumosa a literatura que aborde aspectos administrativos desse tipo

de organização, embora tais organizações existam, sob diversas facetas, em toda a parte.

Quando comparada à literatura sobre organizações produtivas de natureza burocrática,

por exemplo, observa-se uma distância incomensurável entre as quantidades de obras já

produzidas. No que concerne à teoria das organizações, essa constatação é extremamente

significativa (Guerreiro Ramos, 1981; Rothschild-Whitt, 1982).

Por conseguinte, não é possível estruturar uma vasta revisão bibliográfica, entretanto,

buscaremos indicar e destacar alguns estudos de boa qualidade realizados nos últimos

anos.

181

As organizações coletivistas:

No final dos anos 70, Joyce Rothschild-Whitt realizou um importante estudo em cinco

organizações nos Estados Unidos, situadas numa cidade de médio porte no estado da

Califórnia. Mais precisamente, tratava-se de uma clínica médica, um escritório de

advocacia, uma cooperativa de alimentos, uma escola infantil alternativa e um jornal

alternativo. A tais organizações, Rothschild-Whitt denominou “coletivistas”.

A autora declara explicitamente que este tipo de organização é modelada pela lógica da

racionalidade substantiva mais do que pela racionalidade formal. O seu estudo teve como

objetivo principal a construção de tipo ideal de organização democrático-coletivista. A

inspiração em Weber é evidente, confirmada pela natureza epistemológica do estudo:

uma análise comparativa entre a os tipos ideais de organização coletivista e burocrática.

Rothschild-Whitt afirma que nos Estados Unidos dos anos 70, o legado dos movimentos

antiautoritários da década de 60 gerou milhares de organizações popularmente conhecidas

como alternativas. Tais organizações teriam sido criadas por seus fundadores para atuar

em variados ramos como educação, alimentos, saúde, mídia, advocacia, livrarias,

vestuário, energia, etc., sem o recurso a autoridade burocrática. Os números então

disponíveis atestam a expansão do fenômeno: enquanto em 1967, existiam cerca de 30

escolas alternativas nos EUA, em 1973 esse número salta para 800 e, em 1976 mais de

5.000 organizações alternativas já funcionavam naquele país.

182

O estudo destaca 8 aspectos que serviram de pontos para a análise comparativa com o

tipo ideal burocrático. Ao apresentar esses aspectos, transcreveremos apenas a

caracterização que a autora fêz para as organizações coletivistas, uma vez que a

abordagem da burocracia não faz parte da proposta do nosso trabalho:

1) Autoridade: há a rejeição da racionalidade burocrática como justificação da autoridade.

Observa-se processos de consenso, no qual os membros da organização formulam

coletivamente os problemas e negociam as decisões;

2) Normas: o uso de normas é minizado, principalmente as regras escritas;

3) Controle social: é atingido por meios de apelos pessoais e morais, tendo como pano de

fundo a homogeneidade dos seus membros no que tange aos seus valores básicos e visão

de mundo;

4) Relações sociais: baseadas num ideal de comunidade, elas são marcadas pela

afetividade, globalidade e pelos valores dos indivíduos;

5) Recrutamento: embora geralmente recrutando pessoal bastante qualificado, os critérios

de seleção são a rede de relações de amizade, valores políticos, traços de personalidade,

diversidade de talentos e comprometimento pessoal;

183

6) Estrutura de incentivos: em primeiro lugar, incentivos relacionados a autorealização,

em segundo lugar, incentivos ligados a solidariedade tal como amizade e, em último lugar

os incentivos de ordem material;

7) Estratificação social: busca-se concretizar, sob diversas formas, o igualitarismo, ou

seja, procura-se eliminar grandes diferenças de prestígio social e de privilégios;

8) Diferenciação: é também minimizada por meio da utilização de três meios: rotação de

papéis, equipes de trabalho, difusão/desmistificação do conhecimento especializado

através do treinamento interno.

Podemos perceber a nítida abordagem sociológica do estudo de Rothschild-Whitt, não só

pela decisão de elaborar um tipo ideal e compará-lo ao elaborado por Weber, mas

também pela escolha das categorias de análise e comparação.

A autora também relaciona as limitações e custos sociais enfrentados por tais

organizações:

a) Tempo - apontado como o maior custo social, aqui a autora repete a máxima de que a

democracia é lenta nas decisões;

184

b) Homogeneidade - a organização necessita de membros que apresentem homogeneidade

de valores e de grau de educação, o que restringe a sua base social causando empecilhos a

ampliação do movimento;

c) Intensidade emocional - relações face a face, marcadas pela pessoalidade tendem a

provocar intensa emocionalidade aravés da livre expressão dos sentimentos. A autora

considera esse aspecto um custo social;

d) Indivíduos não democráticos - devido a experiências anteriores, muitas pessoas não

estariam dispostas a participar de ambientes democráticos. A autora lembra que a grande

maioria das organizações e instituições da sociedade capitalista burocrática não são

congruentes com orientações coletivistas;

e) Limitações ambientais - dizem respeito às dificuldades nas relações com outras

organizações e também com referência às instituições que funcionam mediante lógicas,

práticas e valores bastante diferenciados do coletivismo;

f) Diferenças individuais - uma vez que a autoridade concentra-se no coletivo como um

todo, os membros mais responsáveis, enérgicos, comprometidos e verbalmente fluentes

acabam tendo mais peso no grupo.

185

Ao final do seu estudo, Rothschild-Whitt elaborou um continuum por intermédio do qual

propunha classificar organizações produtivas inserindo-as numa tipologia que varia de

acordo com o grau de concentração de autoridade empregado.

Os tipos fundamentais de organização apresentam-se no continuum na seguinte

sequência:

a) Democracia coletivista;

b) Complexa (democracia representativa);

c) Burocracia horizontal;

d) Burocracia hierárquica.

Assim, a organização coletivista e a burocracia hierárquica estão situadas nos polos

extremos do continuum, indicando a forte oposição entre elas. Para a autora,

“Fundamentalmente, burocracia e coletivismo são

orientados por princípios qualitativamente diferentes.

Enquanto a burocracia é organizada em torno do cálculo

da racionalidade formal, a democracia coletivista gira em

186

torno de uma lógica da racionalidade substantiva”

(Rothschild-Whitt, 1982, p. 46, trad. livre).

A pesquisa empreendida por Rothschild-Whitt é considerada como um marco no campo

das organizações alternativas ou coletivistas. O fato de ter-se aprofundado no exame das

ações cotidianas dos membros dos grupos pesquisados, malgrado (para nós,

administradores) sua orientação nitidamente sociológica, lhe confere um caráter inovador

e realista, fazendo jus à sua ampla difusão.

Sua démarche nos deu grande inspiração, principalmente no aspecto do acompanhamento

cotidiano das ações dos membros das organizações pesquisadas, na escolha de algumas

das variáveis a examinar e da elaboração de um continuum onde se pode situar as

organizações analisadas.

As isonomias:

Em seu último livro, Guerreiro Ramos também nos dá um panorama das organizações

semelhantes àquelas abordadas por Rothschild-Whitt nos Estados Unidos dos anos 70.

Guerreiro Ramos chamava-as “isonomias” e as inseriu com grande destaque no seu

“paradigma paraeconômico”, pedra angular da teoria da delimitação dos sistemas sociais.

187

O paradigma paraeconômico é um modelo multidimensional de organização social que

envolve dua implicações básicas:

“a) Uma visão da sociedade como sendo constituída de

uma variedade de enclaves (dos quais o mercado é apenas

um), onde o homem se empenha em tipos nitidamente

diferentes, embora integrativos, de atividades

substantivas;

b) Um sistema de governo social capaz de formular e

implementar as políticas e decisões distributivas

requeridas para a promoção do tipo ótimo de transações

entre tais enclaves sociais” (Guerreiro Ramos, 1981,

p.140).

A isonomia é um tipo de organização que representa uma das categorias delimitadoras do

paradigma. As demais categorias são a economia, a fenonomia, o motim, a anomia e o

isolado. O autor adverte que tais categorias têm que ser percebidas como tipos ideais, elas

têm uma função heurística no modelo proposto, pois no mundo concreto só existem

sistemas sociais mistos.

Nesse contexto, a isonomia é uma organização com as seguintes características:

188

1) O objetivo primordial é a autorealização dos seus membros. Para tanto, o empenho em

relações interpessoais é elevado;

2) Constitui-se num ambiente altamente gratificante, onde as pessoas desempenham

atividades compensadoras em si mesmas;

3) As atividades são cumpridas como vocações, onde a recompensa fundamental reside

na realização dos objetivos intrínsecos daquilo que as pessoas fazem. Assim, a

maximização da utilidade não tem a grande importância que tem numa “economia”;

4) A tomada de decisões é coletiva, ou ao menos, abrangente. A autoridade passa de

pessoa a pessoa conforme a natureza das questões e a qualificação de cada um para lidar

adequadamente com elas;

5) Sua eficácia depende da intensidade das relações face a face. Se ela aumenta

exageradamente de tamanho, a ponto de se estabelecer relacionamentos secundários ou

categóricos, ela deixará de ser isonomia e se transformará em democracia, oligarquia ou

burocracia.

Guerreiro Ramos afirma que a isonomia está, cada vez mais, passando a constituir uma

parte do mundo social de hoje, o que vem a confirmar as colocações de Rothschild-Whitt.

Ele aponta as tentativas de ambientes isonômicos nos Estados Unidos, citando dentre elas

as associações de pais e professores, associações de estudantes e de minorias,

189

comunidades urbanas, empresas de propriedade dos trabalhadores, algumas associações

artísticas e religiosas, associações locais e consumidores, grupos de cidadãos interessados

em assuntos e problemas da comunidade e,

“...muitas outras organizações recentemente constituídas,

nas quais, em última instância, as pessoas buscam estilos

de vida que transcendem os padrões normativos que

dominam a sociedade como um todo” (Guerreiro Ramos,

1981, p.151).

O estudo de Guerreiro Ramos é a principal fonte de inspiração deste trabalho.

Considerando a isonomia uma categoria heurística, tentamos modestamente fazer avançar

a teoria examinando sur le terrain organizações do mundo concreto.

As organizações do movimento alternativo:

Joseph Huber, sociólogo, economista e professor do Departamento de Ciências Políticas

da Universidade Livre de Berlim, fêz uma extensa pesquisa sobre organizações que ele

denominou “projetos alternativos” no inícios dos anos 80, na então Alemanha Ocidental.

190

Caracterizando o “movimento alternativo” como uma “explosão de idéias”, Huber (1985)

nos dá uma visão suficientemente ampla desse movimento na Alemanha, relacionando as

grandes áreas onde tais organizações aparecem:

a) Iniciativas civis - surgidas no final dos anos 60, configuram organizações em vários

campos de reivindicação, tais como intervenções contra a desarborização, a eliminação de

áreas verdes, a demolição de construções antigas, a construção de novos aeroportos, etc.;

b) Movimento ecológico, anti-usinas nucleares e pelas tecnologias alternativas - surgido

em meados dos anos 70, evolui para o desenvolvimento de tecnologias energéticas

alternativas, como a solar, biogás, eólica, e outras;

c) Estilos de vida alternativos e crítica ao consumismo - em estreita conexão com o

movimento ecológico, ganhou impulso a partir de 1977 e é tributário do grande

movimento estudantil de 67/68;

d) Movimento de jovens e de idosos - criação de centros de jovens, casas para a

juventude, moradias comunitárias para jovens, movimento de alunos secundaristas e de

jovens trabalhadores. Surge no final dos anos 60. Mais recentemente, observa-se a

fundação de várias organizações de idosos que lutam contra a marginalização,

dependência e a tendência da sociedade a considerá-los incapazes de discernimento e

julgamento;

191

e) Fuga da cidade e regionalismo - criação de colônias ou comunidades alternativas em

áreas rurais, já em franca desaceleração. Já o movimento regionalista ganha grande força,

principalmente nos paízes europeus vizinhos;

f) Movimento de mulheres e movimento homossexual - o movimento feminista foi o

grande pólo de reação contra a sociedade industrial contemporânea, atingindo o seu ápice

na segunda metade dos anos 70. Gerou uma infinidade de projetos auto-organizados por

mulheres, como grupos de alimentação e saúde, albergues, grupos de cinema, jornais,

editoras, livrarias, cafés, oficinas, grupos de teatro e música, dentre diversos outros.

Segundo Huber, pode-se dizer que o movimento de homossexuais, aproveitando-se da

brecha aberta pelo feminismo, ousou surgir, criando também várias organizações;

g) Movimento psicologista, emancipacionista e pró-sensibilidade - movimento que prega

que a transformação do sistema passa por uma profunda autotransformação psicológica e

também que a idéia de emancipação pessoal é parte da práxis política. Tal movimento fêz

brotar uma infinidade de organizações que oferecem uma enorme diversidade de serviços

no âmbito psicológico: terapias de grupo e individuais, grupos de treinamento, grupos de

encontro e autovivência, fortalecimento da percepção sensorial, meditação transcendental,

etc.;

h) O novo espiritualismo e as seitas religiosas - muito próximos do movimento

psicologista, foram criados grupos e redes nessa área, obedecendo a variadas correntes

diferentes entre si. O autor opina que a causa do crescimento desse movimento é a crise e

192

a crítica à visão materialista de mundo, que se impôs com a capitalização e

industrialização dos últimos séculos;

i) Movimentos pacifistas e iniciativas pró-Terceiro Mundo - nascido nos anos 50, o

pacifismo na Alemanha cresce gerando organizações que envolvem-se nas questões

ligadas às relações Leste-Oeste, enquanto as iniciativas de solidariedade para com o

Terceiro Mundo criam organizações que agem sobre políticas de desenvolvimento

interessadas nas relações Norte-Sul;

j) Movimento pela proteção ou ampliação dos direitos civis - conduzido por organizações

do tipo “União Humanista” ou “Terre des Hommes”, que se opõem à limitação dos

direitos e liberdades civis;

l) Esquerda não-ortodoxa ou espontaneísta - o autor assim considera as organizações

inseridas nesse segmento:

“O legítimo fenômeno residual do movimento de

estudantes e da oposição extraparlamentar do final dos

anos 60 [...] característico das esquerdas não dogmáticas,

tem um grau mínimo de organização e a marcante

‘independência’ dos indivíduos que a compõem. No

entanto, apesar de sua coesão, aparentemente fraca, elas

193

formam um campo social relativamente estável, uma rede

integrada no espaço alternativo” (Huber, 1985, p.31).

Um dos grandes méritos do estudo de Huber, é a realização de um levantamento

quantitativo dos “projetos alternativos” na Alemanha. De acordo com o referido

levantamento, existiam, na época, cerca de 11.500 organizações, envolvendo diretamente

80.000 pessoas, considerando a estimativa média, ou seja, desprezando as estimativas

mais otimista e a mais conservadora. O autor sofistica o mapeamento das organizações,

chegando a fornecer a composição percentual dessas organizações por ramo de atividade,

da qual apresentamos, abaixo, uma síntese:

— 70% das organizações estão no setor de serviços, 18% em trabalho político e 12% em

produção de bens;

— 71% são ativadas por trabalho considerado “intelectual”, enquanto 29% por trabalho

“manual”;

— 22% oferecem serviços profissionais, dentre os quais a grande ênfase (11%) são de

serviços terapêuticos;

— Das 18% classificadas em trabalho político, a grande maioria são voltadas para

iniciativas civis (9%) e comitês de cidadãos (8%);

194

— 17% se encarregam de serviços de informação e de relações públicas, com ênfase (9%)

em revistas, outras publicações, reuniões, congressos, etc.;

— 9% se dedicam a infra-estrutura de lazer, predominando aí bares, cafés, restaurantes,

com 4% do total e também centros de convenções, de férias e de comunicações,

igualmente com 4%;

— 9% encontram-se no ramo da circulação, se destacando o comércio (mercearias,

cooperativas) com 4,5% e as livrarias com 3% do total;

— 8% participam da indústria de transformação, com maior incidência (5%) das oficinas

de reparação e de produção, incluindo padarias, marcenarias, tecelagem;

— 8% são organizações do ramo da cultura, incluindo arte, esporte e ciência;

— 5% são considerados pelo autor como “serviços de (auto) administração”, aí incluídos

os projetos de organização e coordenação, tais como assessorias, associações e

networkings;

— Por fim, 4% são de organizações vinculadas à produção agrícola.

Dando prosseguimento à sua análise de cunho sóciopolítico dessas organizações, Huber

enumera uma série de “limites internos” do conjunto delas, abordado pelo autor como um

195

movimento social. O primeiro deles diz respeito à introversão de suas finalidades, não

refletindo portanto uma visão econômica globalizante, quando há objetivos dirigidos para

fora, estes se reduzem na maior parte à propaganda.

Em seguida, o autor aponta o preconceito com a ação empresarial, o “negócio”. Ele

explica que,

“Tem-se aí um caso irônico de contraprodutividade da

ideologia alternativa: ao invés de se avançar o movimento

alternativo o mais profundamente possível no setor

formal, e, com isto, diminuir a capacidade de pressão do

Sistema, fortalecendo o próprio movimento alternativo,

ocorre exatamente o contrário” (Huber, 1985, pp.64-65).

A ausência, em alguns casos,de competência técnica e de qualificação é também uma

característica limitante.

No tocante a implementação da autogestão, é digno de destaque o grau de realismo das

observações do autor:

“Há uma série de inevitáveis problemas de grupo a afetar

a autogestão: por exemplo, a hierarquia latente entre os

mais qualificados e os mais inexperientes, entre líderes e

196

seguidores, entre personalidades fortes e pessoas afetadas

pelo autoritarismo, entre os ‘velhos’ e os ‘novos’ e, ainda,

contradições entre formas jurídicas existentes

(companhias ltdas., sociedades civis, etc.) e os ideais da

autogestão, e, não por último, a dificílima relação entre

autodeterminação interna e influências externas, o

equilíbrio entre a abertura e a coesão do grupo” (Huber,

1985, p.66).

Huber enumera sete critérios que deveriam balizar a criação e o funcionamento dos

“projetos alternativos”, com vistas a superação desses limites internos:

1) Utilidade social - os projetos necessitam demonstrar claramente que a sua atuação é

significativa socialmente, pois o que está em jogo não é simplesmente o “direito ao

trabalho” mas, primordialmente, o “direito ao trabalho socialmente significativo”;

2) Autogestão - estabelecimento de uma estrutura de competências e decisões que permite

aos membros do grupo participação igual nas decisões e na sua implementação. O autor

lembra que autogestão significa também a superação da contradição entre empresário

(capital) e pessoal (trabalho), além do autocontrole no desenrolar do trabalho;

3) Propriedade coletiva ou neutralização do capital - para o autor, neutralizar

internamente o capital (eliminar a propriedade sobre os meios de produção) é a forma

197

teoricamente ideal para atingir a autogestão, uma vez que o direito vigente oferece

possibilidades limitadas para uma socialização ampla do capital;

4) Garantias sociais e salários equilibrados - a continuidade dos projetos dependerá

essencialmente da questão dos salários e da segurança social. Dispor apenas do

imediatamente necessário para a própria sobrevivência nunca permitiu e nem permitirá

uma vida aceitável. Portanto, os projetos devem estabelecer uma estrutura de salários

igualitária, e, em seguida, que esta seja correspondente ao nível geral dos salários no

conjunto da sociedade;

5) Condições sociais e humanas de trabalho - o trabalho não deverá provocar um stress

coletivo, sendo imprescindível o estabelecimento de acordos sobre o tempo normal de

trabalho, lazer e férias;

6) Efetividade e produtividade - os projetos devem necessariamente trabalhar a altura da

produtividade social, sem o que nada do que foi relacionado acima seria atingido;

7) Cooperação antes da concorrência - a cooperação deve ser buscada dentro e fora da

organização, através alianças com outras organizações similares e também com

organizações burocráticas.

O estudo realizado por Huber é um dos mais completos já produzidos nesse campo.

Ainda que decididamente centrado no caso da Alemanha, o autor nos revela a amplitude

198

do movimento alternativo em todo o Ocidente, pois a partir do caso da Alemanha

podemos inferir sobre a configuração desse movimento nos demais países ocidentais. Sua

abordagem, apesar de pertencer ao campo da ciência política e portanto muito mais

direcionado para as questões globais, também envereda por algumas questões internas das

organizações, pontos críticos que nos revelam facetas importantes desses grupos.

No nosso estudo, como veremos mais adiante, abordaremos casos de empresas que

poderiam até ser correlacionadas àquelas que Huber insere nas áreas do movimento

psicologista, emancipacionista e pró-sensibilidade e novo espiritualismo (aqui incluímos

os adeptos do movimento Nova Era). Faremos um aprofundamento das questões internas

de algumas organizações, sob o ponto de vista administrativo. Nesse sentido, o estudo de

Huber tem sido para nós uma grande fonte de inspiração desde os anos 80.

As contra-instituições:

Habermas, ao final do seu livro Teoria da ação comunicativa, faz longos comentários

sobre o conjunto das organizações estudadas por Huber.

Para Habermas, nas sociedades avançadas do Ocidente vem se desenrolando nas últimas

décadas, conflitos que em muitos aspectos se desviam dos padrões que caracterizam o

conflito em torno da distribuição, institucionalizado pelo Estado social. Tais conflitos não

ocorrem nas esferas de reprodução material da sociedade, não são conduzidos por

199

partidos e nem tampouco podem ser resolvidos mediante as compensações (segundo

Habermas, dinheiro e poder) tradicionalmente oferecidas pelo Sistema:

“Em uma palavra: os novos conflitos se desencadeam não

em torno de problemas de distribuição, e sim em torno de

questões relativas à gramática das formas de vida”

(Habermas, 1987, p.556, trad. livre).

Citando o mesmo estudo de Huber que examinamos acima e, utilizando a sua

classificação das grandes áreas do movimento alternativo (movimento ecológico,

iniciativas civis, movimento feminista, etc.), Habermas faz uma análise onde aponta,

dentre outras causas do movimento o sofrimento pelas renúncias impostas e pela

frustração gerada a partir de uma prática cotidiana culturalmente empobrecida e

unilateralmente racionalizada. Os novos conflitos surgem exatamente nos pontos de

sutura entre o Sistema e o mundo da vida; tais iniciativas tentam fomentar e tornar vivas

as possibilidades de expressão e comunicação que estão sepultadas.

Habermas deposita grandes esperanças nas ações dessas organizações, as quais ele

denomina globalmente “contra-instituições”:

“Tais contra-instituições anulariam precisamente aquelas

operações abstrativas e neutralizadoras mediante as

quais o trabalho e a formação da vontade coletiva estão

200

conectadas nas sociedades modernas a interações regidas

por meios [dinheiro e poder] ” (Habermas, 1987, p. 561,

trad. livre).

O autor considera que essas contra-instituições eliminariam a importância dos meios de

controle (dinheiro e poder) nas organizações (“âmbitos de ação formalmente

organizados”), e restituiriam nessas zonas liberadas o mecanismo da ação que representa

o entendimento. Afirma que o movimento é uma resistência contra a “colonização do

mundo da vida”.

Uma vez que a teoria da ação comunicativa, elaborada por Habermas, constitui-se num

dos pilares fundamentais de nosso estudo (juntamente com o trabalho de Guerreiro

Ramos), nada mais importante e auspicioso para nós do que constatar a relação conceitual

de Habermas com o tipo de organização que estamos a abordar.

Como veremos na análise das organizações apresentada por este estudo, tentaremos

justamente identificar e desvelar, também na perspectiva habermasiana, quais são os

mecanismos da ação que restituem o entendimento na práxis cotidiana das organizações

que serão alvo de nossa pesquisa.

Prosseguindo com este possível levantamento de iniciativas emancipatórias no trabalho,

gostaríamos de apresentar alguns estudos realizados sobre experiências vividas na

província do Québec, Canadá.

201

As empresas alternativas no Québec:

Bhérer & Joyal (1987) efetuaram um levantamento quantitativo várias de empresas

criadas no Québec e, denominadas por eles empresas alternativas. Mesmo afirmando não

ser um levantamento exaustivo, os autores mapearam cerca de 500 empresas, dentre as

quais 126 foram objeto de uma pesquisa mais aprofundada. Os autores definem tais

empresas como,

“Organizações com finalidades econômicas, criadoras de

empregos, cuja uma parte da renda vem da venda de bens

ou serviços susceptível de proporcioná-las o

autofinanciamento, qualquer que seja o seu estatuto

jurídico” (Bhérer & Joyal, 1987, p.26, trad. livre).

Os autores estabelecem quatro características que são observadas com maior ou menor

intensidade em todas as empresas pesquisadas:

“1) O funcionamento apoiado numa gestão coletiva;

2) A busca da rentabilidade sem objetivo de

enriquecimento;

202

3) A produção de bens e de serviços que atendem às

‘verdadeiras’ necessidades da população do seu entorno;

4) A implicação dos trabalhadores que, por seus objetivos

ou suas condições, se situam à margem da sociedade”

(Bhérer & Joyal, 1987, p.23, trad. livre).

Sob o ponto de vista jurídico, das 126 empresas estudadas com mais profundidade, 52 são

cooperativas de produção, 52 são sociedades sem fins lucrativos e 22 são empresas

privadas.

A correlação essencial do trabalho empreendido por Bhérer & Joyal com o nosso, diz

respeito a opção dos autores em mapear majoritariamente organizações econômicas, isto

é, que obtém a sua sobrevivência a partir das operações diretamente desenvolvidas num

dado mercado de bens e/ou serviços. Como os autores bem afirmam em seu estudo, esse

aspecto determina, em grande parte, a natureza e a magnitude do desafio que essas

organizações enfrentam no seio de uma sociedade que imprime e incentiva uma outra

lógica (baseada na razão instrumental) para guiar as ações dos indivíduos que criam e

desenvolvem empresas.

O trabalho de Bhérer & Joyal constituiu-se menos um esforço qualitativo do que

quantitativo. Relativamente ao nosso estudo, podemos afirmar que trilhamos a direção

203

oposta, pois trabalhamos tendo como objetivo elaborar um estudo essencialmente

qualitativo de organizações produtivas de cunho emancipatório.

As empresas alternativas na França:

Nos anos 80 foi realizado um estudo por um grupo de pesquisadores franceses ligados a

Agence de Liaison et de Développement de l’Économie Alternative - ALDEA. Outrequin

(1985), um dos pesquisadores daquele grupo, nos reporta as linhas gerais do estudo:

foram visitadas cerca de 50 empresas alternativas, todas criadas a partir dos anos 70. A

pesquisa foi dirigida a empresas formalmente estabelecidas, isto é, com estatuto jurídico.

Trata-se de empresas, em sua maioria, compostas de até 10 participantes, atuando em

diversos ramos, tais como, construção, gráfica, informática, comunicação, alimentação

(restaurantes), transportes, diversão, reparação e outros.

A motivação para a criação das empresas foi dividida em três tipos de estímulos:

a) “Queremos trabalhar de outra forma, utilizando nossa formação profissional” -

empresas com forte competência técnica e profissional, na qual a ideologia ou a

militância política não são muito evidentes. Encontra-se aí empresas do ramo da

informática, pequenas fábricas, dentre outros;

204

b) “Queremos trabalhar no sentido de nossas idéias” - trata-se muitas vezes de grupos

que vieram de um outro ambiente sócioeconômico, que buscam viver reduzindo ao mais

possível suas contradições. São empresas guiadas por ideiais ecológicos,

terceiromundistas, etc.;

c) “Queremos viver de outra forma e adaptar nosso trabalho ao modo de vida

escolhido”- aqui encontra-se experiências radicais que, para ter sucesso, exigem forte

competência técnica e financeira. Encontra-se nesse segmento experiências de modos de

vida comunitários que questionam profundamente o produtivismo e o consumismo da

sociedade burocratizada.

No entanto, Outrequin chama a atenção de que,

“A empresa não será alternativa pelas motivações dos

seus criadores mas por seu funcionamento. […] Não é

tanto no processo de trabalho que características

alternativas serão reconhecidas (tais como a polivalência

ou a rotação de tarefas que surgem frequentemente nas

pequenas empresas) mas sobretudo na natureza das

relações sociais vividas.

A organização alternativa surge como uma espécie de

teatro onde cada um vive com os outros as relações

205

afetivas e onde cada um, através do coletivo, está em

busca de sua identidade pessoal.

O indivíduo não se engaja somente no nível de suas

competências profissionais mas também de suas

competências humanas.” (Outrequin, 1985, p. 38, trad.

livre).

O autor destaca também os aspectos de transparência, circulação de informações e

preocupação com a formação, todos altamente presentes nessas organizações.

Do ponto de vista da inserção no ambiente externo, Outrequin aponta duas séries de

variáveis que, segundo ele, condicionam a empresa alternativa, a saber:

a) A independência financeira e a autonomia de decisão vis-à-vis as instituições

financeiras e administrativas formais;

b) O pertencimento a uma rede de solidariedade, de suporte e de funcionamento, não

institucional.

Cerca de 50% das empresas estudadas utilizavam redes de suporte financeiro para solver

problemas de capital de giro e similares. Outrequin sublinha a importância de tais redes

para a existência das empresas alternativas na França. As redes extrapolam o apoio

financeiro. O apoio é de natureza ampla, uma vez que tais redes são constituídas por

206

militantes ideologicamente próximos, trabalhadores sociais, amigos pessoais,

trabalhadores do meio associativo local, etc., que também aportam contribuições sob a

forma de trabalho (por vezes não remunerado), orientações e possibilidades de venda dos

produtos. Essa intensa trama de relações sociais acabaria também por criar relações

diferenciadas com os clientes e fornecedores, comparativamente às empresas tradicionais.

Outrequin conceitua como uma sinergia das empresas alternativas com uma rede

ideológica e/ou funcional o fator que as faz adquirir autonomia face as instituições

formais.

Por outro lado, o autor relaciona o esforço das empresas alternativas com uma fonte de

dispersão, de atomização que torna difícil a própria emergência de uma economia

alternativa em larga escala. Ele argüi sobre quais seriam as bases de regulação de uma

economia desse tipo. Um outro fator limitativo apontado diz respeito a implicação global

dos indivíduos numa economia alternativa: a economia e o social, o tempo de trabalho e o

tempo de lazer, os pólos funcionais e relacionais, estariam estreitamente interrelacionados

a tal ponto que tornariam a gestão dos recursos humanos muito mais árdua que a do

capital, exigindo assim uma espécie de “rodízio” para que os fundadores das empresas

alternativas não esgotassem completamente suas energias.

O estudo de Outrequin nos aporta significativas contribuições, apesar de, como a maior

parte dos anteriores, não se ater aos aspectos administrativos das organizações

pesquisadas. Suas observações sobre as externalidades, ressaltando o papel das redes de

solidariedade existentes em França, é de uma importância capital para a compreensão da

207

expansão das empresas alternativas. Sobretudo no tocante a sua inserção no meio social,

aumentando o grau de autonomia perante as instituições formais e acima de tudo

reinaugurando uma modalidade de relação com o social, seja com clientes, fornecedores,

apoiadores em geral, do tipo que lembra o conceito de atividade econômica embedded no

social, elaborado por Polanyi (1975).

No entanto, discordamos de um ponto de vista claramente expresso pelo autor. Trata-se

da pouca importância dada aos processos de trabalho: Outrequin afirma, como vimos

acima, que não são os processos de trabalho, e sim a natureza das relações sociais vividas

que confeririam as “características alternativas” a essas empresas.

Ora, acreditamos veementemente que a definição, a implantação e a prática cotidiana dos

processos de trabalho implicam relações sociais fundamentais para se compreender, em

profundidade, a natureza das organizações produtivas. Fazemos eco a afirmação de

Outrequin que as “características alternativas” se dão menos pelas motivações dos

fundadores que pelo funcionamento das empresas. Mas, daí até isolar os processos de

trabalho da idéia de “funcionamento” e, principalmente, das relações sociais, nos parece

um ledo engano, que pode comprometer uma escolha metodológica no curso da pesquisa.

Não concordamos com a separação entre processos de trabalho e relações sociais. É

evidente que as relações sociais não se resumem aos processos de trabalho mas, estes se

constituem uma faceta essencial das relações sociais numa organização produtiva e, como

tal, não podem ser excluídos da análise que visa desvelar a essência dessas organizações,

208

sob pena de se obnubilar uma fonte preciosa de dados sobre a realidade do grupo

produtivo. A não ser que o pesquisador esteja apenas interessado em situar o seu estudo

num âmbito macro, isto é, no campo da macroeconomia, da sociologia geral ou da ciência

política, por exemplo. Nestes casos, talvez seja mais importante tratar das externalidades

e empreender análises do tipo comparativo do que penetrar na realidade interior do grupo.

O que não parece ter sido o único objetivo da proposta de Outrequin, pois o autor chega a

abordar questões internas específicas, tal como a motivação dos participantes fundadores

e a busca da identidade.

O exame de estudos como o de Outrequin nos provoca insights de grande importância. A

partir de tais estudos, vamos estruturando e repensando a nossa proposta. Partimos do

ponto de vista de que o exame acurado dos processos de trabalho revela aspectos

relevantes das relações sociais. Através deles esperamos penetrar no âmago das

organizações e perceber as suas diferenças em relação às empresas tradicionais,

identificar o tipo de racionalidade que predomina na organização e como ela se concretiza

nos atos dos indivíduos. Para nós, é tão importante compreender os processos de trabalho

que nos dispomos, através da observação participante, a efetivamente vivenciá-los.

No nosso estudo, os processos de trabalho (divisão do trabalho, tomada de decisão,

controle, etc.), adicionados cuidadosamente a outras dimensões, tais como a satisfação

individual e a dimensão simbólica, compõem o que denominamos processos

organizacionais, que em verdade são as variáveis do nosso quadro de análise de dados.

Nos dois capítulos seguintes trataremos com detalhes da composição dessas variáveis. No

209

momento, vale remarcar a nossa visão de que se há algo de “alternativo”, ou ainda,

emancipatório, nesse tipo de empresa, tal característica deve começar pela própria forma

de organizar o trabalho dos seus participantes. O que enseja um movimento centrífugo,

prioritariamente de “dentro para fora” da organização, e não vice-versa.

A análise comparativa entre empresas alternativas da Bélgica, França e Québec:

Joyal (1987) empreendeu uma comparação entre empresas alternativas existentes na

Bélgica, França e Québec. Para tanto, utilizou dados oriundos de três estudos, a saber:

uma pesquisa realizada na Bélgica por Marée (1987), o já citado estudo da ALDEA

(Outrequin, 1985) e o estudo de Bhérer & Joyal (1987) que foi objeto de uma das seções

anteriores.

Inicialmente, Joyal lista algumas características que facilitam o reconhecimento das

empresas que foram examinadas nos três estudos:

“- Descentralização da produção e inserção no tecido

[social] local;

- adaptação da produção às necessidades;

- recurso às tecnologias intermediárias;

210

- experimentação de novas formas de trabalho e

democratização da tomada de decisão.

Para resumir, pode-se dizer que as empresas alternativas

têm uma finalidade ao mesmo tempo social e econômica.”

(Joyal, 1987, p. 3, trad. livre).

Joyal examina algumas dimensões comuns aos três estudos, entre as quais destacamos:

a) Setor da economia - o setor de serviços é o privilegiado nos três casos. A grande

maioria das empresas atuam no terciário;

b) Tamanho - trata-se de microempresas, nas três pesquisas. O número de empregados

varia, em geral de 5 a 10 ;

c) Nível de salários - predominantemente baixos, com relação ao mercado, no Québec e

na França. Não há dados no estudo feito enfocando a Bélgica;

d) Inserção no processo de desenvolvimento local - nos três casos, boa parte das empresas

alternativas encontram-se profundamente vinculadas ao desenvolvimento local. No

Québec tal constatação é evidente, na França a metade das empresas pesquisadas estão

integradas num plano local de desenvolvimento, de natureza institucional ou convivial.

211

Na Bélgica nota-se a atuação destacada das agências de desenvolvimento local no apoio

às empresas;

e) Nível de competência administrativa - muito baixo, nos três segmentos, principalmente

no caso belga, onde os conhecimentos administrativos são bastante falhos.

O autor dá continuidade a discussão, enveredando sobremaneira pelo tema do

desenvolvimento endógeno. A partir de então, dedica a maior parte dos seus comentários

ao caso do Québec — talvez por ser aquele mais conhecido por ele — , afastando-se

paulatinamente de uma análise comparativa propriamente dita.

O estudo de Joyal cumpre uma importante finalidade, a de ajudar a verificar as

correspondências entre empresas consideradas alternativas em regiões diferentes, o que

contribui para a ampliação da visão do fenômeno a nível global.

Infelizmente, também esse estudo não aborda com detalhes a questão administrativa em

si, limitando a constatar a falibilidade dos procedimentos gerenciais. O foco aqui, como

na maioria dos outros estudos, continua dirigido para as externalidades, nesse caso para a

questão do desenvolvimento local.

O caso da Tricofil:

212

Nos anos 80, no Québec, o Institut Québécois de Recherche sur la Culture - IQRC,

empreendeu sob a coordenação de Gabriel Gagnon uma série de pesquisas no quadro de

um grande programa intitulado Les Pratiques Émancipatoires en Milieu Populaire.

Vários trabalhos foram publicados a partir dos estudos realizados, dos quais destacaremos

dois.

O primeiro, é um livro publicado em 1988 por Gabriel Gagnon e Marcel Rioux, sob o

título A propos d’autogestion et d’émancipation, onde os autores apresentam uma série

de iniciativas emancipatórias empreendidas no Québec, ao nível da produção, da cultura e

da habitação. Além disso, promove uma profunda discussão sobre a emancipação social

do ponto de vista sociológico, enfocando o tema movimentos sociais.

Neste livro, dentre outros casos, Gagnon relata a experiência mais significativa de

autogestão no meio industrial já realizada no Québec: o caso da Tricofil. A experiência

tem início no ano de 1972, quando os proprietários da Tricofil, uma envelhecida fábrica

têxtil situada em Saint-Jerôme, no Québec, decidem demitir a maioria dos trabalhadores

devido as dificuldades econômico-financeiras enfrentadas pela empresa. Decisão que

gerou ações dos 125 trabalhadores para salvar seus empregos e, consequentemente, a

própria fábrica: obtiveram um contrato de arrendamento junto aos proprietários, cujos

fundos foram obtidos a partir da mobilização da população local (uma petição com

10.000 assinaturas) pressionando o governo provincial a ceder uma subvenção, sendo

complementados por um pequeno empréstimo do sindicato. Assim, em fevereiro de 1975,

213

os trabalhadores fundaram a Société Populaire Tricofil, empresa privada, registrada como

sociedadede por ações, cujas ações ordinárias eram reservadas aos seus trabalhadores.

Os dois anos que se seguiram forma de grande entusiasmo. Em 1976, a fábrica foi

adquirida definitivamente pelos trabalhadores. Durante esses dois primeiros anos, várias

mudanças fundamentais ocorreram nos processos internos da empresa. Foram criadas

equipes de trabalho que autogeriam a produção, substituindo os antigos contramestres, o

que favoreceu o trabalho coletivo e a polivalência dos operários. Na estrutura salarial,

algumas alterações também foram realizadas: as 52 classes salariais foram reduzidas para

26, os salários horários passaram da faixa de $ 2,18 a $ 5,25 para $ 3,15 a $ 5,50. Desta

forma, buscava-se melhorar o piso salarial e diminuir consideravelmente as diferenças

entre os membros do grupo como um todo, o que acabou por reduzir as diferenças de

remuneração entre sexos e entre os diversos métiers.

Tais inovações duraram dois anos. No entanto, não se chegou a vencer os entraves que se

apresentaram mais tarde. Diversas modificações acabaram por desmentelar todo a

sistemática autogestionária implantada nos dois primeiros anos, principalmente em

função de graves conflitos entre o sindicato e a sociedade fundada.

A experiência se encerra definitivamente em fevereiro de 1982, com o fechamento da

fábrica. Segundo Gagnon, o triste desfecho dessa iniciativa não se deu porque a gestão

operária mostrou-se incompatível com as exigências de produtividade, e sim devido a

outros fatores: os conflitos sindicais (a dificuldade que o sindicato tinha em se adaptar a

um contexto de uma empresa autogerida), o fato de estar situada num ramo de atividade

214

sujeito a moda e dominado por grandes grupos tradicionais e, sobretudo a insuficiência de

fundos para operar a modernização do equipamento e das tecnologias numa fábrica

envelhecida que, desde 1972, estava condenada ao desaparecimento.

Refletindo globalmente sobre a experiência da Tricofil, Gagnon reconhece que,

“Ela teve um impacto profundo no imaginário québécois

mostrando como um grupo determinado de trabalhadores

fôra capaz, em circunstâncias particularmente difíceis, de

fazer funcionar uma fábrica e de esboçar uma

transformação do trabalho cotidiano.

É a Tricofil e a seus líderes que se deve o

desenvolvimento subsequente das cooperativas de

produção [no Québec]. Outros trabalhadores também

inventaram em seguida diferentes formas de cogestão e de

participação para manter as suas fábricas ou lhes dar um

novo início” (Gagnon & Rioux, 1988, p.43, trad. livre).

215

O agrupamento de organismos culturais e comunitários de Rimouski:

O segundo trabalho promovido pelo IQRC, a destacar aqui, é o que foi elaborado por

Jean-Pierre Dupuis sobre a experiência do Regroupement des Organismes Culturels et

Communautaires de Rimouski - ROCCR.

Em 1978, onze organizações comunitárias e culturais da cidade de Rimouski, no interior

do Québec, fundaram o ROCCR, agrupando-se no prédio de uma antiga escola

transformada em sede comum.

Em 1981, o ROCCR já contava com vinte e uma organizações, entre cooperativa de

alimentos naturais, café-restaurante, escola de arte, creche popular, grupos de teatro,

livrarias, grupos musicais, centro popular de documentação, grupo feminista, etc. A

gestão do ROCCR baseava-se numa filosofia autogestionária, através de Conselhos

eleitos pelas organizações agrupadas. Segundo Dupuis,

“Outros reagrupamentos similares existiam no Québec na

época, mas aquele de Rimouski era o único a levar

adiante o engajamento político concernente a autogestão

e a introduzir a noção de ‘cultura popular’ na cidade. Por

isso nós o escolhemos para o nosso estudo” (Dupuis,

1985, p.20, trad. livre).

216

Em setembro de 1981, deflagra-se a primeira grande crise que assola a entidade,

provocando o início de sua ruptura fatal: vários membros manifestaram o seu mal estar

com a atuação do Conselho de Administração, que teria dado atenção somente ao centro

cultural e, por conseqûencia, negligenciado as lutas políticas assumidas por algumas de

suas organizações. É o começo de várias crises que acabaram por conduzir a clivagens no

seio da entidade, que distanciavam participantes que sobreviviam das atividades do centro

e aqueles que não tinham a necessidade fazer dele o seu meio de vida, grupos de

militância política exacerbada e outros que não adotavam essa linha de ação.

As crises aprofundam as divergências no problema enfrentado com a prefeitura local que

insistia em cobrar taxas municipais pelas atividades desenvolvidas no centro. Em 1983, a

cobrança de taxas acumuladas atingiu o montante de $ 60.000, ameaçando o centro de

interdição pelo poder público municipal. Internamente, havia uma grande divisão de

posições, entre os que eram a favor do pagamento das taxas e aqueles que não aceitavam

pagá-las em hipótese alguma, radicalizando o conflito com a prefeitura.

Apesar da posição conciliatória ter vencido, mobilizando os seus partidários uma

campanha de levantamento de fundos e o consequente pagamento das taxas atrasadas, tal

evento marcou a cisão definitiva no interior do grupo como um todo e, também, provocou

uma séria crise financeira, devido ao volume de empréstimos que foi realizado para fazer

face ao pagamento da dívida.

Para Dupuis,

217

“Essa última assembléia geral especial, sobre o

pagamento das taxas, marcou o final do consenso no

ROCCR e a quebra em pedaços de um mosaico frágil. A

partir desse momento, é a guerra fria e a coexistência

pacífica entre os dois lados do Regroupement” (Dupuis,

1985, p.183,trad. livre).

Pouco tempo depois, os grupos de ação política, que não concordaram com o pagamento

das taxas, reuniram-se à parte e realizaram um balanço da existência e atuação do

ROCCR até então, que nos parece elucidativo, apesar de ter sido efetuado apenas por uma

facção, dos grandes entraves da iniciativa. Concluíram tais grupos que a ausência de

objetivos claramente definidos foi o principal erro do projeto; teria sido necessário que,

desde o início, os objetivos perseguidos fossem claros para todos, o que não foi o caso.

Daí, não se contava com outras definições consequentes, tais como: o que é um grupo

popular ? comunitário ? cultural ? que são lutas políticas ? que é autogestão ? quais

grupos admitir no centro ? sob quais critérios ?

No inverno de 1985, a prefeitura abre o seu próprio centro comunitário e cultural,

oferecendo espaços a outras entidades e assumindo a gestão do empreendimento. Um

golpe duro num ROCCR já combalido pelas clivagens internas e problemas financeiros.

Finalmente, em abril de 1986, o ROCCR declara falência, seu principal credor põe o

218

centro à venda e as organizações que ainda lá funcionavam, dispersam-se, perdendo

gradativamente as suas interrelações.

Segundo Dupuis, o ROCCR foi o principal centro de experimentação social e de lutas

urbanas de Rimouski. Em seus oito anos de existência, tornou-se efetivamente um

catalisador de práticas autogestionárias, feministas, ecologistas e culturais. Serviu de

inspiração para a criação de diversos outros centros comunitários e culturais em outras

localidades do Québec.

Os estudos do IQRC, além de muito bem elaborados (do ponto de vista metodológico),

levantam questões que consideramos das mais agudas no que concerne ao funcionamento

de organizações produtivas emancipatórias. Problemas de natureza política, ideologias

em jogo, relações no meio ambiente com organizações burocratizadas (principalmente

estatais), estabelecimento de objetivos, dentre outros que assolam aquelas organizações.

Algumas dessas questões foram incorporadas ao nosso estudo, fazendo parte da

problemática das empresas por nós visitadas, problemática essa para a qual nos dispomos

a fornecer pistas iniciais para a sua compreensão.

As empresas do interesse geral na Alemanha:

219

A noção de “economia do interesse geral” (Gemeinwirtschaft) foi introduzida na literatura

econômica por Friedrich von Herrmann — considerado o mais importante representante

da escola clássica da economia política na Alemanha — num livro publicado em 1832,

em Munique.

Segundo Hesselbach (1973), nesse livro von Herrmann sublinhava o fato de que as

atividades econômicas não existem unicamente para favorecer a particulares e que o

princípio da maximização do lucro não é adotado por todas as empresas. Von Herrmann

defendia a idéia de que um grande número de unidades econômicas buscam sobretudo o

interesse da coletividade.

Baseados na noção de economia do interesse geral e, na experiência vitoriosa de um

grande número de organizações específicas criadas, em sua maioria, após o período de

reconstrução da Alemanha do pós-guerra, vários pesquisadores naquele país

desenvolveram, nos anos 70, o conceito de “empresas do interesse geral” para dar conta

de uma dimensão importante das atividades econômicas alí desenvolvidas. Dentre os

diversos estudos elaborados, podemos indicar os de Hesselbach (1970,1973, 1974),

Neuenkirch (1970), Thiemeyer (1973), Wallraff (1973), Kühne (1973) e Loesch (1977).

As empresas do interesse geral seriam compostas por cooperativas de consumo e aquelas

do “setor livre”, utilizando a expressão de Hesselbach. O autor esclarece que,

220

“Ao lado das cooperativas de consumo existe um tipo de

empresa do interesse geral, recentemente concebido e

desenvolvido pelo movimento operário alemão, que é

caracterizado pelo regime livre do qual ela se beneficia,

se diferenciando assim das empresas públicas e

cooperativas. […] Na maioria dos casos, esse tipo de

empresa toma a forma jurídica de uma sociedade

anônima ou de uma sociedade de responsabilidade

limitada que não se limita a transações com os sócios ou

os membros filiados à organização respectiva.

Rapidamente esboçado, seu caráter se define da seguinte

maneira: grandes associações como os sindicatos

operários, ou de grandes empresas como as cooperativas

de consumo, injetam capital social à disposição dos

fundadores. Essas organizações estabelecem ao mesmo

tempo os objetivos de inspiração pública que as empresas

devem atingir. […] No curso das duas últimas décadas,

um complexo muito considerável de tais empresas do

interesse geral se desenvolveu em diversos setores.”

(Hesselbach, 1973, p. 31, trad. livre).

221

Os ramos de atividade mais comumente procurados para a criação dessas empresas são

aqueles que abrigam as companhias de seguros , hotéis, empresas de construção civil e

imobiliárias.

A primeira empresa a ser criada nesses moldes foi a Volksfürsorge, uma companhia de

seguros, ainda na primeira década desse século. Após períodos de instabilidade, incluindo

a dominação nazista, a empresa foi reintegrada ao controle dos sindicatos de

trabalhadores e das cooperativas de consumo, mais precisamente em 1947. Em 1948 a

companhia já atendia em torno de 1.750.000 segurados. O caráter de interesse geral se

concretiza também pelo investimentos consideráveis em construção social de moradias, à

preços bastante favoráveis.

Digna de destaque é a experiência vitoriosa dos bancos criados pelos sindicatos operários,

dos quais o Bank für Gemeinwirtschaft é o de maior porte. Essa entidade zela pela saúde

financeira dos sindicatos e financia uma série de outras empresas de interesse geral

(Loesch, 1977).

Experiência também digna de destaque é a do banco cooperativo GLS-Bank, criado em

Bochum, na região do Ruhr. Sua trajetória vitoriosa no financiamento de iniciativas

cooperativas foi muito bem analisada por Erismann (1987).

Outras empresas que alcançaram grande êxito, desta feita no ramo da construção de

moradias foram aquelas do grupo Neue Heimat, que por sua atuação efetiva conseguiram

222

fazer baixar não só os preços da construção, como também dos aluguéis residenciais em

várias regiões da Alemanha.

De modo geral, os autores divulgam com ênfase que esse tipo de empresa busca atingir

objetivos ligados ao bem estar geral, seja através de suas atividades (pela realização de

lucros) ou de cotizações individuais. A noção de “bem estar geral” torna-se a pedra

angular dessa concepção.

Hesselbach (1973) afasta os métodos idealista e racionalista (referido à razão

instrumental) para a definição do conteúdo do bem estar geral. Admitindo os princípios

da democracia, do debate político e da pluralidade de interesses, o autor indica que as

bases da determinação do conteúdo do bem estar geral são as normas de valor.

Os autores não enfocam as questões organizacionais internas de tais empresas. Limitam-

se a afirmar que elas utilizam “formas modernas de administração”. As abordagens giram

em torno da importância dessas empresas para o bem estar da coletividade, o seu lugar

numa economia de mercado, as fontes de legitimação desse empreendimento, as relações

com as instituições sociais, a competição com as empresas que visam lucro, dentre outros

temas de amplo espectro. De qualquer sorte, é visível a diferença que há entre as

empresas do interesse geral e as outras que estamos examinando nesta seção. Elas

parecem adotar as mesmas soluções já institucionalizadas pelas empresas tradicionais no

tocante à organização do trabalho.

223

Entretanto, mesmo não inovando em seus processos organizacionais internos, tais

empresas representam a concretização do potencial das organizações operárias alemãs —

suas criadoras — no que tange a implementação de grandes projetos de fundo social.

Grandes empresas fundadas por iniciativa das organizações dos trabalhadores, visando

atingir objetivos que se coadunam com as necessidades dos trabalhadores e da população

em geral. A ação social dessas empresas é o aspecto que mais prende a nossa atenção.

Atuando em mercados altamente competitivos, as empresas de interesse geral enfrentam a

forte concorrência do setor tipicamente privado e fazem valer seus princípios.

Tais princípios se concretizam na noção de bem estar geral, que por sua vez tem o seu

conteúdo definido por normas de valor, e não pela racionalidade utilitarista que guia as

empresas tradicionais. Eis aqui o ponto de contato mais evidente com as demais

experiências examinadas. Ainda que seja o único, não podemos deixar de registrar a sua

importância.

Daí decorre a influência que as informações sobre a existência desse tipo não

convencional de empresa “antiutilitarista” exerce sobre o nosso pensamento e,

consequentemente sobre a concepção de nosso estudo. O fato de se constituir num tipo de

organização bastante diferente das que estudamos, porém, compartilhar com elas alguns

preceitos básicos, acaba por exercer uma influência indireta (contudo importante) no

nosso trabalho, uma vez que amplia a nossa visão, reduz os nossos preconceitos e

flexibiliza a percepção que temos dos fatos do mundo real. Em suma, abrimo-nos mais

224

para a riqueza do enorme leque de experiências inovadoras e solidárias a partir da atuação

de organizações produtivas.

As organizações da economia social:

A economia social foi fundada no séc. XIX. Seu desenvolvimento esteve ligado a

Revolução Industrial. Cooperativas, sociedades de socorros mútuos, associações, foi uma

espécie de resposta às consequências do desenvolvimento fabril que estremeceu todo um

modo de vida e trabalho estabelecido durante séculos (Boursier, 1985 a).

Boursier (1985 a) aponta 1848 como o ano do “boom associacionista” na França: em

torno de 300 associações foram criadas, notadamente na indústria do vidro.

O Conselho Wallon de Economia Social, órgão consultivo criado pelo governo da

Bélgica em 1988, adotou a seguinte definição da economia social:

“A economia social se compõe de atividades econômicas

exercidas por sociedades, principalmente cooperativas,

de organizações mutualistas e de associações cuja ética

se traduz pelos princípios seguintes:

225

1) finalidade de serviço aos membros ou à coletividade

antes que de lucro;

2) autonomia de gestão;

3) processo de decisão democrático;

4) primazia das pessoas e do trabalho sobre o capital na

repartição das rendas.” (Defourny, 1992 a, p. 5, trad.

livre).

As organizações da chamada economia social na França vêm se expandindo

extraordinariamente. Em 1985, Sommaire estimava que,

“Produzindo bens e serviços em todos os campos da

atividade humana, a economia social, que emprega

1.100.000 assalariados, representa um pouco mais de 6%

do PNB, uma parte modesta mas não negligenciável da

economia nacional.” (Sommaire, 1985, p. 3, trad. livre).

Sua marca distintiva das demais empresas capitalistas tradicionais (que visam sobretudo a

maximização do retorno do investimento financeiro) estaria centrada em pricípios e numa

ética assim resumidos por Sommaire:

226

“- Liberdade de adesão e de saída;

- não prioridade à busca do lucro individual;

- gestão democrática;

- reservas indivisíveis;

- solidariedade;

- responsabilidade;

- independência.

‘Livres empresas coletivas’, as empresas da economia

social representam então uma outra forma de empreender

portadora de relações sociais diferentes no seio das quais

o indivíduo prima sobre o dinheiro.” (Sommaire, 1985, p.

3, trad. livre).

No mesmo estudo, Sommaire elabora uma lista dos tipos de organizações componentes

da economia social em três setores:

a) Setor da cooperação: cooperativas operárias de produção, cooperativas de

consumidores, de alojamento, de comerciantes varejistas, de artesãos, de transportadores,

agrícolas, bancos e instiuições financeiras cooperativas, cooperativas escolares;

227

b) Setor da mutualidade: mutualidade de bens (seguros de caráter mútuo), mutualidade de

pessoas (sociedades mutualistas de prevenção em matérias sanitária e social);

c) Setor das associações administrativas: cerca de 135.000 produzindo bens e serviços

nos ramos do turismo, lazer, cultura e educação popular, formação, atividades sociais, etc.

Segundo Archambault (1985), nos três setores da economia social, são as associações

administrativas que são as mais desconhecidas e heterogêneas. A autora esclarece a sua

natureza:

“As associações administrativas vêm da lei de 1901; elas

produzem serviços, comerciais ou não, destinados às

residências; elas empregam pessoal assalariado e

voluntários, gerem equipamentos mais ou menos pesados

e preenchem uma missão de interesse geral, ou mesmo de

serviço público, o que legitima um financiamento parcial

sob a forma de subvenções.” (Archambault, 1985, p. 30,

trad. livre).

Archambault estimava a existência de 400.000 a 600.000 organizações desse tipo na

França em 1985.

228

Defourny (1992 a) apresenta um levantamento quantitativo das organizações da economia

social na Bélgica efetuado em 1990, indicando, dentre outras informações, que as

cooperativas detinham 1.623.330 membros e geravam 34.113 empregos diretos; as

organizações mutualistas contavam com 5.907.124 membros, empregando 11.475

pessoas; por fim, as associações contavam com mais de 2 milhões de membros,

empregando 209.100 trabalhadores.

Em outro estudo, Defourny (1992 b) indica as funções econômicas que as associações

assumem, vis-à-vis o Estado e as empresas privadas tradicionais:

a) Função de produção e alocação de bens e serviços quase coletivos - notadamente nos

setores de saúde, educação, redução da deliquência. Aqui, o Estado participa com a

cobertura quase total dos custos operacionais das associações;

b) Função de redistribuição de renda - destaca-se nessa função o papel das associações

filantrópicas e humanitárias. Segundo Defourny, a bonificação fiscal concedida em vários

países aos provedores de donativos a essas associações prova o caráter resdistributivo

dessa função;

c) Função reguladora - implementação de projetos de redução do desemprego, de

descentralização administrativa e similares.

229

Os estudos nessa área tendem a se avolumar, consolidando um campo específico da

ciência econômica. Seu foco de interesse, obviamente, são as mutações nas relações

macroeconômicas atuais e futuras a partir da interação global das organizações da

economia social com os outros agentes do sistema econômico. Esse foco define os temas

de pesquisa e engaja os estudos daí derivados numa direção claramente definida. O que

nos fornece uma visão ampla da questão, ao menos no sentido econômico.

Por conseguinte, as variáveis de caráter interno das organizações não fazem parte dos

temas desenvolvidos. Os autores limitam-se a indicar que a gestão dessas organizações é

“democrática”. Na definição de economia social, a expressão “autonomia de gestão” quer

dizer exatamente a independência administrativa face aos organismos estatais.

Contudo, ao observarmos a identificação dos princípios e da ética que rege as

organizações da economia social, percebemos a presença de valores emancipatórios tais

como a solidariedade, a primazia das pessoas sobre o lucro, dentre outros. Tal percepção

nos faz deduzir que há uma interpenetração parcial entre o fenômeno que estudamos aqui

e aquele que é o objeto da economia social. Supomos que dentre as organizações da

economia social, podería-se encontrar algumas organizações substantivas de várias

matizes, o que não significa, em absoluto, que estaríamos aqui a estabelecer uma relação

causal direta.

As organizações não-governamentais e o Terceiro Setor:

230

Nas últimas décadas, ganhou destaque em todo o mundo a criação, no seio da sociedade

civil, de pequenas organizações atuando em vários campos da ação política, serviços

públicos e cultura em geral. Essas entidades, em geral denominadas “organizações não-

governamentais” ou simplesmente ONG’s, compõem uma vasta dimensão da ação

politicamente organizada nas sociedades contemporâneas chamada “Terceiro Setor”, ou

ainda “Terceiro Sistema”.

As definições, nesse campo, não são muito claras. Há uma zona difusa, na qual os

conceitos se confundem, se mesclam e causam uma certa confusão para aqueles que se

aventuram a estudar algum aspecto do campo, suscitando uma série de dúvidas. Por

exemplo, seriam semelhantes o Terceiro Setor e a Economia Social ? O Terceiro Setor

comportaria também empresas que desenvolvem atividades comerciais ?

Diversos autores, como por exemplo Joyal (1984), consideram que o Terceiro Setor

comporta tanto atividades sem fins lucrativos como também aquelas de natureza

lucrativa. Joyal assim caracteriza as organizações que visam fins lucrativos no interior do

Terceiro Setor:

“Trata-se nesse caso de iniciativas que tendo uma

finalidade social — pelos produtos ou serviços vendidos

ou pelo tipo de indivíduos implicados — visam gerar

rendas. A maximização dos dos lucros se encontra

231

excluída mas a autonomia financeira não é tornada

possível senão pela rentabilidade dessas empresas.”

(Joyal, 1984, p. 11, trad. livre).

Vemos aqui uma opção de consideração das organizações do Terceiro Setor que se

encaminha nitidamente para uma grande semelhança com aquela empregada pelos autores

que trabalham o campo da economia social. A posição de Joyal, repetimos, é adotada por

vários autores.

Devido ao que foi dito acima, torna-se necessário, cremos, esclarecer o significado dos

termos que utilizaremos nesta seção. Uma vez que já tratamos da economia social na

seção precedente, não gostaríamos de empregar um conceito de Terceiro Sistema que

recaísse no mesmo quadro de significação e referência.

Portanto, no nosso estudo, a noção de Terceiro Sistema ou Terceiro Setor exclui toda e

qualquer iniciativa organizada que tenha como mecanismo essencial (como na definição

de Joyal) de sobrevivência e da autonomia financeira a geração de rendas e lucros, isto é,

exclui terminantemente todas as organizações que sobrevivam prioritariamente da venda

de seus serviços ou produtos.

Consequentemente, as ONG’s, na concepção aqui adotada, não têm fins lucrativos

(Landim, 1988; Santana, 1992).

232

Nem por isto todas as ONG’s estariam excluídas da categoria de organização produtiva.

Elas produzem serviços de vários tipos, assistenciais, educacionais, jurídicos, etc., como

veremos mais adiante, embora a sua área principal de atuação seja a da ação política.

Nessa linha de pensamento, encontramo-nos com a visão de Nerfin, ao centrar a definição

de Terceiro Sistema no cidadão:

“Em contraste com o poder estatal — o Príncipe — e o

poder econômico — o Mercador — há um poder imediato

e autônomo, às vezes patente, sempre latente: o poder do

povo. Alguns dentro do povo desenvolvem uma

consciência disso, se associam e atuam com outros e

assim se tornam cidadãos. Os cidadãos e suas

associações ou movimentos, quando não buscam nem

exercem o poder estatal, nem o econômico, constituem o

Terceiro Sistema.” (Nerfin, 1988, p. 2, trad. livre, grifo

nosso).

A expansão das ONG’s é impressionante. A este respeito, Nerfin (1988) nos fornece os

seguintes dados: a 24ª edição do Anuário de Organizações Internacionais (1987/1988)

indica 14.998 ONG’s com laços internacionais; em 1981, 1.702 ONG’s foram mapeadas

no âmbito da OCDE; em 1978, 1.400 foram levantadas na Índia.

233

No Brasil, o Fórum de ONG’s Brasileiras preparatório à Conferência da Sociedade Civil

sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a qual se desenrolou paralelamente a

Eco/Rio/92, reuniu cerca de 1.200 entidades (Relatório do Fórum de ONG’s Brasileiras,

1992).

Visando elaborar uma classificação das atividades (não excludentes, segundo o autor)

desenvolvidas pelas organizações do Terceiro Setor, Nerfin (1988) divide-as em três tipos

distintos:

a) Atividades orientadas para um projeto imediato - visam resolver uma situação de

crise, solucionar um problema específico ou lograr um objetivo geral, por exemplo,

organizar o povo, especialmente os pobres, melhorar a vida cotidiana e o meio ambiente,

obter apoio técnico-financeiro a iniciativas locais, promover o teatro popular, relacionar a

educação com a produção, assegurar o acesso igual ao emprego, compartilhar tecnologias

alternativas, pôr ao alcance do povo os serviços de profissionais notadamente os de

advocacia, medicina, ensino e outros;

b) Atividades de advocacia - ações para advogar a paz, uma nova ordem econômica

internacional, melhores intercâmbios entre os países do Terceiro Mundo, reconhecimento

e respeito às minorias, consumo de produtos locais, proteção do meio ambiente e pelo

ecodesenvolvimento, pelo pluralismo cultural, libertação de presos políticos, etc.;

234

c) Atividades relacionadas à responsabilidade pública - criação de organizações tais

como o Tribunal Russel, o Tribunal Permanente dos Povos, a Organização Internacional

da União de Consumidores, etc.

No Brasil, as ONG’s se originaram a partir dos “centros de educação popular” ou

“centros de promoção social” que tomam corpo na década de 70 . Daí, passaram a

desenvolver um trabalho social de apoio aos setores populares, com ênfase nas ações

voltadas para a abertura de processos democrático-participativos em vários áreas

(Santana, 1992).

A reivindicação de um novo modelo de desenvolvimento socio-econômico, é um dos

temas que balizam a ação das ONG’s, permitindo assim que percebamos alguns dos

valores que povoam o seu ideário:

“O desenvolvimento unilinear que conhecemos

demonstrou ser a pura e simples imposição de um ideal

único de sociedade sobre muitas outras formas de

sociabilidade que perderam o seu poder de afirmação e

até mesmo a legitimidade e o direito de existirem. […]

Queremos um desenvolvimento embasado em valores e

princípios universalmente aceitos, a fim de que não venha

a ameaçar nenhum desses direitos.

235

O desenvolvimento que queremos é aquele em que os

povos e os grupos sociais possam definir seus anseios e

construir uma gestão democrática da diversidade, tendo

em vista o bem-estar de toda a humanidade. Portanto, o

compromisso fundamental desse novo modelo de

desenvolvimento é, acima de tudo, a manutenção da vida

sob as suas mais variadas formas. (Relatório do Fórum

das ONG’s Brasileiras, 1992, p. 163).

Complementando a explicitação dos valores, podemos também destacar os seguintes

trechos do Manifesto das ONG’s Brasileiras:

“Jamais em toda a história da civilização, a humanidade

se defrontou com desafios de igual magnitude como os

que hoje se apresentam.

O modelo econômico internacional, implantado ao longo

de anos de dominação, levou à concentração da riqueza

nas mãos de pequena parcela da população, condenando

a absoluta maioria a uma situação de miséria crescente, e

promoveu o comprometimento das condições necessárias

à reprodução da vida.

236

[…] O desafio das ONG’s e movimentos sociais face a

todo esse quadro é o de forçar o debate e obter novos

posicionamentos oficiais frente à dicotomia entre norte e

sul, ao equilíbrio homem/mulher/natureza, à socialização

dos recursos, à democratização da tomada de decisões, à

revisão dos termos de comércio internacional e da dívida

externa.” (Relatório do Fórum das ONG’s Brasileiras,

1992, pp. 13-14 ).

Apesar de já contarmos atualmente com um grande número de publicações enfocando o

Terceiro Setor e as ONG’s, dificilmente pode-se encontrar estudos que abordem

prioritariamente aspectos de gestão dessas organizações, seus processos administrativos

internos. A quase totalidade dos estudos disponíveis versam sobre aspectos gerais e

externos das ONG’s, como por exemplo as relações delas com os organismos estatais,

com os partidos políticos, com as agências financiadoras, ou, numa perspectiva ainda

mais ampla, estudos que visam delinear o Terceiro Setor como um todo face às diversas

noções e estratégias de desenvolvimento social e/ou econômico. Face a esta configuração,

o estudo que apresentaremos a seguir parece ser uma das poucas exceções.

O estudo de Santana (1992) sobre o Projeto Axé:

Um dos estudos nesse campo abordando alguns aspectos administrativos foi realizado por

Santana (1992). Em certa parte do seu estudo, a autora faz uma breve análise de uma

237

ONG, o Projeto Axé. Essa organização foi criada em Salvador no ano de 1989, a partir de

uma parceria entre duas outras ONG’s: o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de

Rua e uma organização italiana, a Terra Nova. O Projeto Axé visa dar apoio aos meninos

e meninas de rua de Salvador, propiciando-lhes educação e novas perspectivas de vida.

A organização contava, em 1992, ano de realização do estudo, com cerca de 70 membros,

entre profissionais e estagiários (29). Em seguida, resumiremos as afirmações da autora

com relação aos aspectos administrativos, ao passo que faremos algumas observações:

a) Seleção do pessoal - o processo de seleção é totalmente informal, prevalecendo, como

referência, valores socio-políticos, atributos de personalidade e uma avaliação informal

de conhecimentos e habilidades;

b) Processos decisório e de avaliação - as decisões são tomadas em reuniões semanais.

Das reuniões fazem parte os dois coordenadores gerais, a assessoria (4 profissionais das

áreas de cultura, direito e sociologia) e a equipe técnica (5 profissionais das áreas de

pedagogia e serviço social). Nenhum dos profissionais do grupo chamado de “educadores

de rua” (que somam 21), que são aqueles que realmente lidam com as crianças nas ruas,

participam das reuniões. Fato que, para nós, demonstra uma clara diferenciação

hierárquica entre os planejadores e os executores. A avaliação das ações também é feita

durante essas reuniões, da qual os educadores também não participam;

238

c) Comunicação - a autora afirma haver uma transparência nas relações entre os membros

da equipe de trabalho que explicita a certeza do acesso a qualquer tipo de informação

sobre a organização. Porém, afirma também que todos os entrevistados na sua pesquisa se

ressentem da ausência de um sistema formal de informações que permita a geração de

indicadores e a recuperação dos dados da organização;

d) Autoridade - Nesse ponto, notamos algumas contradições e imprecisões nas afirmações

da autora, vejamos a seguir. Ela inicia os comentários nesse item, declarando que,

“A idéia de autoridade, para os membros do Axé, não

reside em um indivíduo, independente da posição que

ocupa ou do conhecimento que detenha, mas no grupo

como um todo que, através do Gerenciamento, alcança o

‘processo de consenso’. Advém, daí, a legitimidade de

uma decisão, o que a leva a deter o peso da autoridade.

[…] O Projeto Axé reconhece que a participação é uma

das bases da democratização institucional e, atuando nos

moldes de uma organização autogestionária, procura

estabelecer relações de trabalho não hierarquizadas mas

com profundo respeito à pluralidade. Desenvolvem,

assim, uma cultura fortemente influenciada pelas idéias

239

de uma organização alternativa, da participação e do

consenso.

[…] Embora considerem que o programa é bem sucedido

em sua intenção de democratizar as decisões e as

reflexões internas, atestaram [os entrevistados]

entretanto, a forte influência que o coordenador exerce

sobre o grupo. (Santana, 1992, pp. 80-81).

Infelizmente, a autora parece confundir uma série de conceitos, tais como participação,

consenso, autogestão e hierarquia. Taxar de autogestionária uma organização que exclui

das decisões todos os seus membros que atuam diretamente na produção, na atividade-

fim da entidade, é desconhecer o significado explícito do termo. Do mesmo modo,

afirmar que nessa organização estabelece-se relações de trabalho não hierarquizadas e que

o peso da autoridade está numa decisão é, respectivamente, confundir conceitos e,

despersonalizar excessivamente as relações sociais no seio daquele grupo de trabalho.

Um indício do grau de personalização das relações está no fato de que os entrevistados

reconhecem a “forte influência” do coordenador geral. A autora também não explicita o

que quer dizer “Gerenciamento”, o qual, segundo ela, faz alcançar o “processo de

consenso”.

Vale ressaltar que a autora declara que no processo de coleta de dados, entrevistou os dois

coordenadores gerais, todos os membros da assessoria e da equipe técnica e, apenas um

240

membro do grupo dos “educadores de rua”. Assim, podemos verificar que todos aqueles

que tomam parte nas decisões foram ouvidos, todos os que estão, na prática, no real nível

hierárquico, enquanto apenas um (dentre todos que atuam na “linha de frente” da

organização) dos excluídos do processo decisório foi ouvido.

A pesquisa em organizações produtivas não convencionais de cunho emancipatório deve

ser planejada e realizada com um cuidado redobrado, pois o pesquisador deve se precaver

sempre contra a possibilidade de envolver-se emocionalmente em excesso com a

dimensão simbólica ou com a ação social da organização que pretende analisar, sob pena

de perder a condição de objetividade mínima que um estudo científico exige e, assim

perder o senso crítico. Eis um dos aprendizados que a leitura do estudo acima nos fêz

reforçar.

Malgrado alguns problemas na condução da pesquisa e em algumas conclusões

veiculadas pelo estudo de Santana (1992), louvamos a iniciativa da autora em ressaltar

aspectos de ordem administrativa duma ONG, constituindo um dos poucos trabalhos

disponíveis nesse campo que aborda dimensões essencialmente do interesse da teoria das

organizações.

Um olhar geral para os estudos sobre ONG’s nos faz supor que, pelos valores contidos na

base dessas organizações, pelos seus objetivos e provavelmente pelas práticas de algumas

delas, poder-se-á em seu seio encontrar diversas organizações onde a racionalidade

241

substantiva possa talvez ser predominante. Não há dados suficientes para taxar o que

acabamos de dizer como uma afirmação, vale, repetimos, apenas como suposição.

As ONG’s, componentes do Terceiro Setor (de acordo com a definição aqui adotada),

foram criadas na mesma época da expansão do fenômeno das organizações substantivas,

com ideais e valores muito semelhantes. Ao constatarmos tais correspondências, bem

como a sua pluralidade, somos inclinados a colocar a hipótese de que dentre elas várias

podem ser substantivas. É obvio que somente o exame acurado de seus processos

organizacionais, das ações efetivas de seus membros, é que se poderia constatar ou não a

veracidade de uma tal hipótese. O fato de ser ONG não acarreta, absolutamente, a

conceituação de organização substantiva. Uma coisa não remete diretamente a outra. Uma

bela declaração de princípios e valores, ou ainda a adoção de determinados objetivos

políticos não determina, em si mesmas, a natureza da racionalidade que predomina numa

organização.

No nosso estudo não tratamos de nenhuma ONG entre as organizações analisadas. No

entanto, a consideração de algumas ONG’s como componentes da vasta constelação das

organizações produtivas não convencionais de cunho emancipatório, é uma atitude

necessária a qualquer mapeamento global nesse campo, além de nos aportar as lições

específicas explicitadas acima.

A seguir, gostaríamos de direcionar um pouco o presente levantamento ao espaço rural,

palco de inúmeras iniciativas emancipatórias.

242

As empresas associativas em meio rural na América Latina:

Em 1988, a CEPAL em conjunto com a FAO elaboraram um estudo sobre o

desenvolvimento de empresas associativas rurais em vários países da América Latina,

como produto dos programas de reforma agrária empreendidos na região. A seguir,

destacaremos os aspectos referentes a organização e a administração dessas empresas,

subdivindo, por seções, o caso de cada país abordado no referido estudo.

Colômbia:

Na Colômbia, as principais formas associativas de produção agropecuária são as

empresas comunitárias promovidas pelo Instituto Colombiano de Reforma Agrária -

INCORA. A estrutura de propriedade implica que todos os sócios sejam donos da

empresa; o trabalho comum indica que todos os proprietários são trabalhadores

permanentes, a administração realizada em comum configurando empresas

autogestionárias e a participação igualitária no resultados auferidos.

As vantagens que poderiam advir de tal configuração empresarial, em verdade não foram

aproveitadas. As causas principais foram: a restrição dos serviços de apoio ao crédito,

assistência técnica e capacitação, fornecidos pelo INCORA; os problemas de integração

243

surgidos entre os sócios das empresas devido a sua heterogeneidade de origem e de

experiência de trabalho; e a carência prolongada de um estatuto jurídico para as novas

formas associativas.

O apogeu da constituição das empresas se deu entre 1970 e 1974, quando cerca de 1.300

unidades foram criadas. O aporte dos camponeses à empresa consistia em trabalho

pessoal e terra em propriedade ou usufruto. O organismo máximo era a Assembléia Geral,

a qual tomava decisões e delegava a sua execução à Junta de Administração. A avaliação

e o controle, entretanto, estavam a cargo do Estado, através de um fiscal que exercia o

controle também sobre a distribuição do excedente.

As dificuldades na gestão das empresas comunitárias surgiram por dois motivos

fundamentais, um produtivo e outro financeiro. Apesar do tamanho médio das

propriedades se situar entre 22 e 31 hectares, somente 10% a 15% dessa superfície era

considerada produtiva para a agricultura, gerando assim uma escassa rentabilidade. Por

outro lado, os juros dos créditos concedidos eram sempre muito elevados, ocasionando

diversas vezes a venda de parte dos ativos para o seu pagamento, prejudicando o processo

de capitalização.

O estudo conclui que o baixo impacto do modelo comunitário ou associativo na

Colômbia, foi resultado da pouca importância dada à reforma agrária pelo Estado.

244

Chile:

No Chile, a avaliação de formas associativas enquanto coletivo de sócios,

necessariamente deve realizar-se distinguindo os dois períodos de governo durante os

quais se desenvolveu o processo de reforma agrária.

O primeiro período diz respeito ao governo do presidente Eduardo Frei. Os camponeses

percebiam com relativa clareza que o processo expropriatório os conduziria à propriedade

da terra. Isto permitia alcançar um razoável consenso entre os camponeses da área

reformada, o que ajudou decisivamente a organização deles e reduziu a ocorrência de

conflitos. A fórmula empregada pelo governo permitia aos camponeses organizar-se e

associar-se ao Estado para enfrentar as tarefas do desenvolvimento produtivo e da

administração das ex-fazendas. O que contribuiu para estabelecer uma verdadeira

organização camponesa em cada assentamento.

A eleição democrática dos dirigentes e membros de cada comitê que formavam o quadro

orgânico de cada assentamento estimulou a participação de todos nos momentos mais

difíceis, isto é, durante e depois da expropriação, quando era indispensável substituir a

presença dos antigos patrões. Em 1970, já existiam cerca de cem cooperativas.

No período seguinte, durante o governo Allende que se inicia em novembro de 1970,

instaura-se uma nova forma de organização, chamada Centros de Produção, com um forte

caráter estatal, sendo reduzida a participação camponesa em sua gestão.

245

Nessa fase, o ritmo da reforma adquire tal intensidade que as decisões de expropriação

superam a capacidade institucional dos organismos governamentais para atender aos

requerimentos dos camponeses, os quais em número importante de unidades expropriadas

permanecem desorganizados e sem lograr dar continuidade ao processo produtivo.

Consequentemente, à margem das formas oficiais, os camponeses se organizam

informalmente em comitês, nem sempre com sucesso.

Daí resulta que em um grande número de propriedades expropriadas não se constituiu

nenhum tipo de organização camponesa, sendo então restituídos aos seus antigos donos a

partir de 11 de setembro de 1973.

Equador:

No Equador, observa-se no caso dos produtores com menos de 5 hectares e agrupados em

comunas, uma contradição entre o modelo comunal associativo (implícito na estratégia de

sobrevivência) e os modelos orientados para gerar economias de escala. A legislação

subordina a gestão comunal ao controle governamental institucional.

O esforço estatal para a gestão dessas formas associativas parece, então, orientado para

modernizar um campesinato considerado passivo e com escasso conhecimento da

246

realidade, quando o mais adequado talvez teria sido orientá-lo e apoiá-lo para mobilizar

os recursos próprios e desenvolver de forma participativa as potencialidades inerentes a

cada grupo, que eram bastante heterogêneas, o que poderia ter enriquecido a experiência.

O organismo estatal encarregado da reforma agrária, desde o início, estabeleceu um

controle tutelar ao substituir o patrão anterior nas funções de gestão, sob a justificativa de

“preparar os sócios para a autogestão”. No entanto, continuou decidindo sobre a

orientação do processo produtivo e implantou uma relação paternalista através dos seus

técnicos.

Contudo, em algumas empresas cooperativas da região costeira, notadamente aquelas

ligadas ao cultivo do arroz, constata-se o desenvolvimento de uma razoável organização,

que apesar de dar-se sobre uma base pouco homogênea, tem permitido estabelecer

articulações em federações. A produtividade, as receitas e a qualidade de vida dos seus

sócios são notavelmente melhores do que entre os trabalhadores não cooperativados.

El Salvador:

Em El Salvador, no ano de 1980, vários decretos governamentais dinamizaram

substancialmente a reforma agrária, incentivando a constituição de formas associativas do

tipo cooperativo.

247

Consequentemente, em 1986 as cooperativas formadas somavam 311, contando com uma

área total de 210.783 hectares e mais de 22.000 sócios.

Cerca de 79% das cooperativas funcionavam em regime de cogestão empresarial. Esta

atividade se concretizava em três áreas de participação: tomada de decisões, planejamento

de atividades e tramitação de créditos. Mediante a cogestão, atingira-se bons níveis de

organização e controle, retorno social e aumento da produção.

Os resultados até 1988 eram animadores, dadas as condições gerais da zona rural

salvadorenha: 46% possuíam escola, 35% desenvolviam programas de habitação

mediante sistema de mutirão onde os sócios entravam com a mão de obra, 19% possuíam

clínica médica, 35% proporcionavam remédios gratuitos aos seus associados, 39%

prestavam serviços médicos hospitalares e 26% contavam com estabelecimentos

comunais de bens de consumo não agrícolas.

Honduras:

Em Honduras, a cessão de terras para a constituição de empresas associativas tem sido

muito lenta. As terras expropriadas correspondem a apenas 16% da superfície total

afetada pela reforma agrária, o restante foi feito a partir das terras do Estado. Nesse

contexto, as empresas associativas são responsáveis somente por 9% da força de trabalho

no setor agropecuário.

248

Em geral nas formas associativas a organização jurídica é débil e a administração muito

irregular, o que evidencia as limitações de apoio institucional assim como do tipo técnico-

produtivo. 75% das formas associativas não têm títulos de propriedade, 40% operam sem

estatutos e 44% sem regulamentos internos.

O lento desenvolvimento das empresas associativas redundou na persistência de uma

baixa qualidade de vida. Estima-se que 75% das famílias nos assentamentos coletivos não

conseguem satisfazer as suas necessidades básicas, 88% das casas não dispõem de água

potável, sanitários e instalações elétricas.

O Instituto Nacional Agrícola ainda não estabeleceu um prazo para abandonar a sua

função gerencial nas formas associativas; o demasiado paternalismo institucional vem

sendo reiteradamente criticado pelo campesinato, pois, segundo ele, tem limitado a

participação real e ativa em seu próprio desenvolvimento.

Panamá:

No Panamá, a origem das formas associativas de produção partiram de três vertentes: as

lutas do movimento camponês, a política de reforma agrária e a política de modernização

da agricultura. As três deram origem a dois tipos de organização: os assentamentos

camponeses e as juntas agrárias de produção.

249

O assentamento camponês é uma forma de transição até a entrega individual da terra para

a sua exploração. O prazo da transição é de 3 a 5 anos. O seu objetivo é organizar o

campesinato para a forma comunitária, contando com o apoio do Estado.

As juntas agrárias de produção são formas associativas mais avançadas que visam

incrementar o trabalho comunitário, desenvolver a consciência e participação grupal,

elevar o nível educacional e realizar transações comerciais como outros setores e esferas

de atividades do país.

As formas associativas panamenhas obtiveram sua legalização em 1983, como resultado

da pressão exercida pelo movimento camponês, organizado há 17 anos. Mediante a

legalização, reconheceu-se oficialmente o assentamento camponês como unidade de

produção coletiva, orientado ao uso de tecnologia moderna, como instrumento factível de

transformação da agropecuária.

A administração e a organização interna das formas associativas correspondem a três

instâncias hierarquizadas: a Assembléia Geral de Sócios, o Comitê Executivo e o Comitê

de Trabalho. Por sua vez, os assentamentos e as juntas agrárias de produção se agrupam

em Federações Provinciais, as quais têm uma Junta Diretiva, eleita pelos delegados das

unidades filiadas. As Federações Provinciais se agrupam na Confederação Nacional de

Assentamentos Camponeses, instância máxima das organizações camponesas.

250

A organização do trabalho é autogestionária. Os planos de trabalho são elaborados e

aprovados pelos sócios no Comitê Executivo e na Assembléia Geral. Para a sua

elaboração, recebem assitência técnica dos técnicos do Ministério do Desenvolvimento

Agropecuário. As terras recebidas pelas organizações camponesas associativas foram

desde sempre sob a forma de patrimônio coletivo. Os bens e melhorias incorporados

formam também uma parte do patrimônio coletivo.

As condições de vida dos camponeses organizados em empresas associativas tem

melhorado notavelmente. Todos os assentamentos coletivos possuem escola, 95% contam

com canalização de água potável e 40% com serviços de luz elétrica. Observa-se uma

considerável infraestrutura de estradas, centros de saúde e aquedutos rurais. A

capacitação para a participação na produção por meio do trabalho comunitário alcançou

mais de 80% dos sócios de todos os assentamentos coletivos.

Peru:

No Peru, a promoção de empresas associativas foi paralisada a partir de 1976. Desde esse

ano, começaram a debilitar-se as empresas públicas encarregadas da capacitação e da

assistência técnica. Adicione-se também a falta de dispositivos legais de normatização

das formas associativas.

251

A gestão e a organização empresarial se deu de forma curiosa: os beneficiários da reforma

agrária que passaram a integrar as empresas associativas, na maioria dos casos, foram as

famílias já estabelecidas nas grandes fazendas. Nelas, os chefes de família passaram a ser

os sócios das empresas, os demais familiares e agregados ficaram como trabalhadores

eventuais que recebiam salário e não tinham direito ao excedente ! Em função dessa

distorção, produziram-se outras, por exemplo, a tendência a reduzir a jornada de trabalho

por parte dos sócios para viabilizar a contratação de um número maior de trabalhadores

eventuais, os quais, como só trabalhavam no campo e não participavam da gestão,

estabeleciam uma reduzida identificação com a empresa associativa. Além disso, se

produziu uma confusão entre os membros no que diz respeito ao seu papel de sócio e de

trabalhador, o que afetou significativamente as iniciativas produtivas.

Por se tratar de uma estrutura administrativa imposta, é comum encontrar processos

decisórios voltados somente para o curto prazo, e se observa a ausência de programas de

coordenação, supervisão e controle das atividades de gestão empresarial.

Tudo isso desembocou numa escassa autonomia do campesinato, que dificulta o

cumprimento de produção dos objetivos das empresas associativas. Assim, tende a

ampliar-se a brecha entre a demanda e a oferta de serviços no assentamento coletivo, o

que impulsiona os camponeses a optar por uma parcelização de terras em busca de uma

gestão direta e individual que lhes permita assegurar um bem estar futuro.

Finalizando a apresentação de aspectos do estudo promovido pela CEPAL e FAO,

transcreveremos o caso da República Dominicana.

252

República Dominicana:

Nesse país, o sistema de produção coletiva foi legalmente estabelecido em 1972. Apesar

disso, entre 1973 e 1978, 70,3% das terras cedidas pela reforma agrária foram entregues a

assentamentos individuais.

A modalidade de organização de assentamentos coletivos consistiu na criação de

associações representativas dos parceiros, que formavam parte de outra instância superior

chamada Conselho de Administração, também composto pelos técnicos do Instituto

Agrário Dominicano e um representante do poder executivo governamental. Esse

conselho encarregava-se do regulamento, da tomada de decisões e da supervisão das

associações.

A gestão dos assentamentos coletivos foi pouco programada. Isto é, simplesmente se

juntaram parceiros individuais em uma superfície para que realizassem trabalhos

coletivos. A gestão dos assentamentos não passou às mãos do camponeses até 1978, pois

a administração e a propriedade da terra eram mantidas com o Estado, os beneficiários

tinham o usufruto mediante a entrega de títulos individuais provisórios.

Após 1978 a política agropecuária foi reformulada. Foram estabelecidos objetivos de

médio e de longo prazo e também programas de apoio a produção, organização e

253

capacitação. Adotou-se a decisão de distribuir a terra exclusivamente de forma coletiva,

privilegiando-se os camponeses sem terra.

Para promover a maior participação do campesinato, foi proposta a criação das Empresas

Camponesas da Reforma Agrária - ECRA, que funcionariam como empresas privadas

geridas pelos próprios produtores. O Instituto Agrário Dominicano passaria a ter apenas

uma função de assessoria, sem tomar decisões. Esse projeto não contou com a aprovação

do parlamento, embora a autogestão tenha se concretizado de maneira pontual e

experimental, com grandes êxitos obtidos.

Assim, tal autogestão extra oficial não contou com o apoio do poder político, o qual

introduziu mudanças no Instituto Agrário Dominicano e na regulamentação dos

assentamentos coletivos, com o propósito de exercer maior controle sobre eles. Sem

autonomia para desenvolver-se verdadeiramente de forma coletiva, o campesinato volta-

se para a forma associativa, onde cada beneficiário trabalha sua própria parcela com ajuda

do grupo familiar. A provisão de insumos, crédito e canais de comercialização é de

responsabilidade da associação e o objetivo primário continua sendo a produção.

O estudo realizado em conjunto pela CEPAL e FAO nos dá uma visão global dos

esforços recentes em prol da criação e desenvolvimento de empresas associativas em

meio rural na América Latina. A dimensão espaço nessas experiências tem um peso

fundamental, pois o fato de tais experiências se passarem em meio rural condiciona uma

série de fatores que determinam o tipo de ação empreendida, as alianças estratégicas com

254

outras organizações da sociedade e também a naureza dos desafios e dificuldades

enfrentadas. Podemos perceber, por exemplo, as dificuldades no âmbito das relações com

o aparelho do Estado e sua influência no sucesso ou insucesso de muitas iniciativas.

Até então, não nos debruçamos diretamente sobre a problemática das organizações rurais.

Nossas pesquisas até o presente se passaram em meio urbano. E é justamente por essa

razão que o estudo acima desperta o nosso interesse e nos aporta contribuições

importantes. Em primeiro lugar, demonstra que organizações produtivas de cunho

emancipatório também são construídas e implementadas em outro espaço que não

somente o meio urbano, o grande centro urbano industrial. Em segundo lugar, ressalta as

especificidades que caracteriza essas iniciativas no seio do espaço rural.

Das especifidades, podemos verificar que, mesmo desenrolando-se de forma singular,

algumas delas tais como as relações ambientais da organização, principalmente a

fronteira com as organizações que compõem o aparelho do Estado, apresentam uma zona

comum de desafios, tanto para as iniciativas rurais como também no caso das iniciativas

urbanas, uma vez que Rothschild-Whitt (1982) e Huber (1985) já haviam assinalado o

mesmo gênero de dificuldades em seus respectivos estudos.

O olhar atento para o relato das experiências desenvolvidas pelo campesinato nos inspira

a incorporar algumas questões no nosso estudo sobre organizações do espaço urbano. As

relações ambientais da organização, destacando a sua faceta de conexão com o Estado,

por exemplo, se constituirá numa das variáveis do nosso quadro de análise.

255

Malgrado as dificuldades gerais e específicas, o estudo das CEPAL/FAO aponta casos de

retumbante sucesso, tais como os de El Salvador, Panamá e parte do Equador, o que

demonstra o potencial das organizações produtivas de natureza emancipatória no espaço

rural.

Associações produtivas rurais - alguns estudos brasileiros:

Uma vez que o estudo da CEPAL/FAO, acima apresentado, não contempla o Brasil,

gostaríamos de fazer referência, ainda que brevemente, a estudos recentes que analisam

experiências significativas no contexto brasileiro.

A produção acadêmica no Brasil sobre organizações associativas rurais é vasta,

notadamente no que se refere a análise de cooperativas. Entretanto, grande parte dessas

análises ou está voltada para apenas uma das áreas especializadas, tais como

comercialização, produção, ou para áreas estritamente ligadas aos princípios, doutrinas e

legislação cooperativas (Crúzio, 1991).

Portanto, emprendemos uma seleção de textos que enfocassem aspectos relacionados aos

temas discutidos em nosso trabalho. Três estudos foram escolhidos para ser alvo de

sumarização. O primeiro deles trata dos conflitos mais frequentes que ocorrem no interior

de organizações rurais com gestão coletiva, desde a sua fundação até o funcionamento

efetivo.

256

Considerando que as organizações de menor tamanho estão mais próximas da

problemática enfocada no nosso estudo, demos preferência a textos que tenham como

alvo a realidade associativa de pequenos produtores rurais, preterindo os trabalhos

realizados junto a grandes cooperativas ou as entidades ligadas ao agribusiness.

Consequentemente, o segundo estudo escolhido aborda aspectos da história, da liderança,

da participação e da ação de grupos associativos de pequenos produtores rurais, tomando

como exemplo o caso de um grupo situado no sul de Minas Gerais. Os autores utilizaram,

dentre outras metodologias, a observação participante na coleta de dados, a mesma

metodologia que foi empregada por nós no presente trabalho.

O terceiro estudo visa mapear o cotidiano de pequenos produtores de hortigranjeiros para

avançar no conhecimento de aspectos da gestão e da racionalidade alí embutida. O estudo

foi efetuado numa região tipicamente hortigranjeira, próxima a Belo Horizonte, no qual

os autores também se valeram da metodologia da observação participante.

A seguir, apresentaremos cada estudo em subseções distintas.

Os conflitos na gestão coletiva:

Os conflitos tipicamente verificados nas organizações rurais com gestão coletiva no

Brasil foram abordados por Rodrigues (1995), na perspectiva das diversas fases que

caracterizam a criação e o desenvolvimento dessas formas associativas.

257

Segundo Rodrigues (1995), partindo da fase inicial, quando a terra é adquirida através de

organismos governamentais, formaliza-se a associação, geralmente sob o modelo

oficialmente exigido de cooperativa (com estatuto, presidente, diretoria, conselhos, etc.).

Daí então, capta-se os recursos necessários à produção, demarca-se as terras e então dá-se

partida no processo de gestão coletiva da produção e da associação, com equipes

chefiadas por um dos membros e supervisionadas por um ou mais chefes dos serviços de

campo (Rodrigues, 1995).

Segundo a autora, na fase de implantação da organização, observa-se o conflito de

interesses entre associados. Geralmente, duas visões se chocam: uma que defende a

divisão de todo o terreno em lotes para posse e propriedade individual, e outra que

advoga o fracionamento do terreno em dois segmentos, sendo um para exploração

individual e o outro segmento para a exploração coletiva.

Para Rodrigues,

“Com efeito, tem prevalecido esta última alternativa

[fracionamento em dois segmentos] porém os conflitos

de interesse e de racionalidade continuam a existir no

tecido organizacional de forma latente, e vai ser

novamente expresso, reaberto em outros momentos.”

(Rodrigues, 1995, p. 126).

258

Um outro conflito típico seria o referente às relações dos associados em divergência com

os órgãos do Estado participantes do processo de co-gestão. Tais órgãos impõem

exigências de organização, planejamento e financiamento, as quais necessitam da

continuidade da exploração e da associação para ser atendidas. No entanto, muitas vezes

ocorre o fenômeno da descontinuidade, seja pela venda posterior de terras por alguns

associados ou também pela divisão das frades individuais entre vários herdeiros, no caso

de falecimento do titular.

Em seguida, um terceiro tipo de conflito ocorre frequentemente. Ele diz respeito ao

processo de tomada de decisão e de gerenciamento coletivos. A autora assim o relata:

“As características básicas da organização associativa

são a igualdade de direitos entre os associados, a gestão

participativa, a solidariedade. No entanto, a distribuição

de tarefas introduz elementos de hierarquização entre os

associados, entre pares os quais vivenciam duas

situações: uma enquanto pares na Assembléia Geral e nas

Comissões ou Equipes Especiais, outra enquanto superior

ou subordinado no campo da gestão coletiva da produção

ou de outras atividades no assentamento.

259

Esta vivência simultânea de papéis horizontal e vertical,

expõe o associado a um conflito no que se refere a idéia

de autogestão no sentido amplo do conceito, e tem gerado

um conflito intra-pessoal na realização desses papéis, o

que é expresso pela recusa do associado em obedecer às

orientações do responsável pelo trabalho de campo, ou às

decisões estabelecidas pela maioria, por equipe ou em

Assembléia Geral.” (Rodrigues, 1995, p. 127).

Desta forma, a não obediência às normas e à hierarquia estabelecidas geraria confrontos

entre associados na gestão da produção. Rodrigues reconhece que a fase de implantação

determina novas modalidades de comportamento aos associados, devido à instalação de

relações de poder entre os mesmos, gerando assim a necessidade de comportamentos de

negociação em esferas formalizadas, provavelmente nunca antes desenvolvidos por

aqueles indivíduos.

Daí, partindo da premissa de que a organização formalizada como tal não é um dado

natural da realidade social e sim uma criação, a nossa questão: e então, porque se instalam

as relações de poder hierarquizadas ? Ou ainda, por quê elas não são minimizadas na

prática cotidiana ?

A autora afirma que,

260

“Eliminar as funções de chefe de equipe, ou encarregado

de campo ou de outras atividades, suporia que todos os

associados cumpririam suas atribuições no mesmo nível

de dedicação e produtividade, prescindindo da

fiscalização e do controle. Isto está longe de ser real nas

experiências de gestão coletiva em associações rurais”

(Rodrigues, 1995, p. 129).

O estudo de Rodrigues remete-nos a dois aspectos que nos parecem cruciais em projetos

de gestão coletiva da produção. A reflexão balizada por tais questões enriquece a nossa

possibilidade de melhor aprofundar a análise das organizações da nossa pesquisa.

O primeiro aspecto diz respeito às relações entre a organização e o seu meio, notadamente

a “fronteira” com as organizações que apresentam um alto grau de burocratização, dentre

elas os organismos públicos. Vários autores já chamaram a atenção para esse aspecto

(Huber, 1985; Rothschild-Whitt, 1982; Dupuis,1985), ressaltando-o como uma área de

dificuldades para as organizações que tencionam implantar uma gestão coletiva. Huber

(1985), chega mesmo a incentivar a utilização de estratégias de caráter “misto”, ou seja,

no nível externo seguir os padrões exigidos pela burocracia (registro oficial como

empresa privada, ou cooperativa com diretoria, presidência, etc.), e no nível interno

redefinir as relações entre os membros de modo a neutralizar a impessoalidade, a

hierarquia e outros ditames burocráticos.

261

O segundo aspecto é decorrente do primeiro. A autora parece defender o estabelecimento

da hierarquia, advogando-a como uma espécie de enfrentamento da não uniformidade de

comportamentos entre os associados. Daí decorre, ao nosso ver, uma contradição de base:

a autora se refere a termos como gestão coletiva, co-gestão e gestão participativa, mas

como conciliar gestão coletiva com a presença de chefes encarregados da fiscalização e

do controle, com o estabelecimento de relações diferenciadas de poder ? Ou o modelo de

organização do trabalho proposto não tem como objetivo a gestão coletiva, ou a autora

está, no mínimo, envolvida numa certa confusão conceitual.

Esperar, de imediato, que indivíduos em início de uma experiência associativista

apresentem “um mesmo nível de dedicação e de produtividade” nos parece revelar um

certo desconhecimento do que significa, na prática, trabalhar com a autonomia e a gestão

coletiva — seus desafios e dificuldades — , daí até legitimar as práticas de “fiscalização e

controle” heterônomas e institucionalizadas em relações formais de poder, é voltar ao

ponto zero e negar a própria gestão coletiva.

De todo o modo, o estudo tem os seus méritos. Ele contribui para o debate e a reflexão

sobre o tema da gestão coletiva, aspecto que muito nos auxilia a ampliar os pontos de

vista de nossas análises que serão demonstradas mais adiante, além de permitir o avanço

do conhecimento das situações que envolvem a realidade das associações brasileiras de

pequenos produtores rurais.

262

Grupo associativo rural e pequena produção - aspectos relevantes:

O segundo estudo aqui destacado aborda elementos da história, tipo de liderança,

realizações e formas de participação na Associação de Pequenos Produtores de Poço

Fundo, região sul do estado de Minas Gerais. A pesquisa foi realizada por uma equipe do

Departamento de Economia e Administração da Escola Superior de Agricultura de

Lavras, no ano de 1994. Trata-se de um estudo de caso bastante representativo do

fenômeno associativo rural no campo brasileiro.

A origem da Associação está ligada aos “grupos de reza” existentes no município. Por

ação da Pastoral da Terra, esses grupos foram se trasformando em “grupos de reza e

reflexão”, processo que despertou o interesse pelo associativismo. No entanto, o ponto de

partida de criação da Associação se deu num encontro de produtores rurais realizado em

1987, em Belo Horizonte, ocasião em que alguns produtores, espontâneamente, decidiram

fundar a sua entidade, que hoje conta com cerca de 40 famílias.

Segundo os autores do estudo,

“Os produtores da Associação de Poço Fundo não

direcionam suas ações em função de liderança(s). […]

Percebe-se um estilo de liderança democrático onde

263

nenhum dos membros preocupa-se em sobressair-se

perante aos outros. Este estilo parece ter suas raízes na

própria origem do grupo, ou seja, os grupos de reza e

reflexão.

O caráter espontâneo do surgimento da Associação pode

ter contribuído para que todos sintam-se com o direito e

em condições de participar do funcionamento da

organização.” (Alencar et alli, 1994, p. 145).

Nos sete anos decorridos da sua fundação até a realização do estudo, a Associação já

havia promovido uma longa série de atividades extra-campo que atesta o seu dinamismo.

Dentre essas atividades, podemos destacar 5 cursos de conservação e adubação orgânica,

treinamento em apicultura, financiamento para cimentar terreiros de café, assinatura de

acordo com uma instituição belga para exportação de café, participação no Conselho

Municipal de Saúde, cursos de educação popular e aplicação do diagnóstico Rápido

Participativo Agroecológico.

A participação é viabilizada por reuniões mensais e uma avaliação anual feita em

dezembro, quando se elabora a programação base para o ano seguinte. O texto reproduz

vários depoimentos de membros da Associação, um deles diz que,

“Estamos muito animados com a Associação. Sozinhos,

cada um no seu canto a gente não ia sair do lugar.

264

Quanto mais participo, mais quero aprender e mais

desenvolvo o meu pensamento. Temos muito interesse de

trazer mais pessoas da comunidade prá cá.” (transcrito

em Alencar et alli, 1994, p. 149).

A pesquisa revela, sem dúvidas, um caso de êxito. A Associação de Poço Fundo é

assistida por um grupo de técnicos do Centro de Assessoria Sapucaí, cuja metodologia

empregada parece ter provocado bons resultados, tanto a nível da auto-organização dos

produtores, como em nível técnico-produtivo. Os autores relacionam o sucesso da

Associação às práticas de reflexão em grupo. Essa posição veio corroborar um ponto de

vista adotado por nós, o qual aponta a reflexão em grupo como um dos processos

organizacionais de grande importância para o desenvolvimento da gestão coletiva, em

termos substantivos. Assim, no nosso estudo, a reflexão sobre a organização é uma das

variáveis organizacionais a ser avaliada face a intensidade de racionalidade substantiva

nas organizações pesquisadas.

Outro ponto que gostaríamos de ressaltar é o seguinte: se a hipótese, de que o fato da

origem da Associação advir dos “grupos de reza e reflexão” influenciar o comportamento

democrático dos associados no trato das questões econômicas e de poder, estiver correta

então teríamos aqui também mais um caso onde a atividade econômica estaria embedded

no social e a ele submetida, o que nos faz recordar as posições teóricas de Polanyi, dos

demais autores da abordagem substantiva da economia e da antropologia econômica

265

elaborada por Godelier. O que viria a evidenciar que tais situações continuam a se

produzir na atualidade.

O cotidiano administrativo de pequenos produtores de hortigranjeiros - aspectos de

gestão e racionalidade:

Em 1994, Lima & Teixeira publicaram um estudo realizado junto a produtores rurais de

hortigranjeiros situados no “cinturão verde” de Belo Horizonte, mais exatamente na

comunidade de Farofa, município de Igarapé. Nessa área, há uma forte concentração de

pequenos produtores de hortigranjeiros. Nada menos que 8.000 trabalhadores estão

envolvidos com o cultivo de hortas, segundo o Sindicato de Trabalhadores Rurais local.

Primeiramente, poderíamos apontar duas características que, de início, já reveste de

grande importância esse estudo: a pequena quantidade disponível de pesquisas sobre o

setor de hortigranjeiros no campo da administração rural e a grande dificuldade de

encontrar estudos nesse setor voltados para aspectos de gestão.

Os autores edificaram o seu estudo sobre um alicerce fenomenológico, notadamente a

obra de Schutz. A qualidade da pesquisa foi acrescida pela coerência entre o seu alicerce

teórico e a principal metodologia empregada na coleta de dados: a observação

participante. Assim, o “mundo da vida” dos indivíduos que foram alvo da pesquisa foi

vivenciado e captado no cotidiano através, primordialmente, do emprego da observação

266

participante, revelando uma forte semelhança com a nossa própria opção no presente

trabalho.

A abordagem fenomenológica do processo administrativo, criou as condições para que os

autores delineassem a dimensão “cotidiano administrativo” — expressão empregada por

eles e constante do título do texto — , de marcante significação e de grande ressonância

no nosso estudo. Para Lima & Teixeira,

“A técnica de observação participante permitiu o

acompanhamento de processos de produção e

comercialização, apreendendo-se o cotidiano de ações e

decisões administrativas presentes em comportamentos e

atitudes do conjunto de atores envolvidos na produção e

comercialização de hortaliças na realidade social

estudada.” (Lima & Teixeira, 1994, p. 227).

O estudo revelou que o desenho organizacional encontrado no grupo não foi formalizado

a priori. A estrutura foi sendo construída historicamente, a partir da vivência e

convivência durante muitos anos pelos diversos agentes produtivos. Em Farofa, a

estrutura organizativa possui uma complexidade considerável devido a existência de

variados agentes — proprietários, fundiários, arrendatários, fornecedores de insumos,

atacadistas, varejistas, dentre outros — promovendo interações diretas e cruzadas,

ensejando uma teia de relações sociais de grande densidade. Segundo os autores,

267

“A estrutura organizacional se apresenta de forma

escalar e hierárquica, onde cada agente ocupa papel

específico em termos de atividades produtivas e

administrativas. Há uma estrutura hierárquica bem

definida entre o organizador da produção (proprietário

ou arrendatário) em conjunto de meeiros e trabalhadores.

A unidade fundamental de organização e produção está

constituída de forma elementar na articulação

hierárquica destes três agentes.” (Lima & Teixeira, 1994,

p. 228).

A partir do desvelamento da estrutura, os autores centram-se nos processos de decisão e

ação, pois Lima (1989) defende a idéia de que decisões e ações “constituem categorias

mais simples para a observação da racionalidade de sistemas sócio-econômicos e de

agentes de sistemas econômicos”. Consequentemente, no caso enfocado, as habilidades

administrativas se concretizam em decisões e ações com níveis diferenciados em função

de cada agente específico envolvido na atividade econômica:

“Assim sendo, um organizador da produção efetua ações

e decisões diferenciadas quanto ao nível hierárquico, na

medida em que, eventualmente, esse agente realiza

operações de produção. Além de ‘olhar’ a própria horta,

268

um organizador pode, ele próprio dirigir caminhão e,

necessariamente acompanhar as atividades de meeiros a

ele associados, lotados em diferentes áreas. Isto implica a

participação nas decisões sobre a necessidade de

adubação, verificação de problemas tais como irrigação,

visando a realização dessas atividades dentro dos prazos

e na dimensão desejável. […] São atividades de caráter

estratégico ou operacionais.” (Lima & Teixeira, 1994, p.

231).

O exame das decisões e ações leva os autores a abordar a questão da racionalidade. Eles o

fazem embasando-se na ótica weberiana, a partir das categorias controle e cálculo. Uma

análise da razão instrumental, portanto. A intenção passa a ser, então, identificar a

utilização do controle e do cálculo no cotidiano administrativo dos indivíduos

observados.

Os autores detectam o emprego do cálculo em diversas atividades, como por exemplo:

— as operações quantitativas envolvendo a decisão de obter ou não recursos advindos do

crédito agrícola;

— os acertos entre meeiros e organizadores envolvendo os custos e divisão de

responsabilidades para caixaria, descarga, frete de mercadorias e insumos;

269

— formação de preço médio a ser obtido na comercialização dependendo da variação das

quantidades de produtos já comercializados em uma mesma semana.

O controle é também uma fonte de grande atenção no processo, principalmente no que diz

respeito aos custos de produção (onde o controle se funde com o cálculo) e nas operações

e comercialização, área em que ele é mais intenso.

As lições contidas no estudo de Lima & Teixeira para o nosso trabalho são inumeráveis.

Elas vão desde a opção epistemológica, com a eleição da fenomenologia para apreender o

cotidiano administrativo; a adequação da metodologia do trabalho de campo, com o

emprego da observação participante; a observação dos processos de decisão e ação como

reveladores da racionalidade na gestão; até a consideração do elemento cálculo e sua

imbricação com o controle como indicadores da razão instrumental. Direta ou

indiretamente, todas essas opções foram feitas também por nós ao realizarmos o presente

trabalho. Assim, tivemos a oportunidade de balizar essa nossa modesta contribuição

também num estudo de qualidade como aquele realizado pelos autores citados. Eles

afirmam categoricamente ao final do texto que,

“Os resultados permitem validar a perspectiva

fenomenológica adotada para a reconstrução desses

processos administrativos [de decisão e ação] a partir do

270

discurso dos agentes e da observação participante.”

(Lima & Teixeira, 1994, p. 235).

Ademais, os autores nos forneceram uma pista de grande importância para o

desenvolvimento da nossa análise das organizações pesquisadas: mesmo centrando o foco

da sua investigação na identificação da racionalidade instrumental, Lima & Teixeira

desvelam de forma bastante sutil o “caráter substantivo” em processos marcados pela

predominância da razão instrumental.

Lima & Teixeira revelam que,

“As formas de controle são coerentes com o caráter

substantivo que permeia a racionalidade do cálculo. Isto

faz com que as operações de cálculo sejam minimizadas

face as características pessoais. Isto envolve a

experiência passada e aspectos estritamente sociais que

interferem nessa decisão.” (Lima & Teixeira, 1994, p.

234, grifo nosso).

Do exposto acima, podemos perceber claramente que os autores também compartilham

da nossa visão, a qual admite a interpenetração de aspectos instrumentais e substantivos

nas práticas administrativas, independentemente da predominância que um tipo de

271

racionalidade possa vir a ter sobre o outro na dinâmica das organizações produtivas, ou

como bem definido por Lima & Teixeira, no desenrolar do cotidiano administrativo.

Observações gerais:

Após esse breve relato de experiências históricas e estudos recentes, através do qual

intentamos fornecer um panorama que não ousa querer ser completo, mas que, cremos,

poderá permitir ao leitor configurar um quadro genérico da força, da magnitude e da

diversidade dos movimentos emancipatórios ao nível da produção, nos concentraremos

no âmbito das organizações as quais denominamos substantivas.

Como pode-se perceber, não há unanimidade entre os teóricos nesse campo no que diz

respeito às classificações e denominações. Elas são multivariadas e, muitas vezes se

interpenetram, causando uma certa dificuldade para aqueles que intentam elaborar um

levantamento sistematizado desses estudos. Ainda assim nos aventuramos nesse objetivo,

visando fornecer ao leitor uma visão ampliada de tais estudos. Novas classificações e

denominações continuam a ser desenvolvidas, como atesta recentemente Joyal (1995):

“Há algum tempo, falava-se de ‘empresas alternativas’

enquanto que hoje em dia, para esse gênero de atividades,

as expressões ‘empresas sociais’ e ‘empresas solidárias’

tendem a se expandir.” (Joyal, 1995, p. 12, trad. livre).

272

Para caminhar na direção das organizações substantivas, primeiramente partiremos de um

estudo realizado no ano de 1990 na cidade de Salvador e, em seguida, apresentaremos a

definição específica de organizações substantivas e avançar algumas questões específicas

que vão moldar o desenvolvimento do presente trabalho.

III. Organizações substantivas

O primeiro estudo em Salvador (1990):

Em 1990, o Grupo de Pesquisa em Organizações Substantivas ainda estava em pleno

funcionamento na Universidade Federal da Bahia. É no bojo de suas várias atividades que

realizamos um primeiro levantamento em Salvador visando conhecer aspectos

qualitativos de algumas das organizações substantivas que atuavam naquela capital.

Na oportunidade, foram mapeadas doze organizações que pertenciam a ramos de

atividade bastante diferenciados:

— Duas associações ecológicas;

— Uma locadora de livros;

273

— Um espaço cultural que congregava também um bar/restaurante;

— Uma escola de educação infantil;

— Uma associação de recuperação de viciados em álcool;

— Uma associação de defesa de direitos dos homossexuais;

— Uma organização que presta apoio psicológico por telefone;

— Um centro de educação popular;

— Um centro de pesquisa social e apoio a comunidades carentes;

— Um centro de difusão da macrobiótica e de filosofias orientais;

— Uma clínica psicológica alternativa.

Dentre os diversos aspectos que emergiram na pesquisa, destacaremos os seguintes:

“No mapeamento realizado, observou-se que nestas

organizações existe uma preocupação com o efetivo

resgate da condição humana. Autenticidade, respeito à

individualidade, dignidade, solidariedade, afetividade são

274

alguns dos aspectos marcantes... […] A primazia da

racionalidade substantiva constitui-se no traço mais

marcante de tais organizações. […] Nelas, não

constatamos alguns preceitos fundamentais encontrados

nas burocracias, como por exemplo, a excessiva

supremacia da organização sobre o indivíduo […] Nem

por isso elas deixam de apresentar efetividade. […] A

eficiência e a eficácia são atingidas, só que por outros

caminhos. O que não quer dizer que tais organizações

sejam modelos perfeitos de produtividade e efetividade.”

(Serva, 1993 a, pp. 41-42).

Comentando sobre as organizações que foram alvo do estudo acima citado, Martins

(1994) infere que,

“No Brasil, Serva constatou somente em Salvador cerca

de 12 delas, o que leva a inferir, para todo o Brasil, em

uma avaliação por baixo, mais de 1.000 organizações

deste tipo.” (Martins, 1994, p. 127).

Desde o ano de 1986, inspirados pelos ensinamentos do saudoso mestre Ramon Garcia, o

qual tinha sido aluno e amigo particular de Guerreiro Ramos, vimos estudando tais

iniciativas.

275

Definindo organizações substantivas:

Continuamos o esforço de aprofundamento do conhecimento dessas organizações, do

qual o presente trabalho é mais uma etapa. À medida em que nos aproximamos mais

delas, do cotidiano de seus membros, emergem com mais clareza aos nossos olhos os

seus princípios e práticas. É também por esta razão, que adotamos a metodologia da

observação participante para guiar o trabalho de campo que embasa este estudo.

Do ponto de vista administrativo, tais organizações não seguem modelos prédefinidos

para desenvolver suas operações. O grau de formalização dos procedimentos utilizados é,

na maioria das vezes, muito reduzido. Frequentemente não contam com administradores

profissionais em seus quadros de pessoal, o que talvez também concorra para a não

formalização de procedimentos. Quanto mais distantes das soluções burocráticas (que

implicam, em geral, um maior grau de padronização), maior tendência a existir uma

diversidade bastante acentuada de práticas administrativas e de despadronização entre

essas organizações.

Nesse contexto, a metodologia da observação participante (empregada neste estudo), que

exige a inserção ativa do pesquisador no cotidiano do grupo pesquisado, apresenta

grandes vantagens, dentre elas a possibilidade de registrar in loco as práticas utilizadas,

276

revelando com detalhes a diversidade dos procedimentos encontrados entre as

organizações.

Assim procedendo, esclarecemos, para os fins a que se destina este trabalho, o que

entendemos por organizações substantivas:

Organizações substantivas são organizações produtivas

nas quais predomina a racionalidade substantiva em

seus processos administrativo-organizacionais e, que

contêm o ideal da emancipação do homem entre suas

finalidades e práticas concretas.

Para a clarificação dessa definição de organizações substantivas, cremos ser necessário

detalhar a significação precisa que determinados termos e expressões utilizados na

definição acima, evitando assim a possibilidade de interpretações diferentes daquela que

objetivamos proporcionar.

Em primeiro lugar, queremos esclarecer que o termo substantiva remete a um tipo de

racionalidade que é um privilégio do sujeito. Segundo Guerreiro Ramos (1981), ela habita

a psique humana. Tal racionalidade, liberada de imperativos de ordem econômico-

instrumental, concretiza-se em ações que conduzem os indivíduos ao alcance da

autorealização harmonizada — através de julgamentos éticos constantes — com a

satisfação social.

277

Daí, emerge a dimensão da responsabilidade social na busca da autorealização individual.

O que implica uma avaliação permanente, um balanço constante entre os fatores e ações

possibilitadores da autorealização individual de um lado, e da satisfação social de outro

lado. Esse balanço é viabilizado pelo exercício contínuo do julgamento ético, do debate

racional (que conduz ao entendimento), da autenticidade, dos valores emancipatórios e da

própria autonomia do sujeito. Todos esses fatores, em conjunto, se concretizam na prática

de ações racionais substantivas.

Ao predominar no contexto organizacional, tais ações conduziriam as organizações

produtivas a um status de embedded no social, na acepção de Polanyi (1975), onde as

atividades econômicas são submetidas a critérios ético-políticos.

A definição de organizações substantivas, bem como o esclarecimento sobre o significado

do seu termo qualificador, os quais acabamos de apresentar, suscitam uma série de

questões relacionadas à práxis, a aplicabilidade efetiva do conceito, enfim questões que

dizem respeito ao cotidiano administrativo de organizações produtivas reais —

organizações concretas em pleno funcionamento. Essas questões são, justamente, aquelas

que norteiam o desenvolvimento deste estudo. A elas nos referiremos com destaque ao

final deste capítulo.

O segundo esclarecimento que gostaríamos de fornecer, nesse momento, refere-se à

expressão organizações produtivas. É imprescindível delimitar claramente o que

278

queremos significar ao utilizarmos essa expressão, tanto na definição de organizações

substantivas, como ao longo de todo o presente estudo.

Consideramos, aqui, que uma organização para ter o caráter de produtiva deve

necessariamente atender a todos os seis critérios abaixo relacionados:

1) Critério transacional - uma organização produtiva é aquela que produz bens e/ou

serviços e os coloca à disposição da coletividade. Nesse sentido, ela pode ser vista

realmente como um sistema social aberto que transaciona intensamente o produto de suas

atividades com outros sistemas sociais e/ou indivíduos presentes no seu meio ambiente. O

que define a transação é a transferência de bens e/ou a prestação de serviços e, não

necessariamente, a contrapartida financeira que daí possa advir. A transferência/prestação

pode ser compensada pelo pagamento em dinheiro, em serviços, em comportamentos

esperados, ou até não haver absolutamente nenhuma espécie de compensação denotando,

assim, a gratuidade da transação;

2) Critério profissional - pelo menos algumas das principais atividades-fim da

organização, diretamente relacionadas às transações definidas acima, devem ser objeto do

trabalho de profissionais. Seguimos estritamente, aqui, as significações estabelecidas pelo

Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2ª ed., 1986), o qual nos diz que

profissão “é a atividade ou ocupação especializada, que supõe determinado preparo

(por ex., profissão de engenheiro, profissão de motorista) e, “que encerra certo prestígio

pelo caráter social ou intelectual”. O mesmo dicionário declara que por profissional

279

devemos entender aquilo que é “respeitante ou pertencente a profissão”, e também

aquele “que exerce uma atividade por profissão ou ofício (por ex., fotógrafo

profissional)”;

3) Critério da total visibilidade da ação social - a organização produtiva permite a

visibilidade das suas ações face ao meio ambiente social. Não se trata de organizações

secretas;

4) Critério do cadastramento oficial - são organizações que possuem registros em

instituições oficiais, determinando a sua personalidade jurídica e a sua razão social. Não

enquadramos aqui os casos fraudulentos, onde tais registros sirvam apenas para

dissimular as reais atividades escusas de alguns grupos. É objeto de enquadramento nesse

critério apenas e tão somente aquelas organizações que espelhem realmente as suas

atividades nos seus registros oficiais;

5) Critério da legalidade das operações - as organizações produtivas não são entidades

que desenvolvam atividades estabelecidas em lei como crime ou contravenção penal;

6) Critério da atividade-fim não-parlamentar e não-religiosa - as organizações

produtivas não têm como atividade-fim a ação política definida no quadro de um

parlamento, seja de nível municipal, estadual ou federal. Embora a ação política, em

termos amplos, esteja presente em suas atividades podendo até, eventualmente, conduzí-

la a empreender alguma ação direta ou indireta na esfera parlamentar, essa não é a

280

atividade-fim que caracteriza a organização. De igual modo, também não são

organizações que desenvolvam prioritariamente atividades religiosas.

Desta forma, estamos alijando da consideração de organizações produtivas e

consequentemente do conceito de organizações substantivas, no presente estudo, dentre

outros, os grupos que compõem:

a) sociedades secretas, tais como a maçonaria e algumas seitas religiosas;

b) organizações eminentemente religiosas como igrejas e seitas de diversas matizes;

c) partidos políticos de quaisquer ideologias;

d) organizações que praticam crimes e contravenções penais, tais como quadrilhas

organizadas, entidades do jogo do bicho e assemelhados;

e) equipes e torcidas organizadas de futebol e outros esportes, como também blocos

carnavalescos;

f) condomínios residenciais, grupos de vizinhança não oficializados, e demais

organizações que não atendam a todos os seis critérios acima detalhados.

As significações específicas de processos administrativo-organizacionais, de

emancipação, bem como a noção de predominância, que compõem a definição de

281

organizações substantivas (acima apresentada) serão detalhadas nos Capítulos III e IV

deste trabalho.

Da definição de organizações substantivas, pode-se depreender que elas, tal como as

concebemos, fazem parte de todo um grande esforço desenvolvido por mulheres e

homens em diversas épocas e sob variadas formas organizacionais — o esforço pela

emancipação humana — do qual a história e os estudos recentes nos dão uma gama

infinda de exemplos.

É o mesmo que dizer que o esforço organizado, no campo da produção, com vistas à

emancipação do homem não é inaugurado pelas organizações substantivas. Enquanto tipo

de organização produtiva, nos moldes como o conhecemos, é um fenômeno bastante

recente. A grande expansão desse fenômeno data do fim da década de 60, quando dos

movimentos mundiais pelas liberdades e pela emancipação. Não se pode negar, como

afirmam Huber (1985) e Rothschild-Whitt (1982), a fonte de inspiração que os

movimentos sociais dos anos 60 significaram para a criação de uma infinidade de

organizações de cunho emancipatório. Ousamos até a afirmar, mesmo sem contar com

dados levantados cientificamente, que a maioria dos fundadores de organizações

substantivas foram direta ou indiretamente afetados pelos referidos movimentos.

Entretanto, como vimos no breve panorama delineado na seção precedente, os esforços

empreendidos em prol da emancipação humana e, conduzidos através de organizações

282

produtivas, vem de longe na história e assumem formas variadas, em função de três

dimensões fundamentais: tempo, espaço e cultura.

Queremos dizer que cada esforço que desemboca em experiências emancipatórias

históricas é marcado fundamentalmente pelos ditames, desafios e condições específicas

de uma época definida e também pelo estágio das técnicas e tecnologias que, por um lado

limitam e, por outro lado, possibilitam a produção naquele período histórico.

A todos os fatores relacionados à dimensão temporal, adiciona-se aqueles referentes ao

lugar, ao cenário onde decorre e se delimita a vida humana associada, ao tipo de região

privilegiada pelos indivíduos que estão implicados nas ações emancipatórias, o lugar

onde vivem. Aspectos particulares do espaço também influenciam a natureza dos

processos produtivos. Segundo Guerreiro Ramos,

“Diferentes categorias de tempo e espaço vital

correspondem a tipos diferentes de cenários

organizacionais.”(Guerreiro Ramos, 1981, p. 136).

Em virtude do caráter coletivo dessas experiências, a atribuição de sentido à emancipação

é culturalmente definida. As formas e modalidades do alcance da autorealização, da

liberdade, bem como a prática da responsabilidade social adquirem seus contornos e

conteúdos em função também das práticas culturais empregadas e do sentido que é

atribuído ao poder.

283

Desse modo, da imbricação entre as dimensões tempo, espaço e cultura emergem as

organizações produtivas de cunho emancipatório, sob inúmeras matizes.

As organizações substantivas são organizações atuais, contemporâneas, quase sempre

urbanas, ligadas estreitamente aos fenômenos da massificação e complexidade urbanas,

da industrialização que desequilibra a ecologia, da padronização social, dentre outros

aspectos, que caracterizam as crises das sociedades envoltas no capitalismo tardio. As

organizações substantivas participam ativamente dessa “cultura”, fruto de uma época em

que todos os grandes sistemas e modelos sociais, políticos e produtivos encontram-se em

xeque. A partir desse caldo de cultura, os membros dessas organizações atribuem o

sentido e definem as práticas específicas que se relacionam ao ideal de emancipação. Elas

se multiplicam a partir do final dos anos 60, fazendo parte portanto de toda a ebulição

social que caracteriza a segunda metade deste século.

Novamente ressaltamos aqui a importância da imbricação entre as dimensões tempo,

espaço e cultura. Daí buscarmos estudar na presente pesquisa determinadas organizações

produtivas fundadas em períodos recentes, presentes no espaço de um grande centro

urbano industrial (Salvador, Bahia), nas quais seus membros afirmam estar ativamente

engajados na emancipação humana, indicando-a até como a própria razão de ser das suas

organizações.

284

Pode-se também deduzir que as organizações substantivas apresentam diversas

similaridades com aquelas organizações caracterizadas como “cooperativas”, “projetos

alternativos”, “contra-instituições”, “empresas alternativas”, “iniciativas emancipatórias”,

“empresas autogestionárias”, “empresas associativas”, e ainda os tipos ideais

“coletivistas” e “isonomias” desenvolvidos, respectivamente, por Rothschild-Whitt

(1982) e por Guerreiro Ramos (1981), todos apresentados na seção anterior.

O que gostaríamos de destacar, entretanto, é que para o nosso conceito de organização

substantiva, não importa a forma jurídica da organização produtiva, ou ainda a definição

teórica que estudiosos da ciência social lhe atribuam, e sim a predominância do tipo de

racionalidade que está na base das ações dos indivíduos enquanto membros do grupo e as

práticas desse grupo com respeito ao compromisso pela emancipação do homem. Disto

pode-se inferir, que uma organização substantiva estaria muito mais facilmente inserida

em quaisquer das categorias apresentadas na seção anterior (“empresas alternativas”,

“organizações coletivistas”, etc.), do que na categoria de empresa privada tradicional,

entendida aqui como a organização empresarial que persegue como objetivo primordial a

maximização do rendimento dos proprietários pelo incremento máximo possível do

retorno dos investimentos material e financeiro.

Nesse sentido, pouco importa se a organização em questão está legalizada como uma

cooperativa, uma organização não governamental, uma sociedade civil sem fins

lucrativos, uma associação ou uma empresa privada. Os critérios indicados para ser

285

considerada como substantiva superam em muito a questão da forma jurídica que assume

a organização perante a sociedade burocratizada.

Também não exigimos a priori, a obediência a modelos pré estabelecidos, como por

exemplo, os modelos de autogestão. Cremos que, pela sua diversidade, as organizações

substantivas, em seu conjunto, compõem uma multiplicidade e como tal, implica a

singularidade e a heterogeneidade. Encerrá-las numa definição que já imponha um

modelo de gestão prévio seria perder a chance de apreender a riqueza dessa

multiplicidade. Ademais, a simples prática da autogestão ou de qualquer outro modelo de

gestão em si mesmo, não implica necessariamente a predominância da razão substantiva

ou um esforço emancipatório com relação à sociedade. Segundo Jacques Godbout,

“Quando se aplica a autogestão aos consumidores, tende-

se a esquecer dos trabalhadores. […] A título de

ilustração, citamos esta frase de uma ingenuidade

alarmente dos promotores de um restaurante autogerido

pelos consumidores, que afirmava orgulhosamente: ‘os

três responsáveis são assalariados da associação ... e

portanto dispensáveis a cada semana’. […] Mas o inverso

é também verdadeiro. Assim, a autogestão pelos

trabalhadores do Café Campus, em Montréal, conduziu à

eliminação dos estudantes, dos clientes de sua estrutura e,

ao recurso à relação puramente comercial como

286

mecanismo de ligação com a clientela” (Godbout, 1986,

p. 119, trad. livre).

Obviamente que nem sempre tais fatos lamentáveis acontecem. Não são a regra. Porém,

acreditamos que também não seja regra que a adoção de um determinado modelo de

gestão, em si mesmo, implique necessariamente ideais e, principalmente, práticas

emancipatórias efetivas.

Existem muitas e muitas formas de arrefecer a concentração de poder hierárquico, de

minimizá-lo. Acreditamos, e talvez este estudo ajude modestamente a comprovar, que o

debate racional em termos substantivos (conf. Guerreiro Ramos, 1981) e as ações

orientadas ao entendimento (conf. Habermas, 1987) podem gerar formas altamente

diversificadas e criativas para lidar com as questões relacionadas ao poder nas

organizações, abrindo efetivamente o caminho para a concretização de práticas

emancipatórias com vistas ao ambiente social mais amplo.

Assim, baseados tanto na crença de que a predominância da razão substantiva numa

organização pode liberar a criatividade, engendrar formas e ações multivariadas (e até

inusitadas), tanto na dinâmica acelerada de mudança e de inovação que as organizações

contemporâneas apresentam, é que elaboramos a definição de organizações produtivas

substantivas (acima apresentada). Tal definição pretende ter o caráter amplo, frisando

apenas os aspectos e traços essenciais dessas organizações: a predominância da

287

racionalidade substantiva em seus processos e a presença do ideal da emancipação

humana em suas finalidades e em suas práticas concretas.

Questões abordadas neste estudo:

Ao observamos a dinâmica da grande maioria das organizações produtivas

contemporâneas, podemos constatar que os fundamentos que acima descrevemos para

caracterizar as organizações substantivas, não são os mesmos fundamentos

predominantes nas ações dos participantes daquelas outras organizações.

O imperativo econômico (baseado na utilidade, na rentabilidade e na maximização de

recursos) tomado em si mesmo enquanto fim e, portanto, liberado da regulação ético-

política, tende muito mais para o lado do primado do cálculo egoístico de consequências.

Essa tendência despreza o balanço/avaliação éticos, o debate racional e os outros

fundamentos da ação racional substantiva, aos quais nos referimos acima. A não

consideração desses fundamentos enseja o largo emprego de estratégias interpessoais nas

ações dos indivíduos para o alcance de finalidades técnicas, econômicas e de dominação.

Essa parece ser a “regra geral” que guia as ações dos participantes das organizações

produtivas contemporâneas, principalmente aquelas que têm o mercado como a sua fonte

de recursos necessários à sobrevivência. O que indica a larga predominância de uma

racionalidade do tipo instrumental.

288

Por conseguinte, as questões que vêm à tona são: poderiam as ações racionais

substantivas ser predominantes no conjunto de atos dos membros de uma organização

produtiva contemporânea ? Em caso positivo, como tais ações são praticadas no

desenvolvimento dos processos organizacionais ? Que tipo de práxis administrativa disso

decorre ? Quais são as condições possibilitadoras dessa predominância ? Tal

predominância não acarretaria necessariamente o insucesso econômico dessas

organizações ?

Nesse contexto, este trabalho é justamente uma tentativa de lançar algumas luzes sobre

tais questões, a partir dos resultados obtidos com um estudo de casos múltiplos, ou seja,

realizado junto a três organizações produtivas situadas em Salvador, Bahia.

Para fazer face às questões acima, empreendemos um estudo de natureza qualitativa,

mediante o emprego de três métodos de levantamento de dados: observação participante,

entrevistas e análise de documentos. No próximo capítulo, descreveremos os

procedimentos adotados no desenvolvimento do trabalho de campo.

289

Capítulo III - O Trabalho de Campo

Neste capítulo, descreveremos sinteticamente o percurso cumprido no trabalho de campo.

Enquanto estudo qualitativo, este trabalho se compõe de um estudo de casos múltiplos

(Godoy, 1995), pois levantamos dados e empreendemos a análise da racionalidade nos

processos organizacionais de três empresas situadas em Salvador, capital do estado da

Bahia. A devida apresentação dessas empresas e do contexto onde operam será objeto do

Capítulo V.

Empregamos aqui a expressão “estudo de caso” como um tipo de pesquisa qualitativa,

não confundindo-o com o instrumento de ensino-aprendizagem do “método do caso”

(muito utilizado nas escolas de administração). Segundo Becker (1993), a expressão

“estudo de caso” vem da tradição de pesquisa médica e psicológica, referindo-se a análise

detalhada de um caso individual que explica a dinâmica e a patologia de uma determinada

doença. O estudo de caso em ciências sociais enfoca, em geral, o caso de uma

organização ou comunidade.

Para Yin, o estudo de caso,

290

“É uma maneira de empreender pesquisa empírica que

examina fenômenos contemporâneos dentro de seu

contexto de vida real, em situações em que os limites

entre o fenômeno e o contexto não estão claramente

estabelecidos, utilizando-se variadas fontes de evidência.”

(Yin, 1989, p. 23, trad. livre).

Godoy (1995) aponta algumas características importantes do estudo de caso, as quais têm

uma estreita relação com os objetivos deste estudo e as organizações que nos propomos a

pesquisar:

“O estudo de caso tem se tornado a estratégia preferida

quando os pesquisadores procuram responder ‘como’ e

‘por quê’ certos fenômenos ocorrem, quando há pouca

possibilidadede de controle sobre os eventos estudados e

quando o foco de interesse é sobre fenômenos atuais, que

só poderão ser analisados dentro de algum contexto de

vida real.” (Godoy, 1995, p. 25).

Uma vez que interessa-nos identificar e, acima de tudo demonstrar “como” a razão

substantiva se concretiza na práxis administrativa de organizações atuais, a opção do

291

estudo de caso nos pareceu adequada, reforçada pelas declarações de Becker sobre os

objetivos específicos desse método:

“O estudo de caso geralmente tem um propósito duplo.

Por um lado, tenta chegar a uma compreensão

abrangente do grupo em estudo: quem são seus membros

? Quais são suas modalidades de atividade e interação

recorrentes e estáveis ? Como elas se relacionam umas

com as outras e como o grupo está relacionado com o

resto do mundo ? Ao mesmo tempo, o estudo de caso

também tenta desenvolver declarações teóricas mais

gerais sobre regularidades do processo e estrutura

sociais.” (Becker, 1993, p. 118).

Na medida em que a tentativa de demonstrar como a racionalidade substantiva se

manifesta numa organização guia os nossos passos, visando esclarecer o que seria uma

organização substantiva, faz-se mister avançar sobre a compreensão abrangente dos

membros da organização, enquanto grupo. O que implica examinar como se dão as

interações entre eles e, também a ação social da organização, mediante as práticas

administrativas que as concretizam. Assim é que optamos pelo estudo de caso, pois os

estudos sobre a razão substantiva no Brasil, como vimos no Capítulo I, se limitam à

dimensão conceitual.

292

No presente estudo de casos múltiplos, utilizamos como método principal a observação

participante, complementado por entrevistas e análise de documentos. Sobre a utilização

de múltiplos métodos na realização do estudo de caso, Godoy afirma que,

“No estudo de caso, o pesquisador geralmente utiliza uma

variedade de dados coletados em diferentes momentos,

por meio de variadas fontes de informação.[…] Os dados

devem ser coletados no local onde eventos e fenômenos

que estão sendo estudados naturalmente acontecem,

incluindo entrevistas, observações, análise de documentos

e, se necessário, medidas estatísticas.” (Godoy,1995, pp.

26-27).

A esse respeito, Becker se posiciona:

“O observador não se limita a observação apenas. Ele

pode também entrevistar membros do grupo, seja

isoladamente ou em grupos. No primeiro caso, ele pode

examinar as origens sociais e as experiências anteriores

de um participante, assim como suas opiniões

particulares sobre questões correntes. No último, ele está

com efeito ‘penetrando’ nos tipos habituais de

comunicações correntes num grupo, vendo o que os

293

membros dirão quando na companhia de outros membros.

[…] O observador também verificará que é útil coletar

documentos e estatísticas (minutas de reuniões, relatórios

anuais, recortes de jornal) gerados pela comunidade ou

organização.” (Becker, 1993, p. 122).

Sendo a observação participante o método que primordialmente guiou o nosso trabalho de

campo, gostaríamos de fazer algumas considerações específicas sobre ele.

A observação participante:

Para muitos autores, o método antropológico moderno tem a sua sistematização originada

na “Introdução” do célebre estudo Argonautas do pacífico ocidental, elaborado por

Malinowski no início deste século. Nesse texto, o autor aponta os dois conceitos

principais que caracterizam o método: o trabalho de campo e a observação participante.

Tal modelo, difundido por Malinowski, é aplicado inicialmente num estudo junto aos

nativos das ilhas Trobriand, configurando um marco histórico no desenvolvimento da

ciência da antropologia. Malinowski viveu longos períodos nas aldeias, lado a lado com

os nativos, aprendendo a sua língua, participando cotidianamente de suas vidas, enquanto

realizava as observações necessárias ao desenvolvimento do seu estudo.

294

O trabalho de Malinowski acarretou ressonâncias em vários setores das ciências sociais,

não só a nível do método, mas também do desenvolvimento da teoria. Para Peirano, “foi o

‘kula’ de Malinowski que permitiu a Marcel Mauss conceber o ‘fato social total’ e

ajudou Karl Polanyi a discernir a ‘grande transformação’ no Ocidente” (Peirano, 1992,

p. 35).

Assim, a observação participante diz respeito a uma determinada situação de pesquisa

onde o observador e os observados participam de uma relação face a face contínua,

gerando um processo de coleta de dados que se dá no próprio ambiente de ação dos

observados.

No âmbito da observação participante, há um deslocamento da percepção que se tem dos

observados, comparativamente a alguns outros métodos: os observados passam não mais

a ser vistos como objetos de pesquisa, e sim como sujeitos que interagem num dado

projeto de estudos.

Aktouf (1992), citando Bruyn, apresenta sob a forma de três axiomas a essência da

observação participante:

a) O observador participante divide a vida, as atividades e os sentimentos das pessoas,

numa relação face a face;

295

b) O observador participante é um elemento normal (não forçado, não simulado, não

estranho) na cultura e na vida das pessoas observadas;

c) O papel do observador participante é um reflexo, no seio do grupo observado, do

processo social da vida do grupo em questão.

Como Aktouf, Becker nos dá uma caracterização do método a partir do observador:

“O observador participante coleta dados através de sua

participação na vida cotidiana do grupo ou organização

que estuda. Ele observa as pessoas que está estudando

para ver as situações com que se deparam normalmente e

como se comportam diante delas. Entabula conversações

com alguns ou com todos os participantes desta situação

e descobre as interpretações que eles têm sobre os

acontecimentos que observou.” (Becker, 1993, p. 47).

A maior vantagem do método da observação participante é a posição privilegiada do

pesquisador face aos fenômenos que ele quer conhecer, a sua condição de insider permite

que ele tenha acesso direto aos dados, sem intermediações.

Contudo, o método também contém as suas limitações e desvantagens.

296

Em primeiro lugar, aquilo que proporciona a maior vantagem tem o seu preço: um

método que minimiza a filtragem do informante, transfere praticamente toda a

responsabilidade para a interpretação do pesquisador. O que equivale a um pesado

investimento na subjetividade. Fato que proporciona o debate sobre a validade das

análises e conclusões do estudo.

Com relação a validade, Becker chama a atenção para o aspecto de que a observação

participante normalmente gera uma grande quantidade de dados, colocando uma

dificuldade adicional para o pesquisador:

“Em face desta quantidade de dados ‘ricos’ e variados, o

pesquisador enfrenta o problema de como analisá-los

sistematicamente e, então, apresentar suas conclusões de

modo tal que convença outros cientistas de sua validade.

A observação participante (na verdade, a análise

qualitativa de modo geral) não se saiu bem com este

problema e, geralmente, as evidências completas para as

conclusões e os processos através dos quais elas foram

alcançadas não são apresentados, de modo que os

leitores se vêem em dificuldades para fazer sua própria

avaliação sobre elas e têm que confiar em sua fé no

pesquisador.” (Becker, 1993, p. 48).

297

O autor destaca que uma apresentação mais adequada dos dados, das operações de

pesquisa e das inferências do pesquisador pode ajudar a resolver este problema. No

entanto, face aos métodos quantitativos, a desvantagem neste aspecto é flagrante:

“Dados estatísticos podem ser resumidos em tabelas e

medições descritivas de vários tipos, assim como os

métodos através dos quais elas foram manuseadas podem,

com frequência, ser relatados de maneira precisa no

espaço necessário para imprimir uma fórmula. […] Os

dados da observação participante não se prestam a tal

resumo pronto. Eles consistem frequentemente de tipos

muito diferentes de observações, as quais não podem ser

simplesmente categorizadas e contadas sem perder algo

de seu valor como evidência.[…] Todavia, está

claramente fora de questão publicar todas as

evidências.” (Becker, 1993, p. 63, grifo nosso).

Para solucionar a questão, Becker adota uma sistemática que ele denomina “história

natural”: ela consiste em ir apresentado as evidências tal como elas chegaram a atenção

do pesquisador durante os sucessivos estágios do trabalho de campo; o que não implica a

apresentação de todos os dados, mas somente das formas características que os dados

assumiram em cada estágio. Assim, a evidência seria avaliada à medida que a análise é

apresentada. O autor acredita que desse modo o leitor poderá acompanhar os detalhes da

298

análise e ver como e em que bases se chegou às conclusões, o que daria ao leitor a

oportunidade de fazer o seu próprio julgamento quanto à prova apresentada.

Uma outra questão muitas vezes levantada no debate sobre esse método diz respeito a

influência que a presença do pesquisador causaria, levando os observados a se

comportarem de forma fictícia.

Ao nosso ver, a interinfluência observado-observador é inevitável. Não se deve fantasiar

sobre este problema. Uma vez que são pessoas em relação contínua, num dado período de

tempo, compartilhando tarefas, é muito provável que ocorra influências mútuas. O ponto

nevrálgico entretanto, situa-se no grau de influência alcançado, ou seja, se ele é suficiente

ou não para alterar substancialmente o comportamento dos observados e/ou comprometer

a capacidade analítica do pesquisador. O que remete o tratamento do problema para o

papel que o observador assume no grupo além de como ele, observador, é percebido pelos

membros da equipe.

Um dos aspectos mais desafiantes no emprego da observação participante para a pesquisa

em organizações produtivas diz respeito ao papel a ser desempenhado pelo observador.

Ele deve assumir tarefas regulares na empresa como se fosse um dos seus membros

permanentes. O seu engajamento nas atividades cotidianas é condição sine qua non para a

aplicação dessa metodologia, sem o que teríamos, no máximo, uma prática da observação

direta e não da observação participante.

299

Aktouf (1992) ressalta que o observador deve assumir um papel que ele possa bem

desempenhar, cujas tarefas sejam compatíveis com a sua capacidade e suas habilidades.

Vemos aqui um ponto importante para a pesquisa em organizações produtivas. Ao

assumir tarefas regulares na organização, seria desejável que o pesquisador atendesse às

expectativas de desempenho tal como qualquer outro trabalhador. O pesquisador não

deve ser um peso negativo na performance do grupo. A sua efetividade, sua assiduidade e

seu interesse são essenciais.

Ser aceito pelo grupo também é importante, pois assim os participantes poderão sentir-se

mais à vontade para agir naturalmente (Aktouf, 1992).

Becker (1993) ressalta que a forma como o pesquisador é percebido pelo grupo é também

um fator interveniente nessa problemática. Se o observador não é percebido como um

“espião”, os observados não terão o receio de ser autênticos.

Em suma, as desvantagens e dificuldades de ordem comportamental são, de um lado o

investimento na subjetividade no pesquisador, de outro lado, o problema da relação com

os observados e também a questão da autenticidade do comportamento destes. O

pesquisador deverá dosar/controlar o grau de identificação e envolvimento com os

observados visando não perder o seu senso crítico, como também não perder de vista o

rumo da pesquisa. A interinfluência advinda da relação observador-observados é

inevitável, o que pode ser evitado é o comprometimento da análise, o que exige

habilidades comportamentais e reflexões contínuas por parte do observador.

300

Quanto a autenticidade e veracidade do comportamento dos observados, Becker (1993)

destaca um ponto muito importante: este é um problema não só da observação

participante mas, também de todos os estudos qualitativos; neste sentido, a observação

participante é até um método privilegiado, pois não seria muito mais fácil ser inautêntico

e desonesto ao responder solitariamente um questionário, ou ainda ao responder às

perguntas de uma entrevista durante alguns minutos, do que falsear comportamentos

durante meses seguidos de convívio face a face ?

A observação participante é uma das “marcas registradas” da antropologia. Entretanto,

vê-se que este método vem sendo aplicado com sucesso na pesquisa organizacional.

Citaremos alguns dos autores que aplicaram o método com êxito.

Alguns exemplos de emprego da observação participante em estudos organizacionais:

Becker (1993) empreendeu nos anos 50 numerosos estudos no meio hospitalar,

patrocinados pela Universidade do Kansas.

Tom Lupton (1985) serviu-se da observação participante para estudar a influência da

equipe de trabalho sobre o estabelecimento das normas de produção em fábricas inglesas.

Segundo o autor,

301

“Eis aqui o método que eu utilizava para desenvolver

antropologia social: eu me engajava inicialmente como

trabalhador, eu me apresentava a todos como

pesquisador, e após eu me inseria no grupo de trabalho.

O método consiste essencialmente em sofrer em si próprio

as pressões sociais, em observar os acontecimentos e as

relações entre as pessoas, escutar as conversas e, o que é

primordial, discutir com os colegas de trabalho as razões

pelas quais eles justificam seus comportamentos e

explicam o comportamento dos outros” (Lupton, 1985, p.

324, trad. livre).

Aktouf (1992) realizou pesquisas entre 1978 e 1987, mediante o emprego da observação

participante, em oito empresas no Canadá e na Argélia. As empresas pertenciam aos

setores financeiro, produção de papel, de cerveja, de petróleo e também de produtos

artesanais. Aktouf é hoje um dos principais defensores do emprego da observação

participante em pesquisas organizacionais. Metade de um dos seus livros —

Méthodologie des sciences sociales et approche qualitative des organisations — é

inteiramente dedicado a esse método etnográfico, ressaltando as suas particularidades

quando utilizado na pesquisa em organizações.

Villemure (1994) concluiu um estudo intitulado Les particularités du management

chinois em 1994, elaborado num hospital da República Popular da China. Para realizá-lo,

302

a autora aprendeu a língua chinesa e se valeu da observação participante como método

principal para a coleta de dados.

Bouchard (1985), realizou na segunda metade dos anos 70, um notável estudo sobre a

profissão de caminhoneiro em rotas de grande distância. Sua pesquisa teve lugar na

Brazeau Transport, empresa de transporte rodoviário de cargas que cumpria regularmente

trajetos como o de Matagami - Baie James - Matagami (compreendendo 1.800 km, em

ida e volta), no nordeste do Québec, Canadá. Durante dois anos, Bouchard viajou junto

com os caminhoneiros, em média dez dias por mês. Sua orientação partia da captação da

representação que os caminhoneiros construíam de sí próprios, do seu trabalho e do seu

mundo, vivendo com eles no dia a dia, para atingir a compreensão mais profunda desse

curioso métier. Suas revelações são de uma riqueza admirável. Passando pela

decodificação dos signos presentes no imaginário dos caminhoneiros, tal como o

significado do próprio caminhão e seu singular design, até a atitude perante o risco da

estrada e a exploração a que são normalmente submetidos aqueles profissionais,

Bouchard nos demonstra como a visão que geralmente temos daquela profissão está longe

do que o que ela realmente é, pois foi forjada evidentemente fora do seu universo. Para

ele, suas conclusões “não fazem senão que testemunhar a importância do simbólico na

sociedade moderna onde nós acreditávamos tê-lo desaparecido” (Bouchard, 1985, p.

359, trad. livre).

Guigo (1992) realizou estudos nos anos 80 que visavam discernir aspectos do imaginário

dos trabalhadores numa grande indústria automobilística francesa e também numa

303

prefeitura (3.140 funcionários) de uma municipalidade próxima de Buenos Aires. Para o

autor,

“As grandes organizações surgem como um campo

promissor para a pesquisa etnológica; como no estudo

dos objetos mais ‘tradicionais’, não se trata de apreender

a totalidade da sociedade, mais ‘de discernir níveis que

sejam comparáveis, tornando-os assim significativos’.”

(Guigo, 1992, p. 47, trad. livre).

Mintzberg (1979, 1980) utilizou um método muito próximo da observação participante

— a observação direta estruturada — para elaborar uma parte importante do seu mais

célebre estudo, o qual foi publicado sob o título The nature of managerial work. Seus

comentários são também válidos para se obter conclusões sobre a observação

participante:

“Essencialmente, eu observava o que cada um (dos cinco

dirigentes) fazia durante uma semana e registrava essas

observações sistematicamente (com o que eles

trabalhavam, quando, onde, durante quanto tempo, e

porque). Esses dados me permitiram estabelecer um

conjunto de características e de papéis no trabalho

gerencial. […] O campo da teoria organizacional tem, eu

304

creio, pago muito caro à obssessão pelo rigor na escolha

da metodologia — numerosos são os resultados que só

são significativos no sentido estatístico do termo.”

(Mintzberg, 1979, pp. 582-584, trad. livre).

Como vimos no Capítulo II, Lima & Teixeira (1994) realizaram um estudo sobre a gestão

de pequenos empreendimentos no setor de produção de hortigranjeiros, na comunidade de

Farofa, município de Igarapé, nas proximidades de Belo Horizonte. O estudo implicou

uma abordagem fenomenológica do processo administrativo, combinada com a

metodologia da observação participante. Aos autores interessava conhecer o cotidiano

administrativo (feliz expressão criada por eles) daquelas unidades produtivas, sendo

então a observação participante uma pedra angular para o alcance desse objetivo.

Schwartzman (1989) elaborou um estudo etnográfico sobre reuniões administrativas no

Midwest Community Mental Health Center, uma organização situada em Midtown, no

estado de Illinois (EUA). Durante um ano e meio, entre 1975 e 1976, a autora colheu

dados mediante observação participante, totalizando mais que 700 horas de participação

efetiva em reuniões.

Aqui apresentamos apenas alguns poucos exemplos das muitas aplicações deste método

no estudo de organizações.

Em seguida, trataremos de apresentar o detalhamento do nosso trabalho de campo.

305

O trabalho de campo deste estudo:

Godoy estabelece uma relação estreita entre o estudo de caso em organizações e a

observação participante:

“A observação tem um papel essencial no estudo de caso.

Quando observamos, estamos procurando apreender

aparências, eventos e/ou comportamentos.[…] Na

observação participante, o observador deixa de ser o

espectador do fato que está sendo estudado. Nesse caso,

ele se coloca na posição dos outros elementos envolvidos

no fenômeno em questão. Este tipo de observação é

recomendado especialmente para estudos de grupos e

comunidades.” (Godoy, 1995, p. 27).

Becker também situa a observação participante num plano totalmente adequado ao estudo

de caso em organizações:

306

“O cientista social que realiza um estudo de caso de uma

comunidade ou organização tipicamente faz uso do

método da observação participante em uma de suas

muitas variações, muitas vezes em ligação com outros

métodos mais estruturados, tais como entrevistas. A

observação dá acesso a uma ampla gama de dados,

inclusive os tipos de dados cuja existência o investigador

pode não ter previsto no momento em que começou a

estudar, e portanto é um método bem adequado aos

propósitos do estudo de caso.” (Becker, 1993, p. 118).

Quatro razões nos levaram a optar pelo emprego da observação participante como método

principal do nosso trabalho de campo:

1) A plena adequação do método à natureza do trabalho aqui realizado: um estudo

qualitativo de casos múltiplos em organizações produtivas;

2) A congruência do emprego da teoria da ação comunicativa no bojo da análise dos

dados com um método que implica participação efetiva nos processos de “entendimento”.

Conforme veremos com detalhes no Capítulo IV, Habermas (1987) afirma

categoricamente que a “compreensão de uma manifestação simbólica exige a

participação em um processo de entendimento”, ele argumenta que o sujeito só tem

acesso ao mundo da vida de um dado grupo quando deste participa como membro;

307

3) Os objetivos que norteiam este trabalho. Julgamos que seria mais esclarecedor

demonstrar empiricamente a concretização da razão substantiva em organizações

produtivas por meio da realização de um estudo etnográfico, a partir do qual teríamos

mais condições de captar e relatar o desenrolar do cotidiano administrativo das

organizações estudadas;

4) O exame da literatura (comentada no Capítulo II) referente a tipos de organização que

possuem semelhanças com aquelas onde realizamos o trabalho de campo, aliado a uma

pesquisa anteriormente efetuada (Serva, 1993 a) em organizações que também guardam

semelhanças com as três empresas aqui analisadas. Tais estudos, nos deram indícios de

que poderíamos encontrar grupos que desempenham suas tarefas com um mínimo de

padronização administrativa. Em situações como essas, onde não são utilizados modelos

prévia e tecnicamente definidos de organização do trabalho, os quais são largamente

difundidos nas escolas de administração e adotados pela grande maioria das empresas,

teríamos menores dificuldades de entender o funcionamento das organizações

pesquisadas participando cotidianamente de suas atividades, pois assim estaríamos mais

livres das referências aos modelos usualmente praticados, abrindo a nossa percepção ao

novo.

A pesquisa de campo empreendida nas três organizações que são o objeto desse estudo,

implicou a nossa participação efetiva em suas atividades durante oito meses ininterruptos,

mais precisamente, de abril a dezembro de 1993. Assumimos tarefas regulares nas três

308

organizações, sendo a maioria das tarefas ligadas a administração dos negócios, embora

não somente restritas a essa área. Estabelecíamos, em conjunto com os membros daquelas

empresas, horários distribuídos pelos dias da semana, e que eram rigidamente cumpridos

por nós. A efetividade do observador enquanto membro da organização pesquisada é um

aspecto de suma importância, pois parte da aceitação e também da confiança que o

mesmo poderá angariar advêm da sua regularidade, disponibilidade, efetividade e

interesse no cumprimento das tarefas assumidas. Aceitação e confiança dos membros do

grupo para com o observador, são, dentre outras, condições propícias para a legimitidade

dos dados coletados (Aktouf, 1992).

A primeira organização é composta de três suborganizações autônomas: uma escola

infantil com cerca de trezentos alunos, uma produtora de arte voltada essencialmente para

a produção de peças teatrais e apresentações de dança contemporânea, e um “condomínio

de serviços”, isto é, um centro congregando 15 profissionais que prestam serviços de

psicoterapia individual e de grupo, aulas de música, psicopedagogia, medicina naturista e

homeopática, ajustamento corporal, aulas de teatro.

Nessa organização, realizamos trabalhos tipicamente administrativos na produtora de

arte, acompanhamos os trabalhos de montagem dos eventos e assistimos algumas peças.

No condomínio de serviços, ajudamos nos trabalhos administrativos, participamos das

reuniões gerais de coordenação e avaliação, como também de atividades coletivas não

administrativas mas, que faziam parte das práticas grupais, como por exemplo, as sessões

semanais de meditação que congregavam os elementos da equipe. Na escola infantil,

309

como não era recomendável (devido à possibilidade de perturbar o andamento das aulas)

a nossa presença dentro das salas de aula, participamos das reuniões entre o corpo

docente, coordenação pedagógica e direção, onde se discutia todos os problemas

verificados no decorrer do ano letivo; das reuniões eminentemente pedagógicas —

verdadeiras oficinas construtivistas de aperfeiçoamento em educação — quando era

desenvolvido o treinamento dos professores; dos eventos promovidos na escola , como a

festa junina; das reuniões de pais com a direção para esclarecimentos, discussões

pertinentes à pedagogia empregada e ao funcionamento da escola.

A segunda organização congrega também três subunidades. Um “condomínio de

serviços”, um pouco semelhante ao citado acima, uma editora direcionada à divulgação

da alimentação e medicina natural, filosofia e análise social. E uma terceira célula,

situada num sítio à 70 km. de Salvador, onde são levadas adiante experiências de vida

comunitária, agricultura natural e psicoterapias de grupo.

Nessa empresa, realizamos diversos trabalhos administrativos na editora, nosso principal

acesso ao cotidiano do grupo, já que obviamente seria imprudente e tecnicamente inviável

a “participação” numa consulta médica ou sessão terapêutica. Podemos destacar os

trabalhos de organização dos dados relativos às vendas, como estatísticas de desempenho

das zonas de vendas, classificação de clientes, e correlatos. A atividade mais rica,

contudo, era a participação na reunião semanal, oportunidade onde todos os membros se

reuniam e discutiam abertamente os problemas, tomavam decisões, dividiam os encargos

310

comuns. Conhecemos também o sítio, as atividades normais e extraordinárias, tais como

as comemorações e festas.

A última organização é uma pequena clínica psicológica, composta de sete profissionais

liberais e três funcionários administrativos, que pode também ser considerada um

“condomínio de serviços”, embora de amplitude menor que os anteriores, pois oferece

adicionalmente serviços de medicina homeopática, psicopedagogia e de lazer organizado,

como excursões ecológicas e “acampamento verde”.

A observação participante nessa organização centrava-se nas reuniões semanais,

oportunidade em que os profissionais se encontravam para dividir o trabalho comum,

discutir os caminhos trilhados pelo grupo, tomar decisões, etc. Por diversas vezes, éramos

solicitados a contribuir com informações específicas como legislação comercial, dados

econômicos, relacionamento com bancos, e outras do gênero, às quais procurávamos

atender com a máxima rapidez e qualidade, uma vez que tais demandas concretizavam a

nossa efetiva participação.

Outros métodos qualitativos foram empregados para complementar o levantamento de

dados nas três empresas: entrevistas estruturadas e análise de documentos. Para esclarecer

e aprofundar determinados aspectos, captar os contornos e significados de algumas

representações, levantar o histórico da organização, obter uma visão do conjunto dos

membros do grupo sobre determinadas questões, dentre outros objetivos, realizamos

diversas entrevistas, registrando-as com o auxílio de gravadores. No levantamento de

dados jurídicos, de projetos e suas avaliações, das normas e comunicações internas

311

formalizadas/escritas e do relacionamento formal com outras organizações do meio

ambiente, consultamos os documentos nos arquivos das empresas pesquisadas.

As notas tomadas durante a observação participante e os demais dados obtidos pelas

entrevistas e análise de documentos foram classificadas em conjuntos específicos.

Inspiramo-nos em Aktouf (1992) e denominamos tais conjuntos “rubricas”. Assim, cada

rubrica comporta um conjunto de processos organizacionais e práticas administrativas

específicas, aspectos, idéias e representações concernentes a uma dada dimensão do

cotidiano da empresa. Listamos abaixo as onze rubricas que guiaram as observações:

1) Hierarquia e normas - as formas, critérios e estilos pelos quais o poder é exercido. Os

métodos de influência empregados. Configuração da estrutura hierárquica. Critérios ou

requisitos para a ocupação de cargos ou espaços hierárquicos. Tipos de autoridade.

Processos de emissão de ordens. Natureza das normas, escritas ou não. Processos de

elaboração e estabelecimento das normas. Instrumentos e/ou formas de difusão das

normas. Cumprimento das normas. Consequências da infração às normas. Rigidez ou

flexibilidade;

2) Valores e objetivos organizacionais - conjunto dos valores predominates na

organização, sua origem e formas de difusão. Objetivos do grupo. Processo de

estabelecimento dos objetivos, formal ou não. Comunicação dos objetivos;

312

3) Tomada de decisão - processos decisórios, estilos mais frequentes. Diferenciação de

competências decisórias na organização, subgrupos/pessoas que decidem. Dimensões

determinantes no processo decisório;

4) Controle - formas e finalidades do controle. Indivíduos responsáveis pelo controle.

Instrumentos utilizados para controle;

5) Divisão do trabalho - critérios e formas utilizadas para a divisão do trabalho.

Intensidade de especialização. Flexibilidade e multifuncionalidade. Departamentalização;

6) Reflexão sobre a organização - processos de análise e reflexão a respeito da existência

e atuação da organização no seu meio social interno e externo. Autocrítica enquanto

grupo organizado. Regularidade e procedimentos empregados para realizá-la. Em qual

nível da organização a reflexão é efetuada;

7) Conflitos - natureza dos conflitos. Estilos de manejo dos conflitos. Formas como são

encarados e solucionados os conflitos. Percepção dos conflitos: fontes de

desenvolvimento ou de risco de desagregação do grupo, atitudes consequentes.

Autonomia ou subserviência nos conflitos. Grau de tensão provocado pelos conflitos;

8) Comunicação e relações interpessoais - estilos e formas de comunicação dominantes.

Comunicação formal e informal. Linguagens específicas e seus significados.

Comunicação aberta, com feed-back, autenticidade e autonomia, ou comunicação

313

“estratégica”. Significado e lugar da palavra no cotidiano da organização. Liberdade ou

limitação da expressão. Estilos das relações entre os membros do grupo. Formalidade e

informalidade. Clima e ambiente interno dominantes, face às relações interpessoais;

9) Satisfação individual - grau de satisfação dos membros em fazer parte da organização.

Principais fontes de satisfação ou de insatisfação;

10) Dimensão simbólica - iconografia utilizada na organização. Idéias, filosofias e

valores que embasam a dimensão simbólica. Elementos do imaginário do grupo, suas

origens e mutabilidade. Relação do imaginário com as práticas cotidianas na organização;

11) Ação social e relações ambientais - ações da organização que marcam

primordialmente a sua inserção no meio social. Importância, significado e singularidade

da ação social. Congruência entre os valores professados, os objetivos estabelecidos e a

ação social concreta. Relações com outras organizações da sociedade. Redes, conexões e

integração interorganizacional.

As rubricas ou processos organizacionais estão classificadas em dois grupos,

caracterizando o grau de importância de cada classe de dados para fins de análise:

a) Processos organizacionais essenciais: hierarquia e normas, valores e objetivos,

tomada de decisão, controle, divisão do trabalho, comunicação e relações interpessoais,

ação social e relações ambientais;

314

b) Processos organizacionais complementares: reflexão sobre a organização, conflitos,

satisfação individual, dimensão simbólica.

O sentido específico dessa distinção em dois grupos e os seus efeitos sobre a

operacionalidade da análise serão discutidos no Capítulo IV.

Para efeito de complementação do processo de tomada de notas e, para aperfeiçoar a

percepção dos atos e fatos, sobretudo a autopercepção enquanto observador,

acrescentamos duas rubricas ao conjunto das onze acima descritas. Essas rubricas

adicionais são instrumentos de operação interna no manejo dos dados (Aktouf, 1992): a

primeira é reservada aos imprevistos, onde são registrados fatos e percepções sobre

aspectos não contemplados nas onzes rubricas mas, que se revelam importantes para o

próprio aprofundamento do conhecimento sobre elas.

A segunda rubrica adicional tem uma importância capital: sentimentos do observador.

Rubrica das mais essenciais, onde são registrados nossos sentimentos nas situações

vivenciadas, uma vez que o observador participante utiliza a si próprio como mais um

instrumento para a coleta de dados. Assim, nada mais necessário e salutar do que registrar

as suas reações interiores, pois elas serão de grande valia na fase de análise dos dados.

Tais registros nos dão, inclusive, a medida do envolvimento emotivo e relacional com os

observados, criando condições para contrabalançar e bem dosar a subjetividade da qual a

metodologia da observação participante é tributária.

315

Cumprida essa breve descrição dos passos seguidos no trabalho de campo e fornecidos os

devidos esclarecimentos sobre os métodos utilizados, passaremos ao capítulo seguinte,

onde apresentaremos com detalhes o processo de elaboração, o conteúdo e a

operacionalização do quadro de análise dos dados, proposto neste estudo.

316

Capítulo IV - Constituição do Quadro de Análise

Neste capítulo, apresentaremos sucintamente todos os elementos, a lógica interna e a

fundamentação do quadro analítico criado por nós para o exame dos dados colhidos no

trabalho de campo. Por meio da operacionalização do referido quadro, pretendemos

fornecer uma modesta contribuição para a ampliação do conhecimento sobre

organizações substantivas e sobre a racionalidade nas organizações em geral.

Como bem frisamos no Capítulo I, ao iniciarmos o planejamento deste quadro de análise

vimo-nos diante do mesmo impasse observado nos estudos dos colegas brasileiros sobre a

racionalidade substantiva nas organizações: a dificuldade em demonstrar explicitamente

como e quando a razão substantiva se concretiza nos processos e na dinâmica

organizacionais. A resolução deste impasse nos conduziu ao emprego de uma teoria de

ação como recurso epistemológico na análise do fenômeno estudado, tendo em vista a

natureza decididamente conceitual do estudo de Guerreiro Ramos, o qual é o ponto de

partida não só do nosso trabalho, mas também o é da maioria dos colegas brasileiros que

abordam a razão substantiva em organizações.

Assim, a partir da próxima seção, apresentaremos a nossa démarche para a constituição

do quadro de análise, começando pela complementaridade entre as teorias de Guerreiro

Ramos e de Habermas.

317

I. Razão substantiva e ação comunicativa - perspectivas de complementaridade

Como frisamos acima, optamos por ancorar a análise dos dados empíricos numa teoria de

ação.

A teoria de ação que nos parece mais adequada a esse fim é a teoria da ação

comunicativa, elaborada por Habermas. Acatando plenamente a sugestão de Barreto

(1993), descrita no Capítulo I, buscamos trabalhar com a teoria da ação comunicativa

(Habermas) e o estudo da razão substantiva realizado por Guerreiro Ramos, numa

perspectiva de complementaridade que nos proporcionasse as devidas condições para a

análise dos dados do nosso estudo, compatibilizando o arcabouço conceitual de Guerreiro

Ramos e a dinâmica da ação comunicativa, fundamentando assim o princípio de

operacionalidade da análise.

As duas abordagens, além de ter como ponto de partida a emancipação do ser humano

face aos constrangimentos a autorealização impostos pela sociedade contemporânea,

constituem um caso flagrante de complementaridade, especialmente para os que se

arriscam a estudar a razão substantiva nas organizações. A figura 1 (página seguinte),

demonstra sinteticamente os diversos pontos de conexão entre as duas teorias.

COMPLEMENTARIDADE entre TEORIA da RAZÃO SUBSTANTIVA

318

e TEORIA da AÇÃO COMUNICATIVA Razão Substantiva (Guerreiro Ramos) ação Comunicativa (Habermas) Atributo da psique do sujeito......................⇔...................... Sujeitos capazes e autônomos Senso comum .............................................⇔............................ Mundo da vida cotidiano Conceitos são derivados do e no ................⇔....................................... Teoria de ação processo da realidade Debate racional ........................................⇔...........................Ação comunicativa baseada em pretensões de validez sujeitas a crítica Superordenação ética ................................⇔.............................. Pretensões de validez sujeitas a crítica valorativa Boa regulação da vida humana .........................⇔.......................... Ação orientada ao associada entendimento Rejeição à teoria do conhecimento....................⇔..... ..................... Rejeição à teoria do conhecimento Auto-interpretação da comunidade ...................⇔......................Teoria de ação de cunho linguístico, comunicativo Valores na interpretação de fatos .................⇔.........................Contexto normativo do mundo da vida na base da interpret. Subjetividade,intersubjetividade...................⇔.......................Subjetividade,intersubjetivd.

Figura 1

A seguir, detalharemos as perspectivas dessa complementaridade, seguindo a ordem

disposta na figura 1.

319

Atributo da psique do sujeito ⇔⇔⇔⇔ Sujeitos capazes e autônomos:

Em primeiro lugar, observa-se que ambas as teorias põem em destaque o sujeito. Para

Guerreiro Ramos, a razão substantiva é um atributo do sujeito, está contida na sua psique

como recurso potencial.

Em termos da ação, para a dinamização do potencial de racionalidade, Habermas destaca

fortemente o sujeito, apontando os seus requisitos básicos para a concretização da ação

comunicativa, que são a plena capacidade de comunicação, autonomia para agir e a

responsabilidade. Segundo Habermas, no contexto da ação comunicativa, só pode ser

considerado capaz de responder por seus atos o sujeito que seja capaz, como membro de

uma comunidade de comunicação, de orientar sua ação por pretensões de validez

intersubjetivamente reconhecidas.

Não vamos nos ater demoradamente a este aspecto, uma vez que já o fizemos com

detalhes no Capítulo I, quando discutimos o movimento de revalorização do sujeito nas

ciências humanas.

Senso comum ⇔⇔⇔⇔ Mundo da vida cotidiano:

320

Guerreiro Ramos considera como ponto de partida, origem da razão substantiva a psique

humana harmonizada no senso comum, fonte da derivação dos critérios de ordenação da

vida associada:

“Primeiro, uma teoria da vida humana associada é

substantiva quando a razão, no sentido substantivo, é a

sua principal categoria de análise. […] Segundo, uma

teoria substantiva da vida humana associada é algo que

existe há muito tempo e seus elementos sistemáticos

podem ser encontrados nos trabalhos dos pensadores de

todos os tempos, passados e presentes, harmonizados ao

significado que o senso comum atribui à razão”

(Guerreiro Ramos, 1981, p.27)

Assim, o senso comum atribui o significado à razão. Consequentemente, a regulação da

vida associada necessita da comunicação, do debate, para que o senso comum se

harmonize numa dimensão ético-política:

“Uma descoberta fundamental, resultante da herança de

ensinamentos dos pensadores clássicos, é a de que o

debate racional, no sentido substantivo, que constitui a

essência da forma política de vida, é também o requisito

essencial para o suporte de qualquer bem regulada vida

321

humana associada, em seu conjunto” (Guerreiro Ramos,

1981, p.27).

A supressão do debate racional na sociedade centrada no mercado é, para o autor, uma

grave questão, com sérios reflexos ao nível do senso comum:

“Escravos de um sistema de comunicação de massa

dirigido por grandes complexos empresariais, os

indivíduos tendem a perder a capacidade de se empenhar

no debate racional. Cedendo a influências projetadas, a

maioria das pessoas perde a capacidade de distinguir

entre o fabricado e o real e, em vez disso, aprende a

reprimir padrões de racionalidade, beleza e moralidade,

inerentes ao senso comum” (Guerreiro Ramos, 1981,

p.114).

É neste ponto que a complementaridade entre as teorias em questão ganha mais

evidência. Se o debate racional é o requisito essencial para a concretização da

racionalidade substantiva, isto é, no processo de passagem de significados do senso

comum para a boa regulação da vida humana associada, então torna-se claro que a

atividade comunicativa se reveste de suma importância na materialização dessa

racionalidade em ações concretas.

322

É justamente a explicitação dessa espécie de passagem que, entendemos, Habermas nos

fornece adequadamente com uma teoria de ação. A referida passagem já é em si uma

ação, uma ação de cunho comunicativo que proporciona o debate racional requisitado por

Guerreiro Ramos.

Nesta direção, Habermas elabora uma teoria de ação orientada ao entendimento, que visa

a coordenação das ações posteriores dos sujeitos capazes, autônomos e responsáveis,

implicados na boa regulação da vida humana associada.

Sob esse ponto de vista, uma teoria de ação necessariamente exigiria a ampliação da

dimensão do nível individual para o nível social, sob pena de cairmos no engodo de uma

estrutura monológica. Em outras palavras, a dimensão do senso comum, enquanto

instância de identificação e harmonização de significados, precisa ser ampliada,

considerada no plano da interação. Essa ampliação encontramos em Habermas através do

conceito cotidiano de mundo da vida.

Habermas se inspira, inicialmente, no conceito de mundo da vida oriundo da

fenomenologia, tal qual elaborado por Alfred Schutz.

Para Schutz, o mundo da vida significa,

“O mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso

nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos

323

predecessores, como um mundo organizado. Ele agora se

dá à nossa experiência e interpretação. Toda

interpretação desse mundo se baseia num estoque de

experiências anteriores dele, as nossas próprias

experiências e aquelas que nos são transmitidas por

nossos pais e professores, as quais, na forma de

‘conhecimento à mão’, funcionam como um código de

referência” (Schutz, 1979, p. 72).

Assim, o mundo da vida é um sistema dinâmico de códigos de referência. Porém

Habermas não se contenta com essa percepção e vai mais longe, propondo a “correção”

do conceito. Em sua visão, o mundo da vida não cumpre apenas a função de contexto; ele

oferece uma provisão de convicções, de valores, de normas, na qual os participantes de

um processo comunicativo recorrem para elaborar interpretações susceptíveis de

consenso, tendo em vista a necessidade de entendimento surgida numa determinada

situação. Ele afirma categoricamente: “como recurso, o mundo da vida cumpre, pois, um

papel constitutivo nos processos de entendimento” (Habermas, 1989, p. 495, trad. livre).

Nesta perspectiva, ganha grande importância a noção de situação:

“Uma situação representa o fragmento de um mundo da

vida delimitado com relação a um tema. […] A situação

de ação interpretada circunscreve um âmbito

324

tematicamente aberto de alternativas de ação, quer dizer,

de condições e meios para a execução de planos.”

(Habermas, 1989, p. 494, trad. livre).

Habermas pretende uma “correção” do conceito de mundo da vida. Guiado pela noção de

situação, valorizando sobremaneira este aspecto, o autor argumenta que o conceito de

mundo da vida deve ser “corrigido” para que seja plenamente utilizável pelas ciências

sociais:

“Para isso resulta mais adequado o conceito cotidiano de

mundo vida, com cuja ajuda os agentes comunicativos

localizam e datam suas emissões no espaço social e no

tempo histórico.” (Habermas, 1987, v. II, p. 193, trad.

livre).

A chave mestra para a correção do conceito de mundo da vida é a narração, pois na

prática cotidiana as pessoas não apenas se encontram, enquanto participantes de uma

comunicação, mas fazem narrações daquilo que acontece no contexto de seus mundos da

vida:

“A narração é uma forma especializada de palavra

constatativa que serve à descrição de sucessos e fatos

socioculturais. […] Pelo fato de narrar, elegemos uma

325

perspectiva que nos força ‘gramaticalmente’ a

estabelecer na base da descrição, como sistema cognitivo

de referência, um conceito cotidiano de mundo da vida.

[…] Enquanto que na perspectiva dos participantes o

mundo da vida só está dado como contexto que constitui o

horizonte de uma situação de ação, o conceito cotidiano

de mundo da vida que a perspectiva do narrador

pressupõe, se utiliza sempre com uma finalidade

cognitiva.” (Habermas, 1987, v. II, pp. 193, 194 e 195,

trad. livre).

É dessa forma que Habermas amplia a dimensão da condição de possibilidade e de

reconhecimento da ação racional de fundo ético.

Se Guerreiro Ramos ressalta a dimensão do senso comum, cujo ponto de partida está na

esfera individual — pois a razão substantiva é vista como atributo da psique — e releva

também a necessidade de bem regular a vida humana associada, a qual requer o debate

racional, então podemos daí depreender a essencialidade da atividade comunicativa. Essa

atividade comunicativa já se constitui numa ação em si mesma e tem como pano de fundo

o mundo da vida, em seu conceito cotidiano (incorporando a narração que ancora fatos no

espaço-tempo), instância possibilitadora da ação, fonte da tradição e da renovação do

saber cultural dos agentes, contexto normativo e valorativo no qual os agentes se movem

326

e interagem, visando a solidariedade e o entendimento (Habermas, 1987). Isto posto,

reafirmamos o nosso total acordo com a brilhante percepção de Barreto:

“A possível noção racional do futuro, emergente da

intersubjetividade e do senso comum, não torna

excludentes as propostas de Habermas e as do sociólogo

brasileiro” (Barreto, 1993, p. 49).

Seguindo a estrutura da figura 1, daremos prosseguimento ao detalhamento de seus itens.

Em seguida, discutiremos a terceira perspectiva de complementaridade.

Conceitos derivados “do” e “no” processo de realidade ⇔⇔⇔⇔ Teoria de ação:

Guerreiro Ramos faz uma clara distinção entre o que seria uma teoria da vida humana

associada no sentido substantivo e no sentido formal. No sentido substantivo, quando a

racionalidade substantiva é a sua principal categoria de análise; no sentido formal quando

ela apresenta a razão funcional ou instrumental como sua principal categoria de análise.

Daí, decorrem duas distinções essenciais, uma relativa à natureza intrínseca das teorias e

a outra referente aos conceitos produzidos a partir delas:

“Na medida em que a razão substantiva é entendida como

uma categoria ordenativa, a teoria substantiva passa a

327

ser uma teoria normativa de tipo específico. Na medida

em que a razão funcional é apenas uma definição, ou uma

elaboração lógica, a teoria formal é uma teoria

nominalista de tipo específico. Os conceitos da teoria

substantiva são conhecimentos derivados do e no

processo de realidade, enquanto os conceitos da teoria

formal são apenas instrumentos convencionais de

linguagem, que descrevem procedimentos operacionais.”

(Guerreiro Ramos, 1981, p. 27).

Podemos perceber uma flagrante complementaridade entre a teoria deste autor e a

proposta de Habermas: uma vez que a razão substantiva é o cerne da teoria social

substantiva, ensejando que os seus conhecimentos produzidos não sejam puramente

nominalistas, isto é, que representem fielmente a práxis social dos indivíduos, pois são

“derivados do e no processo de realidade”, observamos que Habermas elabora uma teoria

de ação como suporte da explicitação de suas teses. É através de uma teoria de ação,

incontestavelmente derivada do e no processo de realidade, que podemos compreender a

essência da atividade comunicativa de cunho emancipatório.

Devemos confessar que a constatação desse aspecto da complementaridade aqui

analisada, nos influenciou bastante na decisão de superar o impasse, ao qual nos vimos

confrontados, optando pelo emprego de uma teoria de ação. Haveria alguma outra

328

maneira mais adequada para derivar conhecimentos do e no processo de realidade ?

Talvez sim, porém cremos ser a nossa opção uma boa via.

Debate racional ⇔⇔⇔⇔ Ação comunicativa baseada em pretensões de validez sujeitas a

crítica:

Este item guarda uma íntima relação com o que lhe segue, a saber, “Superordenação

ética ⇔ Pretensões de validez sujeitas a crítica valorativa”, por esta razão vamos

aborda-los em conjunto.

Guerreiro Ramos sustenta que a razão substantiva conduz a uma teoria de sociedade, que

tem como essência da forma política de vida o debate racional. A prática permanente do

debate racional decorre do princípio da superordenação ética da teoria política sobre

qualquer disciplina eventual que focalize questões da vida humana associada. É o mesmo

que dizer que o juízo de valor é uma dimensão que rege todas as ações no sentido da

construção da sociedade requerida. É por isso que o autor sublinha diversas vezes que “a

dicotomia entre valores e fatos é falsa, na prática, e, em teoria, tende a produzir uma

análise defectiva” (Guerreiro Ramos, 1981, p.29).

Enquanto isso, Habermas centra a ação comunicativa também no julgamento ético,

detalha esse processo ressaltando o papel das pretensões de validez.

329

Como vimos acima, uma das condições básicas para a ação comunicativa é a

responsabilidade do sujeito. Esta é vista como a sua capacidade de orientar a sua ação

mediante pretensões de validez intersubjetivamente reconhecidas.

As pretensões de validez susceptíveis à crítica valorativa são a mola mestra do debate

racional. Sua importância é capital.

Habermas salienta o papel pragmático dessas pretensões ao afirmar que todo ato de

palavra pode ser negado ou rechaçado a partir da retidão com referência a um contexto

normativo que o emissor pretende para a ação que propõe, do aspecto de verdade que

porta o seu enunciado, ou ainda da veracidade que o emissor pretende para a sua emissão

ou manifestação de vivências subjetivas às quais ele tem acesso privilegiado.

Por conseguinte, numa ação comunicativa espera-se que o emissor:

a) Esteja executando uma ação correta com relação a um contexto normativo dado e

reconhecido no mundo da vida cotidiano, para que se possa estabelecer entre ele e o

ouvinte uma relação interpessoal tida como legítima;

b) Emita um enunciado verdadeiro, ou com pressupostos de existência pertinentes, para

que o ouvinte possa aceitar e compartilhar o saber do emissor;

330

c) Manifeste autenticamente suas opiniões, intenções, desejos, etc., para que o ouvinte

possa dar credibilidade ao que é dito. (Habermas, 1989).

Portanto, ao afirmar-se a validade de uma pretensão comunicativa no processo do debate

racional, transforma-se correção normativa/valorativa em legitimidade, verdade em

aceitação e autenticidade em credibilidade. Isto posto, fica claro o papel pragmático das

pretensões de validez:

“Um consenso não se pode produzir quando, por exemplo,

um ouvinte aceita a verdade de uma afirmação, mas põe

em dúvida a veracidade do emissor ou a adequação

normativa de sua emissão; e o mesmo vale para o caso

em que, por exemplo, um ouvinte aceita a validez

normativa de um mandato, mas põe em dúvida a

seriedade do desejo que nesse mandato se expressa ou os

pressupostos de existência anexos a ação que se lhe

ordena (e com isso a executabilidade do mandato)”

(Habermas, 1987, v. II, p. 172, trad. livre).

Boa regulação da vida humana associada ⇔⇔⇔⇔ Ação orientada ao entendimento:

331

Este aspecto aponta para um paralelismo entre as finalidades estabelecidas nas duas

teorias.

Guerreiro Ramos destaca que a razão substantiva é o substrato da ação e da teoria que

pretende em última instância promover a boa regulação da vida humana associada.

Na mesma linha de finalidades, Habermas declara que a orientação racional da ação

comunicativa reside no alcance do entendimento entre os homens, contrariamente a ação

racional com respeito a fins, a ação comunicativa é, acima de tudo, uma ação orientada

para o entendimento.

Aqui, julgamos de importância capital transcrever o significado do termo entendimento.

O autor define entendimento como:

“Entender-se é um processo de otenção de um acordo

entre sujeitos linguística e interativamente competentes.

[...] Devido a esta estrutura linguística, não pode ser só

induzido por um influxo exercido de fora, e sim tem que

ser aceito como válido pelos participantes. Nesse sentido

se distingue de uma coincidência puramente factual. Os

processos de entendimento têm como meta um acordo que

satisfaça as condições de consentimento, racionalmente

332

motivado, com o conteúdo de uma emissão. Um acordo

alcançado comunicativamente tem que ter uma base

racional; isto é, não pode vir imposto por nenhuma das

partes, quer seja instrumentalmente, devido a uma

intervenção direta numa situação de ação, quer seja

estrategicamente, por meio de um influxo calculado sobre

as decisões de um oponente. […] O acordo se baseia em

convicções comuns. (Habermas, 1987, v. I, p. 368, trad.

livre).

Rejeição à teoria do conhecimento ⇔⇔⇔⇔ Rejeição à teoria do conhecimento:

Em seguida, podemos constatar que ambos criticam e se afastam do âmbito da teoria do

conhecimento, em suas várias modalidades e representações.

Para Guerreiro Ramos, as correntes de pensamento que hoje prevalecem em matéria de

ciência social formal, apoiam-se numa visão sociomórfica do homem, visão que reduz o

ser humano a nada mais que um ser social. O autor denomina tais correntes de produtos

de uma “ciência social cientística”, uma vez que elas pregam que a compreensão da

realidade passa necessariamente pelos seus modelos formais de linguagem.

333

Habermas, além de rejeitar a “filosofia da consciência”, analisa várias correntes da teoria

do conhecimento e então opta, declaradamente, por uma teoria de ação, baseada na

atividade comunicativa e julgada por pretensões de validez sujeitas a críticas. Neste

sentido, acusa autores como Peter Berger e Thomas Luckmann — autores da corrente da

sociologia do conhecimento — de operar uma redução culturalista do mundo da vida.

Berger & Luckmann afirmam que a realidade está construída socialmente e então cabe à

sociologia do conhecimento investigar os processos mediante os quais isso acontece.

Segundo Habermas, nessa linha de pensamento, a atividade comunicativa é simplesmente

um mecanismo interpretativo que reproduz o estoque de saber cultural. Nada mais pode

oferecer de revelador. Para Habermas, entretanto, a unilateralidade do conceito

culturalista de mundo da vida, que embasa esta visão, fica evidente quando se considera

que a ação comunicativa é muito mais que somente um processo de interpretação, que os

atores ao entender-se sobre algo no mundo, também estão interagindo para desenvolver,

confirmar e renovar a sua pertinência aos grupos sociais e à sua própria identidade. A

ação comunicativa é ao mesmo tempo processo de interação social e de socialização. E

portanto deve ser o cerne de uma teoria de ação de cunho emancipador.

Auto-interpretação da comunidade ⇔⇔⇔⇔ Teoria de ação de cunho linguístico,

comunicativo:

334

O oitavo aspecto de complementaridade entre as duas teorias nos indica que seus

respectivos autores incorreram na mesma opção ao elaborar uma teoria particularmente

reflexiva e interpretativa, que espelha o caráter interativo da percepção da realidade e da

história dos grupos humanos.

Guerreiro Ramos prega que o sentido da história torna-se evidente para o homem através

da “auto-interpretação da comunidade organizada”, logo, nenhuma elaboração teórica de

caráter serialista poderá captar esse sentido.

Habermas nos dá uma detalhada descrição do que poderia ser e de como poderia se

desenrolar o processo da auto-interpretação da comunidade organizada. Sua teoria é, na

verdade a projeção de uma práxis linguística, comunicativa, pela qual os grupos humanos

se auto interpretam e se entendem. Como vimos acima, Habermas defende que quando os

indivíduos exercem ações comunicativas eles renovam a sua pertinência a tais grupos,

moldando a identidade grupal e individual.

Valores na interpretação dos fatos ⇔⇔⇔⇔ Contexto normativo do mundo da vida na base

da interpretação dos fatos:

A grande importância concedida aos valores é um traço característico e por demais

evidente nas duas propostas. Por tudo o que foi dito até aqui, fica evidente que os valores

em que se fundam os princípios éticos são parte substancial em ambas teorias.

335

Em Guerreiro Ramos, os valores estão fortemente presentes desde a caracterização da

racionalidade substantiva até os ditames da teoria substantiva da vida humana associada e

também da abordagem substantiva das organizações. Uma marca transversal em sua obra,

portanto. As teorias que derivam da razão substantiva, tanto a teoria do social como a

abordagem organizacional, são teorias normativas, enfatiza o autor. Interpretação e valor,

duas esferas circunscritas; a interpretação dos fatos sociais e organizacionais devem ser

guiadas por valores que apontem para a boa regulação da vida social.

Em Habermas, podemos afirmar sem sombra de dúvidas, que interpretação e valor

também são duas esferas circunscritas e a todo momento presentes na sua formulação. A

interpretação das realidades e das emissões comunicativas se dão com base no contexto

normativo do mundo da vida, em seu conceito cotidiano. Os valores fornecem a medida

da interpretação da validade das pretensões dos agentes, condicionam o consenso,

delimitando as possibilidades do entendimento. Por ter elaborado uma teoria de ação,

Habermas demonstra a mecânica interpretativa dos fatos e das comunicações através de

valores.

Subjetividade, intersubjetividade ⇔⇔⇔⇔ Subjetividade, intersubjetividade:

Por fim, a subjetividade e a intersubjetividade são também traços comuns em ambas

teorias.

336

Guerreiro Ramos ressalta com grande ênfase a importância da interação simbólica na

existência humana, citando explicitamente Habermas:

“O que mantém uma sociedade em funcionamento como

importante ordem coesiva é a aceitação, pelos seus

membros, dos símbolos através dos quais ela faz sua

própria interpretação. A interação simbólica é a essência

da vida social significativa e, portanto, para usar uma

expressão de Kenneth Burke, a ‘simbolicidade’ constitui

um atributo essencial da ação humana. […] O fenômeno

da comunicação distorcida tornou-se uma preocupação

fundamental de Habermas. Propõe ele uma distinção

entre a ação racional com propósito, ou ação

instrumental, e a ação de comunicação, ou de interação

simbólica.[…] Uma tese central de Habermas é a de que,

na moderna sociedade industrial, as antigas bases de

interação simbólica foram solapadas pelos sistemas de

conduta de ação racional com propósito (Guerreiro

Ramos, 1981, p. 14).

A interação simbólica é, inclusive um dos tópicos essenciais de sua proposta para uma

abordagem substantiva das organizações.

337

Em Habermas, a interação simbólica, ou como ele prefere, a intersubjetividade, é uma

marca constante em seus constructos, desde a própria caracterização da ação

comunicativa. A intersubjetividade é o corolário, nas duas teorias, da própria

subjetividade na qual se baseiam os autores em seus respectivos pontos de partida.

Assim, esperamos ter fornecido um detalhamento satisfatório dos aspectos dispostos na

figura 1. Voltamos a frisar que a nossa intenção é a de justificar uma escolha crucial para

a fundamentação do quadro de análise: trabalhar com as teorias da razão substantiva e da

ação comunicativa numa perspectiva de complementaridade, conforme nos fôra indicado

primeiramente por Barreto (1993).

Demonstradas as perspectivas de complementaridade que pudemos discernir entre as duas

teorias, passaremos a apresentação e detalhamento do quadro de análise, dando ênfase a

determinadas operações e formulações empreendidas a partir da referida

complementaridade.

II. Quadro de análise

A elaboração do quadro de análise foi norteada pelo objetivo de verificar qual o tipo de

racionalidade, entre a substantiva e a instrumental, é predominante nas organizações

pesquisadas. Essa verificação implica o exame da predominância diretamente nos

338

processos organizacionais que constituem a dinâmica do cotidiano das empresas aqui

estudadas.

Isto significa demonstrar como e quando a racionalidade substantiva, como também a

instrumental se manifestam nas operações desenvolvidas nas empresas pesquisadas, ou

seja, como tais racionalidades se concretizam em atos dos indivíduos enquanto membros

da organização. A verificação da predominância, pressupõe a comparação entre os

indicadores de racionalidade.

O primeiro passo para comparar configurações distintas é defini-las de forma clara,

distinguindo-as adequadamente, bem como aos seus elementos constitutivos.

Uma vez que optamos por trabalhar com teorias de ação, prosseguiremos nesta linha e

definiremos a ação racional substantiva, com base nos estudos de Guerreiro Ramos e de

Habermas:

Ação orientada para duas dimensões: na dimensão

individual, refere-se à autorealização, compreendida

como concretização de potencialidades e satisfação; na

dimensão grupal, refere-se ao entendimento, nas

direções da responsabilidade e satisfação sociais.

339

Por conseguinte, os elementos constitutivos da ação racional substantiva são:

a) Autorealização - processos de concretização do potencial inato do indivíduo,

complementados pela satisfação;

b) Entendimento - ações pelas quais estabelecem-se acordos e consensos racionais,

mediadas pela comunicação livre, coordenando atividades comuns sob a égide das

responsabilidade e satisfação sociais;

c) Julgamento ético - deliberação baseada em juízos de valor (bom, mal, verdadeiro,

falso, correto, incorreto, etc.), que se dá através do debate racional das pretensões de

validez emitidas;

d) Autenticidade - integridade, honestidade e franqueza dos indivíduos nas interações;

e) Valores emancipatórios - aqui destacam-se os valores de mudança e aperfeiçoamento

do social, bem estar coletivo, solidariedade, respeito à individualidade, liberdade e

comprometimento, presentes nos indivíduos e no contexto normativo do grupo;

f) Autonomia - condição plena dos indivíduos para poder agir e expressar-se livremente

nas interações.

340

Do mesmo modo, isto é, a partir dos trabalhos de Guerreiro Ramos e de Habermas,

definimos abaixo a ação racional instrumental e seus elementos constitutivos:

Ação baseada no cálculo, orientada para o alcance de

metas técnicas ou de finalidades ligadas à interesses

econômicos ou de poder social, através da maximização

dos recursos disponíveis.

Relacionamos, abaixo, os elementos constitutivos da ação racional instrumental:

a) Cálculo - projeção utilitária das consequências dos atos humanos;

b) Fins - metas de natureza técnica, econômica ou política (aumento de poder);

c) Maximização de recursos - busca da eficácia e da eficácia máximas no tratamento de

recursos disponíveis, quer sejam humanos, materiais, financeiros, técnicos, energéticos ou

ainda, de tempo;

d) Êxito, resultados - o alcance, em si mesmo, de padrões, níveis, estágios, situações, que

são considerados como vitoriosos face a processos competitivos numa sociedade

capitalista;

341

e) Desempenho - performance individual elevada na realização de atividades;

f) Utilidade - considerada na base das interações como valor generalizado;

g) Rentabilidade - medida de retorno econômico dos êxitos e resultados alcançados;

h) Estratégia interpessoal, entendida como influência planejada sobre outrem, a partir da

antecipação das reações prováveis desse outrem a determinados estímulos e ações,

visando atingir seus pontos fracos.

Cumprido o primeiro passo, ou seja, definidos os tipos de ação racional substantiva e de

ação racional instrumental, bem como os seus elementos constitutivos, partiremos em

direção ao segundo passo, o qual consiste no reagrupamento lógico desses elementos face

a cada processo organizacional, configurando assim o quadro de análise.

Os processos organizacionais que, em conjunto, compõem a dinâmica cotidiana das

empresas pesquisadas estão segmentados nas rubricas que orientaram o trabalho de

campo (conforme demonstrado no Capítulo III), guiando os procedimentos de coleta dos

dados.

As rubricas , ou mais propriamente, os processos organizacionais, sofrem uma distinção

básica em nosso estudo. Não podemos considerar que todos os dados coletados

constituem-se numa massa indiferenciada em termos de importância analítica. Portanto,

342

os processos organizacionais serão distinguidos em duas classes: essenciais e

complementares.

Por processos organizacionais essenciais entendemos aqueles nos quais os indivíduos

definem, mediante ações específicas, o caráter básico do empreendimento grupal ao qual

participam, delineando seus padrões de interrelação e também as fronteiras e limites da

ação do grupo perante a sociedade que o envolve. Não é por outra razão que esses

processos estão inseridos, há bastante tempo, no rol dos temas de estudo privilegiados

pela maioria dos autores da teoria das organizações. Assim, dentre os processos que

elegemos analisar, consideraremos essenciais os seguintes:

a) Hierarquia e normas;

b) Valores e objetivos;

c) Tomada de decisão;

d) Controle;

e) Divisão do trabalho;

f) Comunicação e relações interpessoais;

343

g) Ação social e relações ambientais.

As rubricas restantes serão consideradas processos organizacionais complementares.

Como a própria denominação indica, o exame desses processos nos servirá como um

complemento necessário à interpretação dos dados coletados, no sentido de fazer emergir

a lógica interna de cada organização pesquisada. Embora necessários ao aprofundamento

da análise, julgamos que os processos complementares não têm, em seu conjunto, o

mesmo peso definidor que aquele representado pelo conjunto dos processos essenciais, no

tocante ao caráter básico de uma organização produtiva. Relacionamos abaixo os

processos organizacionais complementares:

a) Reflexão sobre a organização;

b) Conflitos;

c) Satisfação individual;

d) Dimensão simbólica.

Para a configuração do quadro de análise, empreendemos o reagrupamento dos diversos

elementos constitutivos de racionalidade, observando a correspondência de cada um deles

com a natureza intrínseca de cada processo organizacional, de maneira que se possa

verificar claramente a influência dos elementos no desenrolar dos processos

344

organizacionais, espelhando o mais fielmente possível o cotidiando das empresas

estudadas.

Da adequação entre os elementos constitutivos de racionalidade e os processos

organizacionais, resultou o quadro de análise representado pela figura 2 (página seguinte).

Na primeira coluna, estão relacionados todos os processos organizacionais trabalhados,

começando pelos essenciais até os complementares. Observa-se que nas segunda e

terceira colunas faz-se uma distinção entre os dois tipos de racionalidade que serão

cotejados no estudo. Então, para cada tipo de racionalidade, faz-se corresponder os seus

elementos constitutivos, adequados à natureza intrínseca de cada um dos processos

organizacionais.

O quadro proposto será a peça fundamental, o pano de fundo permanente da análise das

empresas que nos propomos a estudar. A inspiração para a construção do referido quadro

tem origem nas obras de Guerreiro Ramos e de Habermas, amplamente citadas acima,

bem como da complementaridade que é possível perceber entre elas.

345

Tipo de Racionalidade X

Processos Organizacionais

Racionalidade Substantiva

Racionalidade Instrumental

Hierarquia e normas

Entendimento Julgamento ético

Fins Desempenho

Estratégia interpessoal

Valores e objetivos Autorealização

Valores emancipatórios Julgamento ético

Utilidade Fins

Rentabilidade

Tomada de decisão

Entendimento

Julgamento ético

Cálculo Utilidade

Maximização recursos

Controle

Entendimento

Maximização recursos Desempenho

Estratégia interpessoal

Divisão do trabalho

Autorealização Entendimento

Autonomia

Maximização recursos Desempenho

Cálculo Comunicação e

Relações interpessoais

Autenticidade Valores emancipatórios

Autonomia

Desempenho Êxito/Resultados

Estratégia interpessoal

Ação social e Relações ambientais

Valores emancipatórios

Fins Êxito/Resultados

Reflexão sobre a organização

Julgamento ético Valores emancipatórios

Desempenho Fins

Rentabilidade

Conflitos

Julgamento ético Autenticidade

Autonomia

Cálculo Fins

Estratégia interpessoal

Satisfação individual

Autorealização

Autonomia

Fins Êxito

Desempenho

Dimensão simbólica

Autorealização

Valores emancipatórios

Utilidade Êxito/Resultados

Desempenho

Figura 2 - Quadro de Análise

O desenvolvimento da construção deste quadro de análise, como tentamos evidenciar

acima, fundamenta-se nos trabalhos originais dos dois autores citados, e dirige-se para

346

definir, em termos operacionais, a ação racional substantiva e a ação racional

instrumental, detalhando inclusive os seus elementos constitutivos.

Como frisamos anteriormente, trata-se de ancorar a análise dos dados empíricos a uma

teoria de ação que seja compatível com a abordagem substantiva das organizações,

proposta por Guerreiro Ramos.

A forma específica de operacionalização desse quadro será detalhada na seção que se

segue.

III. Procedimentos operacionais

A coleta dos dados é a fase prévia de toda a análise. Antes de detalhar a

operacionalização do quadro aqui proposto, gostaríamos de eslarecer sobre a natureza das

fontes dos dados coletados.

Como já declaramos no Capítulo III, o método de coleta de dados primordialmente

empregado neste estudo foi a observação participante. No entanto, outros instrumentos e

fontes foram também utilizados visando mapear, o quanto possível, a realidade cotidiana

das empresas que foram alvo da pesquisa. Devido a diversidade dos processos

organizacionais analisados, indicaremos as fontes exploradas para o levantamento de

dados relativos a cada um dos processos.

347

É o que demonstra a figura 3, abaixo.

Processos Organizacionais

Fontes de dados

Hierarquia e normas

Observações, entrevistas, documentos

Valores e objetivos

Observações, entrevistas

Tomada de decisões

Observações, entrevistas

Controle

Observações, entrevistas, documentos

Divisão do trabalho

Observações, entrevistas, documentos

Comunicação e Relações interpessoais

Observações, entrevistas, documentos

Ação social e Relações ambientais

Observações, entrevistas, documentos

Reflexão sobre a organização

Observações, entrevistas

Conflitos

Observações, entrevistas

Satisfação individual

Observações, entrevistas

Dimensão simbólica

Observações, entrevistas, documentos, materiais diversos

Figura 3 - Fontes de dados

348

De posse dos dados já agrupados referentemente a cada um dos processo organizacionais,

procede-se a operacionalização do quadro de análise seguindo as três fases abaixo

descritas:

Fase I - Detecção dos indicadores:

Cada elemento constitutivo de ação racional, conforme definidos acima, constitui-se num

indicador de racionalidade, seja substantiva ou instrumental. Na primeira fase da análise,

deve-se detectar todos os indicadores presentes em cada situação observada, nas situações

reconstituídas e nas opiniões veiculadas por meio de entrevistas, no exame dos

documentos, etc., tendo em vista cada um dos processos organizacionais.

Assim, cada elemento passa a ser um indicador de racionalidade dentro do processo

organizacional correspondente. Passemos à fase seguinte.

Fase II - Mapeamento dos indicadores predominantes:

Analisando-se um processo por vez, pode-se então reunir todos os indicadores detectados

e então verificar o indicador predominante naquele processo examinado. A

predominância de um determinado indicador, revela que o mesmo foi o elemento que

mais determinou as ações dos indivíduos, guiou as práticas operativas na organização,

349

fundamentou e justificou a organização do trabalho, os objetivos, direcionou os interesses

e decisões, embasou os valores das pessoas e cimentou os valores organizacionais,

delimitou os modos de interação, etc.

Mapear os indicadores predominantes traduz uma posição conceitual claramente definida:

não acreditamos na exclusividade de um só tipo de racionalidade nas ações de indivíduos

que compõem organizações produtivas. A nossa posição conceitual tem por base a idéia

de que a dinâmica do cotidiano das organizações produtivas contemporâneas implica a

presença tanto da razão substantiva, quanto da razão instrumental. Os comportamentos

dos membros de um grupo produtivo não são retilíneos, as ações desenrolam-se por meio

de avanços e retrocessos nas direções substantiva e instrumental, gerando contradições,

estabelecendo contrapontos. À medida em que tais contradições e contrapontos são

enfrentados e solucionados (ou não), geram, por sua vez, novas questões que podem

conduzir a outras contradições presentes e/ou futuras. Eis aqui, em duas palavras, nossa

visão das organizações produtivas.

Por conseguinte, identificar a predominância dentro de um certo conjunto de indicadores

detectados a partir do exame dos dados, significa assumir que ambas as racionalidades

podem estar presentes em todos os processos organizacionais. O mapeamento da

predominância é a própria busca de aprofundamento da análise no sentido de perceber

qual tipo de racionalidade prevalece em cada processo organizacional estudado.

350

Assim procedendo, ao final da Fase II será possível identificar se a organização analisada

pode ser considerada substantiva. Para tanto, os resultados da análise deverão atender às

duas condições seguintes:

a) Os elementos/indicadores de racionalidade substantiva devem ser majoritariamente

predominantes no conjunto dos onze processos examinados;

b) Os elementos/indicadores de racionalidade substantiva devem ser majoritariamente

predominantes também entre os sete processos organizacionais essenciais.

A seguir, apresentaremos a última fase, a qual constitui-se num complemento da análise.

Fase III - Identificação da intensidade de racionalidade substantiva:

O cumprimento da Fase II é também um pré-requisito para inferir sobre o grau de

intensidade de racionalidade substantiva numa determinada organização.

Na medida em que num processo organizacional já se tem detectados todos os

indicadores de racionalidade, bem como aquele que alí é predominante, tal conjunto de

indicadores compõem uma configuração particular, devido à singularidade do processo,

da empresa e das ações e valores específicos dos seus membros.

351

O exame minucioso dessa configuração, que implica analisar a natureza de cada indicador

detectado, a composição da configuração como um todo e a amplitude da predominância

do indicador principal face aos demais, conduz a identificação da intensidade da razão

substantiva em cada processo organizacional, situando-a entre os graus mínima, baixa,

média, elevada e muito elevada.

Ao final da análise dos onze processos, poder-se-á identificar com facilidade a

intensidade da racionalidade substantiva para a empresa vista globalmente: basta situá-la

na média entre as intensidades já verificadas nos processos organizacionais.

Com o intuito de obter um maior proveito da identificação da intensidade de razão

substantiva, inspiramo-nos no estudo de Rothschild-Whitt e estabelecemos uma escala de

intensidades, disposta num continuum, representado pela figura 4 abaixo.

|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva

Figura 4 - Continuum de intensidade de racionalidade substantiva

352

No Capítulo II, vimos que Rothschild-Whitt desenvolveu um continuum para classificar

organizações segundo uma tipologia que seguia uma escala de modos de autoridade

empregados, partindo assim, da “democracia coletivista” até a “burocracia

hierarquizada”. Sua intenção foi enfatizar as diferenças entre esses dois tipos de

organização, polarizando-os, para demonstrar as várias nuances que poderiam haver entre

eles, na medida em que as diferenças acentuadas entre os graus de autoridade empregados

determinariam novos tipos de organização situados no continuum.

Enquanto Rothschild-Whitt no seu célebre estudo buscava comparar dois tipos ideais de

organização, daí esses tipos ideais constituirem exatamente os pólos extremos do

continuum, nós não trabalhamos com tipos ideais, eles não são os focos de nossa

démarche.

Nos pólos extremos de nosso continuum aparecem intensidades improváveis, que

denotariam — tanto pela exclusividade de racionalidade substantiva, como pela sua

ausência absoluta — a existência (igualmente improvável) de uma organização

totalmente regida pela razão substantiva ou pela razão instrumental. Tais pólos têm,

apenas, um valor heurístico, pois a construção e descrição de tipos ideais, como já bem

esclarecemos anteriormente, não é o objetivo deste estudo. Uma opção dessa natureza

teria, necessariamente, engajado este estudo em outra direção. Os pólos de nosso

continuum complementam o entendimento da proposta, possuem apenas um certo valor

conceitual, na medida em que permite ao leitor exercitar teoricamente hipóteses sobre no

353

que resultaria uma progressão retilínea na direção de qualquer uma das extremidades do

continuum.

Examinamos organizações produtivas reais no sentido de tentar construir um quadro

adequado ao mapeamento da racionalidade substantiva diretamente nas ações dos

participantes, diretamente centrado na práxis organizacional. O que chamamos de

organização substantiva não é uma construção de tipo ideal. Enquanto Rotschild-Witt

também analisou organizações produtivas reais mas, com o intuito de formalizar um tipo

ideal — nos moldes weberianos — de organização coletivista e assim confrontá-lo com o

tipo ideal de organização burocrática proposto por Weber.

É por esta razão que no continuum elaborado por Rothschild-Witt aparecem tipos de

organização, enquanto o nosso é caracterizado por intensidades de racionalidade

substantiva.

Nesse sentido, um interessante ponto de contato entre esses dois continuum situa-se a

partir da afirmação taxativa de Rotschild-Witt que uma democracia coletivista gira em

torno da lógica da racionalidade substantiva. Isto não nos causa surpresa, uma vez que os

seus dados empíricos foram coletados, ao que parece, em organizações que apresentam

claras semelhanças com aquelas nas quais realizamos o nosso trabalho de campo.

A idéia de trabalhar com um continuum também vem corroborar a posição conceitual por

nós adotada e já declarada. Queremos dizer que ao final de uma análise, realizada nos

354

moldes propostos por este estudo, identifica-se a intensidade de razão substantiva e situa-

se a organização examinada no cotinuum. Seja qual fôr o ponto em que a organização

esteja situada, isto é, da intensidade mínima à muito elevada, significará sempre que a

racionalidade instrumental também está presente, fazendo parte da dinâmica daquela

organização. Seguindo esse princípio e transpondo-o para um raciocínio lógico, cada

ponto do continuum equivaleria ao seu inverso se quiséssemos medir a intensidade da

razão instrumental, ou seja, a intensidade mínima de razão susbstantiva equivale à muito

elevada de razão instrumental, a intensidade baixa de racionalidade substantiva

corresponde à elevada de racionalidade instrumental e assim por diante.

Ao operacionalizar o continuum aqui proposto, no fundo, estamos tratando os processos

organizacionais do quadro de análise como variáveis. Variáveis contínuas, nas quais se

pode medir a intensidade dos dois tipos de racionalidade a partir da análise da ocorrência,

da configuração e da predominância dos indicadores (elementos constitutivos) da razão

substantiva e da razão instrumental.

Antes de finalizarmos o presente capítulo, gostaríamos de fazer breves considerações

sobre a adequação epistemológica entre a fundamentação teórica, a metodologia do

levantamento de dados e o quadro de análise que fazem parte deste estudo.

355

IV. Considerações de ordem epistemológica

Sob determinados pontos de vista, o presente estudo não tem precedentes que poderiam,

antecipadamente, protegê-lo do risco de uma ruptura epistemológica grave entre as suas

partes, a qual, viesse a comprometer a sua coerência interna.

Esta foi uma das nossas preocupações permanentes durante a sua elaboração. O fato de

não contarmos com modelos já testados e suficientemente criticados, gerou a necessidade

de examinarmos, passo a passo, cada escolha feita, sob o ponto de vista da adequação

epistemológica ao objeto, entre as subpartes do estudo e também ao trabalho como um

todo. O “engate” sem rupturas epistemológicas entre as opções feitas foi a nossa

orientação mestra durante o desenrolar do planejamento e da execução deste trabalho.

Entretanto, o fato de não contarmos com estudos similares anteriormente desenvolvidos

não foi uma opção. Desde o Capítulo I, temos afirmado que não conhecemos registros de

estudos realizados no sentido de demonstrar a concretização da razão substantiva

diretamente nos processos organizacionais; estudos que tenham se baseado em dados

empíricos, colhidos em empresas em funcionamento (especialmente no Brasil) e, que

pudessem ter estabelecido algum modelo específico para a interpretação de tais dados. O

impasse ao qual nos referimos anteriormente é uma consequência dessa ausência.

356

Fomos impulsionados a criar instrumentos, como o quadro de análise acima proposto, e

também a empreender novas combinações entre abordagens teóricas e metodologias

utilizadas. À complementaridade entre os estudos de Guerreiro Ramos e de Habermas

somam-se outras soluções que nos levaram constantemente a refletir sobre a sua

adequação epistemológica.

Portanto, julgamos necessário fazer algumas observações sobre a lógica global aqui

empregada e a concatenação entre as diversas partes deste estudo. Assim, oferecemo-nos

à crítica, que por certo nos ajudará a prosseguir no aperfeiçoamento desta linha de ação

após o término deste trabalho.

O primeiro aspecto que gostaríamos de destacar é a compatibilidade entre a metodologia

do levantamento dos dados e o quadro de análise. A observação participante, enquanto

processo de coleta de dados que se desenrola in loco, no próprio ambiente e no qual o

pesquisador vivencia operacionalmente o cotidiano dos observados, privilegia a

observação das ações dos indivíduos em questão. Inferências, evidentemente são feitas,

elas são um grande recurso para a compreensão dos fatos. Mas, inegavelmente, o

privilégio é concedido àquilo que é observável, ou seja, às ações dos indivíduos.

Tentamos nos manter “em linha” com este aspecto essencial da metodologia ao optarmos

por embasar a análise dos dados numa teoria de ação. Primeiramente, numa teoria de ação

(ação comunicativa) que pudesse servir de complemento, de “passagem” da abordagem

conceitual de Guerreiro Ramos a uma práxis efetiva. Em seguida, acreditando firmemente

357

na fecundidade da união dessas abordagens, fazer derivar dessa união definições de tipos

de ação (racional substantiva e racional instrumental) e de seus elementos constitutivos,

que nos fossem verdadeiramente operacionais, tendo em vista a análise dos dados.

Reafirmando a compatibilidade entre coleta de dados e análise, mantivemos as mesmas

rubricas de orientação do trabalho de campo dentro do quadro de análise.

O segundo ponto a ressaltar é o recurso às teorias de Guerreiro Ramos e de Habermas

para dar conta do fenômeno ao qual nos propomos abordar. A ampla utilização das idéias

de Guerreiro Ramos se justifica no nosso estudo sob vários aspectos. As suas formulações

são a base, a essência e a principal fonte de inspiração do nosso estudo. A caracterização

da racionalidade substantiva e também a visualização do fenômeno aqui abordado

guiaram este estudo. Guerreiro Ramos já havia percebido a existência de organizações

nas quais a razão substantiva é predominante, como vimos no Capítulo II, ele as

denominava em geral “isonomias”. Chamamos substantivas tais organizações em

homenagem à obra deste autor.

Essa adequação entre a abordagem empregada e o objeto de estudo é

epistemologicamente crucial.

Num estudo dedicado ao tema da escolha da abordagem em função do objeto, visando a

produção de conhecimentos científicos no campo da administração, Bhérer (1986) declara

que,

358

“O funcionamento coletivo de empresas constitui um

domínio novo, não somente para a ciência, mas para a

sociedade mesma. Não existe uma tipologia atual dos

funcionamentos coletivos de empresas no Québec, nem em

nenhum outro país da O.C.D.E.; uma tal tipologia não

pode existir porque a categoria de empresas de

funcionamento coletivo compreende tanto os fenômenos

de cogestão, de autogestão, de empresas comunitárias,

como de empresas, de movimentos assemelhados ao

‘movimento alternativo’ na Alemanha ou ao movimento

contracultural na Europa e na América do Norte. Seria

necessário, então, desde o início, uma ‘démarche’

normativa para apreender o funcionamento coletivo.”

(Bhérer, 1986, p. 162, trad.livre, grifo nosso).

Eis mais uma das razões pela qual empregamos a abordagem elaborada por Guerreiro

Ramos. Tendo em vista que nos propomos a estudar a racionalidade em organizações

substantivas, as quais apresentam estilos de “funcionamento coletivo” em graus variados,

nada mais justo do que partirmos de uma abordagem normativa, no nosso caso, a

abordagem substantiva, pois, segundo Guerreiro Ramos, essa abordagem tem como um

dos seus princípios fundamentais a observância de que,

359

“O estudo científico das associações humanas é

normativo: a dicotomia entre valores e fatos é falsa, na

prática, e, em teoria, tende a produzir uma análise

defectiva.” (Guerreiro Ramos, 1981, p. 29, grifo nosso).

A teoria da ação comunicativa, de Habermas, além de ter o mesmo ponto de partida da de

Guerreiro Ramos, ao qual também nos unimos — a emancipação do homem — e também

de apresentar todos os aspectos de complementaridade que arrolamos acima, manifesta

uma convergência direta com o nosso objeto de estudo. Como vimos no Capítulo II,

Habermas retoma a classificação de Huber para este tipo de organização, denominando-as

“contra-instituições”, depositando nelas grande esperança de revitalização da vida social.

O emprego da teoria de Habermas acarreta, ainda, outros importantes aspectos de

adequação a outras escolhas feitas neste estudo. Destacaremos mais dois aspectos.

O primeiro deles diz respeito ao seu arcabouço contextual da ação comunicativa: o

mundo da vida em seu conceito cotidiano. Habermas “corrige” o conceito de mundo da

vida originado na fenomenologia e o substitui por um que tem a marca do cotidiano,

representado pela narração. Daí, desenvolve as idéias mais fecundas da sua teoria. O

mundo da vida, em sua versão cotidiana, exige situar a narração das interações

comunicativas no tempo histórico e num espaço dado, segundo Habermas, solução mais

adequada à sua utilização pelas ciências sociais.

360

O nosso estudo, de certa forma, se alinha à perspectiva habermasiana, ao buscar, através

da narração advinda da observação participante, traduzir o cotidiano dos indivíduos

enquanto membros de organizações reais, situadas no tempo e no espaço, empresas em

funcionamento na cidade de Salvador. Uma narração nascida no calor das interações

vividas por nós e eles, um calor fervoroso de um cotidiano apreendido durante oito meses

seguidos de convívio, de interações diárias, pois fomos também membros ativos daquelas

organizações.

O segundo aspecto é consequente do anterior. Vejamos o que Habermas afirma sobre a

compreensão de um significado essencial de um processo de entendimento:

“A compreensão de um significado é uma experiência

impossível de ser feita com base no solipsismo, por tratar-

se de uma experiência comunicativa. A compreensão de

uma manifestação simbólica exige essencialmente a

participação em um processo de entendimento. […] O

mundo da vida só se abre a um sujeito que faça uso de

sua competência linguística e de sua competência de

ação. O sujeito só pode ter acesso a ele participando, ao

menos virtualmente, nas comunicações de seus membros e

portanto convertendo-se a si mesmo num membro ao

menos potencial.” (Habermas, 1987, v. I, pp.159-160,

trad. livre).

361

Ao refletir sobre essas afirmações tão categóricas do autor, nos perguntamos: caso

utilizássemos um método de coleta de dados que implicasse a distância entre sujeito e

“objeto”, poderíamos nos basear em Habermas para fundamentar nossa análise ? Com

qual argumentação sustentaríamos um outro processo de “compreensão do significado”,

levando em conta que estaríamos fundados na teoria da ação comunicativa ?

O que buscamos, em profundidade, foi penetrar no mundo da vida cotidiano dos

indivíduos membros das organizações. Para tanto, nos orientamos pela observação

participante. Ela nos deu as condições propícias para fazermos pleno uso de nossas

competências linguística e de ação. Além do fato de não termos sido membros virtuais e

nem tampouco potenciais. Fomos membros efetivos daquelas organizações, com tarefas e

responsabilidades operacionais a desempenhar e a cumprir.

Uma posição análoga à de Habermas podemos encontrar também em Paul Feyerabend,

um dos autores que trabalhamos no Capítulo I para introduzir o tema da racionalidade.

Célebre epistemólogo, Feyerabend defende abertamente a participação como via de

acesso ao conhecimento:

“Não procuro novas teorias da ciência, pergunto antes se

vale a pena empreender a investigação dessas teorias e

concluo pela negativa: o conhecimento não vem das

362

teorias, mas antes da participação.” (Feyerabend, 1991,

p. 331).

Uma dimensão que julgamos importante acrescentar às considerações que compõem esta

seção é a dimensão do sujeito. Ela constitui-se numa linha que perpassa transversalmente

todo este estudo.

De início, a opção básica pelo trabalho de Guerreiro Ramos como fundamento indica que

a racionalidade substantiva é um atributo do sujeito. Não partimos de uma definição

formal e fechada, nem de uma teoria de cunho nominativo para caracterizar,

respectivamente, a razão e a abordagem substantiva. Seguimos o mesmo caminho de

Guerreiro Ramos, qual seja, a razão substantiva é um atributo do sujeito, embora,

evidentemente, deva ser considerada sob alguns parâmetros, tais como o julgamento ético

das ações, visando a boa regulação da vida social, a autorealização, etc., ela deve ser

derivada do e no processo de realidade, o que quer dizer, das ações concretas dos

indivíduos em interação.

A “definição” de ação racional substantiva que equacionamos a partir dos estudos de

Habermas e de Guerreiro Ramos é suficientemente aberta, ampla, tendo assim a mesma

característica de todas as menções que Guerreiro Ramos faz a este tipo de racionalidade

(procuramos seguir a sua linha de expressão e de pensamento), sendo para nós,

entretanto, suficientemente operacional.

363

A metodologia empregada no trabalho de campo dá todo o crédito à subjetividade do

pesquisador, incorporando esta dimensão na construção do conhecimento científico.

A opção de trabalhar com uma teoria de ação no plano da análise dos dados também

remete o estudo à dimensão do sujeito enquanto ator social. Assim engajamo-nos a toda

uma ampla tendência nas ciências humanas, conforme demonstramos sinteticamente no

presente capítulo. Essa ampla tendência é composta por matizes extremamente

diversificadas, o que lhe proporciona ainda maior riqueza e, aponta inegavelmente para o

retorno do ator, a dimensão esquecida e reprimida por muito tempo nas ciências

humanas. Comentando sobre o esforço desenvolvido por seus colegas canadenses no

sentido de reelaborar uma série de concepções da teoria das organizações, Alain Chanlat

(1985) afirma que “estamos na pesquisa de um novo humanismo centrado no sujeito”. A

este movimento, agregamo-nos delideradamente.

Outra consideração a fazer refere-se ao contraponto que endossamos face à maior parte

das obras que constituem a teoria das organizações. Este contraponto é mais do que mera

crítica, ele reside numa escolha epistemológica, pois diz respeito à concepção de

racionalidade.

Ao pretender examinar a racionalidade em organizações produtivas, entidades

econômicas que atuam num mercado competitivo, não incorremos numa visão

monológica, numa concepção unidimensional da racionalidade. Não partimos do ponto de

vista fechado de que racionalidade significa racionalidade econômica (formal,

364

instrumental), como se pode constatar na maior parte dos estudos que compõem a teoria

das organizações. A nossa análise comporta também o reconhecimento explícito de uma

racionalidade diametralmente oposta à razão econômica; é portanto, uma análise de

natureza dual. Desfazendo a unidimensionalidade conceitual, mantivemo-nos fiéis às

idéias defendidas pelos autores da corrente “substantivista”, desde Polanyi, Arensberg,

Pearson, Hopkins, até o próprio Guerreiro Ramos.

Por fim, acrescentamos que a análise aqui proposta está inteiramente situada no âmbito

antropo-sociológico. A primazia é concedida ao observável, daí decorrendo todas as

inferências que auxiliam a compreensão do sentido das ações. Tomamos o cuidado de

realizar inferências que possam ser sociologicamente constatáveis, verificáveis. O

simbólico, por exemplo, é examinado pelas manifestações que guardem estreitas relações

com as esferas da análise delimitada no domínio sociológico. As variáveis que nos

ajudarão a recompor uma tradução explicativa dos fatos testemunhados estarão sempre

circunscritas ao âmbito sociológico. Esta é a linha mestra para a interpretação das

realidades visitadas. Ela delimita todo este estudo. Não há, em nenhum momento, uma

redução do sociológico ao psicológico ou psicanalítico, por exemplo.

Diversos estudos elaborados no interior das ciências humanas iniciam pelo nível antropo-

social e desembocam em outros níveis alheios justamente no momento crucial: o esforço

explicativo, a interpretação. Opera-se uma redução do sociológico, do antroplógico, a um

nível de realidade externo ao social. Este é o caso de trabalhos memoráveis nas ciências

humanas, obras de grande envergadura. Podemos citar como exemplos os trabalhos de

365

Lévi-Strauss (1971), Sperber (1982) e Turner (1972), que remetem a explicação última

dos fenômenos observados, respectivamente, às operações do intelecto (que

proporcionam a conexão com as estruturas), ao aparelho mental inato e às necessidades

inatas e universais (pertinentes à psicanálise).

Esclarecemos que a utilização do termo “redução”, aqui, está totalmente isenta de

quaisquer preconceitos pejorativos. Referimo-nos à redução enquanto opção

epistemológica conscientemente realizada, condicionando sistematicamente a natureza da

explicação de determinados fenômenos sociais tomados como objeto de estudo e,

consequentemente, engajando tal estudo numa via determinada. O que queremos deixar

bem claro é que esta não foi a nossa opção. Permaneceremos, modesta, consciente e

decididamente, sempre no âmbito do social, ou melhor, do antropo-social.

Esperamos ter deixado suficientemente claras algumas orientações de caráter

epistemológico que adotamos na elaboração deste trabalho. O critério essencial que guiou

todas as nossa escolhas foi o da coerência.

Uma vez apresentados o quadro de análise, seus fundamentos, o processo de sua

constituição e os esclarecimentos de ordem epistemológica, partiremos para a descrição

das organizações pesquisadas, o contexto social-histórico que configura o seu ambiente e

a análise dos dados coletados. Estes são os temas a ser tratados no próximo capítulo.

366

Capítulo V - As organizações estudadas e seu contexto

I. Apresentação das organizações

O presente estudo comporta a análise de três pequenas organizações de serviços, situadas

na cidade de Salvador, capital do estado da Bahia.

Nas próximas linhas, faremos uma breve apresentação delas, para que o leitor possa se

familiarizar com o objeto do nosso trabalho.

Casa Via Magia:

A primeira organização chama-se Casa Via Magia. Trata-se de uma empresa privada com

dois sócios, os seus fundadores. Ambos são profissionais de nível superior que há vários

anos vêm trabalhando simultaneamente nas áreas de arte (notadamente no teatro) e de

educação.

Em termos organizacionais, a empresa é composta de três subunidades semi-autônomas:

uma escola infantil com cerca de trezentos alunos, uma produtora de arte voltada

367

essencialmente para a produção de peças de teatro de vanguarda e apresentações de dança

moderna, e uma clínica ou “condomínio de serviços” — como é definida por vários de

seus componentes —, isto é, um centro congregando 15 profissionais que prestam

serviços de psicoterapia individual e de grupo, aulas de música, psicopedagogia, medicina

naturista e homeopática, ajustamento corporal, aulas de teatro, dentre outros.

A escola foi a origem de todo o projeto, fundada em 1984, notabilizou-se em Salvador

pelos seus avançados métodos pedagógicos e pela qualidade de seus serviços. Goza de

grande prestígio entre as escolas infantis da cidade de Salvador. Devido à experimentação

constante que empreende, por meio de pesquisas e práticas inovadoras no campo da

educação infantil, tornou-se um centro de pesquisa e formação/aperfeiçoamento de

profissionais da área de educação na Bahia. Anualmente, a escola é muito procurada por

pesquisadores e estudantes de pedagogia, psicologia e áreas afins, no sentido de

empreender investigações e enquetes científicas, realizar estágios desenvolver programas

de intercâmbio profissional. Chama-se Casa Via Magia, dando o nome à empresa como

um todo.

A escola é definida pelos seus proprietários e demais profissionais que a compõem, como

“um espaço de educação, arte e arte-educação, dinamizado por metodologias que

objetivam desenvolver o processo de educação integral da criança”. Internamente, a

escola é formada por uma pré-escola que conta com um espaço verde denominado

“quintal”, habitado por animais domésticos tais como galinhas, patos, cachorros, gatos,

etc. Possui uma divisão de alfabetização, onde as cartilhas são elaboradas pelos próprios

368

alunos, cada qual utilizando os temas e as palavras de seu interesse, que são aproveitados

no processo pedagógico. O nível mais elevado é o primeiro grau, que conta com uma

Oficina de Artes e sessões de estudos ambientais. Neste nível, os livros didáticos são

produzidos pelos alunos, com o apoio técnico dos professores. Cada classe herda os livros

didáticos elaborados pela classe que ocupava aquela série no período letivo anterior. Já

está em curso a edição dos melhores livros por parte de uma grande editora de âmbito

nacional, fato que anima o corpo docente a dar continuidade a essa prática.

O limite máximo de alunos por classe é de 15, norma válida para todos os níveis. É a

única escola infantil privada em Salvador que estabelece este número como limite

máximo, fato que, por si só, já dá um tom diferenciado ao processo pedagógico alí

desenvolvido.

As artes em geral, notadamente o teatro e a poesia, permeam todos os níveis da escola,

bem como os seus processos pedagógicos. As oficinas artísticas são extensivas também

aos pais que desejam participar delas. Frequentemente, são produzidas peças infantis que

são apresentadas nos teatros do circuito comercial de Salvador, encenadas pelos alunos e

promovidas pela unidade de produção artística da empresa.

Trabalham na escola cerca de 30 pessoas, entre professores, coordenadores pedagógicos,

pessoal de secretaria e de serviços gerais. Os salários pagos são, em geral, ligeiramente

superior à média do mercado, principalmente em se tratando dos professores. A escola é a

subunidade principal da empresa, em termos econômicos. Ela é responsável por mais de

369

60% do seu faturamento global. As retiradas financeiras dos seus proprietários não são

fixas, nem seguem uma sequência regular previamente definida. Apesar de não contar

com uma administração financeira sofisticada, que possa fornecer dados bem elaborados

sobre a atividade econômica, vê-se claramente que o empreendimento da escola é

empresarialmente bem sucedido: ele não só é autosustentado, como também suporta a

expansão do negócio, dando a base financeira necessária para a criação e

desenvolvimento das duas outras subunidades da empresa, as quais serão objeto da

descrição a seguir.

A subunidade ligada a arte, Via Magia Produções é um pouco mais recente. Está

integrada a duas redes de produtores nesse ramo: a Rede Brasil de Promotores Culturais

Independentes e a Rede Latino Americana de Produtores Independentes de Arte

Contemporânea.

A Rede Brasil é uma cadeia de promotores (produtores, diretores de festivais e de salas de

espetáculos) sediados em vários pontos do país, dedicados a realização de espetáculos

cênicos contemporâneos nas suas diversas regiões. Tais promotores, que no interior da

Rede chamam-se Núcleos, sob a direção de um Núcleo Central, se dispõem a montar um

fundo coletivo para subsidiar o estabelecimento de circuito de turnês, a troca de

informações e o intercâmbio cultural entre os artistas dos diversos estados do Brasil. O

circuito é criado a partir do compromisso que cada Núcleo assume de promover

anualmente, pelo menos, um evento envolvendo artistas ou companhias de outros

estados. O intercâmbio entre os artistas é alcançado na medida em que os Núcleos

370

realizem laboratórios, aulas e/ou palestras, entre os artistas locais e os não locais. A troca

de informações se dá no âmbito de um Encontro Anual de todos os Núcleos da Rede.

O conceito é inteiramente novo no país. A Rede foi criada no contexto de uma proposta

de modificação estrutural das artes cênicas brasileiras, visa atuar profundamente nas áreas

de distribuição e infra-estrutura dos produtos culturais. Do Conselho Consultivo do

Núcleo Central, eleito para o biênio 93/94, faz parte um dos sócios da Casa Via Magia.

A Rede Latino Americana é uma organização transnacional que reúne representantes de 9

países (Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, México, Paraguai, Peru e Venezuela)

criada em maio de 1991, em Parati, por iniciativa dos diretores do Teatro Espaço de

Parati. A razão fundamental de sua criação foi o combate ao isolamento geográfico e

cultural que caracterizava os produtores de arte independentes nos países citados.

Daí, entre os objetivos principais da Rede encontram-se o incentivo a integração

continental, promovendo o intercâmbio de idéias entre os artistas dos diferentes países

latino americanos; a criação de um circuito alternativo de espaços e de produtores

independentes de teatro, dança, performance e música contemporânea; a projeção

internacional dos artistas e companhias envolvidos na criação contemporânea, ampliando

o seu mercado de trabalho e elevando o seu grau de profissionalização.

A sua organização é um pouco semelhante a da Rede Brasil. 15 Núcleos estão

constituídos. A cada ano, um dos Núcleos é escolhido para ser o Núcleo Central,

371

assumindo as funções de coordenação e administração da Rede. Há uma Assembléia

Geral, realizada num Encontro Anual de todos os Núcleos, onde são definidas as políticas

relativas a aceitação de novos membros, mudança nos estatutos, aprovação do orçamento

e da auditoria anuais. O Encontro Anual é o eixo central da entidade, além de dar

orientação geral para a Rede, é também um fórum de troca de informações sobre

tendências latino americanas e internacionais das artes contemporâneas, de troca de

video-tapes dos melhores trabalhos desenvolvidos em cada país naquele período e de

apoio aos produtores membros nas futuras programações.

Dentre outras atividades regulares de intercâmbio, a cada dois anos, a Rede escolhe uma

das cidades onde possui filiados para realizar um grande festival. Salvador foi escolhida

para a sede do próximo festival, o qual deverá ocorrer em setembro de 1994, tendo,

evidentemente, a Via Magia Produções como o Núcleo coordenador.

A estrutura da Via Magia Produções é bastante simples e pequena, como é de praxe nas

empresas desse ramo. Conta com 4 profissionais, sendo um coordenador e responsável

por esta subunidade da empresa, e os demais como técnicos. Todos possuem experiência

comprovada no campo da produção artística. Destarte o seu pequeno tamanho, a

produtora promove regularmente espetáculos de grande envergadura, notadamente peças

teatrais, que são apresentados em todas as salas de Salvador, com a participação de

artistas locais e também de grandes nomes do teatro e da dança moderna brasileiros.

Gostaríamos de ressaltar a existência do Grupo de Teatro Via Magia, companhia

permanente e já célebre no teatro baiano.

372

Além de promover espetáculos de cunho eminentemente profissional, vinculados ao

circuito comercial artístico, a produtora também é a responsável pela promoção das peças

encenadas pelos alunos da escola e seus respectivos pais, num esforço integrativo das

atividades da escola e da produtora.

Responsável por cerca de 10 a 20% do faturamento global da empresa Casa Via Magia, a

produtora é autosustentada economicamente. O pequeno quadro de pessoal contribui para

um volume de despesas que é coberto pelas suas próprias atividades. Outro fator que

auxilia a sua autosustentação é o fato de estar instalada em um dos prédios da empresa,

anexo à escola, numa sala que se encontra no último andar. Neste prédio funciona

também a secretaria administrativa, a biblioteca, a administração central e a coordenação

pedagógica da escola. Seus técnicos recebem remunerações compatíveis com a média do

mercado de trabalho no campo das artes.

A clínica foi criada no início do ano de 1993. Foi batizada com o nome de Casa do Meio,

devido a sua posição espacial: ela encontra-se instalada numa casa que está justamente

situada entre a escola e a produtora de arte, daí a sua denominação. A idéia de criá-la

partiu dos sócios proprietários da empresa, em conjunto com uma psicóloga que, desde o

início das atividades da escola, vem colaborando com o projeto, no campo da

psicopedagogia. Partindo da intenção de fundar um centro onde vários profissionais

pudessem fornecer serviços de qualidade, na perspectiva de um conceito amplo de saúde,

373

integrada a arte e a educação, os três fundadores foram convidando profissionais que

apresentassem perfis compatíveis com a orientação básica já posta em prática na escola.

Assim, foi ocupado o prédio que se situa entre a escola e a sua secretaria, o qual antes

estava alugado a um órgão da prefeitura de Salvador. A absorção deste espaço físico pela

empresa deu uma conotação de integração ao projeto como um todo. Profissionais de

áreas não relacionadas com a saúde foram também se juntando à clínica, totalizando

quinze profissionais, distribuídos pelos campos da psicoterapia, medicina naturista e

homeopática, psicopedagogia, ajustamento corporal, healing, origami e arte em papel,

teatro e música.

Nos últimos quinze anos, observa-se na cidade de Salvador a fundação de pequenas

empresas, congregando profissionais ligados a medicina natural, psicoterapia,

massoterapia e desenvolvimento do espiritualismo em suas diversas modalidades.

Podemos inserir a criação da Casa do Meio como mais um empreendimento que pertence

a este ramo em geral, embora lá não se ofereça serviços de natureza espiritualista ou

esotérica, como em alguns outros. Tal tipo de empreendimento tem florescido bastante

nesta cidade à medida em que ela aumenta de tamanho e torna-se uma metrópole

complexa.

O funcionamento interno da Casa do Meio apresenta algumas semelhenças com as outras

clínicas do gênero: uma espécie de “condomínio” é operacionalizado, com cada

profissional tendo a sua receita própria, sua autonomia de ação e rateando as despesas

374

comuns. O prédio é alugado, trata-se de uma casa com aparência residencial, ampla e bem

divivida, com três pavimentos. O seu aluguel é rateado por todos os profissionais, a partir

de um critério de ocupação de espaços. Há uma administradora do condomínio, que lidera

quatro empregados distribuídos pelas atividades de recepção, portaria e serviços gerais. A

administradora e os demais empregados recebem salários com base na média do mercado.

Esse custo de pessoal faz parte também do rateio geral de despesas. Os donos da Casa Via

Magia não têm qualquer participação a título de lucro no empreendimento Casa do Meio.

A lanchonete da Casa do Meio é a única fonte de receita adicional proveniente da clínica.

Essa é a maior organização dentre as incluídas na nossa pesquisa. Cerca de 50 pessoas

trabalham na empresa, sendo 80% do sexo feminino.

A empresa situa-se no bairro da Federação, uma zona de classe média e também de baixa

renda da cidade de Salvador, apesar de atender a uma clientela que pertence às classes

sociais mais favorecidas economicamente.

Espaço Lumiar:

A segunda organização chama-se Espaço Lumiar e congrega também três subunidades. É

uma fundação de direito privado. Em torno de trinta pessoas participam do

empreendimento, compreendendo os membros fixos e os colaboradores eventuais.

375

A empresa foi fundada no ano de 1992, no entanto, a sua origem está ligada a uma outra

organização, a Lothlorien, uma clínica que oferecia serviços de medicina naturista e

psicoterapia. A Lothlorien notabilizou-se em Salvador, por duas razões: primeiramente,

por ter sido o centro pioneiro na oferta de serviços e de tratamentos regulares baseados

em medicina naturista na Bahia; em segundo lugar, por que era uma espécie de extensão

de uma comunidade alternativa fundada no início dos anos 80, na região do Vale do

Capão, Chapada Diamantina. Dentre as tentativas de estabelecer comunidades

alternativas rurais nos anos 70 e 80 na Bahia, a do Vale do Capão foi a única bem

sucedida que se tem notícia. Continua a existir e a florescer. Seus membros são animados

por uma filosofia existencial própria, que mescla elementos de espiritualismo e de

ciência, denominada por eles Amor Incondicional.

O crescimento da comunidade no Vale do Capão, a sua progressiva complexidade, a

singularização profunda com relação ao núcleo situado na capital — a Lothlorien — além

da distância (650 km) entre as duas organizações, foram alguns dos fatores que

contribuíram para a autonomização completa das duas entidades. As pessoas mais ligadas

à comunidade separaram-se dos outros, indo residir definitivamente no interior. Assim, a

Lothlorien encerrou as suas atividades, já desenvolvidas desde os anos 80, sendo fundada

a organização Espaço Lumiar.

Sua unidade principal é uma clínica, um pouco semelhante à Casa do Meio, pois oferece

serviços de psicoterapia, medicina naturista, ajustamento corporal e tarô de

autoconhecimento. A clínica é o coração da organização, sede principal e onde está a

376

maior parte dos seus membros. Funciona também mediante a solução de “condomínio”,

embora não possua um administrador profissional para cuidar das tarefas que lhe são

específicas como na Casa do Meio. No Espaço Lumiar, a administração é tarefa

desempenhada dentro do conjunto dos profissionais que trabalham nas atividades fins.

Dez pessoas trabalham na clínica, compreendendo duas recepcionistas. Os custos são

rateados igualmente por todos. As recepcionistas são empregadas e recebem salários

relativos ao mercado de trabalho em Salvador.

A segunda unidade é a Editora Deva, direcionada à divulgação da alimentação e medicina

natural, filosofia e análise social. Um de seus produtos, uma revista trimestral chamada

Vivências, é distribuído em vários estados do país e em alguns países estrangeiros. Sua

tiragem é de 3.000 exemplares. A revista é mais antiga que a organização Espaço Lumiar,

ela vem sendo editada desde a existência da extinta Lothlorien. Também livros são

publicados pela editora. Nela trabalham, como membros fixos, duas pessoas, o seu editor

e um auxiliar. Cerca de 15 pessoas trabalham como colaboradores (responsáveis por

seções da revista) e prestadores de serviços gráficos e jornalísticos à revista. Eles não se

fixam cotidianamente na sede e são remunerados por tarefa a cada edição.

A sede, que congrega a clínica e também o escritório da editora, está situada no bairro da

Pituba, um dos mais sofisticados da capital baiana. O editor da Deva participa do rateio

das despesas do “condomínio”, como também das reuniões e das tarefas de manutenção

do empreendimento, em pé de igualdade com os outros profissionais da clínica.

377

A terceira unidade, situa-se no interior do estado, num sítio denominado Terra Mirim, à

70 km. de Salvador, onde são levadas adiante experiências de vida comunitária,

agricultura natural e psicoterapias de grupo, além de rituais xamânicos. Alguns terapeutas

mesclam psicologia transpessoal e xamanismo no atendimento aos seus clientes. Os

membros da organização que são ligados ao xamanismo vão frequentemente ao exterior

com o intuito de aprofundar os conhecimentos sobre xamanismo, notadamente ao Peru.

Assim, o sítio Terra Mirim constitui-se num espaço adequado para a prática de rituais de

fundo xamânico. Tais eventos atraem grupos crescentes de pessoas/clientes interessados

em conhecer e participar de tais rituais.

Entretanto, não seria correto definir a Espaço Lumiar como uma organização

eminentemente religiosa. Não há uma seita normativamente estabelecida, nem uma

religião comum a todos os membros. Não se trata de uma organização que tenham como

atividade principal a difusão de uma dada religião. Não é exigido aos seus membros que

sigam ou que divulguem tal ou qual religião. Em relação ao xamanismo, apenas alguns de

seus membros (as terapeutas) praticam rituais xamânicos mesclados a atividades de

terapias em grupo. O restante dos membros da organização respeitam a realização dos

rituais, embora deles não participem.

Cinco pessoas habitam e trabalham no sítio Terra Mirim, que é de propriedade de dois

membros do grupo permanente.

378

Ao todo, a organização Espaço Lumiar conta com 17 membros permanentes e cerca de 15

a 20 colaboradores eventuais. Apenas um membro permanente é do sexo masculino,

trata-se do responsável pela editora, todo o restante é composto por mulheres. Dentre os

colaboradores eventuais, a grande maioria é também de mulheres.

A nossa análise, desenvolvida mais adiante, vai ser centrada nos membros permanentes,

preferencialmente os que atuam na sede principal, situada em Salvador, pois lá é que se

tomam as decisões gerais e também onde 90% das atividades globais são desenvolvidas,

gerando assim a renda para a existência da organização. É também lá onde funciona o

“condomínio”.

Espaço Aquarius:

A Espaço Aquarius (nome fictício) é a menor organização dentre aquelas que foram alvo

da presente pesquisa. É uma empresa privada, registrada como associação de

profissionais liberais. Foi fundada há exatamente cinco anos.

A empresa constitui-se de uma pequena clínica psicológica, composta de sete

profissionais liberais e três empregados, que pode também ser considerada um

“condomínio” de serviços, embora de amplitude menor que os anteriores.

379

Além de psicoterapia, oferece também serviços de medicina homeopática,

psicopedagogia e de lazer organizado (excursões ecológicas e “acampamento verde”).

A sua origem se reporta à segunda metade dos anos 80 e tem raízes na existência de uma

entidade fundada por profissionais ligados à saúde mental e orgânica, no interior do

estado. Esse “centro”, como é denominado pelos seus antigos membros, desenvolvia

estudos e experiências voltadas para a integração mente e corpo, numa perspectiva de

saúde global. Após alguns anos de funcionamento, o centro encerrou as suas atividades,

daí, quatro de seus membros fundaram uma clínica em Salvador, que tem alcançado

sucesso nesse mercado, atestado pela demanda crescente de seus serviços e uma ótima

imagem nesse mesmo mercado.

Uma das fundadoras saiu logo após o início do funcionamento da clínica, às três restantes

agregaram-se outras profissionais, totalizando, em 1993, período de nossa pesquisa de

campo, sete profissionais. Tais profissionais, são assistidas por duas recepcionistas e um

vigia, empregados e pagos a preço de mercado. Curiosamente, trata-se também de uma

organização quase que totalmente composta por mulheres. A única exceção é o vigia.

A sede da empresa está situada no elegante bairro da Pituba, o mesmo onde está o Espaço

Lumiar. Ocupa uma casa ampla, de aparência residencial, numa zona sofisticada da

cidade de Salvador.

380

O sistema de atendimento aos clientes obedece a autonomia de cada profissional, dentro

de seu respectivo espaço físico e domínio técnico. Cada qual possui a sua clientela,

independentemente dos demais. Os empregados prestam serviços de apoio logístico a

todos os profissionais.

As atividades de administração geral, gestão financeira e manutenção são desempenhadas

pelos próprios profissionais, mediante um sistema de rodízio de responsabilidades, o qual

será detalhado na análise dessa empresa.

Trata-se de uma empresa que goza de um conceito invejável no seu ramo em Salvador.

Não dispomos de dados cientificamente levantados e tratados mas, pode-se afirmar sem

sombra de dúvidas de que a empresa é muito bem conceituada no ramo do atendimento

psicológico em Salvador. Pudemos coletar depoimentos de alguns profissionais

autônomos que atuam neste ramo, de grupos organizados em outras clínicas, tais como os

da Casa do Meio e da Espaço Lumiar, como também de pessoas que já se beneficiaram

dos seus serviços, todos atestam as informações correntes na cidade em geral de que a

Espaço Aquarius é uma clínica que oferece serviços de alta qualidade.

Isto parece explicar o fato da empresa não sofrer problemas de ordem financeira mesmo

numa época de crise econômica generalizada. A sua demanda é relativamante estável,

assegurando também uma estabilidade econômica do negócio que reflete a qualidade dos

profissionais que compõem a empresa.

381

Há cinco anos, desde a sua fundação, a empresa vem se consolidando como uma das

melhores clínicas neste ramo em Salvador. Pode ser apontada como uma empresa de

sucesso, dentro das suas condições específicas. Confessamos que este também foi um dos

aspectos que nos levou a inserir a Espaço Aquarius na nossa pesquisa.

Em seguida, gostaríamos de fazer algumas breves considerações a respeito da cidade de

Salvador, o contexto socio-histórico no qual estão inseridas tais empresas.

Organizações são fenômenos sociais, portanto, acreditamos que algumas informações

prévias sobre o contexto que envolve as organizações por nós pesquisadas, certamente

conduzirá o leitor a uma melhor percepção da natureza do fenômeno ao qual nos

dispomos a estudar. Acreditamos também que alguns aspectos desse contexto poderão

ajudar a compreender o surgimento das organizações acima descritas.

II. Notas sobre o contexto sócio-histórico da cidade de Salvador

A cidade de Salvador é a mais antiga do país. Começou a ser habitada em 1534 e foi

oficialmente fundada em 1549 por Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil,

sendo a partir daquele ano a primeira capital do país.

382

Suas origens históricas transformaram-na num grande centro turístico, receptivo de todas

as partes do mundo. No ano de 1993, período da nossa pesquisa de campo, a cidade está

situada numa área de 324 km² e conta com 2.056.013 habitantes, já se constituindo na

terceira cidade do país, apenas atrás de São Paulo e Rio de Janeiro.

A atividade industrial é predominante na economia da cidade. Num raio de 80 km,

encontram-se três grandes centros industriais: um centro de indústrias de base,

comportando duas usinas siderúrgicas, uma refinaria de petróleo e várias zonas de

exploração de petróleo; um centro petroquímico — o maior do país — que comporta

também fábricas de química fina; um centro de produção de bens de consumo, composto

de dezenas de grandes e médias empresas. Os setores de comércio e serviços são também

bastante desenvolvidos. Podemos considerar a atividade do turismo como a principal do

setor de serviços.

No campo da educação superior, em 1993, a cidade conta com seis estabelecimentos de

ensino que oferecem 45.908 vagas.

No que concerne a comunicações e transportes, a cidade possui uma vasta rede de

estações de rádio, cinco jornais cotidianos e cinco canais de televisão. Possui também um

aeroporto internacional e seu porto marítimo serve como entreposto comercial para várias

rotas internacionais.

Portanto, Salvador é uma cidade de grande porte suficientemente ligada ao mundo.

Malgrado a visível pobreza da maioria de sua população, podemos afirmar que se trata de

383

uma cidade bastante moderna e caracterizada pela existência de alguns sistemas

produtivos de natureza pós-industrial. O que acarreta a ocorrência de fenômenos típicos

dos grandes centros urbanos ocidentais.

Nesses centros, principalmente naqueles que foram fundados antes do advento do

capitalismo, como Salvador, a entrada na fase do capitalismo tardio (bem como de suas

consequências) provocaram profundas avarias no tecido social. Vários fenômenos ou

mudanças abalaram profundamente os modos de vida nessas aglomerações urbanas.

Podemos citar aqui apenas alguns deles, para não tornar cansativa ao leitor essa lista: a

automatização industrial, a “automatização” crescente da vida social, a intensificação da

comunicação de massa, a burocratização e padronização dos comportamentos, a

competição pessoal e também profissional, o individualismo exacerbado.

Aliada aos problemas de cunho psicossocial, a crise econômica agrava sensivelmente tais

problemas. Tal crise, que se verifica em escala mundial, ganha contornos específicos,

particulares a cada região, dependendo de sua estrutura produtiva, modos de acumulação

do capital, sistemas de regulação econômica, percurso histórico, dentre outros fatores.

No caso de Salvador, os efeitos da crise são inegavelmente contundentes. O setor

secundário, base da economia local e principal responsável pelo extraordinário

crescimento da cidade nos últimos 20 anos, tem sofrido sérios abalos com a recessão

econômica global. O centro industrial petroquímico estancou o seu crescimento,

realizando difíceis ajustes: segundo o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias

Químicas, cerca de 30% da mão de obra foi dispensada nos últimos 4 anos, não havendo

384

nenhuma perspectiva concreta de reaproveitamento futuro desse contingente. Várias

unidades industriais diminuíram bastante o volume de sua produção e a média de salários

no mercado de trabalho já não consegue se manter nos padrões dos anos 70 e 80.

Paralelamente, o centro industrial que comporta majoritariamente fábricas de produção de

bens de consumo, situado em Aratu, a 30 km da capital, entrou em período de declínio

acelerado, não absorvendo praticamente nenhuma mão de obra adicional.

Como se não bastassem tais involuções do setor secundário, uma verdadeira vaga de

falências assola os grandes grupos econômicos locais. Em apenas cinco anos, várias

grandes empresas baianas, que absorviam grandes contingentes de pessoal, faliram ou

estão deixando as atividades no estado. É o caso dos outroras potentes grupos Correia

Ribeiro, Paes Mendonça, Barreto de Araújo, Manoel Chaves, que faliram no todo ou em

parte. Também os casos da OAS e das empresas de construção civil do grupo Odebrecht,

que estão que estão paulatinamente concentrando atividades em outras regiões. No setor

financeiro, tradicional reduto da economia baiana, observa-se que a sua maior empresa, o

grupo Econômico, começa a enfrentar sérias dificuldades para sobrevivência.

Assim, os abalos na estrutura econômica local aprofundam os efeitos da crise social, seja

através da instalação do desemprego estrutural e do consequentemente aumento da

violência urbana, seja pela incerteza generalizada causada pela ausência de oportunidades

no seio de uma população predominantemente jovem.

385

Não podemos esquecer que comunidades como a de Salvador viviam numa configuração

socio-histórica do tipo tradicional há não muito tempo atrás. As mudanças recentes foram

tão bruscas que provocaram neuroses coletivas e sobretudo individuais. As antigas

ligações pessoais de solidariedade estão sendo gradativamente substituídas por processos

competitivos e a sobrevivência torna-se uma luta permanente, gerando insegurança física,

econômica e psicológica.

Nesse contexto, pode-se observar uma grave crise que estremece os valores que

sustentavam a ação humana e lhe conferiam sentido. A frequência das doenças nervosas

aumenta sem cessar. Recentemente, os resultados de uma pesquisa realizada pelos

profissionais do Hospital das Clínicas de Salvador, indicaram que mais da metade das

doenças diagnosticadas nos pacientes do referido hospital (um dos maiores da cidade) no

ano de 1992, têm origem nervosa e que a tendência para os próximos anos é de aumento

substancial.

A busca de novos valores morais e o combate às doenças advindas do stress, amplia a

demanda por novos padrões de educação e também de tratamentos médico-psíquicos

generalizados. No entanto, as redes públicas de órgãos voltados para o atendimento das

necessidades nos campos da educação e da saúde deixam muito a desejar, oferecendo

serviços de péssima qualidade, além de quantitativamente insuficientes face à população.

Tal realidade, verificada em Salvador, não é muito diferente daquela encontrada na

maioria das grandes capitais brasileiras.

386

Assim, uma significativa parte da classe média, agregada aos estratos econômicos mais

elevados da sociedade local, demandam serviços especializados de educação e saúde,

dentre outros, fora do âmbito das redes públicas, ocasionando assim um mercado atraente

para o estabelecimento de agentes produtivos de natureza privada, dispostos a satisfazer

uma clientela crescente e, até certo ponto, ansiosa.

Podemos conceber, em princípio, dessa forma, a grande proliferação de clínicas e de

estabelecimentos educacionais de médio e pequeno porte que vem acontecendo desde os

anos 80 em Salvador. Tais empreendimentos constituem uma oferta de serviços altamente

especializados, em alguns casos até personalizados, como resposta direta à crescente

demanda. A flexibilidade e a diversidade desses estabelecimentos parece refletir a

natureza eclética das demandas de saúde (numa concepção ampla) e de educação numa

sociedade plural como a de um centro urbano das proporções de Salvador.

Malgrado a explosão verificada na demanda por tais serviços, a competição no lado da

oferta é feroz, uma vez que sendo requerido um volume de investimento não muito

elevado para a entrada no mercado, vários agentes se lançam nesses mercados, em luta

pela conquista e pela fidelidade do cliente. Evidentemente, o diferencial nessas atividades

não é o capital fixo, e sim a qualidade e a efetividade da prestação dos serviços a uma

clientela instruída e exigente.

Este panorama, traçado aqui em breves linhas, poderá ajudar a explicar a existência de

um novo mercado de serviços, tipicamente metropolitano, o qual caracteriza o ambiente

387

em que estão inseridas as organizações de nossa pesquisa. Passaremos, nos próximos

capítulos, a apresentar a análise de cada empresa separadamente.

388

Capítulo VI - Análise da Casa Via Magia

O estilo que empregaremos para apresentação da análise desta empresa, bem como das

outras duas que se seguem nos capítulos subsequentes, teve como fonte de inspiração o

texto do célebre estudo antroplógico de Gregory Bateson La cérémonie du naven,

elaborado nos anos 30 e publicado em língua francesa em 1971 por Les Éditions de

Minuit. O estilo utilizado por Bateson (1971) para estabelecer a argumentação,

notadamente nos capítulos 5 (sorcellerie et vengeance) e 7 (la sociologie du naven), nos

inspirou a elaborar a forma de apresentação e de argumentação da análise das empresas

aqui examinadas.

Assim, buscaremos evidenciar o quanto possível as evidências que sustentam as nossas

afirmativas e deduções sobre os processos observados no trabalho de campo, com

reproduções das situações vivenciadas, das falas dos atores em seus termos originais, dos

casos passados contados pelos atores, constituindo assim, talvez, um estilo não muito

comum aos textos herméticos e técnicos que são dedicados à teoria das organizações.

Entretanto, como o nosso estudo foi realizado numa base etnográfica, julgamos adequado

manter a coerência entre essa base e o estilo de apresentação da análise que ela

proporcionou.

389

Neste capítulo apresentaremos a análise da organização Casa Via Magia, seguindo a

sequência dos processos organizacionais enfocados. Primeiramente os essenciais e, logo

em seguida, os complementares, conforme definidos no Capítulo IV.

Hierarquia e normas:

Na produtora de arte, há um dirigente que responde por esse setor da empresa. Sua fonte

de poder, a razão pela qual foi conduzido ao posto, é o conhecimento no ramo, a

experiência acumulada de vários anos de atividades no teatro baiano e nacional, como

autor e ator em várias peças, notadamente no teatro de vanguarda. Seu estilo é fundado no

diálogo constante e proximidade para com os técnicos de sua equipe. O poder é

desconcentrado, na medida em que se agrega fortemente a ação.

Numa produtora de arte, trabalha-se com eventos. Quase tudo gira em torno dos eventos,

das “produções” agendadas. O trabalho é extremamente diversificado, conferindo uma

dinâmica acelerada ao cotidiano da equipe. As atividades não seguem uma sequência

minuciosamente programável. Ao agregar-se a ação, juntamente com os técnicos de sua

equipe, discutindo cada passo a ser dado, a chefia assume muito mais a subtarefa de

coordenação do que a de direção propriamente dita. A busca de acordos, consensos, que

facilitem o cumprimento das tarefas, segundo práticas aprovadas por todos, ressalta a

forte presença das ações de entendimento e também um forte senso de equipe.

390

O entendimento é a ação mais típica da hierarquia, em todos os níveis. Presenciamos uma

importante reunião deliberatória sobre o lançamento de um grande festival de arte

dramática e dança moderna, o qual ocuparia praticamente todas as salas de espetáculos da

cidade de Salvador, durante uma quinzena, com espetáculos apresentados por vários

grupos nacionais e internacionais. Da reunião, participaram os dois proprietários da

empresa, a chefe da produtora de arte e os seus técnicos. Todos tiveram voz e voto na

reunião, ocupando o mesmo nível que os dirigentes da empresa. Não havia distinção

específica de autoridade. A reunião foi realizada, inclusive, nas próprias instalações da

produtora.

Também detectamos a importância do desempenho. Um dos eixos nos quais centra-se a

ação da hierarquia é o desempenho, a performance dos técnicos. Estes, são livres para

estabelecer prioridades no encadeamento de suas tarefas, para que o desempenho seja o

melhor possível face ao evento que sempre tem um prazo, uma data definida para ser

realizado.

Na clínica de serviços Casa do Meio, pode-se observar também a predominância do

entendimento, embora respaldado numa solução hierárquica. O surgimento da clínica

gerou, por sua vez, a formalização de uma esfera hierárquica: o Conselho. Inicialmente

composto para implantar e coordenar o estabelecimento das políticas gerais da Casa do

Meio, o Conselho foi, pouco a pouco, abrangendo o âmbito de toda empresa, como uma

instância consultiva maior. Como ele nasceu em função da criação da clínica, e é lá que a

391

sua ação é bem mais expressiva (para o resto da empresa ele apenas começava a ter um

papel de reflexão), então avaliaremos a sua atuação a partir daquele setor.

A sua composição é a seguinte: os dois sócios da empresa, a administradora da clínica e

uma profissional psicóloga, ligada à escola quase desde a sua fundação. Essa profissional

teve uma atuação decisiva na fundação da clínica. Trata-se de uma profissional com

grande clientela em Salvador, que coordena grupos de crescimento transpessoal. Ela

convenceu os donos da empresa a implementar um projeto de uma clínica, que pudesse

contar com vários profissionais de especialidades diferentes, visando complementar

definitivamente o tripé arte-educação-saúde integrados, lema básico da empresa. Ela,

ainda, escolheu vários dos profissionais que foram convidados a fazer parte da clínica.

Ao referir-se à modalidade de atuação e significado do Conselho, ela nos revelou:

— “Ele tem uma atuação mais organizativa do que

diretiva. Ele segue como um elemento integrador do

projeto educação-arte-saúde. Ele também examina a

entrada de novos profissionais na Casa do Meio. Não é

um Conselho vertical, e sim organizativo.”

Apesar de ser membro do Conselho, ela não conseguiu fazer prevalecer a sua opinião

sobre uma questão relativamente crítica:

392

— “Uma das grandes questões que enfrentamos no início

foi a da base de rateio do condomínio. A minha proposta

foi a da divisão por pessoa, mas os mais novos, aqueles

que ainda não têm grande clientela, argumentaram em

contrário e propuseram o critério de espaço. Eu hoje

pago duas cotas de condomínio e é muito pesado para

mim. Ainda não estou plenamente convencida da justeza

dessa solução mas, aceitei a resolução do grupo.”

Alguns outros profissionais da clínica emitiram suas impressões sobre esse órgão:

— “Vejo o Conselho com tranquilidade. Não há

autoritarismo, o Conselho é um consenso. Eu vejo uma

clara correspondência da sua existência com alguns

fundamentos da antroposofia.”

— “Sinto que há diálogo, não há decisões de cima para

baixo. Eu tenho autonomia de expressão, de discordar.

Existe esse espaço.”

— “No processo administrativo existem decisões que não

necessitam de discussões coletivas, porque aqui não é

uma co-gestão, é uma empresa, o Conselho é a

393

representação de que é uma empresa. Eu não sinto o

Conselho fechado, entretanto.”

Em reuniões mensais, com a participação de todos os profissionais da clínica, não

notamos nenhuma distinção entre os membros do Conselho e os demais, no tocante ao

uso da palavra e prioridade de opiniões. Ainda assim, a sua existência é um dado

inegável, a sua composição revela a marca da formalização da hierarquia (os donos, a

gerente e a profissional mais antiga no projeto), reforçando, no nosso quadro de análise, a

presença do elemento fins com conotações de poder.

Na escola infantil, que deu o nome a empresa (Casa Via Magia), também os proprietários

ocupam posições-chave, embora prevalecendo, como nos outros setores, as ações de

entendimento. Eles desempenham a função de supervisão da coordenação pedagógica,

além de representar a escola perante a clientela.

Sobre a relação hierárquica na escola, um membro da coordenação pedagógica tem a

seguinte percepção:

— “Há a questão hierárquica, mas é muito sutil. A função

direção é diluída na supervisão e na coordenação. Os

diretores não são burocráticos, eles estão diretamente

envolvidos no desenvolvimento do projeto pedagógico,

isso é muito importante e cria o diferencial em relação a

394

várias outras escolas. Tem uma ordem, mas ela surge na

necessidade que o trabalho possa fluir, e não devido a

uma hierarquia primordial.”

Participamos das reuniões pedagógicas, ocasiões em que todo o corpo docente se reúne

para tratar de assuntos gerais do cotidiano da escola, desenvolver treinamento em grupo,

refletir sobre o processo pedagógico, etc. As reuniões foram coordenadas por um dos

proprietários. Sua atitude era, tipicamente, de facilitador dos processos grupais. Durante

as discussões, ele opinava como qualquer outro participante, sem distinção de peso ou

qualquer tipo de “voto de minerva”. Contudo, a condução das reuniões era sempre de sua

responsabilidade. A sua postura era de abertura, uma das reuniões foi aberta por ele da

seguinte forma:

— “Como vocês querem trabalhar hoje ? ”

O grupo decidiu, de fato, a metodologia de trabalho a ser utilizada naquela sessão.

Em períodos próximos de nova etapa de abertura de matrículas, faz-se reuniões com pais

que estão interessados em matricular, pela primeira vez, seus filhos naquela escola. À

reunião comparece um grupo de pais e, pelo lado da escola fala um sócio, somente

quando da sua impossibilidade, devido a possíveis outros compromissos, destaca-se

algum coordenador pedagógico para o substituir.

395

O processo de estabelecimento de normas é deixado a critério de cada unidade da

empresa — produtora de arte, clínica e escola — embora somente na escola tenha-se

alcançado uma real formalização, principalmente com o estabelecimento de normas

escritas. A esta unidade nos ateremos, pois nas demais, as normas são essencialmente ad

hoc, sem uma visível continuidade.

Existem normas escritas que disciplinam os comportamentos de alunos, professores e

pais. Em geral, as normas referentes aos alunos delimitam as zonas de respeito à

individualidade, uso de violência, jogos sexuais, presentes habitualmente nas interações

infantis, e ainda a participação em atividades extra-classe, direitos e deveres para com os

professores. Com relação aos pais, dirigem-se às questões do lanche dos filhos durante a

sua permanência nas instalações da escola, horários de entrega e busca das crianças, apoio

nas atividades escolares em casa, etc. Aos professores, determina-se, sobretudo, a forma

pela qual se desenvolve o construtivismo baseado na filosofia e valores da escola,

incluindo sua relação com os alunos, os pais e entre os colegas do corpo docente, dentre

outros temas.

Ao matricular os seus filhos, os pais recebem um exemplar das normas dirigidas a eles.

As crianças recebem o seu respectivo conjunto de normas em sessões de discussões

coletivas sobre as mesmas. As normas são elaboradas previamente nas reuniões

pedagógicas do corpo docente. Aquelas que se referem aos alunos são discutidas

exaustivamente com eles e reelaboradas em novas reuniões pedagógicas.

396

Uma das normas mais polêmicas, a do lanche limitado, em geral, a alimentos naturais, foi

elaborada após uma extensa pesquisa em supermercados, feita com as próprias crianças

em companhia de um especialista. Cada alimento de interesse das crianças era analisado

em termos de sua composição química e consequências para a saúde. Assim, foi

elaborada uma extensa lista de alimentos não obrigatoriamente “sem nenhum componente

artificial”, que podem ser trazidos de casa para o lanche. Tal lista é remetida aos pais.

Uma professora nos explicou alguns aspectos desse processo:

— “Primeiro, nos momentos de elaboração ou

reelaboração de normas, procura-se lembrar como

aquela norma nasceu. As regras surgem da prática, da

vivência. Elas surgem a partir da filosofia, por exemplo, a

alimentação natural. Essa regra foi muito questionada

pelos alunos. Então levamos as crianças a supermercados

com a profa. de educação ambiental para estudarmos

corantes, aditivos, etc. Daí surgiram concessões. Hoje é

possível trazer salgadinhos de algumas marcas menos

danosas à saude; pesquisamos os mais leves e fizemos,

juntos, uma lista. Com o tempo, passamos a observar que

os pais estão burlando a lista e enviando de outros tipos

mais pesados. Agora é hora de rediscutirmos essa regra.”

397

O julgamento ético pode ser percebido como um elemento de grande influência em todo o

processo. Nas reuniões pedagógicas, presenciamos a discussão de regras sobre a

violência, a autodefesa entre as crianças, etc. Após longos debates de fundo ético,

reforçou-se, dentre outras, as seguintes regras: vale bater, caso seja agredido por outra

criança do mesmo tamanho; nunca vale bater em colegas menores; meninos nunca

podem bater em meninas.

A questão da flexibilização das normas, também nos chamou a atenção pelo seu

fundamento ético. Uma professora nos deu o seguinte testemunho:

— “As normas podem ser flexibilizadas, mas nunca

ignoradas, vou dar dois exemplos :

‘Não pode ficar fora da sala de aula, se não estiver no

horário do intervalo’ , mas, se há um motivo justo e

sinceridade no aluno, então nós liberamos ele pelo tempo

que ele necessite, após conversarmos;

‘Refrigerante no lanche, nunca’ , mas, se a criança

trouxer esporadicamente um bolo, por exemplo, que tenha

um significado muito especial para ela, pois pode ter sido

feito pela avó, ou ainda ser uma sobra do seu aniversário,

etc., então fazemos a concessão;

398

Em quaisquer casos de flexibilização, a criança tem que

negociar conosco, e nós temos que lhe explicar as razões

daquela concessão.”

Por vezes, a resistência a determinadas normas vem da parte dos pais. Uma coordenadora

explicou a postura da escola:

— “Quando determinados pais furam frequentemente

algumas normas, então nós nos interessamos em

conversar com eles. Sabemos que eles têm algo a nos

dizer. Há atendimento disponível também para os pais.”

Como veremos adiante, a forma pela qual lida-se com as crianças na escola repercute

fortemente em todas as demais unidades da empresa. A escola foi a primeira célula a

funcionar, é compreensível a sua influência sobre os outros setores.

Assim, é que nesta rubrica, composta dos processos organizacionais hierarquia e normas,

o entendimento, elemento constitutivo da racionalidade substantiva, foi o indicador

predominante, a partir da análise das observações, das entrevistas e dos documentos. O

diálogo, a discussão constante, a comunicação intensa embasando negociações

frequentes, são como um meio de vida dessa organização.

399

De conformidade com nosso quadro de análise e das fontes de dados acima citadas,

também pudemos identificar a presença de outros elementos, embora não predominantes.

É o caso do julgamento ético, dos fins e do desempenho, estes dois últimos pertencentes à

esfera da razão instrumental. Embora atenuada, seja através da nítida predominância de

ações de entendimento, seja por meio de práticas de administração participativa, a

hierarquia se faz claramente presente no conjunto da empresa.

Assim, situamos essa rubrica/variável na escala de intensidade da racionalidade

substantiva como elevada.

Valores e objetivos organizacionais:

Na produtora de arte os técnicos gozam de grande dose de liberdade e expressam um alto

grau de comprometimento. No contexto de cada evento a ser realizado, eles desenvolvem

sua atividades sem qualquer tipo de constrangimento, impondo, cada um, o seu próprio

ritmo de trabalho (em geral, acelerado). Manuseiam recursos materiais diversos, como é o

caso dos recursos de comunicação, fax, telefone, transporte, etc., sem ter que pedir

autorização prévia para fazer telefonemas internacionais, por exemplo. O ritmo de

trabalho é intenso, principalmente nos dias que antecedem proximamente os eventos.

400

Nessas ocasiões, os horários de trabalho são significativamente ampliados. Não notamos

nenhuma insatisfação em decorrência disso.

O respeito à individualidade é também praticado. Como um exemplo, podemos citar uma

situação constrangedora, criada por um erro primário de um dos técnicos: ele enviou, por

engano, um fax contendo informações financeiras (valores de contrato, propostas de

preços, etc.) para um jornalista de um órgão da imprensa. Tal fax deveria ser remetido a

um conhecido ator. A chefia da produtora, ao saber do erro, o qual poderia acarretar

consequências nefastas para a imagem da empresa por razões óbvias, não usou de suas

prerrogativas hierárquicas para talvez pressionar exageradamente o técnico. O chefe

sublinhou o erro, e imediatamente agiu para corrigí-lo, utilizando-se de sua ampla rede de

contatos pessoais no ramo para recuperar o fax erroneamente enviado. A individualidade

e a dignidade do técnico não foram atingidas em função de um erro cometido.

Do exposto até aqui, pode-se evidenciar a importância de alguns dos valores

emancipatórios, tais como foram definidos no Capítulo IV: a solidariedade, o respeito à

individualidade, a liberdade e o comprometimento.

Fins de natureza técnica também podem ser detectados com alguma importância nos

objetivos. Eles são ligados estreitamente aos eventos, à sua concretização. Embora com

menor predominância que alguns valores emancipatórios, os quais, inclusive, estão

embutidos no estilo e textos das peças teatrais, os fins de ordem técnica também são

importantes objetivos a serem atingidos nas produções artísticas por eles desenvolvidas.

401

Na clínica, os valores emancipatórios permeiam o grupo desde a sua fundação.

Primeiramente, pudemos observar no grupo a presença de valores de cunho místico

ligados à Nova Era (Vernette, 1993; Redfield, 1994; Crema, 1989): a mudança e

aperfeiçoamento da sociedade, através da mudança do indivíduo; o conceito de “cura”; a

prática de rituais espiritualistas (semanalmente há uma sessão de meditação, quando os

profissionais da clínica se reúnem para meditar em grupo durante 30 minutos). Daí,

pudemos perceber também a presença dos valores da preservação da individualidade e da

liberdade: não há nenhuma imposição à participação nas sessões de meditação. Os

profissionais são convidados, não há cobrança da presença e, é comum notar-se a

ausência de alguns deles, por vezes dos próprios membros do Conselho. Uma profissional

que presta serviços de psicopedagogia nos declarou que não gosta de meditação; ela

nunca foi a nenhuma sessão e nunca sofreu qualquer tipo de pressão para participar.

O culto ao naturismo, em suas diversas matizes, tendo como pedra angular a alimentação

e a medicina naturista e homeopática, complementa os valores ligados à crença na Nova

Era. Mensalmente acontece uma reunião de todos os profissionais, incuindo os membros

do Conselho, visando discutir assuntos comuns, tomar decisões, etc. Essas reuniões são

realizadas sempre em horário de almoço, os participantes levam a refeição. Todos os

pratos são do cardápio naturista, destacando-se saladas de variados tipos. O naturismo, na

alimentação e na medicina, é visto como um dos meios de alcance do bem estar coletivo.

402

Para a administradora da clínica, a questão da visibilidade social dos valores do grupo,

está ainda em estágio de consolidação:

— “A Casa Via Magia já é vista há muito tempo como

escola alternativa, ou seja, que tem uma preocupação

ecológica, métodos avançados, etc. A Casa do Meio,

enquanto nova etapa do projeto Casa Via Magia, tem

uma visão integrada do ser humano, uma visão holística

de ‘saúde’. Mas, leva tempo até a comunidade perceber

assim.”

Para o médico homeopata, os valores do grupo são:

— “Simpatia, harmonia: empatia. Um composto de

energia que sustenta o concreto (hoje, pela primeira vez,

eu tenho um alvará de funcionamento, concedido pela

prefeitura). Há grande competência profissional no

grupo. Companheirismo autêntico, todos estão à procura

do seu ‘self’, mas sem atrapalhar o caminho do outro.

Não há competição, isso me dá segurança.”

Uma profissional de psicopedagogia percebe os valores da seguinte maneira:

403

— “Não vejo competição. Há uma coisa que envolve e

atrai: o humanismo. Há também uma relação com o

Cosmo, por exemplo, as práticas holísticas, a meditação

e outras.”

Um dos profissionais de psicologia, declarou que:

— “Existe a solidariedade, como postura, principalmente

partindo dos donos e da administradora. Isso contribui

para o crescimento de todos. Há uma coerência do

discurso explícito com a postura. Essa é a filosofia daqui:

crescimento e solidariedade. Não vejo um esforço voltado

exclusivamente para o lucro.”

No tocante à questão do lucro, vale ressaltar que a Casa do Meio, enquanto

empreendimento econômico, não foi concebido com objetivo da rentabilidade. Funciona

internamente como um condomínio, os profissionais alugam os espaços que utilizam e

pagam as despesas comuns. As despesas gerais são pagas pelos “condôminos”, o

equilíbrio orçamentário foi alcançado. A renda oriunda da exploração da lanchonete da

casa é revertida aos donos como forma de ressarcir as grandes obras que foram realizadas

nas instalações visando adaptar a casa, que servia antes a um órgão da prefeitura

municipal, a uma clínica de serviços de saúde e centro cultural. Esta é única fonte de

renda dos proprietários oriunda do funcionamento da Casa do Meio.

404

Sobre a questão do não retorno econômico, da ausência de lucro, um dos proprietários

assim se manifestou:

— “A Casa do Meio não nos retorna nada. Somente a sua

cantina. A Casa do Meio é um ‘canal de energia’, tem

modalidades diversas de cura. Isso é um benefício enorme

para a escola e para a Casa Via Magia como um todo. Há

um retorno de energia que não é monetário.”

A terapeuta membro do Conselho nos deu uma visão ampla dos valores e objetivos do

empreendimento:

— “Eu já vim com o meu projeto particular pronto, um

projeto de trabalho, de vida: educação, arte e saúde,

podendo conviver e se ajudar pacificamente. É um ideal

de muitos anos. Não houve longos planejamentos, a

escola já existia, os donos tinham sonhos como o meu,

então nos agregamos e chamamos outros profissionais.

Os valores que norteiam nosso trabalho são: o ser

humano visto de uma forma mais ampla que uma

determinada linha psicológica, sociológica ou médica; o

processo de cura, de emergência do que ele é em essência

e, isso implica percebê-lo de muitos pontos de vista. Aqui

405

existe uma complementaridade, até a homeopatia é assim:

não eliminar o sintoma mas, trazer à consciência a causa

e, eliminá-la. O processo terapêutico é assim. E desse

mesmo jeito agimos na escola. Para mim, o processo é um

só, da Casa Via Magia à Casa do Meio: educação, arte e

saúde. Embora cada um faça o seu trabalho, todos

buscam a integração do ser humano com a sua essência

última, nós temos a mesma visão de mundo.”

Os objetivos do grupo, enquanto configuração da Casa do Meio, decorrem diretamente

dos valores acima mencionados. A afinidade com tais valores e a competência em seu

respectivo campo de atuação, são os critérios básicos de composição do grupo. Tais

critérios servem ao Conselho como parâmetros de avaliação na entrada de novos

membros na clínica.

No processo de entrada de novos profissionais, a administradora revelou que o Conselho

examina,

— “A postura do indivíduo perante a vida. O seu estilo de

vida e de trabalho, ou seja, uma visão abrangente.”

Uma das psicólogas afirmou que a afinidade de valores e de objetivos foi fundamental

para a decisão de trabalhar no empreendimento:

406

— “Meus filhos já estudavam na escola e, eu já conhecia

a terapeuta mais antiga do grupo. Me tocou a linha de

trabalho da escola, percebí que seria a mesma linha, um

espaço de crescimento, só gosto de trabalhar em lugares

assim. Comecei a perceber a proposta de troca, de

harmonização do clima organizacional, bateu com os

meus critérios pessoais, há afinidade com minhas crenças

pessoais.”

A afinidade com os valores e objetivos organizacionais é confirmada como porta de

entrada para novos membros também na escola. A esse respeito, um dos proprietários se

pronunciou:

— “Nós [os proprietários] já trabalhávamos

anteriormente com arte e educação artística. Notamos

que a arte sempre ficava em segundo plano nas escolas.

Tivemos a idéia de fazer uma escola onde a arte ocupasse

outro plano. As pessoas que vieram para trabalhar na

escola, já atuavam com arte em algum contato conosco.

Nós já sabíamos que todas elas tinham afinidade com a

proposta naturista e ecológica. A origem dos nossos

professores está na arte, psicologia e educação,

justamente o tripé que embasa a Casa Via Magia. É

407

sempre alguém que tem, pelo menos, os pés em duas

partes desse tripé.”

Uma professora também se pronunciou sobre os valores e objetivos da escola:

— “Acho que há um holismo, mas não no sentido místico,

e sim no sentido integral: ecologia, alimentação, relações

sociais. Eu pergunto sempre: para quê educar ? Nossa

proposta não é impingir valores através das regras.

Nossa proposta é mais ‘orgânica’, ou seja, trabalhar os

valores nas relações e no trato com as crianças, na forma

pela qual passamos a educação. Acho o respeito ao outro

a grande questão.”

As relações eminentemente pessoais são o recurso mais comum para o convite à entrada

de novos membros. Através do conhecimento oriundo das relações pessoais pode-se

avaliar o grau de detenção de valores compatíveis com os valores organizacionais, bem

como a competência daquele profissional.

Da análise dos dados provenientes das fontes (observações e entrevistas) estabelecidas na

nossa proposta para a rubrica composta pelos processos valores e objetivos

408

organizacionais, ficou evidenciado que os valores emancipatórios, elemento da razão

substantiva, são predominantes.

No entanto, a importância dos fins de natureza técnica também deve ser relevada nesses

processos. Ele é um dos elementos que guiam os objetivos das atividades da produtora de

arte e também a ação da administração da clínica, na busca da eficácia em sua gestão.

Embora presente e importante, os fins de natureza técnica são amplamente superados em

predominância pelo conjunto dos valores emancipatórios.

Sendo assim, situamos essa rubrica/variável na escala de intensidade de racionalidade

substantiva na qualificação elevada.

Tomada de decisão:

No âmbito da produtora de arte, a grande maioria das decisões são tomadas por consenso,

mediante intensa comunicação verbal. Curiosamente, não confirmamos uma máxima,

muito popular no campo da administração, de que a decisão consensual é lenta. Talvez

pelo pequeno tamanho do grupo, talvez pelo elevado grau de entrosamento dos seus

membros, o fato é que as decisões não são lentas e não comprometem as ações

posteriores. A chefia quase sempre “pensa em voz alta” no momento da decisão,

significando uma espécie de convocação permanente aos técnicos para a discussão.

409

A estrutura material também é pequena. Observamos que o grupo procura e consegue

tirar proveito, ao máximo, dos poucos recursos que se têm. Este ponto revela uma

dimensão várias vezes presente nas decisões. O entendimento se sobrepõe à maximização

de recursos, mas ela é um fator decisório que não nos passou despercebido. Foi realizada

uma ampla modificação no lay out do escritório da produtora. Não houve um plano pré-

concebido, todas as decisões foram tomadas coletivamente, com base em acordos, havia

muitas sugestões e opções para a nova configuração. Decidindo coletivamente, passo a

passo, o grupo conseguiu utilizar a sua criatividade artística e acabou por produzir um

novo lay out bastante funcional e com uma decoração que primava pela beleza. Assim

procedendo, os poucos recursos que dispunham foram maximizados resultando numa

criação coletiva de boa qualidade.

Na preparação do lançamento do festival de arte dramática, pudemos constatar o

elemento cálculo influenciando nas decisões de um planejamento elaborado por fases,

ainda que decidido coletivamente.

A metodologia da observação participante nos dá a oportunidade de servimo-nos como

instrumentos da própria pesquisa. Assim, na clínica, percebemos que o julgamento ético

prevaleceu quando da decisão de início dos nossos trabalhos. A cada mudança da

observação de uma unidade da empresa para outra, tínhamos uma reunião com um dos

donos. A mudança da produtora de arte para a clínica implicava decisões de quando e

410

como começar. O proprietário não tomou tais decisões, declarou: — “é de bom tom que a

administradora decida isso com vocês”, apesar dele fazer parte do Conselho.

Durante as reuniões mensais dos profissionais, as decisões são, em sua maior parte,

referendadas, confirmadas. Boa parte delas já foram alvo de negociações anteriores,

empreendidas pela administradora, em contato com os profissionais diretamente

interessados ou afetados pela respectiva decisão. Contudo, algumas decisões coletivas são

tomadas, relativas a problemas comunicados naquele momento por intermédio de

lançamento de propostas e debate. O entendimento prevalece no processo, por meios bem

singulares.

Nessas reuniões, o pensamento do Conselho também é levado ao conhecimento do grupo

para análise e avaliação, os conselheiros se fazem presentes. Portanto, o julgamento ético

pode ser constatado, na medida em que o pensamento do Conselho assume a natureza de

pretensões de validez sujeitas a crítica, o que está de acordo com a proposição da razão

comunicativa elaborada por Habermas.

Quanto à participação dos membros da Casa do Meio nas decisões, ela é assim vista por

eles próprios:

— “O ponto que me arrebata na ação administrativa é a

sutileza em colocar os fatos e as idéias, como a

administradora quebra o impacto da decisão, negociando

411

previamente até chegar a um consenso. Na reunião, a

decisão já é de todos. O que é decidido no almoço, em

geral, já foi tratado antes, no corredor, em conversas

diversas, quando chega lá já está ‘amortizado’. Há muita

comunicação, a pauta é feita antes e discutida com os

interessados.”;

— “Sim, existe participação. Nós levamos nossas opiniões

e temos espaço para encaminhar questões, somos

ouvidos.”

Na escola, pelo fato dos donos estarem imiscuídos no desenvolvimento de todo o projeto

pedagógico, participando das funções de supervisão e coordenação, compartilhadas com

outras pessoas, trabalha-se sempre em grupo, sendo as decisões tomadas, em sua grande

maioria através de ações de entendimento.

As reuniões pedagógicas são exemplos de deliberação coletiva, com base no debate

racional. Tais decisões apoiam-se bastante no julgamento ético. Entretanto, também

notamos a influência do cálculo, devido a ênfase dada às consequências das decisões

tomadas, principalmente no que concerne às normas ali estabelecidas.

412

As observações e entrevistas, fontes de dados privilegiadas para a rubrica tomada de

decisão, nos forneceram elementos suficientes para perceber que o entendimento é o

indicador de racionalidade predominante.

Apesar de emergir da análise dos dados um outro indicador de razão substantiva, o

julgamento ético, a presença do indicador maximização de recursos tem um peso

significativo, embora não chegue a predominar sobre o entendimento. O elemento cálculo

também foi mapeado, ainda que também não seja predominante.

Tal configuração nos conduz a situar a rubrica/variável tomada de decisões na Casa Via

Magia numa escala de intensidade de razão substantiva como média.

Controle:

Devido a grande diversidade de tarefas a desempenhar, muitas das quais realizadas fora

da sede, a produtora de arte tem um instrumento de registro de despesas que transmite as

informações diretamente do setor financeiro, e deste à contabilidade externa. A

responsabilidade do controle das despesas é da chefia. No entanto, presenciamos uma

ação da chefia delegando o controle aos próprios técnicos: a chefia orientou-os como

fazer o registro, não o guardando mais para si. A base dessa delegação é o grau de

responsabilidade dos técnicos, fruto de ações de entendimento.

413

O controle financeiro era feito de forma integrada, abrangendo as três unidades da

empresa. Apenas uma conta bancária era movimentada, visando todo o fluxo monetário

das unidades. A partir de negociações entre as unidades, capitaneadas pela administradora

da Casa do Meio, decidiu-se desmembrar o controle financeiro, abrindo contas bancárias

para cada unidade. A idéia da administradora era estabelecer uma situação tal que cada

unidade gerisse o seu próprio desempenho, em termos financeiros. Assim, foi implantado

um livro-caixa para cada unidade, ficando cada qual com a responsabilidade de escriturá-

lo. Desta forma, a idéia de ressaltar o desempenho, por meio da atividade de controle

financeiro, foi aplicada às três subunidades da empresa.

No que tange à escola, o controle das atividades é realizado em grupo, viabilizado por

grande intensidade de comunicações face à face, seja nos grupos de coordenação e

supervisão, seja no grupo maior, quando das reuniões pedagógicas.

As observações, bem como as entrevistas por nós realizadas, aliadas ao exame de

documentos, forneceram-nos os dados suficientes para concluir que o entendimento

também prevalece no processo de controle da Casa Via Magia.

Tal predominância, no entanto, é acompanhada de perto, em grau próximo, pelo elemento

da razão instrumental desempenho.

414

Por conseguinte, a variável controle foi situada na escala de intensidade de racionalidade

substantiva como média.

Divisão do trabalho:

Na unidade produtora de arte, os técnicos gozam de grande autonomia, não há áreas fixas

de atuação. Há grande liberdade de expressão e ação de cada um, no contexto das

múltiplas atividades de preparação de um evento. As tarefas são negociadas através de

muita comunicação verbal, gerando acordos sustentados pela responsabilidade de cada

um. As ações de entendimento são continuamente praticadas.

Cada qual estabelece a escala de prioridades com relação aos contatos a serem efetuados

no bojo de cada evento; daí, operacionalizam, comprometem recursos, enviam

comunicações via fax, telefone, etc. É muito comum alguém não comparecer à sede

durante um turno, ou ainda, uma jornada inteira de trabalho. Os contatos externos são em

grande número. Nessas ocasiões, o técnico contrata os serviços de um táxi (já conhecido

pelo pessoal da produtora), estabelece o seu próprio roteiro, horário e só retorna ao

escritório após todos os contatos efetivados. Nunca presenciamos qualquer situação em

que os técnicos telefonassem da rua para dar satisfação de sua ausência no escritório ao

chefe.

415

Na divisão de trabalho entre os técnicos também se observa uma busca de otimização

(ainda que não como critério prevalecente), pela maximização dos recursos materiais e

financeiros disponíveis, os quais não são abundantes. Podemos dizer que a otimização

acaba sendo, na maioria das vezes em que ocorre, uma consequência e não o fator

predominante da divisão do trabalho.

Na montagem de uma determinada peça teatral, um dos técnicos foi aproveitado como

figurinista. Ele próprio se apresentou para desenhar os figurinos, foi a primeira vez que

isso aconteceu. Argumentou que já tinha estudado arquitetura e que tinha facilidade e

prazer em desenhar. Assim, a proposta foi imediatamente aceita pela chefia e o técnico

elaborou todos os figurinos da peça. A partir de então, assumiu a criação dos figurinos

das peças seguintes, tarefa pela qual ele demonstrava grande satisfação. Portanto, a

divisão do trabalho também leva em conta a questão da autorealização dos indivíduos.

A atitude dos membros da produtora revela um traço subjacente de orgulho pelo nível de

desempenho alcançado. O grupo é pequeno mas, consegue fazer acontecer eventos

artísticos de grande importância no circuito cultural da cidade. A performance é

considerada nos processos de discussão sobre as tarefas a serem assumidas por cada um.

Nesse nível, o cálculo passa também a fazer parte dos elementos constitutivos no

processo de divisão do trabalho.

Na clínica, a administradora tem grande autonomia, face aos proprietários e ao Conselho

como um todo, para implantar todo o sistema de funcionamento do apoio logístico aos

416

profissionais. Com destaque para a gestão financeira do condomínio. A extensão de sua

autonomia envolveu toda a empresa, ao modificar profundamente o sistema de controle

financeiro e contas bancárias, acima já mencionado.

A divisão de trabalho na escola é assim vista por uma coordenadora pedagógica:

— “A divisão está nas responsabilidades, pois há uma

proximidade muito grande entre as funções. A

coordenação, por exemplo, é o eixo entre a direção e os

professores, o que não quer dizer que direção e

professores estão distantes. Todos os avanços são

construídos pelas três dimensões.”

Numa determinada reunião pedagógica, veio à tona a questão da definição das tarefas das

assistentes, pessoas que prestam apoio direto às professoras em sala de aula,

principalmente nas classes em que estão as crianças mais novas. Algumas professoras

queixavam-se, pois diziam que as assistentes não queriam mais fazer o trabalho de

serventes (limpeza). Um acalorado debate se segue. Num dado momento, um dos

proprietários da escola, que coordenava a reunião, interviu e explicou que aquela era uma

séria questão, pois nas demais escolas as serventes fazem um trabalho “duro” mas que é

menosprezado: — “que satisfação têm essas pessoas e como anda a auto-estima delas ?”

Argumentou então, que não concorda com a perpetuação dessa situação, por isso na Casa

Via Magia as serventes passaram a ser assistentes e enriqueceram as sua tarefas. Mas, a

417

dificuldade é explícita e permanece, pois com a nova configuração do trabalho daquelas

pessoas, surgiram dificuldades no seu relacionamento com algumas professoras. A

questão fica sem solução. Percebemos uma tentativa de criar uma certa condição de

viabilizar autorealização das pessoas que trabalham como serventes/assistentes. Mas, a

tentativa mostrou-se, ainda, tímida.

Os dados que propiciaram o exame detalhado da rubrica divisão do trabalho, foram

retirados das fontes observações e entrevistas. Não há documentos disponíveis do tipo

organograma, descrição de cargos, etc. O exame nos fêz constatar a predominância da

autonomia, seguida de perto pelo entendimento, ambos elementos da razão substantiva.

Do lado da racionalidade instrumental, foi possível constatar os elementos desempenho e

cálculo. Gostaríamos de ressaltar ainda a identificação de traços dos indicadores

autorealização (razão substantiva) e maximização de recursos (racionalidade

instrumental).

Apesar da identificação de igual quantidade (três) de indicadores de cada tipo de

racionalidade na análise da variável divisão do trabalho, situamos essa variável na escala

de intensidade da racionalidade substantiva na posição elevada. Lembramos que, na nossa

proposição, o que mais importa não é a quantidade e sim a predominância do indicador

nos processos organizacionais (variáveis). A quantidade e variedade de indicadores

identificada é fruto da própria dinâmica que caracteriza as organizações contemporâneas,

no fundo, pode ser também considerada fruto da natureza íntima dos comportamentos

humanos no interior das organizações produtivas.

418

Comunicação e relações interpessoais:

Na unidade produtora de arte a comunicação apresenta um padrão de abertura inegável.

Ela é direta, essencialmente verbal e num tom coloquial. O lay out contribui para a

fluidez da comunicação: todos trabalham numa sala sem nenhuma divisória, todos sabem

de tudo o que se passa, não há conversas reservadas. A abertura, mola mestra da

autenticidade, é total e nos surpreendeu, pois logo no início dos nossos trabalhos, mais

precisamente no primeiro dia, o chefe teve uma longa conversa conosco, na qual explicou

os objetivos e sistema de funcionamento da produtora, a sua ligação à Rede Latino

Americana de Produtores Independentes e, acima de tudo, o chefe da produtora nos

forneceu todos os planos e metas da produtora enquanto membro da Rede. Tratava-se de

documentos da Rede e que nos foram confiados imediatamente.

O clima de liberdade estabelecido entre os membros do grupo gera uma grande

descontração nas relações. O que não quer dizer lassidão. Ao contrário, o desempenho é

um elemento considerado como de grande importância. Nesse contexto, a comunicação

livre e aberta contribui para elevar o desempenho, uma vez que as informações circulam

livre e rapidamente, todos sabem de tudo, assim um pode substituir ou responder pelo

outro a qualquer momento. As comunicações externas não sofrem de solução de

continuidade.

419

No entanto, a comunicação escrita, mais propriamente os registros, eram de péssima

qualidade. Nossa primeira tarefa enquanto membros ativos do grupo foi, não por outro

motivo, a reorganização dos registros, arquivos, informações sobre artistas e entidades

internacionais, etc. O grupo nos demandou imediatamente o cumprimento dessa tarefa.

Há uma busca de êxito ou ainda de resultados, na imagem de um evento bem realizado,

com sucesso ao menos no tocante a produção. O grupo reconheceu para nós que, naquele

ramo, alcançar resultados sem um bom sistema de informações é, pelo menos, difícil.

Entretanto, até a nossa chegada, as informações escritas deixavam muito a desejar.

As relações interpessoais são marcadas pelos valores da liberdade e da solidariedade. A

solidariedade é a base do relacionamento do grupo; todos se ajudam mutuamente. Apesar

de trabalhar num ritmo acelerado, as pessoas não apresentam no relacionamento

intragrupo uma postura que se poderia relacionar ao estereótipo da “postura profissional”.

Muito ao contrário, o extenso uso da palavra, aliado à autenticidade e a autonomia, faz

aflorar, naquele grupo, uma razoável dose de afetividade, tornando as relações muito mais

próximas do campo pessoal. A palavra e os assuntos tratados são inteiramente livres, fala-

se também da vida pessoal. As pessoas se mostram mutuamente através da palavra, onde

a narração é quase sempre o estilo preferido. Assim, o ambiente de trabalho acaba

tornando-se naturalmente uma extensão do “mundo da vida”, na acepção de Habermas.

Expressa-se claramente os sentimentos e crenças individuais. Os elementos desempenho e

êxito fazem parte dos conteúdos da comunicação e penetram nas relações interpessoais

mas, não são prioritários, nem por isso os eventos, as produções artísticas deixam de

420

acontecer com a infra-estrutura desejada. Tivemos a oportunidade de acompanhar a

montagem e realização de várias produções, de pequeno e grande porte.

Nos chamou a atenção não só o uso extensivo da palavra, mas também o conteúdo

emotivo que é embutido nela em várias ocasiões. Numa dessas ocasiões, a nossa

despedida após várias semanas de convivência, nos foi particularmente marcante: o grupo

promoveu, no escritório, uma reunião descontraída, do tipo “festa de despedida”, quando

cada membro expressou livremente o seu agradecimento pela nossa participação e

sentimentos de saudade.

Autenticidade e autonomia continuam a ser predominantes também na esfera

comunicativa e no ambiente de relacionamento interpessoal da clínica. As reuniões são

marcadas pela comunicação aberta, incluindo plena condição de expressão de opiniões

divergentes. Há, como na produtora de arte, uma ambiência de informalidade, com

aspectos lúdicos. Embora, o relacionamento não seja tão estreito, tão “familiar” quanto na

produtora. Além do grupo da clínica ser maior em tamanho, ela tinha sido inaugurada há

menos de um ano.

A autenticidade e a autonomia, aliadas a um cuidado, um respeito à individualidade, faz

brotar um equilíbrio dinâmico e desafiante entre o indivíduo e o grupo.

Na clínica, as informações são tratadas com bem mais sistematização do que na

produtora. A administração trata a comunicação como material de elevação do nível de

421

seu desempenho. Há um cuidado com as informações escritas, os registros, os controles

financeiros e contábeis. Percebemos a funcionalidade da ambiência caracterizada pela

autenticidade e autonomia: a abertura e a transparência fazem fluir rápida e precisamente

as informações, as reivindicações, as sugestões, o que serve de input para a administração

agilizar os seus procedimentos. Nas reuniões, por exemplo, todos os aspectos de conteúdo

das mensagens que são julgados importantes para operacionalização de tarefas, são

imediatamente anotados pela administradora. Há também a elaboração de atas das

reuniões, com cópias sendo distribuídas para todos os membros. Assim, dando tratamento

prioritário a informação, a administração busca melhorar o seu desempenho, agindo com

maior eficácia no atendimento às necessidades dos profissionais.

Questionada sobre como fazia para compatibilizar as necessidades individuais de 15

profissionais com o coletivo composto pela Casa do Meio, a administradora nos

respondeu:

— “A coordenação que fazemos é ‘full-time’, com a

política de ‘portas abertas’. A forma que estamos dando à

Casa do Meio está vindo no dia a dia, é um grande

aprendizado.”

Sobre o relacionamento interpessoal, alguns membros afirmaram que,

422

— “O relacionamento como um todo é agradável. A

constituição de um grupo é coisa rara. Nos encontros

mensais, fica claro até onde vai o limite da empresa e até

onde vai o limite individual. Há uma filosofia

participativa. A política é clara e aberta.”

— “O relacionamento entre nós é respeitoso. Existe

harmonia. Eu respeito muito a competência deles. A

administradora é também um elemento de ligação

harmoniosa entre os demais profissionais.”

— “Posso dizer que o relacionamento é cordial. Alguns

eu já conhecia antes. Não há competição. Na meditação

estamos vibrando juntos em função da casa. Além disso,

tudo é colocado claramente, esse é um grande ponto. A

afetividade também existe.”

Na unidade escola, a ordem de prevalência não se alterou. A franqueza pela qual os

indivíduos se relacionam, discutem questões e fornecem feed-backs, confirma, como nas

unidades anteriores, a autenticidade como elemento preponderante. O desempenho surge

como um elemento também importante na esfera comunicativa, no sentido de que se

busca antecipar problemas do dia a dia, tirar dúvidas de como agir, sobretudo as

professoras, para elevar a sua performance em sala de aula.

423

A autenticidade faz aflorar, emergir ao nível da palavra os valores emancipatórios que

guiam a prática construtivista apaixonadamente perseguida. Continua ainda, como nas

outras, a observar-se um clima geral de informalidade e descontração nas relações, as

quais, como no caso da produtora de arte, são extremamente pessoais, quase “familiares”.

Um dos donos da empresa nos revelou que na escola,

— “lutamos contra a especialização excessiva, senão fica

tudo muito separado, impessoal.”

O tempo de permanência na escola é outro fator que contribui para esse tipo de

relacionamento. Na pré-escola, a subunidade mais antiga, as professoras têm um tempo

médio de entre 5 e 7 anos. Entre as coordenadoras pedagógicas, uma está lá há 8 anos. A

rotatividade do pessoal docente é, em geral, muito baixa.

No que concerne ao emprego de termos específicos de linguagem no processo

comunicativo na empresa como um todo, observamos que a palavra “energia” adquire

uma importância digna de registro. O termo “energia” é largamente utilizado em todas as

subunidades da empresa, com um significado bastante amplo. Em geral, caracteriza algo

às vezes etéreo, porém que possui o estatuto de realidade. Significa algo que se pode

transmitir de uma pessoa a outra, de um grupo ao outro, podendo comportar uma

mensagem específica numa circunstância dada, um incentivo, uma ajuda, um meio

(inclusive o dinheiro) para realizar coisas importantes e, até conhecimentos (científicos

424

ou não) necessários e valorosos à vida profissional e pessoal. Aqui podemos identificar,

mais uma vez, a relação que o grupo mantém com alguns conceitos pertinentes ao que se

denomina comumente movimento Nova Era.

De acordo com os procedimentos de análise propostos no presente estudo, observações,

entrevistas e documentos nos forneceram os dados, dos quais reportamos alguns acima,

que propiciaram o exame da rubrica/variável comunicação e relações interpessoais.

Como ficou evidenciado acima, o exame dos dados revelou-nos a clara predominância do

elemento autenticidade. Tal predominância é respaldada fortemente, nessa organização,

em outro elemento da razão substantiva, os valores emancipatórios. Também foram

identificados os indicadores autonomia, desempenho e êxito/resultados.

A configuração resultante dos elementos de racionalidade, a importância relativa de cada

um no desenrolar dos processos de comunicação e relações interpessoais, nos fêz situar

essa variável, na escala de intensidade de racionalidade substantiva, na posição elevada.

Ação social e relações ambientais:

A produtora, pelo fato de ser filiada a duas redes de produtores independentes,

compartilha os propósitos comuns a essas redes. Os grupos ligados às redes visam levar a

425

sua arte ao grande público, independentemente do apoio seletivo de entidades detentoras

e/ou representantes do chamado grande capital. A intenção é viabilizar o intercâmbio

livre entre diversos pólos de arte vanguardistas e, promover grandes eventos em diversas

partes do mundo, num misto de autonomia e sinergia, que não fique sempre dependente

dos tradicionais patrocinadores, os quais nem sempre têm interesse em apoiar

manifestações artísticas ousadas, inovadoras. Há portanto, um componente da busca do

êxito embutido nas ações e também de valores emancipatórios.

A cada dois anos, a rede faz realizar um grande festival em uma das cidades que possui

um grupo a ela filiado. Salvador foi escolhida para sediar o festival do ano de 1994,

devido a atuação significativa da Casa Via Magia nesse ambiente social. Em setembro de

1993, foi empreendido um evento de lançamento do festival, na verdade um festival em

menores proporções.

O enraizamento da produtora na sociedade civil tem um aspecto facilitador: o chefe ocupa

o cargo de presidente do sindicato dos artistas da Bahia, o que confere à produtora

possibilidades amplas de penetração e participação do mundo cultural da cidade.

Na Casa do Meio, a ação social é assim analisada por alguns de seus membros:

— “Algumas pessoas aqui, como eu, trabalham com

grupos de cura, ou seja, expansão da consciência e

desenvolvimento do indivíduo. Nos anos 80, o movimento

426

cresceu muito porque a sociedade está sufocando o

indivíduo, ela está pipocando. Ou muda o indivíduo, ou

nada vai mudar a sociedade. Político ou política nenhuma

vai resolver as grandes questões, a não ser a partir do

momento em que o indivíduo aceite mudar como pessoa.

Nesse sentido, esse nosso trabalho é cada vez mais aceito,

pois tem mais a ver com a mudança social como um

todo.”

— “A Casa Via Magia tem uma mensagem para a

sociedade: o trabalho com o ser humano tem que ser feito

de forma integrada. Seja com o corpo físico, eliminando

as doenças que já se manifestaram. Seja desbloqueando

energias para que novas doenças não se manifestem, o

que implica todo um trabalho corporal. Seja com o corpo

em movimento, como no tai-chi. Seja os processos

mentais, nas terapias, ou o processo de autocura via

reeducação. E ainda, os processos com as crianças. Nisso

tudo há o essencial da Casa do Meio: nós acreditamos na

religação do eu com a sua essência. A Casa do Meio tem

essa mensagem ao social, o ser humano deve ser tratado

em sua completude. O processo não é religioso, embora

tenha fundamentos espiritualistas.”

427

— “Acho que se deve fazer mais eventos abertos a

comunidade, a movimentos sociais. Com o tempo, nós

vamos definir essa inserção mais ampla. Venho estudando

sobre as novas organizações e não me toca somente a

questão da qualidade do serviço, mas a qualidade das

relações, incluindo a relação com o contexto social maior

também. Eu faço um trabalho político, a partir da busca

do indivíduo, ele se posiciona também socialmente. É uma

visão do homem integrado, dando partida também a uma

reflexão social que não aliena e nem é alienada.”

— “A Casa do Meio veio por um fator de necessidade, eu

vejo assim. Há em Salvador clínicas onde trabalham

vários profissionais mas, não há uma filosofia. Temos

valores em comum e estamos construindo essa filosofia.

No decorrer do tempo vamos solidificar essa filosofia.”

Um problema que afeta a todos que participam da empresa, foi certa vez discutido numa

reunião mensal da clínica. Trata-se do difícil relacionamento com a comunidade

circunvizinha à sede da empresa. A Casa Via Magia, contrariamente a grande maioria das

escolas ditas alternativas, não se situa num bairro marcado por uma população de alta

renda. O bairro da Federação, onde está a Casa Via Magia, é habitado por populações de

428

média e baixa renda. A rua onde está a empresa dá acesso a uma favela e no início dessa

rua, justamente em frente à sede da organização, há uma grande escola pública de

primeiro e segundo graus. Vários problemas são enfrentados por todos que trabalham na

empresa, sendo os mais comuns os danos aos automóveis que ficam estacionados na rua e

o lançamento de objetos para dentro do espaço interno da sede. As queixas são constantes

e o incômodo vai assumindo proporções indesejáveis.

Fica claro que o pano de fundo de tais problemas é o desnível entre a Casa Via Magia e

seu entorno. A questão social, as gritantes diferenças sociais, econômica e educacionais,

entre os que frequentam a empresa e todos os outros que moram nas redondezas e/ou

estudam na escola pública próxima. Nesse sentido, a Casa Via Magia é um enclave

naquele meio social. E, enquanto enclave oriundo de desigualdades sociais, nada mais

natural, ao nosso ver, que problemas aconteçam, que as consequências se manifestem.

A discussão foi muito interessante, versou sobre todos os ângulos da questão. Uma

pergunta pairava no ar: qual a medida a ser tomada ? Um dos donos fêz um histórico do

problema. Ele já tinha descartado a idéia de solicitar policiamento ostensivo na rua.

Igualmente descartara a idéia de aumentar bastante a altura do muro que circunda as três

casas, pois,

429

— “Isso isolaria as pessoas, principalmente as crianças,

daqui com o mundo mais próximo”.

Partiu-se então, para uma série de iniciativas de aproximação: foi encenada

(gratuitamente) uma peça dentro da escola da escola pública, com o intuito de informar

um pouco do que se faz na Casa Via Magia e diminuir a sensação de distância entre as

duas escolas. Uma segunda medida foi a de contratar como vigia da sede da empresa, um

morador das redondezas, evitando uma atitude policialesca. Naquele momento,

aguardava-se os efeitos de tais medidas.

A tentativa de enfrentar o problema do desnível entre a empresa e a comunidade vizinha

através das medidas acima citadas, indica a esfera de valores que envolve a organização.

A fronteira com organismos altamente burocratizados sempre foi uma zona delicada.

Após muitas dificuldades, conseguiu-se finalmente legalizar a escola junto à Secretaria de

Educação do Estado. Segundo um dos donos, cerca de 80% das escolas infantis

alternativas em funcionamento na cidade, não possuem registro na Secretaria de

Educação. A legalização da escola foi considerada como uma grande realização. O

processo foi penoso, lento e complicado. Nas visitas de avaliação, os prepostos da

Secretaria questionavam e se indignavam com as práticas liberais da escola, bem como

com os currículos recheados de assuntos completamente estranhos aos praticados pela

maioria das escolas tradicionais.

430

Assistimos reuniões entre a direção e os pais que tencionavam matricular seus filhos, pela

primeira vez, na escola. Os donos falavam pela escola, apresentavam a metodologia de

ensino, as normas, os objetivos educacionais e, principalmente, os valores que embasam a

prática construtivista naquele estabelecimento. Sem nenhuma reserva, os donos relatavam

diversos casos que ocorreram com alunos, relacionados a temas como sexo, violência,

inaptidão, etc., temas delicados mas, que eram tratados abertamente com os pais, no

intuito de esclarecer completamente os valores que fundamentam a Casa Via Magia.

Assim, levantados os dados através de observações, entrevistas e dos documentos

disponíveis, para analisar os processos de ação social e de relações ambientais nessa

empresa. Da análise efetuada, emergiu a predominância dos valores emancipatórios,

elemento constitutivo da razão substantiva. Malgrado a identificação do elemento

êxito/resultados (razão instrumental) como um outro interveniente nesses processos

organizacionais, a predominância é dos valores emancipatórios, com boa margem.

Devido a tal constatação, é que situamos a variável ação social e relações ambientais na

posição elevada, concernente a intensidade da razão substantiva.

Em seguida, reportaremos a análise dos processos organizacionais complementares.

Reflexão sobre a organização:

431

Os processos efetivos e sistemáticos de reflexão sobre a organização acontecem no

interior das subunidades clínica e escola.

Na Casa do Meio, existem duas iniciativas que lidam, dentre outras atividades, com a

reflexão sobre a organização: o Conselho e a realização das reuniões mensais. A

princípio, o Conselho foi criado para coordenar a atuação da clínica mas, logo depois,

seus membros se deram conta de que, com a agregação da área de saúde, o projeto Casa

Via Magia alcançara definitivamente o estabelecimento de suas bases. Assim, o

Conselho, segundo depoimentos dos seus próprios membros, passa paulatinamente a

“pensar” a Casa Via Magia como um todo, assumindo um papel de integração entre as

três grandes vertentes do tripé educação-arte-saúde. Para um dos conselheiros,

— “Levei toda a minha vida buscando um lugar onde a

integração desses três eixos pudesse ser atingida. Sinto

que aqui ainda não chegamos a essa integração no grau

desejado mas, estamos só começando e eu acredito que

chegaremos lá.”

Os valores emancipatórios, complementados por uma visão de cunho holístico e do

movimento Nova Era, conforme detalhados acima, guiam a reflexão empreendida pelo

Conselho. No entanto, não podemos esquecer que o Conselho é uma instância formal de

432

poder, logo, de alguma forma, o processo ali realizado tem a marca do elemento fins,

relacionado ao poder.

As reuniões mensais constituem-se nos grandes foros de reflexão sobre a Casa do Meio.

À luz dos valores emancipatórios, da forma como são cultuados pelo grupo, discute-se

onde se chegou, o quanto foi avançado e o que se espera para o futuro. Devido ao pouco

tempo de lançamento do empreendimento, tais discussões começam a se consubstanciar

porém, notamos que a cada reunião, a reflexão ganhava um pouco mais de espaço. O

desempenho já dava claros sinais de seu peso no processo. Esse elemento possui um

destaque significativo no grupo da Casa do Meio. Talvez pelo projeto ter atraído, em sua

larga maioria, profissionais que já gozam de uma certa celebridade na comunidade,

profissionais que possuem uma extensa clientela.

Na escola, as reuniões pedagógicas são os grandes momentos de profunda reflexão

coletiva a respeito da organização. Os debates acabam sempre criando condições para

realizar balanços da ação e da filosofia da escola, questionando-as sob vários ângulos. Os

valores da mudança e aperfeiçoamento do social, do respeito à individualidade e da

liberdade afloram com grande intensidade, quando então os professores comprovam o seu

comprometimento com os caminhos a serem trilhados pela escola. A proposta

construtivista, adotada por todos, parece contribuir para o comprometimento. Uma

professora nos revelou que,

433

— “Aqui praticamos o construtivismo mas, não nos

moldes do modismo atual. Há várias escolas em Salvador

que se dizem ‘construtivistas’ porém, é preciso ter

cuidado. No fundo, não existe uma ‘didática

construtivista’. Aqui dissemos que há construtivismo

porque tudo foi elaborado aqui mesmo, com total

implicação dos alunos e professores.”

Ao empreender a reflexão, na análise de temas “delicados”, tais como sexo, violência,

regras, relações com os pais de alunos, o julgamento ético guia o processo. Pudemos

constatar que também na escola a questão do desempenho está presente na reflexão. Ao

realizar um balanço nas atividades da escola, preza-se o aumento do desempenho dos

professores. A Casa Via Magia possui uma ótima reputação entre as escolas infantis

alternativas de Salvador. É visível o impacto dessa reputação no grupo dos professores.

Para o aperfeiçoamento desejado, acredita-se ser mister a adequação das ações a uma

práxis construtivista, o que ressalta, em última instância, o elemento fins de natureza

técnica.

Dos dados obtidos por meio de observações e entrevistas, alguns dos quais fornecemos os

extratos acima, empreendemos a análise dessa rubrica, pela qual pudemos perceber que

os valores emancipatórios são predominantes. No entanto, o elemento desempenho ocupa

um destaque inegável, mesmo não sobrepujando os valores emancipatórios.

434

Complementarmente, os fins e o julgamento ético aparecem também como indicadores de

racionalidade no bojo desse processo organizacional.

Por conseguinte, na escala de intensidade de racionalidade substantiva para a variável

reflexão sobre a organização, indicamos a intensidade média.

Conflitos:

Na clínica, testemunhamos um descompasso de ordem financeira, entre a administração e

os profissionais. A taxa de condomínio era paga ao final de cada mês, logo, as despesas

correntes eram feitas pela administração. Num ambiente de inflação acelerada (ano de

1993), era evidente que ao realizar o pagamento das despesas durante o decorrer do mês,

segundo um raciocínio econômico-financeiro, a Casa do Meio financiava os profissionais.

Essa questão nos foi colocada pela administradora quando do início de nossas

observações na clínica. Ela a considerava, se não um conflito, ao menos “uma questão

delicada”, revelando de certa forma, em sua percepção, “choque de interesses”. A

questão nunca havia sido tratada, o pagamento do condomínio sempre se dera ao final de

cada mês, desde a abertura da clínica. A administradora demonstrava receios em abordar

o tema com os demais (alguns se queixavam do valor elevado da taxa de condomínio),

embora achasse que a situação não poderia continuar como estava.

435

A administradora decidiu então criar um fundo, com o objetivo de capitalizar o

condomínio para fazer face às despesas desde o início de cada mês. Essa decisão se

contrapunha a uma outra possível, que era a de alterar imediatamente a data do

pagamento da taxa, fazendo-a recuar para o início do mês. A implantação do fundo, por

outro lado, seria feita gradualmente, cobrando-se uma contribuição relativamente pequena

a cada mês, de modo a atenuar o impacto financeiro sobre os profissionais. Após a

tomada dessa decisão, a administradora a justificava assim:

— “Não se pretende prejudicar os profissionais,

impondo-lhes uma pesada carga porém, a Casa do Meio

também não pode continuar a assumir esse custo.”

As dificuldades previstas pela administração para operar uma brusca mudança na data de

pagamento da taxa de condomínio, iam além da questão financeira, adentrando ao nível

das interações e da comunicação. Argumentava a administradora que seria bastante difícil

explicar a pessoas que em sua maioria nunca lidaram com questões financeiras de

empresa, o que é um custo financeiro daquela natureza.

Dentre outras situações, essa nos demonstrou claramente que os fins, dessa vez de

natureza econômica, embasam a resolução de situações conflituais ou de choques de

interesses. Não entrando no mérito da questão, pois esse não é o nosso papel aqui e,

analisando friamente a situação, percebemos que embora o julgamento ético tenha

influenciado na opção por uma decisão mais amena para os profissionais, o mais

importante é que a condição econômica da Casa do Meio fosse preservada, logo, a

436

preocupação com os fins econômicos conduziu a adoção de uma medida. Pudemos

constatar também a presença do cálculo, pela antecipação das consequências, não só

financeiras, mas sobretudo comportamentais, da adoção de um determinada medida.

Entretanto, essa sutil presença do cálculo não conduziu à elaboração e prática de

estratégias interpessoais.

Nas reuniões mensais, um outro choque de interesses emergiu. Tratava-se da dificuldade

que determinados profissionais tinham para bem atender seus clientes, principalmente

alguns terapeutas, com o barulho que as crianças da escola faziam. Lembramos que as

três unidades da empresa funcionam em três casas conjugadas. A própria denominação

“Casa do Meio” surgiu em função da localização da clínica: justamente na casa que fica

entre a escola e a outra, que abriga a secretaria da escola e a produtora de arte. Com a

criação da Casa do Meio, a circulação ficou livre entre os três imóveis, e as crianças, no

horário de intervalo, brincavam nas áreas de fundos das casas, as quais foram expandidas

pela incorporação do imóvel intermediário.

Se por um lado, achava-se que não se devia proibir ostensivamente as crianças de brincar

nos espaços disponíveis durante o período de recreio, por outro lado, argumentava-se que

determinadas técnicas terapêuticas requerem uma ambiência própria, incluindo um certo

nível de silêncio. Decidiu-se, então, que as crianças seriam aconselhadas a não fazer

barulho nos espaços dos fundos da Casa do Meio, antes de interditar totalmente aqueles

locais. Essa decisão foi tomada em sentido provisório, ficando em observação para futura

avaliação dos seus efeitos. Novamente, ainda que o julgamento ético tenha sido levado

437

em consideração, no caso, a não limitação repressiva de manifestações das crianças em

seu horário de recreio, uma medida foi efetivamente tomada visando garantir o alcance

dos fins técnicos (a adequação técnica das condições de trabalho de parte dos

profissionais). Tal medida, inclusive, tinha o caráter provisório, pois se os efeitos não

fossem os esperados, pensava-se em interditar definitivamente a área.

Uma situação de conflito profundo foi observada entre a administradora da clínica e a

contabilidade contratada externamente, junto a um escritório de prestação de serviços. A

administração constatara uma gama variada de erros oriundos do descaso com o qual era

tratada a escrita contábil da empresa. Tais erros, segundo a administradora, poderiam

causar sérios riscos fiscais e comprometer o equilíbrio financeiro da empresa. O conflito

entre a administradora e a contabilidade externa foi então deflagrado. Como resultado do

embate, constatamos que apesar de vir prestando serviços à empresa por muitos anos, a

contabilidade acabou por perder o seu cliente.

Novamente, nos colocamos de modo imparcial ao analisar a situação como um todo. Os

fins econômicos prevaleceram, na medida em que foi primordial garantir o equilíbrio

financeiro da empresa. Por último, foi inegável o elevado grau de autonomia de

ação/expressão da administradora no decorrer do conflito.

A autonomia também se manifesta na conduta dos profissionais durante as reuniões

mensais. Se bem que não se pode considerar as queixas e pleitos como propriamente

conflitos, mesmo que algumas revelem choques de percepções, os membros da clínica

438

veiculam livremente suas queixas e demandas, em sua maioria relacionadas à questão das

condições técnicas adequadas de trabalho (fins).

Sobre conflitos no âmbito da clínica, alguns profissionais se manifestaram:

— “Ainda não os percebí, enquanto foco de tensão maior.

Existem situações-problema, que têm sido tratadas

realisticamente e com solidariedade. Dessa forma, vejo

que as situações-problema não evoluem para conflitos

cristalizados.”

— “Por enquanto, nada grave. Mas acho que poderá

acontecer conflitos, devido a relação comercial e, mesmo,

a relação interpesssoal.”

— “Até agora não ví nenhum conflito e sim questões e

problemas. Conflitos mesmo, não.”

— “Ainda não presenciei nenhum conflito. Eu, por

exemplo, ocupo muito determinados recursos como

telefone, dou muito trabalho a recepção, a qual serve a

todos, pois tenho cerca de 1.500 clientes cadastrados e

uns 600 rotativos. Eu sei que dou muito trabalho mas, até

agora, não tive conflitos.”

439

No âmbito da escola leva-se as narrações dos conflitos cotidianos para as reuniões

pedagógicas. Nessas sessões, a liberdade de expressão é total, muitas oposições se

estabelecem, por vezes elevando bastante o nível de tensão. A franqueza e os sentimentos

são manifestados sem constrangimentos, embora o respeito mútuo nunca seja

transgredido. Algumas discussões são duras, acaloradas, elevando sensivelmente a

“temperatura” do clima de interações, embora sem falta de respeito mútuo. O que revela

autonomia e autenticidade.

O julgamento ético está subjacente, pois o respeito é preservado todo o tempo, apesar dos

duros feed-backs. A ética é ponto marcante nas resoluções dos conflitos: cultua-se a

autocrítica do professor, ceder é bom mas, até que ponto ? qual seria o limite ótimo ? eis

uma das questões mais debatidas. O julgamento ético acaba por apontar o limite, caso a

caso.

De certa forma, também os fins ligados a interesses técnicos influenciam o curso da

resolução dos conflitos. A filiação a uma proposta de cunho construtivista conduz, por

vezes, a resolução para elementos essencialmente técnicos.

Observações e entrevistas compõem as fontes de dados para a análise dos conflitos. Pela

primeira vez, até aqui, a predominância recai num elemento constituivo da razão

instrumental, nesse caso, os fins. Eles guiam, na maior parte das vezes, os processos de

440

resolução de conflitos. Situações em que o elemento cálculo teve a sua importância foram

também mapeadas.

Indicadores de razão substantiva, tais como julgamento ético, autonomia e autenticidade

surgiram também como intervenientes nas situações de conflitos, no entanto, a

predominância dos fins não foi superada.

Assim, a intensidade de racionalidade substantiva, na variável conflitos, foi indicada

como baixa.

Satisfação individual:

Os técnicos lotados na produtora de arte apontam como causas do bom grau de satisfação

no trabalho: a autonomia que possuem, o clima descontraído de trabalho e a possibilidade

de criar, de exercitar seus dons. A condição de realizar atividades diversificadas, inclusive

concretizando os seus próprios pontos fortes e exercitando seus conhecimentos, cria a

condição de satisfação para eles. O aproveitamento das habilidades de desenho e de

criatividade de um dos técnicos para elaborar figurinos, já citado anteriormente, foi uma

grande fonte de satisfação para ele e, aqui, serve como ilustração de nossa análise.

441

O desempenho elevado de uma pequena equipe que consegue “pôr na rua” grandes

produções, é também uma fonte de satisfação, pois relaciona-se ao êxito, ao sucesso,

dimensão de grande significação no meio artístico.

Na clínica, existe satisfação individual, em parte pela participação num projeto ousado,

que integra educação, saúde e arte, em parte pela possibilidade de fazer bem o seu

trabalho e também por estar cercado de profissionais reconhecidamente competentes,

num clima agradável.

Vejamos o que é percebido pela administradora:

— “Em geral, há grande satisfação dos profissionais em

estar aqui. Alguns problemas com profissionais

debutantes, que não têm ainda uma grande clientela, para

esses é sempre mais difícil fazer face às despesas. Mas

estamos ajustando isso, por exemplo, dividindo os

horários vazios de suas salas com outros profissionais,

como é o caso do professor de música.”

E o que nos revelaram alguns outros:

442

— “Aqui a minha satisfação é o compartilhar. Eu não sei

trabalhar num ambiente de competição.”

— “Eu estou me sentindo tão bem que tomei até a decisão

de deixar a sala de aula no ano que vem, ficarei na escola

somente como coordenadora. Se essa experiência não

fosse positiva, eu não teria decidido isso. Aqui, apesar

das minhas dificuldades, eu só tenho crescido. Vou

investir de vez na psicopedagogia.”

— “A minha satisfação é muito alta. Estou muito bem

aqui. Esse espaço me ‘recupera’. O ambiente é muito

gostoso. Sinto que aqui é o meu espaço.”

— “Estou muito feliz porque estou muito integrada à

minha perspectiva de vida. Eu acredito nisso.”

— “Estou me sentindo muito bem. Eu me sinto mais

considerada do que em outros lugares onde já trabalhei.

Os empregados também são abertos e cordiais, tudo isso

cria um astral alto, fora o fato de estar entre profissionais

de grande competência.”

443

A recepcionista nos declarou:

— “Estou bastante satisfeita, principalmente pela

maneira como sou tratada pelos profissionais.”

Na escola, novamente a autorealização é o grande fator de satisfação, a liberdade e o

incentivo a criação, impulsionam o grupo a continuar a desenvolvendo uma proposta

construtivista ousada. Os livros didáticos, por exemplo, são elaborados pelos próprios

alunos, assim, quando uma classe avança de um ano letivo para o seguinte, herda os

livros didáticos elaborados pela classe que ocupava aquele nível anteriormente. A

experimentação, a ousadia (possível devido ao grau de autonomia) e a pesquisa

permanente realizada pelo corpo docente, foram fundamentais para aperfeiçoar esse

método nos últimos anos, hoje, o processo se consolida e, já existem duas editoras

oferecendo-se para publicar esses livros didáticos.

O corpo docente se entrega ao trabalho de criação com grande entusiasmo. Já dissemos

acima que a Casa Via Magia é uma célebre escola infantil alternativa da cidade. Essa

fama é um outra fonte de satisfação, relacionada ao êxito e ao desempenho. Em diversas

reuniões, os professores frequentemente relembram que,

— “somos uma escola diferente das outras, mesmo

daquelas que se dizem alternativas ou construtivistas.”

444

Os incentivos financeiros não são a fonte principal da satisfação, nem na escola nem na

empresa como um todo. Não levando em conta os profissionais da Casa do Meio, pois

esses são, em sua maioria, profissionais liberais não assalariados, os salários pagos aos

que têm vínculo empregatício com a empresa estão na média do mercado e, no caso dos

professores, ligeiramente acima dessa média. A rentabilidade da escola tende a ser menor

do que a das outras escolas particulares em geral, devido a limitação de 15 crianças por

classe e a contratação de professores especializados, tais como professsores de música, de

educação ambiental, etc. A “remuneração” mais importante e que acarreta satisfação, é a

possibilidade concreta de autorealização, seja pela liberdade de criação, ou pelo

investimento permanente em formação/desenvolvimento do pessoal.

Um dos donos se pronunciou sobre tais assuntos:

— “Dinheiro é um tipo de ‘energia’, não é ? A gente

trabalha com muita energia também, uma energia que é a

nossa base, tudo isso passa pela psicologia, arte e

pedagogia. A gente troca energeticamente com todos que

conosco trabalham. Damos muita chance de formação.

Todo o meu trabalho e conhecimento acumulado em vinte

anos eu divido, eu entrego. Em geral, as pessoas se

apóiam muito em coisas materiais. Eu me considero mal

paga pelo meu próprio projeto, mas sou superfeliz. Eu

quero é realizar coisas. Realizar um desejo.”

445

Uma das três coordenadoras pedagógicas e também professora, que foi convidada a

participar da Casa do Meio oferecendo serviços de psicopedagogia, referiu-se dessa forma

à questão dos incentivos:

— “Os professores mais antigos ganham 3 mensalidades,

os mais novos, 2,75. Acho que deveria haver um plano de

carreira. Relativamente às outras escolas particulares,

não se paga mal, levando-se em conta que só temos 15

alunos em cada classe. Em outras escolas pode-se

facilmente encontrar o dôbro ou mais de alunos. A

administração busca alternativas para aumentar o ganho

e o crescimento dos professores. Eu e mais duas colegas

estamos na Casa do Meio, iniciando um trabalho como

profissionais liberais. Eu acabei de fazer um curso de um

ano e meio sobre psicanálise.”

A escola pratica uma política econômico-financeira um tanto quanto original: a cada mês,

o índice de reajustes de mensalidades fornecido pelo sindicato das escolas particulares de

Salvador é utilizado não só para reajustar mensalidades, mas também todos os salários

daqueles que trabalham na escola, ou seja, professores, assistentes, secretária, porteiros,

etc. Efetua-se, portanto, um reajuste geral, em linha. Essa medida tem contribuído para

que nunca houvesse uma só greve de professores desde a fundação da escola Casa Via

446

Magia (o que não deixa de se constituir também num traço original dentro do seu ramo),

enquanto que nas demais escolas da cidade, as greves vêm ocorrendo com frequência há

vários anos,

A secretária geral da escola fêz uma rápida comparação com um outro emprego anterior:

— “Eu trabalhava num gabinete de um vereador. Não

aguentei de ver tanta falta de honestidade. Honestidade

para mim é tudo. Aqui eu trabalho muito mais que lá,

trabalho bastante mas, gosto muito. As pessoas,

principalmente os donos, têm muita confiança em mim.”

Enquanto fontes de dados para o exame da rubrica satisfação individual, as observações e

as entrevistas foram suficientemente esclarecedoras para nos mostrar que a

autorealização é o indicador predominante de racionalidade nesse processo. Há, em

geral, um alto grau de satisfação individual gerada pelo trabalho, pela participação na

Casa Via Magia, o entusiasmo é patente nos membros da organização. A autorealização,

nesse caso, auxiliada pela autonomia, é largamente predominante sobre alguns outros

elementos constitutivos da razão instrumental que se fazem presentes na rubrica

satisfação: o êxito e o desempenho.

447

Não é por outra razão que consideramos a intensidade de racionalidade substantiva, na

variável satisfação individual, como muito elevada.

Dimensão simbólica

Os membros da produtora de arte representam os valores nos quais se fundamentam, não

só através de suas atitudes mas, também pela maneira como se apresentam, como se

vestem. As roupas comunicam estilos de vida, valores e crenças. A maneira pela qual se

vestem os técnicos da unidade produtora de arte comunica a liberdade, a descontração, a

autonomia. Não que nas outras unidades as pessoas se apresentem formalmente, mas é

que na produtora os membros do grupo constróem uma imagem que se destaca das

demais. Talvez tenhamos que levar em conta de que são artistas desempenhando um

trabalho técnico, contudo trabalhando pela arte. Os adereços, a forma despreendida e

ousada de se vestir, combinando e recombinando ao bel prazer variados estilos de moda,

dão um tom de leveza, possibilidades, liberdade e criação. Comunicam.

Não vamos nos ater muito mais à questão dos valores que predominam no grupo, uma

vez que cremos tê-los já discutido exaustivamente. Aqui estamos apenas ressaltando

aspectos gerais do simbólico.

448

Na clínica, a simplicidade e espontaneidade são iconizados até pelo tipo de mobiliário,

lay out e decoração utilizados. Apesar de ter as suas instalações recentemente reformadas

— tudo é novo —, a Casa do Meio comunica em suas soluções arquitetônicas internas

um ar de simplicidade e bom gosto. Um jardim de inverno, muitas plantas, com o verde

combinando suavemente com a grande quantidade de objetos e paredes em cor branca.

Certamente, uma atmosfera um tanto quanto ecológica, verde, consubstanciada no

naturismo inserido no conjunto dos valores e, concretizada em manifestações como o

almoço/reunião mensal, onde só se pode levar comidas naturais. Prática extensiva à

lanchonete, onde os lanches e opções não contemplam alimentos com conservantes,

corantes e produtos químicos considerados prejudiciais à saude. Ainda, as regras do

lanche das crianças na escola e a sua lista de produtos não prejudiciais.

As sessões de meditação na Casa do Meio, abertas a todos os que trabalham na empresa,

geralmente são realizadas numa sala, sob uma tênue luz azulada e com um cristal ao

centro, acompanhada de um insenso, numa atmosfera típica das práticas de

desenvolvimento espiritual utilizadas pelos adeptos do movimento Nova Era, inspirados

em povos de determinadas regiões do Oriente.

Certa feita, um dos donos nos contou que, na abertura da Casa do Meio, ele tinha uma

grande dúvida: aceitava a proposta de arrendamento da lanchonete, que iria funcionar na

clínica, ou a explorava ele mesmo ?

449

— “Eu não sabia o que fazer, então consultei o oráculo. A

mensagem foi mais do que acertada: decidí, então,

assumir a lanchonete e nunca me arrependí disso.”

Há ainda, nas noites de lua cheia, uma sessão de meditação especial, mais ampla,

realizada no pátio da escola e aberta a amigos e convidados que não só membros da

empresa: a “meditação da lua cheia”.

No âmbito da escola é possível notar também a predominância dos valores

emancipatórios, enquadrados num pano de fundo do tipo Nova Era. Nas reuniões

pedagógicas, faz-se curtas sessões de relaxamento e meditação no início e ao final; todos

os participantes ficam sem sapatos durante todo o desenrolar da reunião.

Para nós, é evidente que o conjunto de valores emancipatórios os quais arrolamos no

nosso quadro de análise, não conduz nem se confunde, necessariamente, com a crença

atual intitulada Nova Era. Queremos dizer, em outras palavras, que a mudança e o

aperfeiçoamento do social, o bem estar coletivo, o respeito à individualidade, a liberdade

e, o comprometimento, não teriam obrigatoriamente que acarretar uma inserção causal

nas práticas do movimento Nova Era. Tais valores não são novos, como o é a onda da

Nova Era em si. Esses valores fundam aspirações libertárias há muitos séculos e estão

suficientemente testemunhados na história das civilizações. Mais particularmente, no que

tange à sociedade industrial, em seus trezentos anos de edificação, esses e outros valores

450

correlatos, fundaram, sustentaram e justificaram inúmeras ideologias e movimentos, em

diversas fases históricas.

O que percebemos e registramos aqui, é a correspondência desses valores, aos quais

denominamos emancipatórios, com aqueles defendidos pelas pessoas que compõem,

coincidentemente, as organizações que estamos analisando. O que nos interessa mais, é

perceber como tais valores, focalizados pela ótica da Nova Era ou qualquer outro

conjunto de crenças, colonizam o imaginário de um grupo, habitam-no e daí manifestam-

se numa determinada práxis administrativa. Assim, objetivamos analisar as

racionalidades embasadoras das ações dos indivíduos, no interior de organizações

produtivas.

Continuando a relação dos elementos que relevam da dimensão simbólica na Casa Via

Magia, notamos que a noção de êxito no empreendimento foi sensivelmente reforçada

pela organização, através da atenção dada pela administração aos aspectos financeiros.

Para a administradora, ter as finanças em ordem é indispensável ao sucesso da

organização. Ela conseguiu introduzir no imaginário de vários membros da empresa,

principalmente dos donos, a idéia de que a administração financeira é importante, mais

que isso, é importante e fundamental para o sucesso do negócio. Após as sua

intervenções, diversas pessoas comentam sobre as finanças. Assim, finanças acabou se

tornando um “tema na agenda da organização”, como diria Peter Spink, professor da

Fundação Getúlio Vargas.

451

As manifestações concretas desse novo elemento na dimensão simbólica, foram as

mudanças aceitas pela direção (troca de contador, implantação de novos instrumentos de

acompanhamento financeiro, divisão das contas bancárias por unidade da empresa), o que

claramente revela um maior cuidado com a atividade financeira. A idéia básica das

mudanças é de que cada unidade deve ser viável e ter autosustentação, elevando o seu

desempenho, acima de tudo sob o ponto de vista da utilidade. Dessa forma, seria

alcançado pleno êxito em toda a organização.

Os valores emancipatórios, em seu conjunto, focalizados quase sempre pela via do

movimento Nova Era, ecologismo, naturismo, etc., dominam amplamente a cena do

simbólico. Seja ao nível do imaginário, seja no plano da iconicidade. Foi o que pudemos

constatar do exame de dados que foram coletados mediante observações, entrevistas,

análise de documentos e de materiais diversos, aqui incluso também os materiais de

decoração e as soluções arquitetônicas da sede da empresa.

Não obstante a constatação acima, a razão instrumental também se faz presente através

dos elementos êxito, desempenho e traços de utilidade. Ainda que em número de três, tais

elementos estão muito aquém do grau de predominância dos valores emancipatórios na

dimensão simbólica da organização. Portanto, na escala de intensidade de racionalidade

substantiva para a variável dimensão simbólica, indicamos a posição muito elevada.

Análise global da Casa Via Magia:

452

Findo o detalhamento da análise de cada processo organizacional, apresentaremos por

meio da figura 5 (página seguinte) um quadro-resumo da análise da Casa Via Magia.

453

Processos Organizacionais

( rubricas / variáveis )

Elementos / Indicadores de Racionalidade Predominantes

Intensidade de Racionalidade Substantiva

Hierarquia e normas

Entendimento

Elevada

Valores e objetivos

Valores emancipatórios

Elevada

Tomada de decisão

Entendimento

Média

Controle

Entendimento

Média

Divisão do trabalho

Autonomia

Elevada

Comunicação e Relações interpessoais

Autenticidade

Elevada

Ação social e Relações ambientais

Valores emancipatórios

Elevada

Reflexão sobre a organização

Valores emancipatórios

Média

Conflitos

Fins

Baixa

Satisfação individual

Autorealização

Muito elevada

Dimensão simbólica

Valores emancipatórios

Muito elevada

Casa Via Magia ( análise global )

Valores emancipatórios

Elevada

Figura 5 - Quadro-resumo de análise da Casa Via Magia

454

No quadro de análise acima, destacamos:

a) Os elementos constitutivos de racionalidade que se revelaram como predominantes em

cada processo organizacional (variável);

b) A posição obtida por cada variável do nosso estudo na escala de intensidade de

racionalidade substantiva;

c) O elemento constitutivo de racionalidade que mais predominou na empresa como um

todo;

d) A posição geral da empresa, na escala de intensidade de racionalidade substantiva.

Por meio do quadro-resumo, podemos ter uma visão sintética de como a racionalidade

substantiva se mostra prevalecente no conjunto dos processos organizacionais estudados.

Dos onze processos analisados, a racionalidade substantiva prevalece em dez. Apenas no

processo conflitos, que representa a forma pela qual os conflitos são frequentemente

encarados e solucionados, observa-se a predominância da racionalidade instrumental

(elemento constitutivo fins), embora ela tenha sido detectada sem predominância — é

sempre bom frisar — em todos os demais processos, como foi demonstrado acima.

Em todos os sete processos organizacionais essenciais — hierarquia e normas, valores e

objetivos, tomada de decisão, controle, divisão do trabalho, comunicação e relações

455

interpessoais, ação social e relações ambientais — a racionalidade substantiva é

predominante.

Os valores emancipatórios são os elementos mais predominantes na organização como

um todo, seguidos de perto pelo entendimento. Uma organização fortemente calcada em

valores, fundada pelo voluntarismo dos seus donos, os quais foram agregando pessoas

que, nas mesmas áreas de atuação profissional, acreditassem nos mesmos valores, em

geral.

Os valores emancipatórios são a base dos valores dominantes na organização, bem como

são a fonte dos objetivos da empresa. Tais valores são os referenciais primordiais nos

processos de reflexão sobre a organização, quase sempre empreendidos coletivamente.

Povoam acima de qualquer outro aspecto, a dimensão simbólica do grupo, orientando o

rumo da ação social e as relações da empresa com outras organizações.

Uma tal configuração, ao nosso ver, naturalmente necessitaria de intensos esforços de

comunicação para que pudesse concretizar os valores professados e desejados. Não é por

outra razão, que o entendimento é o tipo de ação imediatamente predominante, após a

discussão e expressão dos valores. A natureza de tais valores exige um elevado

investimento em acordos, em consensos, para que possa prevalecer. As ações orientadas

ao entendimento são a ponte para a afirmação dos valores numa práxis cotidiana. Sem a

presença maciça de ações desse tipo, supomos que a tão falada “distância entre o discurso

e a prática” se verificaria e, os efeitos poderiam ser bem outros.

456

Não se trata de uma organização com ideais igualitários. Claramente, não estamos diante

de um projeto autogestionário. Nem tampouco ouvimos, de quem quer que seja, qualquer

alusão ao igualitarismo ou ainda a autogestão nos oito meses que trabalhamos nessa

empresa. Existe a hierarquia, isso é ponto pacífico. Há chefes, entre os quais, os donos

são os principais. Existem níveis decisórios que se diferenciam, embora quase sempre

compostos de colegiados. Há empregados que são completamente alijados de qualquer

participação nas decisões, seu papel se resume a cumprir tarefas, embora na Casa do

Meio a administradora lance mão de recursos de administração participativa com os

empregados: há uma reunião mensal entre ela e eles para discutir sobre o trabalho. Nesse

sentido, dificilmente chamaríamos essa organização de “coletivista”, na acepção de

Rothschild-Whitt.

Trata-se sobretudo, de uma organização em que a negociação permanente emerge com

grande força. Esse é talvez, o seu maior trunfo. Não podemos esquecer que essa é uma

empresa de sucesso no seu ramo de atividades. Que se expande mas, não na direção do

crescimento incontrolável — como a maioria das organizações de sucesso onde

elementos como êxito, desempenho e fins são predominantes. A Casa Via Magia se

expande, até então, ao ponto onde possa concretizar o ideal de integrar educação, arte e

saúde numa filosofia comum, de cunho emancipatório. Após a criação da Casa do Meio,

a empresa conta com cerca de 50 membros. A negociação permanente, expressa-se na

prevalência das ações orientadas ao entendimento justamente em processos

457

organizacionais-chave, como a hierarquia e estabelecimento de normas, a tomada de

decisão e o controle.

O intenso uso de comunicação verbal, face a face, de busca incessante de acordos que

venham a acarretar a responsabilidade e a satisfação sociais, dilui consideravelmente o

peso da hierarquia, embora não o elimine. Isto é possível porque o substrato das

comunicações e, por conseguinte, das relações interpessoais, é a autenticidade. A

franqueza, a abertura e a transparência, cimentam os valores à prática, gerando a

confiança mútua necessária para que o entendimento prevaleça em processos tão

delicados (pois intimamente ligados ao poder), tais como hierarquia, normas, tomada de

decisão e controle.

Acima de tudo, observa-se a liberação e liberalização da palavra. A palavra é livre. Vale

expressar-se, desde que seja com autenticidade e respeito ao outro. A palavra libertada

conduz processos grupais a estágios inimaginados, liberando a criatividade. Assim é que

interpretamos a constatação de que a autorealização é a maior fonte de satisfação

individual. Vale expressar, vale ousar, vale arriscar. A organização arrisca, a escola

arrisca desde o seu início, hoje já possui uma metodologia própria e detém uma reputação

invejável em seu ramo na Bahia. Há um clima permanente de experimentação.

A criatividade não é compatível com padrões rígidos, logo não nos surpreende o fato da

autonomia prevalecer na divisão do trabalho.

458

Os fins de natureza técnica prevalecem na resolução dos conflitos, os quais não são

comprometedores da sobrevivência da empresa, uma vez que o intenso investimento em

comunicações verbais face a face, orientadas ao entendimento e baseadas em

autenticidade, acabam por reduzir os riscos de graves rupturas a partir de conflitos

cristalizados. Para nós, a importância dos fins de natureza técnica na solução dos

embates, indica um senso de “cientificismo” exacerbado, uma grande dose de importância

dedicada ao conhecimento sistematizado. É uma organização composta por pessoas, em

sua larga maioria, de formação educacional superior, onde a ciência ocupa uma posição

de destaque.

É por isso que há tanta valorização do desempenho porém, um desempenho oriundo não

de estratégias organizacionais que visam desbancar concorrentes num mercado percebido

como uma “guerra” (daí o termo estratégia utilizado pela teoria de administração). Não se

tem orgulho a partir de uma esperteza, uma manobra estratégica, e sim da competência

técnico-científica. Para a produtora de arte e para a Casa do Meio, foram convidados entre

aqueles profissionais que tinham valores semelhantes aos defendidos na empresa, os

melhores, os mais competentes. Na escola, estuda-se incessantemente e investe-se

permanentemente na formação, no desenvolvimento técnico-científico do corpo docente.

Assim, face a racionalidade instrumental, fins técnicos e desempenho são, dentre os seus

elementos constitutivos, os mais marcantes. Eles dão o tom da razão instrumental na Casa

Via Magia.

459

Então, nas diversas situações conflituais mas, sem riscos de rupturas graves para a

continuidade da organização, opta-se por critérios técnicos, justamente por que trata-se,

quase sempre, de conflitos funcionais. Sendo as relações tão marcadas pela pessoalidade,

e cimentadas efetivamente por valores, dificilmente alguém poderia continuar a fazer

parte por muito tempo do grupo, alimentando um conflito indissolúvel. A nossa hipótese

é de que a sua saída nos pareceria o caminho mais provável.

Uma organização de doutos, onde o desempenho e a competência são muito respeitados.

Isso afasta mais ainda a possibilidade de uma renovação radical (com relação às

organizações tradicionais) do quadro do poder, da distância entre os que decidem e

aqueles que não decidem ou nem sequer participam de qualquer processo decisório. Essa

distância, na Casa Via Magia, corresponde à distância entre os doutos e os não doutos.

Estes últimos, são os empregados que exercem as funções de apoio administrativo e/ou

logístico. A eles são dedicadas as atenções gerais de respeito e bom relacionamento, mas

a eles não se estende os processos coletivos mais avançados. Embora, em sua totalidade,

eles declaram-se satisfeitos por trabalhar naquela empresa.

Não estamos julgando as práticas observadas à luz de valores tipicamente nossos,

oriundos do nosso dever ser; estamos constatando o fato de que existem procedimentos

diferentes para cada subgrupo da organização.

Para nós, este é o ponto, o aspecto crucial que define a hierarquia nessa empresa, não

aquela visão tradicional de hierarquia enquanto centro fixo de poder decisório. Essa linha

460

de análise não traria bons frutos para interpretar essa questão na Casa Via Magia. Para

nós, o ângulo, o foco é bem outro. Que a organização pode ser considerada substantiva,

após aplicar a nossa grade de análise, não temos a menor dúvida. Que a organização não

inovou no equacionamento da questão da distância entre os doutos e os não doutos,

também não temos a menor dúvida.

A partir dos resultados sumarizados na figura 5, podemos então formular uma análise

global, ensejando uma visão de conjunto da Casa Via Magia. É o que reportamos na

última linha da figura 5. Os valores emancipatórios foram predominantes na organização

como um todo, pois predominaram em quatro dos onze processos estudados, escore não

alcançado por nenhum outro indicador. A posição global da empresa no continuum que

mede a intensidade de racionalidade substantiva é de elevada, pois tal medida foi

atribuída para quase metade das variáveis analisadas, sendo, inclusive a medida comum a

todas as variáveis que representam processos organizacionais essenciais. É o que está

demonstrado na figura 6 abaixo.

Casa Via Magia ↑

|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva

Figura 6 - Posição da Casa Via Magia no continuum de intensidade de racionalidade substantiva

461

Capítulo VII - Análise da Espaço Lumiar

Do mesmo pelo qual procedemos no capítulo anterior, primeiramente empreenderemos a

análise dos processos organizacionais essenciais e, posteriormente, a dos

complementares.

Hierarquia e normas:

A organização Espaço Lumiar prima por estabelecer uma ordem na qual não há uma

hierarquia formalizada. Não há chefes, nem donos. Trata-se de um coletivo que dilui o

poder por todos os profissionais que participam da empresa. Para tanto, as ações de

entendimento são largamente empregadas.

Havia uma diferença de níveis entre os profissionais e as pessoas contratadas para

trabalhar na recepção em contato direto com os clientes. As recepcionistas não

participavam das decisões e sequer das reuniões semanais, quando se discute problemas

comuns, troca-se informações e delibera-se sobre as questões pendentes de resolução.

Porém, como veremos adiante, esse desnível que configurava uma diferenciação

hierárquica acabou por ser eliminado.

462

O que não quer dizer, em nenhuma hipótese, que os comportamentos sejam retilíneos,

unidimensionais. A prática constante do entendimento exige a habilidade e a perseverança

na comunicação verbal, a discussão exaustiva das questões, o debate e a argumentação.

Na dinâmica que vai se instalando no cotidiano do grupo, há oscilações, influências

mútuas, conflitos, que acarretam variações comportamentais, retrocessos e alterações de

rumo.

No fluir dessa dinâmica organizacional, pudemos verificar uma única vez, o uso da

influência com base na antiguidade para sustentar uma postura autoritária. Tratava-se de

uma questão simples mas, em etnografia, todos os fatos e situações têm o seu respectivo

valor. Havia o interesse geral em redecorar o espaço de entrada da sede da empresa,

renovando inteiramente o jardim. Alguns orçamentos foram feitos em lojas

especializadas, sendo todos considerados muito caros.

Então, numa reunião, um dos membros mais antigos do grupo, fundador da empresa,

propôs que o jardim fosse renovado pelos próprios membros, na medida em que cada um

doaria ao menos uma planta e o responsável pela manutenção do jardim se encarregaria

do novo arranjo. A proposta foi aceita e marcou-se um prazo para receber as plantas.

Findo o prazo, aproximadamente de uma quinzena, poucos tinham efetivamente doado as

plantas necessárias.

463

Em nova reunião, o membro que havia sugerido a solução, tomou uma decisão sem antes

colocá-la em discussão:

— “Se até a próxima reunião, as doações não forem

feitas, então o Espaço Lumiar comprará as plantas e os

faltosos pagarão ! ”

Ao fazer tal afirmação, ele imediatamente transcreveu para a ata da reunião (que nesse dia

era elaborada por ele mesmo) a sua decisão como se fosse do grupo. Curiosamente, o

membro mais novo, que havia entrado há poucas semanas para prestar serviços de

reajustamento corporal, lançou um imediato questionamento:

— “E isso foi decidido ?”

O que aborreceu visivelmente o outro, o qual retrucou em tom grave:

— “Eu não estava brincando, falei sério. Está escrito

aqui !”

Ele apontava para o registro da ata que tinha sido feito pelo próprio. Seguiu-se um

silêncio absoluto, ninguém o contestou.

464

Naquela situação, simples porém rica para nossas observações, pudemos perceber que o

membro mais antigo usou de seu poder pessoal junto aos demais, acionando-o como uma

influência direta e legitimando (pela omissão dos outros) uma decisão de cunho

eminentemente autoritário. Voltaria, ele, a utilizar o poder dessa maneira outras vezes ?

No decurso de nossos trabalhos, observações e entrevistas, não constatamos nenhuma

repetição de tal comportamento. Ao contrário, os processos de entendimento continuaram

a fluir, sem preponderância fixa de qualquer um dos participantes. No entanto, fica o

registro desse fato, para nós, importante pois revelou a predominância naquela situação

de fins ligados ao poder. À guisa de registro, informamos que nos dias que se seguiram,

todos, sem exceção, doaram plantas de variados tipos para o novo jardim.

Numa grande reunião, da qual participaram todas as pessoas que escrevem regularmente

na revista trimestral da editora, os responsáveis pelas seções e o editor, decidiram por

uma nova composição do Conselho Editorial da revista. Cerca de quinze pessoas

participaram da reunião, sendo apenas quatro destas pessoas, membros oficiais da Espaço

Lumiar, os demais eram colaboradores da revista. A intenção era a de ampliar o

envolvimento de todos para a expansão da revista, falava-se numa “nova fase”.

O Conselho foi recomposto, ampliando a quantidade de membros. Vários aspectos foram

discutidos, debatidos, visando desenvolver a nova fase, na qual, novas práticas seriam

estabelecidas. Uma delas dizia respeito à remuneração dos colaboradores permanentes,

465

principalmente os responsáveis pelas seções e aqueles incumbidos das atividades técnicas

como diagramação. O grupo falava em normas de remuneração. Devido aos tipos

variados de trabalho, à quantidade também variável de trabalho dedicado a revista, à

natureza dos profissionais (alguns eram jornalistas, outros não) foi adotada como norma

básica a negociação caso a caso, isto é, cada profissional com o editor.

Observamos, então, que o padrão existente no Espaço Lumiar tinha sido extendido ao

grupo de colaboradores da revista, em sua maioria não membros daquela empresa. O

padrão ao qual nos referimos diz respeito à normas não escritas, estabelecidas com base

no julgamento ético e permeadas na sua aplicação por ações de entendimento.

Assim, com base nos dados provenientes de observações e entrevistas, uma vez que os

documentos que são elaborados na organização não constam normas, nem tampouco

organogramas ou quaisquer outras informações semelhantes, detectamos a predominância

do elemento entendimento na rubrica hierarquia e normas. Julgamento ético e fins,

também foram elementos mapeados, porém sem predominar sobre o entendimento.

Gostaríamos de ressaltar que o elemento fins se fêz presente com frequência e intensidade

mínimas, no cômputo geral de dados.

Por conseguinte, situamos esta variável na escala de intensidade de racionalidade

substantiva como muito elevada.

Valores e objetivos organizacionais:

466

O grupo é profundamente ligado aos valores do movimento Nova Era. Há um fundo

espiritualista permeando as principais ações dos membros da organização. Essa relação,

em certos aspectos pode ser considerada também como religiosa, uma vez que inclui a

prática de cultos e rituais xamânicos. Todos os profissionais que prestam serviços na

clínica parecem compartilhar o mesmo conjunto de crenças, embora notássemos que

alguns praticavam ativamente os cultos, enquanto outros não.

Focalizados por meio de uma ótica que mescla valores gerais típicos do que se chama

atualmente Nova Era, com crenças baseadas em determinadas correntes do xamanismo,

os valores de transformação social, respeito ao indivíduo, solidariedade e liberdade são a

mola mestra da organização. O caminho para a concretização da mudança social passa

pela mudança individual — a “cura” — em todos os níveis da existência: físico,

psicológico e espiritual. Acredita-se que o indivíduo que passa por um processo de cura,

libera o seu potencial interior, conecta-se com o Cosmo e alcança um estágio interior que

alterará o meio em que ele vive. Em suma, a mudança parte do indivíduo para o social. A

“cura” é necessária a muitos que em virtude das pressões provocadas pela sociedade

moderna, perdem o contato com o seu eu mais íntimo e, por conseguinte com o Cosmo,

desintegrando-se da ordem natural e universal.

Nesse contexto a clínica existe para ajudar o processo de cura, os profissionais lá se

reúnem para ganhar a vida prestando um serviço ao todo. Esse é o objetivo básico da

467

organização: trabalhar para a integração harmoniosa das pessoas ao todo universal, daí

viriam as mudanças necessárias no plano social, econômico, etc. Nessa ação conjunta,

integra-se ciência e crenças. Trabalha-se a medicina floral, naturista, ao lado da

psicologia transpessoal, tarô, ajustamento corporal, massagens orientais, etc.

O naturismo, veiculado fundamentalmente pela prática da alimentação e da medicina, é o

valor essencial da mensagem divulgada pela editora, através da revista trimestral e dos

livros.

Esse é o conjunto de valores espiritualistas que guia a organização como um todo, daí

decorre os seus objetivos e a sua propria razão de ser. O resultado econômico é visto

como uma consequência da capacidade de bem concretizar aqueles valores.

Embora não comprometendo a prevalência de tais valores, percebemos em algumas

situações a presença de elementos típicos da razão instrumental guiando alguns

processos. Foi o caso da nova fase da revista, implicando a alteração do Conselho e

tomada de medidas visando claramente atingir fins de natureza econômica, tais como

aumento das rendas e remunerações decorrentes. Embora possa-se argumentar que os

valores espiritualistas estariam na base da pretendida expansão, a ampliação de sua

divulgação, etc., preferimos registrar e aqui indicar o que vimos, um claro e

preponderante direcionamento ao alcance de objetivos econômicos na reformulação da

revista.

468

Uma outra situação digna de registro foi presenciada na ocasião em que teve início a

longa e conflituosa crise relativa à função de recepção, da recepcionista, das relações de

trabalho com empregados. Essa crise será vista com detalhes nas páginas seguintes. O seu

enfrentamento provocou substanciais avanços do grupo no que tange as relações de

trabalho, porém, não podemos deixar de registrar, neste momento, que as posições que

prevaleciam no início da crise eram totalmente embasadas na utilidade enquanto valor,

denotando uma clara contradição com os valores professados pelo grupo.

Quando da divulgação em reunião, da informação que a recepcionista atual iria deixar o

emprego, um mal estar tomou conta de todo o grupo. Numa clínica, a recepção é uma

função-chave, ela é o ponto de contato crítico com a clientela. Na oportunidade discutiu-

se muito a dificuldade em encontrar alguém que desempenhasse bem as atividades

requeridas. Percebemos então, que o problema não era novo. Havia uma rotatividade que

incomodava a todos. Discutiu-se muito qual seria o perfil ideal de alguém para bem

exercer a função. O mais interessante é que o perfil em nada, em nenhum traço tinha

semelhança com os próprios membros do grupo. Ora, então a recepcionista tinha que ser

alguém bastante “diferente” deles: conformado, burocrático, capaz de repetir ações

padronizadas durante todo o tempo de trabalho, etc.. O estereótipo perfeito do “alegre

detentor de emprego”, na acepção de Guerreiro Ramos. Por trás do “perfil”, estava o não

dito, a relação de trabalho baseada no valor utilidade e manifestada pelas características

(também interditas) de subvalorização social do ser humano: no fundo, a pessoa ideal

deveria ser uma mulher, empregado, de baixa qualificação e limitada aos seus mecânicos

469

deveres. Uma pessoa assim serviria. No bojo das discussões e lamentações por não ter até

então encontrado o alguém ideal, um dos profissionais vaticinou:

— “Será preciso que a próxima saiba muito bem qual

será o seu papel aqui.”

Como veremos logo adiante, houve uma grande modificação nesse panorama, no entanto,

até a situação inicial da crise, a utilidade marcava a presença da razão instrumental.

De acordo com a nossa proposta analítica, as observações e as entrevistas são as fontes de

dados privilegiadas para o exame da rubrica em questão. Da análise dos dados assim

obtidos, emergiu o elemento valores emancipatórios com predominância sobre os outros

detectados, a saber, os fins e a utilidade.

Devido ao grau de predominância, levando-se em conta que em certas situações e

assuntos de grande importância, os valores emancipatórios foram se firmando

paulatinamente e se consolidando, indicamos a posição elevada para a variável valores e

objetivos na escala de intensidade de racionalidade substantiva.

Tomada de decisão:

470

A seguir, relataremos os processos de algumas das muitas decisões importantes que

presenciamos.

Gostaríamos de aqui reportar uma das primeiras decisões importantes cujo processo

pudemos observar integralmente: sobre a redecoração da ala interna da sede da empresa.

Vários orçamentos foram encomendados, a escolha foi feita em grupo, sem votação, com

discussão até o consenso. A predominância do entendimento foi clara. Embora tenha

pesado na opção eleita itens como a mão de obra mais barata e a compra de alguns

materiais pelos próprios membros do grupo, aproveitando o conhecimento de alguns

sobre determinados materiais requeridos. Logo, cálculo e maximização de recursos foram

intervenientes na situação, mesmo perdendo em predominância para as ações de

entendimento.

O piso da entrada da sede também sofreu uma grande reforma em seguida, a prevalência

na decisão se manteve inalterada. As duas reformas somaram um montante razoável de

recursos financeiros.

Uma das terapeutas lançou uma proposta de dividir a sua sala com um outro profissional,

externo ao grupo, no sentido de atender a crianças, oferecendo um serviço de ludoterapia.

Argumentava que assim poderia causar um aumento da receita, além da maximização do

uso das instalações, ocupando a sala em horários vazios. A proposta foi recusada, em

virtude do que poderia acarretar aquele tipo de trabalho: a possível quebra do clima atual,

de silêncio, de tranquilidade, necessário ao desenvolvimento de outros trabalhos e

471

também a uma certa ambiência desejada na sede. As avaliações se justificavam em última

instância com expressões do tipo “não é bom”, “temos que pensar nos outros colegas”.

Mesmo com a possibilidade de aumento da receita e da maximização, a proposta foi

recusada em função do julgamento ético.

A mais importante decisão durante o período de nosso trabalho no Espaço Lumiar,

decisão que alterou profundamente a postura interativa do grupo, se deu com referência a

participação de um empregado, a recepcionista, nas reuniões semanais quando o grupo

discute todos os assuntos, problemas em comum e delibera. A reunião é o momento vivo

do grupo, é quando todos os profissionais da empresa encontram-se face a face. O penoso

processo que conduziu o grupo a esse avanço, será aqui detalhado nas rubricas reflexão

sobre a organização e comunicação/relações interpessoais, pois essa verdadeira crise

passada pelo grupo, teve consequências importantes nos processos de reflexão e de

relações interpessoais. Por enquanto, reportaremos que a decisão foi tomada após

intensos e apaixonados debates e, principalmente, que o julgamento ético prevaleceu em

base valorativa, sendo que a utilidade, valor que sustentava a opção pela não participação

de empregados na reunião, foi fragorosamente vencida.

Esse episódio, nos serviu também para compreender com mais precisão, como se dá o

processo decisório na organização: discute-se, argumenta-se de todas as formas, até

mesmo apaixonadamente em alguns casos. Aí valem todas as tentativas éticas para

validar as propostas, a palavra é utilizada sem repressões, seja baseada numa lógica

formal ou invocando argumentos sentimentais. Se há um impasse, o debate continua, se

472

uma posição vai se firmando, não é necessário retirar declaradamente as outras, embora

por vezes o proponente o faça. O silêncio gradativo do proponente é o sinal (percebido

por todos) da queda dos seus argumentos. Assim, do implícito para o explícito, brota,

emerge a decisão, que é sempre confirmada em pergunta aberta e imediatamente

registrada na ata da reunião.

A contratação de novas recepcionistas, a partir da decisão anterior, passou a ser, acima de

tudo, um processo composto por ações de entendimento. Ele foi sensivelmente alterado,

pois passou a ser alvo de um tipo de decisão tomado em reunião imediatamente após uma

entrevista coletiva com a candidata, isto é, feita dentro da própria reunião. Presenciamos

duas contratações semelhantes. Antes, as candidatas eram entrevistadas por um ou dois

membros do grupo, que passavam as suas impressões aos outros e tomava-se a decisão

em reunião, a partir daquelas informações. Depois que se decidiu conceder o direito de

participação nas reuniões aos empregados, também os procedimentos de contratação

foram transformados, havendo uma maior abertura e transparência. As duas contratações

que presenciamos segundo o novo processo, foram marcadas pelo entendimento. Após

várias questões formuladas e respondidas, inclusive demandando-se da candidata que se

colocasse de forma pessoal, interior, ou seja, que situasse o trabalho no contexto sua vida

pessoal atual, a decisão foi tomada ali mesmo, no ato. Portanto, um processo

intersubjetivo de entendimento, mediado comunicativamente, como aqueles comentados e

previstos por Habermas (1987).

473

Para finalizar a ilustração da tomada de decisão, escolhemos apresentar uma decisão

totalmente extemporânea ao padrão regularmente adotado pelo grupo. Trata-se do evento,

já comentado, em que um dos membros mais antigos impôs uma decisão sobre todo o

grupo, valendo-se talvez da sua condição de antiguidade: a decisão sobre o pagamento

das plantas por parte daqueles que não trouxessem colaborações para redecorar o jardim.

Uma vez que a imposição foi aceita, para nós significa uma decisão já que foi registrada,

inclusive no livro de atas, legitimando aquele comportamento autoritário. Nessa ocasião,

podemos indicar os elementos de cálculo e de utilidade, preponderando unicamente na

decisão. Tanto pela antecipação de fundo ameaçador, punitivo, pela não realização de

uma ação desejada (a doação das plantas), como pelo fato das pessoas terem sido vistas,

naquele momento, como meros instrumentos servindo a um intuito exterior a elas

mesmas, apenas como recursos úteis à concretização de um desejo. Não obstante, o fato

delas terem falhado ao compromisso assumido, não trazendo as plantas como houvera

sido acertado. Falta de responsabilidade, talvez, mas não existiriam meios mais

democráticos de se enfrentar a questão ?

As fontes de dados, observações e entrevistas nos forneceram os “materiais” necessários

ao exame desse processo organizacional. Ao fazê-lo, evidenciou-se o entendimento como

elemento predominante. Mesmo sem predominância, foi possível evidenciar também a

presença do julgamento ético (em grau bem próximo do entendimento), do cálculo, da

maximização de recursos e, alguns traços da utilidade.

474

Portanto, na escala de intensidade de racionalidade susbstantiva, situamos a variável

tomada de decisão na qualificação elevada.

Controle:

O controle, praticamente, não é formalizado. Há poucos instrumentos formais que são

utilizados para o controle de atividades: a agenda na qual a recepcionista registra as

consultas marcadas, o livro de atas de reuniões e os balancetes mensais preparados pelo

responsável pela parte financeira.

Em verdade, fora a agenda, que tem uma função bastante específica, os dois outros

instrumentos acima citados não são frequentemente consultados como talvez pudessem

sê-lo no tocante ao controle. Ele é feito em grupo, comunicativamente, durante as

reuniões. A palavra é o seu meio e “instrumento”. O controle se transfigura em acordos,

acordos sucessivos, surgidos da narração, questionamento, respostas, argumentações e

assunção de compromissos. A informação sobre ações passadas é dada ali mesmo, na

reunião. Curiosamente, poucas são as ações narradas, reportadas, que são alvo de registro

em atas. As atas servem mais como registro de decisões e confirmação de

comprometimentos. Presente e futuro, portanto, quase nada de passado. À questão

singular das atas, voltaremos a discutir com mais detalhes nas rubricas comunicação e

dimensão simbólica.

475

Das fontes de dados, observações, entrevistas e verificação de documentos, resultou a

nossa análise constatando que o controle, empreendido coletivamente e mediatizado pela

palavra, é caracterizado pelas ações de entendimento. Eis o elemento largamente

predominante nessa rubrica.

Em muito menor grau, pôde-se constatar a presença do elemento desempenho de cada

membro, à frente de sua área de responsabilidade no bojo das tarefas comuns.

Consequentemente, a posição adequada da variável controle, na escala de intensidade de

racionalidade substantiva é muito elevada.

Divisão do trabalho

Nesse item, trataremos de descrever a análise elaborada a partir da divisão do trabalho

comum a todos os membros da clínica e da editora, unidades que funcionam anexas, na

mesma sede e, onde a maior parte das atividades regulares da organização são realizadas.

Já que o trabalho dos profissionais é especializado por natureza, cada qual atende seus

respectivos clientes, o que chamamos de trabalho comum diz respeito à manutenção das

476

instalações da sede, gestão financeira e administrativa, decoração, jardins, etc. Tais

atividades são comuns a todos, independentemente da especialidade de cada um.

O elemento autonomia, aqui, pôde ser constatado sob várias formas, tanto nas tarefas

comuns citadas acima, que são regulares e têm um respectivo responsável, como nas

tarefas de interesse comum mas que não são regulares, que surgem no decorrer de

necessidades percebidas nas diversas situações que marcam a dinâmica da organização.

Começaremos por citar casos de tarefas não regulares. Esse tipo de tarefa é assumido, e

não designado a alguém. Percebe-se e expressa-se a necessidade a partir da vivência e

discussão de situações diversas. Logo que a necessidade é percebida e então é

reconhecida coletivamente, alguém sempre se manifesta, assumindo a responsabilidade

pelo seu cumprimento. O que pesa é a disponibilidade e a vontade de assumir as tarefas.

O caso da obtenção de uma linha telefônica adicional ilustra bem essa prática. Numa

reunião, após discutir os problemas de comunicação advindos do aumento progressivo da

clientela, o grupo reconheceu que, contar apenas com uma linha telefônica, era uma

limitação que atingia já um ponto de entrave inadmissível ao desenvolvimento. Decidido

então, obter uma segunda linha rapidamente, a profissional que oferece serviços de tarô se

predispôs, por iniciativa própria, a conseguí-la.

Quando da contratação de uma recepcionista, era necessário que lhe fosse passado todo o

esquema de funcionamento da empresa, destacando as particularidades de cada

477

profissional no tocante a sua clientela e também com relação à natureza de seus serviços.

O editor da revista e uma das terapeutas se encarregaram espontaneamente de fazê-lo.

O lanche que é vendido na clínica tornou-se um problema, em virtude da sua inadequação

aos princípios alimentícios do grupo e também à irregularidade no fornecimento. Uma

terapeuta e a profissional de tarô assumiram a responsabilidade de resolver a questão,

estudando uma solução e tomando as medidas devidas, que satisfizesse aos critérios do

grupo.

Complementarmente, acontece por vezes que o grupo reforce uma dose de autonomia já

existente, já praticada por alguém. A reforma do piso da entrada da sede da empresa é um

bom exemplo: o resultado não saiu conforme os anseios da pessoa responsável pela

encomenda do serviço, embora não tivesse havido queixas por parte dos demais. O

responsável solicitou ao grupo que concedesse total liberdade para que ele recontratasse o

serviço de modo a adequá-lo às expectativas, foi-lhe concedida toda a autonomia para

tanto. A recontratação dos serviços implicava em novos custos.

No caso das tarefas comuns e regulares, é feito um rodízio na divisão das

responsabilidades a cada seis meses. As tarefas são agrupadas da seguinte maneira:

administração, limpeza, jardins, mural, decoração, divulgação, finanças. Vão se alocando

pessoas responsáveis por cada área. Faz-se o possível para mudar os responsáveis a cada

seis meses, de modo que todos vivenciem todas as áreas. Mas, a assunção de cada área

específica é espontânea, é fruto de uma escolha individual. A negociação acaba ocorrendo

478

em função disso. O entendimento é a chave, e a autonomia também, representada pela

liberdade de cada um se colocar e assumir a sua nova área.

No entanto, gostaríamos de frisar que o processo de renovação da divisão do trabalho

comum, mesmo sendo conduzido num prisma de busca de acordos, conduziu a um forte

conflito entre os membros do grupo. Nem sempre a disposição em negociar conduz a

processos tranquilos, harmoniosos e a soluções fáceis. As organizações substantivas não

são o reino da harmonia “holística”, como alguns ingênuos poderiam pensar. Autonomia e

autenticidade não significam a mesma coisa, a primeira não acarreta necessariamente a

segunda. Interesses individuais têm tendência, algumas vezes, a se sobrepor

execessivamente a interesses grupais e vice-versa, o equilíbrio é difícil e dinâmico,

portanto retrocessos ocorrem.

Esse conflito será detalhado na rubrica correspondente.

Em algumas situações os elementos desempenho e maximização de recursos puderam ser

observados no processo de divisão do trabalho. Relataremos duas dessas situações.

A primeira refere-se a uma questão lançada ao grupo pela nova responsável pela atividade

de divulgação. Uma terapeuta queria melhor compreender o conteúdo específico da

atividade de divulgação, pois para ela esse termo era suficientemente amplo e ela queria

colher opiniões sobre o que se pensava a respeito. Várias pessoas opinaram, expressaram

como viam a atividade e as necessidades que cada um apresentava no que tange à

479

divulgação do seu trabalho e da empresa como um todo. A demandante colhia

depoimentos visando ter alto desempenho na nova área.

A segunda situação abrangia a questão da limpeza da sede. Mesmo tendo um responsável

por essa atividade, em verdade ele trabalha como um coordenador, pois a limpeza é

realizada por todos. A empresa não contrata serventes/faxineiros para este fim. Há um

forte aspecto simbólico nesse ponto, o qual abordaremos na rubrica dimensão simbólica.

Todos executam a limpeza da sede, fazendo uma grande faxina nos finais de semana, em

duplas que vão se revezando a cada final de semana. O responsável pela atividade

encarrega-se de preparar uma escala, uma programação das duplas com antecedência de

90 dias, além de também se inserir na programação. Tal escala é preparada e submetida a

cada membro para os devidos ajustes antecipados. Após o rodízio dos trabalhos comuns,

o novo responsável pela limpeza apresentou ao grupo uma série de modificações nos

procedimentos visando maximizar os recursos existentes e aumentar o desempenho

individual e coletivo no cumprimento daquela tarefa.

Para o levantamento de dados visando o estudo dessa rubrica, indicamos no nosso plano

operacional do quadro de análise, as fontes observações, entrevistas e verificação de

documentos.

Assim procedendo, identificamos que a autonomia foi o elemento de destacada

predominância, podendo ser apontado ainda um outro elemento de razão substantiva que

respaldava sufucientemente a autonomia, ou seja, o entendimento.

480

Elementos de razão instrumental também foram detectados, a saber, o desempenho e a

maximização de recursos, nitidamente menos determinantes das ações nessa rubrica do

que os apontados acima.

Essa configuração e importãncia relativa dos indicadores de racionalidade nos fêz situar a

variável divisão do trabalho na posição referente a elevada, na nossa escala de medida da

intensidade de racionalidade substantiva.

Comunicação e relações interpessoais:

As comunicações seguem um padrão geral de grande informalidade, embora haja um

instrumento formal de comunicação que possui uma grande importância para o grupo: a

ata de reunião. Todas as reuniões são registradas em ata. A incumbência pela sua

elaboração é rotativa. Durante oito meses de participação na empresa, nunca

presenciamos uma reunião sequer em que a ata correspondente não fosse elaborada. Uma

característica marcante de sua elaboração é que ela é sempre elaborada inteiramente

(nunca um esboço para futura elaboração final) durante a reunião. Uma outra

característica é que nela são registrados aspectos do presente e do futuro próximo, em

muito maior quantidade do que do passado. A ata é o espelho da reunião. Como a própria

481

natureza da interação do grupo, ela privilegia muito mais o presente que o passado, o que

indica um certo desprezo por avaliações e saudosismos, em função da vivência do

presente.

A linguagem específica corrente na organização ressalta os termos “focalizar” e

“entrega”. O verbo focalizar ganha uma significação bastante especial no Espaço Lumiar.

Lá, “focalizar” quer dizer assumir a responsabilidade por alguma coisa, geralmente uma

atividade de grande importância. Quando alguém se encarrega de “focalizar” um assunto

ou área qualquer, o grupo deposita confiança naquela pessoa, desde que ela demonstre

claramente, através sobretudo de ações, que ela se “entrega” aquilo. Neste sentido a

“entrega”, é a dedicação firme e espontânea a uma causa, a uma missão, a um trabalho.

Ninguém nunca é forçado a “focalizar” alguma área de atividade nem tampouco a

concretizar uma “entrega” real àquilo. Todas as tarefas, grandes e pequenas, são

assumidas livremente pelos indivíduos, o compromisso é espontâneo. Porém, uma vez

que o compromisso seja assumido, uma vez que aquela pessoa é o “focalizador” daquela

atividade, ela será valorizada na medida em que ela se dá, faz o melhor possível, que a

“entrega” é real. Não se acredita em quem não se “entrega” às suas “focalizações”

livremente assumidas, esse é o ponto.

Relataremos uma das muitas situações vividas e observadas.

Começaremos pelo caso do lanche que era vendido na sede da empresa. Ele era produzido

por uma pessoa externa à organização. O grupo avalia o fornecimento do lanche e conclui

482

que ele não está atendendo às expectativas. A razão encontrada é a falta de dedicação da

pessoa que o fornece, segundo o próprio grupo. Decide-se, então, convocar o fornecedor

para expressar, em face de todos, qual o seu nível de compromisso para com aquela

atividade. O grupo age para com ele da mesma forma pela qual age para cada um de seus

membros: é exigida a “entrega” no cumprimento de qualquer tarefa pela qual a pessoa

seja responsável.

O valor compromisso é considerado fundamental para o grupo, indica até que ponto o

indivíduo está congruente entre o que faz e aquilo em que diz acreditar. Aí reside a base

das relações interpessoais e também da comunicação. Essa posição do grupo é bastante

aberta, ampla, despertando o nosso senso inquisitivo. Na ocasião da questão do lanche,

percebemos que, em menor grau que a congruência com os valores, a importância do

compromisso tinha a ver também com o desempenho de cada um no cumprimento de

tarefas. A título de informação, posteriormente o fornecedor do lanche foi substituído.

Os valores emancipatórios dão o enquadramento para o desenrolar das relações

interpessoais. Um outro exemplo disso foi a chegada de uma das novas recepcionistas.

No primeiro dia de participação dela na reunião, todos fizeram uma breve exposição de

como viam a empresa e a si próprios enquanto membros dela. Foi o mesmo que dizer: as

nossas relações se baseiam nesse conjunto de crenças. Nessa oportunidade, foi

expressada a crença na mudança e aperfeiçoamento da sociedade, bem estar coletivo,

transparência nas relações, respeito ao outro. Ainda nessa ocasião, pudemos inferir sobre

a autenticidade das manifestações, complementada pela visualização das dificuldades que

483

a nova recepcionista poderia enfrentar no cotidiano. Não só a autenticidade, também o

elemento desempenho surgia com alguma importância, muitas recomendações foram

feitas no sentido de esclarecer à pessoa sobre aspectos das relações interpessoais que

influenciam o desempenho no Espaço Lumiar.

A solidariedade é um dos valores emancipatórios mais presentes nas interações desse

grupo. Várias foram as situações em que tivemos a chance de observar ações de

solidariedade entre os membros da empresa. Uma das recepcionistas, a qual tem quatro

filhos pequenos, perdeu a sua empregada doméstica encontrando-se de repente numa

situação extremamente difícil para cumprir o horário da jornada de trabalho. O grupo

aceitou imediatamente que ela reduzisse o quanto fosse necessário a sua jornada até

contratar uma nova empregada, enquanto isso seu salário não sofreu nenhum desconto. A

franqueza da recepcionista foi muito ressaltada verbalmente por vários membros do

grupo. As dúvidas eventualmente surgidas em relação a novas áreas do trabalho comum

assumidas após o rodízio de responsabilidades, eram paulatinamente tiradas pelos colegas

que antes ocupavam-se daquelas áreas, muitas vezes as tarefas eram realizadas em

conjunto, para que os novos responsáveis aprendessem a desenvolvê-las.

A comunicação durante os debates e também os conflitos é marcada essencialmente pela

autenticidade e a autonomia. A palavra é livre, não há impedimentos. O respeito mútuo é

mantido, mas isso não quer dizer que os embates não sejam duros. São duros e fortes. Os

feed-backs são imediatos e não poupam aspectos dos argumentos colocados. As críticas

são severas e diretas. Observa-se que o grupo vai ganhando mais habilidade para discutir

484

profundamente as questões que o aflige sem perder o respeito à individualidade, à medida

que o tempo passa, ou seja, à medida em que mais se pratica a discussão aberta, baseada

na autenticidade e na autonomia. Os debates, por vezes, são extenuantes. Que não se

pense jamais que numa organização substantiva as relações são sempre harmônicas. Ao

contrário, nossas observações constataram um clima cambiante, com oscilações

substanciais em função dos debates e conflitos que ocorrem. Parece que quanto mais se

investe na transparência e franqueza nas relações, mais elas são dadas a oscilações, caos

momentâneos, altos e baixos.

Contudo, podemos afirmar que o clima geral das relações interpessoais no Espaço Lumiar

é descontraído, agradável e estimulante. Trabalhamos lá durante oito meses. Mas ele é

também estimulante pela natureza do desafio que é posto para todos, já que todos se

colocam autenticamente no grupo, o estímulo parece vir também do calor das

contraposições.

Nessa rubrica, as fontes de dados são as observações, as entrevistas e os documentos

disponíveis. Coletando os dados por meio de tais fontes, empreendemos a análise devida

e constatamos a grande predominância do elemento valores emancipatórios. Outros

elementos da razão substantiva também foram identificados, apresentando um peso digno

de grande destaque nesse processo organizacional, a autenticidade e a autonomia.

Apenas conseguimos identificar o elemento desempenho, do lado da razão instrumental

nesse processo. Ele dá o tom específico desse tipo de racionalidade na rubrica em

485

questão, porém, o seu peso relativo é muito pequeno quando comparado aos que acima

anunciamos.

Consequentemente, a variável comunicações e relações interpessoais foi situada na escala

de intensidade de racionalidade substantiva no ponto referente a muito elevada.

Ação social e relações ambientais:

As relações com entidades muito burocratizadas frequentemente apresentam problemas.

É o caso das relações com alguns organismos governamentais ou paragovernamentais.

Parece haver algumas diferenças fundamentais entre as lógicas seguidas pelas partes em

relação, o que acaba por complicar e afastar as percepções que os participantes das

organizações têm do mesmo fenômeno ou evento, dificultando o diálogo e as operações.

Um exemplo dessa dificuldade foi a demora de vários meses para obter o registro legal da

empresa junto ao cartório competente. Os membros desejavam registrar a entidade como

um condomínio, pois assim é que eles percebiam mais exatamente a organização. Um

condomínio de profissionais, empreendimento de caráter privado, coordenado mas sem

níveis hierárquicos formais, como numa empresa ou numa associação. Durante quase um

ano foram feitas diversas tentativas de registrá-lo sob essa forma mas, o cartório sempre

recusava. A proposta de estatuto havia sofrido várias mudanças, mas que não surtiram o

efeito desejado: o registro como um condomínio. Mas, constatamos que a maior parte das

alterações feitas no texto do pretendido estatuto eram devidas a razões internas: o grupo

486

queria que os objetivos formais ali declarados espelhassem fiel e detalhadamente os

valores da equipe, o que acarretou muitas discussões e reelaborações.

Percebíamos que o grupo tinha uma grande dificuldade em aceitar tomar algum tipo de

“atalho” jurídico, utilizando algum subterfúgio — tão comuns em questões jurídicas

envolvendo empresas e Estado — que viesse a resolver a questão através o uso de

manobras. Isto é, o grupo queria, a todo custo, manter-se fiel a seus valores, à verdade, à

transparência, a autenticidade: “se somos um condomínio, então é assim que nos

registraremos”, diziam comumente os seus membros.

O impasse se revelou insuperável, levando o grupo a transigir, sob pena de sofrer sérias

sanções, incluindo a interdição de funcionamento por falta de registro legal. A solução

enfim aceita foi de se constituir enquanto uma fundação de direito privado, incluindo

todas as unidades e seus patrimônios: o Espaço Lumiar, a Editora Deva e o sítio Terra

Mirim. Apesar do impasse ter sido aprofundado devido principalmente ao apego aos

valores, não podemos deixar de reconhecer que também houve uma influência do

elemento fins, de natureza técnica, no encaminhamento da questão: o registro oficial, uma

exigência de fundo técnico-legal para a institucionalização de um empreendimento numa

sociedade burocratizada.

Outro entrave com organizações burocráticas também estremeceu o ambiente interno da

empresa, provocando inclusive alguns choques entre os seus membros. Tratava-se de um

problema ocorrido com a companhia fornecedora de água do estado da Bahia, a

487

EMBASA. Tal companhia havia remetido uma conta de cobrança do fornecimento de

água considerada absurda pelo grupo. A cobrança representava algo em torno de doze

vezes o valor normal pago a cada mês. Era evidente que havia um erro de cálculo por

parte da EMBASA. No entanto, esta companhia tem por norma que qualquer reclamação

de clientes só pode ser dada entrada no protocolo da companhia mediante o pagamento da

conta contestada. O grupo não aceitava pagar para depois contestar. No entanto, alguns

membros se opunham ao não pagamento, temendo o corte do fornecimento. Um grande e

tenso debate ocorreu, prevalecendo, a duras penas, a posição do não pagamento. Após

dois meses de negociações difíceis com a companhia, foi sanado o problema, com a

devida correção do erro de cálculo da conta. Nesse caso, os fins econômicos foi o

elemento direcionador das ações, pois estava em jogo a realização de uma grande

despesa, a qual, mesmo podendo ser ressarcida mais tarde (após a correção do erro) não

seria ressarcida com correção monetária, portanto haveria sempre uma perda financeira

pelo adiantamento do pagamento.

A organização Espaço Lumiar se faz presente em muitos eventos promovidos na cidade

por ouras organizações que atuam no mesmo ramo de atividade. Seus membros têm

grande visibilidade no meio. Participam ativamente de seminários, conferências,

congressos, que reúnam pessoas e entidades ligadas ao movimento Nova Era, Holismo,

etc. Uma de suas terapeutas também participou de uma série de programas produzidos

por uma estação de TV local, que visava discutir e difundir os valores e práticas

consideradas alternativos aos padrões consagrados pela sociedade de consumo. Nessas

488

ocasiões e ações, os valores emancipatórios se constituem no conteúdo principal daquilo

que é difundido e defendido.

Há uma seção especial da revista trimestral publicada pela editora Deva que traz uma

grande lista contendo nomes, endereços e serviços prestados por dezenas de clínicas

semelhantes ao Espaço Lumiar, profissionais independentes e pontos de venda de livros

ligados à Nova Era, produtos naturais e artigos correlatos. Esta seção passou a ser um

referencial em Salvador para aqueles que buscam tais serviços e produtos. A Casa do

Meio e o Espaço Aquarius, por exemplo, as outras clínicas que fazem parte deste nosso

estudo, figuram na referida lista.

Observações, entrevistas e verificação de documentos foram as fontes que utilizamos para

obter os dados necessários ao exame dessa rubrica. O seu exame detalhado nos fêz

perceber a predominância, em alto grau, do elemento de racionalidade valores

emancipatórios.

Tal exame revelou que a razão instrumental se faz presente por meio do elemento fins,

embora com muita distância, no que tange ao critério de predominância, do elemento

valores emancipatórios.

Assim sendo, a medida adequada da variável ação social e relações ambientais na escala

de intensidade de racionalidade substantiva é muito elevada.

489

Reflexão sobre a organização:

A reflexão sobre a organização é empreendida coletivamente, em algumas reuniões

semanais ordinárias. Ela não é programada, surge no bojo da discussão sobre algum fato

ou situação de interesse do grupo.

Numa reunião onde severas críticas foram feitas ao responsável pela administração

devido à perda de um conjunto de chaves das portas da sede, após longas discussões e

esgotamento da questão, um membro tomou a palavra e refletiu sobre o que chamou de

“avanço”:

—“Há um avanço muito claro no nosso grupo: a

franqueza é crescente, sem comprometer a solidariedade

e o respeito.”

Quando da entrevista coletiva de uma candidata a recepcionista, cada membro foi

incitado a expressar o que significava o seu trabalho individual e o significado do Espaço

Lumiar para ele, para a sua vida. A rodada de expressões acabou se constituindo numa

reflexão coletiva e não programada sobre a organização; tal conjunto de expressões foi

totalmente respaldado nos valores já comentados no item correspondente.

490

A crise do rodízio na divisão do trabalho comum também acarretou uma reflexão sobre a

organização, num dado momento da crise, cada qual revelou verbalmente o que era

aquela empresa para si. Grande destaque para alguns dos valores emancipatórios.

Dois meses após a contratação de duas recepcionistas em paralelo, um dos membros do

grupo levantou a questão do grande aumento das despesas advindo daquela decisão.

Refletiu-se conjuntamente sobre a organização segundo a ótica dos fins econômicos

fundamentalmente, e da rentabilidade, este último elemento em menor grau. Na ocasião,

não foi evocado nenhum valor de natureza substantiva, apenas o fator econômico

determinou a base de reflexão sobre a existência da empresa.

Seguindo o modo de operacionalização do quadro de análise proposto nesse estudo,

consultamos as fontes observações e entrevistas para levantar os dados concernentes ao

exame desse processo organizacional. A análise criteriosa dos dados assim obtidos,

revelou que os valores emancipatórios tem predominância clara nessa rubrica.

Não obstante a predominância daquele elemento de razão substantiva, os fins e a

rentabilidade, elementos da razão instrumental, foram encontrados no bojo dos processos

de reflexão sobre a organização.

Daí que, na escala de intensidade de racionalidade substantiva, a variável reflexão sobre a

organização foi referendada como elevada.

Conflitos:

491

Os conflitos são vivenciados e solucionados com uma forte dose de autonomia e de

autenticidade, elementos que elevam suficientemente a “temperatura” do clima no qual

os conflitos ocorrem. Ainda que o respeito seja mantido, cultivado, a franqueza e a

liberdade de expressão conduzem a situações de tal forma transparentes, com relação a

opiniões e sentimentos que poderia levar um observador externo a pensar que a cada

embate, a cada choque de percepções e de opiniões, o grupo estaria se dissolvendo, tal é a

intensidade das discussões.

Algumas vezes, percebemos a orientação de comportamentos segundo fins, tanto ligados

a dimensão técnica quanto ao poder e, a estratégia interpessoal e o cálculo.

Passemos a alguns exemplos.

Os dois maiores conflitos que presenciamos foram aqueles relacionados a participação de

empregados nas reuniões semanais e o que ocorreu quando do rodízio dos trabalhos

comuns.

Após a constatação da rotação de pessoas encarregadas da função de recepção, o grupo

demonstrava um grande mal estar. Já não adiantava mais apelar para a inadequação dos

empregados face ao perfil idealizado. Tudo levava a crer que o problema era muito mais

profundo e mesmo de outra natureza. A função de recepção é vital para todos, na medida

492

em que ela é, no cotidiano, a ponte privilegiada de ligação dos profissionais à sua

clientela e, por extensão, ao mundo exterior. Portanto, um problema que incomodava a

todos.

Numa reunião, durante a discussão da questão, alguém relembra que numa outra clínica

onde ela havia trabalhado, a recepcionista também participava da reuniões do grupo, ela

era vista realmente como mais um membro ativo da organização, fazendo parte do

processo decisório e tomando parte de todas as informações relevantes, não havendo

distância entre ela e os outros profissionais, os doutos. Foi lançada a proposta de adotar o

mesmo procedimento no Espaço Lumiar, de acabar com o desnível interativo entre

empregado e patrões. Tal proposta detonou um conflito, um choque de opiniões que

elevou sensivelmente a temperatura do grupo.

Os argumentos em contrário começaram pela alegação do possível despreparo

psicológico e até espiritual da pessoa para participar de reuniões que as vezes são

extremamente conflituosas. Tal argumento foi duramente combatido pois

contrargumentou-se que àquele a quem não é dado o direito de participar, não terá nunca

a oportunidade de adquirir o tal preparo. No desenrolar da discussão, podia-se perceber

que esse argumento estava paulatinamente sendo vencido. O segundo argumento, era, de

fato, uma mera apelação burocrática: como a reunião começava sempre às sete horas da

manhã, a participação nela implicaria uma hora a mais de trabalho, acarretando horas

extras ou, no mínimo uma mudança no horário de trabalho, já que a jornada começava

493

oficialmente às oito horas. Esse argumento foi derrotado em virtude da participação não

ser exigida e sim facultada.

Daí, a argumentação em contrário começou a mostrar a sua verdadeira face:

— “Gente, não podemos esquecer de que há sempre

alguns assuntos que não podem ser discutidos em

presença de determinadas pessoas, eles devem ser

guardados com cuidado, principalmente os assuntos

financeiros.”

A partir dessa manifestação, a autenticidade começou a conduzir, cada vez mais, o

processo. Os sofismas pouco a pouco desapareciam. O debate “esquenta”, se intensifica.

Em um dado momento, o grupo parecia dividido entre duas posições fortemente

defendidas. Apela-se até para instâncias exteriores ao próprio grupo quando a questão

torna-se um conflito, um impasse. Reproduziremos abaixo, diálogos reveladores do que

estava em jogo na situação:

— “Tenho perguntado a Deus o que Ele quer me mostrar

com as dificuldades da recepção.”

— “É preciso preservar a pessoa do choque que ela teria

ao descobrir que ganha muito menos que os outros.”

494

—“Ora, pelo controle dos atendimentos, das consultas,

ela já sabe muito bem disso, e sempre saberá.”

A discussão prossegue até que um membro dá um xeque mate no grupo, abrindo-se

inteiramente:

— “Olha, eu estive refletindo enquanto vocês se

engalfinhavam. Eu reconheço que o que tenho é medo,

medo de receber alguém ‘de fora’ nas reuniões. Eu sou a

favor da participação, quem trabalha conosco ou é um de

nós ou não será nada. Chega de medo ! ”

A opção pela participação vai ganhando terreno, até o ponto em que apenas um membro

ainda não a aceitava. Um outro o dá um feed-back definitivo:

— “Este é o Paulo antigo, abandone-o. Será que este é o

Paulo de hoje ? Essa é a administração antiga, que você

aprendeu no seu tempo de Banco do Brasil, deixe-a lá, no

passado.”

Após mais algum tempo de discussão, o consenso enfim foi atingido com a decisão da

participação da futura recepcionista nas reuniões e também com a contratação através de

uma entrevista coletiva com a (s) candidata (s), durante uma próxima reunião.

495

O conflito verificado quando da ocasião do rodízio das tarefas comuns regulares também

abalou bastante o grupo e, de igual maneira, provocou significativo avanço no que

concerne a congruência entre os valores expressados e a prática real cotidiana.

A redistribuição do trabalho comum se tornou um processo bastante conflituoso. Ao

serem incitadas a optar por novas funções, as pessoas cotejavam suas atividades e

interesses individuais contra as necessidades ligadas ao trabalho coletivo na organização.

A indisponibilidade era a tônica. Em alguns momentos, os interesses individuais pesavam

muitíssimo mais que os do grupo, assim, os choques surgiam pelo fato de duas ou mais

pessoas insistirem em optar pela mesma função, como também ocasionando a rejeição de

todos para determinadas tarefas como por exemplo a de administração.

O impasse se estabelece a partir da cristalização de posições, o que torna o processo cada

vez mais penoso. Mal estar generalizado, clima deteriorado, são efeitos imediatos na

interação.

Quando então, uma terapeuta intervém com grande força, num tom grave, remetendo as

pequenas questões e as omissões para uma dimensão mais ampla:

496

— “O que cada um quer, pretende aqui ? O que é o

Espaço Lumiar para você, qual é o seu significado ?”

Esta chamada à conscientização, à reflexão, é seguida de um contundente discurso dessa

mesma pessoa esclarecendo o significado do Espaço Lumiar para a vida dela e, por

conseguinte, da casa que serve como sede da empresa. São feitas algumas colocações

como:

— “Sou grata imensamente a Deus por ter nos dado esta

casa. Ela representa muito para mim, gosto demais daqui,

ela me dá tudo o que eu tenho e o que eu preciso para

viabilizar o meu trabalho, a minha vida nesta fase. Foi

preciso muita luta para consegui-la, devo muito a ela,

trato-a muito bem. O que é isso ? Será que vocês não

sentem nada por esta casa ?”

A provocação cala fundo no grupo. Segue-se um longo silêncio. Aos poucos, retoma-se a

discussão, ela sai da superficialidade e alcança a profundidade, através das expressões de

cada um. Isto é, cada um atende à demanda da colega e vai se colocando com referência à

organização. Gradativamente, as pendências foram sendo eliminadas, o entendimento foi

se instalando. Embora duas pessoas pedissem para definir suas opções até a reunião

seguinte, percebemos que a tensão foi totalmente afastada. Na reunião seguinte, as duas

comunicaram suas escolhas e o rodízio completou-se, instalando-se uma nova

497

configuração da divisão do trabalho regular comum. Gostaríamos de registrar aqui que,

para nós, presenciar in loco o conflito entre individualismo x disponibilidade ou

indiferença x comprometimento, foi uma aprendizagem muito importante.

Em ambas situações conflituais, de razoável tensão, a autonomia e a autenticidade foram

a base das soluções que fizeram o grupo avançar na direção dos seus próprios valores, da

sua própria proposta de crescimento do ser humano. No primeiro conflito, foi possível

detectar, em graus de preponderância menos elevados, os fins ligados ao poder (tentativa

de manter a distância entre profissionais e empregados, guardando segrêdo em alguns

assuntos) e estratégias interpessoais (ações para impressionar o oponente, utilizando

argumentos de ordem burocrática, psicológica e espiritual). No segundo, estratégias

interpessoais e cálculo dominavam a discussão em seu início.

Nos dois casos acima descritos, os elementos de racionalidade instrumental foram

suplantados por indicadores de razão substantiva na resolução dos conflitos.

A demora no registro formal da empresa causou momentos tensos e conflituosos. Durante

muitos meses esperou-se pela legalização definitiva da empresa, enfrentando-se grandes

dificuldades em conseguí-la junto aos cartórios competentes. O detalhamento de tais

dificuldades já foi feito na seção própria para a apresentação da rubrica ação social e

relações ambientais. Para o que nos interessa no momento, podemos afirmar que um

conflito foi gerado em função da demora. Severas críticas foram feitas ao responsável

pela função de administração, o qual as rebatia e apresentava as suas justificativas. Os

498

fins de natureza técnica prevaleceram nessa ocasião, pois a legalização significava, para

muitos, a possibilidade de obter vantagens fiscais e outras. Apesar de haver autenticidade

no desenrolar desse conflito, os fins prevaleceram.

Os dados para o estudo dos conflitos foram coletados, conforme propusemos no Capítulo

IV, mediante observações e entrevistas. A análise dos dados, dos quais reportamos acima

alguns extratos, evidenciou a predominância do elemento autonomia. Deve ser ressaltada

também a importância destacada do elemento autenticidade nesse processo

organizacional, conforme revelada pela análise empreendida.

Detectamos a presença dos seguintes elementos de razão instrumental: fins, estratégia

interpessoal e traços de cálculo. O que não chegou a comprometer a predominância da

autonomia.

Assim sendo, na escala de intensidade de racionalidade substantiva, a variável conflitos

recebeu a medida elevada.

Satisfação individual:

A satisfação individual é advinda do grau de autorealização alcançado. Em geral, os

membros do grupo afirmam que experimentam grande satisfação em função da

499

concretização dos seus sonhos, valores e potenciais, em termos profissionais e, na

qualidade do relacionamento instalado no grupo.

Embora visto pelos profissionais da empresa como uma consequência do esforço

conjunto, os fins de natureza econômica — a viabilização do empreendimento, mesmo

numa época de crise econômica — também são fonte de satisfação. Há uma sensação

geral de confiança crescente no negócio, ao passo que a clientela se amplia. A revista, por

exemplo, passará a ser distribuída para 350 bancas de revistas em toda a cidade.

Para o exame dessa rubrica, as fontes de dados indicadas são as observações e as

entrevistas. Do exame realizado, ressaltou a larga predominância da autorealização como

causa do elevado grau de satisfação manifesto pelos membros da empresa. Apesar do

elemento fins também fazer parte da causa de satisfação, a autorealização foi

unanimemente manifestada como a causa fundamental e quase absoluta da satisfação

experimentada pelos membros do grupo.

Donde originou-se a posição muito elevada, no tocante a intensidade de racionalidade

substantiva da variável satisfação individual.

Dimensão simbólica:

500

Particularmente, essa dimensão revelou-se tão incisiva no cotidiano da organização

Espaço Lumiar que a ela optamos por reportar aqui uma análise mais detalhada. O

imaginário é uma dimensão extremamente importante para os membros da empresa, a ele

é concedido um status altamente privilegiado na realidade percebida, construída e vivida

pelo grupo.

Os valores emancipatórios dominam amplamente a cena no imaginário, embora, em

algumas vezes, pudemos perceber a relevância do desempenho, como foi o caso de uma

queixa de um profissional contra o boicote que o mesmo supostamente teria sido vítima,

praticado por uma antiga recepcionista. O profissional queixava-se da falta de atenção

que a antiga recepcionista dava aos seus clientes; mas a queixa se estendia também ao

nível simbólico:

— “O pior é que ela foi responsável por um ‘bloqueio de

energia’, pois até o meu tarô não funcionava bem.”

Com essa alegação, o profissional queria dizer que o seu desempenho teria sido afetado

pela interferência negativa de outrem, uma interferência de ordem metafísica.

A casa que abriga a sede da empresa tem um grande valor simbólico para o grupo. Antes

de um dos rodízios periódicos das responsabilidades pelas tarefas regulares comuns,

houve críticas à qualidade da limpeza da casa. Constatou-se que o processo estava

emperrado, eventualmente acontecia absenteísmo com relação à programação (duas

pessoas a cada fim de semana), pouco esmêro, etc. Um dos membros afirmou que,

501

— “A proposta é belíssima mas, se na prática não

funciona, de nada adianta... que se contrate alguém

então ! ”

A sugestão causou um grande mal estar. Após alguns minutos de silêncio total no grupo,

um outro membro tomou a palavra:

—“Não posso concordar de jeito nenhum. Sinto-me tão

bem fazendo a limpeza, amo este lugar, sou agradecida a

ele... precisamos nos dedicar mais a cuidá-lo, não é

possível que relaxemos isso ! ”

Essa manifestação teve um forte impacto nos demais. A responsável pela tarefa promete a

melhorar a programação, enquanto todos os outros decidem manter a limpeza sendo feita

por eles próprios, apesar de reconherem que isso significa sacrificar períodos de finais de

semana.

Esse evento veio a confirmar para nós aquilo que outros já o tinham sinalizado: a

importância simbólica da casa. Pagar a alguém para fazer a limpeza, soaria como uma

“ameaça” à esfera simbólica. Não por causa do valor monetário a ser dispendido, e sim

pelo valor simbólico a ser desprezado. A espiritualidade, a transcendência mística, o

imaginário povoado por tais significados ficaria como que comprometido se a esfera

502

simbólica fosse ignorada. Logo, o grupo preferiu sacrificar horas de finais de semana

ocupando-se de um trabalho adicional, o qual poderia ser facilmente transferido a

terceiros, e manter a força do simbólico — uma viga-mestra do Espaço Lumiar.

Essa força é facilmente verificável na unidade situada fora de Salvador. O sítio Terra

Mirim. Lá é o santuário. É o lugar onde são realizados os cultos de inspiração xamânica.

Na nossa visita a Terra Mirim, constatamos que tudo é simbólico. Desde o estilo das

edificações até os rituais propriamente ditos. Há, por exemplo, uma edificação bastante

singular, no centro do sítio: algo parecido a um grande quiosque, em forma circular, com

paredes brancas e janelas de formas bem particulares. Chama-se “casa do sol”, lá ocorrem

determinados rituais xamânicos, efetuados com grupos de clientes que se deslocam de

Salvador para deles participar.

Face ao nosso campo, a administração, há um rito que é infalivelmente praticado na sede

central que nos chamou bastante a atenção. Primeiro pela disciplina, pela regularidade

absoluta: durante todo o período que lá passamos, nunca esse rito deixou de ser praticado.

Em segundo lugar porque ele mescla, de uma forma completamente original, as esferas

simbólica, informal e formal da organização. Após muito refletir sobre esse rito,

percebemos que, apesar da sua simplicidade, ele traduzia toda a complexidade das

relações entre o simbólico e a realidade visível daquele grupo. Ou seja, descobrimos que

através da sua análise detalhada, em termos antropológicos, poderíamos ter acesso a uma

melhor compreensão não só da dimensão simbólica em si, mas também da organização

como um todo. É o que faremos em seguida.

503

O rito faz parte da reunião semanal. Ele é indispensavelmente praticado sempre como

primeira atividade de cada reunião. Trata-se de um rito simples, cujos procedimentos são

os seguintes:

a) Ele é praticado no espaço interno central da sede da empresa, em consequência de ser

esse o espaço onde ocorrem as reuniões;

b) As pessoas chegam para a reunião, tiram os sapatos e sentam-se no chão, compondo

um círculo, assim continuam até o final da reunião como um todo;

c) Alguém leva ao grupo uma pequena caixa plástica que contém 50 cartões coloridos e

bem decorados — as “Cartas dos Anjos” — e retira da caixa (ao acaso, sem olhar) um

desses cartões. Ele lê em silêncio uma mensagem que vem já escrita na carta sorteada e

logo em seguida a deposita no chão, diante de si mesmo, com a face principal voltada

para baixo. Daí, ele passa a caixa para o membro que está sentado ao seu lado, o qual

repete os mesmos procedimentos. A mesma coisa é feita por todos os participantes da

reunião;

d) Após a passagem da caixa por todos, cada um lê, em sequência e em voz alta, o título e

a mensagem específica de sua carta, então ele a deposita novamente no chão, no mesmo

lugar de antes, só que desta vez, ela ficará com a face voltada para cima até o final da

reunião;

504

e) O encarregado de elaborar a ata naquela reunião vai tomando nota na ata do título das

mensagens, respectivamente a cada participante. Há um campo específico na ata que

informa o nome de cada participante e o título da mensagem que ele sorteou (ver no

Anexo I, uma reprodução de uma folha de ata);

f) Um outro membro qualquer retira, também ao acaso, uma carta da caixa. Essa carta é

considerada como aquela que porta a mensagem para o grupo como um todo. Ele lê a

mensagem em voz alta e o responsável pela ata registra o título dessa carta num campo

intitulado “grupo” (ver Anexo I);

g) Então, os participantes começam normalmente a reunião, abordando os assuntos

concernentes aquela sessão. Ao final da reunião, as cartas são novamente colocadas na

caixa de origem.

As pessoas explicam a ação de se descalçar antes do rito argumentando que com os pés

nus as energias circulam, entram e saem livremente do corpo. Crê-se que as extremidades

do corpo, tais como as mãos e os pés, são como entradas de energias.

A ação de sentar-se formando um círculo, é justificada por eles como a representação de

um todo, o grupo enquanto entidade completa, sem descontinuidade.

505

As Cartas dos Anjos são produzidas em várias línguas e exportadas para vários países

pela Narada Media, uma empresa norteamericana situada em Milwaukee. Ela pode ser

encontrada em lojas e livrarias que vendem artigos ligados à Nova Era.

A primeira questão de natureza antropológica que gostaríamos de abordar desse rito, é a

da distinção entre o ritual e as práticas cotidianas. Nós cremos firmemente que os atos

que nós descrevemos há pouco compõem um verdadeiro rito. Eles são praticados em

situações de formalização. Há um espaço e tempo específicos, e nos quais todos os

membros da empresa praticam juntos o rito: a reunião semanal, o evento mais marcante,

crucial e formal da organização. Não se trata de uma prática cotidiana. Ademais, como

veremos abaixo, na ocasião da prática desse ritual, evoca-se uma ordem subjacente, uma

totalidade integradora que exerce um papel fundamental na vida do homem, segundo as

crenças do grupo.

Nós escolhemos alguns dados observados no ritual para inferir o que pensam os

participantes, enquanto que nos demos conta de determinados aspectos concernentes à

dinâmica sociológica da organização que produzem efeitos sobre o rito em questão. Nesse

sentido, examinaremos a dimensão comunicativa do rito por meio de dois níveis.

Em primeiro nível, o rito é considerado como um meio de comunicação entre as “forças

do Universo” e o grupo. Os participantes crêem que as forças do Universo (segundo eles,

um conjunto de forças espirituais e energéticas que integram tudo o que existe no

Universo numa totalidade portadora de uma lógica global, a qual embasaria todos os tipos

506

de vida) enviam uma mensagem a cada membro da organização e ao grupo por meio das

Cartas dos Anjos. A mensagem seria uma fonte de inspiração para que o seu receptor

balizasse o seu comportamento durante aquele dia, inclusive evidentemente, a duração da

reunião. As mensagens impressas nas cartas são, em verdade, virtudes e valores.

Apresentamos, abaixo, a sua relação completa:

força graça

responsabilidade coragem

eficácia amor

boa vontade compaixão

obediência simplicidade

liberdade espontaneidade

confiança luz

gratidão educação

cura criatividade

integridade compreensão

brincadeira equilíbrio

ternura objetivo

entusiasmo fé

abundância síntese

purificação desprendimento

júbilo nascimento

harmonia clareza

inspiração abertura

507

paz humor

fraternidade flexibilidade

potência esperança

distensão paciência

beleza aventura

verdade perdão

sinceridade comunicação

Para melhor desenvolver o exame da dimensão comunicativa do rito em seu primeiro

nível, elaboramos dois esquemas de analogias, representados na figura 7 (página

seguinte).

508

ANALOGIA GLOBAL

DOMÍNIOS : METAFÍSICO TERRESTRE Forças do universo Empresa Mensagens Membros

ANALOGIA ORGANIZACIONAL DOMÍNIOS : FORMAL INFORMAL Reuniões administrativas Mensagens Atas Cartas

Figura 7 - Analogias do rito

509

A primeira analogia aborda o rito como um todo, é o que denominamos analogia global:

nós separamos os domínios em relação metafórica nesse rito, isto é, o do metafísico

comportando as forças do Universo e as mensagens, e o do terrestre, comportando a

empresa e seus membros. Por intermédio do rito, o grupo tenta ligar esses dois domínios:

evoca-se as forças do Universo para o envio de mensagens aos membros antes de

começar cada reunião. Assim, os participantes da reunião seriam encorajados a se

comportar em conformidade com a mensagem recebida, por consequência, eles tomariam

boas decisões concernentes a empresa. Em suma, as forças do Universo contribuiriam

positivamente ao estabelecimento de boas relações entre os membros do grupo e o

desenvolvimento da empresa.

Com a segunda analogia, nós trabalhamos com dois domínios que constituem um tema já

tradicional na teoria das organizações: a interdependência observada entre os domínios

formal e informal das organizações. É por esta razão que denominamos analogia

organizacional. Desta vez, os domínios em relação metafórica são o formal (reuniões

semanais e suas atas) e o informal (mensagens e cartões): sempre baseando-nos no rito

enquanto meio de comunicação, podemos ver que as mensagens “fluem” através das

cartas para as atas. Enquanto elemento do domínio informal da organização, as

mensagens são inseridas nas reuniões administrativas semanais — a dimensão mais

formal da dinâmica burocrática da empresa.

As atas são arquivadas. Elas constituem os elementos objetivos da memória burocrática

da história da empresa. Esta forma tão singular de inserir e de oficializar um elemento

510

que vem do domínio informal na peça de comunicação mais formal da empresa nos

chamou a atenção.

O segundo nível de exame da dimensão comunicativa é aquele que aborda a transmissão

de significados entre os membros do grupo, os participantes do rito. Nós acreditamos que

esse rito serve para afirmar alguns dos valores predominantes e, por consequência, para

reforçar a identidade do grupo, através de uma maneira particular e simples de estabelecer

a comunicação. Segundo Lévi-Strauss (1971) e também Dan Sperber (1982), a repetição

sistemática de um rito “evita de falar”. Essa forma de interpretação nos será muito útil.

Com relação a esse rito do Espaço Lumiar, nós cremos que ele economiza de falar, pois

não se trata de um ritual que substitui diálogos tensos, portadores de conflitos. Os

conflitos ocorrem verdadeiramente, como vimos acima, não há nenhum expediente que

os evite ou substitua. Eles ocorrem e são tensos, gerando debates acalorados.

Sistematicamente, todas as terças feiras, às 7:00 hs. da manhã, nessa organização o rito é

praticado antes de começar a reunião. Por meio de gestos precisos, manipula-se objetos

específicos, portadores de valores cultivados pelo grupo. Assim, reafirma-se os valores e,

por conseguinte, a identidade do grupo sem a necessidade de recorrer a longos e

repetitivos discursos. Daí a nossa interpretação que esse ritual economiza de falar.

Essa prática representa um instrumento de reconstrução social permanente do grupo, e

pode ser também um reforço à ligação de cada indivíduo à organização. Tal rito é um

chamamento periódico e constante aos valores do grupo, valores de natureza

emancipatória.

511

Para finalizar essa breve análise do rito, há que se reconhecer o seu aspecto “funcional”:

ele é praticado antes de começar a reunião semanal, o momento crucial dos membros do

Espaço Lumiar. O aspecto funcional vem do fato de praticar um rito que detém as

características acima mencionadas, antes de enfrentar os prováveis momentos de tensão

no interior do grupo. Portanto, esse rito contribuiria para suavizar antecipadamente a

“temperatura”. Isto pode ser possível. Entretanto, o reconhecimento dessa possibilidade

não nos conduz a uma análise do tipo funcionalista. Nós não cremos que esse rito sirva

acima de tudo para estabelecer o equilíbrio do sistema organizacional porque os membros

assumem o risco de ruptura do grupo durante as reuniões, uma vez que a autenticidade é o

ponto de partida das discussões.

O último aspecto concernente a dimensão simbólica que gostaríamos de destacar é o que

se refere aos nomes escolhidos para a empresa e para a editora. Por si só, já revelam o

caráter do empreendimento.

O nome Lumiar é uma variação da palavra limiar, a qual significa soleira de uma porta,

um patamar junto a uma porta, uma entrada de algum lugar, um espaço que prepara a

passagem para outro. A significação que se quer difundir é que a organização representa

um espaço de acesso a um lugar especial, onde o homem é integrado às “forças do

Universo”, o Cosmo, a uma totalidade integradora que abrange tudo o que existe.

512

A editora tem o nome de Deva. Esta palavra, em sânscrito, a milenar língua sacra da Índia

antiga, significa a divindade que está justamente situada entre as demais divindades

superiores e os homens.

Assim, simbolicamente, a editora Deva seria um intermédio, um meio comunicacional

que contribuiria a religar o indivíduo às instâncias superiores universais, das quais ele

sempre teria feito parte, no entanto, distorções foram operadas pela sociedade industrial

moderna, distorções que ameaçam “desligar” o homem de sua consciência de participação

ao todo universal.

Por sua natureza intrínseca, a rubrica dimensão simbólica é aquela em que indicamos uma

maior variedade de fontes de dados: observações, entrevistas, documentos e materiais

diversos.

O exame dos dados que pudemos (uma vez que, em termos semióticos, “praticamente

tudo pode ser signo”) levantar relevou o elemento valores emancipatórios como

plenamente predominante nesse processo organizacional.

O desempenho dá o toque da razão instrumental mas com uma ínfima importância

relativa quando comparado ao elemento valores emancipatórios.

Devido a tais constatações é que situamos a variável dimensão simbólica na medida

muito elevada, referente a intensidade de racionalidade substantiva.

513

Finalizada a análise detalhada da organização Espaço Lumiar, faremos um resumo dos

resultados que nos dão uma visão global dessa empresa.

Análise global da Espaço Lumiar:

Para facilitar essa breve visão de conjunto dos processos da empresa face a racionalidade

predominante, apresentamos na figura 8 (página seguinte) o quadro-resumo da análise

realizada.

514

Processos Organizacionais

( rubricas / variáveis )

Elementos / Indicadores de Racionalidade Predominantes

Intensidade de Racionalidade Substantiva

Hierarquia e normas

Entendimento

Muito elevada

Valores e objetivos

Valores emancipatórios

Elevada

Tomada de decisão

Entendimento

Elevada

Controle

Entendimento

Muito elevada

Divisão do trabalho

Autonomia

Elevada

Comunicação e Relações interpessoais

Valores emancipatórios

Muito elevada

Ação social e Relações ambientais

Valores emancipatórios

Muito elevada

Reflexão sobre a organização

Valores emancipatórios

Elevada

Conflitos

Autonomia

Elevada

Satisfação individual

Autorealização

Muito elevada

Dimensão simbólica

Valores emancipatórios

Muito elevada

Espaço Lumiar ( análise global )

Valores emancipatórios

Muito elevada

Figura 8 - Quadro-resumo de análise da Espaço Lumiar

515

Assim vemos que a racionalidade substantiva é predominante em todos os onze processos

organizacionais estudados. Entre os sete processos organizacionais essenciais, os valores

emancipatórios e o entendimento predominam em três cada, juntando-se a autonomia no

processo da divisão do trabalho.

Os valores emancipatórios são predominantes em aproximadamente metade das rubricas,

sendo o elemento constitutivo de racionalidade mais forte na organização. Eles emergem

marcadamente na conjunção dos valores organizacionais e são a base dos objetivos

perseguidos pelo grupo. Em situações de reflexão sobre a organização, os valores são o

grande referencial, servindo como pontos de apoio à reflexão, que é sempre coletiva. Eles

voltam a predominar amplamente também no bojo das relações interpessoais, fornecendo

os parâmetros para as interações e a moldura na qual a comunicação é praticada. Sua

influência é total na dimensão simbólica, que é, ao nosso ver a pedra angular da Espaço

Lumiar. O simbolismo guia as ações dos indivíduos em quase todas as instâncias que o

grupo atua, remetendo-o amplamente para a comunidade, principalmente pela ação social

ocasionada pelas atividades da editora.

Uma organização movida a valores, portanto. A configuração desses valores ultrapassa a

nossa delimitação, a qual denominamos emancipatória. Há um ecletismo inegável no

conjunto de valores da organização. Mescla-se os valores típicos do movimento Nova

Era, com os de determinadas correntes científicas (principalmente a psicologia

transpessoal e a medicina naturista/homeopática), e com uma forte ligação a uma corrente

516

de xamanismo oriunda das montanhas do Peru, onde alguns membros vão frequentemente

se aperfeiçoar.

O curioso é que a atividade empresarial é desenvolvida em meio ao apego, à férrea crença

nesse conjunto eclético de valores. Não sem dúvidas, avanços e retrocessos, do ponto de

vista substantivo.

Ao nosso ver, o grupo enfrenta pesados desafios no desenrolar de seu cotidiano,

justamente devido aos imperativos de ordem capitalista, que estabelece as ditas leis do

mercado e se alia à forma burocrática de organização social que por sua vez determina

comportamentos-padrão, constituindo-se tudo isso, em muitas situações, um sério

contraponto aos próprios valores que o grupo persegue com grande energia. Não obstante,

a empresa segue a sua marcha, com sucesso, a clientela não para de crescer e já se falava,

na época, em buscar uma sede mais ampla para atender a demanda crescente. A revista

encontra também um público cada vez mais fiel e crescente, gerando a distribuição

maciça através 350 bancas da cidade a partir do ano de 1993. Podemos afirmar, então,

que o grupo enquanto empresa inserida num mercado competitivo, encontra os

parâmetros de eficiência e eficácia por suas próprias opções, por sua via singular.

Contudo, essas hipotéticas eficácia e eficiência, são construídas em meio a caminhos

difíceis, devido ao desafio já referido, caminhos que fazem aflorar no cotidiano todas as

contradições inerentes aos indivíduos e ao próprio grupo como um todo. Não é fácil ser

empresa e ser autêntico a esse conjunto de valores, principalmente em se tratando de

517

períodos de profunda crise econômica. O debate racional é a chave, nunca uma fórmula,

para o enfrentamento dos desafios e das contradições dele advindas. O entendimento,

concretizado pela utilização massiva da palavra, da comunicação verbal face a face,

sustentados pela autonomia significando o direito à livre expressão, é o recurso

privilegiado pelo grupo, e não nos surpreendemos de ser o entendimento o segundo

elemento racional em ordem de predominância.

No entanto, enganaria-se totalmente aquele que pensa que esse entendimento é fácil de

ser praticado e obtido. A autonomia que marca a ação dos indivíduos dentro do grupo, faz

consequentemente emergir todas as diferenças pessoais e, com elas , as divergências. Os

debates são acirrados, os conflitos acontecem sem restrições, embora o respeito mútuo

seja religiosamente cultuado revelando um alto grau de maturidade nos membros do

grupo. A reflexão é sempre coletiva, todos juntos, nas reuniões, o “enfrentamento” mútuo

é já praticado com uma certa naturalidade, ele parece fazer parte da dinâmica do grupo,

um traço já aceito.

O entendimento é predominante na questão relativa a herarquia e no estabelecimento de

normas, as quais nunca são escritas. Quanto a hierarquia, notamos um avanço

significativo no processo de coletivização da organização. Não se chega a avanços a partir

de reflexões conceituais e teóricas, pura e simplesmente, os avanços são atingidos,

obtidos, poderíamos dizer conquistados, à custa de tropeços, erros, decisão e vontade

política, acima de tudo, à custa de muita tenacidade e real comprometimento (na ação)

com os valores professados. Tais aspectos são trabalhados, por assim dizer, a partir de

518

problemas, impasses, incômodos concretos do dia a dia da organização. A reflexão se dá

diretamente sobre “as pedras no caminho”, encontradas não por opção em si mesma, mas

pela opção em se comprometer seriamente com determinados valores.

Eis uma das mais profundas lições que o trabalho de campo, o terrain, nos fêz aprender.

O impasse que detonou o processo de eliminação da hierarquia formal entre membros

profissionais e empregados foi o incômodo sentido meses a fio com o problema da função

de recepção. Após várias tentativas de “encontrar alguém com o perfil desejado, ideal”, o

grupo deixou a máscara burocrática e hierárquica de lado, a pesada influência que a

sociedade (também burocratizada) exerce sobre o dever ser dos indivíduos, e

conscientizou-se da real questão em jogo: o poder.

Daí, como vimos, muitos vai-e-vem, muita hesitação e conflitos bastante acirrados,

porém a tenacidade, a autenticidade, a força dos valores e a habilidade crescente nas

ações de entendimento, conduziram a uma configuração organizacional, esta sim, que

talvez pudéssemos colocar no mesmo plano daquelas que Rothschild-Whitt denominou

“coletivistas”. O grupo avançou substancialmente na direção de uma prática de gestão

coletiva, aberta, em que pese o fato de que nunca qualquer membro ter se referido a

algum termo sequer parecido com “autogestão”. Não há lugar, ao que parece, para

lucubrações teóricas, nem a busca de modelos a serem implantados.

519

Nesse sentido, o privilégio é da ação, não da teoria. Uma ação baseada firmemente em

valores de cunho emancipatório em suas diversas matizes, que revela mais

profundamente uma visão de mundo na qual a ação econômica e as soluções burocráticas

estão embedded (conforme Polanyi) na ação social e na ação humana mais ampla, e a

estas subordinadas.

A opção feita, conscientemente, foi por uma gestão aberta, sem chefias ou qualquer coisa

semelhante. O que exige largos processos de entendimento, principalmente em áreas

como tomada de decisão e controle, dimensões nas quais a análise da Espaço Lumiar

também revelou a predominância das ações de entendimento.

A autonomia, além de prevalecer nos conflitos, também é preponderante na divisão do

trabalho comum, seja regular ou eventual. Também aqui (na divisão do trabalho comum

regular) gostaríamos de lembrar que os avanços, ou seja, a medida que demonstra que a

prática é congruente com a ousada proposta, não são obtidos por meio de

comportamentos angelicais ou elaborações conceituais.

O embate entre individualismo e solidariedade emerge em cada um e passa facilmente do

âmbito individual ao grupal, pois a autenticidade é a tônica. No conflito de interesses, os

valores sustentaram o processo de entendimento que levou a divisão do trabalho a um

bom termo, isto é, gerando comprometimento. É como se os indivíduos se vissem, em

diversas situações, em xeque, a meio caminho entre o seu condicionamento, adquirido

numa sociedade capitalista burocratizada e competitiva, e a proposta, a vontade de

520

construir uma organização produtiva, um espaço de trabalho em muitos aspectos oposto

aos fundamentos daquele condicionamento.

Portanto, se a iniciativa tende a ser vitoriosa no sentido da construção de uma

organização baseada em valores emancipatórios, e operacionalizada segundo ações

racionais substantivas, a satisfação dos membros advém da autorealização que é

experimentada. Embora auferindo bons resultados econômicos, os membros da Espaço

Lumiar expressam sempre que a sua satisfação origina-se primordialmente da certeza de

estar realizando ideais e pondo em prática os seus dons pessoais.

A modalidade de análise aqui proposta nos permite também perceber o lugar da razão

instrumental numa organização substantiva.

No caso da Espaço Lumiar, a análise revelou que os fins técnicos e econômicos e o

desempenho são os elementos mais marcantes entre aqueles constitutivos da

racionalidade instrumental. Os fins aparecem com uma frequência digna de destaque nos

processos de hierarquia e normas, valores e objetivos, reflexão sobre a organização,

satisfação individual e relações ambientais. O desempenho, por sua vez, se fêz presente

nos processos de controle, divisão do trabalho, comunicação e também na dimensão

simbólica. Todos esses elementos, embora fossem detectados, não alcançaram

predominância em nenhum dos processos organizacionais estudados.

521

Sumarizando a análise global da empresa Espaço Lumiar, podemos declarar que os

valores emancipatórios emergiu como elemento de racionalidade nitidamente

predominante, como demonstra a figura 8. Esse elemento predominou em cinco dos onze

processos organizacionais estudados.

Em termos de intensidade de racionalidade substantiva, a organização Espaço Lumiar

alcançou, após o cômputo geral das nossas avaliações, a medida muito elevada no

continuum, uma vez que tal medida foi atribuída a seis (sendo quatro essenciais) dos onze

processos analisados. A figura 9 (abaixo) apresenta a posição da Espaço Lumiar no

continuum.

Espaço Lumiar ↑

|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva

Figura 9 - Posição da Espaço Lumiar no continuum de intensidade de racionalidade substantiva

522

Capítulo VIII - Análise da Espaço Aquarius

Hierarquia e normas:

Há na organização uma separação totalmente rígida, no que tange a hierarquia, entre os

profissionais liberais e os empregados. Todas as normas são estabelecidas e também o

comando é exercido pelo grupo dos profissionais, ficando os empregados sempre alijados

de qualquer esfera de poder formal.

Há também a prática de realizar uma reunião semanal, onde os profissionais se encontram

para discutir sobre as questões comuns e deliberar. Não existe outra esfera de discussão

que comporte qualquer tipo de participação dos empregados. Nunca foi sequer cogitada a

participação de empregados na reunião, mesmo que fosse eventual, para tratar de algum

assunto do interesse deles, ou até para que o grupo de profissionais pudesse, em alguma

situação de seu próprio interesse, obter informações sobre assuntos discutidos. Há um

filtro permanente entre os empregados e seus patrões, uma linha divisória que não é

amenizada sequer por algum dispositivo interativo do tipo “administração participativa”.

523

No grupo de profissionais, um membro se encarrega da função de pessoal no rodízio da

divisão do trabalho comum. Ele exerce o papel de chefe imediato dos empregados,

filtrando as deliberaçãoes do grupo principal e emitindo ordens.

Entre os profissionais, no entanto, não há hierarquia, nenhuma relação de comando existe.

Todos os profissionais têm o mesmo nível de autoridade. Nas reuniões, o entendimento é

exercitado, busca-se atingir acordos.

Pudemos observar também a presença do elemento desempenho, contudo em menor

frequência. Uma das ocasiões em que isso se constatou foi a criação do “caderno de

comunicações”. A ele nos referiremos com mais detalhes na seção comunicação e

relações interpessoais. Por enquanto, vale esclarecer que o grupo instituiu um instrumento

de comunicação de deliberações tomadas em reunião. Não há atas de reunião. O caderno

de comunicações serviria para informar àquelas pessoas que porventura não tivessem

comparecido a reunião, o que foi decidido nela. Ele deveria ficar em lugar de fácil acesso

de todos. O que se buscava sobretudo era a melhoria do desempenho de cada um no

cumprimento da tarefa relativa ao trabalho comum. Na instituição do caderno, uma

preocupação, muito debatida no grupo, nos chamou a atenção: a veiculação de

informações consideradas “confidenciais”. Já que o caderno ficaria em local de livre

acesso, ele jamais poderia conter determinadas informações que “não deveriam ir ao

conhecimento dos empregados”. Essa medida confirmou, mais uma vez, que o processo

hierárquico é marcado pelos fins ligados ao poder.

524

Por meio de observações, entrevistas e verificação de documentos, segundo a nossa

proposta, obtivemos os dados referentes à rubrica hierarquia e normas. A análise

empreendida revelou a predominância do elemento constitutivo de racionalidade

instrumental fins.

Também foram detectados, ainda que sem predominância sobre os fins, os indicadores

entendimento (racionalidade substantiva) e desempenho.

A posição da variável hierarquia e normas foi situada em baixa, no que tange a

intensidade de racionalidade substantiva.

Valores e objetivos:

Os valores professados e divulgados pela organização são ligados ao movimento Nova

Era. A mudança social a partir da mudança do indivíduo, a integração do ser humano a

uma totalidade integradora universal, a busca da harmonia, denotam um holismo

dominante no grupo. Em alguns pontos e sob determinada ótica, esse valores apresentam

uma correlação com aqueles que aqui denominamos valores emancipatórios. Queremos

deixar claro que a proposta do grupo traduz esses valores, porquanto as dificuldades de

sua concretização será tratada em outras rubricas.

525

Os fins econômicos também transpareceram, principalmente no tocante aos objetivos e

depois do aprofundamento da crise da organização, à qual nos referiremos mais adiante.

A Espaço Aquarius é uma empresa de sucesso, uma clínica que detém um nome invejável

no mercado, conta com uma clientela crescente nos 5 anos de sua existência. Manter o

alcance dos fins econômicos, como veremos mais tarde, acabou por constituir-se também

numa dimensão importante dos seus objetivos.

Quanto aos valores e objetivos, alguns profissionais se pronunciaram assim,

— “Eu posso destacar, acima de tudo, o respeito à

individualidade do outro.”

— “Nós buscamos criar condições para que as pessoas

atinjam um equilíbrio. O tratamento de uma pessoa deve

ser feito como um todo, não em partes. Além da

homeopatia, que eu trabalho, há outros trabalhos que

visam o equilíbrio do indivíduo a partir da energia dele

mesmo.”

Os valores são professados, mas o comprometimento nem sempre foi constatado nas

interações, no cotidiano que caracteriza a organização. Esclarecemos que isto não se

aplica ao trabalho que cada profissional desempenha junto a sua respectiva clientela,

526

estamos nos referindo a dimensão grupal, a interação dos membros da organização entre

si.

Das fontes de dados, observações e entrevistas, foram coletados os dados necessários ao

exame dessa rubrica. Tal exame acurado, relevou o elemento de racionalidade valores

emancipatórios como predominante. Entretanto, tal predominância não acarreta uma

distância considerável de importância face ao outro elemento detectado a partir da análise

dos dados, os fins, indicador de razão instrumental.

Por conseguinte, a medida de intensidade de racionalidade substantiva nessa variável é

média.

Tomada de decisão:

O processo de tomada de decisão, assim como outros processos de ordem coletiva na

empresa, foi sofrendo uma deterioração gradativa. Então, a cada decisão importante, os

elementos da racionalidade instrumental, a utilidade e a maximização de recursos,

pesavam cada vez mais, embora, em última instância o julgamento ético ainda prevalecia.

Não poderíamos classificar a tomada de decisão como um processo baseado no

entendimento, devido às discordâncias não solucionadas, o que acarretava o retorno de

temas aparentemente já resolvidos para discussão e processo decisório.

527

Podemos ilustrar essa interpretação com o relato das duas situações seguintes: numa

reunião, um membro trouxe uma proposta para ser analisada sobre o aluguel de sua sala

(nos períodos em que ela estivesse vaga) a outro profissional externo à organização. Na

análise da proposta vários pronunciamentos foram feitos, delimitando-se por fim, duas

posições: uma a favor, devido à possibilidade de fazer as instalações renderem vantagens

financeiras, e a outra contra, que apresentava o seguinte argumento:

— “Independente da pessoa que possa vir, eu sou contra

porque acho que a Espaço Aquarius é outra coisa, uma

coisa mais substancial do que o aspecto econômico.”

A discussão prosseguiu por muito tempo, a sedução pela possibilidade de alugar as salas

era visível em uma parte do grupo, gerando manifestações como a que transcrevemos

abaixo:

— “Se ficar decidido assim, será bom, pois eu vou poder

alugar a minha também, já que tenho vários horários

vazios.”

O grupo viu-se então numa verdadeira encruzilhada que assumiu ares de impasse. À

duras penas, a decisão foi tomada em base de julgamento ético, do tipo:

528

— “Não é bom para nós transformar a nossa clínica

apenas num meio de ganhar dinheiro.”

Mas, a prova de que tal base não estava suficientemente sedimentada é que uma proposta

semelhante voltou a ser trazida para a discussão 45 dias depois. Então, nova discussão se

estabeleceu quase que exatamente nos mesmos moldes da anterior, como se esta não

tivesse ocorrido há tão pouco tempo. Pela segunda vez, o julgamento ético prevaleceu,

mas se fêz sentir a força da utilidade como um valor generalizado e a sedução pela

possibilidade de maximizar os recursos disponíveis, mesmo a custa de uma pretensa

filosofia grupal. Testemunhamos que a decisão foi tomada mais em razão da

argumentação enérgica de uma das terapeutas do que pela conscientização dos demais

membros a respeito do que ela alegava: a existência de uma filosofia do grupo, a qual

ultrapassava a questão econômica.

Observações e entrevistas são as fontes indicadas para o levantamento de dados, dos

quais apresentamos algumas ilustrações acima, que possibilitam a análise do processo de

tomada de decisão. O elemento julgamento ético resultou predominante, após a análise

que realizamos. Entretanto, os outros indicadores de racionalidade identificados, utilidade

e maximização de recursos, revelaram um peso de importância relativa digno de

destaque.

Portanto, levando em conta a leve predominância do julgamento ético, a medida de

intensidade de racionalidade substantiva para a variável tomada de decisão é média.

529

Controle:

O processo de controle é realizado em grupo, através de ações de entendimento. Os

acordos, neste assunto, são obtidos sem muitos problemas, eles dizem respeito as

atividades comuns, que são assumidas mediante rodízio. Não há instrumentos materiais

de controle. Durante as reuniões é discutido o andamento das tarefas, avalia-se e dá-se

sugestões.

O desempenho de cada um é um fator a levar em conta, embora não seja o elemento mais

forte no controle.

Das fontes de dados propostas para a rubrica controle, apenas a verificação de

documentos não foi explorada, uma vez que não há instrumentos formais de controle em

utilização nessa pequena empresa. O exame dos dados obtidos por meio de observações e

entrevistas, indicou uma predominância clara do elemento entendimento.

Como frisamos acima, também o elemento desempenho foi identificado, marcando assim

a presença da razão instrumental nesse processo.

Devido a clara predominância do indicador entendimento, situamos a variável na escala

de intensidade de racionalidade substantiva como elevada.

530

Divisão do trabalho:

As atividades comuns são agrupadas, formando os seguintes conjuntos: finanças, relações

públicas, jardins e decoração, pessoal, manutenção e mural. A cada 5 meses acontece um

rodízio, visando redirecionar as responsabilidades. Cada responsável tem toda a

autonomia dentro de sua área. A autonomia é reforçada mediante uma prática

interessante: o responsável por finanças tem a sua possibilidade de exercer poder sobre os

demais totalmente eliminada. Ele não controla diretamente os gastos, não há a

necessidade de lhe demandar recursos financeiros. Cada um faz um orçamento de gastos

no início de cada mês, então o recurso é repassado. Ao final do mês os responsáveis por

áreas prestam contas em reunião. As atividades do coordenador das finanças se resumem

ao controle da conta bancária, relacionamento com bancos e gestão do fluxo de caixa da

empresa.

No entanto, o elemento cálculo é que tem maior prevalência no processo.

Apresentaremos como exemplo a operacionalização do rodízio de funções. Foram

necessárias duas reuniões para definir o rodízio de funções, pois nenhum dos membros

aceitava ficar com a responsabilidade pela função de manutenção. Todos se queixavam de

que era uma função incômoda, que “dava muito trabalho”, enfim, ninguém apresentava

disponibilidade para a função de manutenção da sede da empresa, local onde o trabalho

531

do grupo é realizado. Um clima de profundo mal estar reinou nas duas reuniões, com as

pessoas dando justificativas das mais diversas. Ao final da primeira reunião, o impasse já

estava instalado, adiando-se a decisão final para a reunião seguinte. Ao final da segunda

reunião, ficou acertado que um dos membros assumiria a função por dois meses apenas e

depois seria feita uma nova discussão para transferir a responsabilidade para um outro, o

qual não tinha sido escolhido.

Visivelmente, a solução não satisfêz ao grupo, principalmente ao membro que ficou como

responsável temporário pela manutenção. As atitudes não revelavam uma boa resolução e

sim uma espécie de alívio de uma discussão desagradável. Na medida em que os

interesses pessoais se sobrepunham às necessidades do grupo, e que tais necessidades

eram detalhadamente medidas em termos de esforço pessoal adicional e não assumido,

não havia nenhuma espontaneidade no processo, tudo era fruto do cálculo de

consequências, um cálculo de fundo individualista.

Explorando as fontes observações, entrevistas e documentos (nesse caso, a consulta ao

“caderno de comunicações”), levantamos os dados e analisamos a rubrica divisão do

trabalho. Daí, emergiu como elemento predominante o cálculo, constitutivo da razão

instrumental.

O tom da razão susbstantiva nesse processo é dado pela presença da autonomia, elemento

que não chega a alcançar o mesmo peso que o indicador cálculo.

532

Por conseguinte, a posição na escala de intensidade de racionalidade substantiva para a

variável divisão do trabalho é baixa.

Comunicação e relações interpessoais:

A comunicação e as relações interpessoais foram dois dos processos organizacionais mais

abalados pela sequência de conflitos.

A comunicação tornou-se quase que meramente instrumental à medida em que decaía a

capacidade do grupo em solver positivamente os seus conflitos internos. O recurso a um

instrumento como o “caderno de comunicações”, dentro do contexto específico em que o

grupo encontrava-se, revela, dentre outras características, a fragilidade das comunicações

diretas, do tipo face a face, em se considerando o tamanho do grupo. No caderno eram

anotadas decisões das quais os outros membros não tinham tomado parte devido a

ausência nas reuniões.

Além disso, o caderno não era transparente o suficiente para espelhar todo o processo

decisório, pois não deveria veicular decisões que os empregados “não poderiam saber”.

Então, o que restava para ser comunicado eram aspectos estritamente funcionais, ligados

a detalhes operacionais, basicamente relacionados ao desempenho no cumprimento das

tarefas do trabalho comum.

533

As relações interpessoais, evidentemente, também assumiram uma feição quase que

totalmente instrumental, centradas nos aspectos funcionais da empresa. As reuniões,

momentos onde todos poderiam estar presentes, construir uma percepção coletiva dos

acontecimentos e orientar a ação, passaram a perder importância, a ausência frequente de

vários profissionais era um indício, e a qualidade da interação nas sessões de reunião

também diminuía, resultando baixa criatividade e pouca iniciativa.

O termo de linguagem específica do grupo a destacar é “incluir”. Este verbo, muito

utlizado pelos profissionais da Espaço Aquarius, adquire o significado de alguma coisa

que é conhecida (algo que está “incluído”), que é familiar ao grupo, que já foi discutido,

ou ainda algo que é importante para o grupo, que faz parte do seu mundo e, neste sentido,

que faz parte da visão de mundo de alguns dos seus membros. Um assunto ou idéia que

está “incluído” tem um valor adicional, como se tivesse já recebido o “carimbo”, a

autenticação de conhecido e importante para o grupo.

Os dados necessários ao exame dessa rubrica são provenientes de observações,

entrevistas e de documentos. Tais fontes forneceram dados que ao serem analisados

demonstraram claramente a larga predominância do elemento de razão instrumental

desempenho.

Não podemos deixar de registrar também a identificação do elemento autonomia nas

comunicações, as quais, mesmo dominadas paulatinamente pelo elemento desempenho,

534

não eram marcadas por nenhum tipo de limitação a autonomia. No entanto, os processos

de comunicação e de relações interpessoais forma fundamentalmente guiados pelo fator

desempenho.

Assim, na escala de intensidade de racionalidade substantiva para essa variável,

atribuímos a medida mínima.

Ação social e relações ambientais:

Para alguns membros do grupo, a organização tem uma ação social marcada pela difusão

dos valores que guiam as práticas profissionais oferecidas ao público. A idéia de uma

reação em cadeia com o objetivo da mudança e do aperfeiçoamento social, a partir da

mudança do indivíduo. Seguem algumas observações feitas por alguns membros:

— “Quando se ajuda a harmonizar, equilibrar uma

pessoa, ela terá influências em uma série de outras, na

família, no trabalho, etc. Não é só a Espaço Aquarius, e

sim todas as pessoas que trabalham com essa proposta.

Isso termina sendo uma rede.”

535

— “Os profissionais daqui são sérios e muito bons. O

movimento Nova Era, holístico, etc., traz muitas coisas. É

importante poder contar com pessoas sérias para fazer

tratamento de ajuda. Há um ‘ôba-ôba’ com a Nova Era.

Espaços com pessoas sérias dão uma base sólida ao

movimento, e oferecer referências de outros profissionais

contribui para consolidar essas idéias e práticas.”

Contudo, a ação social e as relações ambientais do Espaço Aquarius em nada diferem de

qualquer outra empresa privada que atua em um dado setor de mercado. Pois, apesar de

alguns dos seus membros fazerem tais declarações acima reproduzidas, não há nenhuma

participação da organização nesse “movimento” ao qual afirmam pertencer. Por exemplo,

não há nenhuma ação concreta em parceria com outras organizações que defendem tais

idéias.

Durante o período em que lá trabalhamos, não houve nenhum fato relacionado às relações

interorganizacionais da empresa que marcasse a sua atuação com uma distinção em

relação a qualquer outra clínica psicológica tradicional.

Apenas há declarações de alguns dos seus membros de que a atuação da organização

junto à sua clientela específica detona consequências sociais em cascata, numa

determinada direção de mudança social. Se há, de fato, uma “rede” conectada ao Espaço

536

Aquarius, fora da ação individual dos profissionais, tal “rede” não ficou evidente para

nós.

Assim, consideramos que a ação social e as relações ambientais são marcadas pelos fins

de natureza econômica, objetivo comum de uma empresa privada tradicional. Como há

uma crença de que a atuação da empresa produza efeitos no meio social, embora não

palpáveis, seja pela reação em cadeia ou até por se constituir numa empresa que conta

com “profissionais sérios”, que dariam maior credibilidade ao movimento holístico,

consideramos nesse rubrica também os valores emancipatórios porém, mantendo as

ressalvas feitas acima.

Uma vez que não havia nenhum documento que veiculasse alguma informação válida

para o exame dessa rubrica na Espaço Aquarius, as fontes de dados exploradas por nós

foram as observações e as entrevistas.

Como tentamos evidenciar acima, o elemento plenamente dominante nesse processo são

os fins. Os valores emancipatórios foram considerados apenas em função das declarações

de alguns membros da empresa, mas a sua importância real enquanto determinante de

ações sociais e de pano de fundo de relações ambientais — enquanto empresa — deixou

bastante a desejar quando comparada aos fins de natureza econômica, que nitidamente são

os “motores” da ação social dessa organização.

537

Portanto, na escala de intensidade de racionalidade substantiva para essa variável,

atribuímos a medida mínima.

Reflexão sobre a organização:

Não há um processo coletivo de reflexão sobre a organização. O grupo não conseguiu

estabelecer um repensar frequente sobre o Espaço Aquarius, de modo a concebê-lo como

um todo formado pelas percepções do conjunto de seus membros.

Após a primeira proposta de aluguel de salas por profissionais externos, ficou patente a

ausência de uma visão compartilhada da organização, assim, surgiu a idéia de promover

uma série de sessões de discussão onde o assunto fosse a própria organização. Imaginou-

se a possibilidade de elaborar um documento intitulado “referencial”, onde ficasse

registrado o produto de uma reflexão coletiva sobre a empresa, a qual servisse, de fato,

como um referencial para facilitar a tomada de decisão em futuras situações de dúvida,

como no caso da proposta de aluguel de salas. No entanto, a idéia da série de discussões

não foi levada adiante, nem tampouco a elaboração do documento.

Como não havia reflexões coletivas, o que por si só já representa um dado importante,

buscamos colher impressões individuais de alguns de seus membros, as quais seguem

abaixo:

538

— “Quando eu entrei, pensei que havia um grupo, depois

eu percebí que há apenas um condomínio. Hoje não

acredito que haja um grupo real, os profissionais são

muito bons mas, o que vejo é uma coisa individual, cada

um faz o seu trabalho, a Espaço Aquarius tem um nome

importante no mercado, as pessoas ganham o seu

dinheiro.”

— “Eu me peguei outro dia tendo que escrever o nome

daqui e, ao invés de Espaço Aquarius, eu escreví

‘consultório particular’. É a síntese do que é isso aqui

hoje, mais voltado para o individual.”

— “Após cinco anos, eu estou exausta, não há grupo.

Neste sentido, as pessoas têm uma imagem externa da

Espaço Aquarius, mas que internamente não

corresponde.”

Após coletar dados por meio de observações e entrevistas, pudemos empreender a análise

desse processo. Portanto, da reflexão sobre a organização, um processo que não chegou a

ser coletivo, emergiu o elemento fins de natureza econômica, como predominante, é essa

a percepção de alguns dos seus membros, dois dos quais são membros fundadores da

539

empresa. Os dados coletados para o exame da variável ação social e relações ambientais

também nos são úteis para esclarecer como as pessoas enquanto membros, percebem a

organização da qual fazem parte. Um reexame daqueles dados nos demonstra que alguns

membros verbalizam que a Espaço Aquarius contribui socialmente para o

aperfeiçoamento das relações sociais em geral, através dos serviços específicos que ali

são prestados. Detecta-se então, alguns traços do elemento valores emacipatórios, no

entanto, sendo amplamente superado pelo indicador fins.

Daí que, na escala de intensidade de racionalidade substantiva, atribuímos a medida

mínima para a variável reflexão sobre a organização.

Conflitos:

O período em que realizamos a pesquisa no Espaço Aquarius foi marcado por uma

profunda crise na organização. Vários conflitos sem resoluções que promovessem o

crescimento do grupo, sem fazer avançar em suas propostas face aos valores professados.

Ao contrário, a cada conflito o grupo decaía mais, perdendo unidade, perdendo força

integradora.

Várias foram as questões que detonaram conflitos, algumas mais simples, outras mais

complexas.

540

Um dos conflitos foi provocado pela ausência frequente às reuniões, por parte de alguns

membros. As seguidas cobranças feitas por parte dos colegas acabaram por gerar um

conflito desgastante para o grupo. Os membros que faltavam com frequência foram

pressionados e as justificativas dadas pareceram não convencer os demais. O cálculo

parecia prevalecer em detrimento da autenticidade, uma vez que a discussão nunca

atingia o centro da questão: o lugar, a importância da organização na vida de cada um dos

seus membros, ou seja, o grau de comprometimento dos profissionais com a dimensão

paraeconômica da organização.

Uma outra situação conflituosa foi ocasionada pelo pedido de liberação das recepcionistas

durante o período consagrado à celebração do São João. No nordeste do Brasil, essa

celebração faz parte de uma das manifestações mais importantes da tradição cultural e

religiosa. Naquele ano, o dia 24 de junho (dia da festa) foi uma sexta feira. É muito

comum, na Bahia, as pessoas se deslocarem para o interior do estado nesta data,

principalmente aqueles que residem na capital e têm parentes no interior, há um

verdadeiro êxodo em Salvador e, mesmo não sendo um feriado oficial, acaba sendo-o na

prática, pois poucas são as empresas que funcionam na referida data. As recepcionistas

haviam feito um pedido de liberação para viajarem para o interior, uma vez que seus

parentes lá residem e, em função de que todos os profissionais também iriam se ausentar

da capital, não tendo marcado nenhuma consulta para aquele dia.

541

Em reunião dos profissionais, alguém transmitiu o pedido das recepcionistas e a proposta

entrou em discussão. Imediatamente verificou-se uma forte oposição entre duas opiniões,

uma a favor da liberação e a outra, contra. Um dos argumentos de quem defendia a

liberação era o seguinte:

—“Acho que seria uma das formas para compensar o

salário que podemos pagar, o qual não é alto; de minha

parte, não vejo nenhum problema, pois vou viajar

também, alguém virá trabalhar, isto é, terá clientes para

atender ? ”

Todos afirmaram que haviam decidido, com antecedência não marcar consultas no

período, confirmando a informação que alicerçava o pedido das recepcionistas. Porém,

um dos profissionais se insurgiu contra a liberação, argumentando que algum cliente

poderia precisar de uma emergência. A argumentação foi questionada, seguindo-se o

diálogo:

— “Nestes 5 anos de Aquarius, quantas vezes houve

emergências? ”

— “Uma vez, apenas...”

542

— “Então, a probabilidade é muito pequena e, será muito

maçante para elas ficarem aqui sem ninguém, sem nada

para fazer, sugiro colocar uma secretária eletrônica para

qualquer eventualidade.”

Um debate muito acalorado se desenrolou, com as posições se fechando sem flexibilidade

e instalando um clima difícil na reunião. O conflito se evidenciou e a radicalização

atingiu um ponto máximo:

— “Este é o seu trabalho, elas são contratadas para isso,

se estão aqui como recepcionistas, então é assim que tem

que ser. Não concordo de jeito nenhum com a liberação!”

Gerou-se um impasse e a decisão não foi tomada uma reunião. Na semana seguinte, em

nova reunião, prevaleceu a opção da não liberação pois não houve recuo de quem a

defendia. Novamente pudemos observar um clima tenso e um mal estar reinantes no

grupo. Os fins de natureza técnica e também de poder prevaleceram nesta situação de

conflito e em outras que pudemos observar.

A deterioração dos relacionamentos foi gradativa, a cada conflito. Eles pareciam não

contribuir para o crescimento do grupo, ao contrário, a equipe demonstrava um crescente

desânimo para o desempenho de atividades coletivas. As faltas às reuniões continuaram a

acontecer, algumas até deixaram de ser realizadas pela ausência de participantes. Quando

543

havia, a reunião apresentava um panorama excessivamente hermético, as discussões

diminuíam, tratava-se apenas de pequenos assuntos de rotina, por vezes terminava-se a

reunião antes do período normalmente utilizado, e a descontração cedia lugar à tensão ou

à indiferença.

Nesse contexto, um dos membros abriu uma reunião com a seguinte manifestação:

— “Precisamos saber o que é isto aqui, o que o Aquarius

significa para cada um de nós, porque eu estou cada vez

mais esgotada. Há coisas que eu gostaria de descobri-las,

entendê-las melhor; não estou mais gostando daqui, não

tenho ânimo, não tenho vontade de vir pra cá, não me

satisfaz.”

Apesar dessa contundente provocação, o grupo não conseguiu aprofundar o que se

demandou, isto é, não conseguiu avançar na direção de uma autocrítica séria, incluindo a

abertura de cada um para se colocar perante a organização. O processo continuou a

deteriorar-se, inclusive com aumento de faltas a reuniões. Apesar da manifestação de

autenticidade daquele membro ao demonstrar o seu descontentamento, este elemento

constitutivo de racionalidade não foi predominante na maior parte dos conflitos

observados.

544

Colhemos alguns depoimentos de membros da organização sobre os conflitos que os

assolavam enquanto grupo:

— “A gente não está sempre aberta à maneira de ser de

todos, há pontos que revelam o desacordo mas, ao menos,

há a sinceridade.”

— “O conflito chegou a um ponto em que vai de encontro

à minha individualidade. Vamos tratar isso entre nós para

que não interfira na Espaço Aquarius como um todo.

Mas, é difícil, teríamos que fazer um trabalho entre nós,

eu não quero gastar energia com isso, teríamos que ver

qual é a disponibilidade prá isso... às vezes, eu não

coloco energia nas coisas do grupo, é um rebatimento

disso.”

— “Mais objetivamente, acho que a causa é a falta de

unidade de propósito. Acho que há uma divisão,

divergências de pensar e de ver. Percebi isso claramente

na questão do ‘referencial’. Penso que deve-se voltar a

545

discutir a situação da Espaço Aquarius e aceitar-se que é

um condomínio, tendo-se uma relação sociável, sem

aprofundar. As pessoas têm medo de aprofundar a

discussão das suas divergências. A Espaço Aquarius tem

um ótimo nome, as pessoas não iriam querer perder isso.

Se aprofundar, ou racha, ou une, mas eu acho que racha

devido às diferenças essenciais.”

— “Foi difícil chegar à idéia do ‘referencial’. A cada

nova situação ficávamos perdidas sem saber qual rumo

tomar. Com o ‘referencial’, poderíamos estabelecer os

valores, crenças, propósitos. Afinal, somos alguns

profissionais vivendo a fantasia de sermos um grupo ?

Mas é preciso presença, participação, disponibilidade,

isso é real.”

O cálculo prevalecia nas situações de conflito, quando explodia a insatisfação dos

membros do grupo. Evitava-se de se expôr, de expôr com clareza a sua própria visão da

organização, não aprofundando as questões que poderiam talvez conduzir a um impasse

só superável pela dissolução do grupo ou a saída de alguns membros. Não havia uma

disponibilidade generalizada para enfrentar um questionamento profundo da organização,

principalmente quando os conflitos ocorriam.

546

As fontes de dados observações e entrevistas foram exploradas por nós no sentido de

examinar os processos de conflitos. O exame revelou que o elemento cálculo predominou

maciçamente na forma como os conflitos são encarados pelo grupo. Os fins também

foram identificados com um razoável peso no desenrolar dos conflitos.

Não obstante os dois elementos de racionalidade instrumental, acima indicados,

apresentassem grande prevalência, o elemento autenticidade pôde ser mapeado, dando

um tom, ainda que frágil relativamente aos outros já mencionados, da razão susbstantiva

nas situações conflituais.

Tendo em vista essa configuração de predominância dos indicadores de racionalidade na

variável conflitos, atribuímos a medida mínima na escala de intensidade de racionalidade

substantiva.

Satisfação individual:

Com a perda da qualidade das interações, a fonte de satisfação dos membros do grupo

passou a ser a preponderantemente a condição de êxito atingida enquanto empresa. A

Espaço Aquarius é uma pequena clínica que, num mercado bastante competitivo,

alcançou uma boa situação econômica, advinda de sua reputação de bons serviços: desde

a sua fundação, há cinco anos, conta com uma clientela efetiva, que dá a possibilidade da

empresa continuar a funcionar numa casa situada num dos bairros mais elegantes da

547

cidade de Salvador; seus profissionais são bem conceituados e têm sempre uma demanda

satisfatória; não há problemas de ordem financeira no empreendimento, apesar da crise

econômica.

Os depoimentos dados pelos profissionais, alguns dos quais transcrevemos acima em

seções destinadas a outras rubricas, dão conta de que os aspectos ligados à dimensão

econômica do grupo têm um grande peso na continuidade da empresa além de representar

o motor da satisfação individual.

As observações e as entrevistas são as fontes de dados indicadas para o exame dessa

rubrica. Os dados assim obtidos permitiram-nos efetuar a análise desse processo

organizacional, indicando a grande predominância do elemento êxito, coadjuvado pelo

elemento desempenho, como determinantes principais de um certo grau de satisfação

individual, pois não é constatável uma grande dose de satisfação em todos os membros.

As crises sucessivas, sem a devida resolução, pelas quais passava a empresa pareciam

obliterar o alcance de elevado grau de satisfação generalizado na organização.

Apesar da ampla predominância desses elementos de razão instrumental, devemos

registrar também a presença do elemento autonomia, entre os profissionais liberais da

Espaço Aquarius. A liberdade de ação, sem constrangimentos mútuos (apenas entre os

profissionais liberais), também foi indicada por alguns membros como uma fonte de

satisfação individual. Mesmo assolado por crises sucessivas, cada membro tem liberdade

total de ação dentro da sua especialidade, além de não ter que submeter a imposições

hierárquicas. No entanto, a autonomia, além de não ter predominância sobre os outros

548

elementos acima citados, só se verifica ao nível dos profissionais liberais, não sendo

concedida ao grupo dos empregados. Uma autonomia, portanto, recoberta de ressalvas e

limites.

Devido a essas constatações, a posição conferida a variável satisfação individual, na

escala de intensidade de racionalidade substantiva é mínima.

Dimensão simbólica:

Inegavelmente, a esfera simbólica da organização é baseada em valores emancipatórios

concebidos sob o ponto de vista do movimento intitulado Nova Era, ou ainda, holismo,

termo muito utilizado no Brasil.

Os membros professam os valores humanos no âmbito social relacionados a harmonia,

que é vista como fonte do bem estar coletivo, a solidariedade, a mudança social que parte

da mudança do indivíduo numa perspectiva de “cura” integral, ou seja, através de

tratamentos do corpo (medicina naturista/homeopática) e da mente (terapias diversas), e o

equilíbrio dinâmico entre o indivíduo e a sociedade. A própria natureza dos serviços

oferecidos pela clínica convergem na direção dessas premissas.

549

O estilo e objetos de decoração da sede da clínica contribuem marcantemente para a

criação de um “clima” ligado aos valores do movimento Nova Era. Na sala de recepção,

por exemplo, há um mural onde são afixados diversos anúncios e notícias referentes a

esse movimento.

Em algumas das reuniões que participamos, foi realizada uma pequena sessão de alguns

minutos de meditação antes do início dos trabalhos. Pedia-se a todos que aprofundassem

a concentração em si mesmos e controlassem a respiração. As reuniões eram sempre

realizadas num ampla sala, a qual não tinha móveis, apenas grandes almofadas; as

pessoas sentavam-se no chão com o auxílio das almofadas, descalças, formando um

círculo, numa atitude muito semelhante aos procedimentos empregados na Espaço

Lumiar.

Há uma clara intenção em comunicar um clima de serenidade e relação estreita ao

movimento Nova Era e seus valores.

Entretanto, a dimensão simbólica da empresa é também marcada, embora

secundariamente, pelo êxito, pelo sucesso econômico do empreendimento, visualizado

como a continuidade sem crises financeiras já há cinco anos, mesmo apesar da recessão e

instabilidade econômica do país. Nas manifestações verbais dos profissionais,

frequentemente faz-se alusão a esse aspecto, o que nos leva a inferir sobre a sua

importância no imaginário da organização.

550

Da análise dos dados obtidos pela consulta às fontes adequadas a essa rubrica —

observações, entrevistas, exame de materiais diversos e de documentos — constatamos a

predominância do elemento valores emancipatórios, nesse caso, aqueles ligados a Nova

Era.

O êxito foi também um elemento identificado como interveniente na dimensão simbólica,

mesmo sem alcançar a predominância.

Na escala de intensidade de racionalidade substantiva, a posição dessa variável, por tudo

o que constatamos é elevada.

Análise global da Espaço Aquarius:

A figura 10 (página seguinte) apresenta uma síntese do exame dessa empresa. Ao

examinarmos a figura 10, podemos facilmente visualizar a predominância inconteste da

racionalidade instrumental nos processos organizacionais que analisamos na Espaço

Aquarius.

Em sete dos onze processos estudados, a razão instrumental é predominante.

551

Processos Organizacionais

( rubricas / variáveis )

Elementos / Indicadores de Racionalidade Predominantes

Intensidade de Racionalidade Substantiva

Hierarquia e normas

Fins

Baixa

Valores e objetivos

Valores emancipatórios

Média

Tomada de decisão

Julgamento ético

Média

Controle

Entendimento

Elevada

Divisão do trabalho

Cálculo

Baixa

Comunicação e Relações interpessoais

Desempenho

Mínima

Ação social e Relações ambientais

Fins

Mínima

Reflexão sobre a organização

Fins

Mínima

Conflitos

Cálculo

Mínima

Satisfação individual

Êxito

Mínima

Dimensão simbólica

Valores emancipatórios

Elevada

Espaço Aquarius ( análise global )

Fins

Baixa

Figura 10 - Quadro-resumo de análise da Espaço Aquarius

552

Entre os sete processos organizacionais que consideramos essenciais — hierarquia e

normas, valores e objetivos, tomada de decisão, controle, divisão do trabalho,

comunicação e relações interpessoais, ação social e relações ambientais — também pode-

se observar, pela figura 10, que a racionalidade instrumental predomina em quatro deles.

Isto posto, não podemos considerar, de acordo com o nosso quadro de análise, a Espaço

Aquarius uma organização substantiva. No entanto, manteremos a análise dessa

organização no bojo do nosso estudo, pois acreditamos que tal procedimento poderá nos

dar a oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre organizações que portam valores

emancipatórios, como também de testar o quadro de análise aqui proposto. Julgamos que

poderemos aprender muito com o exame da Espaço Aquarius.

O que levaria uma organização que defende valores emancipatórios a ter uma

predominância da razão instrumental ? Sem pretender extrair uma resposta que deva ser

generalizada, pois cremos que o exame de cada caso, de cada organização em si é que

fornecerá as respostas requeridas, faremos uma breve “leitura” dessa empresa, à luz dessa

questão.

Trata-se de uma organização na qual os seus membros cultuam determinados valores

emancipatórios, numa perspectiva de Nova Era e de holismo, mas que no âmbito da ação

não conseguem concretizar tais valores em termos de construir uma organização que

realmente espelhe aquilo que afirmam acreditar. Não conseguindo, assim, se desvencilhar

da forma tradicional, burocrática, de organização do trabalho, embora realizem alguns

553

procedimentos relativamente avançados e inovadores, mas que no conjunto dos processos

organizacionais não são suficientes para configurar um tipo de empresa profundamente

diferente do modelo tradicional de empresa capitalista, burocrática e regida pela

racionalidade instrumental.

De fato, há uma contradição permanente no seio desse grupo. Contradição não resolvida,

sequer talvez verdadeiramente assumida, no que tange ao seu enfrentamento. A

contradição entre os valores que os membros defendem e as suas práticas é, ao nosso ver,

a fonte de quase todos os conflitos que marcaram o cotidiano da organização no período

de nossa pesquisa. A contradição entre querer ser diferente, em sendo uma empresa nos

moldes semitradicionais, dilacera e divide o grupo.

Tal contradição se personaliza, na medida em que parte dos seus membros tenta pôr em

prática, ousadamente, os valores professados, não só a nível dos serviços que são

prestados à clientela, mas também a nível da organização em si, enquanto outros

membros hesitam em fazê-lo no nível da organização e acabam por entrar em conflito

direto com a outra parte. Existem membros na empresa que não desejam ou não

conseguem perceber que o próprio fato de criar uma organização produtiva já faz parte do

desafio de pôr em prática os valores emancipatórios, que o trabalho em grupo é em si

mesmo uma dimensão das mais importantes para a mudança e o aperfeiçoamento da

sociedade. Para estes membros, basta oferecer um tipo de serviço à sociedade que

contenha uma certa mensagem de mudança social, não importando a forma pela qual tal

serviço tenha sido gerado.

554

Gostaríamos de chamar a atenção para esse aspecto. A forma, na acepção aqui referida, é

dada pelo tipo de organização que possibilita o trabalho, pela racionalidade que baseia as

ações humanas no mundo da vida concernente ao trabalho.

Nesse sentido, o Espaço Aquarius é uma organização que apresenta sérios paradoxos. Por

exemplo, os valores professados são de cunho emancipatório mas, a empresa mantém a

solução hierárquica rígida no que tange aos seus empregados, prevalecendo aí os fins

concernentes ao poder, enquanto entre si os profissionais praticam ações de entendimento

não hierárquicas. Uma hierarquia para com os empregados baseada no saber, na

especialização técnico-científica e no podereconômico. Não há sequer uma prática de

“administração participativa” com os empregados, eles não têm a chance de expressar

seus pleitos ou participar de alguma decisão sobre o seu próprio trabalho, a não ser com o

seu superior hierárquico eventual, ou seja, aquele membro que se encarrega da “área de

pessoal” do trabalho comum.

Dentre outros paradoxos, podemos citar também aquele representado pela predominância

de valores emancipatórios na dimensão simbólica enquanto a ação social é

predominantemente regida por fins econômicos.

A tomada de decisão era feita com base em julgamento ético (gastando-se muita energia)

enquanto o grupo ainda tinha fôlego para funcionar como um colegiado efetivo. Com o

aprofundamento dos conflitos (sem soluções satisfatórias), foi ficando cada vez mais

555

difícil manter esse padrão nas decisões, tornando-se prática frequente o adiamento de

decisões importantes e o absenteísmo nas reuniões.

A divisão do trabalho é um processo marcado pelo cálculo nessa empresa. As pessoas que

compõem o grupo de profissionais não demonstram uma grande disponibilidade para

assumir as tarefas comuns com satisfação. Há uma disputa pela assunção das tarefas

consideradas mais simples ou fáceis, revelando o descomprometimento com a

organização, sob determinados aspectos, bem como uma substancial dose de

individualismo.

Numa organização onde a reflexão coletiva, os conflitos e as comunicações são

referendados predominantemente na razão instrumental, não nos surpreende o fato de ser

o êxito a fonte de satisfação individual. No entanto, o mal estar tornou-se a tônica,

principalmente para aqueles membros que visavam estabelecer um tipo de organização

mais congruente com os valores emancipatórios. A perda gradativa da habilidade do

grupo para gerir os conflitos, adotando primordialmente o cálculo, acabou por causar

sérias rupturas no tecido social, refletindo negativamente nas relações interpessoais.

Mais do que a habilidade em resolver conflitos, acreditamos no que um próprio membro

do grupo apontou como fator de divergência: a falta de identidade de propósitos. Será que

todos realmente queriam construir uma organização de cunho emancipatório ? Ou apenas

prestar serviços médico-terapêuticos, numa perspectiva holística, atuando no mercado

556

como mais uma clínica neste ramo e, relevando sobretudo a dimensão econômica do

empreendimento ?

O choque de posições, de intenções entre os membros do grupo parecia dizer respeito à

essência da organização.

De todo o modo, uma organização que apresenta aspectos extremamente favoráveis para

constituir-se numa organização substantiva, tais como valores emancipatórios na base dos

valores organizacionais e predominantes na dimensão simbólica, necessita contar com o

comprometimento, com o engajamento corajoso dos seus membros para vir a ser de fato

uma organização substantiva.

Em outras palavras, uma das coisas que aprendemos no desenvolvimento deste estudo e,

principalmente no curso do trabalho com o grupo da Espaço Aquarius, é que não basta

somente proferir valores. É preciso, acima de tudo, assumir o desafio de pô-los em

prática, concretizá-los a nível da organização. O que significa uma luta constante pelo

aperfeiçoamento das práticas emancipatórias, baseadas numa racionalidade substantiva

em contraposição à tendência, incentivada pela sociedade, de repetir o modelo dominante

de organização burocrática assentada em bases instrumentais.

A Espaço Aquarius é um bom exemplo de sucesso econômico e fracasso substantivo, na

medida em que os seus membros tentam sustentar determinados valores emancipatórios,

557

contidos na ação racional substantiva, mas essa sustentação mostra-se frágil ao ponto de

ser envolvida pela racionalidade instrumental.

Como ficou demonstrado na figura 10, o indicador de racionalidade predominante na

Espaço Aquarius, vista de forma global é o que diz respeito aos fins. No cômputo geral,

extraindo-se uma média das medidas de intensidade de racionalidade substantiva, a

Espaço Aquarius alcançou apenas a medida de baixa intensidade no continuum proposto

neste estudo.

É o que está representado na figura 11

Espaço Aquarius ↑

|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva

Figura 11 - Posição da Espaço Aquarius no Continuum de intensidade de racionalidade substantiva

558

Encerradas as análises detalhadas de cada organização, gostaríamos de oferecer uma

visão de conjunto das mesmas, com a finalidade de ressaltar alguns aspectos que poderão

proporcionar ao leitor uma melhor apreensão do fenômeno aqui estudado.

É o que faremos no próximo capítulo.

559

Capítulo IX - Uma visão de conjunto das três organizações

Sem pretender elaborar uma análise comparativa das organizações pesquisadas, pois isso

demandaria um outro arcabouço analítico que possui suas exigências metodológicas

específicas, empreenderemos uma breve visão de conjunto das três organizações.

O nosso intuito, repetimos, não é realizar uma análise comparativa. Se quiséssemos fazê-

lo, teríamos engajado a nossa pesquisa em outra direção, o caminho próprio dos estudos

comparativos, com seus métodos, suas exigências particulares de rigor e seus

procedimentos específicos. A nossa opção é por uma perspectiva analítica autoreferencial

— análoga aos trabalhos de Varela & Maturana (1980), que desembocaram na teoria da

autopoiesis — , e não, essencialmente comparativo. Assim, pretendemos fazer emergir a

lógica interna dos microssistemas sociais estudados, que é o mesmo que dizer, identificar

e demonstrar as racionalidades presentes e predominantes nas organizações pesquisadas.

Ao decidir fornecer uma breve visão de conjunto das três organizações, esperamos poder

clarear cada vez mais a singularidade de cada uma delas, no desejo de que o leitor possa

ter a chance de remarcar algumas particularidades observadas ao longo das análises acima

transcritas.

560

Para tanto, utilizamos a figura 12 (página seguinte), na qual indicamos os elementos

predominantes em cada um dos processos organizacionais estudados nas três empresas

que foram alvo de nossa pesquisa, como também as posições atribuídas a tais empresas

no continuum que mede a intensidade de racionalidade substantiva.

Em primeiro lugar, lançaremos um olhar sobre os processos organizacionais essenciais —

hierarquia e normas, valores e objetivos, tomada de decisão, controle, divisão do trabalho,

comunicação e relações interpessoais, ação social e relações ambientais.

561

Empresas X

Processos Organizacionais

Casa Via Magia

Espaço Lumiar

Espaço Aquarius

Hierarquia e normas

Entendimento

Entendimento

Fins

Valores e objetivos

Valores

emancipatórios

Valores

emancipatórios

Valores

emancipatórios

Tomada de decisão

Entendimento

Entendimento

Julgamento ético

Controle

Entendimento

Entendimento

Entendimento

Divisão do trabalho

Autonomia

Autonomia

Cálculo

Comunicação e Relações interpessoais

Autenticidade

Valores

emancipatórios

Desempenho

Ação social e Relações ambientais

Valores

emancipatórios

Valores

emancipatórios

Fins

Reflexão sobre a organização

Valores

emancipatórios

Valores

emancipatórios

Fins

Conflitos

Fins

Autonomia

Cálculo

Satisfação individual

Autorealização

Autorealização

Êxito

Dimensão simbólica

Valores

emancipatórios

Valores

emancipatórios

Valores

emancipatórios Intensidade de Racionalidade

Substantiva

Elevada

Muito elevada

Baixa

Figura 12 - Quadro-resumo de análise das três empresas

562

Hierarquia e normas:

Na Espaço Lumiar pratica-se uma forma de gestão coletiva por intermédio de ações

voltadas para o entendimento numa perspectiva mais aberta e ousada, avançando-se até

na participação total dos empregados no processo decisório.

Na Casa Via Magia prevalece um tipo de ação orientada ao entendimento menos ousada,

do ponto de vista do manuseio do poder, optando-se por uma postura de negociação

permanente, porém guardando alguns pressupostos hierárquicos.

A Espaço Aquarius repete o modelo empresarial tradicional no tocante a hierarquia dos

donos da empresa para com os seus empregados. No grupo de profissionais não há

distinção hierárquica, pois todos se reconhecem como detentores de autoridade de mesmo

nível.

Mas, na empresa como um todo, os fins ligados ao poder são dominantes na hierarquia e

no estabelecimento de normas.

As normas não são escritas, com exceção da unidade escolar da Casa Via Magia. O que

não quer dizer que nas demais empresas elas não existam, elas existem e são cumpridas,

são elaboradas através de processos de entendimento, salvo na Espaço Aquarius, onde

563

prevalecem os fins políticos (racionalidade instrumental), sendo o escalão hierárquico

superior (composto pelos profissionais) o responsável pelo estabelecimento das normas.

Valores e objetivos:

Vemos que as três organizações são ancoradas nos valores emancipatórios presentes em

seus membros. Em verdade, os valores que permeiam o movimento conhecido como

Nova Era (Vernette, 1993), estão presentes nas três organizações. Tais valores, em seu

conjunto, apresentam grandes semelhanças com os valores emancipatórios conforme os

definimos no Capítulo IV. Eles orientam o estabelecimento dos objetivos organizacionais,

os quais, por não serem escritos, são conhecidos pelas manifestações verbais de seus

participantes.

Tomada de decisão:

A tomada de decisão também é uma dimensão na qual a racionalidade substantiva

predomina nas três organizações, havendo apenas uma pequena diferença entre elas: na

Espaço Aquarius, o julgamento ético, mesmo com dificuldades, predominava, enquanto

nas outras duas, as ações de entendimento foram observadas com maior predominância.

564

Controle:

Não há controles rígidos nas três organizações, prevalecendo a confiança mútua através

de ações de entendimento que visam servir-se do controle para coordenar ações

posteriores, gerar aprendizagem coletiva, praticar ações de solidariedade, e não

propriamente para aumentar a parcela de poder de uns sobre outros.

Daí em diante, as diferenças entre as organizações substantivas e a Espaço Aquarius

começam a ficar cada vez mais nítidas.

Divisão do trabalho:

Na divisão do trabalho, as organizações substantivas analisadas buscam aumentar a

autonomia dos indivíduos, enquanto na Espaço Aquarius o que mais conta é o cálculo.

Aflora aqui, um baixo grau de compromisso dos membros da Espaço Aquarius com o

objetivo desafiante de estabelecer uma organização produtiva em moldes realmente

565

distintos daqueles comumente utilizados por empresas onde a razão instrumental é a

regra.

Comunicação e relações interpessoais:

A comunicação e as relações interpessoais denotam também uma profunda diferença

entre essas empresas. Os elementos substantivos da autenticidade e dos valores

emancipatórios são prevalecentes na Casa Via Magia e na Espaço Lumiar, enquanto na

Espaço Aquarius a comunicação e as relações interpessoais tornam-se um meio

instrumentalizado, quase que totalmente voltado para o aumento do desempenho

individual.

Ação social e relações ambientais:

A ação social e as relações ambientais em geral, importantes dimensões para o exame de

uma organização, são predominantemente marcadas pelos valores emancipatórios que os

membros da Espaço Lumiar e da Casa Via Magia afirmam portar. Mas, na Espaço

Aquarius, são os fins de natureza econômica que guiam a ação do grupo nessas

566

dimensões; o que demonstra a incongruência entre os valores difundidos e a ação efetiva

do grupo no seu meio social.

Assim, no que diz respeito aos processos organizacionais essenciais — o foco central de

nosso conjunto de dados — apenas a Espaço Aquarius apresenta resultados de

predominância situada em elementos constitutivos da racionalidade instrumental, mais

exatamente os elementos dos fins políticos, do cálculo, do desempenho e dos fins

econômicos, em processos tão importantes como hierarquia e normas, divisão do

trabalho, comunicação e ação social (respectivamente).

Um breve exame dos processos organizacionais complementares nos daria a confirmação

de que temos duas organizações substantivas apenas. Nos quatro processos, em apenas

um a Espaço Aquarius tem predominância da razão substantiva, mais exatamente a

dimensão simbólica.

Na Espaço Lumiar é totalmente predominante a razão substantiva, enquanto na Casa Via

Magia, três quartos dos processos são guiados pela racionalidade substantiva.

Reflexão sobre a organização:

567

Supomos que a reflexão sobre a organização dificilmente seria coletiva numa organização

não substantiva. Em geral, ela tem sido uma prerrogativa apenas dos indivíduos

detentores do poder no interior das organizações tradicionais, embasadas em forte

hierarquia.

Esta prática é referendada na Espaço Aquarius, pois somente aos profissionais é

permitido participar das discussões que implicam a reflexão sobre a organização. Na

Espaço Lumiar e na Casa Via Magia, a reflexão é realizada coletivamente e embasada em

valores emancipatórios.

Conflitos:

A gestão dos conflitos é mais aberta, mais livre e mais efetiva na Espaço Lumiar. Seus

membros fazem dos conflitos um exercício de autonomia, correndo sem temores todos os

riscos de desintegração do grupo; lá, os conflitos são aprofundados até as raízes de suas

causas. Talvez por isso mesmo seja aquele, entre os grupos estudados, que mais

habilidade possui para aproveitar a energia e a criatividade oriundas da tolerância às

diferenças, que faz dos conflitos oportunidades para o avanço da organização na direção

de seus valores e objetivos.

568

Os fins técnicos prevalecem na Casa Via Magia, dando, por meio do tratamento dos

conflitos, o tom mais agudo da razão instrumental nessa organização. Uma empresa

fortemente influenciada pela idéia de competência técnica, de crédito na ciência; há um

certo “peso” que os seus membros carregam, o mandato do alto desempenho, a fama de

uma das melhores escolas infantis, do tipo alternativa, da Bahia, além de um centro de

excelência na pesquisa pedagógica.

O cálculo é dominante nas situações de conflitos na Espaço Aquarius. Um grupo que

ainda não atingiu um estágio desenvolvido de reconhecimento da sua própria identidade,

um grupo em crise, apesar dos bons resultados econômicos que sempre auferiu. Os

membros do grupo parecem hesitar em mostrar-se abertamente nos conflitos, há um certo

receio de dissolução, desintegração, o que poderia, talvez, comprometer uma boa imagem

que o faz deter uma fatia substancial no seu mercado. Em nossa inferência, esse receio

assume um caráter de falta de disponibilidade para abrir-se devidamente e aprofundar as

questões interpessoais no grupo, ou como afirmou um dos seus membros de forma muito

significativa: “eu não quero gastar energias com isso.”

Satisfação individual:

569

No panorama conjunto das três empresas até aqui esboçado, vemos que o quadro de

análise proposto nos conduz a uma visão pela qual cada processo organizacional vai se

entrelaçando aos outros e, assim, ajudando o aperfeiçoamento de nossa perpeção dos

grupos estudados.

A fonte de satisfação individual, por exemplo, tem origem na dimensão interior de cada

indivíduo, quando observamos as organizações substantivas. A autorealização fala mais

alto em ambientes produtivos onde a divisão do trabalho, a comunicação/relações

interpessoais e a hierarquia/normas, são embasados na razão substantiva. Há espaço e

liberdade suficiente para que o indivíduo se lance, ouse, busque concretizar seu potencial.

Sob esse aspecto, a Casa Via Magia e, principalmente a Espaço Lumiar, aproximam-se

bastante das características que Guerreiro Ramos atribui às isonomias:

“As pessoas não ganham a vida numa isonomia; antes,

participam de um tipo generoso de relacionamento social,

no qual dão e recebem […] suas atividades são

promovidas como vocações, não como empregos […] sua

recompensa básica está na realização dos objetivos

intrínsecos daquilo que fazem…” (Guerreiro Ramos,

1981, p. 150).

Na Espaço Aquarius, apesar de ser uma organização onde determinados valores

emancipatórios povoam sua dimensão simbólica, os seus membros que experimentam

570

alguma satisfação, o fazem a partir de uma dimensão que lhes é, por natureza, externa,

uma dimensão que tem origem totalmente inspirada num tipo de sociedade que valoriza o

êxito, referendando-se numa idéia de competição, estabelecendo padrões de sucesso, os

quais parecem ser incompatíveis com o próprio conjunto de valores professados pelo

grupo.

Dimensão simbólica:

Na dimensão simbólica, em sua manifestação iconográfica, depreende-se que as três

organizações apresentam uma predominância dos valores emancipatórios, numa versão

bastante influenciada pela vaga da Nova Era.

Posição das organizações no “continuum”:

No que concerne o continuum que propomos neste estudo, visando medir a intensidade de

racionalidade substantiva em cada organização, vemos que a sua configuração final, de

571

fato, refletiu inteiramente as análises mais detalhadas sobre a predominância de cada

indicador de racionalidade nos processos estudados em cada empresa.

O continuum, visto unicamente em si mesmo, deslocado de todo o trabalho analítico que

o precede e o determina, não possui a essencialidade e a profundidade que o exame

minucioso, a análise exigente e elaborada, passo a passo, de tudo aquilo que foi

vivenciado, observado, sentido, registrado. Da apreciação acurada de todos os tipos de

dados disponíveis, enfim. O continuum é apenas um instrumento auxiliar na avaliação da

racionalidade substantiva nas organizações. Trata-se de uma solução de sintetização das

avaliações meticulosamente efetuadas e, pode ser também um instrumento anexo para

facilitar a visualização da classificação relativa das empresas estudadas, no que se refere

ao grau de racionalidade substantiva pelo qual os seus membros interagem no cotidiano.

Se o continuum espelha razoavelmente a análise, ao passo que adiciona uma informação

visual qualitativa e útil, então ele cumpre o seu papel.

No estudo aqui desenvolvido, verificou-se, em termos globais, que os membros da

empresa Espaço Lumiar demonstraram interagir com uma intensidade de racionalidade

substantiva mais destacada do que os participantes das duas outras organizações. Assim, a

Espaço Lumiar alcançou a medida muito elevada no referido continuum.

A Casa Via Magia, embora resultante da análise também como uma organização

substantiva, alcançou, em nossa avaliação, um menor grau de racionalidade substantiva

572

nas interações de seus membros do que aquele alcançado pela Espaço Lumiar. Portanto,

no continuum a sua posição é elevada.

Quanto a Espaço Aquarius, empresa que não emergiu da nossa análise como organização

substantiva, teve a sua posição no continuum referenciada como baixa intensidade de

razão substantiva nas interações que guiam os seus processos organizacionais.

A figura 13, nos traz o continuum numa disposição que melhor permite a visualização da

posição relativa de cada empresa analisada.

Espaço Casa Espaço Aquarius Via Magia Lumiar

↑ ↑ ↑

|______|_______|_______|______|_______|______| totalmente mínima baixa média elevada muito totalmente instrumental elevada substantiva

Figura 13 - Posição das empresas analisadas no continuum

de intensidade de racionalidade substantiva Aqui encerramos a análise conjunta das três empresas estudadas. Na próxima seção,

apresentaremos as conclusões deste trabalho.

573

Conclusões

A trajetória delineada na Introdução atinge agora o seu final. As questões levantadas ao

longo do trabalho e parcialmente respondidas, podem agora ser retomadas em seu

conjunto.

O problema central que desencadeou a realização deste estudo, foi o da ausência de

demonstração factual da exequibilidade e da concretização da razão susbstantiva, na

práxis administrativa em organizações produtivas. Um impasse — como o

caracterizamos —, dentre outros, ao avanço da teoria neste campo. A discussão

empreendida do Capítulo VI ao Capítulo IX, talvez tenha dado os subsídios para que o

próprio leitor elabore um juízo sobre a possibilidade de resolução do referido impasse.

Na perspectiva geral da emancipação do homem na esfera produtiva, esperamos ter

contribuído para evidenciar que os indivíduos, associados em organizações substantivas

(como também em outros tipos de iniciativas), podem: estabelecer relações gratificantes

entre si, alcançar níveis consideráveis de autorealização e embasar-se numa lógica não

utilitária; ao passo que, suas organizações alcançam graus de desempenho satisfatórios

num mercado competitivo.

A sociedade é composta, em sua larga maioria, por grupos organizados que interagem na

esfera econômico-produtiva embasados numa lógica marcada pelo utilitarismo. No

entanto, no caso das duas entidades que brotaram da nossa análise como organizações

574

substantivas, podemos ver exemplos atuais de atividades que Polanyi caracterizava como

embedded, ou seja, atividades econômicas engastadas no social e, com o interesse

concentrado sobre os valores, a motivação e a política, esta concretizada por meio do

debate ético-racional. Como vimos no Capítulo I, de Polanyi a Godelier, desembocando

em Guerreiro Ramos, um substancial conjunto de pesquisadores vêm demonstrando que a

sociedade centrada no mercado é apenas uma forma recente de ordenação da vida humana

associada. Assim sendo, outras formas de ordenação social e de produção podem ser

encontradas atualmente, exigindo para a sua análise outros instrumentos de interpretação

e também referenciais alternativos à lógica utilitarista.

As três organizações da nossa pesquisa podem ser consideradas como empresas que

atingiram razoável grau de sucesso econômico. Salvador, enquanto terceira maior cidade

do país, apresenta uma demanda considerável para os serviços oferecidos por essas

empresas, o que acarreta, por outro lado, uma significativa oferta que lhe é

correspondente. Sobretudo pela sofisticação da cidade, concentração de renda e suficiente

ligação com o resto do mundo (principalmente em função do turismo), a capital do estado

da Bahia, enquanto grande centro urbano industrial, constitui um mercado atraente para a

instalação de empresas que atuam nos ramos de educação infantil alternativa, produção de

arte e, clínicas reunindo medicina naturista e psicoterapia. O mercado é atraente,

logicamente a concorrência é acirrada.

575

Trabalhamos com três empresas vitoriosas num mercado competitivo, entre as quais, duas

emergiram da análise como organizações substantivas, onde a opressão cede lugar a

predominância de práticas emancipatórias.

Parafraseando Dejours (1990), esperamos ter auxiliado a demonstrar que o homem, ao ser

beneficiário da produção, não precisa necessariamente ser vítima do trabalho. Um dos

fatores cruciais no bojo dos processos que conduzem a tal constatação, é a “lógica

subjacente” às ações dos indivíduos no interior das organizações produtivas. Daí a

importância dos estudos que abordam o tema da racionalidade neste espaço social.

Cremos na potencialidade considerável do tema da racionalidade, face aos ideais

emancipatórios, no âmbito das organizações. A abordagem da racionalidade pode

desvelar processos e “mecanismos” sutis, porém condicionantes das ações humanas,

ajudando a explicá-las. Assim, esta via de elaboração de estudos pode colaborar

efetivamente ao lado de outras abordagens temáticas, tanto para a compreensão do que se

passa no trabalho, como para a crítica e formulação de propostas concretas com fins

emancipatórios. O que implica trilhar um longo percurso, ao longo do qual fatalmente

encontrar-se-á inúmeros bloqueios, pedras a remover, desvios de rota... Engana-se quem

pensa que esse percurso assenta-se sobre uma estrada reta e pavimentada, muito ao

contrário, ela é tortuosa, marcada pelo desconhecido e plena de impasses, como todas as

vias da ciência e, por quê não dizer, da própria vida. Se não desistimos, transformamos

cada impasse num desafio a superar.

576

Com a realização deste trabalho, assumimos o desafio de afrontar um dos impasses que

percebemos existir no percurso dos autores que empreendem estudos sob o tema da razão

substantiva, na acepção de Guerreiro Ramos, notadamente no Brasil. Pouco a pouco,

parece esboçar-se um espaço, um subtema, que poderá um dia se constituir num campo

de estudos organizacionais consolidado no nosso país. Tentar superar os impasses seria

não só colaborar para o desenvolvimento e continuidade desses estudos mas, também,

acreditamos que, em última instância, significa trabalhar em prol dos ideais

emancipatórios na esfera do trabalho.

A tentativa de superação desse desafio implicava atingir os objetivos declarados na

Introdução, fornecendo ao tema de estudos a contribuição delimitada no Capítulo I. Em

suma, seria preciso demonstrar empiricamente a razão substantiva na práxis

administrativa. Para tanto, adotamos desde o ponto de partida as premissas básicas

defendidas por Guerreiro Ramos: considerar que a razão substantiva é um atributo do

sujeito e, que é essencialmente diferente da razão instrumental, gerando ações e atitudes

humanas igualmente diferenciadas.

Para continuar a avançar pela estrada, tivemos que engatar duas novas marchas, ou seja,

adicionar duas outras premissas: a primeira é que os dois tipos de racionalidade fazem

parte do “cotidiano administrativo” das organizações, o que releva a importância da

noção de predominância; e a segunda é o reconhecimento da necessidade de uma teoria

de ação — complementar ao estudo de Guerreiro Ramos — que muda o sinal vermelho

do impasse e nos indica o acesso à práxis.

577

A complementaridade entre as teorias de Guerreiro Ramos e de Habermas revelou-se

extremamente frutuosa. Por meio dela, pudemos traduzir o aparato conceitual da

racionalidade substantiva no plano da ação, definindo, para fins operacionais, a ação

racional substantiva e a ação racional instrumental. Daí até transportar tais definições

operacionais para os processos organizacionais foi, justamente, o desenrolar da

construção do quadro de análise que, poderia permitir-nos fazer face ao desafio de atingir

os objetivos propostos na Introdução e, cumprir o compromisso referente a contribuição

delimitada no Capítulo I.

Assim, por meio do arcabouço teórico que empregamos, no qual a citada

complementaridade foi a pedra angular, pudemos fazer fluir os conceitos da razão

susbstantiva e da ação comunicativa na direção dos processos organizacionais e das

práticas administrativas. Nesse sentido, a complementaridade, enquanto confluência de

teorias, exerceu o papel do cruzamento de vias que nos leva ao destino desejado,

enriquecendo o percurso.

Uma vez que a estrada não é reta, gostaríamos imensamente de contar com a certeza de

que o estudo de natureza qualitativa, mais o emprego da observação participante, tenham

proporcionado demonstrar efetivamente como a racionalidade substantiva se concretiza

na práxis administrativa e, qual é a razão predominante nas empresas pesquisadas. Ao

leitor cabe julgar. De todo o modo, a análise dos dados obtidos pelo trabalho de campo

nos dá a condição de fazer algumas observações empíricas que escolhemos entre as mais

importantes.

578

A primeira das observações empíricas a destacar, é a constatação de que a presença

marcante dos valores emancipatórios e a perseverança em praticar ações orientadas ao

entendimento, revelaram-se fundamentais para uma organização ter o caráter substantivo.

Os valores emancipatórios foram primordiais para guiar a ação social da empresa, compor

o sistema de valores principais da organização, povoar suficientemente o imaginário do

grupo, dando as cores da sua dimensão simbólica e, alicerçar os processos de reflexão

coletiva.

As ações de entendimento se mostraram indispensáveis para dar o tom substantivo nos

“processos duros” da prática administrativa: as questões concernentes a hierarquia, ao

estabelecimento de normas, a tomada de decisão e o controle. Justamente aqueles

processos que estão diretamente ligados à questão do poder. As zonas mais estreitamente

relacionadas ao poder são palco de exercício, nem sempre fácil e tranquilo, do

entendimento. A noção de entendimento é ampla. Lembramos que Habermas fala em

“acordo racionalmente obtido” e elabora toda a teoria da ação comunicativa a partir deste

ponto, destacando no processo a correção, a verdade e a autenticidade dos indivíduos,

atores no acordo. Lembramos também que Guerreiro Ramos fala em “boa regulação da

vida humana associada”, ressaltando que isto é alcançado mediante o debate racional e a

superordenação ética.

Assim, nas organizações substantivas do nosso estudo, os indivíduos atuam nas áreas em

que o poder frequentemente mais se manifesta na práxis administrativa, mediante ações

579

predominantemente embasadas em correção, verdade, autenticidade e superordenação

ética, desenvolvendo — não sem tropeços, recuos momentâneos e dificuldades — o

debate racional.

A autonomia revelou-se importante no processo de divisão do trabalho. Quanto mais

autonomia se tem para assumir livremente tal ou qual atividade a desempenhar, ter viva

voz no debate que leva à distribuição das tarefas, argumentar e ver seus argumentos ser

alvo de contra-argumentações, mais engajamento com o trabalho é proporcionado. A

natureza substantiva da organização emergiu também com grande intensidade deste

aspecto.

A satisfação é o corolário, no nível individual, do esforço organizacional de cunho

substantivo. Ficou evidenciado para nós que a autorealização é o grande motivo da

satisfação em participar daquelas organizações, em realizar aquele tipo de trabalho. A

recompensa monetária existe (em geral não muito mais elevada do que em outras

empresas), são empresas privadas mas, os indivíduos apontaram como a fonte maior da

sua satisfação a possibilidade concreta, a viabilidade de realização dos seus potenciais

profissionais e pessoais. Aqui, vimos que a autonomia se complementa com a

autorealização, a divisão do trabalho com a satisfação.

Gostaríamos de destacar um aspecto de particular relação com a teoria da ação

comunicativa. Obviamente, trata-se de uma observação empírica sobre o processo

organizacional de comunicação. Foi interessante constatar que, nas organizações

580

substantivas — Casa Via Magia e Espaço Lumiar — a autenticidade e os valores

emancipatórios foram os elementos de racionalidade predominantes. Isto quer dizer que,

em sua maior parte, os atos de palavra são orientados racionalmente através da

autenticidade e dos valores emancipatórios. Ora, se levarmos em conta que tais tipos de

valores são dominantes no contexto normativo do grupo (predominam na rubrica

“Valores e Objetivos” em ambas organizações), então tivemos a oportunidade de ratificar

empiricamente uma parte importante da proposição habermasiana: autenticidade e

correção, são dois dos três fatores fundamentais da ação comunicativa, onde correção

significa exatamente,

“Uma ação correta com relação a um contexto normativo

dado e reconhecido no mundo da vida cotidiano, para que

se possa estabelecer entre ele [o emissor] e o ouvinte uma

relação interpessoal tida como legítima” (Habermas,

1989, p. 501, trad. livre).

Quanto a Espaço Aquarius, empresa que não emergiu da análise como organização

substantiva, confessamos que nos sentimos extremamente gratificados em contar com ela

na pesquisa. Ela ensejou-nos uma chance de aprendizagem inesquecível, tanto para o

nosso aprofundamento do conhecimento das organizações substantivas como para o

nosso futuro enquanto pesquisadores. Selecionamos algumas observações empíricas que

transcreveremos a seguir.

581

Em primeiro lugar, a Espaço Aquarius confirmou, em nós, a importância e a eficácia da

metodologia da observação participante. Tentaremos explicar. Trata-se de uma

organização que apresenta indícios marcantes que poderiam nos levar a incluí-la na

classificação de substantiva. Seja pela iconografia da sua dimensão simbólica, pelo

discurso dos seus membros ou, por outro lado, pela impossibilidade de aprofundar a

pesquisa devido ao emprego unicamente de instrumentos como questionários ou

entrevistas (os mais usados na pesquisa em administração). A dimensão simbólica

(iconográfica) e os valores professados pelos seus membros são marcados integralmente

por valores emancipatórios. Hoje, podemos refletir sobre o que poderia nos ocorrer se

apenas entrevistássemos aquelas pessoas e/ou pedíssemos a elas que preenchessem

questionários. É bem provável que, inafortunadamente, hoje estivéssemos a considerá-la

uma organização substantiva !

A observação participante, principalmente neste caso, mostra a sua força. Como bem

sabem os antropólogos, não há nada que possa substituir a efetiva participação no

cotidiano de um grupo se se quer profundamente conhecê-lo; aliás, não seria esta uma das

questões mais simples e límpidas de qualquer relacionamento humano ? Talvez também

por isso Habermas afirma que a participação efetiva nas interações é fundamental para se

compreender um processo de entendimento. Em termos de trabalho científico e,

especificamente, em se tratando do nosso campo — a teoria das organizações — esse é

um aprendizado empírico que levaremos para o resto de nossa vida profissional. A

observação participante nos permitiu adentrar na realidade cotidiana do grupo, viver as

situações decorridas na passagem do tempo, perceber como se produz o

582

interrelacionamento naquela organização. Perceber como se constrói o “cotidiano

administrativo” (Lima & Teixeira, 1994).

Assim, pudemos perceber que mesmo apresentando predominância substantiva nas

rubricas valores e objetivos, dimensão simbólica, tomada de decisão e controle, a

empresa não pode ser considerada por nós como substantiva. Nos demais processos,

predomina a razão instrumental.

Guardadas as enormes e devidas diferenças, poderia-se, apenas com uma finalidade

heurística, fazer-se uma analogia da configuração da Espaço Aquarius com diversas

grandes e sofisticadas empresas que estão a implementar apressadamente programas do

tipo “grupos de produtividade”, “CCQ”, “administração participativa” e demais técnicas

do gênero, sem a devida correspondência em mudanças estruturais que uma ampla

participação/implicação exigiria: nessas grandes empresas, “trabalha-se” intensamente ao

nível dos valores (professados) e da dimensão simbólica, suaviza-se o controle e algumas

decisões (principalmente voltadas para a produção) mas, mantém-se o forte peso da

hierarquia, a ação social da empresa continua a ser a mesma e, a comunicação é aberta

apenas no que toca ao aumento do desempenho (Serva, 1993 b). A esse gênero de práticas

gerenciais nas grandes empresas modernas, Lipietz & Leborgne (1992) denominaram

“tentativa de implicação com hierarquia”, ou “neofordismo”. Obviamente que não

estamos a comparar a Espaço Aquarius com uma grande empresa, nem tampouco

colocando as suas práticas em um mesmo plano de semelhança, não somos ingênuos a tal

583

ponto ! Estamos apenas imaginando as possibilidades (por meio de uma analogia) de

análise que o instrumento aqui utilizado poderia, no futuro, permitir.

Voltando ao caso da Espaço Aquarius, ele nos dá, como dizíamos, uma grata

oportunidade de aprendizagem sobre a questão substantiva. Esse caso faz emergir com

toda a clareza (e os outros dois casos o confirmam) a condição possibilitadora, sine qua

non, para a predominância da razão substantiva numa organização: o comprometimento

efetivo dos seus membros com os valores emancipatórios. Aqui tentamos responder mais

uma das questões levantadas no Capítulo II.

O fato de conduzir uma empresa que sobrevive bem num mercado competitivo e,

paralelamente, tentar concretizar uma práxis baseada naquilo que nós definimos como

razão substantiva, é o que melhor define a natureza do desafio que os membros de tais

empresas enfrentam em seu cotidiano.

Vive-se numa dualidade tensa, permanentemente, pois tenta-se construir uma empresa

dentro de uma sociedade que já lhe oferece um modelo geral, as diretrizes de base, e a

lógica das ações, todos esses elementos fundantes intuídos de uma racionalidade

utilitária, instrumental.

O dilema entre ser empresa nos moldes tradicionais ou ousar uma práxis emancipatória é

diário, expressa-se no cotidiano, nas relações com os colegas profissionais, com os

empregados se eles existem, na adoção ou não de hierarquia e em que grau, nos padrões

584

de comunicação utilizados, e em muitos outros aspectos de escolha. O dilema é constante,

no fundo, para nós, é a própria expressão do dilema entre a predominância da

racionalidade substantiva ou da racionalidade instrumental, nas ações dos membros das

organizações produtivas contemporâneas. Um dilema que, se negado, ocultado, pode

aflorar em contradições não assumidas e conflitos não resolvidos, como no caso da

Espaço Aquarius.

Na nossa concepção, para que uma organização seja realmente substantiva, é preciso que

o comprometimento com os valores que se difunde, vá além da difusão e dos serviços

postos à disposição de uma clientela qualquer, é preciso que os indivíduos se engajem

firmemente ao desafio de concretizar tais valores no próprio desenvolvimento dos

processos organizacionais. É preciso que tais valores comecem a ser praticados dentro da

organização, sejam antes de tudo, uma parte do conjunto dos elementos da razão

substantiva que embasam a ação interativa entre todos os membros da organização,

principalmente no desenrolar da práxis administrativa.

Olhando para os casos da Casa Via Magia e da Espaço Lumiar, constatamos

empiricamente que o comprometimento efetivo, gerando o firme engajamento do qual

acabamos de nos referir, é justamente o fator da ação que opera uma fusão entre os

valores emancipatórios e as ações de entendimento, acima destacados. Não se muda ou

não se molda uma realidade complexa apenas professando valores e portando signos, é

necessário, sobretudo, comprometer-se efetivamente com eles na ação cotidiana. O que

585

não é nada fácil, nas condições dadas para as organizações produtivas na

contemporaneidade.

A congruência de uma organização face a racionalidade que lhe é subjacente não começa

no produto e na imagem ao público, começa sobretudo nos seus processos internos. Ou

seja, de dentro para fora da organização, e não o contrário. Neste cenário da vida humana

moderna, o simulacro não é suficiente para concretizar a razão substantiva. Trata-se de

um dos campos mais pragmáticos da atualidade.

Temos a esperança de que o conjunto das observações empíricas que apresentamos há

pouco, aliado a constatação de que a predominância da razão substantiva nas empresas

Casa Via Magia e Espaço Lumiar não acarretou insucesso econômico e, aliado também

ao conteúdo das análises exposto nos Capítulos VI, VII, VIII e IX, tenham iluminado as

questões levantadas no final do Capítulo II.

Além dos aspectos vantajosos específicos, já comentados, que o emprego das

formulações teóricas de Guerreiro Ramos e de Habermas nos proporcionou, queremos

destacar um aspecto vantajoso geral advindo da utilização dessas formulações. Ao tomar

essas duas teorias como pilares de nosso estudo, cremos que pudemos aprofundar o nosso

conhecimento do tema da racionalidade numa direção importante, ampliar a nossa visão

para novos horizontes, devido ao fato de que os dois autores não se limitam a elaborar a

crítica à razão instrumental.

586

Eles mostram, cada um dentro de seu próprio estilo e de sua opção metodológica, o que

não é instrumental, em se tratando de racionalidade. Seja aprofundando as bases

conceituais e se concentrando no campo das organizações, seja explorando a fundo a

interação simbólica e se concentrando na ação de comunicação, respectivamente

Guerreiro Ramos e Habermas caracterizam, elaboram a crítica e vão mais além da esfera

da razão instrumental. Eles adentram com firmeza o que antes era “espaço vazio”, ou no

mínimo uma caixa preta; desvelam uma outra racionalidade, revelando assim todo um

horizonte de possibilidades, tanto ao nível conceitual como ao nível dos “mecanismos” da

ação.

Assim, pudemos entender algo que para nós era anteriormente obscuro, ou pelo menos

difuso. Pudemos sair do âmbito da crença, da suposição sobre a existência de uma outra

racionalidade possível de ser empregada no cenário organizacional, para o âmbito da

detecção e início de uma futura compreensão dessa outra racionalidade.

Julgamos este aspecto de máxima importância para os estudos organizacionais dedicados

ao tema da racionalidade. Por conseguinte, incentivamos e exortamos os estudiosos desse

tema a trabalhar com a complementaridade entre Guerreiro Ramos e Habermas, como

sugerida por Barreto (1993).

A atenção dirigida a essa perspectiva de complementaridade, poderá evitar impasses

como aquele que comentamos aqui e, mais importante do que isso, poderá ajudar a

587

afrontar os novos impasses que a tortuosa estrada da ciência comprometida com a

emancipação, a “ciência com consciência”, provavelmente nos apresentará.

Neste sentido, ficaríamos muito gratificados se o presente estudo se constituir num

esboço, num conjunto de rabiscos iniciais que, pelas mãos dos colegas pesquisadores do

mesmo tema, poderia se transformar num TEXTO.

Por fim, essa pesquisa levanta questões que poderiam desencadear outras pesquisas no

futuro.

Cremos que vale à pena destacá-las, como mais uma tentativa de contribuição ao tema:

a) Como decorre a práxis administrativa numa organização substantiva do setor

industrial ?

Uma vez que as empresas aqui pesquisadas atuam no setor de serviços, valeria à pena

realizar estudos em empresas do setor de transformação, onde as relações entre homem e

máquina, ritmo/tempo de trabalho e processo tecnológico, dentre outras, poderiam talvez

colocar novos desafios à razão substantiva na práxis administrativa;

b) No setor de serviços, como decorre a práxis administrativa numa organização

substantiva que está fora do “movimento psicologista” ?

588

Coincidentemente, as organizações substantivas do nosso estudo se aproximam, em

maior ou menor grau, da classificação estabelecida por Huber (1985), como

“organizações do movimento psicologista”, dentro do conjunto geral do “movimento

alternativo”, conforme vimos no Capítulo II. Novas pesquisas poderiam explorar outras

realidades organizacionais, mesmo que ainda no setor de serviços mas, fora do dito

“movimento psicologista”;

c) Qual o papel que o nível de educação formal dos indivíduos exerce para a constituição

de uma organização substantiva ?

Guerreiro Ramos (1981) sustenta que a razão substantiva é um atributo de todo ser

humano e, releva a importância do senso comum nesse contexto. Por outro lado,

Rothschild-Whitt (1982) chama a atenção de que uma educação formal elevada é um

fator decisivo para a construção das “organizações coletivistas”; além dos membros das

organizações de sua pesquisa ter alto grau de educação formal, vinham de famílias com

semelhante nível educacional. No nosso estudo, a educação elevada é uma característica

marcante da maioria dos membros das organizações substantivas. Fica a questão para

futuros estudos, a pesquisa poderia tentar verificar a existência de organizações

substantivas onde os participantes não tivessem formação educacional elevada e conhecer

as suas práticas, ou então confirmar que a educação em alto grau é mais uma das

condições sine qua non;

d) Até que ponto o tamanho é uma aspecto restritivo ? Quais as soluções que estão sendo

utilizadas ?

589

Guerreiro Ramos (1981) afirma que uma “isonomia” não pode aumentar de tamanho, sob

pena de descaracterizar-se. Na nossa pesquisa, a Casa Via Magia foi a empresa de maior

tamanho, conta com 50 participantes. Os estudos de vários pesquisadores, tais como

Gagnon & Rioux (1988), Huber (1985), Serva (1993 a), Rothschild-Whitt (1982), Dupuis

(1985), Bhérer & Joyal (1987) e de muitos outros, dão conta de pequenas organizações. O

número de membros é variável, mas todos os autores falam em grupos pequenos. A

pesquisa poderia aprofundar a verificação de aspectos importantes ligados ao tamanho:

em geral, qual seria o limite médio ?; também empreender análises de casos de

deterioração substantiva a partir do aumento de tamanho da organização. Acima de tudo,

detectar quais as soluções que estão sendo utilizadas na prática para fazer face à questão

do tamanho, por exemplo, seriam as redes uma das soluções ? e como estariam sendo

construídas ? qual o impacto delas na práxis administrativa substantiva ?

e) Qual a influência, se ela existe, do aspecto feminino para a construção de organizações

substantivas ?

As organizações que emergiram da nossa análise como substantivas são organizações de

ampla maioria feminina. Na Casa Via Magia, cerca de 80% do pessoal é composto de

mulheres; na Espaço Lumiar, a predominância de mulheres é mais marcante ainda, pois

apenas um dentre os membros permanentes é do sexo masculino. Estudos posteriores

poderiam ser desenvolvidos enfocando este aspecto como uma variável de estudo,

retirando conclusões importantes sobre a presença feminina em ambientes produtivos

590

onde a razão substantiva é predominante, ou até desfazer uma suposição de que haja

alguma relação entre as duas classes de fenômenos.

Todas as questões acima levantadas sugerem pesquisas em organizações substantivas. No

fundo, todas estas questões relacionam-se à perspectiva geral da emancipação humana no

trabalho, através do tema da racionalidade organizacional. Conhecer cada vez mais como

se concretiza razão substantiva nas organizações, quais são suas condições facilitadoras e

também as restritivas, em vários ramos de atividade, diversos cenários organizacionais e

situações específicas, pode significar conhecer, cada vez mais, como implementar

práticas emancipatórias face aos desafios e dificuldades do nosso tempo.

Resta-nos fazer referência a uma questão que nos sentimos no dever de colocar. O

sentimento do dever vem em função da insistência que tem marcado a reapresentação

dessa questão. Não se trata de uma questão nossa, ao contrário, ela sempre nos é remetida

por outrem. Queremos dizer que, desde o início desta pesquisa, isto é, há 5 anos atrás, que

várias pessoas, no Brasil e no exterior, nos têm insistentemente dirigido a mesma questão,

a saber:

— “As organizações substantivas se multiplicarão a

ponto de ser a forma organizacional preponderante no

futuro ? Seriam elas uma das realidades atingidas após as

insolúveis crises do capitalismo tardio ?”;

591

Alguns dos meus interlocutores, notadamente os membros do meio acadêmico, foram

mais sofisticados na elaboração da mesma pergunta:

— “Na ocorrência de uma realidade futura onde se

observe a preponderância das organizações substantivas,

isto significaria uma espécie de ‘retorno’, contudo um

‘retorno’ adequado à era pósmoderna, às economias

anteriores que foram analisadas por Polanyi, Godelier e

outros ?”

Evidentemente, são expressões de uma mesma questão que é provocadora, instigante.

Entretanto, repetimos, não é uma questão que nós formulamos. Sinceramente, não o

faríamos. O modesto estudo aqui apresentado não nos dá condições de respondê-la. Quem

sabe, a continuidade dos estudos poderá lançar alguma luz sobre esta provocadora

questão. Mas, é no irrefreável movimento da história em que devemos confiar para nos

dar a resposta demandada.

Este modesto trabalho é um esforço que se quer juntar a milhares de outros, em prol da

emancipação do homem, a qual implica várias ordens de “humanização”: dentre outras, a

humanização do mundo social, do mundo do trabalho, das organizações e, por

consequência, a humanização da ciência das organizações.

592

Iniciamos estas Conclusões afirmando que a trajetória delineada na Introdução atingia o

seu final. Curiosamente, acabamos diante de um cruzamento de várias estradas, novas

opções para continuidade da marcha.

As vozes do “senso comum”, ou do “mundo da vida”, costumam dizer que “a arte imita a

vida”, por isso “a arte é viva”. Também dizem que “viver é uma arte”, falam da “arte de

viver”. Quem nos dera, um dia, ouvir as vozes da sabedoria popular dizerem que “viver é

uma ciência” e, falarem da “ciência de viver”. Mas, para isso será preciso que a ciência

adquira vida, ou seja, que a ciência humanize-se. Para tanto, aqueles cientistas que

pensam ser a vida uma estrada reta, teriam, sobretudo, de aprender que, pela arte ser viva,

o poeta é quem tem, a razão:

“Dentro de cada um,

tem mais mistérios

do que pensa o outro;

Tem esta mágica

o dia nasce todo dia,

resta uma dúvida

o sol só vem de vez em quando;

O certo é incerto,

o certo é uma estrada reta ?

de vez em quando, acerto.”

593

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