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QUINTAIS MEDICINAIS: território e territorialidades de práticas agroecológicas na Comunidade Quilombola Dona Juscelina Muricilândia (TO). Ms. Izarete da Silva de Oliveira 1 Drª Kênia Gonçalves Costa 2 Paloma Pereira da Silva 3 RESUMO O presente trabalho foi produzido por meio de uma abordagem qualitativa tendo como viés a oralidade (PORTELLI, 2016) na compreensão sobre a territorialidade (HAESBAERT, 2004) de mulheres remanescentes de quilombolas e na reflexão sobre o uso que estas fazem do território quilombola. Algo perceptível no modo de vida delas são as práticas com características agroecológicas que fazem na Comunidade Quilombola Dona Juscelina (Muricilândia - TO) principalmente por meio da produção de quintais medicinais. Trazem uma forte representatividade construída por via do movimento feminista (ALVES E PINTANGUY, 1981) e forjam suas territorialidades principalmente com os quintais medicinais quando compartilham seu entendimento sobre ervas medicinais com tantas outras mulheres por meio da disponibilização de seu legado e da produção do próprio remédio, de mudas, de sementes e de raízes. Remédios e os saberes tradicionais recebidos principalmente das griôs (SOUSA, 2012) e repassados a outras mulheres estão sempre disponíveis para serem utilizados na cura das enfermidades e do desconhecimento, desta forma resguardando seus costumes e referenciais. Esses saberes estão sempre presentes em narrativas das lideranças de mulheres mais velhas e rememoram as lutas dos antepassados e a cultura que ainda é recorrente na comunidade. Estas lideranças anseiam pela efetivação do território (SAQUET, 2010), suas resistências perpassam também pelos espaços acadêmicos um ato que promove a luta pelo território ancestral. PALAVRAS CHAVE: Quintais medicinais. Oralidades femininas. Comunidade Quilombola Dona Juscelina. INTRODUÇÃO O presente trabalho traz reflexões sobre a utilização do território e a 1 Professora Concursada da Rede de Ensino da Educação Básica e Mestra em Estudos de Cultura e Território- PPGCult do Campus de Araguaína da Universidade Federal do Tocantins. e-mail: [email protected]. 2 Professora do curso de Geografia e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura e Território -PPGCult do Campus de Araguaína da Universidade Federal do Tocantins. e- mail:[email protected]. 3 Mestranda no Curso do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura e Território- PPGCult no Campus de Araguaína na Universidade Federal do Tocantins. e-mail: [email protected].

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Page 1: QUINTAIS MEDICINAIS: território e territorialidades de ...€¦ · mais velhas e rememoram as lutas dos antepassados e a cultura que ainda é recorrente na comunidade. Estas lideranças

QUINTAIS MEDICINAIS: território e territorialidades de práticas agroecológicas na Comunidade Quilombola Dona Juscelina – Muricilândia

(TO).

Ms. Izarete da Silva de Oliveira1

Drª Kênia Gonçalves Costa2

Paloma Pereira da Silva3

RESUMO

O presente trabalho foi produzido por meio de uma abordagem qualitativa tendo como viés a oralidade (PORTELLI, 2016) na compreensão sobre a territorialidade (HAESBAERT, 2004) de mulheres remanescentes de quilombolas e na reflexão sobre o uso que estas fazem do território quilombola. Algo perceptível no modo de vida delas são as práticas com características agroecológicas que fazem na Comunidade Quilombola Dona Juscelina (Muricilândia - TO) principalmente por meio da produção de quintais medicinais. Trazem uma forte representatividade construída por via do movimento feminista (ALVES E PINTANGUY, 1981) e forjam suas territorialidades principalmente com os quintais medicinais quando compartilham seu entendimento sobre ervas medicinais com tantas outras mulheres por meio da disponibilização de seu legado e da produção do próprio remédio, de mudas, de sementes e de raízes. Remédios e os saberes tradicionais recebidos principalmente das griôs (SOUSA, 2012) e repassados a outras mulheres estão sempre disponíveis para serem utilizados na cura das enfermidades e do desconhecimento, desta forma resguardando seus costumes e referenciais. Esses saberes estão sempre presentes em narrativas das lideranças de mulheres mais velhas e rememoram as lutas dos antepassados e a cultura que ainda é recorrente na comunidade. Estas lideranças anseiam pela efetivação do território (SAQUET, 2010), suas resistências perpassam também pelos espaços acadêmicos um ato que promove a luta pelo território ancestral.

PALAVRAS CHAVE: Quintais medicinais. Oralidades femininas. Comunidade

Quilombola Dona Juscelina.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho traz reflexões sobre a utilização do território e a

1 Professora Concursada da Rede de Ensino da Educação Básica e Mestra em Estudos de Cultura e

Território- PPGCult do Campus de Araguaína da Universidade Federal do Tocantins.

e-mail: [email protected]. 2 Professora do curso de Geografia e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de

Cultura e Território -PPGCult do Campus de Araguaína da Universidade Federal do Tocantins. e-

mail:[email protected]. 3 Mestranda no Curso do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura e Território- PPGCult no

Campus de Araguaína na Universidade Federal do Tocantins. e-mail: [email protected].

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influência desta na representatividade de mulheres remanescentes de

quilombolas, as quais mantêm práticas agroecológicas na Comunidade

Quilombola Dona Juscelina (mapa 01, pág.02), comunidade localizada na zona

urbana do município de Muricilândia – TO com acesso pela rodovia TO – 222,

o portal da Amazônia Legal na região norte do Brasil, e com distância

aproximada de 449 km de Palmas, capital do estado do Tocantins. Esta é uma

das quarenta e cinco comunidades quilombolas que foram reconhecidas e

certificadas no Estado do Tocantins, até o ano de 2017 (OLIVEIRA, 2018).

Evidenciamos que a representatividade feminina é recorrente nesta

comunidade quilombola como nas tantas outras comunidades do estado,

principalmente as que estão próximas a TO-222, e que há destaque nas

mulheres que são lideranças na comunidade de Muricilândia.

Neste contexto, compreendemos o conceito de território em Saquet

(2010. p.34) – “[...] o território é um lugar de relações a partir da apropriação e

produção do espaço geográfico, com o uso de energia e informação,

assumindo, desta maneira, um novo significado, mas sempre ligado ao controle

e à dominação social”. Nesta perspectiva, o modo como está organizado o

território nesta comunidade é determinado pelos usos feitos pelas mulheres

quilombolas que tem forte representatividade de cunho político e feminista, na

sua maioria são idosas e lideranças e foram nomeadas as griôs da

comunidade.

Como assevera Souza (2012, p. 83), griôs são “[…] os mais antigos ou

entre aqueles que funcionam como guardiães da memória mais remota ou

ancestral [...]” defensores da memória para fora compartilham com os

destinados do grupo (aprendizes de griô) o seu conhecimento e a sua fé para

que estes possam levar adiante os costumes e referenciais afro-brasileiros [...].

Assim, por meio da convivência com as mulheres mais velhas e experiências

compartilhadas com elas, constroem suas territorialidades e promovem a

manutenção de seus saberes e práticas, as quais são concretizadas nos seus

quintais com o cultivo de ervas medicinais e acabam cercadas pelos remédios

que são plantados nos arredores da própria casa em seus quintais. São usos

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que refletem a importância das ervas medicinais para curar doenças e para

garantir que os saberes ancestrais sejam repassados das griôs para os seus

descendentes.

Abordamos territorialidade em Rogério Haesbaert (2004) quando este

assevera que, “[...] a territorialidade além de incorporar uma dimensão

estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e culturais,

pois está intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como

elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significados ao lugar

(HAESBAERT, 2004, p.03)”. Deste modo, a maneira com que as mulheres

griôs quilombolas organizam e usam os espaços desenvolve os saberes

tradicionais e é de fundamental relevância para manutenção da ancestralidade

e da cultura.

Mapa 01 – Localização da Comunidade Quilombola Dona Juscelina

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Fonte: OLIVEIRA, 2018. (Dados organizados pela autora)

As griôs demonstram uma postura política que ressalta a importância

destas mulheres como lideranças na comunidade quilombola Dona Juscelina,

que se ressalta principalmente ao repassar para a juventude os saberes sobre

ervas medicinais. Efetiva-se assim um movimento feminista, mesmo que estas

não se autodenominem feministas, no modo de vida, o qual traz características

que enfatizam a relevância das mulheres no espaço social e relembram como a

resistência feminina permeia a comunidade e tantos outros espaços.

Feminismo aqui como afirma Alves e Pintanguy (1981, p. 8) que “[...]

caracteriza-se pela auto-organização das mulheres em suas múltiplas frentes,

assim como em grupos pequenos, onde se expressam as vivências próprias de

cada mulher e onde se fortalece a solidariedade.” Solidariedade esta é a base

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na comunidade remanescente quilombola e se demonstra quando trocam

saberes e mudas das diversas ervas produzida nos quintais, quando ocorrem

as diferentes manifestações culturais e em tantos outros espaços ocupados por

estas lideranças femininas.

Os costumes e as referências da comunidade são resguardados a

partir da oralidade, mecanismo utilizado pelos griôs desta comunidade, os

portadores das memórias ancestrais. Assim, legados são passados à juventude

quilombola a partir das memórias que permeiam os espaços de práticas

sociais, uma aliança fortalecida inerente às questões políticas na luta pelo

território.

Quando nos referimos aos espaços de manifestações política, citamos

o I Encontro de Griôs e Juventude ocorrido no período de 08 a 22/04/2018

durante os finais de semana na própria comunidade. Foi um espaço de

vivências de práticas sociais organizado por lideranças, no caso, mulheres

quilombolas e griôs. Estas são referência na produção de remédios e no cultivo

de ervas medicinais utilizadas para alívio e cura de males da saúde. Suas falas

incentivam todos a acreditar na cura natural e a produzir seus próprios quintais

medicinais.

Quando abordamos a oralidade destas mulheres quilombolas, estas

relatam que a forma como os quintais medicinais são estruturados evidencia

que são produzidos com práticas agroecológicas, respeitando o ciclo da

natureza, como as fases da lua, e sendo adubadas com uso de insumos

naturais, sem a introdução de agrotóxicos. Junto às ervas há presença de

árvores frutíferas diversas e até de hortaliças, o que proporciona o equilíbrio da

microfauna e flora.

Deste modo, compreendemos o modo de vida ancestral e suas

territorialidades quando recorremos a Tuan (1980, p. 107), “[...] mais

permanentes e mais difíceis de expressar são os sentimentos que temos para

com um lugar, por ser o lar, o lócus de reminiscências e o meio de se ganhar a

vida”. Assim, a consciência do passado é fundamental na evidência do amor

pelo lugar e recorre à história para rememorar o modo de vida dos

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antepassados como referência constante que ressalta a consciência cultural.

Neste panorama, nasce a afeição do homem pelo lugar. A própria

identidade está imbrincada no espaço que é apropriado e utilizado pelas

pessoas, ao ser vivido, passa ter sentido e dar significado ás suas vidas.

Entendemos que espaço é anterior ao território, ou seja, para Saquet (2007, p.

75) “[…] o território, dessa maneira, é objetivado por relações sociais, de poder

e dominação, o que implica a cristalização de uma territorialidade, ou de

territorialidades no espaço, a partir das diferentes atividades cotidianas”. Assim,

o território em si materializa-se a partir das malhas, nós e redes de

comunicação em coletividade, constituindo a territorialidade das mulheres

quilombolas quando interagem entre si e com todos que busca seus saberes.

Com adverte, Little (2002, p.13), “[…] as novas condutas territoriais por

parte dos povos tradicionais criaram um espaço político próprio, no qual a luta

por novas categorias territoriais virou um dos campos privilegiados de disputa”.

Compreendemos que a identidade cultural é instrumento de reivindicação de

direitos, a partir do momento que as mulheres quilombolas promovem suas

lutas, também é politica e ao descortinar seus quintais à visitações de

quilombolas e não quilombolas, pesquisadores: um ato que é antagônico ao

grande capital.

São mulheres quilombolas empoderadas lutam pautadas no direito de

fala, nos discursos que vão além do próprio lugar, estendendo sua

territorialidade que as visibilizam, expõe e fortalece a própria autoestima e de

outras mulheres. Uma prática que parte dos quintais medicinais aos espaços

acadêmicos, promovem além da saúde, a autonomia feminina individual e

coletiva, gera assim a coesão no meio que a circunda. Neste panorama, tais

territórios cumprem funções diversas: de natureza cultural, ambiental e social.

METODOLOGIA

Metodologicamente, tivemos uma abordagem qualitativa utilizando o

método da oralidade e história oral, como assevera Portelli (2016, p.18) “[…] a

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história oral, então, é história dos eventos, história da memória e história da

interpretação dos eventos através da memória [...]”. Desta maneira, “[...] a

oralidade, então, não é apenas o veículo de informação, mas também um

componente de seu significado.” (PORTELLI, 2016, p. 21). Nas primeiras

visitas objetivamos conhecer os quintais medicinais, além de como são

produzidos, tipos de ervas e em quais enfermidades são utilizados.

Para Deslandes (2008, p. 21), a pesquisa qualitativa,

[...] responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais com o nível de realidade que não pode ou não poderia ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes [...]

Assim, uma pesquisa qualitativa busca entender um fenômeno

específico em profundidade, neste caso, os quintais medicinais sua função e

seus significados. Onde as atitudes e aspirações das participantes desta

produção, externa mais que saberes agroecológicos, mas, participação politica

e autonomia. Fato que são descritos, investigados e interpretados, sempre

respeitando o Outro.

Ainda, Flick (2009, p. 25), “[…] os pontos de vista subjetivos constituem

o primeiro ponto de partida.” Continua, “[…] a pesquisa qualitativa dirige-se à

análise de casos concretos em suas peculiaridades locais e temporais, partindo

das expressões e atividades das pessoas em seus contextos locais.” (FLICK,

2009, p. 37). Em se tratando dos locais que ocorreu a pesquisa, estes

permitem vivenciar sensações diversas por se tratar do protagonismo de

mulheres onde o modo de vida mantém a própria história da comunidade.

Assim, metodologicamente adotamos as seguintes estratégias: a)

visitas à comunidade quilombola Dona Juscelina para observação in locus;

b) realização de diálogos com griôs mulheres quilombolas para conhecer sobre

os quintais medicinais; e, c) levantamento de informações sobre os tipos de

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ervas medicinais e suas utilidades. Deste modo, numa pesquisa, é relevante

como a abordagem acontece durante a entrevista e como é interpretada a

oralidade. Como assevera Venturi (2005, p.173),

[...] na realização de entrevistas, mais que aplicação de questionários, a forma de abordagem e a linguagem utilizada, a habilidade do entrevistador, o conhecimento prévio sobre o assunto em pauta, o conjunto de informações sobre o entrevistado, podem significar desde o mais desejável sucesso ao mais completo fracasso na obtenção das informações desejadas [...].

Ao realizar desde os primeiros agendamentos, às observações e

diálogos para que pudéssemos materializar a pesquisa em si, compreendemos

que é preciso construir um diálogo sutil respeitando a entrevistada pela

entrevistadora, como assevera RATTS, 2010, [...] a questão da militância tem

que ter esse sentido, e aí nós temos que aprender com os nossos antigos, os

africanos, esse é sentido da sabedoria, esse sentido de saber a hora em que

você vai interferir e como você vai interferir." (RATTS, 2010, p. 147). Está

atentas ao discurso das griôs quilombolas quanto aos usos das ervas

medicinais é um esforço de compreender o sentido que tudo isto tem para a

comunidade e para si.

Realizamos esta pesquisa na Comunidade Quilombola Dona Juscelina

em Muricilândia - TO e conhecemos as mulheres quilombolas griôs com suas

narrativas. Estas relataram também o processo de formação socioterritorial da

comunidade em suas demandas enquanto caracterização econômica e

organização sócio étnica sendo um dos quilombos do Tocantins. Narrativas

que traz a luz como as mulheres quilombolas lideranças fazem os usos do

território com saberes agroecológicos, evidencia-se a resistência politica

pautada no movimento feminista.

Nas trilhas da pesquisa interrogamos sobre as ervas medicinais

cultivadas e o tratamento de quais enfermidades para a manutenção da saúde,

como era produzido o medicamento, quais partes da erva era utilizado e os

cuidados na dosagem e acondicionamento.

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RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir das narrativas das mulheres griôs quilombolas foi possível

identificar vinte e nove espécies de ervas medicinais cultivadas e sua utilidade

na cura de enfermidades. Com uso conforme feito pelos mais velhos e sendo

resguardados pelos mais jovens, vernaculares registrados respeitando as

narrativas.

Durante o percurso da pesquisa, observamos que é possível que as

práticas agroecológicas se aproximam apresentam características do Bem

Viver, apresentado por Alberto Acosta (2016, p.15), “[…] refere-se, portanto,

à vida em pequena escala, sustentável e equilibrada, como meio necessário

para garantir uma vida digna para todos e a própria sobrevivência da espécie

humana e do planeta. O fundamento são as relações de produção

autônomas, renováveis e autossuficientes”. A lógica do modo de viver destas

mulheres expõe uma ligação de dependência com a natureza, com a terra,

com a vida, valorizando os conhecimentos ancestrais e as relações humanas

fortalecidas pela força feminista.

Fica evidente que estas se preocupam em cuidar e manter este

modo de vida, pois é a maneira de garantir suas memórias e suas

identidades. Em HAESBAERT (2014, p.63), “[…] muitos desses grupos

sociais, em suas mobilizações políticas, buscam a construção de

territorialidades alternativas em que a concepção de território é reelaborada a

partir de suas próprias experiências vividas”. Nesta perspectiva, as mulheres

quilombolas fazem de seus quintais territórios alternativos, resistem na

manutenção do ser quilombola e a imposição antagônica de ainda não tem

garantido o direito ao território de direito.

O movimento feminista tem na linguagem um instrumento de

resistência, linguagem esta que também é corporal e está imbricado numa

luta diária nas funções que desempenham. Extraordinário a maneira como

resistem e suas vivências são garantias para a existência deste direito, o

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direito de fala e escuta.

Assim, podemos citar algumas das ervas medicinais identificadas e seu

uso conforme relatos das mulheres quilombolas, tais: a alfavaca que é

utilizada para combater problema de coração, cansaço, gripes e febres; capim

santo a raiz serve para combater a pressão alta e é calmante; coentro do Pará

combate a ameba, inchaços e infecção, também serve para temperar; erva

cidreira é calmante e combate pressão alta e febre; fedegoso tem o potencial

de combater a “febre braba”, diabete e gripes; hortelã combate ameba, tomar

em forma de chá ou sumo; gervão é cicatrizante, ajuda a curar problema de

estômago, úlcera e ferimento; o tipi tem uso na cura de febres fortes e até

febre amarela. Este é tido como também para combater mau olhado, o que

exalta a cosmovisão dos ancestrais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar este trabalho com as mulheres quilombolas e conhecer

como estas usam seus quintais como território e constroem suas

territorialidades na Comunidade Quilombola Dona Juscelina, percebemos

que isto reflete a própria representatividade não somente política, a partir do

cultivo das ervas medicinais como práticas agroecológicas, ecoam em seus

discursos seus saberes tradicionais, inseridas na zona urbana com interface

características da zona rural.

É evidenciado neste trabalho investigativo o uso cotidiano de ervas

medicinal para cura de doenças e enfermidades e estão entremeados no

modo de vida destas mulheres quilombolas que são anciãs e lideranças com

a missão por via das narrativas deixarem o legado da comunidade que são

próprios a estas.

São mulheres interpeladas pela força do movimento feminista e

constroem suas territorialidades num arcabouço cultural próprio com apoio

de seus companheiros nestas práticas. Instrumentalizam-se da linguagem e

materializam seus saberes como aporte de resistência diariamente, a partir

de suas vozes, mulheres quilombolas vivem e lutam por sua comunidade.

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Conhecer como mulheres griôs quilombolas fazem usos dos

territórios evidencia como as relações sociais construídas por estas

mulheres, de forma dinâmica ajustam-se e mantêm as referências para os

descendentes. Circular e observar por entre os quintais e sua organização

com tantas espécies de ervas medicinais nos oportuniza fazer uma reflexão

deste legado de saberes de mulheres anciãs que corrobora com as

pesquisas acadêmicas seus vastos saberes, uma relação intrínseca no ato

de ensinar e da dependência de um contato direto com a terra, uma

necessidade vital.

Citar as ervas medicinais identificadas e suas utilidades como nos é

narrada, uma forma que o saber local reflete como assevera Miguel Arroyo

quando diz que a história deve ser narrada de forma decolonial, o que foi

feito neste trabalho. Deste modo, os discursos revelam um modo de vida

descortinado do privado à luz do público.

Quando mãos de mulheres negras produzem, curam, alimentam sem

uso de agrotóxico, com uso de adubo orgânico sem deixar de citar a

observância da lua, tudo isto fortalece a autoestima, o empoderamento,

vivências comuns aos ancestrais do povo negro, amalgamado uma herança

cultural das quais são portadoras.

É possível que para manter a comunidade estas práticas vem sendo

transmitida primordialmente pelas griôs, evidencia a importância destes

quintais medicinais tidos como verdadeiros laboratórios a céu aberto, um

acervo cultural peculiar desta comunidade.

Enfim, os resultados apresentados nesta pesquisa também direciona

a extrema importância da manutenção dos conhecimentos tradicionais, do

poder de fala das mulheres quilombolas e das práticas de cura via remédios

fitoterápicos estes que precisam ser registrados, resguardados e valorizados.

REFERÊNCIAS

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ALVES, Branca Moreira Alves; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros

mundos. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. 264 p. DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu; MINAYO, Cecília de Souza, (Org). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 27. Ed: Petrópolis, RJ:

Vozes, 2008. FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Tradução: Joice Elias Costa. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. 405 p. HAESBAERT, Rogério. DOS MÚLTIPLOS TERRITÓRIOS À MULTITERRITORIALIDADE. Porto Alegre. 2004. Disponível em: www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf. Acesso em 16 de abril de 2018. LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma

antropologia da territorialidade. Brasília, UnB, 2002. Disponível em: http://www.direito.caop.mp.pr.gov.br/arquivos/File/PaulLittle.pdf. Acesso em: 27 jan. 2018. OLIVEIRA, Izarete da Silva de. TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE NOS LIMITES DO RURAL E URBANO NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DONA JUSCELINA EM MURICILÂNDIA – TO. Dissertação de Mestrado – PPGCULT – UFT. Araguaína, 2018. 183p. PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta /[tradução

Ricardo Santhiago]. São Paulo: Letra e Voz, 2016. RATTS, Alex. RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010. SAQUET, Marcos A. Abordagens e concepções sobre território. São Paulo:

Expressão Popular, 2007. SOUZA, Laura Olivieri Carneiro de. Quilombos: identidade e história. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. Tradução Lívia

de Oliveira. Londrina: Eduel, 1980. VENTURI, Luiz Antonio Bittar. Praticando a geografia: técnicas de campo e laboratório em geografia e análise ambiental. São Paulo: Oficina de Textos, 2005.

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