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023.4 r -;::""" " C) 1 ).../ 13: '. '~ncias RECEI~ DE BIBLIOTECÁRIO Edson Nery da Fonseca * Parafraseando a ''Receita de Mulher" de Vinicius de Moraes, define-se o perfil ideal do bibliotecário nos tempos atu- ais Justificação Em vez do artigo tecnico solicitado por esta nova revis- ta, preferi apresentar minha receita de bibliotecário, assim como Viní- cius de Moraes escreveu sua Receita de Mulher (1) e o poeta português Reynaldo Ferreira a Receita para fazer um Heroi (2). Como, infelizmente, não sou poeta, apresento esta recei- ta não em versos, mas em prosa: uma prosa cuja única virtude será a de não ser perpretada inconscientemente, como a do conhecido personagem de Que os bibliotecários mais jovens continuem dissertan do sobre processos tecnicos, deixando aos mais velhos a elaboração que só a idade enseja - do que pode ser considerado como uma filosofia ou - se a palavra parecer pretensiosa uma teorização da biblioteconomia. Sem teoria, a1íás, qualquer tecnica deixa de ter sentmo, como demonstrou Ortega y Gasset em Meditación de latecnica. Esta recei- ta de bibliotecário pretende ser modesta contribuição a uma possível me ta-bi1ioteconomia, já que, segundo Jean Guitton, "entramos numa epo c a * Professor Titular da Universidade de Brasí1ia. Diretor da Ftculdade de Estudos Sociais Aplicados Cad. Biblioteeon., Reci6e, (1): 3-10, jul. 1973 -3

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Page 1: rem que as últimas questoes nao sao somente físicas,sociais ou políticas, mas metapolíticas, metafísicas, meta-estratégicas" (3). Receita Começo logo p~rafraseando Vinícius

023.4 r-;::""""C) 1 ).../13: '. '~ncias

RECEI~ DE BIBLIOTECÁRIO

Edson Nery da Fonseca *

Parafraseando a ''Receita de Mulher" deVinicius de Moraes, define-se o perfilideal do bibliotecário nos tempos atu-ais

Justificação

Em vez do artigo tecnico solicitado por esta nova revis-

ta, preferi apresentar minha receita de bibliotecário, assim como Viní-

cius de Moraes escreveu sua Receita de Mulher (1) e o poeta português

Reynaldo Ferreira a Receita para fazer um Heroi (2).

Como, infelizmente, não sou poeta, apresento esta recei-

ta não em versos, mas em prosa: uma prosa cuja única virtude será a de

não ser perpretada inconscientemente, como a do conhecido personagem de

Que os bibliotecários mais jovens continuem dissertan do

sobre processos tecnicos, deixando aos mais velhos a elaboração que

só a idade enseja - do que pode ser considerado como uma filosofia ou -

se a palavra parecer pretensiosa uma teorização da biblioteconomia.

Sem teoria, a1íás, qualquer tecnica deixa de ter sentmo,

como demonstrou Ortega y Gasset em Meditación de latecnica. Esta recei-

ta de bibliotecário pretende ser modesta contribuição a uma possível me

ta-bi1ioteconomia, já que, segundo Jean Guitton, "entramos numa epo c a

* Professor Titular da Universidade de Brasí1ia. Diretor da Ftculdade deEstudos Sociais Aplicados

Cad. Biblioteeon., Reci6e, (1): 3-10, jul. 1973

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em que as últimas questoes nao sao somente físicas,sociais ou políticas,mas metapolíticas, metafísicas, meta-estratégicas" (3).

Receita

Começo logo p~rafraseando Vinícius de Moraes, cuja Re -

ceita de Mulher assim se inicia: "As muito feias que me perdoem, mas b~

leza é fundamental". Os bibliotecários mais ignorantes que me perdoem,

mas cultura é fundamental.

Estarei sendo, com esta declaração inicial, derrotista

ou desestimulador? Creio que não, porque a ausência de cultura, ao con-

trário da falta de inteligência, pode ser preenchida em qualquer idade,

tanto nos cursos regulares como autodidaticamente.

Tome-se, portanto, uma pessoa culta e acrescente-se a es

sa cultura noções de organização e administração, em geral, e de servi-

ços de biblioteca e de documentação, em particular. Para evitar os habi

tuais malentendidos, devo logo esclarecer o que entendo por serviços de

biblioteca e de documentação: compete ao primeiro reunir, organizar e

difundir documentos de qualquer natureza, cabendo ao segundo resumir,c~

dificar, traduzir e/ou reproduzir as informações contidas em documentos

textuais.

Acrescentem-se às noçoes supra indicadas o conhecimento

Cad. Riblioteeon., Reei6e, (1): 3-10, jut. 1973

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da história do livro, a teoria e a prática da bibliografia, a utiliza-

ção das obras de referência e as táticas de relacionamento com os lei-

tores. Um pouco de introdução ã engenharia de sis.temas e ao processa -

mento de dados é útil para que o bibliotecário pão se deixe iludir pe-

los cantois de sereia dos vendedores de equipamentos mecânicos e eletrô

nicos.

Exija-se do bibliotecário que ele tenha, tSrnto nos coube

cimentos gerais como nos profissionais, simpatia pessoal por uma das

ciências, das letras ou das artes, bem como por um dos vários ramos em

que se subdividiu a biblioteconomia: administração, classificação, cat~

logação, mecanização de processos, bibliografia, serviços informativos,

etc. ,~ certo que as bibliotecas gerais continuarão coexistin-

do com as especializadas, pois nem só de especializações vivem os hanens.

Mas, tanto quanto as especializadas, as bibliotecas gerais necessi ta m

de bibliotecários capacitados ao atendimento eficiente de leitores dos

mais diferentes níveis culturais e dos mais variados biotipos. Especi-

alizados, portanto. O bibliotecário geral é hoje uma utopia pretensiosa.

Dentro da biblioteconomia, as especializações se impõem

pela diferente natureza dos serviços oferecidos pelas bibliotecas. Tais

serviços devem ser escolhidos de acordo com o temperamento de cada um.

Os apolíneos fiquem nos processos técnicos e administrativos~ deixando

Cad. Riblioteeon., Reci6e, (1): 3-10, jat. 1973

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gência mínima, duas revistas profissionais.

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os serviços informativos para os dionisíacos (4). Assim como no ceu, se

gundo a promessa de Cristo, "há muitas moradas", na biblioteca - perdoai

a comparação - há lugar para todos os temperamentos.

Estabelecidas as condições básicas supra indicadas, esc~

lhido o tipo de biblioteca nacional, pública, universitária, especia-

lizada, escolar, infantil, etc. - e a natureza do serviço - administra-

tivo, técnico ou informativo - deve o bibliotecário estar permanenteme~

te atualizado em relação ao que se passa no mundo, no seu país e no cam

po de sua atividade profis~ional.

Para isso é indispensável a leitura das publicações peri

ódicas. Ler pelo menos dois jornais por dia - um local e outro nacional-

dois semanários - um nacional e outro estrangeiro - e, também, como exi

A escolha dessas publicações depende, naturalmente, de

circunstâncias locais e de preferências pessoais. Deixando os órgãos 10

ca~s a critério de cada um, indicarei o Jornal do Brásil como o de ca-

rater nacional ma~s acentuado (há quem prefira O Estado de são Paulo);

dentre os semanários nacionais, Veja tornou-se, indiscutivelmente, o

mais completo e menos frívolo; quanto aos estrangeiros a escolha é mais

ampla: Time (já ultrapassado, para alguns, por Newsweek) , L'Express ou

The Economist, conforme a americanofilia, francofilia ou anglofilia de

cada um.

Ca.d. &büotec.oYl.., Reune, (1): 3-10, jui.. 1973

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A leitura quinzenal de Library Journal e a bimestral do

Boletin de la UNESCO para las Bibliotecas e o mínimo que podemos exi-

gir para uma atualização profissional permanente. De acordo com o tipo

de biblioteca e a natureza do serviço, a consulta regular de outras re-

vistas especializadas e indispensável. Para o bibliotecário de referên-

cia, por exemplo, ó Wilson Libráry Bulletin -e essencial, pelas recen-

soes mensais de obras de referência recentes.

Não.se concebe num bibliotecário o que ê igualmente ina~

missível em qualquer pessoa culta, isto e, que não esteja sempre lendo

um livro. ~ aconselhável alternar a leitura de obras recentes de biblio

teconomia com as de ciências, letras ou artes, segundo a inclinação.pe.!

soal de cada um. Os que não possuem cursos sistemáticos numa das referi

das áreas, podem guiar-se pelas inúmeras listas dos livros fundamentais,

como, por exemplo, The teader's adviSer (5), ClaSsicS ofthe WeStern

Wótld (6), Que tire (7), Lá bibliotheque de.!.'hónriêtehonnne (8), La bi-

.-bliotheque ideale (9)~ Thé wórld'.! best bóoks (10), Pour'~ biblióthe-

que ideale (11), The readet'.! guide (12) e outras.

Dizem que o bibliotecário e aquele que conhece todos os

livros, sem ter lido nenhum. A biblioteconomia e, sobretudo, a biblio -

grafia, obrigam» de fato, a esse conhecimento de autores, títulos e edi

tores. sem o dos respectivos conteúdos, assim como os que não sabem na-

dar rondam as p~sc~nas ou o oceano, sem ousar o mergulho.

Cad, &.bUotecon., Reu6e, (1): 3-10, jut. 1913

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Que o bibliotecário leia muito, mas, como Vinícius d e

Moraes prescreveu em sua receita "um mínimo de produtos farmaceuticos",

eu imploro um mínimo de citações bib1iofílicas. A Misiôn del Bibliotecã-

rio, de Ortega y Gasset - leitura essencial! (13) - dispensa qualquer

frase em louvor da biblioteca e do bibliotecário. ~ o que de mais pro-

fundo se escreveu ate hoje sobre o assunto.

Cinema ou teatro pelo menos uma vez por semana, exposi -- ~ .çoes ou concertos no m1n1mo uma vez por mes, asseio pessoal, cabe1osp~n

teados, roupas e sapatos sempre limpos. Concluindo esta receita com ou-

tra paráfrase de Vinícius de Moraes, direi que o bibliotecário deve ser,

em princípio, inteligente, mas, em caso contrário, "que tenha a atitude

mental dos altos píncaros".

REFERtNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. MORAES, Vinícius de. Receita de mulher. In: - Antologia poetica.

3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1960, p.232-

234.

2. FERRE IRA , Reinaldo. Receita para fazer um heroi. In: - Poemas.3. ed. Lisboa, Portugália, 1970, p. 21.

3. GUITTON, Jean. Guerra e suicídio. Jornal do Brasil (Rio de Janei

ro) 24 dez. 1972, Caderno Especial, p. 5 (traduzido dá ReVlie

de nefense Nationale.

Cad, Bibliot.e.c.on.# Re.u6e., (1): 3-10, jui.. 1973

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-!.BlB"LIOTECA -} P4~'~<:c'~c,c- .~~r ...~~':;'IJj

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4. "ApolIneo " e ''Dionisíaco''(ou Fãustico) são caracterizações mais

ou menos correspondentes a "introvertido" e "extrovertido", co~

forme Ruth Benedict em sua conhecida obra Pattern of cu1ture

(New York, Houghton Miff1in, 1934).

5. HOFFMAN, Hester R. The reader's adviser. 10. ed. rev. and en1.

New York, R. R. Bowker, 1964. xxii, 1.292 p. (1. ed.: 1921~

com o título The bookman's manual).-- --~-

6. AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION. C1assics of the Western wor1d.

Chicago, 1927. 128 p. (3. ed., 1943).

7. CAPART, Jean. ~ 1ire? Antho1ogie ~'appreciations des méilleurs

livres des 1itteratures anClennes et modernes. Bruxelles, Vro

mant, 1945. 2 v.

8. WIGNY, Pierre. La bib1iotheque de l'honnête homme. 2. ed. Bru

xe11es, Ad. Goemaere; Paris, Presses Universitaires de France,

1949. 675 p. (1. ed., 1945).

9. La bib1iotheque ideale. Paris, ~ditions UniLANNOYE, Char1es.

versitaires, 1950. xvi, 236 p. (2. ed. mlse à jour: Paris,

1951). Com o mesmo título, existe uma obra de Franz Weyergans

(Paris, ~ditions Universitaires, 1957).

10. The wor1d'~ best books, Homer to Hemingway.DICKINSON, Asa Don.

New York, H. W. Wilson, 1953. 484 p.

Ca.d. &büote.c.ot1.., Re.u6e., (1): 3-10, jlLf... 1973

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11. QUENEAU, Raymond, Pour ~ bibliotheque ideale. 4. ed •. Pa-

-10

ris, Gallimard, 1956. 318 p.

12. WlLLlAMS, William E., ed. The reader'~ guide. Lond on , Pengu in,

1960. 351 p.

13. ORTEGA Y GASSET, Jose. Misiôn del bibliotecário. ln: - Obras

completas. 2. ed. Madrid, Revista de Occidente, 1951. t. V,

p. 229 e segs. Outras edições: Misiôn del bibliotecário Xotros ensayos afines. Madrid, Revista de Occidente, 1962,

(2. ed., 1967) (Colecciôn El Arquero). El libro de Ias misio-

nes. 5. ed. Buenos Aires, Espasa-Calpe Argentina, 1950.

p. 11-50 (Co1ecciôn Austral, 101)

Cada B~blioteeo»., Re~6e, (7): 3-70, jut. 7973