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Ressurreição

Machado de Assis

Conteúdo exportado da wiki Wikisource em 7 de outubro de 2021

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Advertência da nova ediçãoAdvertência da primeira ediçãoCapítulo I: No dia de ano bomCapítulo II: Liquidação do ano velhoCapítulo III: Ao som da valsaCapítulo IV: PrelúdioCapítulo V: FicoCapítulo VI: DeclaraçãoCapítulo VII: O gavião e a pombaCapítulo VIII: QuedaCapítulo IX: LutaCapítulo X: A enfermaCapítulo XI: O passadoCapítulo XII: Um ponto negroCapítulo XIII: CriseCapítulo XIV: Ou "capítulo do acaso"Capítulo XV: "Enfant terrible"Capítulo XVI: RaquelCapítulo XVII: SacrifícioCapítulo XVIII: RenovaçãoCapítulo XIX: A porta do céuCapítulo XX: Uma voz misteriosaCapítulo XXI: Último golpeCapítulo XXII: A cartaCapítulo XXIII: AdeusCapítulo XXIV: Hoje

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Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitosanos. Dado em nova edição, não lhe altero a composiçãonem o estilo, apenas troco dois ou três vocábulos, e faço taisou quais correções de ortografia. Como outros que vieramdepois, e alguns contos e novelas de então, pertence àprimeira fase da minha vida literária.

M. DE A.

1905.

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Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo oque pensará dele o leitor. A benevolência com que foirecebido um volume de contos e novelas, que há dois anospubliquei, me animou a escrevê-lo. É um ensaio. Vaidespretensiosamente às mãos da crítica e do público, que otratarão com a justiça que merecer.

A crítica desconfia sempre da modéstia dos prólogos, e temrazão. Geralmente são arrebiques de dama elegante, que sevê ou se crê bonita, e quer assim realçar as graças naturais.Eu fujo e benzo-me três vezes quando encaro alguns dessesprefácios contritos e singelos, que trazem os olhos no pó dasua humildade, e o coração nos píncaros da sua ambição.Quem só lhes vê os olhos, e lhes diz verdade que amargue,arrisca-se a descair no conceito do autor, sem embargo dahumildade que ele mesmo confessou, e da justiça que pediu.

Ora pois, eu atrevo-me a dizer à boa e sisuda crítica, queeste prólogo não se parece com esses prólogos. Venhoapresentar-lhe um ensaio em gênero novo para mim, edesejo saber se alguma qualidade me chama para ele, ou setodas me faltam, — em cujo caso, como em outro campo játenho trabalhado com alguma aprovação, a ele volvereicuidados e esforços. O que eu peço à crítica vem a ser —intenção benévola, mas expressão franca e justa. Aplausos,quando os não fundamenta o mérito, afagam certamente oespírito e dão algum verniz de celebridade; mas quem tem

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vontade de aprender e quer fazer alguma coisa, prefere alição que melhora ao ruído que lisonjeia.

No extremo verdor dos anos presumimos muito de nós, enada, ou quase nada, nos parece escabroso ou impossível.Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanhaconfiança, deixando-nos apenas a que é indispensável atodo o homem, e dissipando a outra, a confiança pérfida ecega. Com o tempo, adquire a reflexão o seu império, e euincluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espíritofica em perpétua infância.

Dá-se então o contrário do que era dantes. Quanto maisversamos os modelos, penetramos as leis do gosto e da arte,compreendemos a extensão da responsabilidade, tanto maisse nos acanham as mãos e o espírito, posto que isso mesmonos esperte a ambição, não já presunçosa, senão refletida.Esta não é talvez a lei dos gênios, a quem a natureza deu opoder quase inconsciente das supremas audácias; mas é,penso eu, a lei das aptidões médias, a regra geral dasinteligências mínimas.

Eu cheguei já a esse tempo. Grato às afáveis palavras comque juízes benévolos me têm animado, nem por isso deixode hesitar, e muito. Cada dia que passa me faz conhecermelhor o agro destas tarefas literárias, — nobres econsoladoras, é certo, — mas difíceis quando as perfaz aconsciência.

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Minha idéia ao escrever este livro foi pôr em ação aquelepensamento de Shakespeare:

Our doubts are traitors,And make us lose the good we oft might win,By fearing to attempt.

Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço deuma situação e o contraste de dois caracteres; com essessimples elementos busquei o interesse do livro. A críticadecidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se ooperário tem jeito para ela.

É o que lhe peço com o coração nas mãos.

M. A.

1872.

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Naquele dia, — já lá vão dez anos! — o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janela e cumprimentou o sol. O dia estavaesplêndido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar umpouco os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhasbrancas, finas e transparentes se destacavam no azul do céu.Chilreavam na chácara vizinha à casa do doutor algumasaves afeitas à vida semi-urbana, semi-silvestre que lhespode oferecer uma chácara nas Laranjeiras. Parecia quetoda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aquelespara quem a idade já desfez o viço dos primeiros tempos,não se terão esquecido do fervor com que esse dia ésaudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parecemelhor e mais belo, — fruto da nossa ilusão, — e alegrescom vermos o ano que desponta, não reparamos que ele étambém um passo para a morte.

Teria esta última idéia entrado no espírito de Félix, aocontemplar a magnificência do céu e os esplendores da luz?Certo é que uma nuvem ligeira pareceu toldar-lhe a fronte.Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo tempoimóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ourevolvesse o passado. Depois, fez um gesto de tédio, eparecendo envergonhado de se ter entregue à contemplaçãointerior de alguma quimera, desceu rapidamente à prosa,acendeu um charuto, e esperou tranqüilamente a hora doalmoço.

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Félix entrava então nos seus trinta e seis anos, idade em quemuitos já são pais de família, e alguns homens de Estado.Aquele era apenas um rapaz vadio e desambicioso. A suavida tinha sido uma singular mistura de elegia e melodrama;passara os primeiros anos da mocidade a suspirar por coisasfugitivas, e na ocasião em que parecia esquecido de Deus edos homens, caiu-lhe nas mãos uma inesperada herança,que o levantou da pobreza. Só a Providência possui osegredo de não aborrecer com esses lances tão estafados noteatro.

Félix conhecera o trabalho no tempo em que precisava delepara viver; mas desde que alcançou os meios de não pensarno dia seguinte, entregou-se corpo e alma à serenidade dorepouso. Mas entenda-se que não era esse repouso aquelaexistência apática e vegetativa dos ânimos indolentes; era,se assim me posso exprimir, um repouso ativo, composto detoda a espécie de ocupações elegantes e intelectuais que umhomem na posição dele podia ter.

Não direi que fosse bonito, na significação mais ampla dapalavra; mas tinha as feições corretas, a presença simpática,e reunia à graça natural a apurada elegância com que vestia.A cor do rosto era um tanto pálida, a pele lisa e fina. Afisionomia era plácida e indiferente, mal alumiada por umolhar de ordinário frio, e não poucas vezes morto.

Do seu caráter e espírito melhor se conhecerá lendo estaspáginas, e acompanhando o herói por entre as peripécias da

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singelíssima ação que empreendo narrar. Não se trata aquide um caráter inteiriço, nem de um espírito lógico e igual asi mesmo; tratase de um homem complexo, incoerente ecaprichoso, em quem se reuniam opostos elementos,qualidades exclusivas e defeitos inconciliáveis.

Duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem umsó rosto, eram todavia diversas entre si, uma natural eespontânea, outra calculada e sistemática. Ambas, porém, semesclavam de modo que era difícil discriminá-las e defini-las. Naquele homem feito de sinceridade e afetação tudo seconfundia e baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo,costumava compará-la ao escudo de Aquiles — mescla deestanho e ouro, — "muito menos sólido", acrescentava ele.Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o o nosso herói paraocaso de seus velhos amores. Não eram velhos; tinhamapenas seis meses de idade. E contudo iam acabar semsaudade nem pena, não só porque já lhe pesavam, comotambém porque Félix lera pouco antes um livro de HenriMurger, em que achara um personagem com o sestro destascatástrofes prematuras. A dama dos seus pensamentos,como diria um poeta, recebia assim um golpe moral eliterário.

Havia meia hora já que o doutor saíra da janela, quando lheapareceu uma visita. Era um homem de quarenta anos,vestido com certo apuro, gesto ao mesmo tempo familiar egrave, estouvado e discreto.

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— Entre, Sr. Viana, disse Félix quando o viu aparecer àporta da sala. Vem almoçar comigo, já sei.

— Esse é um dos três motivos da minha visita, respondeuViana; mas afirmo-lhe que é o último.

— Qual é o primeiro?

— O primeiro, disse o recém-chegado, é dar-lhe ocumprimento de bons anos. Folgo que lhe corra este tãofeliz como o passado. O segundo motivo é entregar-lhe umacarta do coronel.

Viana tirou uma cartinha da algibeira e entregou-a aodoutor, que a leu rapidamente.

— Creio que é um convite para o sarau de hoje? perguntouViana quando o viu dobrar a carta.

— É; transtorna-me um pouco, porque eu tencionava ir paraa Tijuca.

— Não caia nessa, acudiu Viana; eu era capaz de deixartodas as viagens do mundo só para não perder uma reuniãodo coronel; é um excelente homem, e dá boas festas. Vai?

Félix hesitou algum tempo.

— Olhe que eu venho incumbido de lhe destruir todas asobjeções que fizer, disse Viana.

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— Não faço nenhuma. O convite transtorna-me o programa;mas, apesar disso, aceito.

— Ainda bem!

Um moleque veio dar parte de que o almoço estava namesa. Viana descalçou as luvas e acompanhou o anfitrião.

— Que novidades há? perguntou Félix sentando-se à mesa.

— Nada que me conste, respondeu Viana imitando o donoda casa; o Rio de Janeiro vai a pior.

— Sim?

— É verdade; já não aparece um escândalo. Vivemos emcompleta abstinência, e chegou o reinado da virtude. Olhe,eu sinto a nostalgia da imoralidade.

Viana era um homem essencialmente pacato com a maniade parecer libertino, mania que lhe resultava da freqüênciade alguns rapazes. Era casto por princípio e temperamento.Tinha a libertinagem do espírito, não a das ações. Fazia oseu epigrama contra as reputações duvidosas, mas não eracapaz de perder nenhuma. E, todavia, teria um secretoprazer se o acusassem de algum delito amoroso, e nãodefenderia com extremo calor a sua inocência, contradiçãoque parece algum tanto absurda, mas que era natural.

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Como Félix não lhe animasse a conversa no terreno em queele a pôs, Viana entrou a elogiar-lhe os vinhos.

— Onde acha o senhor vinhos tão bons? perguntou depoisde esvaziar um cálice.

— Na minha algibeira.

— Tem razão; o dinheiro compra tudo, inclusive os bonsvinhos.

A resposta de Félix foi um sorriso ambíguo, que podia serbenevolente ou malévolo, mas que pareceu não produzirimpressão no hóspede. Viana era um parasita consumado,cujo estômago tinha mais capacidade que preconceitos,menos sensibilidade que disposições. Não se suponha,porém, que a pobreza o obrigasse ao ofício; possuía algumacoisa que herdara da mãe, e conservara religiosamenteintacto, tendo até então vivido do rendimento de umemprego de que pedira demissão por motivo de dissidênciacom o seu chefe. Mas estes contrastes entre a fortuna e ocaráter não são raros. Viana era um exemplo disso. Nasceuparasita como outros nascem anões. Era parasita por direitodivino.

Não me parece provável que houvesse lido Sá de Miranda;todavia, punha em prática aquela máxima de umpersonagem do poeta: "boa cara, bom barrete e boaspalavras, custam pouco e valem muito..."

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Chamando-lhe parasita não aludo só à circunstância deexercer a vocação gastronômica nas casas alheias. Viana eratambém o parasita da consideração e da amizade, o intrusopolido e alegre, que, à força de arte e obstinação, conseguiatornar-se aceitável e querido, onde a princípio era recebidocom tédio e frieza, um desses homens metediços edobradiços que vão a toda a parte e conhecem todas aspessoas, "boa cara, bom barrete, boas palavras".

Parecendo-lhe que Félix estaria preocupado, Vianaentendeu não dizer palavra antes de achar ocasião oportuna.Veio o café, e o primeiro que rompeu o silêncio foi odoutor. Viana aproveitou habilmente o ensejo para reatar ofio dos louvores, tão asperamente quebrado pelo dono dacasa. Não lhe elogiou desta vez os vinhos, mas asqualidades pessoais; afirmou-lhe que ninguém era maisquerido na casa do Coronel Morais, e que ele próprio não serecordava de pessoa a quem mais estimasse neste mundo.

— O senhor é tão feliz a este respeito, terminou o hóspede,que até as pessoas que o não vêem há muito conservam emtoda a integridade o afeto que o senhor lhes inspirou.Adivinha de quem lhe falo?

— Não.

— Bem, sabê-lo-á de noite; lá verá em casa do coronel umapessoa que o admira, e que o não vê há muito. Sejamosfrancos; é minha irmã Lívia.

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— Admira-me isso, porque eu apenas a vi duas vezes.

— Não é possível, insistiu Viana. Lembra-me que eumesmo os apresentei um ao outro. Se não me engano foi emdia da Glória, há dois anos...

— Eu descia o outeiro, continuou Félix, quando osencontrei. Estivemos parados cinco minutos. À noiteencontramo-nos em um baile; cumprimentamo-nos apenas enada mais.

— Só isso?

— Nada mais.

— Nesse caso, concluiu Viana, cuido que o senhor possui osegredo de fascinar as moças, só com cinco minutos deconversa e um cumprimento de sala. Minha irmã fala muitono senhor; pelo menos depois que veio de Minas...

— Ah! ela esteve em Minas?

— Foi para lá há perto de dois anos, depois que lhe morreuo marido. Veio há oito dias; sabe o que me propõe?

— Não.

— Uma viagem à Europa.

— E vão?

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— Os desejos de Lívia são ordens para mim. Contudo eratalvez melhor que eu fosse só, porque uma senhora ésempre obstáculo aos desmandos de um pecador como eu.Não lhe parece?

— É então uma viagem de recreio? perguntou Félix.

— Ou de romance; Lívia tem esse defeito capital: éromanesca. Traz a cabeça cheia de caraminholas, frutonaturalmente da solidão em que viveu nestes dois anos edos livros que há de ter lido. Faz pena porque é boa alma.— Vejo que tem todas as condições necessárias a um poeta,observou o doutor; lembra-me que era bonita.

— Oh! a esse respeito a viuvez foi para ela uma renovação.Era bonita quando o senhor a viu; hoje está fascinante. Háocasiões em que eu sinto ser irmão dela; tenho ímpetos de aadorar de joelhos. Com franqueza, assusta-me.

Leve sorriso encrespou os lábios de Félix, enquanto Vianaprosseguia o panegírico da irmã, com um entusiasmo quepodia ser sincero e interessado ao mesmo tempo. Ao fim deum quarto de hora levantou-se este para sair.

— Até à noite? disse, apertando a mão do dono da casa.

— Até à noite.

Félix ficou só.

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— Que mulher será essa, perguntou a si mesmo, tão belaque mete medo, tão fantasiosa que causa lástima?

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Meia hora depois apeava-se Félix de um tílburi à porta deuma casa no Rocio. Subiu lentamente as escadas; a porta dofundo estava aberta; Félix deu uma volta pelo interior dacasa, e foi até à sala, sem que o sentisse uma moça, queestava assentada perto da janela, com o rosto voltado para arua.

— Cecília! disse ele.

A moça estremeceu e voltou-se.

— Ah! és tu. Tão tarde!

Félix aproximou-se, deu-lhe um beijo, e tirou-lhe o livro damão.

— Tarde? disse ele folheando o livro; não pôde ser maiscedo; tive visitas em casa.

A moça contentou-se com a resposta; levantou-se e pondo-lhe os braços à roda do pescoço, perguntou:

— Jantas hoje com alguém?

— Janto lá em casa.

— Lá em casa? repetiu ela; e por que não cá em casa?

— Não posso.

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— Tens visitas?

— Não.

— Jantas só?

— Janto.

— Preferes isso à minha companhia? murmurou enfim amoça com voz triste.

— Cecília, respondeu Félix dando à voz toda a doçuracompatível com a rigidez da sua resolução, hácircunstâncias que me obrigam a não jantar cá nem hojenem nunca.

Cecília empalideceu. Félix procurou tranqüilizá-la dizendoque ia explicar-se melhor. Insensível às suas palavras, foiela sentar-se no sofá e aí permaneceu alguns instantessilenciosa. Félix deu alguns passos na sala, aspirou as floresque tinham sido postas numa jarra, naquele mesmo dia,talvez para recebê-lo melhor; acendeu um charuto, e foisentar-se em frente de Cecília. A moça fitou nele os olhosúmidos de lágrimas. Depois, como se os lábios tivessemmedo de romper uma cratera à chama interior, murmurouestas palavras:

— E por que nunca mais?

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— Cecília, disse o doutor deitando fora o charuto apenasencetado, eu tenho a infelicidade de não compreender afelicidade. Sou um coração defeituoso, um espírito vesgo,uma alma insípida, incapaz de fidelidade, incapaz deconstância. O amor para mim é o idílio de um semestre, umcurto episódio sem chamas nem lágrimas. Há seis mesesque nos amamos; por que perderás tu o dia em que começao ano novo, se podes também começar uma vida nova?

Cecília não respondeu; fitava nele os olhos, que, se eramternos e buliçosos nas horas de alegria, eram naquelemomento sombrios e profundos. Félix pegou-lhe na mão.Estava fria

— Não fiques abatida; o que faço agora não é novidade;ouviste-me dizer muita vez que a nossa afeição era umcapítulo curto. Rias então de mim; fazias mal, porque eraalimentar uma esperança vã.

— Era, interrompeu Cecília com voz trêmula; reconheçoagora que era. Esperava, com efeito, que eu pudesse, com aminha constância, resgatar os erros que me pesavam naconsciência. Agarrei-me a ti como a uma tábua de salvação;a tábua não compreendeu que salvaria uma vida e deixa-selevar pela onda que a arrebata das minhas mãos. Enganei-me. Não te faço recriminações; espero que me farásjustiça...

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— Faço-te toda a justiça, redargüiu ele; acuso-me eumesmo de estar abaixo do papel de redentor.

Cecília não prestou atenção ao tom irônico destas palavras,nem sequer as ouviu. Levantou-se, deu alguns passos,encostou-se ao piano e pondo a cabeça entre as mãossoluçou à vontade. Mas essa explosão foi quase silenciosa edurou pouco.

Meia hora depois despedia-se Félix de Cecília, declarando-lhe que saía dali como um gentleman, e que ela receberia osmeios necessários para viver até que o esquecesse de todo.

Cecília recusou esse ato de generosidade. Espantou-oimensamente tamanho desinteresse; concluiu que ela teriaalgum amor em perspectiva.

Saiu.

Na Rua do Ouvidor encontrou o Doutor Meneses, jovemadvogado com quem entretinha relações.

— Vem jantar comigo, disse.

— Não jantas com Cecília?

— Acabei o capítulo; Cecília está livre.

— Houve choro?

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— O choro pertence ao cerimonial da separação. Eraindispensável. Cecília verteu algumas lágrimas, que euprocurei enxugar, prometendo-lhe os meios de viver algumtempo. Recusou; mas eu não lhe aceito a recusa.

— Fizeste mal em separar-te dela; Cecília amava-te.

— Meneses, disse Félix, eu nunca faço mal quando quebrouma cadeia: liberto-me.

— Talvez tenhas razão...

— Mas vem jantar comigo, continuou Félix, dando-lhe obraço.

— Não posso, vou jantar com minha mãe.

— Ah!

— São apenas duas horas; passearei contigo até às três. Ouvais para casa?

— Não.

Deram o braço e desceram a rua.

— Se não é indiscrição, Félix, disse Meneses ao cabo dealguns minutos, houve algum arrufo sério entre vocês?

— Não.

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— Desconfiavas dela?

— Também não.

— Nem te arrufaste, nem tinhas desconfiança. Sei que elagostava de ti, e tu mesmo me afirmaste que não eranenhuma desperdiçada. Havia portanto um milheiro derazões para que vocês prosseguissem neste romance. Dar-se-á que tenhas em vista algum casamento?

Félix riu-se e levantou os ombros.

— Então, não compreendo, concluiu Meneses.

— Eu te digo, respondeu Félix; os meus amores são todossemestrais; duram mais que as rosas, duram duas estações.Para o meu coração um ano é a eternidade. Não há ternuraque vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amorprepara as malas e deixa o coração como um viajante deixao hotel; entra depois o aborrecimento — mau hóspede.

Menezes ouviu as palavras de Félix com os olhos postos nochão; sorriu ligeiramente quando ele acabou.

— Queres ouvir uma coisa? perguntou.

— Dize.

— O teu cinismo parece-me hipocrisia

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— Não é hipocrisia nem cinismo; é temperamento.

— Não creio.

— Por quê?

Meneses não respondeu.

— Quase me arrependo de ser teu amigo, disse ele depoisde algum tempo.

— És meu amigo? perguntou Félix com ar de mofa.

Meneses parou e encarou o companheiro.

— Duvidas?

— Não duvido; mas ignorava isso até agora; sabes que asnossas relações datam de pouco tempo.

— Que importa o tempo? Há amigos de oito dias eindiferentes de oito anos.

— Há.

A conversa tomou outra direção. Meneses ainda tentou falarda moça, mas Félix não lhe prestou atenção. Às 3 horassepararam-se, Félix para as Laranjeiras, Meneses para oRocio.

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Meneses era uma boa alma, compassiva e generosa. Tinhaem flor todas as ilusões da juventude; era entusiasta esincero; estava totalmente limpo da menor eiva de cálculo.Podia ser que com os anos perdesse algumas das suasqualidades nativas, que nem todos resistem a estes doisterríveis dissolventes: os lances da fortuna e o atrito doscaracteres. Mas naquele tempo ainda não era assim.

A situação de Cecília tinha-o comovido. Resolveu ir tercom ela.

Cecília ficara resignada, mas triste. Quando Meneses entrouna sala estava ela ao piano, tinha apoiada a cabeça em umadas mãos, e corria os dedos pelo teclado. Contou-lhe tudo oque se passara; confessou que não esperava a súbitamudança de Félix; que a sua dor fora imensa, e que dariatudo para fazer reviver o recente passado; mas que nãonutria nenhuma esperança de reconciliação.

— E se eu tentar fazer alguma coisa?

— Tentará em vão, respondeu ela. Além de que, eu nãotenho nenhum direito de prolongar uma felicidadeincompatível com a vontade dele. Errei, confiando demais;errarei se tiver ainda uma esperança...

— Quem sabe, Cecília? disse o moço, pondo-lhe a mão noombro; é possível que Félix tenha cedido a um capricho.Virá a arrepender-se depois, mas o seu orgulho não lhe

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deixará dar o primeiro passo. Nesse caso uma pessoainfluente pode convencê-lo de que a primeira glória é areparação dos erros.

Cecília levantou os ombros; foi a sua única resposta.

Meneses perguntou se haveria alguma razão de ciúmes.

— Posso jurar-lhe que durante todo este tempo pertenci-lheexclusivamente.

O juramento de Cecília não devia valer muito aos olhos deum homem que conhecesse bem todos os recursos de umamulher naquelas condições. Mas o nosso Meneses eraingênua em coisas tais. Saiu de lá cheio de piedade. Nessamesma tarde mandou uma carta às Laranjeiras, justamentena ocasião em que Félix acabava de ler outra carta deCecília. A carta da moça era tranqüila e até certo pontonobre. Não lhe fazia nenhuma recriminação, nem imploravanenhum favor. Defendia-se apenas, retirando de si aresponsabilidade da separação.

A carta de Meneses era cavalheiresca: descobria o estado dealma de Cecília e não hesitava em chamar ingrato aoprófugo dardânio. Félix sorriu lendo ambas as missivas;depois atirou-as a uma cesta e nunca mais as viu.

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A casa do coronel podia conter o triplo das pessoasconvidadas para o sarau daquela noite; mas o coronelpreferia convidar apenas as pessoas mais íntimas efamiliares. Era homem pouco cerimonioso, gostavasobretudo da intimidade.

Quando Félix entrou dançava-se uma quadrilha. O coronelfoi ter com ele e levou-o para onde estava a mulher, que já oesperava com ansiedade, pela razão, dizia ela, de que eraum dos poucos rapazes que ainda conversavam com velhas,estando entre moças. Félix sentou-se ao pé de D. Matilde.Estava então de bom humor e conversou alegremente atéque a música parou.

A mulher do coronel era o tipo da mãe de família. Tinhaquarenta anos, e ainda conservava na fronte, embora secas,as rosas da mocidade. Era uma mistura de austeridade emeiguice, de extrema bondade e extrema rigidez. Gostavamuito de conversar e rir, e tinha a particularidade de amar adiscussão, exceto em dois pontos que para ela estavamacima das controvérsias humanas: a religião e o marido. Asua melhor esperança, afirmava, seria morrer nos braços deambos. Dizia-lhe Félix às vezes que não era acertado julgarpelas aparências, e que o coronel, excelente marido emreputação, fora na realidade pecador impenitente. Ria-se aboa senhora destes inúteis esforços para abalar a boa famado esposo. Reinava uma santa paz naquele casal, que

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soubera substituir os fogos da paixão pela reciprocidade daconfiança e da estima.

A conversa com a dona da casa roubou algum tempo àsmoças, segundo a expressão do coronel. Era necessário queFélix se dividisse com as senhoras que ainda tinham amoraos exercícios coreográficos. Recusou, pretextando apresença de D. Matilde.

— Oh! por mim não! respondeu a boa senhora; o direito dasvelhas tem um limite no direito das moças. Vá, doutor, emais tarde volte cá, se o não agarrarem por aí...

Valsava-se. Félix levantou-se e foi buscar um par. Nãotendo preferência por nenhuma senhora, lembrou-lhe irpedir a filha do coronel. Atravessava a sala para ir buscá-ladefronte, quando foi abalroado por um par valsante.Conquanto fosse navegante prático daqueles mares, nãopôde evitar o turbilhão. Susteve o equilíbrio com rarafelicidade e foi procurar melhor caminho, costeando aparede. Nesse momento os valsantes pararam perto dele.Pareceu-lhe reconhecer Lívia, irmã de Viana. Com as facesavermelhadas e o seio ofegante, a moça pousava molementeo braço no braço do cavalheiro. Murmurou algumaspalavras, que Félix não pôde ouvir, e depois de lançar umolhar em roda de si, continuou a valsar.

Durou isto minutos.

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Félix, apenas se achou livre, foi buscar a filha do coronel,interessante criança de dezessete anos, figura delgada, rostoangélico, formas graciosas, toda languidez e eflúvios. Erauma dessas mulheres que fazem o mesmo efeito que umvaso de porcelana fina: toca-se-lhes com medo de asquebrar. Raquel era o seu nome; tinha grandes pretensões amulher, que lhe não ficavam mal naquela idade detransição; mas o que Félix lhe achava melhor era justamenteo seu aspecto de criança, mal disfarçado pela formação doseio. Como caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eramfundados, posto fossem de mãe.

Raquel aceitou o convite. Félix passou-lhe o braço à roda dacintura, e ela estremeceu da cabeça aos pés; depoisentregou-se-lhe toda, com aquele abandono que a valsaprescreve ou permite, e voaram pela sala no turbilhão geral.A agitação coloriu um pouco as faces da moça, comumentedescoradas. Quando pararam estava ofegante.

— Sentemo-nos, disse Félix.

— Não; passeemos um pouco. Por que não aparece cá?

— Receio não os encontrar; estão sempre fora...

— Não; há dois meses estamos na cidade. Mamãe diz quejá não está para estas viagens contínuas, e eu acho que temrazão. Também me cansam a mim; o mais influído é papai.

— Não gosta da roça?

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— Eu não tenho preferências; gosto tanto da roça como dacidade; contudo... dou-me melhor cá. Está olhando paraaquela moça? não a acha bonita?

— Quem? Eu não olhava para ninguém.

— Pois fazia mal; porque valia a pena olhar: Lívia é arainha da noite.

Conquanto Raquel, na opinião de Félix, fosse uma menina,não deixou este de estranhar que tão facilmente cedesse arealeza da noite a outra mulher; mas, por outro lado, refletiaque esta abdicação bem podia ser uma afetação demodéstia. Contudo, o límpido olhar da moça revelava amais absoluta ingenuidade. Fez-lhe um cumprimento àbeleza dela, e entrou a admirar de longe a beleza de Lívia.

Lívia tinha efetivamente um ar de rainha, uma naturalmajestade, que não era rigidez convencional e afetada, masuma grandeza involuntária e sua. A impressão de Félix foiboa e má; achou-lhe uma beleza deslumbrante, maspareceu-lhe ver através daquele rosto senhoril uma almaaltiva e desdenhosa.

— Será a rainha da noite, disse ele voltando-se para Raquel;mas não serei eu quem lhe faça a corte.

— Por quê?

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— Parece-me orgulhosa; há de tratar a todos como vassalosseus. Não vê com que desdém ouve as palavras docavalheiro que lhe dá o braço?

O cavalheiro era o mesmo rapaz que valsara com a viúva,um Dr. Batista, descendente em linha reta do Leonardo deCamões, "manhoso e namorado".

— Oh! isso não é razão, disse Raquel; Lívia não gosta dele.

Pouco tempo depois foi servida a ceia. Félix dirigiu-se parauma sala interior, onde o coronel tinha os livros, e queservia temporariamente de refúgio aos fumantes. Félixacendeu um charuto e começou a correr os olhos peloslivros.

Ali foram ter alguns rapazes que falaram entusiasticamenteda irmã de Viana. Era o objeto de todas as atenções danoite. E foi no meio das apologias daqueles cortesãos dabeleza, que ela apareceu pelo braço do coronel,atravessando a sala, para ir ter ao toucador.

— Doutor! disse Viana, aproximando-se de Félix.

E voltando-se para a irmã:

— O Dr. Félix quer falar-te.

— Ah! disse a moça, voltando-se para o médico.

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Félix aproximou-se.

— Não sei se se lembra de mim? perguntou ele.

— O Dr. Félix? Perfeitamente: foi-me apresentado há muitotempo, mas eu tenho boa memória. De mais, só seesquecem as pessoas vulgares.

Félix agradeceu-lhe o cumprimento. Ela estendeu-lhe aponta dos dedos elegantemente apertados na pelica da luva.Trocaram algumas palavras mais. Daí a pouco, tendo-seouvido o prelúdio de uma quadrilha, toda a gente se retirou.Ficaram na sala Félix e Moreirinha.

Moreirinha tinha cerca de trinta anos, um bigode espesso,uma aparência agradável e um espírito frívolo. Confessouque estava impressionado pela viúva, mas que eram muitosos seus rivais.

— Mas não são temíveis esses rivais? perguntou Félix.

— Não; um apenas.

— Qual?

— O Batista.

— É o que está nas graças?

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— Não sei; mas é o mais valente de todos, e o que dispõede mais tempo, posto seja casado.

— Casado?

— Com um anjo.

Félix procurou reanimar o pretendente, pondo em relevotodas as suas qualidades merecedoras de admiração.Inventou-lhe algumas que não tinha, reconheceu-lhe outrasque possuía realmente, inda que de um merecimentorelativo ou duvidoso. Não se podia negar a influência doMoreirinha entre senhoras. Era ele galanteador por índole epor sistema; tinha, além disso (coisa importante), a plenaconvicção de que a sua conversa era preferida pelas damas.Ninguém melhor do que ele sabia lisonjear o amor-própriofeminino; ninguém prestava com mais alma esses levesserviços de sociedade, que constituem muita vez toda areputação de um homem. Dirigia os piqueniques, compravao romance ou a música da moda, encomendava oscamarotes para as representações de celebridades, levava ospianistas aos saraus, tudo isso com um modo tão serviçalque era de se ficar morrendo por ele.

Félix voltou à sala quando se dançavam os últimos passosda quadrilha. Lívia estava esplêndida de graça e elegância.Nenhuma afetação nem acanhamento; seus movimentoseram a um tempo desembaraçados e modestos. O médicoprocurou ver se o doutor pretendente estaria nas graças da

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moça; mas ele dançava do mesmo lado em que ela estava;os olhares não podiam encontrar-se. Um sobrinho docoronel indicou-lhe a mulher do Batista; era uma moça devinte anos, loura, assaz bonita e digna de inspirar amores.Por que motivo, o marido, casado há pouco, queria irqueimar a um templo estranho os perfumes que a esposamerecia?

Algum tempo depois de finda a quadrilha, dispôs-se Félix adeixar a casa do coronel, que lhe interceptou a passagem emnome, disse ele, da mulher e das moças. Félix respondeu-lhe que estava incomodado.

— Pretextos de peraltice, disse o velho, rindo alegremente;não o deixo sair nem que me caia morto na sala. Faz favor,minha senhora?

Estas últimas palavras eram dirigidas à irmã de Viana, queia atravessando a saleta onde se achavam os dois.

— Que me quer, coronel? disse ela parando.

— Um favor apenas. Retenha-me este senhor, que se quer irembora. Não tenho forças para tanto. Veja se mo consegue.Comece dando-lhe uma quadrilha.

— Dou-lhe a próxima, que é a minha última.

— Também se vai embora?

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— Também.

— É uma debandada geral. Vou mandar trancar as portas.

O coronel afastou-se depois desta ameaça. Félix deu obraço a Lívia e foram sentar-se num sofá que ficavapróximo.

— Meu irmão é muito seu amigo, disse Lívia acomodandoas ondas de seda do vestido. Fala-me muito no senhor.

— É muito meu amigo, repetiu Félix, fazendo interiormenteuma careta.

— Não admira, observou ela; o senhor merece ser estimado.

— Como sabe disso?

— Todos o afirmam.

— Nem todos serão sinceros, observou Félix.

Félix não se iludia a respeito da estima de Viana. Sem negarque o irmão da viúva lhe tivesse alguma amizade, dava-lhetodavia limitado valor. Lívia asseverava, entretanto, que oirmão falava dele com grande entusiasmo, e até certo pontoo entusiasmo era sincero. Félix tinha sobre Viana certaascendência moral; além disso, era um homem franco ehospedeiro, rude mas serviçal.

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Dentro de pouco tempo a conversa entre o médico e a viúvafoi perdendo a frieza cerimoniosa do começo. Passaram afalar do baile, e Lívia manifestou com expansiva alegria assuas excelentes impressões, sobretudo porque, dizia ela,vinha da roça, onde tivera uma vida reclusa e monástica.Falaram naturalmente da viagem que ela pretendia fazer.Confessou ela que era um desejo antigo e várias vezesdiferido.

— Não pense, acrescentou Lívia, que me seduzemunicamente os esplendores de Paris, ou a elegância da vidaeuropéia. Eu tenho outros desejos e ambições. Queroconhecer a Itália e a Alemanha, lembrar-me da nossaGuanabara junto às ribas do Arno ou do Reno. Nunca teveiguais desejos?

— Estimaria poder fazê-lo, se me suprimissem osincômodos da viagem; mas com os meus hábitossedentários dificilmente me resolveria a isso. Eu participoda natureza da planta; fico onde nasci. V. Ex.a será como asandorinhas...

— E sou, disse ela reclinando-se molemente no sofá;andorinha curiosa de ver o que há além do horizonte. Vale apena comprar o prazer de uma hora por alguns dias deenfado.

— Não vale, respondeu Félix, sorrindo; esgota-se depressaa sensação daquele momento rápido; a imaginação ainda

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pode conservar uma leve lembrança, até que tudo sedesvanece no crepúsculo do tempo. Olhe, os meus doispólos estão nas Laranjeiras e na Tijuca; nunca passei destesdois extremos do meu universo. Confesso que é monótono,mas eu acho felicidade nesta mesma monotonia.

Lívia entrou a combater isto que lhe parecia um insigneparadoxo, mas sem que nenhuma de suas palavrasmostrasse a mais leve sombra de pedantismo. Tinha umamaneira natural e simples de dizer as coisas menos vulgaresdeste mundo. Sabia exprimir as suas idéias em fraseelegante, mas despretensiosa.

O prelúdio de uma valsa chamou a atenção dos dois para obaile. Félix convidou-a para valsar; ela desculpou-se,dizendo que se achava cansada.

— Vi-a valsar quando entrei, disse Félix, e afirmo quepoucas pessoas valsarão tão bem. Creia na sinceridade doelogio, porque eu não os faço nunca.

A moça aceitou este cumprimento com ingênua satisfação.

— Gosto muito da valsa, disse ela. Não admira; é a primeiradança do mundo.

— Pelo menos é a única dança em que há poesia,acrescentou Félix. A quadrilha tem certa rigidezgeométrica; a valsa tem todo o abandono da imaginação.

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— Justamente! exclamou Lívia, como se Félix lhe tivessereunido em poucas palavras todas as suas idéias a respeitodaquele assunto.

— Demais, continuou o doutor, animado pelo entusiasmoda viúva, a quadrilha francesa é a negação da dança, como ovestuário moderno é a negação da graça, e ambos são filhosdeste século, que é a negação de tudo.

— Oh! murmurou ela sorrindo.

E o protesto não foi só com os lábios, foi também com osolhos — uns olhos aveludados e brilhantes, feitos para osdesmaios de amor. Félix começou a sentir-se bem ao ladodaquela moça, e esquecendo de boa vontade a festa em quesó aparentemente figurava, ali se demorou longo tempocom ela, alheio aos comentários estranhos, todo entregue aocapricho do seu próprio pensamento.

Todavia, escapou-lhe, no meio da conversa, não sei quefrase de melancólico ceticismo que fez estremecer a moça.Lívia olhou para ele e depois para o chão, parecendo tãoabsorta que nem deu pelo silêncio que se seguiu ao seugesto e às palavras de Félix. Este aproveitou a circunstânciapara examiná-la melhor.

Lívia representava ter vinte e quatro anos. Eraextremamente formosa; mas o que lhe realçava a beleza eraum sentimento de modesta consciência que ela tinha de suas

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graças, uma coisa semelhante à tranqüilidade da força.Nenhum gesto seu revelava o amor-próprio geralmenteinseparável das mulheres bonitas. Sabia que era formosa,mas tinha para si que, se a natureza se havia esmerado comela, era por uma razão de harmonia e de ordem nas coisasterrestres. Afeiar as suas graças, parecia-lhe um crime; tirarorgulho delas, frivolidade.

Félix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelode graça antiga. A tez, levemente amorenada, tinha aquelemacio que os olhos percebem antes do contato das mãos.Na testa lisa e larga, parecia que nunca se formara a ruga dareflexão; não obstante, quem examinasse naquele momentoo rosto da moça veria que ela não era estranha às lutasinteriores do pensamento: os olhos, que eram vivos, tinhaminstantes de languidez; naquela ocasião não eram vivos nemlânguidos; estavam parados.

Sentia-se que ela olhava com o espírito.

Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo egrave, e involuntariamente foram-lhe os olhos descendo aoresto da figura. O corpinho apertado desenhavanaturalmente os contornos delicados e graciosos do busto.Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimidopelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço,destacava-se pela alvura sobre a cor sombria do vestido,como um fragmento de estátua sobre o musgo de uma ruína.Félix recompôs na imaginação a estátua toda, e estremeceu.

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Lívia acordou da espécie de letargo em que estava. Comotambém estremecesse, caiu-lhe o leque da mão. Félixapressou-se a apanhar-lho.

— Obrigado, murmurou ela distraída.

Depois, parecendo envergonhada daquele longo silêncio,pretextou um incômodo nervoso; levantaram-se e dirigiram-se ao salão. Ali, no meio da conversa e do bulício,readquiriu ela o império de si mesma, e conversaramlargamente com volubilidade e galanteria. A viúva era umpouco sarcástica, mas daquele sarcasmo benévolo eanódino, que sabe misturar espinhos com rosas. Pelaprimeira vez Félix a conhecia, porquanto apenas a tinhavisto duas vezes, e não basta ver uma mulher para aconhecer, é preciso ouvi-la também; ainda que muitas vezesbasta ouvi-la para a não conhecer jamais.

Lívia demorou-se em casa do coronel mais tempo do queprometera, milagre devido ao doutor, dizia Viana. O certo éque o resto da noite quase não existiram para ninguém mais.

Não passou isto sem que o notassem alguns lábiosdespeitados. Um cavalheiro disse a uma senhora:

— Não lhe parece que D. Lívia tem um gosto deplorável?

A senhora arregaçou levemente a ponta esquerda do lábiosuperior, e respondeu:

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— O Félix não o tem melhor.

A viúva saiu no meio de um geral murmúrio de curiosidade.Félix não se demorou muito tempo mais; meteu-se no carroe foi para as Laranjeiras.

Uma hora depois o baile, a viúva, a dança, tudo se lhedesvaneceu do espírito, graças a um sono tranqüilo eprofundo, como essas nuvens douradas do ocaso que a noiteabsorve ou dissipa.

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No dia seguinte partiu Félix para a Tijuca, onde tinha umacasa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois.Durante esse tempo nada soube do que ocorrera na cidade:não leu jornais nem abriu cartas de amigos.

Alguma coisa, entretanto, havia ocorrido: a primeira notíciacom que o saudaram os amigos, apenas ele chegou à cidade,foi que Cecília conquistara o coração de Moreirinha.

O sucessor de Félix, pouco depois que este chegou, nãodeixou de lhe ir participar a sua boa fortuna, não sei se porfatuidade, se por despicar a dama.

— Dou-lhe os meus parabéns, respondeu Félix; conquistouuma rapariga sossegada, carinhosa, capaz de ocompreender...

— Tanto melhor! acudiu o rapaz. O que me faltava era issomesmo: uma mulher que me compreendesse. Cecília não épositivamente uma alma perdida; não está na linha dessasoutras mulheres com quem tenho despendido o meudinheiro sem colher nada mais que alguns tardios remorsos.É uma moça de bons sentimentos, conserva certa dignidadeno vício, tem uma alma nobre, elevada...

Este panegírico durou alguns minutos mais. Dentro de tãopouco tempo descobrira-lhe Moreirinha qualidadesdesconhecidas para o antecessor. Seria mais néscio ou maisperspicaz? Cecília não era hipócrita quando dizia gostar de

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um homem; qualquer que fosse a natureza dos seus afetos,ela os sentia sinceramente; mas era raro que sobrevivessemvinte e quatro horas à causa que lhos inspirara. Não se lhedesmentira a constância durante os seis meses de intimidadecom Félix; mas se ela era amante para querer a um sóhomem, era independente para o esquecer depressa. Tinhauma fidelidade filha do costume; a sua máxima era nãoesquecer o amante presente, não recordar o amante passado,nem se preocupar com o amante futuro.

Moreirinha era o amante presente; podia contar com afidelidade da rapariga, ao menos com as suas boasintenções.

Quando Meneses soube deste desenlace ficou atônito.Julgou a princípio que era apenas uma afobação deMoreirinha; mas logo verificou que não. Foi ter com omédico.

— Meu amigo, disse, peço-te que me desculpes a cartaridícula que te escrevi.

— Que carta?

— A respeito de Cecília. Nunca pensei que fossem fingidasaquelas lágrimas que me entraram pelo coração. Aprendi anão crer tão superficialmente.

— Não aprendeste coisa nenhuma, retorquiu Félix,encolhendo os ombros; não é em terra que se fazem os

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marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade.

O episódio dos amores de Cecília foi assunto de conversano círculo dos rapazes que aqueles freqüentavam. Nemtardou que passasse além. No fim de algum tempo, poucagente ignorava que a moreninha que passeava todas astardes em carro descoberto pela Praia de Botafogo era oaltar em que o Moreirinha fazia os seus sacrifícios diários epecuniários. Félix admirou-se ao princípio desta mania depassear tão contrária aos hábitos preguiçosos de Cecília;mas atinou logo com a chave do enigma. Moreirinha nãocompreendia o que era ser feliz sem publicidade. Para ele, ailha de Citera não podia ser jamais a ilha de Robinson.

Entretanto, passara um mês desde o sarau do conselheiro.Félix não se havia aproveitado do convite que a viúva lhefizera, nem cedido às instâncias de Viana. Encontrou-os,porém, uma noite no Ginásio. Estava ele nas cadeirasquando os viu num camarote da 2ª ordem. No fim do 2° atoFélix subiu ao camarote.

Teve excelente recepção, posto que a viúva, sem deixar deser cortês e graciosa, parecia um pouco reservada epreocupada. Não falava com a mesma volubilidade da noitedo baile. Esquecia-se às vezes de si e dos outros. Duasvezes lhe aconteceu dar uma resposta sem pergunta e deixaruma pergunta sem resposta.

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A conversa, portanto, não foi muito animada. FelizmenteViana encarregou-se de preencher os intervalos com asinfonia das suas reflexões.

Quando se levantou o pano para o terceiro ato, Félix quissair, mas tanto a viúva como o irmão pediram lhe queficasse. Aceitou o convite e ficou. Do que houve em cenadurante esse ato pode-se afirmar que Félix nada soubeabsolutamente. O ato era curto, e Félix empregou todo otempo em observar a moça, que, molemente reclinada nacadeira, acompanhava distraída o diálogo dos atores.

— Em que estará pensando esta moça? dizia Félix consigo.Evidentemente, não lhe importam os suspiros do galã, nemas facécias do gracioso. Olha, mas não vê a cena. Estará àespera de algum namorado remisso? Mas quem é então esselorpa que deixa entristecer uns olhos tão bonitos?

A ingênua da peça, que desde o ato anterior se sabia estarapaixonada pelo galã, como é de jeito no teatro e no mundo,entrou precipitadamente em cena e lançou-se nos braços doamado. Algumas palmas do público premiaram essaresolução inesperada e enérgica. Então começou entre adama e o galã um diálogo de sentimento e paixão, um duelode suspiros, um protestar de fidelidade e constância, que aplatéia ouviu com demonstrações de entusiasmo.

— Ama, não há dúvida, continuou Félix a dizer entre si;basta ver como lhe brilham os olhos a cada frase do

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diálogo. Agradam-lhe os protestos do namorado e aslágrimas da dama. Creio que sorri; é de aprovação. Oh!como está divina!

Enfim, caiu o pano; e a viúva, que já no fim do ato,parecera ter voltado à sua anterior preocupação, levantou-se, dizendo que se ia embora.

Viana pediu-lhe para ficar até o fim da peça; ela insistiu, eera forçoso ceder. Félix acompanhou-os até o carro.

— Até quando? perguntou Lívia, aceitando a mão que Félixlhe oferecia.

— Até breve.

Seria acaso ou ilusão? Félix sentiu uma forte pressão dosdedos da moça, enquanto esta subia rapidamente para ocarro, e ia responder com um aperto ainda mais forte; masera tarde; a moça já estava sentada, e Viana punha o pé noestribo para subir.

Ilusão era decerto; ilusão ou casualidade. Mas o médico nãoo percebeu logo, e foi um primeiro erro na maneira dejulgar a viúva.

Poucos dias depois do encontro no teatro, dirigiu-se Félix aCatumbi onde eles moravam. Não os achou. Quando Líviavoltou para casa soube da visita de Félix pelo cartão que amucama lhe deu. Tão apressadamente descalçou as luvas

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que as rasgou; e como o irmão fizesse um reparo a esterespeito, a moça respondeu com azedume. Viana estavaacostumado às asperezas da irmã, levantou os ombros esaiu.

Félix encontrou-a dois dias depois na Rua do Ouvidor,fazendo compras para a viagem.

— Se adivinhasse a sua visita, não teria saído de casa, dissea viúva.

Félix inclinou-se.

— Por outro lado, estimo ter estado fora; morando eu tãolonge, não teria o prazer de recebê-lo segunda vez, e nessecaso antes nada.

— O tílburi encurta as distâncias, observou Félix;procurarei desempenhar-me da obrigação em que estou.

— Da obrigação já se desempenhou; agora...

— Perdão; o seu cumprimento constitui uma obrigaçãonova.

Despediram–se.

Meneses, que estava na calçada oposta, durante as poucaspalavras trocadas entre Félix e a viúva, atravessou a rua eveio ter com o amigo.

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— Quem é aquela moça?

— É a irmã do Viana.

— Bravo! é lindíssima.

— É realmente bonita, o que lhe merece a admiração geral.Vê como todos lhe estão com os olhos em cima...

— Se não há indiscrição, disse Meneses depois de a verentrar em uma loja, queimas os teus perfumes naquelealtar?

— Não. Para quê?

— Talvez algum casamento incubado...

— Casar?... disse Félix rindo. A pergunta é tão original quemerece um sorvete. Vem ao Carceler.

No Carceler contou-lhe Meneses que andava incomodado etriste. Vivia ele maritalmente com uma pérola que poucoantes encontrara no lodo. Na véspera descobrira em casavestígios de outro amador de pedras finas. Estava certo dainfidelidade da amante; pedia-lhe conselho.

— Não te dou conselho nenhum, respondeu o médico;resolve tu mesmo.

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— Mas, se eu pudesse resolver alguma coisa no estado emque estou, não viria falar a um amigo...

— Lisonjeia-me a escolha; mas não passa disso. Imita-me,se podes; mas não me peças reflexões.

— Mas, no meu caso, que farias tu?

— Coisa nenhuma; pegava no chapéu e saía.

— E se o não pudesses fazer sem dor?

— Hipótese absurda.

— Para ti.

— Naturalmente.

Houve uma pausa.

— Dou-te enfim um conselho, disse Félix.

Meneses levantou os olhos com ansiedade.

— Qualquer que seja a resolução que tomares, continuouFélix, não recues um passo.

— Onde acharei esta resolução?

— Aqui, disse Félix pondo-lhe o dedo na testa.

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— Oh! não! suspirou Meneses; a cabeça nada tem com isso;todo o mal está no coração.

— Recorre à cirurgia: corta o mal pela raiz.

— Como?

— Suprime o coração.

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Dois dias depois, estando Félix a vestir-se para ir aCatumbi, entrou-lhe Meneses por casa. Vinha pálido eabatido, olhos vermelhos, passo trêmulo. Não se sentou,deixou-se cair numa cadeira.

— Que é isso? perguntou Félix.

— Está tudo acabado, respondeu ele, romperam-se osvínculos fatais. Custou-me muito, mas era necessário; foiagora há pouco; corri para cá; precisava de alguém comquem desabafasse. Isto é ridículo, bem sei; mas que queres?Eu sofro... tenho um coração miserável, e deixo-me levarpor ele...

Félix pareceu condoer-se da situação do rapaz, e disse-lhealgumas palavras de animação, que ele ouviu comreconhecimento.

— Eu já desconfiava, disse Meneses, de que era traído; sótive a certeza ontem. O que mais me dói em tudo isso,continuou ele depois de alguns instantes de silêncio, é que,para servir ao homem que me traiu, desfazia-me eu emobséquios, e até, confesso-te aqui, era seu credor.

— É por isso que eu não empresto dinheiro a ninguém,respondeu Félix, penteando as suíças.

— Mas quem pode adivinhar o mal, quando nos apresentamuma fisionomia risonha? Eu confiava em ambos.

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Félix encolheu os ombros.

— Toma um charuto, disse.

— Não quero fumar.

— Fuma; eu já observei que o fumo impede as lágrimas, eao mesmo tempo leva ao cérebro uma espécie de nevoeirosalutar.

— Vais sair? perguntou Meneses, vendo que o outro punhao chapéu na cabeça.

— Vou à casa do Viana. Queres vir?

— Não posso.

— Devias vir comigo; apresentava-te à irmã dele, epassávamos algumas horas em companhia amável.Esquecerias depressa as tuas penas.

Meneses recusou; Félix levou-o no carro até à Rua doLavradio, onde ele morava.

Em caminho conversaram dos seus extintos amores.Meneses jurava que era a última aventura a que expunha oseu coração; achava-se curado de uma vez.

— Não afirmes nada, Meneses; podes errar. Sabes o que tefalta? Têmpera. Amanhã, entre duas lágrimas, aparece-te

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um raio de sol; e eis-te de novo namorado, confiado earriscado.

— Oh! não! protestou Meneses.

— Quem dera que não! Mas eu estou a ler no teu rosto quea única maneira de te consolar deste naufrágio é dar-te outronavio. Só muito tarde te convencerás de que viver não éobedecer às paixões, mas aborrecê-las ou sufocá-las. Osmaricas, como tu, choram; os homens, esses ou não sentemou abafam o que sentem. Isto não tem réplica, meu... amigo,diria eu, se me não lembrasse do teu afortunado rival, que épositivamente um mariola. Vem à casa do Viana; hás degostar da Lívia; parece-se contigo.

— Não posso, respondeu Meneses, que só ouvira as últimaspalavras de Félix.

— Mas hás de ir depois?

— Sim, depois.

— E se te apaixonas por ela?

Meneses sorriu tristemente; o carro parou; despediram-seum do outro, e Félix seguiu para Catumbi.

Lívia estava só em casa. Fora convidada a um jantar, masrespondeu pretextando um incômodo que não tinha. Oirmão encarregou-se de ir representá-la.

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— Tinha o pressentimento, disse ela depois de referir estascoisas ao doutor, tinha o pressentimento de que o senhorvinha cá hoje, e não desejava que lhe acontecesse a mesmacoisa que da primeira vez.

— E acredita em pressentimentos? perguntou Félix.

— Não os explico, mas acredito neles.

Lívia parecia mais bela que das outras vezes. Não só a luznatural dizia melhor com a sua tez, como também asimplicidade do vestuário era para ela um realce. Félix nãodissimulou a impressão que lhe causava aquele novoaspecto da moça. Lívia, que, como toda a mulher bela, eposto não fosse vaidosa, sabia mirar-se na fisionomia dosoutros, não deixou de perceber a impressão do doutor.

A cena da portinhola do carro não havia saído do espírito deFélix, que se convencera de duas coisas: primeiro, que aviúva gostava dele; depois, que era fácil triunfar da viúva.As aparências davam fundamento à opinião de que a moçao amava. Félix aproveitou a situação e dispôs-se a tirar delatodo o proveito possível. Pouco se demorou, entretanto,naquele dia. Quando anunciou que se ia embora, pediu-lhe aviúva que não esquecesse a casa.

— Aproveitarei o tempo, observou Félix, enquanto nãoembarcam para a Europa. Seu irmão diz-me que a viagem ébreve.

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— Se não houver transtorno. Em todo o caso, venha, e nãofaça visitas de médico.

— Eu fui médico; fiquei com esse costume, respondeuFélix sorrindo.

— Já não é médico?

— Do corpo, não.

— Mas da alma?

— Talvez. Deixei agora mesmo um doente da alma, que eudesejaria apresentar-lhe, porque estes ares dão saúde, creioeu.

— De que sofre o seu doente?

Félix sorriu-se.

— Vítima de uma inconstância, moléstia vulgar. Está noperíodo agudo. É um pobre rapaz, inocente e singelo, quevai buscar as regras da vida nos compêndios da imaginação.Maus livros, não lhe parece?

Lívia não respondeu; estava embebida a ouvi-lo.

— Meneses não conhece outros, continuou Félix. Parecefilho daquele astrólogo antigo que, estando a contemplar osastros, caiu dentro de um poço. Eu sou da opinião da velha,

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que apostrofou o astrólogo: "Se tu não vês o que está a teuspés, por que indagas do que está acima da tua cabeça?"

— O astrólogo podia responder, observou a viúva, que osolhos foram feitos para contemplar os astros.

— Teria razão, minha senhora, se ele pudesse suprimir ospoços. Mas que é a vida senão uma combinação de astros epoços, enlevos e precipícios? O melhor meio de escapar aosprecipícios é fugir aos enlevos.

Lívia ficou pensativa alguns instantes.

— O pensamento é melancólico, disse ela; contudo pode serverdadeiro. Mas por que razão condenaremos a vidacontemplativa dos que não conhecem a vida positiva? Oslivros da imaginação... esses livros não são detestáveis,como o senhor disse; não os há detestáveis nem ótimos.Deus os dá conforme a ciência de cada um.

Félix despediu-se de Lívia, não enlevado, não palpitante,mas disposto a uma aventura. Amiudou as suas visitas aCatumbi, a grande aprazimento de Viana, que suspeitoualguma afeição entre os dois, e imaginara uma aliança defamília.

A presença de Félix era até vantajosa naquela casa. Entre aviúva e o irmão havia um abismo. Eram dessemelhantes nossentimentos, nos hábitos de viver, na maneira de pensar.Lívia tinha alternativas de afabilidade e rispidez, ao passo

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que o irmão era de uma inalterável paz de espírito. Vianatinha coisas más e boas, sendo que as coisas boas eramjustamente as que se opunham ao gênio especulativo daviúva. Era homem essencialmente prático; o seu reino eratodo deste mundo. Apesar das suas pretensões a rapazestouvado e extravagante, tinha hábitos de ordem eeconomia. Lívia era a este respeito negligente e "meiadoida", como lhe chamava o irmão; alheava-se muitas vezesdas coisas que a cercavam para subir a um mundo superiore quimérico. O médico era entre ambos uma espécie demediador plástico. Não pertencia à esfera de nenhum deles,mas sabia a maneira de os conciliar.

Félix encontrou algumas vezes em Catumbi o Dr. Batista,que ele vira dançar com a viúva em casa do coronel. Lívianão parecia prestar-lhe atenção, nem o pretendente magoar-se por isso. Era um modelo de dissimulação e cálculo.Conhecia todos os artifícios da campanha amorosa, aindiferença, o desdém, o entusiasmo, e até a resignação.

Uma noite em que saíram de lá juntos, Félix procurousondar-lhe o espírito a respeito da moça.

— Nada há, respondeu Batista com indiferença; nem eupretendo cortejá-la. Mas, se o pretendesse, triunfaria; apaciência é a gazua do amor.

— Não lhe parece que essa sua máxima é imoral?

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— Efetivamente é assim; mas é por isso mesmo que estesamores são deliciosos.

Quinze dias depois apareceu Viana em casa de Félix. Deu-lhe parte de que a irmã já não ia para a Europa.

— Por que motivo? perguntou Félix.

— É justamente o que eu desejara saber, disse Viana comum gesto de mal contido despeito; mas estou certo de que onão saberei jamais. Aquela minha irmã não me parece ter acabeça no seu lugar.

— Alguma razão haveria. Estará doente?

— Está de perfeita saúde.

— Quem sabe se.... algum namoro?

— Já pensei nisso, disse Viana; pode ser algum namoro.

— Naquela idade as paixões são soberanas. Seria inútilquerer dissuadi-la, e ainda que não fosse inútil, seriadesarrazoado, porque uma viúva moça... Ela amava muito omarido, não?

— Antes de casar, muito; três meses depois, muitíssimo; aocabo de alguns meses, nem muito nem pouco. Toda essahistória é mistério para mim...

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— Não lhe vejo mistério nenhum; o casamento é justamenteisso; acalma os afetos para os tornar mais duradouros. Se apaixão de sua irmã se tornou mais calma...

— Não se trata disso. Lívia não amava menos; aborrecia omarido... Mas por que nos demoraremos nestas coisas quenão podemos explicar? A única explicação que lhe acho é oseu caráter esquisito. O senhor não imagina bem que eternavariação de gênio é aquela moça. Há dias em que se levantameiga e alegre, outros em que toda ela é irritação emelancolia. Ninguém a entende, e eu menos que ninguém.

— Não esteja o senhor a exagerar uma coisa naturalíssima.Todos temos essa mesma alteração de humor. Há manhãstristes e aziagas. Quer que lhe dê um conselho? Não acontrarie nunca, é o melhor.

— Mas o senhor há de concordar que quando a gente jápreparava os beiços para ir saborear a vida parisiense...

— Há tempo para tudo, disse Félix, e o senhor ainda estámoço. Iremos juntos daqui a um ano.

— Palavra?

— Palavra.

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— Então, já não vai para a Europa? perguntou Félix à viúvanessa mesma tarde.

— Quem lho disse?

— Seu irmão.

— Desfiz a viagem, bem contra a vontade dele, que mechamou caprichosa e não sei que mais. Talvez tenha razão.Eu mesma não me entendo às vezes. Esta viagem, que eraum desejo ardente, acha-me agora fria. Que lhe parece isto?

— Alguma razão há de haver, ponderou o médico; e eusentiria se o motivo...

— Se o motivo? repetiu a moça.

Calaram-se e ficaram algum tempo a olhar um para o outro.A explicação, que já os lábios não pediam nem davam,começaram a pedi-la e a lê-la os olhos de ambos.

Lívia baixou os seus.

— Vamos para o terraço, disse ela por fim; a tarde estábonita.

A tarde estava realmente linda. Félix, entretanto, cuidavamenos da tarde que da moça. Não queria perder o ensejo delhe dizer, como se fora verdade, que a amava loucamente.

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Encostada ao parapeito do terraço que dava para a chácara,a viúva simulava contemplar os esplendores do ocaso; narealidade, afiava o ouvido para escutar a confissão amorosa.

Félix olhava para ela e não ousava romper o silêncio. Quasea soltar dos lábios a palavra decisiva, a si mesmoperguntava se ela não iria pesar no seu destino mais do queimaginava então, e se daquele capricho de momento nãoresultaria o mal de toda a sua vida. Mas a hesitação foicurta; Félix ia enfim lançar a sorte, quando um escravoapareceu no terraço, a anunciar a visita do Dr. Batista.

— Não quero falar a ninguém, João, disse a moça; estouincomodada.

— Que resposta é essa? perguntou Félix, baixinho, quandoo escravo voltou as costas.

— João! disse a moça.

O escravo voltou.

— Eu hoje só posso receber as pessoas mais íntimas decasa, os amigos de meu irmão. Às outras dize que estouincomodada.

O escravo saiu.

— Adota esta explicação?

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— Antes essa, respondeu Félix; é melhor para a senhora;sinto-a contudo por mim; não quisera ser envolvido entre osíntimos da casa.

— Quer que eu corrija a ordem que dei?...

— Não peço tanto; não tenho direito a isso; e todavia...

— E todavia?...

Houve um curto silêncio.

— Não me compreende? disse Félix com voz quase sumida.

— Compreendo, murmurou ela, depois de uma pausa; masreceio enganar-me.

— Não se engana, insistiu Félix com calor; amo-a, e seriaimpossível negá-lo, porque a minha voz e o meu rosto hãode tê-lo dito melhor do que as minhas palavras. Nãopercebe isso há muito tempo? Não adivinhou já que aesperança do seu amor é para mim toda a felicidade deamanhã? Diga! diga uma palavra só, cruel ou benévola, masuma e definitiva.

Lívia escutara-o enlevada, e a sua resposta foi maiseloqüente que a declaração do doutor; estendeu-lhe a mãotrêmula e fria, e embebeu nos olhos dele um longo olhar deagradecimento e felicidade.

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— Ama-me também? perguntou Félix depois de algunsminutos de muda contemplação.

— Oh! muito! suspirou a moça.

E ambos ali ficaram silenciosos, ofegantes e namorados,nesse êxtase dulcíssimo que é porventura o melhor estadoda alma humana. Ambos, porque o coração do médico,naquele instante ao menos, palpitava com igual fervor.

— Muito! repetiu Lívia, como se essa palavra fosse apenasum eco do seu pensamento ou uma resposta à mudainterrogação dos olhos do médico.

Félix passou-lhe o braço à roda da cintura e puxou-adocemente para si; depois segurou-lhe a cabeça entre asmãos, e inclinou os lábios para lhe imprimir um beijo nafronte. Deteve-o um rumor estranho, uma voz infantil edesconhecida.

Instantes depois apareceu no terraço um menino de cincoanos, criança gentil e esperta, rosada e gorda, como os anjose os cupidos que a arte nos representa em seus painéis.

— Mamãe! mamãe! gritava o pequeno, correndo a abraçar-se com a mãe e fugindo à mucama que vinha atrás dele.

Lívia recebeu a criança nos braços; beijou-a e pô-la ao colo.

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— Apresento-lhe meu filho, disse ela ao médico; estava emcasa da madrinha; veio ontem para cá.

E voltando-se para o menino:

— Luís, conheces o Dr. Félix?

O menino olhou para o médico com a expressão pasmada einterrogativa das crianças que vêem uma pessoa pelaprimeira vez, e voltou-se para a mãe, sem parecerimpressionar-se muito. Lívia encheu-lhe as faces de beijos.A criança rindo de prazer, repeliu com as mãozinhas aquelachuva de carícias maternas.

— Ora bem, disse a viúva, quem te deu ordem de andar acorrer por aqui?

— Ninguém, respondeu o menino, eu pedi a Clara para medeixar vir; ela não quis, mas eu vim. Não fiz bem, mamãe?

— Fizeste mal. Vai brincar, vai, mas não corras.

— Quem é esse moço? perguntou Luís, olhando outra vezpara Félix.

— Já te disse: é o Dr. Félix.

— Ah!

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Luís encarou o médico; depois olhou para a mãe, e fez umgesto para descer. Lívia pô-lo no chão.

— Posso ir à chácara?

— Podes; leva-o, Clara.

Luís deitou a correr seguido pela mucama. A mãeacompanhou-o com os olhos até vê-lo desaparecer doterraço.

Durante esta cena, Félix parecera completamente estranho atudo que o rodeava. Não ouvia as repreensões da moça,nem a tagarelice da criança; ouvia-se a si mesmo.Contemplava aquele quadro com deleitosa inveja, e sentiapungir-lhe um remorso.

— É mãe, repetia o moço consigo; é mãe!

— Olhe, dizia a moça, debruçada sobre o parapeito quedava para a chácara; veja como ele vai correndo...

Félix debruçou-se também; o menino corria efetivamenteadiante de Clara que o acompanhava de longe. De quandoem quando, parava o menino aguardando a mucama; mastão depressa esta se lhe aproximava, a criança negaceava ocorpo, e deitava a correr outra vez. A mãe parecia esquecidade tudo mais; Félix contemplava-a com religioso respeito.Estiveram assim calados alguns segundos. De repente Líviavoltou-se para o médico:

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— Vê? disse ela; a pouco se reduz a minha felicidade: osenhor e aquela criança.

Dizendo isto, deixou pender a fronte; Félix beijou-aardentemente, mas não pôde dizer nada. A comoçãoembargou-lhe a voz; a reflexão impôs-lhe silêncio.

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Iniciando afoitamente esta aventura, era natural que Félixsaísse de Catumbi com a vaidade satisfeita de umtriunfador. Não era ele amado, e amado sem esforço seu,sem resistência nem combate? E a mulher que lhe acabavade dar francamente o coração não tinha todas as qualidadesque podem seduzir um homem e lisonjear-lhe o amor-próprio?

Qualquer outro teria motivo de se julgar superior ao restodos mortais; mas era a natureza mesma da vitória que vinhatravar a felicidade de Félix. A que propósito interviria ocoração neste episódio, que devia ser curto para ser belo,que não devia ter passado nem futuro, arroubos nemlágrimas?

— Fui longe demais, ia ele dizendo consigo; não deviaalimentar uma paixão que há de ser uma esperança, e umaesperança que não pode ser outra coisa mais que uminfortúnio. Que lhe posso eu dar que corresponda ao seuamor? O meu espírito, se quiser, a minha dedicação, aminha ternura, só isso... porque o amor... Eu amar? Pôr aexistência toda nas mãos de uma criatura estranha... e maisdo que a existência, o destino, sei eu o que isso é?

Neste ponto, parece que alguma idéia vaga e remota lhesurgiu no espírito e o levou a uma longa excursão no campoda memória. Quando voltou à realidade presente tinha o

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carro entrado no Largo do Machado. Apeou-se e seguiu apé para casa.

A viúva tornou a ocupar-lhe o espírito. Recapitulou entãotudo o que se passara em Catumbi, as palavras trocadas, osolhares ternos, a confissão mútua; evocou a imagem damoça e viu-a junto dele, pendente de seus lábios, palpitantede sentimento e ternura. Então a fantasia começou adebuxar-lhe uma existência futura, não romanesca nemlegal, mas real e prosaica; como ele supunha que não podiadeixar de ser com um homem inábil para as afeições doCéu.

— E que outra coisa quer ela? dizia o médico a si mesmo.Era, sem dúvida, melhor que houvesse menos sentimentonaquela declaração, que tivéssemos navegado mais junto àterra, em vez de nos lançarmos ao mar largo da imaginação.Mas, enfim, é uma questão de forma; creio que ela sente damesma maneira que eu. Devia tê-lo percebido. Fala commuita paixão, é verdade; mas naturalmente sabe a sua arte;é colorista. De outro modo pareceria que se entregava porcuriosidade, talvez por costume. Uma paixão louca podejustificar o erro; prepara-se para errar. Não me anda ela aseduzir há tanto? É positivo; mete-se-me pelos olhos. E eu aimaginar que...

Quando Félix chegou a casa, estava plenamente convencidode que a afeição da viúva era uma mistura de vaidade,capricho e pendor sensual. Isto lhe parecia melhor que uma

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paixão desinteressada e sincera, em que, aliás, nãoacreditava. Não admira pois que ainda desta vez alembrança de Lívia lhe não perturbasse o sono, e que oprimeiro clarão da aurora, atravessando os vidros da janelada alcova, alumiasse o rosto do médico, tão grave e plácidocomo na véspera.

Félix voltou a Catumbi naquele mesmo dia. A viúva estavaradiante de felicidade, trêmula de alegria. Estendeu-lhe amão, que ele apertou, não palpitante como ela, mas cheio dedelicadeza e graça. A presença de Viana, além disso,impedia qualquer outra manifestação exterior. O parasita,que parecia empenhado em preparar uma aliança de famíliacom o médico, dispôs-se a não ser cruel para os doisnamorados; fechou os olhos, cerrou os ouvidos, e, se emtodo o caso foi importuno, não o deveu à vontade, mas àsituação, porque em tais circunstâncias nem todo o engenhode Voltaire pode fazer um homem interessante.

Amiudaram-se ainda mais as visitas de Félix, que aliencontrou algumas vezes a família do Coronel Morais, eoutras, poucas, da intimidade de Lívia. D. Matilde sentiaentusiasmo pelo médico; quanto a Raquel olhava para elecom uma espécie de adoração. Dos homens alguns odetestavam cordialmente, outros tinham-lhe medo, nãoraros inveja, e alguns poucos simpatia.

Félix, entretanto, parecia indiferente aos sentimentos queinspirava, e deste modo obedecia a um sistema não menos

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que à disposição do seu espírito. O mesmo praticava emrelação ao amor. Evitava, quanto podia, animar asesperanças da moça, e posto soubesse a fundo a retórica dapaixão, não a empregava sem uma parcimônia, que lheparecia economia razoável.

Lívia, porém, não dissimulava nem hesitava; deixavatransparecer no rosto o que sentia no coração. Jogava comas cartas na mesa sem previsão nem cálculo. Expansiva ediscreta, enérgica e delicada, entusiasta e refletida, Líviapossuía esses contrastes aparentes, que não eram mais queas harmonias do seu caráter. Os próprios defeitos delanasciam de suas qualidades. Era crédula à força de serconfiante, ríspida com tudo o que lhe parecia baixo ou fútil.Tinha a imaginação quimérica, às vezes — o coraçãosupersticioso, a inteligência austera, mas compensava estesdefeitos, se o eram, por qualidades capitais e raras.

Um dia em que ambos conversavam do único assunto quelhes podia interessar — pelo menos do único que lheinteressava a ela, Félix pediu-lhe explicação de uma coisaque lhe parecia obscura.

— Obscura? repetiu Lívia.

— Lembra-se da noite em que a encontrei no Ginásio? disseo médico. Estava preocupada e alheia a tudo. Conversoumal e distraída, interessavam-lhe as cenas amorosas, tudomais parecia aborrecê-la. No fim do terceiro ato levantou-se

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e foi-se embora. Diz-me, entretanto, que desde o sarau docoronel já começava a sentir este amor que é a sua vida.Pois bem, não estava eu lá, a seu lado, no teatro?

— Não.

— Oh!

— Estava outro homem, muito diverso deste que eu vejoagora ao pé de mim, porque ainda não me amava. Mas nãoera só isso; era mais. Pensa que os seus atos, sentimentos epessoa, não são objeto dos comentários estranhos?

— Importam-me tão pouco os comentários!

— Pois bem, falaram-me muito mal do seu coração naqueledia.

— Que lhe disseram desse viajante incógnito?

— Viajante? perguntou Lívia.

— Que foi, emendou Félix.

— Disseram-me muitas coisas más.

— Deu-lhes crédito?

— Não; mas fiquei triste. Eu estava acostumada a admirá-lode longe. Conhecia-o pouco, mas meu irmão falava-me

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muita vez a seu respeito nas cartas que me escrevia paraMinas, e Raquel fazia coro com ele.

— Seu irmão tem certo entusiasmo por mim, disse Félix; énatural que exagere os meus méritos. Quanto à filha docoronel, é uma criança, que se acostumou a ver-me comolhos de irmã mais moça.

— Quer então que eu acredite antes nas coisas más?

— Nem más nem boas, Lívia; conheça-me primeiro; farádepois juízo seguro.

— Oh! conheço-te! exclamou ela.

A entrada de Viana interrompeu o colóquio. Félix dirigiu-seà mesa e abriu um álbum, enquanto Viana referia à irmã asperipécias de um jantar a que assistira.

O álbum da viúva, que o médico abria pela primeira vez,estava já alastrado de prosa e verso. Nem tudo era bom,como acontece nesses livros, que são às vezes verdadeirosasilos de inválidos do Parnaso, onde as musas reumáticas emanetas vão soltar os seus gemidos. Uma página havia quelhe pareceu misteriosa: era uma declaração de amor semassinatura. Leu-a, e não pôde deixar de sorrir: só havia umacoisa pior que a forma, era o pensamento.

— De que se ri? perguntou a viúva.

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Viana aproximou-se de Félix e lançou os olhos para apágina aberta.

— Ah! disse ele estouvadamente, isto é de meu defuntocunhado.

Lívia estremeceu e corou.

— Viúva de um néscio! pensou Félix. Estava pedindo umhomeminteligente.

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O desenlace desta situação desigual entre um homem frio euma mulher apaixonada parece que devera ser a queda damulher: foi a queda do homem. Para triunfar da viúva, Félixcontava apenas com a sua resolução; mas a viúva, além doseu amor, tinha dois auxiliares ativos e latentes: o tempo e ohábito. Cada dia que passava caía como uma gota d'água nocoração do médico, e ia cavando fundo com a friatenacidade do destino.

Ironia da sorte chamará o leitor a este desfecho de umasituação que, algumas semanas antes, tão outra se lheafigurava. Chame-lhe antes lógica da natureza, porque ocoração de Félix, que aparentava ser de mármore, erasimplesmente da nossa comum argila. Não era seguramenteum coração virginal e puro; tinha uma certa dose doegoísmo que a natureza maternalmente repartiu por todos oshomens, e não se pode dizer que não fosse algum tantocético; mas estes senões exagerava-os ele de maneira queveio a perder, na imaginação dos outros, a sua fisionomiaoriginal.

As armas com que lutava eram certamente de boa têmpera,mas se valiam muito para esgrimir, valiam pouco parapelejar. Com uma mulher que apenas tivesse a soma deafeto necessária para dissimular o erro, o nosso herói ficariana altura da reputação; mas o amor da viúva era umverdadeiro combate. Quando Félix chegou a encarar-lhe ocoração, sentiu a fascinação do abismo, e caiu nele.

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Esta queda, como disse, foi lenta; o médico começou asentir que a presença da moça era para ele uma necessidade.Pesavam-lhe as ausências mais longas, e, o que era mais,vinham suavizar-lhas umas saudades, que ele definia poroutro modo, mas que, em suma, eram saudades. Quando aia ver, e à proporção que se aproximava dela, sentia bater-lhe alguma coisa dentro do peito; o médico dizia que era osangue ainda juvenil e irrequieto. Seria uma razãofisiológica; mas havia também uma razão moral; era a lavada paixão que se ia formando e subindo até romper agarganta do vulcão. Longa foi a gestação do amor; masquando o médico descobriu o estado de sua alma, não eracentelha que se pudesse abafar, mas incêndio que lavrava econsumia tudo.

Decidam lá os doutores da Escritura qual destes doisamores é melhor, se o que vem de golpe, se o que invade apasso lento o coração. Eu por mim não sei decidir, ambossão amores, ambos têm suas energias. O de Félix parecia tercriado no silêncio uma força invencível.

Um potro arisco e selvagem, quando a mão do homem lhepõe o freio pela primeira vez, não se irrita mais do que onosso herói no dia que sentiu violada a liberdade do seucoração. Cólera singular e insensata, mas amarga e sincera.Planeou desde logo uma separação violenta, que lhe dessetempo e armas para vencer-se a si próprio. A execuçãoseguiu de perto a idéia; e o médico cessou repentinamenteas suas visitas a Catumbi.

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A ausência, porém, foi ainda um auxiliar da viúva. Odespeito do médico não se aplacou, transformou-se; nãoacusava já a fraqueza do coração, mas a rebeldia dele. Oque a princípio lhe parecera necessário para restituir-lhe apaz do espírito, começou a ter a seus olhos o caráter deingratidão. Ingratidão, era já confessar muito, mas o médicofoi além, achou-se ridículo. Aqui já não era possível aresistência. Algum homem pode gloriar-se de ser ingrato;dirá, com um moralista cético, que é uma maneira de serindependente. Mas ninguém é ridículo convencido;convencer-se é emendar-se.

A essas razões que o médico dava a si próprio, e que eramfilhas da consciência, acresciam outras que ele nãoarticulava, mas sentia, as saudades, as recordações, osdesejos, a voz misteriosa e constante que lhe sussurrava aosouvidos o nome de Lívia.

Demais, a bela viúva escreveu-lhe. Félix, como umverdadeiro namorado, jurara não abrir as cartas que ela lhemandasse, e correu à porta para receber a primeira. Não eracarta de recriminações, mas de surpresa e de lágrimas.Quando veio segunda carta, já o médico sabia a outra decor. A segunda era a última, dizia Lívia; eram járecriminações, mas não contra ele, nem contra o destino;eram recriminações contra si mesma. A melancólicaresignação da moça comoveu o médico; no fim de umasemana estava aos pés dela, fazendo ato de sinceracontrição.

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Lívia perdoou-lhe as lágrimas choradas durante aqueles oitodias de angustiosa incerteza. Perdoou-lhas como sabemperdoar as almas verdadeiramente boas, — semressentimento. Mas a causa da ausência não a explicouFélix.

— Não me perdoou já? disse o médico, quando ela lhe fezuma pergunta direta a este respeito. Isso basta; não queirasaber a razão desta singular loucura, que me levou tão longedo único lugar em que me é possível a felicidade. Paraminha expiação basta o que sofri também nestes oito dias ea vergonha de ter...

Calou-se; receava dizer tudo. A moça ouviu aquelaspalavras com manifesta satisfação, e murmurou:

— Ciúmes?

Félix estremeceu. Uma sombra ligeira pareceu toldar-lhe osolhos. Lívia inclinou para ele o rosto como querendo ler-lhena fisionomia a verdade que ele forcejava por esconder.

— Não, disse Félix, não foram ciúmes. Ciúmes de que e dequem?

— De ninguém, bem sei; mas está-me a parecer, Félix, queo seu amor é um pouco visionário e melindroso. Oh! nãome lastimo por tão pouco; agradeço-lhe até. Que perderiaeu com isso? Alguns dias de paz, talvez; mas a certeza deser amada é uma grande compensação. O Purgatório não é

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uma porta que abre para o Céu? Cada qual sabe amar a seumodo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar.Pode ser que eu me engane, continuou ela pondo-lhe asmãos na fronte, mas eu creio que há nesta cabeça muitaimaginação, e imaginação doente. Ou então...

— Ou então? repetiu o médico, vendo que ela fazia umapausa.

— Ou então, a doença está aqui, concluiu Lívia apontando-lhe para o coração. Não importa; eu suportarei tudo,contanto que me ame.

— Oh! Lívia, exclamou Félix, depois de lhe beijarternamente a fronte, essa resolução será o penhor do nossofuturo. Consulte o seu coração; veja se há nele bastantemisericórdia para mim, e prometo-lhe que seremos felizes.

— Tudo lhe perdoarei, contanto que me ame, disse a moça.

Compreenderia ela então que dolorosa e pesada obrigaçãocontraíra? Talvez não. Confiava em si mesma, no prestígiodo seu amor, no coração de Félix, para vencer tudo, erealizar o que era agora o sonho da sua vida.

O caminho melhor para isto era seguramente o da igreja.Que obstáculo podia haver? Um e outro dependiamexclusivamente de si; o casamento era o desfecho lógico esacramental daquele romance. Mas nem a viúva o

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insinuava, nem o médico o propunha, e nesta situação maldefinida alguns dias correram de tranqüila felicidade.

Aos olhos estranhos buscavam ambos esconder o seusegredo; mas a reserva de Lívia era apenas a que bastavapara acatar as conveniências, ao passo que a de Félix era tãocompleta e calculada que à própria moça iludia. Estafacilidade de dissimulação desconsolou-a. Achava-aperfeita demais. Era um sintoma de tranqüilidade quedesdizia com o amor impetuoso de Félix. Demais, que razãohaveria para esconder tão misteriosamente dos olhos dosoutros, uma coisa que deveria e não tardaria a ser pública?

A indiferença de Félix, entretanto, não era tão completacomo parecia, era uma indiferença vigilante. Quando osolhos da viúva procuravam os do médico, este desviavacautelosamente os seus; mas olhava, digamo-lo assim, porbaixo da pálpebra.

Foi então que começou para ela uma vida de luta.

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O amor de Félix era um gosto amargo, travado de dúvidas esuspeitas. Melindroso lhe chamara ela, e com razão; a maisleve folha de rosa o magoava. Um sorriso, um olhar, umgesto, qualquer coisa bastava para lhe turbar o espírito. Opróprio pensamento da moça não escapava às suassuspeitas: se alguma vez lhe descobria no olhar a atonia dareflexão, entrava a conjeturar as causas dela, recordava umgesto da véspera, um olhar mal explicado, uma fraseobscura e ambígua, e tudo isto se amalgamava no ânimo dopobre namorado, e de tudo isto brotava, autêntica eluminosa, a perfídia da moça.

Lívia preferia decerto uma confiança honesta e leal, mas adesconfiança estava longe de lhe amargurar o coração,aceitava-a com alegria.

— Antes isto, dizia-lhe depois de uma reconciliação; vejoque me ama. A confiança também se parece com aindiferença, e a indiferença é o pior de todos os males.

Esta filosofia teve seus instantes de desmaio. Não bastava aforça do amor para resistir à suspeita de todos os dias, quese apagava às vezes logo, mas que renascia depois, para denovo se apagar e renascer. Lívia começou a fugir doslugares que até então freqüentava habitualmente. Rarasvezes aparecia no teatro ou numa reunião. Félixcompreendeu a causa desta reserva e disse-lha. A moça

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negou; mas, como ele insistisse em afirmar e pedir que elanão alterasse os seus hábitos, respondeu:

— É bom de dizer, Félix; assim vamos melhor; lá foracomo aqui, lá pior do que aqui, a menor coisa basta para lhetransviar o espírito.

— Juro-lhe que não.

Jurava, mas quebrava o juramento. O espírito não ratificavaas promessas do coração.

De que lhe servia a ela a máxima prudência nas suasrelações com as demais pessoas, se tudo era pouco paraobter a confiança de Félix? Uma hora de inalterávelfelicidade era comprada à custa de muitas horas de tédio, àsvezes de lágrimas. Ele as sentia decerto, e pagar-lhas-iacom sacrifícios, se precisos fossem; mas eram curtos esseslúcidos instantes.

Lívia não se acostumou a ler logo na fisionomia do médico.Ele possuía em alto grau a faculdade de esconder o bem e omal que sentisse. Era uma faculdade preciosa, que oorgulho educara, e se fortificou com o tempo. O tempo,entretanto, a pouco e pouco lhe foi adelgaçando essacouraça, à medida que se prolongava e multiplicava a luta.Então os olhos da viúva aprenderam a soletrar-lhe no rostoos terrores e as tempestades do coração. Às vezes, no meiode uma conversa indiferente, alegre, pueril, os olhos de

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Lívia se obscureciam e a palavra lhe morria nos lábios. Arazão da mudança estava numa ruga quase imperceptívelque ela descobria no rosto do médico, ou num gesto malcontido, ou num olhar mal disfarçado.

Esta situação pôde esconder-se aos olhos de todos, menosaos de Luís Batista. Observador e perspicaz, e ao mesmotempo sem paixões nem escrúpulos, percebeu este quequanto mais o amor de Félix se tornasse suspeitoso etirânico, tanto mais perderia terreno no coração da viúva, eassim roto o encanto, chegaria a hora das reparaçõesgenerosas com que ele se propunha a consolar a moça dosseus tardios arrependimentos.

Para alcançar esse resultado, era mister multiplicar assuspeitas do médico, cavar-lhe fundamente no coração aferida do ciúme, torná-lo em suma instrumento de suaprópria ruína. Não adotou o método de Iago, que lhe pareciaarriscado e pueril; em vez de insinuar-lhe a suspeita peloouvido, meteu-lha pelos olhos.

A dificuldade era certamente maior e mais delicada, mas opretendente tinha em larga escala as qualidades precisaspara ela. Era-lhe necessário afetar com a moça umaintimidade misteriosa, mas discreta, sem aparato, antescercada de infinitas cautelas, tão hábil que ela nãopercebesse, mas tão claramente dissimulada que fossedireito ao coração de Félix.

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Mas a mulher dele? A mulher dele, amigo leitor, era umamoça relativamente feliz. Estava mais que resignada, estavaacostumada à indiferença do marido. Dera-lhe aProvidência essa grande virtude de se afazer aos males davida. Clara havia buscado a felicidade conjugal com a ânsiade um coração que tinha fome e sede de amor. Não logrou oque sonhara. Pedira um rei e deram-lhe um cepo. Aceitou ocepo e não pediu mais.

Todavia o cepo não o fora tanto antes do casamento. Paixãonão a teve nunca pela noiva; teve, sim, um sentimento todopessoal, mistura de sensualidade e fatuidade, espécie deentusiasmo passageiro, que os primeiros raios da lua-de-melabrandaram até apagá-lo de todo. A natureza readquiriu osseus aspectos normais; a pobre Clarinha, que havia ideadoum paraíso no casamento, viu desfazer-se em fumo a suaquimera, e aceitou passivamente a realidade que lhe deram,— sem esperanças, é certo, mas também sem remorsos.

Faltava-lhe, — e ainda bem que lhe faltava, — aquelacuriosidade funesta com que o anfíbio clássico,desenganado do cepo, entrou a pedir um rei novo, e veio ater uma serpente que o engoliu. A virtude salvou-a da quedae da vergonha. Lastimava-se, talvez, no refúgio do seucoração, mas não fez imprecações ao destino. E como nemtinha força de aborrecer, a paz doméstica nunca foraalterada; ambos podiam dizer-se criaturas felizes.

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Ora, pois, enquanto Clarinha nenhum lugar ocupava noespírito do marido, este executou o plano que haviaorganizado. O resultado foi lento, mas certo. O coração deFélix bebeu aos poucos o veneno que lhe propinavatranqüilamente o astuto rival; mil circunstâncias fortuitasvieram favorecer a obra de Luís Batista. O espírito de Félixera apropriado terreno para ela; a suspeita rara vez lhemorria em embrião; uma vez lançada a semente, germinavacom força, crescia, apoderava-se dele, e então batia a horada crise, a hora que o seu rival pacientemente esperou, econseguiu.

Desta vez assentou Félix numa resolução heróica: romper oencanto que o prendia à bela viúva. Tinham já passadoalguns meses, todos eles assim entremeados de felicidade eamargura. Cem vezes se convencera das suas injustiças;mas a cada suspeita nova ressurgiam as anteriores, as queela perdoara, e a última confirmava então as primeiras, e opobre rapaz achava-se sinceramente ludibriado e ridículo.

Escreveu uma carta longa e violenta, em que acusava amoça de perfídia e dissimulação. Havia amargura na carta,mas havia também ódio e desprezo, tudo quanto podia ferirpara sempre um coração que até ali soubera amar e sofrer,mas que enfim podia cansar e desprezar.

Enviada a carta, deixou-se ele entregue à sua dor, disposto anão voltar a Catumbi. Ninguém viu então uma lágrima queo desespero lhe arrancou, e que ele se apressou de enxugar

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com vergonha de si mesmo. Recapitulou então todos ossucessos dos últimos dias; nunca lhe parecera mais evidentea traição da moça, nem mais cruel a situação do seuespírito. Um raio de esperança veio entretanto projetar-se nasua noite de dúvidas. Imaginou que tudo podia ser erro eilusão, e, esperou que a resposta de Lívia tudo viesseesclarecer.

Não esclareceu a resposta da moça, porque o portador dacarta voltou sem ela. Ao ciúme que o devorava, veiomisturar-se o despeito; complicou-se a dor com o orgulhoofendido. Lívia apareceu-lhe com todos os caracteres deuma loureira vulgar, e loureira não traduz bem opensamento do moço.

Nesse estado passou Félix o resto do dia. Longas lhecorreram as horas, friamente longas como elas são, quandoo coração padece ou espera. Enfim, caiu a tarde, apagou-sede todo o sol, as sombras da noite começaram a lutar comos derradeiros lampejos do crepúsculo, até que de tododominaram o céu.

A melancolia da hora insinuou-se no coração do médico, e apouco e pouco lhe aquietou o desespero do dia. Félixmeditou longo tempo na situação que as circunstâncias lhehaviam criado. Viu o imenso espaço que aquele amor lhetomara na vida, e a terrível influência que poderia exercernela, caso não achasse forças para resistir à separação. Qualseria o meio de escapar a esse desenlace, pior que tudo?

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Félix pensou numa viagem, como o meio mais fácil epronto. Dispunha mentalmente as coisas para esse fim,quando ouviu parar um carro.

Daí a pouco entrou um escravo dizendo que uma pessoainsistia em falar-lhe: era uma senhora.

— Uma senhora! repetiu Félix.

Era Lívia. Quando Félix chegou à sala, estava ela à porta,com o rosto coberto por um véu que arregaçouimediatamente. Félix não pôde reter um grito de surpresa.

Lívia trazia pela mão um menino: era o filho. Caminhoupara o médico depois de alguns instantes de absolutosilêncio, e estendeu-lhe a mão.

— Não esperava a minha visita? disse ela comtranqüilidade.

— Confesso que não.

— Devia esperar, porque eu não havia respondido à suacarta, e alguma coisa cumpria que lhe dissesse.

— Não receou que os olhos da sociedade... disse ele.

— A sociedade está tomando chá, atalhou a viúvaprocurando sorrir. Era preciso que eu viesse e vim.

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Félix fez um movimento.

— Sim, era preciso, insistiu Lívia. Uma carta seria já inútil;entre nós as cartas perderam a virtude, Félix. Eu já não sei,já não tenho palavras com que lhe restitua a confiança aocoração. Esta ousadia talvez...

A luz batia de chapa no rosto da moça; Félix viu tremerem-lhe duas lágrimas nos olhos, hesitarem um instante, erolarem depois na face, levemente corada de agitação e depejo.

— Fui talvez cruel no que lhe escrevi, disse ele, e querocrer que fosse também injusto, mas amo-a, é todo o meucrime...

Lívia suspirou.

— Não o amo eu também? disse ela. Nem por isso sou cruelou injusta. Mas não o acuso; se o acusasse não viria aqui.Venho porque sei que padece, e a despeito de tudo devia vir.

Félix conduziu-a para o sofá, e sentou-se numa cadeira.Luís ficou de pé, entre ele e ela, meio indiferente, meiocurioso do que ouvia sem entender.

— Não receou que este menino pudesse dizer algumacoisa? perguntou Félix.

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— Não pensei nisso. Fui visitar Raquel, que está muito mal;fui só com ele. Tinha a idéia de vir às Laranjeiras: issodominava tudo. Se conseguir dissipar-lhe as novas dúvidasque o afligem, pouco me importam as conseqüências. Quequer? Eu sou assim. Vejo no mundo o meu amor e a suafelicidade; tudo o mais me é estranho ou nulo.

Lívia dizia estas palavras com um tom singelo everdadeiramente d'alma, que comoveu o médico.

— Oh! para isso basta uma coisa, disse Félix comimpetuosidade. Jura-me que nenhuma razão havia parasuspeitar?

Lívia abriu muito os olhos como espantada do que ouvira;depois, abanando tristemente a cabeça:

— O senhor há de quebrar todo o meu orgulho, disse comamargura. Eu arrisco tudo para lhe restituir a felicidade e apaz; o senhor recompensame este sacrifício com ahumilhação. Jurar-lhe! De que serve um juramento maisentre nós? Se o que acabo de fazer não é bastante, Félix,concluamos aqui o nosso romance; e oxalá que algumapágina dele possa algum dia lembrar-lhe com saudade.

Dizendo estas palavras, a moça voltou o rosto para escondera sua comoção. Félix sentiu pungir-lhe um remorso, e teveímpeto de cair aos pés da bela viúva. Murmurou algumas

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palavras, que ela não percebeu ou não ouviu, até que omenino chamou a atenção de ambos, dizendo:

— Vamos, mamãe?

Lívia levantou-se e desceu o véu sobre o rosto.

— Perdoe-me tudo, disse Félix; ainda uma vez lhe peçoperdão. Não me julgue como os outros fariam, seconhecessem esta triste história de alguns meses. Não soumau; falta-me confiança; algum dia lhe direi por quê. Poragora, perdoe-me outra vez. Injuriei-a, bem sei; não deviapedir-lhe nada mais, porque me deu generosamente a maiorconsolação que o meu espírito ousaria esperar.

— Esse homem? disse a viúva, depois de um instante.

— Por que me pergunta?

— Quero afastá-lo de minha casa, se ele lá vai, ou evitar asocasiões de me encontrar com ele.

— É um homem que a não respeita sequer, um libertino,cuja mulher é um anjo...

— O Dr. Batista?

— Esse.

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Lívia estendeu-lhe a mão. Félix quis ainda falar-lhe, mas aviúva observou que era tarde e dirigiu-se para a porta. Félixacompanhou-a até o jardim. Ao despedir-se dela pela últimavez, o médico apertou-lhe Félix fervorosamente a mão.

— Perdoa-me?

— Sim! disse ela.

E pela primeira vez nessa noite era a sua voz terna eamorosa como de costume.

Félix viu-a entrar no carro que partiu imediatamente. Voltoupara a sala. Estava irritado contra si mesmo. Reconhecia asua precipitação; achava-se grosseiramente injusto. Se lhehouvera lembrado a visita da moça, tê-la-ia pedido como omeio único de lhe desvanecer de todo as suspeitas. Agoraque ela o deixava, acusava-se de a haver obrigado àqueleextremo recurso.

A noite pareceu-lhe ainda mais longa que o dia. Velava eremordia-lhe a consciência. Ouviu bater uma por uma ashoras todas, ansioso por que viesse o dia seguinte para ir aCatumbi resgatar à força de ternura e respeito a injustiçacom que tratara a viúva. Cerrou os olhos quando a arraiadadespontou no céu; pouco dormiu, entretanto. Ao levantar-setinha o espírito mais sossegado, e pôde apreciar melhor asituação.

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— O casamento me restituirá a confiança, pensava ele;quando estivermos juntos os dois, afastados da convivênciae do contato de estranhos, a paz morará no meu coração; sóentão seremos felizes sem amargura nem remorso.

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A doença de Raquel era grave; durante alguns diaschegaram a recear um desenlace funesto. Os velhos paisquase enlouqueceram, quando o médico os preparou para aterrível catástrofe. A menina percebeu o seu estado, masnem o medo da morte, nem a saudade da terra lhe fez doer ocoração. Morria como flor que era. A mágoa era toda paraos que a viam assim condenada sem remédio.

O médico assistente dera à moléstia um nome tirado não seise do grego, se do latim. Na opinião da mãe, havia algumacoisa mais do que o nome e a moléstia; havia umainexplicável melancolia, anterior à doença, uma espécie detédio precoce da vida, se não era antes alguma esperançamalograda, — ou mais claramente, alguma afeição semesperança.

Para obter dela a confissão que imaginava, tinha D. Matildeo necessário tato e doçura: era mulher e mãe. Mas, ouporque nada houvesse realmente, ou porque quisesse levarconsigo o segredo da sua melancolia, Raquel nenhumaconfissão lhe fez.

Dois dias depois da visita de Lívia, Félix foi à casa docoronel. O coronel estava na sala, mergulhado numapoltrona, com os olhos parados e as feições abatidas pelavigília e pela dor. Quis levantar-se quando Félix apareceu àporta, mas este correu para ele e impediu o movimento.

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— Soube anteontem do estado de sua filha, disse Félixsentando-se ao lado do velho pai. Disseram-me que estavamal...

— Mal, repetiu o coronel, definitivamente mal. A poucaesperança que tínhamos veio tirar-no-la o médico. O senhornão sabe o que é perder assim metade da alma.

Félix disse algumas palavras banais de consolação, echegou até a falar de esperança; mais ainda que a esperançafala sempre ao coração dos desgraçados, o bom velho emoutra coisa não acreditava mais que na morte.

Algum tempo estiveram calados; enfim o coronel rompeu osilêncio:

— Raquel é muito sua amiga, disse ele. Duas vezesperguntou pelo senhor.

— Desde quando está doente?

— De cama está há quinze dias; mas já sofria antes disso. Aprincípio não me deu muito cuidado; a moléstia, porém,agravou-se rapidamente, e tem ido a pior.

Foram interrompidos pelo médico assistente. Tinha estesido companheiro de Félix na escola. Ao vê-lo ali suspeitouque o tivessem mandado chamar; Félix apressou-se aexplicar o motivo da sua visita.

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— Em todo o caso, doutor, disse o outro, aproveito as suasluzes, e façamos, se lhe parece, uma conferência.

O coronel foi ver se Raquel estava acordada; voltou poucodepois e acompanhou os dois médicos à alcova da doente.

Félix foi o primeiro que assomou à porta; parou algunsinstantes, impressionado com o espetáculo que se lheoferecia.

Sentada à cabeceira da cama estava D. Matilde, descorada eabatida, com os olhos túmidos, e porventura cansados dechorar. Aos pés da cama via-se uma moça amiga da infânciade Raquel, e sua dedicada enfermeira nesta ocasião. Ambas,triste e silenciosamente, contemplavam a doente.

Raquel estava branca como a fronha do travesseiro em quedescansava a formosa cabeça. Tinha os lábios entreabertos ea respiração curta e difícil. O pequeno rumor que fizeram osmédicos ao entrar um pouco a sobressaltou. Raquel abriu osolhos, que ardiam de febre.

Quando Félix se aproximou do leito e tomou o pulso damoça, esta olhou para ele e fez um gesto de espanto. Olhoudepois em volta de si, como se duvidasse do lugar em quese achava. D. Matilde inclinou-se para a filha e disse:

— É o Dr. Félix.

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Raquel olhou outra vez para Félix, com aquele sorrisoapagado e triste dos doentes e murmurou:

— Obrigada!

— Como se sente? perguntou Félix.

— Melhor, disse ela com uma voz tão fraca que parecia umsuspiro.

— Deveras melhor?

Raquel fez um gesto de indiferença e não respondeu.

— Vamos lá, não desanime, disse Félix, e sobretudo nãofaça entristecer seus pais, que lhe querem tanto.

Félix examinou a doente, fazendo-lhe algumas perguntas, aque ela debilmente respondia. Quando ele cessou de ainterrogar, a moça murmurou:

— Morro, não é?

— Não, disse Félix, não há de morrer, não deve morrer.Tem ainda vida larga, mas é preciso ânimo.

Raquel fez um gesto de quem não acreditava nas boaspalavras do médico, e voltou os olhos para a mãe. D.Matilde tinha os seus cravados em Félix, como se lhe

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quisesse ler no rosto a sentença da filha. A doente pareceuadivinhar o pensamento, e disse com esforço:

— Por que não dá as suas consolações a mamãe?

A conferência não durou muito tempo. Félix começouopinando por uma modificação no tratamento até aliseguido, e declarou que não julgava todas as esperançasperdidas. O colega concordou facilmente na alteraçãopedida por Félix, tanto mais, disse ele, quanto as esperançaseram nenhumas.

Em sua opinião, Raquel estava irremediavelmente perdida.Não era opinião aérea e infundada; ele podia demonstrá-lacom argumentos cabais e irrefutáveis. Demonstrou-oefetivamente, durante vinte minutos, com a justa apreciaçãodos fatos, os dados seguros da ciência, e uma dialética tãocerrada que era impossível fazer-lhe a menor objeção.

Quinze dias depois, entrava Raquel em convalescença.

No sentir dos pais, era Félix o salvador da filha. Fora elequem lhes restituíra a esperança, e a realizara com os seusbons conselhos e diligente desvelo.

O colega de Félix, para quem o restabelecimento da moçaera a destruição de todas as noções médicas recebidas, ficouprofundamente surpreendido com esse resultado. Em todocaso, era impossível negá-lo; limitou-se a aplaudi-lo, equando a moça entrou em convalescença aconselhou os pais

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que a mandassem para algum arrabalde da cidade, a fim derespirar ares melhores.

Não podia vir mais a propósito o conselho. Lívia mudara-separa as Laranjeiras. A idéia da mudança era de Viana, queum dia a propôs à irmã, e fora aprovado por ela. A casaficava pouco acima da de Félix, do lado oposto.

Era um prédio elegante, levantado no meio de uma chácara,não extensa nem esmeradamente tratada. Viana, entretanto,organizara um programa de reforma, que prometia executarpontualmente. Seu contentamento parecia não ter limites;além de preferir aquele bairro ao outro em que morava,havia a circunstância de ir ficar ao pé da casa de Félix, — oque era já meia felicidade, dizia ele.

Lívia aprovara a mudança sob a influência de igual idéia.Aqueles últimos dias tinham sido de plena e deliciosa paz.Seus projetos de futuro eram imensos; delineava uma vidaindependente de todas as escravidões sociais, vida exclusivadeles, cheia de todos os prestígios da poesia e do amor. Àsvezes receava que esses sonhos fossem apenas sonhos.Ainda assim não os dera por nenhum preço deste mundo.

Estavam então nos primeiros dias de outubro; o casamentofora marcado para meados de janeiro. Marcado, entenda-sebem, apenas entre os dois, porque Félix conseguira da viúvaa promessa de que a notícia seria dada nas vésperas doacontecimento.

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— Mas a razão deste segredo? perguntou Lívia depois delhe prometer o que pedia.

— Um capricho.

A razão verdadeira era a vacilação do seu espírito; mas aque ele deu contentou perfeitamente a moça.

— Se eu tivesse o teu coração, disse ela, desconfiava destaexigência; mas, vê lá, eu creio em ti.

Estavam sós na chácara; Viana, fiel ao seu programa de nãoperturbar os dois namorados, foi meditar a alguma distâncianas reformas que pretendia fazer. Caminhavam os doiscalados e distraídos, ou melhor, concentrados em simesmos. De repente, a viúva levantou a cabeça e dissecomo continuação das suas anteriores palavras:

— Há contudo ocasiões em que esta confiança pareceabalar-se, não porque eu duvide de ti, mas porque duvidodo destino. Já te disse que sou supersticiosa, — defeito dasmulheres e das crianças. Estremeço algumas vezes, quandoencaro o futuro, e, sem saber por que, pergunto a mimmesma qual será o fim de tudo isto. Desmaios apenas, eraros, de um coração que ambiciona, talvez, mais do quepoderia obter.

— Não te parece que eu esteja emendado? disse Félixsorrindo. Há quantos dias não há sequer...

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— Cala-te! interrompeu Lívia tocando-lhe os lábios com osdedos. Tenho medo de te ouvir falar assim.

E depois de um instante de silêncio:

— Não é o teu coração que me faz tremer; o teu coração ébom. Não é também o teu espírito, apesar de caprichoso,visionário, inconstante. Receio do futuro, à vista dopassado.

— Do passado? perguntou Félix estacando o passo.

Lívia suspirou.

— Que houve de mau no teu passado? continuou o médicofitando nela um olhar perscrutador.

— Tudo.

Havia perto um velho sofá de vime. Lívia encaminhou-selentamente para ele e sentou-se. Félix contemplou-a algumtempo do lugar em que ficara. Já não sorria; a dúvidaensombrava-lhe os olhos. Enfim, deu alguns passos e parouem frente dela.

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— Serei indiscreto perguntando que passado foi esse? disseFélix depois de alguns instantes.

— Oh! descansa! Não me pesa nada na consciência; mas nocoração...

— Amaste alguém?

— Amei a meu marido.

A esta resposta de Lívia seguiu-se novo e longo silêncio. Amemória do passado a que ela tão misteriosamente aludiraparecia doer-lhe na alma. Arfava-lhe o seio, e as mãos, emque o médico amorosamente tocou, estavam geladas etrêmulas.

— Não acreditas que eu possa compreender-te melhor queos outros? perguntou finalmente o médico.

— Talvez não.

Félix fez um gesto de despeito. A moça arredou o vestido eabriu espaço no sofá, onde o médico se sentou a um sinaldela.

— Talvez me não compreendas melhor que os outros,continuou Lívia, e com isto não quero dizer que sejas tãovulgar como os mais deles. Não o és; mas há coisas que umhomem dificilmente compreenderá, creio eu.

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— Nem quando ama? perguntou Félix.

Lívia não respondeu; Félix continuou:

— Mas que passado foi esse? Posso não compreender-te,como dizes, mas saberei dizer-te algumas palavras deconsolação, e dissipar com elas a tristeza que te ficar destaconfidência, que não é um remorso, decerto.

— Amei a meu marido, começou Lívia, e toda a minhaconfidência se resume nessas poucas palavras. Tive umapaixão da primeira idade, quando o amor vem surpreender aignorância do coração. Será esse o amor mais forte? Háquem diga que o primeiro amor nasce apenas danecessidade de amar. Pode ser. Hoje que te amo sinto quepode ser assim. Em todo o caso, aquele afeto dominoumetoda; cobrei uma vida que me parecia imortal.

— E ele?

— Amava-me, creio, mas não entendíamos o amor domesmo modo; tal foi o meu doloroso e tardio desencanto.Para mim era um êxtase divino, uma espécie de sonho emação, uma transfusão absoluta de alma para alma; para ele oamor era um sentimento moderado, regrado, um pretextoconjugal, sem ardores, sem asas, sem ilusões... Erraríamosambos, quem sabe?

— Vejo que eram incompatíveis, interrompeu Félix; mas,por que exigir de todos essa maneira de ver e sentir, que é

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mais da imaginação que da realidade?

Lívia levantou os ombros.

— Estou explicando a situação da minha alma, continuouela. Foi aflitiva e triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Eraum homem apático e frio; honesto, é verdade, e bomcoração, mas falávamos língua diversa e não nos podíamosentender. Confiei todavia na influência do amor. Empreendia tarefa de o trazer à atmosfera dos meus sentimentos,errada tentativa, que só me produziu atribulação e cansaço.Fatigava-o com isso a que ele chamava pieguices poéticas;da fadiga passou à exasperação, da exasperação ao tédio.No dia em que o tédio apareceu conheci que o mal estavaconsumado. Quis emendá-lo e não pude. Tinha feito danossa vida conjugal um deserto; e se a minha alma clamavacontra o destino, minha consciência me acusava de um erro,o erro de haver perturbado a paz doméstica, a troco de umsonho que não veio. Não me faço melhor do que sou, bemvês; mas uma parte da culpa não será da natureza que mefez tão pueril? Tal é o meu receio agora, continuou Líviadepois de alguns segundos de silêncio; às vezes cuido quenão vim ao mundo para ser feliz nem para dar a felicidade aninguém. Nasci defeituosa, parece. Serás tu capaz dedesfazer a apreensão ou corrigir o defeito?

A viúva concluiu estendendo-lhe a mão que o médicoapertou entre as suas. Um sorriso de simpatia ou decomiseração, ou de ambas as coisas juntas, entreabriu os

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lábios de Félix. Nenhum deles falou; ambos pareciamconversar consigo mesmo. Enfim, a viúva repetiu apergunta.

— Talvez possa dissipar-te a apreensão, respondeu Félix;mas, creio que não será fácil. Tens um coração ainda muitocriança, e que o há de ser até a morte, penso eu.

Félix calou-se, e contemplou à vontade a fisionomia daviúva, que tinha os olhos postos no chão, absorta epensativa. A pouco e pouco o rosto do médico se foiigualmente fechando, e ambos, durante largo espaço, sedeixaram ir na corrente de seus pensamentos sombrios.Félix foi o primeiro que despertou do letargo.

— Naufragaste à vista de terra, disse ele, e do naufrágiotrouxeste apenas úmidos os vestidos. Sabes o que énaufragar em mar alto e solitário, e perder tudo, até a vida?Foi assim comigo.

— Sim? disse Lívia com um tom em que a alegria semisturava à curiosidade.

Félix não pôde reter um sorriso.

— O infortúnio é egoísta, pensou ele.

E continuou:

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— Sim, perdi muito mais. Abraçar um cadáver, que é issopara quem já abraçou uma serpente? Tu perdeste apenasalguns anos de amor mal compreendido; não perdeste umbem precioso, que o tempo me levou: a confiança. Podeshoje ser feliz do mesmo modo que o querias ser então; bastaque te ame alguém. Eu não, minha querida Lívia, falta-me aprimeira condição da paz interior: eu não creio nasinceridade dos outros.

Aqui parou como se esperasse alguma observação da viúva;ela, porém, olhava para ele tranqüila e até risonha. Félixcontinuou as suas confidências do passado. Eram históriasde afeições malogradas e traídas, contadas com sinceraexpansão, como se estivesse falando a si mesmo. Às vezes acomoção fazia tremer-lhe a voz, e nessas ocasiões,sobretudo, lia-se nos olhos da moça o enlevo com que elaouvia falar-lhe o coração.

— Ninguém desperdiçou mais generosamente os afetos doque eu, continuou o médico, ninguém mais do que eu soubeser amigo e amante. Era crédulo como tu; a hipocrisia, aperfídia, o egoísmo nunca me pareceram mais quelastimáveis aberrações. Meu espírito criara um mundo seu,uma sociedade platônica, em que a fraternidade era a línguauniversal, e o amor a lei comum. Deixei-me ir assim, rioabaixo dos anos, gastando a seiva toda da juventude, semcálculo nem arrependimento, até que me bateu a hora dasdecepções funestas.

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Calou-se. Sentira um rumor próximo; era Viana quepasseava na chácara entregue às suas combinações dehorticultura. Ouviria ele a voz de Félix? Parece que sim,porque a pouco e pouco se foi afastando do lugar. Os doisficaram outra vez sós. O médico prosseguiu:

— Não me caíram as ilusões como folhas secas que umdébil sopro desprega e leva, foram-me arrancadas no plenovigor da vegetação. Não me deixaram essas docesrecordações, que são para as almas enfermas como que umaaura de vitalidade. Meu espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel misantropia, a princípio irritada eviolenta, depois melancólica e resignada. Calejou-se-me aalma a pouco e pouco, e o meu coração literalmentemorreu.

Félix continuou a narração por este mesmo tom elegíaco etriste. Foi longa e fiel. Se a viúva não o escutasse só com ocoração, poderia perceber alguma coisa mais do queressentimento e amargura. Félix não era virtualmente mau;tinha, porém, um ceticismo desdenhoso ou hipócrita,segundo a ocasião. Não perceberia só isso; veria tambémque a natureza fora um tanto cúmplice na transformaçãomoral do médico. A desconfiança dos sentimentos e daspessoas não provinha só das decepções que encontrara;tinha também raízes na mobilidade do espírito e nadebilidade do coração. A energia dele era ato de vontade,não qualidade nativa: ele era mais que tudo fraco e volúvel.

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Lívia não percebia nada disto; escutava-o com a fé pia deum coração amante. Sabendo que a razão do atualabatimento eram os infortúnios passados, ela confiava de simesma o renovar aquela alma que envelhecera antes dotempo. Tais foram as suas consolações quando o médicoterminou a longa confidência. Ele agradeceu-lhascomovido, não sem lhe perguntar se ela teria força bastantepara concluir essa missão piedosa.

— Tenho, afirmou Lívia.

— É certo que me ressuscitaste, continuou o médico; e se ofuturo me guarda ainda alguns dias de felicidade semmescla, a ti só os deverei, minha boa Lívia; tu só haverásfeito o milagre. Mas...

— Mas? repetiu a moça com impaciência.

— A obra não está completa, continuou Félix; metadeapenas. Fizeste brotar dentre as ruínas uma flor solitária,mas bela; única neste árido terreno do meu coração. Nãobasta; é preciso agora um raio que a anime e lhe conserve operpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas ade todos os dias, a que não falece nunca e nos restitui aserenidade dos primeiros tempos. Sem ela, o meu amor seráum largo e inútil martírio.

Dizendo isto, conchegou-a ao seio; tocavam-se quase osrostos, que a ternura, não a voluptuosidade, enlanguescia.

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Não foi longo esse instante de mútua contemplação, masvaleu por muitas horas de prática. Se a vida pudesse sereternamente aquilo, é provável que o coração de Félixadquirisse a paz que almejava. Enfim, a moça deixou cair ocorpo, como se lho debilitasse o peso de comoções tãovivas, e a palavra afluiu aos lábios de ambos.

Falaram então em prosa; conversaram de seus projetos defuturo, dos arranjos do casamento, de uma viagem quefariam logo depois. Iam levantar-se quando ao longe lhesapareceu o irmão de Lívia. Caminhava apressadamente ealegre, ao encontro dos dois namorados. Félix compôs orosto com a expressão que o caso pedia; Viana aproximou-se, e disse à irmã que o Coronel Morais estava na sala coma filha.

Lívia pediu licença ao médico e dirigiu-se para a casa. Félixdeu o braço a Viana.

— Falávamos das suas reformas, disse ele, e fazíamosprosaicamente o orçamento da despesa que vai ter.

Viana sorriu-se à socapa, mas não deixou cair o assunto nochão. Falou com volubilidade dos seus planos, que eramvastos e originais, concluindo por uma singela confissão,acompanhada de um olhar indagador.

— Receio, disse ele, que a Lívia se case mais tarde ou maiscedo.

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Félix limitou-se a sorrir com indiferença; entravam ambosna sala.

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Lívia e Raquel estavam assentadas no sofá; o coronel,encostado a uma cadeira, consultava o relógio. Nãoconsultava; tinha o relógio na mão, diante dos olhos, mas osolhos reviam-se na filha, enquanto esta respondia àsperguntas da viúva.

— Aqui está a doente, disse Lívia apenas viu assomar àporta da sala o médico e o irmão.

Raquel voltou a cabeça, e não pôde reter uma exclamaçãode surpresa e de alegria. Félix adiantou o passo e foiapertar-lhe a mão.

— Então? não está salva? disse ele olhando alternadamentepara as duas moças.

— Foi o senhor que a salvou, disse o coronel chegando-seao grupo.

— Não fui; auxiliei a natureza, nada mais.

— Havemos de pô-la totalmente boa e viva como era antes,disse Lívia dando um beijo na convalescente.

Raquel ouviu este diálogo com um sorriso triste que pareciaainda mais triste naqueles lábios sem cor. Estavaextremamente pálida e magra; os olhos, agora que o fogo dafebre se apagara neles pareciam amortecidos e fundos.Ainda assim, não perdera ela a sua natural gentileza. Mais:

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a própria morbidez do aspecto como que lhe dava realcemaior.

Talvez essa circunstância influísse na impressão que omédico agora recebia; pela primeira vez lhe pareceu Raqueluma mulher.

O coronel respirava felicidade por todos os poros. A alegriaque perdera durante a moléstia da filha, voltava agora maisque nunca ruidosa e comunicativa. Era um velho palreiro ejovial, amigo da palestra e de anedotas, antes gracioso quechocarreiro, tendo aquela amável gravidade com que agente se familiariza sem perder o respeito. De quando emquando olhava para a filha com olhos paternalmentenamorados, então parecia esquecer-se do resto do mundo,porque o mundo inteiro, ao menos parte dele, que a outraparte lhe ficara em casa, estava ali resumida naquelafranzina e alquebrada criatura.

— E promete-me que ma restituirá, disse ele à viúva, nãocorada, que ela nunca o foi, mas com aspecto de saúde, vivacomo era, e alegre, e até se quiser travessa?

— E por que não? Os ares são bons; os carinhos serãofraternais, e melhor que os ares e os carinhos, há de curá-laa natureza, e creio também que a boa vontade dela. Não éassim? disse Lívia batendo na face de Raquel.

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A resposta de Raquel foi dar-lhe um beijo, e sorrir, não játristemente como da primeira vez. A tarde caíra de todo. Ocoronel fez algumas recomendações derradeiras à filha,agradeceu à viúva e ao médico, meteu-se no carro e voltoupara Catumbi. Lívia foi mostrar à amiga o seu aposento;Félix despediu-se de ambas e dirigiu-se para a porta.

— Volta? perguntou Lívia.

— Talvez não, minha senhora, respondeu Félix, cujaintenção positiva era ir lá tomar chá.

A presença de Raquel veio de algum modo alterar asrelações dos dois namorados. Já não podiam ser freqüentesas entrevistas solitárias em que ambos se esqueciam domundo e de si. Mais que nunca, procurou Félix recatar o seuamor das vistas alheias, por modo que, apesar daconvivência que tinha com os dois, Raquel nada suspeitouentre eles. Alguma coisa adivinharia se reparasse que aviúva, quando estava com ela, quase que só falava domédico; mas, como ela também não falava de outra pessoa,parecia-lhe que era antes a viúva quem a imitava.

Por esse tempo começou Meneses a freqüentar a casa deViana, com quem travara relações alguns meses antes. Félixfez a respeito dele um elogio sincero e merecido. O parasitaacompanhou a boa opinião do médico com um entusiasmoque cheirava a bons jantares. O advogado correspondeu à

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expectação da viúva e não tardou que se tornasse familiarna casa.

Estava curado da sua malfadada paixão. Curado e vexado,dizia ele, quando Félix o interrogou a esse respeito.

— Estes amores são as lições da escola de meninos,concluiu Meneses sorrindo. Já saíste da primeira escola; porque não sobes de estudos?

A esta metáfora, um tanto rebuscada, respondeu Félix comum sorriso que podia confessar e negar ao mesmo tempo.Meneses, que não tinha nenhuma intenção oculta nas suaspalavras, não se deu a averiguar qual das duas expressõesconvinha ao sorriso do amigo. As relações de ambospareceram estreitar-se mais. Com um pouco mais deexpansão e confiança, teria o médico referido ao amigo osseus amores e a sua felicidade próxima. Não o fez, nemMeneses lho adivinhou. Teve suspeitas uma noite em quesurpreendeu os olhos da viúva amorosamente cravados nomédico, mas a indiferença com que este se levantou para irgracejar com Raquel de todo o dissuadiu.

Os dias foram assim passando, longos para os dois amantes,breves para Meneses e Raquel que achavam naquela casa amais deliciosa companhia deste mundo.

Aqui podia acabar o romance muito natural esacramentalmente casando-se estes dois pares de corações e

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indo desfrutar a sua lua-de-mel em algum canto ignoradodos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessárioque a filha do coronel e o Dr. Meneses se amassem, e elesnão se amavam, nem se dispunham a isso. Uma das razõesque desviavam da gentil menina os olhos de Meneses eraque este os trazia namorados da viúva. De admiração ou deamor? Foi de admiração primeiro, e depois foi de amor;coisa de que nem ele, nem o autor do livro temos culpa.Que quer? Ela era formosa e moça, ele rapaz e amorável, ede mais a mais inexperiente ou cego, que não adivinhava asituação anterior da viúva e do médico, ainda por entre osvéus com que lha ocultavam.

Ao inverso de Félix, cujo espírito só engendrava receios edúvidas, Meneses era antes de tudo propenso às fantasiascor-de-rosa. Irmanavam-se no ponto de serem joguetes desua imaginação. Meneses facilmente entreviu um mundo deesperanças. A afabilidade com que a viúva o tratavapareceu-lhe auspiciosa; o mais inocente de todos os sorrisosservia-lhe de base a um castelo de vento; uma expressãoqualquer, simples cortesia de sala, afigurava-se-lhe cheia demil promessas de futuro. Nem futuro nem esperanças havia;havia a candura dele, que era botão de flor, aindaentrecerrado à corrupção da vida.

Tal era o contraste desses dois caracteres, que a estrela daviúva, não sei se boa ou má estrela, reuniu a seus pés. Um,se viesse a adorar um rosto hipócrita, desceria na escala dasdegradações, com os olhos fitos na quimera da sua

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felicidade; outro, ardendo pela mais angélica das criaturashumanas, quebraria com as próprias mãos a escada que olevaria ao Céu.

Félix percebeu, enfim, o que se passava no coração doamigo. Sua primeira impressão foi de cólera, não porqueduvidasse logo da moça, mas por isso mesmo que outrohomem se atrevia a amá-la. E não havia perigo em talsituação? A simples pergunta era suficiente para dar largasao espírito de Félix. Veio imediatamente a idéia de que àmoça ano fosse desagradável o amor de Meneses. Avaidade, primeiro, depois o hábito, enfim a curiosidade docoração, os levariam um para o outro. Talvez os houvessemlevado já.

Aconteceu uma vez que, falando dela, a fisionomia deMeneses, de risonha que estava, se tornasse subitamenteséria. Félix era mais hábil que ele, não lhe foi difícil sondar-lhe o coração. O amigo contou-lhe tudo, com o fervor quelhe era próprio, e a singeleza de um homem ainda poucoconversado nas coisas do mundo. O médico escutou-o comsofreguidão, mas aparentemente quieto.

— E esperanças? disse ele.

— Poucas ou muitas; não sei bem o que seja. Há ocasiõesem que tudo se me afigura fácil e decisivo; outras vezesdesanimo e descreio de mim mesmo. Ela é afável comigo,mas também o é contigo e com os mais. Adivinharia já

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alguma coisa? Quero crer que sim, e visto que se nãoagasta, é bom sinal, penso eu. O pior de tudo é que eu menão atrevo a dizer-lhe o que sinto.

Uma só palavra bastava ao médico para arredar do seucaminho aquele rival nascente; Félix repeliu essa idéia,metade por cálculo, metade por orgulho, — mal-entendidoorgulho, mas natural dele. O cálculo era coisa pior; era umacilada, — experiência, dizia ele; — era pôr em frente umada outra, duas almas que lhe pareciam, por assim dizer,consangüíneas, tentá-las a ambas, aquilatar assim aconstância e a sinceridade de Lívia.

Assim pois, era ele o artífice do seu próprio infortúnio, comas suas mãos reunia os elementos do incêndio em que viriaa arder, se não na realidade, ao menos na fantasia, porque omal que não existisse depois, ele mesmo o tiraria do nada,para lhe dar vida e ação.

Meneses explicou ainda mais o estado de sua alma; não eraamor violento que sentia, era afeição serena e branda;tranqüila, mas irresistível fascinação. O médico, por umsentimento de pudor que lhe ficara, não animouabertamente as esperanças do amigo; entretanto, a suapalavra era tão alegre, o riso de tão boa feição, que oespírito de Meneses para logo sentiu reflorirem-lhe asesperanças, se é que elas haviam secado alguma vez.

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Lívia não percebeu logo o amor de Meneses; mas, eraimpossível que tarde ou cedo o não suspeitasse. Não sefingiu admirada quando ele lho confiou depois de algumtempo de assiduidade nas Laranjeiras. Nem se admirou nemse irritou; além de não ser motivo para cólera, havia entreambos, como Félix dissera um dia, certa conformidade desentir e pensar, que de algum modo os vinculava.

A resposta que lhe deu foi certamente fria e decisiva, nãodesdenhosa nem severa. Quando viu porém a tristeza quelhe causou, esqueceu de todo as formalidadesconvencionais e necessárias; procurou suavizar as penas domoço. Tirou-lhe toda a esperança presente ou futura; nãopoderia amá-lo nunca. A amizade, porém, que lhe tinha,talvez o consolasse do desengano. Isso apenas; não deviasimular um amor que não sentia nem acenar-lhe com umafelicidade que lhe não podia dar.

— Que me não pode dar! repetiu Meneses apegando-seainda a uma esperança fugitiva; e se eu esperar que algumdia soe a hora da felicidade que me nega? Nada depende denós; os próprios movimentos do coração parecem nascer demil circunstâncias fortuitas, se não é que os rege uma leimisteriosa, e essa... Quem sabe? um dia, talvez, — ousocrê-lo, — um dia sentirá que a simpatia que lhe inspiro setransforma, e...

— Basta! interrompeu Lívia em tom imperioso.

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Meneses calou-se; ela continuou:

— O amor não é isso que o senhor diz; não nasce de umacircunstância fortuita, nem de uma longa intimidade, é umaharmonia entre duas naturezas, que se reconhecem ecompletam. Por mais semelhante que seja o nosso espírito,sinto que Deus não nos fez para que o amor nos unisse.

Meneses não estava para estas averiguações teóricas; é atéduvidoso que prestasse atenção às últimas palavras daviúva. O quimérico edifício que tão laboriosamenteconstruíra via-o ele desfazer-se em fumo, e esta sóimpressão o dominava agora.

Decorreu algum tempo de completo e acanhado silêncio.Estavam encostados à janela que dava para o jardim.Meneses não ousava levantar os olhos para ela; não era sónatural vexame da posição em que se achava, era tambémmedo de contemplar ainda uma vez o bem que perdia. Líviacompreendia esse estado da alma do moço. Lastimava,quem sabe? não ser ele o escolhido do seu coração. Era omais que lhe podia dar, e era muito. Enfim:

— Fiquemos amigos, disse ela. A amizade lhe fará esquecero amor; é mais serena que ele, e talvez menos exposta aperecer. Conheço que sou egoísta; peço-lhe uma coisa quesó a mim aproveitará. Amigos, não lhe será difícil achá-los;eu não os acharia tão facilmente nem tais como o senhor.

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Meneses tocou levemente na mão que ela lhe estendeu aoterminar estas palavras. O pedido que ela lhe fazia era maisafetuoso que judicioso; a um coração desenganado não háimediatamente compensações possíveis nem eficazesconsolações. A bondade da viúva o comoveu todavia; iaagradecer-lhe quando Raquel entrou na sala.

Raquel estacou. Ambos estavam acanhados. A viúva foi aprimeira que rompeu o silêncio chamando a filha docoronel. Que queria dizer o sorriso benévolo, mas sonso,que lhe pairava nos lábios? Não o viu Meneses que olhavapara fora, mas viu-o a viúva e estremeceu.

Meneses não voltou lá durante uma semana; prolongaria aausência, se o amor, fecundo de ilusões, lhe não houvesseenchido o peito de esperanças novas. Lívia tratou-o com acostumada afabilidade, talvez com afabilidade maior. Comoa confiança de Félix não se havia alterado, Lívia usavaassim uma dissimulação honesta, por simples motivo depiedade e gratidão. Estava no seu caráter esse modo deinterpretar as coisas, e de as tratar assim sem granderespeito às conveniências sociais. Profanas, diria eu antes,se quisesse exprimir os verdadeiros sentimentos da viúva,que achava naquela obra de simpatia uma espécie de missãoespiritual.

Às missionárias daquela espécie, se as há, desejo-lhes maiorperspicácia ou mais feliz estrela. Nem a estrela nem aperspicácia da nossa heroína estavam acima do seu coração.

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O sentimento que a impelia era bom; o procedimento é queera errado. Ela não atentava nisso. Interrogava o rosto domédico, mais confiante e alegre que nunca, e só isto lhebastava a seus olhos. Fossem eles menos namorados, everiam que a tranqüilidade de Félix era tão exagerada e foradele, que não podia ser sincera.

A esses erros e ilusões, que podiam conter os elementos deum drama não remoto, veio juntar-se ainda a ilusão deRaquel. Esta aplaudia sinceramente os sentimentos queatribuía à viúva em relação a Meneses; o sorriso com que ossurpreendera não queria dizer outra coisa. Fê-lo sentir umdia à viúva; a energia com que ela lhe respondeu mais apersuadiu ainda. Lívia quis então referir-lhe tudo, overdadeiro objeto do seu amor e o seu próximo casamento;mas, posto que a idade não as separasse muito, Líviaconsiderava-a ainda criança e reprimiu o seu primeiroimpulso.

Raquel ficou com as suas suspeitas.

Perdoemos agora à inexperiência da boa moça, — criança,como dizia a viúva — a leviandade com que insinuou aomédico as suspeitas que alimentava. Fê-lo por meio dealusão delicada e fina numa ocasião em que o pedia aconversa. O golpe foi profundo; a prova pareceu decisivadesta vez.

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Raquel notou a impressão do médico. O sorriso inocente ebrincão que lhe entreabria os lábios repentinamente se lheapagou. Félix olhava para ela sem ver a mudança que se lhehavia operado. Viu-a enfim, mas não a entendeu. Tentoufazer-se galhofeiro como sempre fora com ela; conseguiufazê-la sorrir.

Os dias que se seguiram a este foram de triste provação paraa viúva. Sabemos já que o ciúme de Félix era às vezesríspido. Nunca o fora mais que desta vez. Longas cartastrocaram ambos, amargas as dela, as dele friamente cruéis echocarreiras. Félix não lhe disse logo a causa desta novacrise: adivinhou-a Lívia, e tudo lhe contou lealmente, semlhe negar a boa intenção com que tratava o coração deMeneses. Era mostrar-se muito pouco mulher. Félix viu emtudo aquilo um tecido de absurdos.

O que lhe disse então foi o transunto das cartas que lheescrevera. Grosseiro, irônico, incoerente, tudo isso foi naspalavras com que fulminou a pobre senhora.

Lívia não protestava. Quis interrompê-lo uma vez; quandoele acabou nada achou que lhe merecesse resposta. Estavamna sala. Olhou assustada para todas as portas, deixou-se cairfrouxamente numa cadeira e tapou o rosto com as mãos.

Félix deu um passo para ela; o movimento era bom, mas oarrependimento veio logo.

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— Adeus! disse ele.

A moça descobriu o rosto.

— Félix! exclamou ela.

O médico parou alguns instantes. Lívia levantou-se e foi aele arrebatadamente. Chegou a pegar-lhe numa das maõs,abatida e lacrimosa ia começar uma última súplica. Eleporém puxou a mão violentamente, olhou para ela, e depoisde longo silêncio, repetiu:

— Adeus!

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Félix chegou a casa cheio de cólera e desespero. Entrouimpetuoso na sala; como se precisasse de vingar em algumacoisa a suposta injúria, lançou mão do primeiro vaso que selhe deparou e deitou-o ao chão. O vaso fez-se em estilhas.

— Que é isso? disse uma voz estranha.

Félix estacou espantado; olhou para o vão de uma janela,donde viera a voz, e deu com a figura de Moreirinha,comodamente sentado, com um livro de gravuras abertosobre os joelhos.

— Sou eu, disse o visitante levantando-se e indo apertar amão ao dono da casa. Admira-se de me ver aqui? Tomei aliberdade de o esperar, a despeito das observações que mefez o seu criado.

Félix não pôde encobrir o desprazer que lhe causava avisita. Moreirinha leu-lhe isso claramente nos olhos, econtinuou:

— Talvez não lhe seja agradável a minha presença,sobretudo porque me parece ter alguma coisa que parece teralguma coisa que o molesta nesta ocasião; mas não podiaser de outro modo...

Félix levantou os ombros.

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— E maior será ainda o seu desgosto, continuouMoreirinha, quando souber que não lhe peço asilo só poruma hora, mas até amanhã.

Dizendo isto, estendeu-lhe a mão. Félix estendeu-lhe a sua,e friamente lhe disse que podia ficar o tempo que quisesse.

Quando o coração padece não há maior importuno que umconversador indiferente e frívolo. Esta circunstância veioainda azedar mais o espírito de Félix. A solidão lhe dariatalvez um bálsamo salutar, se o havia para ele. O acasodeparou-lhe, entretanto, uma testemunha diante de quem lheera forçoso aparentar a serenidade que não tinha.

O hóspede compreendeu a situação, e francamente lhe disseque o não queria perturbar; viera como asilado, não comovisita; não tinha direito às atenções do dono da casa. Félixrespondeu o melhor que pode a esta cortesia, que aliás oobrigava ainda mais. Não havendo meio de escapar,procurou ao menos ser igualmente cortês. Demais,Moreirinha não era tão importuno como pareceria, porquefalava sempre, e não tinha o sestro dessa outra casta deimportunos que interrompem a cada passo os discursos comperguntas... de boca e de gesto.

Não se demorou o hóspede em dizer a causa que o trouxeraali: era Cecília. Apesar da situação em que se achava, Félixnão pôde deixar de lhe prestar atenção.

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— Cecília? perguntou ele.

— É verdade: é o meu mau anjo. Lembra-se dos elogiosque lhe fiz dela? Eram sinceros, e eram também justosnaquele tempo. Até então não havia encontrado docilidadeigual. Não sou piegas, sabe; mas gosto de um episódioassim. Não sei que lhe fizeram à boa rapariga, que de todomudou e veio a ser um verdadeiro diabo. Aquelas cadeiastão leves que nos prendiam um ao outro, e que eu chamavacadeias de rosas, tornaram-se de ferro pesado. Quero fugir-lhe e não posso; tenho tentado tudo para escapar-lhe, masem vão. Escondo-me em casa, na casa dos amigos, noshotéis; onde quer que esteja lá irá buscar-me, e então Deussabe o que sofro. Hoje lembrou-me vir passar aqui o restodo dia e a noite com o senhor; estou certo de que não darácomigo.

Félix ouvira atentamente a exposição do Moreirinha, nãosem achar alguma relação entre o estado dele e o seu.Moreirinha referiu então muitos episódios do que elechamava sua escravidão.

— E não conhece nenhum meio de lhe escapar por umavez?

— Nenhum; ainda quando eu pudesse sair da corte, estoucerto de que ela iria buscar-me a bordo do navio ou àportinhola do carro que me levasse.

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Tão notável mudança no caráter de Cecília não deixou dechamar a atenção de Félix. Compreendeu facilmente queera obra do próprio amante. A rola fizera-se gavião, pelaúnica razão de que Moreirinha lhe dera ensejo de conhecera própria força.

De abatimento em abatimento chegara Moreirinha àmiserável posição atual. Não era ele homem de salutaresreações nem de resignações filosóficas: era, sim, homem defugir e adiar, — caráter feito de inércia e medo,maravilhosamente disposto para os desesperos inúteis e ascapitulações vergonhosas.

— Mas, por que não sai da corte algum tempo? disse Félixapós alguns minutos. Sempre há de haver meio de fugir...

Moreirinha refletiu um instante.

— Por duas razões, disse ele: a primeira é que, apesar detudo, não deixo de gostar dela, e se pudesse escapar-lhedurante trinta dias, ia no trigésimo primeiro procurá-la...

— A segunda razão... interrompeu Félix a quem pareciaincomodar essa ingênua confissão.

— A segunda razão, respondeu Moreirinha com hesitação,é que... não posso.

Félix desceu os olhos no vestuário do rapaz, e viu nele ocomentário das palavras que acabava de ouvir. Elegância

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ainda havia, mas já pobre e rafada; os botins tinham sinaisde longo serviço; o paletó aliás bem lançado, era de fazendavisivelmente inferior. Trazia luvas cor havana, mas ao olharcurioso de Félix não escapou a circunstância de que aspontas dos dedos já estavam assinaladas por uma leve pastade cor preta, vestígio de aturado uso.

Não era preciso grande perspicácia para compreender queaquilo tudo era obra de Cecília. Nem ficaria longe daverossimilhança quem afiançasse que Moreirinha estavaeternamente condenado ao capricho daquela mulher. Nãotinha decerto o rapaz com que lhe satisfazer todas asvaidades e necessidades; ela incumbia-se de abrir outrasverbas no orçamento da receita, mediante um bemcombinado sistema de impostos.

Félix compreendeu tudo isso de relance, e procurou trazer oespírito de Moreirinha a idéias mais alegres, menos aindapor ele que por si.

Não foi coisa difícil. Ao espírito de Moreirinha repugnavamas preocupações graves. Aproveitou o ensejo que o médicolhe ofereceu e entrou a falar das coisas correntes do dia.Dos mil episódios da vida de certa classe, não havia gazetamelhor informada que o amante de Cecília. Os novosamores de uma, os arrufos de outra, o dito chistoso desta, aaventura daquela, tudo ele sabia em primeira mão. Não lheperguntassem por estréias literárias nem crises políticas;mas a mobília com que Fulano presenteara a certa dama, a

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cela equívoca em que Sicrano chegara a beber champagnepor uma botina, esse era domínio seu, desde que os amoresde Cecília de todo o separaram da sociedade.

Isto não recreava nem interessava, mas enchia o tempo, edesde que estava obrigado a sofrer o hóspede, era melhorsofrê-lo assim.

Era impossível, entretanto, não volver o espírito à suaprópria situação. De quando em quando o médico esqueciao narrador, e o seu pensamento ia esvoaçar em derredor daviúva. Foi numa dessas ocasiões que lhe chegou uma cartadela. Félix abriu-a sofregamente e leu-a duas vezes. Eralonga; recapitulava a história daqueles últimos meses, econcluía fazendo um apelo à razão do médico. Adivinhava-se que a moça escrevera com lágrimas, mas já não havia otom súplice com que em análogas ocasiões lhe pedia areconciliação.

O tempo alguma obra havia já feito no espírito de Félix; acarta veio consumá-la. Félix não estava ainda certo dainocência da viúva, mas já estava certíssimo da brutalidadeda sua explosão, e este reconhecimento era uma dor nova,quase tão profunda como a outra.

Seu primeiro impulso foi ir ter com Lívia; desistiu dele epreferiu escrever-lhe uma carta. Três vezes a começou semlograr chegar ao fim. Vacilava entre ser afetuoso ou severo;num caso lembrava-lhe a perfídia possível, noutro, a

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provável inocência; temia ser injusto ou ridículo. Comotodos os caracteres indecisos, não achou mais recurso queuma inútil desesperação.

Anoitecera; Moreirinha estava mais alegre que nunca, epagava a hospitalidade do médico com as suas galhofascostumadas. Não contava com Cecília, mas adivinhou queera ela quando ouviu parar um carro à porta.

— Estou perdido! disse ele desatando um longo suspiro.

Era ela.

Cansada de esperar que lhe levassem resposta do recadoque dera, Cecília desceu do carro e entrou em casa. Aochegar à porta relanceou os olhos pela sala, onde não viudesde logo o amante; Moreirinha metera-se no vão de umajanela. Félix olhou severamente para Cecília, como quemlhe estranhava a liberdade que tomara. Mas onde iam já asflores de antanho? A dócil rapariga de outro tempo tornara-se mulher desgarrada e solta. Caminhou afoitamente para omédico e estendendo-lhe a mão:

— Como estás, mon vieux? disse com um risinho de mofa.

Nessa ocasião descobriu o amante, que parecia entretido emcontar as estrelas. Foi a ele, e soltava já as primeiraspalavras de uma veemente apóstrofe, quando Félix julgouprudente intervir a tempo de evitar um escândalo;reconciliou-os como pôde, e secamente os despediu.

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Lívia estava à janela desconsolada e triste, enquantoRaquel, não menos triste que ela, executava no piano umamelodia adequada à situação de ambas. Não viera respostado médico; a viúva sentia desvanecer-se-lhe a esperança detantos meses, e com ela o futuro que tão perto se lheafigurava. Estas eram as suas melancólicas reflexões,quando viu parar à porta de Félix um carro, descer umamulher, entrar, sair depois com um homem e partiremambos.

O golpe foi terrível e mais profundo que nunca. A viúvanão temia decerto uma rival triunfante; mas via e sentia odesprezo do homem por quem tantas lágrimas choraranaquele dia. Se o médico lhe aparecesse então, elareconheceria o seu engano, e a alegria de se sentir estimadalhe daria forças contra a dor de se ver ofendida. Félix nãoveio. Lívia mal pôde resistir à humilhação. Uma lágrima, —a última que lhe restava, — foi a única expressão do seuimenso desespero.

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No dia seguinte, logo cedo, Viana foi à casa do médico.Não ia almoçar com ele; ia convidá-lo para jantar.

— Faço anos hoje, disse o parasita, e quisera ter à mesaalguns amigos, poucos. O senhor é dos primeiros, não podefaltar.

— Não faltarei, respondeu Félix.

Viana emitiu em seguida algumas idéias a respeito damaneira por que encarava um jantar de anos. Não deviacompreender senão amigos íntimos, por ser festa docoração, alegria doméstica, em que tudo o que não falasse alíngua da amizade seria estrangeiro ou talvez inimigo. Nãobastava gosto para a escolha de tais amigos; era precisojeito e sagacidade para discernir os que se prendiam peloafeto dos que aderiam pelo costume. Esqueceu-lhe oprincipal; esqueceu-lhe dizer que, no seu ponto de vista, umjantar de anos era também um jantar a juros.

Félix aceitou o convite com sofreguidão; esperava umpretexto para voltar à casa de Lívia. Pungia-o ainda ociúme, mas a irritação passara, e em lugar dela nascera odesejo de ver restabelecida a harmonia antiga, não por atode vontade própria, mas por uma completa justificação daamada.

Com tais sentimentos saiu de casa. Lívia estava à janelaquando o viu chegar; foi recebê-lo no patamar da escada

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que dava para o jardim. Ao apertar-lhe a mão, entre triste erisonha.

— Era eu que devia perdoar-lhe, disse; mas seria ofender oseu orgulho.

— O meu orgulho? Perdoar-me? repetiu Félix.

— Sim, disse ela fazendo um gesto afirmativo.

Leu-lhe Félix no rosto tão sincera tranqüilidade, que estevequase a aceitar a reconciliação. Hesitou algum tempo;deitou os olhos à sala, e viu atravessá-la na direção daescada a figura de Raquel. Então lembrou-lhe asemiconfidência que esta lhe fizera, e amargamenterespondeu à viúva:

— Sejamos sérios.

Lívia empalideceu. Quis responder alguma coisa, e nãopôde; Raquel estava com eles.

Pouco depois chegaram o coronel e D. Matilde; Menesesnão tardou muito. Algumas pessoas mais completavam opessoal da festa. A presença de estranhos constrangia aviúva e o médico; era forçoso ser alegre como os outros, eisso custava a ambos, mais ainda a ela que a ele.

O jantar passou sem novidade de vulto. As pilhérias docoronel, e os brindes repetidos de Viana entretiveram a

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sociedade. Félix tentou seguir a corrente da alegria e logrouobtê-lo. Não reparava, — ainda mal! — que a fronte daviúva parecia entristecer-se mais; seus olhos procuravamantes os de Meneses que os dela. Meneses tinha os seusembebidos nela.

No fim do jantar Viana propôs que fossem conversar nachácara. Meneses pediu que a filha do coronel tocasseprimeiro uma melodia que lhe ouvira alguns dias antes.Raquel consentiu. A melodia era extremamentemelancólica, e Raquel tocava-a com alma. O tom da músicainfluiu nos ânimos; não havia só o simples silêncio daatenção, mas o recolhimento da tristeza.

Em alguns dos convivas esta impressão era mais natural efoi mais pronta. O médico, entretanto, forcejava, não só porsacudir a estranha influência, como por afetar completaisenção de espírito.

Luís estava em pé diante dele, com os cotovelos fincadosnos seus joelhos. Félix brincava-lhe com os cabelos, eambos sorriam um para o outro, como se fossem os únicosestranhos à comoção geral.

Ora, no meio do absoluto silêncio da sala, apenasinterrompido pelas notas soltas e magoadas que os dedos deRaquel tiravam do piano, o filhinho de Lívia fez estasingela pergunta ao médico:

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— Por que é que o senhor não se casa com mamãe?

Lívia estremeceu. Raquel cessou de tocar e volveurapidamente a cabeça para o grupo donde partira a voz. Dosoutros convivas uns sorriam da inocente indiscrição domenino, outros observavam a viúva, ninguém reparava emRaquel.

A filha do coronel deixou imediatamente o piano. Vianalembrou então o passeio da chácara. Todos aceitaram oalvitre e saíram da sala. A espécie de acanhamento que apergunta do menino deixara em todos, para logodesapareceu de alguns.

Lívia não saíra logo. A alguma distância repararam na faltadela, e Raquel propôs-se a ir buscá-la. Achou-a a abraçar ebeijar o filho. Conquanto ela fosse mãe extremosa, nãohavia razão imediata para aquela explosão de ternura.Raquel estacou sem compreender nada.

A viúva olhou para ela conchegando o filho ao coração.

— Que queres? perguntou.

Raquel não respondeu. A pouco e pouco se lhe iaalumiando o espírito. Olhou longo tempo para ela, como seà força quisesse arrancar-lhe a explicação, que o seucoração pressentia. Enfim, pareceu adivinhar tudo.

— Ama-o então? perguntou ela com os lábios trêmulos.

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— Creio que o amei, respondeu Lívia baixando tristementea cabeça.

Se o espírito de Raquel não fosse ainda o regaço dacastidade, aquela confissão mentirosa da viúva, porque elaainda amava, podia fazer-lhe nascer alguma desairosasuspeita. Mas Raquel não viu naquelas palavras mais doque um amor medroso e não compreendido. Sua eloqüenteresposta foi apertá-la nos braços.

Lívia apertou-a com força. Era a primeira vez que o acasolhe deparava uma confidente. Alteava-se-lhe o seio, túmidode suspiros; duas lágrimas lhe romperam dos olhos e forammorrer na espádua de Raquel. O menino interrompeu essadoce efusão. Lívia respirou largamente, e beijando comternura a moça, disse:

— Vamos.

Mas Raquel não se movia. Tinha os olhos postos nela, oslábios apertados, os braços pendentes. Lívia sacudiu-lhebrandamente os ombros.

— Que tens? disse.

— Nada, suspirou Raquel.

Lívia estremeceu. Súbito relâmpago lhe atravessou assombras do espírito. Interrogou-a de novo, mas foi em vão.

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Então sentiu em si todas as energias do seu temperamento, ecom um grito, que a cólera abafava, exclamou:

— Ah! tu o amas também!

Raquel não lhe respondeu. Se a viúva lhe houvera faladocom brandura é provável que lhe fizesse plena confissão deseus sentimentos. Mas, às palavras coléricas de Lívia, apobre moça começou a tremer.

— Tu o amas também! repetiu Lívia com voz surda econcentrada.

Raquel curvou o corpo, pôs as mãos em atitude de súplica, emurmurou com voz trêmula:

— Perdão!

Pairou nos lábios da viúva um sorriso sarcástico. Raquelrepetiu ainda muitas vezes a palavra perdão; mas a únicaresposta da sua rival foi pegar-lhe do braço e indicar-lhe aporta.

— Vai ter com ele! exclamou.

Depois saiu arrebatada da sala. Raquel, magoada pelaviolência do gesto da viúva, acompanhou-a com o olhar atéà porta. Os olhos da corça ofendida não chamejavam ódiocontra a leoa irritada.

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Quando Raquel ficou só atirou-se ao sofá, trêmula, fria,com os olhos secos, sem compreender bem aquele dramaíntimo, mas sentindo-lhe já algum terrível desenlace. O queela via claro é que a outra amava o mesmo homem, e comtal força que cedera a um impulso de cólera, tão contrárioaos seus hábitos de brandura.

As reflexões de Raquel não passaram daí. Nem todas asalmas podem encarar as grandes crises. Quer-se um espíritorobusto para estas situações complexas. Raquel ficousimplesmente atônita e abatida.

Na chácara foi notada a ausência das duas. Viana deixou oshóspedes e foi à sala.

— Que faz aqui? perguntou ele à filha do coronel.

Raquel ficara perturbada com a presença de Viana, e aindamais com a pergunta. Enfim, balbuciou uma respostainfantil.

— Estava pensando numa coisa, disse ela.

— Onde está Lívia? perguntou Viana sem atender àresposta da moça nem ao sorriso forçado que lhe entreabriaos lábios.

— Creio que está incomodada; foi para dentro.

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— Coisa de cuidado?

— Parece que não.

Viana deu duas voltas na sala e saiu para a chácara, pedindoà moça que lá se fosse reunir aos outros.

Félix, entretanto, viera até o jardim, que ficava em frente dacasa. Mal havia dado alguns passos quando viu encostada àporta da sala a filha do coronel, com os olhos postos no céu,acaso pedindo a Deus que lhe estendesse a mão para subiraté lá. Era sol posto, hora de melancolia; tudo ali em voltaassumia a cor pardacenta e luminosa dos últimos instantesda tarde.

Félix caminhou cautelosamente para a casa, subiu por umdos lanços da escada, e surpreendeu a moça, dizendo-lhe:

— Está linda assim; mas nós precisamos vê-la cá fora.

Raquel retraiu o corpo sem ousar dizer uma só palavra.Félix estendeu-lhe a mão convidando-a a descer. A moçaentrou para dentro; o médico deu ainda um passo, mas ela,fazendo um gesto suplicante, disse com voz aflita:

— Pelo amor de Deus, saia!

Félix não resistiu; desceu ao jardim e caminhou para achácara a reunir-se às outras pessoas. Em vão buscavaconjeturar a causa daquela súplica. Era impossível conciliar

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o procedimento de Raquel com a familiaridade e aconfiança que entre ambos havia. A razão da diferençadevia ser grave. Mas qual seria ela?

Os convidados retiraram-se cedo. Meneses e Félix foram osúltimos que saíram, ao lado um do outro, ambos entregues areflexões diversas, porque Félix pensava nas palavras deRaquel, Meneses na pergunta do menino.

A filha do coronel desceu ao jardim. Era noite fechada.Sentou-se num banquinho, e ali ficou em triste meditação.A pobre moça tremia de susto, de incerteza, de apreensão.Não ousava encontrar os olhos de Lívia; tinha-lhe medo,medo pueril, escusado, sem razão, mas enfim medo, e nadahavia que tranqüilizasse a sua alma franzina e pusilânime.

Como benefício celeste, entraram-lhe a correr as lágrimas,até então retidas pela presença de estranhos. Ninguém lhasviu, que a noite era fechada e o sítio ermo; mas a auraestiva, que começava a bafejar a folhagem ressequida dosol, acaso lhe ouviu os soluços, acaso lhos levou ao seio deDeus. Veio então, de influxo divino, uma doce consolaçãoàs suas mágoas solitárias.

Não ousando voltar para dentro, determinou esperar ali oirmão da viúva, que fora acompanhar um amigo davizinhança. Pedir-lhe-ia então para a levar no dia seguinte àcasa de seus pais. Não hesitava entre a ternura deles e oódio de Lívia.

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Assim refletia ela, quando sentiu passos no jardim. Voltou-se; era a viúva.

— Ah! exclamou Raquel levantando-se, trêmula eassustada; pelo amor de Deus! eu não lhe fiz mal nenhum!

Lívia acercou-se de Raquel; travou-lhe brandamente dasmãos, apesar do esforço com que ela buscava esquivar-se, edisse:

— Que mal me farias tu, criança? A culpada sou eu; sou euque te peço perdão, porque fui cruel e injusta, e cedi aoegoísmo do meu coração... Perdoa-me!

— Perdôo-lhe tudo! respondeu Raquel.

Caíram nos braços uma da outra. Jamais duas rivais seestreitaram mais sinceramente amigas do que essas duas.Largos minutos correram sem que nenhuma delas falasse;refletiam talvez, talvez não pudessem vencer oacanhamento da sua posição. Lívia foi a primeira querompeu o silêncio:

— Como é que vieste a amá-lo? perguntou ela.

— Não sei, respondeu ingenuamente Raquel; nasceu-me oamor sem que eu reparasse nele. Nem sei se nasceria; creioque foi apenas transformação, porque eu de pequena meacostumei a admirá-lo. Foi talvez a admiração que se fezamor quando eu cresci.

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— Nunca lho deste a entender?

— Oh! nunca.

— E ele?

— Percebi que me queria. Brincava comigo, como quandoeu era criança: nada mais.

— E resignavas-te à sorte?

— Que poderia fazer senão isso? Alguma esperança tivenestes últimos tempos; em que a fundava, não sei; talvez nacircunstância de nos vermos mais a miúdo. Enganava-me;penso que não nasci para ser feliz.

— Quem sabe? disse a viúva. Nem sempre o nosso coraçãoacerta; pode ser que mais tarde te apareça outro a quemames do mesmo modo...

— Do mesmo modo? interrompeu Raquel com surpresa.

Lívia pegou-lhe nas mãos.

— Não te parece que assim seja? perguntou.

— Oh! não. Chame-me criança, se lhe parece; a senhora háde saber mais do que eu, naturalmente; mas o meu coraçãome diz que eu não poderia amar a ninguém mais.

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— A ninguém mais! murmurou a viúva amargamente.Concentraste então toda a seiva do teu coração, neste amorsilencioso e quimérico? Não digas isso; amarás mais tarde aoutro que te amará também, e serás feliz, creio eu.Murchará esta primeira flor do teu coração, mas, há seivanele para dar vida a outra flor, tão bela talvez, e com certezamais afortunada. O contrário, Raquel, seria injustiça deDeus. O amor é a lei da vida, a razão única da existência.Encher de uma só vez a alma, sem que ninguém lhe beba olicor divino, e regressar ao Céu sem ter conhecido afelicidade na Terra, nem o quererá Deus, nem o temerás tu.Falas pela boca da tua amargura de hoje; espera a ação dotempo, que é bom amigo.

Raquel meditava. Era a primeira vez que ela ouvia falardaquele modo em coisas do coração. A linguagem da viúvaservia-lhe a um tempo de consolação e de luz.

Lívia falou ainda muito tempo, sem preconceito nemreserva; não falou como rival, senão como amiga e mãe.Não reparava sequer que lhe dava armas contra si. Falariatalvez de outro modo se se considerasse feliz; mas, como asituação de ambas era igual, ela entornou na alma de Raqueltodo o sentimento de que a sua alma estava cheia, e foieloqüente, porque foi sincera.

— Sim, disse Raquel, quando ela acabou; compreendo tudoisso que me está dizendo. A senhora sabe amar... E ainda oama, não?

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Lívia calou-se.

— Que lhe custa dizer? insistiu a donzela.

— Custa-me lágrimas. Eu não te poderia explicar nuncaeste sentimento que me nasceu como erva ruim para meenvenenar a existência, e que eu tanto tempo supus queseria a coroa de minha vida... Não te quero enfadar, que sãotristezas para isso.

— Mas então ele? aventurou Raquel.

— Não me perguntes mais; afirmo-te só que o amei, quetalvez tornasse a amá-lo...

— E que ainda o ama, concluiu a rival.

Lívia esteve calada alguns instantes, procurando ler-lhe norosto, apesar das sombras da noite, as impressões que lheiriam na alma.

— Não! já o não amo! disse a viúva com esforço.

Seguiu-se um longo silêncio.

— E se o amasse, disse enfim Lívia, que farias tu?

— Nada! respondeu resolutamente Raquel.

— Deveras, nada?

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— Pediria a Deus que a fizesse feliz, e estou certa que Deusme ouviria.

— Era capaz disso? perguntou a viúva segurando-lhe nospulsos e fitando lhe os olhos em cheio.

— Era, respondeu ingenuamente a donzela.

Lívia não disse palavra. Se das comoções da sua almaalgum vestígio lhe subiu ao rosto, disfarçou-lho a noite àsvistas de Raquel. Ambas ficaram pensativas algum tempo.Uma forte rajada fê-las estremecer. Era sinal de chuvapróxima; nuvens negras começavam a povoar o céu. Asduas recolheram-se a casa.

— Vales mais do que eu, dizia a viúva entrando com Raquelna sala. Eu sou apenas egoísta; egoísta e nada mais. Guardaessas flores evangélicas do sacrifício, do perdão e do amor.São raras; e por isso é que és um anjo.

Foi diferente a noite que ambas passaram.

Raquel estava mais tranqüila depois da conversa no jardim;mas, que destino teria a flor de sua alma, lírio transformadoem goivo, vivido de lágrimas, medrado no silêncio? Não lheapeteciam lutas. Faltavam-lhe as armas de combate: — aastúcia ou a energia; faltava-lhe principalmente o desejo dedespertar um coração que sabia não ser seu.

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Mas esse coração possuía-o acaso Lívia? Parecia-lhe quenão; o mistério, porém, a reticência, a indecisão daspalavras da rival, tudo se lhe afigurava cobrir um drama queela não compreendia nem conjeturava.

No ânimo de Lívia outras foram as preocupações. Para ela,a situação era mais clara. Sentia desvanecer-se o amor deFélix, e via surgir uma rival perigosa. Tinha medo daignorância de Raquel; receava que a inocência dessa almaainda em flor pudesse dominar o espírito rebelde de Félix; etal seria a catástrofe das suas esperanças.

E quando todas essas sombras lhe povoavam o espírito, e ocoração lhe pulsava com mais força, perguntava-lhe aconsciência se lhe era lícito opor algum obstáculo àfelicidade da donzela, dado que esta vencesse o coração doseu noivo.

Lívia não dormiu a noite toda. No dia seguinte, apenas aclaridade da manhã lhe entrou no quarto, a viúva levantou-se, vestiu à pressa um roupão, e foi ao quarto de Raquel.

A filha do coronel dormia profundamente. Repousava desuas longas reflexões. Lívia abriu o cortinado muito ao deleve, contemplou-lhe o rosto sereno e risonho, os olhoscerrados, e os lábios semi-abertos como se em sonhosmurmurasse palavras de amor. Os cabelos esparsos lheserviam de resplendor à sua cabeça angélica.

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— Não! pensava Lívia, o amor não dorme assim tranqüiloem dias de infortúnio e desespero. Criança inconsciente quete supões alar às regiões do sol, que sabes tu dos precipíciosda viagem, que conheces tu das voragens do coração?

— Ah! estava aqui! exclamou Raquel acordando; aindabem!

— Por quê?

— Sonhei que morria, e que era recebida no Céu. Fora bommorrer assim; mas eu sempre tinha pena de deixar a Terra.Acordou hoje muito cedo.

— Queria dar um passeio, disse Lívia indo abrir a janela,mas a manhã já está quente.

Raquel olhou para ela; viu-lhe os olhos pisados e o rostodesfeito. Compreendeu que não havia dormido, e quechorara.

— Ama-o então muito? perguntou ela a si mesma.

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A situação das duas moças demandava um termo. Raquelfoi a primeira que resolveu deixar completamente o campo;tinha no seu restabelecimento uma excelente razão pararegressar a casa.

Lívia compreendeu a intenção da amiga quando esta lhecomunicou a sua resolução. Era tão simples e tocante osacrifício, que a viúva não resistiu a um impulso generoso.Respondeu-lhe com um beijo. O beijo era de admiração;Raquel acreditou fosse de agradecimento, e sorriu comtristeza.

Ficou assentado que Raquel iria no domingo próximo, enesse sentido foi avisado o coronel.

Estavam ainda no dia seguinte ao do episódio do menino.Nenhuma das suas circunstâncias esquecera ao médico. Aesquivança de Raquel continuava a preocupar-lhe o espírito,não menos que a infundada suspeita que nutria a respeito daviúva. Era meado do mês de dezembro. A data docasamento estava próxima. Tudo exigia um desenlace atempo.

Não tardou que o médico descobrisse os sentimentos que afilha do coronel nutria a seu respeito. Surpreendeu-a pertode uma janela interior, a beijar uma página de um álbum deretratos. Aproximou-se cauteloso, lançou os olhos à páginae viu nela o seu próprio retrato.

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A descoberta fê-lo sorrir. Seria aquilo a razão da mudançaque notara nela? Nesse caso sabia já da afeição que o ligavaà viúva, talvez do projetado casamento. Era possíveltambém que a volta dela à casa de seus pais não tivesseoutro motivo.

Por mais isento que seja o espírito de um homem, é raro queo não lisonjeie uma afeição assim, medrosa e silenciosa,nascida e vivida na soledade da alma. Félix sentiu primeiroessa impressão de egoísmo. Veio depois outro sentimentomelhor, — o de uma respeitosa admiração. Seu pensamentoentrou a conjeturar a data daquele singular amor; àproporção que se internava nos dias do passado, iacombinando uma série de episódios esparsos,aparentemente vagos, agora significativos e eloqüentes.Não era recente a afeição dela; era talvez anterior à suaenfermidade.

Chegara o sábado, véspera da partida de Raquel. Era denoite. Félix estava em casa da viúva, e ambos, e Raquel, eaté Viana todos pareciam preocupados e tristes. O médicoolhava para a filha do coronel, sem reparar que os olhos deLívia seguiam os seus e como que buscavam ler por eles ossentimentos do coração.

Raquel esquivava-se às atenções do médico. Em certaocasião, porém, — achando-se Félix mais afastado, —aproximou-se dele com um livro.

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— Já leu este romance? perguntou ela.

— Deixe ver, disse Félix, convidando-a com um gesto asentar-se.

Raquel não se sentou; estendeu-lhe o livro, e olhou cominsistência para o médico.

Félix pegou no livro e consultou a primeira página; ia voltardistraidamente a segunda, quando lhe caiu nos joelhos umpapelinho dobrado. Raquel voltou assustada a cabeça para olado de Lívia, que de pé, junto do piano, tirava notas soltasdo teclado, sem olhar para o grupo. Raquel fez ao médicoum sinal de silêncio e afastou-se dele. Félix guardou o papelno bolso.

— Quase uma criança! ia ele pensando quando se retiravapara casa depois do chá.

Quando ali chegou não se deu ao trabalho de tirar o chapéu.Abriu a carta logo na sala.

Dizia a carta:

"Pela memória de sua mãe, não seja cruel! Lívia ama-omuito. Não a faça morrer, que seria um pecado!"

Félix esfregou os olhos e releu o bilhete.

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Não havia negá-lo; a letra era de Raquel e o conteúdo erauma súplica a favor da rival. Não sorria o médico; estavaatônito. A verdade, tão inverossímil desta vez, metia-se-lhepelos olhos, singela, eloqüente, espontânea. Espontâneaseria? Félix fez essa pergunta a si mesmo, eafirmativamente lhe respondeu; não atribuía à viúvatamanha influência, nem à donzela tamanha submissão, queuma inspirasse e a outra escrevesse aquela carta. A coisapareceu-lhe o que realmente era: um sacrifício de Raquel.

Félix não era homem de grandes expansões; mas, se Raquelestivesse diante dele naquela ocasião, era capaz de cair-lheaos pés. Abafar uma afeição silenciosa, a primeira talvez,para pedir a felicidade de outra mulher, era abnegação rara,que o surpreendia.

A ação de Raquel fez-lhe esquecer por algum tempo aviúva, objeto da carta que acabava de ler. Raquel nãoafirmaria tão claramente os sentimentos da amiga, se nãotivesse plena certeza deles. Como conciliaria, entretanto, aafirmação de hoje com a suspeita de ontem? A mesmaRaquel lhe insinuara diversa inclinação da viúva.Naturalmente reconhecera o contrário. A idéia dareabilitação de Lívia para logo dominou o espírito de Félix.Seu amor existia no mesmo estado de força e viço; fácil dedesmaiar, não era menos fácil de se restabelecer. No diaseguinte parecia desfeita a nuvem que por alguns dias oabafara.

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Foi à casa da viúva; era uma hora da tarde. Tinhacuriosidade de encarar a filha do coronel. Achou-a tãoalegre e travessa como era dantes. Era assim aparentemente;os olhos estranhos não viam a mágoa interior e encobertaque lhe roía o coração. Seu infortúnio tinha pudor.

Ao médico era impossível encobrir esse estado. A tocantegenerosidade da moca fez-lhe bem ao coração. Teve ele adelicadeza de não tratar a viúva por modo que magoasse adonzela; mas, tão outro se mostrava do que fora até então,que a viúva não pôde resistir-lhe, e aquele dia foi muitomenos triste que os outros.

As travessuras de Luís faziam coro com as de Raquel. Aporta da sala estava aberta. Luís desceu os degraus quecomunicavam da sala com o jardim, na ocasião em queLívia fechava uma pulseira de Raquel. Quando a viúva deupor falta do filho, correu à porta. O menino corria nadireção da porta da rua. A mãe desceu atrás dele.

Raquel ia descer também; Félix pegou-lhe na mão. A moçaestremeceu toda; afoguearam-se-lhe as faces, e elabalbuciou:

— Leu a minha carta?

— Li, respondeu Félix cravando nela um olhar que era a umtempo de simpatia e de pena. Li, e não sei se deva crer oque lá me diz.

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— É a verdade.

— Mas então supõe...

— Que ela o ama; afirmo-lho.

— E que eu a amo também? perguntou com hesitação.

— Isso... creio, assentiu Raquel, abaixando os olhos.

Félix calou-se. Decorreram dois ou três minutos de silêncio.Raquel continha com dificuldade os movimentos docoração. Preferia estar a cem léguas dali, mas lembrava-seda outra e isso lhe dava ânimo.

O médico foi o primeiro que falou:

— Como sabe que ela me ama?

— Sei, respondeu Raquel sorrindo com afetação, e é quantobasta. Demais, nenhuma moça escreveria semelhante carta aum homem se não tivesse certeza do que afirmava. Só lhepeço uma coisa: destrua essa carta. Nada vale, mas eu nãoquisera que a conservasse.

Lívia aproximava-se; sentiram passos na escada de pedra.Raquel correu à porta, enquanto Félix tirava a carteira dobolso, e procurava o bilhete de Raquel. Foi nessa ocasiãoque o coronel e a esposa chegaram. As duas moçasdesceram a recebê-los. Félix desceu também, e caminhou a

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alguns passos de distância, com o coração dividido entre oamor de Lívia e a admiração de Raquel.

Os pais da moça jantaram nas Laranjeiras. Líviaacompanhou depois toda a família à cidade. Na ocasião dese despedir do médico, a filha do coronel sentiu que asforças lhe iam faltando. Reagiu, porém, sobre si mesma, esem olhar para ele, estendeu-lhe a mão, que o médicorespeitosamente apertou. Ao voltar-lhe as costas um suspirolhe saiu do peito; partira-se o último vínculo da esperança.

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Lívia não ignorou muito tempo a existência da carta deRaquel. Félix mostrou-lha no dia seguinte, desejoso desaber como havia nascido no espírito da moça a convicçãotão generosamente afirmada.

— Contei-lhe tudo, disse a viúva, quando supunha que tudoestivesse morto no teu coração. Ela condoeu-se de mim, evejo agora que não era sentimento estéril o que me revelara.Pobre Raquel!

— Esta carta foi excelente consolação, Lívia, porque eusentia uma dúvida cruel a teu respeito... Mas a quepropósito lhe falaste?

Lívia hesitou alguns instantes. Ou melhor, reprimiu o seuprimeiro impulso, que foi referir ao médico o amor e aconfissão de Raquel. Estaria no seu caráter se o fizesse; masum vislumbre de reflexão atalhou essa confidência prestes asubir-lhe aos lábios. Recearia que a notícia de um amor tãogeneroso o desviasse dela? Pode ser. A explicação que lhedeu foi breve.

— Já lhe disse, respondeu a moça; confiei-lhe a causa dasminhas mágoas, num dia em que mostrava condoer-se demim. Se errei a culpa é sua.

Félix não insistiu. Pela sua parte, deixou também de referira razão da recente frieza nas suas relações com ela. A viúva,que o sabia, achou mais acertado não lhe falar nisso.

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Tantas vezes apagada no céu, reaparecia enfim a estrela dafelicidade, e para sempre? Era caso de dúvida, à vista dopassado; mas a credulidade da viúva estava acima da suaexperiência. A ternura de Félix nunca fora mais espontâneae viva do que então. O coração como que se lhe renovara. Osacrifício de Raquel não era estranho a essa reação, quefazia reviver todas as esperanças da amada.

A alegria tornou a florir no rosto e no peito da viúva. Elapossuía a memória da felicidade, não a das tristezas. O queeram reminiscências de infortúnio apagaram-se com otempo; a serenidade dos primeiros dias foi só o que lheficou.

Houve em certa ocasião uma leve nuvem passageira; foi apresença de Meneses, que ainda freqüentava a casa daviúva. A maneira por que Félix recebera o amigo fezcompreender à moça que no coração dele havia ainda umtravo de amargura. Não lhe foi difícil extingui-lo de todo.Referiu-lhe ingenuamente tudo o que se passara entre ela eMeneses, a branda austeridade com que respondera às suasdeclarações amorosas, enfim o procedimento honesto dorapaz.

Félix abanou a cabeça.

— Censuras-me? inquiriu a moça.

— Não, afirmou o médico. Lastimo-te.

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— A intenção era boa.

—Seria; mas a vida não é fábrica de sentimentos; não sevive como se romanceia. Ímpetos de generosidade sãomuito bons, quando se não corre perigo nenhum. Quem teafiançava a honestidade desse moço?

— Oh! adivinha-se!... Queres uma prova? Ele não voltarácá.

— Por quê?

— Creio que percebeu tudo.

O médico ficou algum tempo pensativo. Duas vezes tentoufalar e conteve-se. Enfim disse:

— Não é preciso perceber aquilo de que há de ter certezaamanhã. Casamo-nos na segunda semana de janeiro. Anotícia será pública desde já.

Félix esperava um movimento expansivo da viúva, ao ouviresta declaração. Lívia não se alterou; apenas empalideceu.

— Tens razão, disse Félix depois de olhar para ela algumtempo; em não tenho direito a mais. Tantas vezes te iludi,que é legítimo o teu receio.

No dia seguinte fez o médico oficialmente o seu pedido napresença de Viana, que abraçou com entusiasmo o futuro

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cunhado.

— Isto devia acabar assim mesmo, disse ele; há muito queeu previa e desejava o casamento. Nasceram um para ooutro; estão na força da idade; não podia haver melhorunião. Pela minha parte desistirei até, se for preciso, daviagem que o senhor me prometeu. Lembra-se? Não fazmal. O que eu quero é vê-los felizes. Eu logo vi quetramavam alguma coisa, mas gabo-lhes a habilidade. Dê-meoutro abraço, doutor.

Félix prestou-se às expansões do parasita. Líviacontemplava o noivo com adoração. Para ambos eles omundo inteiro havia desaparecido. Inteiro não; Viana fezcasualmente alusão a Raquel, e essa intempestivarecordação entristeceu a moça. Ela via que a sua felicidadeera causa da desventura da amiga, e agora que a tinha quaserealizada, sentia morder-lhe um piedoso remorso.

Adiantaram-se os preparativos do casamento. Lívia pediuao médico a supressão de todo aparato, para não ferir ocoração de Raquel, pensava ela. A publicidade seria apenasa necessária. Não contava com o irmão, que se encarregoude dar ao consórcio proporções de acontecimento.

A notícia foi referida por ele na Rua do Ouvidor, esquina daRua Direita. Daí a dez minutos chegara à Rua da Quitanda.Tão depressa correu que um quarto de hora depois eraassunto de conversa na esquina da Rua dos Ourives. Uma

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hora bastou para percorrer toda a extensão da nossaprincipal via pública. Dali espalhou-se em toda a cidade.

Foi geral o espanto. Ninguém acreditava que Félix sedeterminasse ao casamento. Falava-se, é verdade, nonamoro; mas, além de ser boato sem importância nemgeneralidade, alguns não atribuíam ao médico mais do quea intenção de um passatempo, ao passo que outros davam àsrelações entre ele e a viúva um caráter absolutamenteíntimo, sem nenhuma aspiração de legalidade.

A convicção entrou enfim no espírito público. Moreirinhaatribuía o caso a um desconcerto cerebral do médico. O Dr.Luís Batista não deu opinião; parecia-lhe indiferente ocasamento da viúva.

Raquel recebeu a notícia sem admiração, mas com mágoa.Esperanças não as tinha já; o mal que nos não espanta nãonos dói contudo menos por isso. Quem lhe deu a notícia foiMeneses, que a recebeu com filosófica resignação. O amordeste tinha-se convertido numa espécie de adoraçãoreligiosa. Achava na mulher amada todas as qualidades quepodiam seduzir um homem como ele. Havia, além disso,aquele vínculo simpático de duas criaturas que viviam maisda imaginação que da vida prática. A recusa de Lívia nãorompera, transformara as cadeias que o prendiam a ela.

Não acontecia o mesmo a Raquel, e esta circunstância nãoescapou ao rapaz, que habilmente a interrogou, e adivinhou

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tudo. Meneses sacudiu lentamente a cabeça, mas não lhedisse palavra. Apenas pensou consigo que, se o acaso ou aprovidência houvesse disposto as coisas de outro modo,ambos eles podiam ser felizes.

Meneses repeliu a idéia de fazer confidências à filha docoronel; tanto, porém, lhe falou da viúva, que a outraalguma coisa desconfiou. Sabedores, enfim, do quepadeciam interiormente, a comum desventura os vinculoude algum modo. Como as relações eram antes corteses quefamiliares, nenhum deles falou com a efusão que lhes pediao sentimento; adivinharam-se, o que era muito, eapiedavam-se um do outro, o que era quase tudo.

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Dois dias antes do casamento, Lívia foi jantar à casa docoronel, a convite deste que reunira algumas pessoas deamizade. Félix não compareceu, apesar de instantementechamado; cedera a um sentimento de delicadeza, nãoquerendo mortificar com a sua presença a filho do coronel,nem perturbar de algum modo o espírito da viúva.

A primeira idéia de Lívia foi não aceder ao convite, a fimde não afrontar a dor de Raquel. Instaram tanto os pais damoça que lhe foi impossível recusar.

As duas moças encararam-se comovidas; a diferença eraque Raquel pôde ocultar melhor o seu abalo do que a viúva.Essa vitória da donzela sobre si mesma fez redobrar aadmiração da rival. Entendeu-lhe a delicada intenção, eagradeceu-lha na primeira ocasião que se lhe deparou.

— Sei tudo, acrescentou Lívia; sei da tua carta, que foi achave com que de novo se me abriram as portas da fortuna.Eu não sei se poderia ser tão heróica como tu. Separa-nos odestino; deixa-me beijar-te as mãos.

O gesto acompanhou estas palavras: Raquel recusou cederao desejo da viúva.

— Seja feliz! murmurou ela.

Tais foram as últimas palavras que houve entre ambas.Quando a viúva saiu trocaram um beijo, a que não se

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podiam recusar, e que da parte de Raquel foi muito menosespontâneo que da outra. Lívia o sentiu e sinceramente lhoperdoou.

Ao entrar no carro, com o irmão, a viúva ia desconsolada etriste. Seu coração sabia amar, e a idéia de que a suafelicidade custaria lágrimas a alguém fundamente lhe doía.

— Por que razão, pensava ela, me há de lançar aProvidência esta gota amarga na taça das minhas delícias?Se eu ao menos o ignorasse... a minha felicidade não seriatravada de remorsos... Felicidade? continuou ela dirigindo opensamento a uma nova ordem de idéias; será deverasfelicidade? O sonho, tantas vezes dissipado, realizar-se-á,enfim?... Há quase um ano que eu pus toda a minhaexistência nesta vaga probabilidade; está próximo o termo,não sei que sorte avessa me repele para longe. Não amereço talvez, ou então ambiciono demais... Chamam-mebela; devia talvez contentar-me com ser admirada...

Neste ponto foi a moça interrompida por uma observaçãobanal do irmão, que tinha um termômetro infalível nos pés eanunciou que havia trovoada iminente. A irmã olhousilenciosamente para ele, e admirou consigo mesma aventura daqueles para quem as tempestades do ar importammais que as tempestades da vida. Viana faria provavelmentea reflexão inversa se adivinhasse as preocupações da irmã.

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Quando chegaram às Laranjeiras, acharam Félix na sala,conversando infantilmente com o filho de Lívia, que lhepedia a explicação do mecanismo do relógio. Félix aplicavatodos os recursos da imaginação para satisfazer acuriosidade do menino. Como ouvisse parar um carro, elogo depois rumor de passos no jardim, o médico disse aomenino que a mamãe estava aí, e aproveitou a ocasião paralhe anunciar que ia casar com ela.

Ao ouvir esta notícia, o menino subiu aos joelhos domédico, e perguntou alegremente se era verdade o quedizia.

— Sim, é verdade, repetiu Félix.

— O senhor casa com mamãe?

— Caso, já disse.

Neste momento assomou à porta a figura de Lívia. Omenino desceu dos joelhos de Félix e correu a abraçar amãe.

— É verdade que mamãe casa com o Doutor Félix? disseele depois de receber um beijo da viúva.

— É, meu filho, respondeu esta entrando e estendendo amão ao médico.

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A presença de Félix e a alegria de Luís mudaram o curso àsreflexões da moça. Cinco minutos bastaram para fazeresquecer a tristeza própria e o infortúnio da rival abatida.Raquel verteria naquela ocasião, no silêncio da sua alcova,uma lágrima de saudade? Nenhum deles pensou nisso, nema viúva, a quem ela tão generosamente servira, nem Félixque era o objeto daquelas dores solitárias.

Félix estava mais jovial que nunca. Perdera de todo asmaneiras friamente polidas; tornara-se expansivo, gárrulo,terno, quase infantil. O coração parecia-lhe cheio dopresente e do futuro. Não era só a situação que explicavaesta mudança; era também a volubilidade do espírito.

A viúva lia-lhe na alma, que, enfim, ressurgira, um poemade inefáveis venturas. Houve um momento em que lhelembraram as mesmas alegrias da véspera do seu primeirocasamento, e estremeceu; mas a impressão durou pouco; osegundo marido não era, como o primeiro, uma criatura semalma, era, sim, uma alma sem ação. Mas o amor nãocomeçava já a reanimá-la?

Mais quarenta e oito horas, e eles uniriam para sempre osseus destinos. Esse ato decisivo e grave da vida do homem,já o médico o encarava com a tranqüilidade de ânimoresoluto, sem tropeçar na responsabilidade, nem arrecear-sedas conseqüências. Antolhava-se-lhe o lar doméstico comoa cidade da paz e da concórdia. Não via às portas dela olívido espectro da dúvida; flores e folhas verdes, não

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mortíferas, senão vivificantes, pareciam alcatifar-lhe ocaminho e convidá-lo a descansar enfim da vida que tãomal vivera.

Lívia saboreava esse renascimento do amante. Estavam sóse iam dar o penúltimo beijo de despedida. O último seria oda noite seguinte. As mãos dela pousavam nos ombros deFélix, e os olhos de ambos procuravam fundir as duas almasno mesmo raio de luz.

O céu não dava razão aos receios de Viana; tinham-sedissipado as nuvens que anunciavam próxima borrasca. Nãohavia luar, mas a noite estava clara; e as vivíssimas estrelasque luziam no céu, algum poeta imaginoso as compararia alínguas de fogo daquele pentecostes de amor.

— Jura-me ainda uma vez que me amas! dizia ele. É doce àminha alma ouvir-te essa confissão!

— Pelo céu, por meu filho, por ti, juro que te amareisempre! Amava-te ainda quando eras indiferente ao meuafeto, quando o negavas, quando me pagavas com odesdém. Por que te não amaria agora que és todo meu...todo, não?

— Duvidas?

— Eu não sei duvidar; recear, sim. Já te disse por que razão.Mas hoje não receio, não; sinto que sou verdadeiramente

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amada. Quaisquer que fossem as minhas queixas, eu tudo teperdoaria agora, que me abres a porta do Céu.

— Oh! tu és um anjo!

— Adeus!

— Adeus! Amas-me muito, não?

— Muito!

E um beijo casto, longo, quase divino, selou esta confissãotantas vezes repetida entre eles. Depois apertaram as mãos,e Félix saiu.

A rua estava deserta, o silêncio era profundo. Félix entrouem casa exaltado e alegre. Não tinha sono; recorreu aoslivros, mas não lhe aproveitou o recurso, porque se os olhoscorriam no papel, o espírito estava ausente, no tempo e noespaço: buscava a amada e planeava futuros.

Com a fadiga veio o sono. Félix adormeceu nos braços dosanjos.

Batiam oito horas quando ele acordou e abriu as janelas. Odia estava triste. Caía uma chuva fina e constante, que haviacomeçado pouco antes dos primeiros albores da manhã.Que lhe importava a ele a melancolia da natureza, se tinhadentro da alma uma fonte de inefáveis alegrias?

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Assentou-se à escrivaninha, e durante duas horas fez oinventário da sua vida de solteiro, rasgando com indiferençauma imensidade de cartas que lhe lembravam afeiçõesextintas ou simples relações passageiras. Varria o temploem que devia entrar a escolhida de seu coração. Quandorelia algumas dessas epístolas, — folhas caídas da estaçãoque se fora, — desenhava-se-lhe nos lábios um sorrisoirônico, mas tranqüilo, tal era a transformação de sua almajá indiferente às lutas do passado.

Às dez horas levantou-se para almoçar. Acabava de sentar-se à mesa quando lhe vieram dizer que uma pessoa oprocurava.

Era o Dr. Luís Batista.

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Félix estacou à porta da sala. Luís Batista deu dois passospara ele.

— Nunca me ofereceu a sua casa, disse, e a minhaindiscrição vem reparar o seu esquecimento.

Era um gracejo ou um remoque? Félix limitou-se a apertar amão que o outro lhe estendia e convidou-o a sentar-se.

— Disseram-me que estava almoçando, observou Batista;não quero de nenhum modo interrompê-lo. Vá, e eu ficareiaqui folheando algum livro.

— Ia começar a almoçar, respondeu o médico; se quiseralmoçaremos juntos.

— Não; se me consente, visto que ainda está solteiro, ireifamiliarmente assistir ao seu almoço, e então lhe exporei omotivo que aqui me traz.

Félix convidou-o a entrar e ambos se sentaram à mesa. Asprimeiras frases trocadas foram acanhadas e frias, mas asmaneiras livres do hóspede conseguiram abalar a reserva dodono da casa.

— É verdade, disse Batista, ouvi dizer que ia casar...

— Amanhã.

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— Assisto portanto ao seu penúltimo almoço de rapazsolteiro. Há muita gente que ainda não acredita. Creio que osenhor tinha fama de celibatário convencido, e pela regra,um celibatário convencido é um noivo à mão. Também euera assim; e contudo... O casamento é bom; tem seusinconvenientes, como tudo neste mundo; mas é bom, com acondição única de o aceitarmos como ele deve ser...

— Um pouco livre? disse Félix sorrindo.

— Não sei se pouco ou muito, é questão de temperamento.O essencial é que seja livre. Eu assim o entendo e pratico;sou um pecador miserável, confesso, mas tenho ao menos omérito de não ser hipócrita, e agora mesmo...

— Agora mesmo? repetiu Félix depois de alguns instantesde silêncio.

— Não sei se deva contar-lhe isto; o senhor é ainda neófito,vai naturalmente aborrecer-me e amaldiçoar-me... Mas, emsuma, é indispensável que eu lhe diga tudo, porque issoprende com o motivo que me traz à sua casa.

Batista aceitou uma xícara de café que o médico lheofereceu. Depois, com um modo acintemente leviano,referiu ao dono da casa uma aventura amorosa daquelesúltimos dias. Tratava-se de uma mulher caprichosa erequestada. Seu triunfo era portanto duas vezes glorioso.Como beleza, desafiava ao próprio médico a resistir-lhe

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depois de meia hora de contemplação. Achar-se-iam, talvez,outras mulheres mais formosas; nenhuma, porém, tinhacomo essa o misterioso encanto que sabe agrilhoar avontade mais rebelde.

— Quando ela me fita os seus grandes olhos, continuoupinturescamente Luís Batista, é o mesmo que se meentornasse chumbo derretido nas veias.

Todo o estilo da sua descrição era assim, — galhofeiro esensual. Falou durante vinte minutos com o entusiasmopróprio da sua situação. Félix ouvia pacientemente anarração do hóspede, sem atinar com a relação que teriaaquilo com o pedido que lhe ia fazer. Interiormente estavaaborrecido. Não fora o médico em sua longa vida de rapazsolteiro nem casto nem cauto; mas a atmosfera do noivadocomeçava a arejar-lhe o espírito, e semelhante confidência,naquela ocasião, lhe parecia de todo ponto extravagante.

— Não desconheço, disse Luís Batista quando concluiu asua expansão amorosa, não desconheço que uma aventuradestas, em véspera de noivado, produz igual efeito ao deuma ária de Offenbach no meio de uma melodia de Weber.Mas, meu caro amigo, é lei da natureza humana que cadaum trate do que lhe dá mais gosto. A vida é uma ópera bufacom intervalos de música séria. O senhor está numintervalo; delicie-se com o seu Weber até que se levante opano para recomeçar o seu Offenbach. Estou certo de que

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virá cancanear comigo, e afirmo-lhe que achará bomparceiro.

Dizendo isto, Luís Batista engoliu o resto, já frio, do caféque tinha na xícara, acendeu de novo o charuto, e recostou-se na cadeira. Félix teve tempo de reassumir a atitudetranqüila que as últimas palavras de Batista lhe haviamalterado.

— Enfim, disse ele, que ligação há entre essa aventura e opedido que me vai fazer?

— Toda, respondeu Batista; se ela não existisse, eu nãoviria pedir-lhe nenhum favor. O senhor sabe o que é umcapricho de mulher amante; não ignora também que omenor desejo dela é uma ordem para o cavalheiro seuescolhido.

Félix fez um gesto afirmativo.

— Pois bem, continuou Batista. Estamos nesse caso. Ela éextremamente caprichosa, e mais ainda que caprichosa, éamante de coisas d'arte. Há dias fui achá-la aborrecida.Interroguei-a; nada me quis dizer. Pela conversa adiantefalou-me duas ou três vezes numa gravura que vira na Ruado Ouvidor, e que o dono vendera quando ela lá voltou,disposta a comprá-la. O assunto era o mais ortodoxopossível: a israelita Betsabé no banho e o rei Davi aespreitá-la do seu eirado. Não lhe parece galante? A gravura

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creio que era finíssima; mas tinha, além disso, ummerecimento para a pessoa de quem lhe falo: é que a figurade Betsabé era a cópia exata das suas feições. Vaidade demoça bonita. Mostrava-se tão desconsolada quando falavanaquilo que facilmente percebi não ser outro o motivo doaborrecimento em que a fui encontrar.

— E então?

— Fiz o que faria qualquer outro. Era necessário que a todoo transe ela possuísse um exemplar da gravura. Fui procurá-lo, e não achei. Gastei dois longos dias nessas pesquisas, equando voltei à casa dela não tive remédio senão tirar-lhe aúltima esperança. Ela apertou-me afetuosamente as mãos, eagradeceu-me o trabalho, dizendo-me que era mais umaprova de amor que lhe dava; concluiu, porém, tudo issocom um suspiro. Eu não me atrevo a dizer ao senhor o quequer dizer um suspiro neste caso; aquele suspiro era umainsistência do desejo.

— Parece que sim, disse Félix que já adivinhara o final daexposição.

— Dir-me-á o senhor, continuou Batista, que eu deviaaproveitar o paquete que partiu ontem e mandar vir daEuropa a gravura. Não duvidaria fazê-lo, e ela esperaria deboa vontade; mas quem pode afirmar que o meu amor dureaté à volta do paquete? Tive então uma idéia salvadora.

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—Ah!

— Voltei à loja onde ela vira a gravura e inquiri do dono dacasa quem lhe havia comprado. Depois de algum trabalhode memória disse-me que fora o senhor. A princípio hesiteise devia importuná-lo. O pedido não seria indiscreto emqualquer outra ocasião; mas, quando o senhor está paratomar um estado moral, rogar-lhe que me ajude a enxugaras lágrimas de uma bela pecadora, é mais que indiscrição, éatrevimento. Hesitei, a voz da razão era mais fraca que a dopecado, e venceu o pecado.

Luís Batista calou-se, esperando a resposta do médico.Houve um largo silêncio. Levantaram-se da mesa e forampara a sala, sem que Félix desse a resposta. Luís Batista foio primeiro que tornou ao assunto.

— Não me pode fazer o que lhe peço? disse ele.

— Tenho estado a perguntar a mim mesmo se me é lícitofazê-lo, respondeu Félix sorrindo, e se ao entrar nas fileirasdo matrimônio devo ajudar a deserção de um camarada.

Luís Batista estava naquele dia singularmente falador. Asimples observação do médico deu azo a um largo discursoa respeito do regímen matrimonial. Era meio-dia. Félixestava já fatigado da visita e da palestra. Aproveitou uminterstício para dizer:

— Em suma, tem grande desejo de possuir a gravura?

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— Queria que ma cedesse.

— Faço-lhe presente dela.

— Eu não desejava de nenhum modo prejudicá-lo, disseBatista; há de consentir então que eu lhe faça um presentede noivado.

Félix não respondeu; foi buscar a disputada gravura etrouxe-lha. Luís Batista não pôde reter um grito de surpresa.A figura de Betsabé, dizia ele, parecia realmente uma cópiada sua dama. A dama era talvez mais formosa do que acópia.

Foi nesse momento que trouxeram ao médico uma carta,entregue pelo correio. Félix abriu-a distraidamente, mastanto que lhe leu o conteúdo ficou muito pálido e encostou-se a uma cadeira. Com a mão trêmula aproximou o papeldos olhos, enquanto os dentes mordiam os lábios até deitarsangue. Luís Batista aproximou-se rapidamente de Félix eperguntou-lhe o que tinha.

— Nada, disse o médico, uma vertigem apenas... Há de dar-me licença, preciso estar só.

O hóspede curvou-se, sorriu e saiu.

Félix encerrou-se no seu quarto. Do que lá se passouninguém de casa soube: algum rumor se ouvia de quando

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em quando, mas abafado, e uma ou outra exclamação vagae solta. Eram quatro horas quando o médico saiu à sala.

O tempo tinha melhorado. O sol reaparecera entre duasnuvens, dando de chapa nas árvores molhadas de chuva enos telhados que escorriam um resto de água. Dissera-seque a natureza queria fazer outro contraste ao inverso do damanhã, porque, se a tarde sorria alegre, o homem davasinais de tempestade interior. Tinha os olhos vermelhos, aboca contraída, os cabelos em desordem. Saiu com passovacilante. De quando em quando, colhia o alento com aexpressão de quem lhe custa respirar. Um escravo, a que eledeu algumas ordem, reparou no estado do senhor, eperguntou-lhe se estava doente. Félix respondeu secamenteque não. O escravo abanou a cabeça e saiu.

Félix escreveu em seguida uma carta que sobrescritou paraa viúva. Vestiu-se depois. Não tardou que lhe parasse umcarro à porta. Meteu-se nele e mandou tocar para a cidade.

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Era já sobre tarde quando a carta chegou às mãos da viúva.Viana descera à chácara, enquanto a irmã dividia a atençãoentre os gracejos do filho e o seu próprio pensamento. Omenino enchia toda a sala com a sua pessoa; as travessurasdele não eram enfadonhas. Lívia não o contemplava só comos olhos de mãe; via nele como que o elo de ouro entre umaquimera desfeita e uma quimera realizada. Tais eram assuas reflexões quando a mucama lhe veio trazer a carta deFélix. Entregou-lha e saiu.

Lívia estremeceu; a letra do sobrescrito revelava o estadofebril da mão que o escrevera. Abriu rapidamente a carta eleu-a.

Quando Luís, numa das suas voltas, se chegou à mãe,achou-a com os olhos cravados no chão, trêmula e pálida.Chamou por ela inutilmente. Agarrou-lhe as mãos e a moçapareceu acordar de um letargo.

— Que tem, mamãe? perguntou o menino, afagando-a comvoz lacrimosa.

Lívia não respondera a princípio. A voz da criança chamou-a enfim à realidade. Olhou vagamente à roda da sala, ecomo se a pouco e pouco lhe voltasse a consciência, dirigiulentamente os olhos à carta fatal. Tinha-a ainda entre asmãos. Releu-a com ansiedade, levantou-se arrebatadamente,deu alguns passos e de novo se deixou cair na cadeira. O

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menino correu à porta assustado. O tio entrava nessemomento.

— Que é? disse Viana vendo o ar assustado do menino, e asfeições decompostas da irmã.

Lívia entregou-lhe a carta.

A carta dizia assim:

“Lívia

{{d|O que vou fazer é indigno, bem o sei; mas é ainda maiscruel do que indigno. O nosso casamento é fatalmenteimpossível. Não tens nenhuma culpa direta nem indireta naminha resolução. Esta carta, que me condena, será a tuacabal defesa. Adeus.}}

Félix”.

Quando Viana acabou de ler este estranho e misteriosodocumento, ficou tão pálido como a irmã. Não compreendianada do que se passava; indignava-o, todavia, oprocedimento de Félix. Sufocou a cólera a ver se evitava aexplosão da viúva. Olharam-se ambos silenciosamentealguns instantes; o menino tinha-se aproximado e seguravauma das mãos da mãe, olhando para o tio como se esperassedele alguma explicação.

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— Recusa, disse enfim Viana, e nenhuma explicação nos dádo seu procedimento. O ato é tão indigno que não te devemortificar; quando um homem dá este triste documento dasua lealdade, penso que a mulher que o ama pode dar graçasa Deus de o não ter acompanhado até o altar. Espero quepenses como eu...

Viana não pôde acabar. As lágrimas, tanto tempo sustidas,romperam enfim dos olhos da viúva, impetuosas e amargas.A dor, de tão concentrada que fora a princípio, fez-seviolenta e explosiva; mas o organismo estava tão abaladopor tantas comoções, que a infeliz moça perdeu os sentidos.

Quando ela voltou a si era noite; achou-se no seu próprioleito, tendo ao pé de si o irmão e um médico.

O médico falou-lhe e ela respondeu sem saber o que dizianem o que ouvia. A febre era intensa, mas o médicoesperava que no dia seguinte cedesse à energia do remédioque lhe ia aplicar.

Viana ficou só com a irmã, e procurou distraí-la do sucessoda tarde, tarefa inútil porque a viúva não pensava nele; oolhar vago indicava que ainda se não havia feito luz no seuespírito. Às vezes contraía os sobrolhos e fitava o olhar noespaço como se estivesse a recordar-se. Numa dessas vezesvolveu os olhos pelo quarto parecendo procurar alguém. Aausência de Félix de todo lhe alumiou o espírito.

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Deu um grito abafado e desatou a chorar.

Acorreu o irmão, com palavras de brandura e conselho,dizendo-lhe que nem tudo estava perdido, e que era possívelremediar o mal. Lívia não prestava fé a essas vãsconsolações; estava entregue ao seu desespero. Abafadacom soluços, lavada em lágrimas, soltava gritos de angústia,e convulsivamente se revolvia no leito.

Viana teve medo desse grave estado e mandou chamar omédico. Quando este chegou, já a doente havia sossegado;mas, com as lágrimas, tinha-se ido a razão. O delírio duroutoda a noite e parte da manhã seguinte. De tarde a febredeclinou um pouco e a doente adormeceu.

Só no dia seguinte, quando o abatimento veio substituir aexaltação, pôde a moça refletir no recente infortúnio.Debalde perguntava a si mesma a causa daquele súbitorompimento do noivo; nada lho explicava. Algum mistériohaveria, alguma razão aparentemente legítima, porque àviúva nada lhe dizia o coração que fosse contrário àlealdade de Félix.

Contou-lhe o irmão que havia ido à casa do médico, e não oencontrara, nem lá lhe quiseram dizer para onde fora.Agora, depois de maduro exame, pensava em ir pedir-lheuma explicação do procedimento.

Lívia desaprovou-lhe a resolução.

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— Mas, disse Viana, não podemos ficar assim...

— Podemos, interrompeu a viúva; enquanto estou doente aexplicação será natural para os outros. Quando me levantarda cama direi que eu mesma desfiz o casamento. Achaste-me sempre singular; é provável que os outros me vejamcom iguais olhos; e tudo se explicará da melhor maneira.

— Mas a explicação dele...

— A explicação dele não é precisa.

Raquel, apenas soube da doença de Lívia, foi passar algunsdias com ela. Naquelas circunstâncias o encontro de ambasfoi profundamente triste. A viúva não lhe confiou logo acausa verdadeira da sua enfermidade, mas durou pouco areserva, porque a ausência de Félix fez impressão na moça,e Lívia julgou melhor dizer-lhe tudo. Era a segunda vez queambas achavam no seio uma da outra, não a consolação,que não a há para as desilusões recentes, mas oadormecimento momentâneo do coração.

Lívia entrou a convalescer do abalo que lhe dera a fatalcarta. Raquel tornara-se enfermeira dedicada e continuou aser o que sempre fora, amiga afetuosa. A viúva nãoacreditava na realidade do seu restabelecimento. Em suaopinião, era uma aparência que a realidade desfaria empouco tempo.

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Dez dias depois do rompimento de Félix, apareceu Menesesnas Laranjeiras. Tinha ouvido algumas perguntas relativasao casamento do médico, que sabia não se ter efetuado, semque até então transpirasse a causa verdadeira. Soube,porém, da moléstia de Lívia, e a isso atribuiu a demora docasamento.

A moça abafou um suspiro quando o viu entrar. Não eraarrependimento; era talvez lástima de si própria, que nãopudera aceitar esse coração mais confiante e menosescabroso que o do outro.

Mas se era já impossível uma aliança que a natureza nãoaconselhara, ainda que o pedira a razão, vinha de molde oamigo a quem confiaria os seus infortúnios. Esse foi oprimeiro impulso; o segundo foi, não de orgulho, mas depudor. O coração teve pejo de ir confessar o seu erro diantedaquele mesmo a quem repelira um dia.

Era difícil que semelhante situação se escondesse aos olhosde Meneses. A ausência do noivo era inexplicável; Menesessuspeitou a verdade e Raquel lha confirmou. O fim com quea donzela delatou o segredo confiado foi ainda umsacrifício; pediu a intervenção de Meneses para areconciliação do médico com a viúva.

— Peço-lhe uma coisa difícil, concluiu ela aludindo pelaprimeira vez ao amor de Meneses, mas é uma boa ação.

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— É uma boa ação, e não é difícil, replicou Menesesolhando para ela fixamente.

Raquel abaixou severamente os olhos. Um espectadoratento concluiria, talvez, que a ferida dele não estava longede cicatrizar, mas que, pelo contrário, a dela continuava adeitar sangue.

Meneses dispôs-se a tentar alguma coisa. Reconhecia que oprocedimento de Félix era misterioso; mas não desesperoude lhe descobrir a causa e confiava em que poderia removê-la. Conseguiu saber que o médico se refugiara na Tijuca.Quando estava pronto a ir ter com ele, hesitou, refletiu erecuou da primeira resolução.

Foi preciso que uma nova crise o empuxasse para lá. Aviúva recaíra enferma, não tendo podido resistir às longasvigílias e mal dormidas noites. A moléstia desta vez trouxeum caráter menos violento que da primeira vez, maspertinaz; a febre não era intensa, era constante. O médicoassistente não achou que houvesse perigo; recomendou omais desvelado tratamento, e repouso absoluto de espírito.

Meneses não hesitou; partiu para a Tijuca.

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Quando Meneses chegou à Tijuca eram quatro horas datarde. A casa de Félix ficava afastada do caminho. O portãoestava aberto; Meneses atravessou rapidamente o espaçoque ia da estrada à casa e bateu. Veio um moleque abrir-lhea porta. Meneses entrou precipitadamente e perguntou:

— Onde está o senhor?

— Senhor não fala a ninguém, respondeu o moleque com amão na chave como se o convidasse a sair.

— Há de falar comigo, insistiu resolutamente Meneses.

O tom decidido do rapaz abalou o escravo, cujo espírito,acostumado à obediência, não sabia quase distingui-la dodever. Seguiram ambos por um corredor, chegaram diantede outra porta, e aí o moleque, antes de a abrir, recomendoua Meneses que esperasse fora. Perdida recomendação,porque, apenas o moleque abriu a porta, Meneses entrouafoitamente atrás dele.

Era um gabinete pequeno com quatro janelas que o enchiamde luz. Perto de uma janela havia uma rede estendida. Sobrea rede via-se um homem negligentemente deitado com umlivro nas mãos.

Era Félix.

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Félix levantou a cabeça, deu com os olhos em Meneses, eempalideceu. Meneses não dera um passo mais. Ficaramassim alguns segundos a olhar um para o outro. Enfim, omédico disse ao escravo que se retirasse, e os dois ficaramsós.

O silêncio prolongou-se ainda mais. Da parte de Félix eraconfusão; da parte de Meneses desapontamento. Viera eleem todo o caminho a descrever na imaginação o estado deFélix, acabrunhado por alguma grande dor, e em vez dissoachava-o a ler pacificamente um livro. Quis lançar mão dolivro, para conhecer bem até que ponto a sua desilusão eracompleta; mas o médico rapidamente o afastou.

— Não atendeste à ordem geral que eu havia dado, disseenfim o dono da casa, e creio que só alguma razão poderosate obrigaria a isso.

— Assim era, retorquiu Meneses, mas a razão acabou e euvolto para a cidade.

Dizendo isto, pôs o chapéu na cabeça e dirigiu-se para aporta. Parou um instante, caminhou de novo até a rede eproferiu secamente estas palavras:

— Tens consciência do que fizeste?

— Tenho, respondeu Félix; fiz o que me cumpria fazer.Mas, antes de mais nada, vens aqui por inspiração tua oupor mandado de...

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— Venho porque era um dever da minha parte livrar-te davergonha, e a ela da morte.

— Da morte! exclamou Félix levantando-se de um pulo.

O terror que se lhe pintara no rosto fez boa impressão noamigo. Suspeitou este que nem tudo estivesse perdido.Sentaram-se ambos, e Meneses referiu ao médico osacontecimentos que deixo narrados no capítulo anterior.Félix escutou a narração do amigo com um interesse quenão podia vir senão do amor. Meneses concluiu pintando-lhe com as cores que o caso pedia a baixeza do seuprocedimento, o desaire que recaía sobre a viúva, e oremorso que o havia de acompanhar a ele, ainda quandodaquele triste episódio não saísse nenhuma fatalconseqüência.

Félix mostrou-se profundamente comovido com a narraçãode Meneses e as reflexões que lhe fizera.

— Tens razão, disse ele quando o amigo acabou de falar;procedi covardemente. Ela ainda me ama... E perdoa-me,não é? Sim, há de perdoar-me... Pobre Lívia! Se tusoubesses como ela tem sofrido por minha causa!...

Meneses, satisfeito, disse-lhe que era indispensável voltar àcidade. Enquanto falava, porém, o rosto de Félix mudou deexpressão. A única resposta do médico foi:

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— Não! o que está feito, está feito; agora é impossívelrecuar.

— Impossível! gritou Meneses.

— Impossível, repetiu placidamente Félix.

Meneses levantou-se impaciente e começou a passear. Aserenidade do médico mais lhe doía do que indignava,porque alguma razão poderosa devia ele ter para cortar tãoperemptoriamente toda a tentativa de reconciliação. Quiserasabê-la e tremia de o interrogar.

O médico, entretanto, deixara-se estar sentado, quase tãotranqüilo como na ocasião em que Meneses lhe entrara nogabinete.

Não era fingida essa tranqüilidade, que durava já de algunsdias, depois de outros, — os primeiros, — que foram deaflitiva tempestade.

O homem não se esconde de si mesmo, e o maiorinfortúrnio dos corações pusilânimes é sentirem que o são.Quando Félix chegou à Tijuca tinha passado a excitação doprimeiro momento; o espírito, fraco de si, e abatido pelaimensidade do abalo, não achou na solidão o alívio que lhepedira. Vieram então muitos dias de luta e de febre, em queele, para fortalecer o ânimo, lia e relia a misteriosa carta quetrouxera consigo. O remédio era antes veneno para a suaalma ulcerada; lembrava-lhe a felicidade que perdera.

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Era isto o que padecia o coração. A consciência padeciatambém, porque a sociedade, que ele não vira no primeiroinstante, agora lhe aparecia como um juiz inflexível, apedir-lhe contas de uma injúria sem explicação. Às vezesarrependia-se do ato; outras vezes, não se arrependia, masacusava-se de precipitado e louco. Nunca mais tristementese revelara a inconsistência do espírito

Com o tempo a consciência foi calando as vozes, e com otempo, e a distância, e a sua índole variável, se lhe foiaquietando o coração. Aquele homem, que alguns dias anteschorava de desespero, nenhum vestígio guardara de suaslágrimas. Não se lhe apagara o amor da viúva, mas no lugarda paixão veemente, como que ficara apenas umarecordação remota e suave. Esta mudança era em parte obrado seu esforço, que buscava no esquecimento um refúgio;mas em grande parte era um efeito natural dele.

Tal foi a situação em que o achou Meneses. A presençadeste trouxe à memória do médico a última crise docoração. A impressão foi grande, não longa; a face do lago,que uma rajada encrespara, voltou à serenidade primitiva.

Meneses passeava de um lado para outro, a observar dequando em quando o médico. Ao seu espírito repugnava aidéia de que Félix recorresse a um meio extraordinário parasair de uma situação difícil, não sancionada pelo coração.Uma causa havia, decerto, que se lhe afigurava grave, e que

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ele a todo custo queria conhecer. Seus esforços convergiampara esse ponto.

Instado pelo amigo, Félix aludiu à carta que recebera, masrecusou mostrá-la.

— Há nela um segredo, disse ele, que me impede de acomunicar a ninguém. Lívia tem jus ao meu respeito epossui ainda o meu amor.

Estas últimas palavras foram ditas com certa comoção.Meneses não perdeu a esperança de o vencer. A sinceridadeera a sua eloqüência; podia-se dizer que ele falava com ocoração nas mãos. O espírito de Félix ia cedendo aoencanto; ele mesmo recordava as horas felizes do passado eas saudosas esperanças do futuro. O coração palpitou-lhecom mais força e a imaginação fez o resto. A carta, porém,a fatal carta lhe ocupou logo o pensamento, e a frontedescaiu diante do insuperável obstáculo.

Cansado de lutar, Meneses resolveu partir para a cidade.

— Não sei o que pensarão os outros, disse ele; eu levo asuspeita de que não a amaste nunca, e que esse rompimentoestrepitoso foi um meio de salvar a tua liberdade.

Ouvindo estas palavras, Félix não pode conter um gesto decólera. A atitude quieta de Meneses o fez cair em si.

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— Tens razão, disse ele depois de algum tempo. Quero quepelo menos alguém me reconheça inocente e digno. Dás-mea tua palavra de honra que nada revelarás do que vais ler?

— Dou.

Félix foi buscar a carteira, tirou dela a carta, e entregou-a aMeneses.

Meneses leu o que se segue:

“Mísero moço! És amado como era ooutro; seráshumilhado como ele. No fim de alguns meses terás um

Cireneu para te ajudar a carregar a cruz, como teve ooutro,por cuja razão se foi desta para a melhor. Se ainda é tempo,

recua!”

A carta não tinha assinatura.

Meneses ficou atônito; mas foi obra de alguns instantes,poucos. Sua índole generosa repelia a idéia de acreditar narevelação que acabava de ler.

— É impossível! disse ele.

Félix ergueu a cabeça, que apertava entre as mãos, ereplicou:

— Essa é a tua convicção; eu quisera que fosse a minha.Mas que testemunho tens tu contra o que aí vês escrito?

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— Não sei, respondeu Meneses com calor, mas é o que mediz o coração. Repugna-me crer que essa pobre senhora...Não, é impossível! Demais, uma carta anônima!

— Põe o nome que quiseres aí embaixo não lhe aumentasnem lhe tiras o valor, se a revelação é verdadeira.

— Quem te diz que é verdadeira?

— Quem me diz que o não é? A dúvida era já bastante parajustificar o que fiz. Não foi só o receio do futuro que meimpeliu, foi principalmente a lembrança do passado. Atraição dela, se a houve, não deve doer nada ao marido quese foi; mas ao marido que vem, a idéia da perfídia anterior,destrói pela base toda a confiança, que é a condição dafelicidade. Não sei o que farias tu no meu caso; eu segui oimpulso do coração e da razão.

Meneses ouvira atentamente o amigo. Quando ele acabou:

— Creio-te sincero, disse; e compreendo que sofreste.

— Muito!

— Mas recusarás uma reflexão? Quem escreveria estacarta? Não foi um amigo, decerto. Um amigo, se lhepesasse o teu ato, viria falar-te cara a cara. Um indiferentetambém não foi. Resta, pois, um inimigo, teu ou dela...

— Dela?

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— Ou um interessado: escolhe.

Félix refletiu um instante.

— Inimigo, não sei se os tinha; interessado... em quê?

— Ela é rica; algum pretendente...

— Não havia nenhum.

Meneses não fraqueou na defesa da sua hipótese. Quantomais atentava na revelação da carta, mais o coração lhebradava contra ela. Para ele a inocência de Lívia era claracomo o sol. Félix sentia-lhe a convicção, e lastimava-se dea não ter, tão viva e tão profunda.

A noite caíra de todo. Meneses declarou que só voltaria àcidade no dia seguinte.

Félix compreendeu que o amigo não perdera a esperança deo converter, e longe de se irritar agradeceu-lhe a intenção.Era a primeira vez que ele se expandia com alguém arespeito do seu amor; fê-lo com abundância e sinceridade.Não lhe lembrara sequer que Meneses também amara aviúva.

Muitas vezes falaram na carta. Meneses perguntou aomédico em que circunstâncias a recebera. Félix referiu avisita de Luís Batista, o objeto dela, a conversa travadaentre ambos, até que a carta lhe chegou às mãos.

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A singularidade da visita de Luís Batista não escapou aMeneses:

— Visitava-te esse homem? perguntou ele.

— Nunca.

— Eras amigo dele?

— Havia mais razões para sermos inimigos que outra coisa.

Meneses hesitou; não se atrevia a desposar uma suspeita.Mas o espírito do médico era terreno fecundo para ela.Apenas as perguntas de Meneses lhe deitaram o gérmen,para logo foi lançando raízes e cresceu.

— Crês então que ele?... aventurou o médico.

— Não sei; mas, não te parece curiosa toda essa história degravuras?

Félix refletiu algum tempo. Como quando os olhos se vãoacostumando à meia-luz de um sítio, e começam adistinguir a pouco e pouco os objetos, o espírito do médicoentrou a recordar e a examinar todos os incidentes daquelafatal manhã. O que ele a princípio não vira, apareceu-lheentão claro e evidente. O tom ameno e jovial de LuísBatista, a sua estranha verbosidade, o episódio dos amorestão levemente contados a um homem que não era seunatural confidente, tudo isto com a circunstância da

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humilhação que recebera quando a viúva lhe fechou a suasala, enfim a má reputação dele, eram indícios de sobejopara não achar natural a visita que lhe fizera. Mas, comodeduzir daqui a autoria da carta?

Meneses resolveu a dúvida naturalmente.

— Se não desses crédito à carta, disse ele, o último de quemte lembrarias seria Luís Batista, porque ninguém faz mal aum homem no mesmo instante em que lhe vai pedir umfavor.

Félix aceitou esta explicação; mas o que acabou de oconvencer foi uma circunstância até então deslembrada eagora decisiva. O médico levantou-se rapidamente dacadeira; deu alguns passos na sala e parou em frente deMeneses.

— É verdade, disse; foi ele com certeza! Quando eu li acarta fiquei fulminado. Ele aproximou-se de mim; eu pedi-lhe que me deixasse só. Obedeceu, mas um sorriso, queentão me pareceu feroz indiferença, mas que hoje vejo queera de triunfo, lhe roçou os lábios. Foi ele; oh! sinto que foiele.

Entendamo-nos, leitor; eu, que te estou contando estahistória, posso afirmar-te que a carta era efetivamente deLuís Batista. A convicção, porém, do médico, — sincera,decerto, — era menos sólida e pausada do que convinha. A

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alma dele deixava-se ir ao sabor de uma desconfiança nova,que as circunstâncias favoreciam e justificavam.

Quando Meneses viu que o maior trabalho estava feito, nãoteve mais que falar outra vez de Lívia. A placidez domédico desaparecera; todo ele era agora amor e ódio,arrependimento e vingança. A noite foi mal dormida, equando a aurora os convidou a sair do leito, Félix eratotalmente outro. Ardia por ir fazer aos pés da viúva plenaconfissão da sua indignidade. Era o nome que lhe dava; dar-lhe-ia outro, se os acontecimentos o fizessem duvidar outravez.

Apressaram a viagem; Meneses estava alegre com oresultado da missão; lamentou com o médico a fatalidadedo caso, mas estava certo de que tudo ia acabar como devia.Mil idéias cor-de-rosa enchiam o cérebro de Félix, e ambosdesceram rapidamente na direção da cidade.

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Apenas chegaram à cidade, Félix despediu-se de Meneses eseguiu para as Laranjeiras. Ia palpitante e receoso; pelaprimeira vez nesse dia lhe lembrou a doença da viúva.Temeu que fosse tarde. Não era; as janelas estavam abertas.Entrou no jardim; subiu as escadas, cabisbaixo; quandolevantou os olhos viu Raquel diante de si.

Raquel, cujo coração era menos filosófico, posto soubesseresignar-se como o de Meneses, não viu o médico semalgum abalo interior. Fê-lo entrar e foi ter com a enferma.

Quando Lívia soube que Félix ali estava, sorriu tristementee fechou os olhos. Abriuos para contemplar a boa amigaque esperava ao pé do leito. Não estavam molhados.Cobria-os um véu de serena melancolia.

— Agradece-lhe por mim, Raquel, e dize-lhe que me veráquando eu puder sair daqui.

Félix recebeu o recado e sentiu a frieza dele, apesar dadoçura da voz que lho transmitia. Era muito contudo; nãoestaria longe a reconciliação.

A convalescença de Lívia foi mais rápida do que se deveraesperar. O intervalo foi aproveitado por Félix em sereconciliar com Viana, que achou dentro de si bastantemisericórdia para perdoar o culpado. A submissão domédico o lisonjeou, e o seu arrependimento lhe pareceu oque realmente era, — sincero. Era natural perguntar-lhe a

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razão do rompimento. Viana achou melhor calar-se; o queele queria antes de tudo era a reparação do erro.

Lívia consentiu finalmente em receber o médico. Estava nasala, envolvida num roupão branco, com um resto depalidez que a enfermidade lhe deixara no rosto. Nascircunstâncias em que ambos se tornavam a ver não podiaela estar melhor. O ar da moça não era risonho, mastambém não era severo. Félix caminhou lentamente paraela, tímido e fascinado ao mesmo tempo. De novo sentia oimpério que a viúva sempre exercera em seu espírito.

Quando Félix confessou à viúva todo o seu arrependimentoe lhe implorou o perdão da culpa que cometera, escutou-oLívia com grande serenidade, e afetuosa lhe respondeu:

— Não lhe nego o perdão que me pede; seria duvidar doseu arrependimento, e eu creio que é sincero. Podia talvezexigir que me dissesse a causa que o levou...

— A causa é triste de confessar, interrompeu Félix.

— Não lha peço. Mas quer ouvir o resto?

Félix curvou a cabeça.

— Creio no seu arrependimento, e não duvido do seu amor,apesar de tudo o que se há passado. Isto lhe deve bastar. Odestino ou a natureza não nos fez um para o outro. Ocasamento entre nós seria uma cerimônia apenas. Seria

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mais; seria o nosso infortúnio, e mais vale sonhar com afelicidade que poderíamos ter do que chorar aquela quehouvéssemos perdido.

Félix ouviu as palavras da moça cabisbaixo e abatido. Nãoousava responder-lhe, nem interrogá-la; mas do seu mesmosilêncio colhia a moça a sinceridade da dor e doarrependimento.

— Se isto lhe dói, continuou ela, vê bem que a culpa não éminha. Eu aceito uma situação não criada por mim, nemtambém pelo senhor, mas, — como eu lhe dizia, — pelanatureza ou pelo destino. No ponto a que chegamos é esta aresolução melhor.

— Não é, interrompeu Félix com impetuosidade, não é amelhor porque ambos perderemos com ela, e nada nosimpede a resolução contrária. Creio que não duvide do meuamor; mas digo-lhe que o não compreende, nem avalia. Eunão teria ânimo de lhe propor nas circunstâncias em que nosachamos, um rompimento que...

O sorriso com que a moça o ouvia cortou-lhe a palavraneste ponto. Caiu em si, lembrou-lhe, — que ele facilmenteesquecia tudo — lembrou-lhe que lhe não cabia falar derompimento, e murmurou:

— Não tenho direito de falar assim, e vejo que mereço umcastigo...

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— Não é castigo, atalhou a viúva, é necessidade. Se algumaconsolação pode levar desta última entrevista, leve a certezade que o amo como dantes, e de que o meu padecimentoserá ainda maior do que o seu. O casamento é já agoraimpossível. Eu não sei o que motivou a sua carta, masimagino que foi alguma dúvida nova a meu respeito. Se noscasássemos, cessariam elas?

— Sim! porque eu hoje creio e vejo o que padeceu pormim. Para duvidar do seu amor seria preciso que houvesseperdido a razão. Demais, continuou Félix enquanto Líviaabanava tristemente a cabeça, — viveremos só para nós,fecharemos a nossa casa aos olhos estranhos...

— Ainda assim o irá perseguir esse mau gênio, Félix; seuespírito engendrará nuvens para que o céu não seja limpo detodo. As dúvidas o acompanharão onde quer que nosachemos, porque elas moram eternamente no seu coração.Acredite o que lhe digo; amemo-nos de longe; sejamos umpara o outro como um traço luminoso do passado, queatravesse indelével o tempo, e nos doure e aqueça osnevoeiros da velhice.

Lívia proferiu estas últimas palavras com a voz trêmula, euma lágrima lho rolou pela face pálida.

— Por que nos separaremos agora que estamos à porta docéu? perguntou Félix. Não me cabe o direito de exigir umafelicidade que repeli tantas vezes; mas, se pudesse entrar na

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minha alma veria que os meus erros, por maiores quesejam, e são grandes, anima-os sempre um sentimento deamor, e que enfim eu cedo sempre ao grito de minhaconsciência. A mais bela ação seria perdoar-meesquecendo, e o único modo de esquecer seria voltarmos aotempo de nossas esperanças.

— Perdoei tudo, e tudo esqueci; apagou-se o passado enenhum ressentimento me ficou. O que se não apaga é ofuturo.

Félix torcia as mãos. Era patente o seu desespero. A viúvamal podia encará-lo. Seguiu-se um longo silêncio,interrompido pela chegada de Luís. O menino pôs termo àentrevista. Félix olhou ainda algum tempo para a moça; masleu-lhe na fisionomia que a resolução era inabalável.Levantou-se para sair.

— Conservaremos a estima recíproca, disse Líviaestendendo-lhe a mão, e espero que me conserve tambémalguma coisa mais... como eu.

Eram as últimas palavras da moça, vieram entrecortadas desoluços. Félix quis pegar-lhe nas mãos e aproveitar essepassageiro desmaio para conseguir a retratação daspalavras. Mas a moça abraçou-se ao filho em cujo seioescondeu o rosto.

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— Não faça chorar mamãe, disse Luís enlaçando com osbracinhos o pescoço da viúva.

Félix retirou-se lentamente, com os olhos anuviados, turvoo espírito, o passo vacilante, e transpôs a custo a soleiradaquela porta que se lhe ia fechar para sempre.

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Dez anos volveram sobre os acontecimentos deste livro,longos e enfastiados para uns, ligeiros e felizes para outros,que é a lei uniforme desta mofina sociedade humana.

Ligeiros e felizes foram eles para Raquel e Meneses, que eutenho a honra de apresentar ao leitor, casados, e amantesainda hoje. A piedade os uniu; a união os fez amados eventurosos.

A pouco e pouco, o primeiro amor de Raquel se foiapagando, e o coração da moça não achou melhorconvalescença que desposar o enfermeiro. Se lho dissessemno tempo em que ela adoecera por amor do médico,levantaria desdenhosamente os ombros, e com razão. Dondese colhe quão acertado é aquele provérbio oriental que diz— que a noite vem pejada do dia seguinte. Qual fosse aaurora que a sua noite trazia no seio não o adivinharaRaquel, mas a sua atual opinião é que não a podia havermais bela em toda a escala do tempo.

O coronel e D. Matilde, com poucos meses de intervalo,foram continuar na eternidade a doce união que osdistinguira neste mundo.

Lívia entra serenamente pelo outono da vida. Não esqueceuaté hoje o escolhido de seu coração, e à proporção quevolvem os anos, espiritualiza e santifica a memória dopassado. Os erros de Félix estão esquecidos; o traço

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luminoso, de que ela lhe falara na última entrevista, foi só oque lhe ficou.

No tempo em que os mosteiros andavam nos romances, —como refúgio dos heróis, pelo menos, — a viúva acabariaos seus dias no claustro. A solidão da cela seria o rematenatural da vida, e como a olhos profanos não seria dadodevassar o sagrado recinto, lá a deixaríamos sozinha equieta, aprendendo a amar a Deus e a esquecer os homens.

Mas o romance é secular, e os heróis que precisam desolidão são obrigados a buscá-la no meio do tumulto. Líviasoube isolar-se na sociedade. Ninguém mais a viu no teatro,na rua, ou em reuniões. Suas visitas são poucas e íntimas.Dos que a conheceram outrora, muitos a esqueceram maistarde; alguns a desconheceriam agora.

Talvez o tempo lhe respeitasse a beleza, a não ser acatástrofe que lhe enlutou a vida. Já na meiga e serenafisionomia vão apontando sinais de decadência próxima. Ospoucos que lhe freqüentam a casa não reparam nisso,porque a alma não perdeu o encanto, e é ainda hoje amesma feiticeira amável de outro tempo. Ela, sim, ela vêque a flor inclina o colo, e que não tarda o vento da noite adispersá-la no chão. Mas do mesmo modo que a beleza lhenão acordara vaidades, assim a decadência lhe não inspiraterror.

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Para consolo e companhia de sua velhice tem ela o filho,em cuja educação concentra todos os esforços. Luís possuias graças da mãe, apenas modificadas por uns toquesvaronis. Tem só quinze anos; mas como herdou a índoleaustera da viúva, e pouco, muito pouco, da viveza deimaginação, parece menos um adolescente que um homem.

Félix é que não iria parar no claustro. A dolorosa impressãodos acontecimentos a que o leitor assistiu, seprofundamente o abateu, rapidamente se lhe apagou. Oamor extinguiu-se como lâmpada a que faltou óleo. Era aconvivência da moça que lhe nutria a chama. Quando eladesapareceu, a chama exausta expirou.

Não foi só isto. A sagacidade de Lívia adivinhara asprovações que lhe daria o casamento. Quando de todo se lhecalou o coração, Félix confessou ingenuamente a si próprioque o desenlace de seus amores, por mais que omortificasse outrora, foi ainda assim a solução maisrazoável. O amor do médico teve dúvidas póstumas. Averacidade da carta que impedira o casamento, com o andardos anos, não só lhe pareceu possível, mas até provável.Meneses disse-lhe um dia ter a prova cabal de que LuísBatista fora o autor da carta; Félix não recusou otestemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormentepensava era que, suprimida a vilania de Luís Batista, nãoestava excluída a verossimilhança do fato, e bastava elapara lhe dar razão.

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A vida solitária e austera da viúva não pôde evitar o espíritosuspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum tempodepois duvidou de que fosse puramente um refúgio;acreditou que seria antes uma dissimulação.

Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso,segundo a sociedade, Félix é essencialmente infeliz. Anatureza o pôs nessa classe de homens pusilânimes evisionários, a quem cabe a reflexão do poeta: "perdem obem pelo receio de o buscar". Não se contentando com afelicidade exterior que o rodeia, quer haver essa outra dasafeições íntimas, duráveis e consoladoras. Não a há dealcançar nunca, porque o seu coração, se ressurgiu poralguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento daconfiança e a memória das ilusões.

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