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Giovanna Viana Martins Mariana de Matos Moreira Barbosa QUIMERAS: fusões em campos de significação Escola de Belas Artes _UFMG Escola Guignard _ UEMG Belo Horizonte 2008 - 2009

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Grapefruit, de Yoko Ono. Fluxus.

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Giovanna Viana Martins Mariana de Matos Moreira Barbosa

QUIMERAS:

fusões em campos de significação

Escola de Belas Artes _UFMGEscola Guignard _ UEMG

Belo Horizonte2008 - 2009

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Giovanna Viana Martins Professora Assistente do

Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes - UFMG

Mariana de Matos Moreira Barbosa

Graduanda do Bacharelado em Artes Plásticas da Escola Guignard

- UEMG

Este trabalho foi desenvolvido graças ao apoio da FAPEMIG ao Programa de Bolsa de Iniciação Científica da Escola Guignard – UEMG e à parceria entre esta Universidade e a EBA – UFMG.

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Grapefruit: projeção poética sobre o mundo

Giovanna V. Martins

Pode haver um sonho que dois sonhem juntos,

porém não existe cadeira que dois vejam juntos.

Yoko Ono

Os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira.Marcel Proust

1. Ut pictura poesis

Simónides, o primeiro grego a fazer da poesia um ofício lucrativo, chamou à pintura poesia silenciosa e à poesia pintura falante.

Em Ars poetica, de Horácio, o poeta maior da Roma Antiga, esta comparação foi estabelecida somente entre a poesia e a pintura, não se estendeu às outras artes de seu tempo. Talvez porque a falta de utilidade destas, assim como a ilusão de fazer acreditar em coisas que não existem, é uma característica que naquele tempo era partilhada somente pela pintura e pela poesia. Lembremos

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a história de Zêuxis que conta que pássaros vinham picar as uvas pintadas por ele sobre a tela.

Diz-se que Horácio, ao escrever sua conhecida frase Ut pictura poesis, trazia atrás de si a secular tradição de Simónides, e que este, em verdade, teria relacionado os dois procedimentos artísticos para justificar sua própria prática poética pela qual ele cobrava (o quê era inconcebível para os gregos, para quem a os poemas não tinham autor, uma vez que eram presentes dos deuses). Comparando-se a poesia à pintura, transformava-se o poeta em artesão, logo, sua atividade em Arte (tecnh), assim o poema deixava de ser um presente dos deuses e podia ser comercializado, sem constrangimentos.

No décimo livro da República, Platão fundamenta as bases sobre a qual se assenta esta comparação. Para ele os pontos de contato existentes entre a pintura e a poesia se dariam em três níveis: o ontológico, isto é, o da essência da própria atividade que é a imitação (mímesis); o gnosiológico, que é o nível dos conhecimentos do artífice; e o psicológico, caracterizado pelos efeitos produzidos no espectador (que para Platão são todos “efeitos nocivos”). Ao estabelecer estes fundamentos, Platão consolida definitivamente essa tradição de confronto, e evidencia o entrelaçamento entre poesia e pintura.

Em toda a literatura grega e latina de época, encontram-se textos que louvam as obras de arte que mais impressionam a alma humana: as esculturas, as pinturas e os poemas, aquelas que, devido ao seu caráter de falta de utilidade,

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faz com que sejam elevadas acima das práticas cotidianas.No dicionário, a palavra pintura nos diz de uma descrição precisa,

seja ela escrita, verbal ou por imagens. O mesmo dicionário traduz como Poesia a composição em versos, sejam eles livres e/ou providos de rima cujo conteúdo apresenta-nos uma visão emocional e/ou conceitual da abordagem de idéias, dos estados de alma, dos sentimentos, das impressões subjetivas, quase sempre expressos por associações imagéticas. E, ainda, para a palavra Poeta, aquele que faz, artista, ou autor cuja obra é impregnada de poesia.

Estas informações tornam-se necessárias não para delimitar, mas, ao contrário, para nos abrir os horizontes, sobretudo porque este texto pretende trabalhar e se constituir como um espaço de aproximação à poética obra de Yoko Ono em formato livro, publicado pela primeira vez em Tóquio, no ano de 1964, intitulado Grapefruit. Inevitavelmente, diante dela, algumas delicadas questões se colocarão: livro ou pintura? Poesia ou arte?

Vejamos. Os pensamentos de Simónides, Horácio e Platão e as palavras do

dicionário já nos apontam alguns entrelaçamentos, mostram que poesia e pintura são formas de descrever e inscrever-se no mundo e também que, de diferentes maneiras, a cada época estas uniões de alguma forma se realizam no outro.

Em 1963, Vilém Flusser, filósofo e escritor tcheco que viveu no Brasil por cerca de 20 anos, disse que poeta é aquele que representa a ponta da cunha

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que a conversação força para dentro do indizível. Para ele os poetas são como bandeirantes que se expõem ao perigo da aniquilação por este indizível.

Para Roland Barthes, escritor e semiólogo francês, escritura é poesia, no sentido moderno do termo: aquele discurso que acha sua justificação na própria formulação, e não na representação de algo prévio e exterior; aquela forma na qual, de repente, o que se diz passa a ser verdade; aquela visão do mundo que não vem do mundo, como reflexo, mas que se projeta sobre o mundo, transformando sua percepção; aquele discurso que não exprime um sujeito, mas o coloca em processo.

Ainda em Barthes, encontramos também uma abordagem para o termo Texto (este com maiúscula), que acredito pertinente aqui ressaltar. Para ele, o Texto é o tecido de significantes que constitui uma obra. Para o escritor, o que interessa em uma obra encontra-se exatamente entre a escritura e a pintura que é traçada, sem que possamos nos referir nem a uma, nem a outra1.

Michel Foucault acrescenta que as palavras conservam sua derivação do desenho e seu estado de coisa desenhada: de modo que devo lê-las superpostas a si próprias; são palavras desenhando palavras [...]2 e, ainda, Maurice Blanchot, que nos propõe uma aproximação entre o trabalho do artista e o do poeta ao dizer que o poeta faz obra de pura linguagem e a linguagem

1 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

2 Deleuze, Gilles. Foucault. Brasiliense, Rio de Janeiro: 1988. p. 59. Meireles, 1995.

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nessa obra é o retorno à sua essência. Ele cria um objeto de linguagem, tal como o pintor não reproduz com as cores o que é, mas busca o ponto onde as suas cores dão o ser3.

Desde o começo dos tempos, o Homem expressou e fixou seus pensamentos recorrendo a signos, logo, estes foram ao mesmo tempo uma escritura, um desenho e uma pintura e mostravam (e continuam a mostrar) imagens de uma realidade. Eram signos (Textos, no sentido barthesiano) para serem lidos, destinados a representar idéias e resignificá-las.

Tanto os egípcios como os gregos utilizaram as mesmas palavras para denominar o trabalho daquele que escrevia, como o daquele que pintava (τεχνίτης, artifex).

Esta origem comum às artes e às letras, contadas e percebidas em vários momentos da História, sofrerá aproximações e distanciamentos no seu decorrer e muitas vezes se fundirão para perturbar e combater formas de poder.

3 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

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2. Projeções sobre o mundo

Fundamentalmente, nada existe.Assim, onde se prenderá a poeira?

Hui-neng

Dentro do pequeno livro Grapefruit, da artista Yoko Ono, encontramos palavras dispostas em forma de poemas. De maneira muito simples e em sua maior parte sem propor nenhum ato ou ação grandiosa, elas formam uma narrativa fragmentada e desarticulada – e talvez por isto mesmo muitos achem Grapefruit um livro incompreensível –, e nos apresentam instruções: elas estão ali, como disse um dia Yoko, para nos indicar e sugerir como usar as pequenas coisas e o que podemos fazer com elas enquanto estamos por aqui. Assim: sem grandes movimentações e sem pretender igualmente significados últimos, a artista propõe que em algum lugar e durante algum tempo, suas palavras nos conduzam a uma viagem com direito a perder-se:

Use esta cor para tingir os pensamentos distraídos.

Tenha pensamentos distraídos durante um longo tempo.

Deixar-se estar num lugar indefinido e distraidamente colorir aquilo

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que se possa imaginar. Como este, outros tantos poemas de sua autoria são proposições que só se fazem possíveis no lugar do imaginário. Como ela mesma diz em um pequeno texto dentro do livro dedicado “às pessoas wesleyianas”, estas “pinturas de instrução são para serem construídas na mente”, e na mente podemos unir o impossível e, mais que refletir sobre o mundo, nos projetarmos e, de alguma forma, agir sobre ele.

Jorge Luis Borges em Esse ofício do verso nos conta sobre sua leitura de The red badge of courage, de John Keats:

Aqueles versos chegaram até mim através de sua música. Eu pensava que linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de externar queixas, de dizer se estava feliz ou triste etc. Mas quando escutei aqueles versos (e os continuo escutando, em certo sentido, desde então), soube que a linguagem podia também ser música e paixão e assim me foi revelada a poesia4.

Disse também que existem versos, é claro, que são belos e sem sentido. Porém ainda assim têm um sentido – não para a razão, mas para a

4 BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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imaginação.Sim, e é assim que lemos Grapefruit: levados ao imaginário pela

música de seu Texto e pela linguagem. Podemos roubar do interior de um balde d’água a insistente imagem da lua nela refletida; enviar a alguém o aroma da lua; sentar num jardim e esticar uma mão até que ela alcance uma nuvem onde um amigo colocará um símbolo; podemos eleger uma pessoa para morar nela, em vez de morar num quarto; e também buscar a luz do fim do dia no alto de uma colina e trazê-la dentro de uma bolsa para iluminar nosso quarto à noite.

Yoko propõe uma desaceleração pacífica do tempo. E não seria esta uma forma de resistência às incompreensões e tumultos do mundo contemporâneo?

As imagens geradas por suas instruções são como frutos de realidades imprevistas advindas de lugares diversos, enigmas propostos através de uma linguagem de desejos cifrados.

De certa forma a artista parece compartilhar, ou levar ao máximo, a proposição surrealista que professa que o além está na Terra e advém do ser e suas manifestações se dão no nível do fantástico. Em Nadja, André Breton colocava estas questões: Quem vem lá? É você, Nadja? É verdade que o além, todo o além, esteja nesta vida?

Em Grapefruit, Yoko Ono nomeia suas instruções de Pinturas. A maior

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parte delas intitula-se Peças (p. ex.: Peça manual, Peça para três chaminés), e se subdividem em capítulos chamados de Música, Poesia, Evento, Objeto e Dança. Tem também cartas, listas e roteiros em seu interior. Mas tudo é pintura, uma vez que, como nos diz o verbete do dicionário, estes agrupamentos de palavras propõem e são exatamente aquilo que é a pintura: descrição do mundo e das coisas do mundo, escrita ou por imagem, e formada somente quando alguém se põe diante dela e de alguma forma a resignifica, completando-a então. Um tipo de pintura não mais subordinada a valores que ela deveria celebrar ou exprimir, mas a seu exclusivo serviço, consagrada a um absoluto ao qual nem as formas vivas, nem as tarefas do homem e ainda menos as preocupações formais de ordem estética podem dar um nome, de modo que só lhe pode chamar pintura5.

Yoko nos conta que todos estes procedimentos e métodos de pintura por ela utilizados em sua obra, iniciaram-se em tempos difíceis, quando na Segunda Guerra Mundial ela e o irmão não tinham o que comer e inventavam-se menus no ar. É assim que a poesia mediará o encontro da subjetividade atenta às solicitações da realidade e aos apelos do mundo do sonho6.

O conjunto de obras de Yoko Ono, feito de elementos os mais diversos, não se apresenta como uma linguagem unificada. Sob diferentes formatos propõe narrativas: não mais representa o mundo, mas sobre ele se projeta como uma

5 BLANCHOT. Maurice. Idem. pg. 220

6 RUFINONI, Simone Rossinetti. Errância Libertária. Revista Cult. S.P.: Editora Bre-gantini, 2000.

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fantástica quimera, na qual pedaços de um imaginário compartilhado produzem o Real.

Minhas pinturas, que são todas pinturas de instrução (para que outros as realizem), vêm da colagem, da assemblage (1915) e do happening (1905). Considerando-se a natureza das minhas pinturas, qualquer um dos três termos acima mencionadas, ou ainda um novo, poderiam ser utilizados no lugar da palavra pintura. Porém, gosto da velha palavra pintura porque imediatamente se conecta com “pintura de parede”, e isto é bom e divertido.7

Alguns autores consideram Ligthting Piece (Peça para iluminar), datada de 1955, como sendo a primeira das “instruções” de Yoko. Ela diz:

Acenda um fósforo e observe até que se apague.Porém, em Grapefruit podemos encontrar outras anteriores a ela,

como, por exemplo, Smell Piece I (Peça de aroma I), de 1953: Envie o odor da lua. Em 1961, a artista expôs suas primeiras instruções na Galeria AG, de

George Maciunas, em Nova York, e depois, as Instruções para pintura foram mostradas em Tóquio, em 1962, sob a forma de papéis escritos por seu então 7 ONO, Yoko. Grapefruit. New York: Simon & Schuster, 2000.

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marido, Toshi Ishiyanagi.Sobre as Instruções, Contardo Calligaris escreveu por ocasião da

exposição individual da artista em São Paulo, em 2007:

“Instruções” são “receitas” para criar uma “obra de arte”, que pode ser um objeto ou um comportamento. Desde os anos 60, as “instruções” são a marca registrada da arte conceitual, pela qual a obra pode ser reduzida ao seu “conceito”, ou seja, às instruções necessárias para que cada um possa criá-la. As instruções de Yoko Ono, escritas em japonês ou, quando são em inglês, numa caligrafia cuneiforme lindíssima, são breves poemas para um domingo de manhã em que você está sozinho, em paz e com vontade de tentar algo que você nunca fez: pintar uma aquarela, seguir um desconhecido na rua, olhar para o céu pelo buraco que você se permitiu fazer na cortina da sala. Yoko Ono defende a pequena liberdade íntima e concreta do fazer. É a liberdade mais difícil, mais verdadeira e mais preciosa8.

8 CALLIGARIS, Contardo. Jornal Folha de São Paulo, 14 de novembro de 2007.

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Uma modalidade artística que a partir dos anos 60 tornou-se bastante frequente foram os livros de artista que constituem-se, em sua maioria, como a própria obra, isto é, o livro, seu corpo, é o texto a ser lido. Suas características plásticas, que nem sempre se fazem por palavras, enviam o leitor para outro lugar. Mas em Grapefruit as palavras (e por vezes pequenos desenhos) formam duplamente a imagem: a imagem do texto – o desenho definido pela métrica do poema – e aquela outra proposta pelo texto e que se forma alhures.

Estas imagens – pinturas possíveis –, em forma de livro ganham mais mobilidade: não são mais uma obra fixa sobre uma parede diante da qual nos colocaremos num determinado espaço de tempo limitado, mas uma estrutura ativa que pode circular. Se adquirido, elas nos acompanharão e poderão ser realizadas a qualquer momento que julgarmos oportuno e que as desejarmos: estarão ali, potencial inscrito em pequenas folhas quadradas ao alcance de nossas mãos. Sua realização será sempre plural e infinita: o mundo se abrirá a partir do singular a cada vez que quisermos tentar uma outra forma de ve-lo , transformando-se e renovando-se, sem limitações.

Esse tipo de trabalho – assim como grande parte dos trabalhos do Fluxus – é originado de forma silenciosa e age como acelerador, desencadeia mais movimento dos observadores do que o exigido para sua elaboração, nos diz Nicolas Bourriaud9. No caso das “instruções”, elas podem ainda serem 9 BOURRIAUD, Nicolas. Yoko Ono e a energia pacífica. São Paulo: Catálogo da expo-sição Yoko Ono: uma retrospectiva. 2007

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tomadas e representadas por alguém, ou simplesmente lidas. No caso das peças dos artistas do Fluxus, a “realização” pelo espectador era sempre benvinda.

Para pensar Grapefruit é necessário ainda que nos remetamos para lugares sempre longínquos: além daquele no qual se formam suas “pinturas”, é preciso que nos aproximemos do distante país de origem de sua autora, o Japão.

Terra do sol nascente, este é o país do qual procede Yoko Ono, exemplo de uma civilização onde a articulação dos signos é extremamente delicada, desenvolvida, onde nada é deixado ao não-signo; mas este nível semântico, que se traduz por uma extraordinária delicadeza de tratamento do significante, não quer dizer nada: de algum modo não diz nada, não remete a qualquer significado, e sobretudo para nenhum significado último [...]10

Para Barthes o Japão faz uso dos signos não para designar um sentido, mas para causar certa “decepção”, isto é, ao mesmo tempo propô-lo e suspendê-lo. Nessa leitura, entre o sentido posto e o sentido suspenso, o movimento transitivo da mensagem verbal se detém e se reabsorve num “puro espetáculo”.

A tanca e o haicai são duas formas clássicas de poética japonesa. Uma toma do mundo, sobretudo aquilo que nele é beleza, a outra o significado. Compostos de maneira simples e de poucas linhas, as duas formas de poemas apresentam uma pequena diferença de métrica. Diz-se que os poetas da tanca

10 BARTHES, Roland. L’ empire des signes. Genève: Editions d’ Art Albert Skira, 1970.

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deixam de escrever quando envelhecem, uma vez que o que nutre este estilo de poesia é a memória de uma juventude remota que se esgota com o passar do tempo. Ao contrário, os poetas do haicai que descrevem o transitório e efêmero da natureza, por experimentarem a transitoriedade em seu próprio ser, descrevem-na melhor à medida que se vão os anos.

Os pequenos versos de Yoko seguem esta tradição oriental, tomam a forma curta de uma tanca e a surpresa de um haicai para nos conduzir do mundo ao nada, sempre por se fazer.

Outro fator importante é pensar em sua formação zen-budista, cuja essência encontra na meditação a forma de se libertar das questões terrenas. O zen-budismo enfatiza o insight – independentemente do pensamento lógico – alcançado por meio do koan, um enigma sem solução lógica11.

O escritor francês Nicolas Bourriaud nos lembra num texto sobre Yoko Ono que nos anos 80 ao ser perguntado sobre o movimento Fluxus, Robert Filou respondeu que, de certa forma, ele nunca existiu. Assim como Buda ou o Tao, sua existência não é o que verdadeiramente importa12.

Yoko, ao fundir culturas, diversos procedimentos, linguagens e formas, nos remete ao essencial. Ao dissolver os limites do reconhecível, nos faz ver não um outro mundo, mas o outro de todo mundo, o que é sempre distinto 11 KVARAN, Gunnab B. Yoko Ono. Memórias Horizontais. São Paulo: Catálogo da exposição Yoko Ono: uma retrospectiva. 2007

12 BOURRIAUD, Nicolas. Idem.

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do mundo13.

13 BLANCHOT, Maurice. Ibidem. Pg. 228

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3. Quimeras: viajando nas profundezas da linguagem onde as fronteiras se dissolvem ou inexistem.

Um artista de hoje não tem mais que dizer “eu sou um pintor” ou “um poeta” ou “um performer” ou “um dançarino”. Ele é simplesmente “um artista”. Assim, todas as instâncias da vida se abrirão a ele.

Allan Kaprow

Do grego khímaira, a quimera em sua origem designava um pequeno animal – cabra, cabrito ou bode – que tinha somente um inverno de idade, um ano. A Quimera é também um monstro mitológico com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente que lançava fogo pelas narinas. Espécie de dragão. Quimera passou, com o tempo, a ser qualquer representação de animal fantástico, composto de partes de animais diferentes, fossem eles reais ou imaginários.

Uma quimera é, ainda, (ou, portanto) uma ‘criação imaginária’, um desejo ou um sonho irrealizáveis. O quimérico. A incoerente forma desaparece e a palavra fica para significar o impossível14.

A toronja ou toranja ou grapefruit (Citrus x paradisi) é um citrino híbrido resultante do cruzamento do pomelo (Citrus maxima) com a laranja.

14 BORGES, Jorge Luis e GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000. p. 118.

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Uma autêntica quimera.Ao se deslocar no indeterminado campo das fusões e das coisas sem

nome, Yoko instaura uma monstruosidade. Gênero sem designações e definições precisas, Grapefruit faz-nos mover incessantemente através da História na busca de um lugar determinado no qual possamos estabelecer reconhecimentos.

Mas esse tipo de obra que se afasta da origem que incessantemente a atrai, nos leva, junto com ela, a transpor num salto as verdades já estabelecidas, e no momento impreciso e obscuro deste salto depositar o lugar da obra.

Suas “instruções” instigam discussões a respeito da natureza da arte e dos limites entre suas diversas manifestações, uma vez que dissolvem o próprio conceito de “obra de arte” enquanto objeto único e sagrado , nos indicando que a arte é mais o processo que, a partir do espectador/participador, se realiza. Processo esse que pode ser desencadeado a partir de vários formatos, lugares e tempos diferentes ou sincrônicos. Suas “instruções” são comunicações de desejos que pretendem despertar, de forma suave, outros desejos e que, tal qual o pensamento, se perdem, mas antes modificam.

No texto intitulado Yoko Ono – Memórias horizontais, de Gunnar E. Kvaran, feito para apresentação da exposição da artista no Centro Cultural Banco do Brasil, em novembro de 2007, a propósito das “Instruções” o autor diz:

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A palavra é o ponto de partida, que faz a ligação com a literatura e em especial com a poesia. Muitos analistas da arte de Yoko Ono têm feito uma associação correta das suas peças “Instruções” com música e partitura.

Talvez as palavras em Grapefruit, sejam tentativas de ultrapassar os limites da língua. Elas sugerem, informam, orientam, apontam algo e procuram, mas o quê? A resposta de Vilém Flusser é: já que as palavras apontam para algo, substituem algo e procuram algo além da língua, não é possível falar-se deste algo.

Sobretudo a partir de algum momento da História, pois ao buscar o além da língua, passamos a lidar com mais ambigüidades que com certezas, a ter enigmas a decifrar e nenhuma resposta precisa para eles.

Verdadeiras quimeras, podemos tomar então as orientações escritas de Yoko como escritura, termo utilizado por Roland Barthes para dizer da escrita do escritor, na qual ela é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma lembrança. Para ele, a escritura força a língua a significar o que está além de suas funções.

Estes novos procedimentos artísticos, utilizados, sobretudo, a partir de alguns movimentos do início do século XX, iniciam a fusão em campos de significação, forçam o muro,

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e a tática escolhida não é a demolição fragorosa mas a do deslocamento sorrateiro e progressivo: “A única resposta possível não é nem o ataque frontal nem a destruição, mas somente o roubo: fragmentar o texto antigo da cultura, da ciência, da literatura e disseminar seus traços segundo fórmulas irreconhecíveis, do mesmo modo que se disfarça (maquille) uma mercadoria roubada.”15

Transformar em quimera aquilo a que se pode chamar obra; arriscar a linguagem para manter sempre o movimento e a forma irreconhecíveis ao primeiro olhar; destruir as distinções e os limites e, assim, preservar aquilo a que se chama essência.

***

Em 30 de maio de 1771, o jovem Werther escrevia pelas mãos de Goethe: Aquilo que eu te dizia há pouco da pintura pode, por certo, aplicar-se à poesia. Trata-se apenas de sentir o que é primoroso e ousar exprimi-lo, e isto é, para ser exato, dizer muito em poucas palavras.

15 Roland Barthes citado in PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, Crítica, Escritura. São Paulo: Ática, 1993. p. 67

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Publicado em 1928, Nadja, de André Breton, reuni imagens e palavras num livro “sempre futuro” que, segundo Maurice Blanchot, confia a cada um de nós o cuidado de compreender a ausência de obra que se designa como seu centro. Para André Breton, é possível que a vida peça para ser decifrada como um criptograma. Escadas secretas, molduras cujos quadros deslizam rapidamente e desaparecem, para dar lugar a um arcanjo de espada em punho, ou para dar passagem aos que devem sempre avançar, botões que apertamos muito indiretamente e provocam o deslocamento em altura, em comprimento, de toda uma sala, e a mais rápida mudança de cenário: é permitido conceber a grande aventura do espírito como uma viagem desse gênero ao paraíso das ciladas.

***

Em 1929-30, Georges Bataille publicou na revista Documents, verbetes do seu Dicionário crítico. Um dicionário, segundo seu autor, começaria a partir do momento em que ele não desse mais o sentido das palavras, mas sim suas obrigações. Concentrada, sobretudo, em agir sobre o imaginário, a revista

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que abrigou a publicação periódica de seu dicionário era um projeto nas quais diversas áreas de conhecimento se uniam e se entrelaçavam, sem hierarquias.

***

Para a Patafísica, ciência das soluções imaginárias criada por Alfred Jarry (1873-1907), dramarturgo e poeta francês que escreveu “Ubu Rei” e foi um dos precursores do Surrealismo, não existe nenhuma cena primitiva, nada que esteja em estado bruto e cruel, tudo já é uma fantasmagoria virtual. A Patafísica é a ciência do particular e estuda as leis que regem as exceções. O Collége de Pataphysique, criado em 1948, teve entre seus membros: Juan Miró, Max Ernest, Man Ray, Marcel Duchamp, Raymond Queneau, François Le Lionnais, Jacques Prévert, Eugène Ionesco, entre outros.

Segundo Jean Baudrillard, a Patafísica não é crítica, nem transcendente, e sim a tautologia perfeita dessa realidade integral, é a ciência das ciências16.

***

O OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle) é uma espécie de

16 BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento ao outro. São Paulo: Zouk, 2003. P.12

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corrente literária formada nos anos 60 por escritores e matemáticos e propõe uma espécie de “libertação da literatura” através daquilo que chamam de “constrangimentos literários”. O jogo consiste em criar regras que sirvam como ponto de partida para seus textos que são construídos como uma sucessão de histórias combinadas, como um quebra-cabeças, multiplicando, assim, as relações narrativas e semânticas. Georges Perec escreveu, em 1972, um romance utilizando somente a vogal “e”; Raymond Queneau, um dos fundadores, teve em Cent mille milliards de poèmes o seu maior exemplo de obra ´potencial´; Italo Calvino escreveu um romance a partir das combinações entre as cartas de um baralho. Deste movimento também fez parte, em 1962, Marcel Duchamp, como correspondente americano do grupo francês. Duchamp construiu textos com palavras retiradas aleatoriamente de um dicionário, numa tentativa de produzir um texto sem sentido.

***Pequena nota final:

Não nos poderia faltar aqui a lembrança de Marguerite Duras. Sabemos, por ela, que não se pode escrever o poema, ou que não se pode escrever a pintura. Mas que é aí, justamente no espaço obscuro desta impossibilidade, que se escreve.

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Todos os Textos que foram gerados neste projeto que intitulamos Quimeras: fusões em campos de significação (dos quais são parte Remember Love; Para acabar com as obras-primas ou sobretudo o verso; Zona Autônoma Temporária: escritura de subversão para a vida e Grapefruit: projeção poética sobre o mundo), nasceram de um desejo de tradução: tentativa de entender, a partir do mundo e da linguagem do mundo, o que uma obra pode realizar.

Traduzir o pequeno Grapefruit, constituiu verdadeiro trasladamento: buscamos manter a forma do Texto, mesmo sabendo que a disposição das letras a cada idioma traduzido formaria novos desenhos sobre o plano branco do papel e que isto, de alguma forma, modificaria a percepção do leitor distanciando-o, assim, do original.

Mas se cada lingua é formada por determinadas disposições e combinações de caracteres que lhe concede uma plasticidade própria, são estas possibilidades que farão com que o leitor penetre as zonas desconhecidas entre as palavras, entre ele e o propositor, entre o mundo e a obra de arte. E não é este exatamente o fluxo proposto por Grapefruit? Este movimento que, pretendendo o nada, nunca deve findar?

Através do pequenino livro de capa amarela com a enigmática fotografia de Yoko Ono a nos olhar fixamente tal qual uma esfinge, a artista deseja, sobretudo, despertar e estimular a continuação do argumento proposto por suas pinturas-intruções numa conversação infinita, onde a geração de

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novos pensamentos deverá percorrer campos não mais separados ou limitados, mas, hibridamente, deslizar sobre o inominável, para aí se transformarem, se desvanecerem, tornarem-se nada, para que outra vez possam ressurgir verdadeiramente Quimera e Fênix.

Favor queimar este livrodepois de ler.

Y. O.

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Referências bibliográficas:

BARTHES, Roland. L’ empire des signes. Genève: Editions d’ Art Albert Skira, 1970. ________ O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento ao outro. São Paulo: Zouk, 2003.BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.BORGES, Jorge Luis. Este ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.BOURRIAUD, Nicolas. Yoko Ono e a Energia Pacífica. São Paulo: Catálogo da exposição Yoko Ono: uma retrospectiva. Centro Cultural Banco do Brasil. 10 de novembro de 2007 a 03 de fevereiro de 2008.BRETON, André. Nadja. São Paulo: Cosac Naify, 2007.Deleuze, Gilles. Foucault. Brasiliense, Rio de Janeiro: 1988.FLUSSER, Vilém. Lingua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004.JENSSEN, Kjell Runar. Yoko Ono – Artista do Filme Conceitual. São Paulo: Catálogo da exposição Yoko Ono: uma retrospectiva. Centro Cultural Banco do Brasil. 10 de novembro de 2007 a 03 de fevereiro de 2008.KVARAN, Gunnar B. Yoko Ono. Memórias Horizontais. São Paulo: Catálogo da exposição Yoko Ono: uma retrospectiva. Centro Cultural Banco do Brasil. 10 de novembro de 2007 a 03 de fevereiro de 2008.

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MORA, Carlos de Miguel. Os limites de uma comparação: ut pictura poesis. Portugal: Ágora. Estudos Clássicos em Debate 6 (2004). http://www2.dlc.ua.pt/classicos/agora6.htm MOREAU-VAUTHIER, Charles. Historia e técnica de la pintura. Libreria Hachette. s.d.OBRIST, Hans Ulrich. Perguntas para Yoko – Water Event, Oslo. São Paulo: Catálogo da exposição Yoko Ono: uma retrospectiva. Centro Cultural Banco do Brasil. 10 de novembro de 2007 a 03 de fevereiro de 2008.PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, Crítica, Escritura. São Paulo: Ática, 1993RUFINONI, Simone Rossinetti. Errância Libertária. Revista Cult. S.P.: Editora Bregantini, maio de 2000.WELLEK, René e WARREN, Austin. Teoria da literatura. Lisboa: Publicações Europa-América, 1948.

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Zona Autônoma Temporária: escritura de subversão para a vida

Mariana de Matos Moreira Barbosa

1. Yoko Ono e o grupo Fluxus

The work becomes a reality only then others realize the work.Ono

Em algumas obras de arte, já a partir do Dada, mas sobretudo nos anos 60, o que vemos é um Texto muitas vezes formado por algum tipo de ordenação de palavras. Um Texto que, como queria Roland Barthes, poderíamos definir como o tecido de significantes que constitui a obra.

Esse tipo de Texto que, a partir do século XX, ao aflorar da língua converte-se, ele próprio, num lugar de desvio, encontra sua força não tanto na mensagem que contém, mas sim, no próprio deslocamento que ele, pelo jogo das palavras, exerce no interior da linguagem.

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Nascida em Tóquio em 1933, numa família rica, Yoko Ono teve oportunidade durante a infância de estudar em Gakushin, uma das mais exclusivas escolas do Japão. Durante este período estudou também piano clássico e canto. Durante a Segunda Guerra Mundial deslocou-se frequentemente entre cidades do Japão e Estados Unidos até 1952, quando se mudou definitivamente para Nova Yorque. A partir de então frequentou a faculdade de música Sarah Lawrence, onde conheceu importantes músicos de vanguarda, entre eles, seu futuro companheiro do grupo Fluxus, John Cage.

Em 1956 Ono casa-se, contra a vontade de seus pais, com Toshi Ichiyanagi e com ele passa a dividir um loft em Manhattan que, pouco tempo depois, se tornará uma espécie de laboratório para as suas performances e para as experiências sonoras de John Cage.

Rejeitando o auxílio financeiro da família, Yoko começa a lecionar arte japonesa e música em escolas públicas.

Já desde o fim da década de 1950, a artista realiza obras de cunho conceitual que tinham como características marcantes a instrospecção poética e ao mesmo tempo, alguma ironia.

Sua obra, formada, muitas vezes, na tensão entre a literatura e os novos procedimentos artísticos tomavam formas diversas (instalações, performances e happenings) e já apontavam o seu

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interesse em envolver o espectador e instigá-lo a pensar e transformar as banalidades do cotidiano em atos estéticos, tornando-o, assim, um participador ou aquele que, definitivamente, completa a obra proposta pelo artista.

No fim dos anos 50, depois de ter conhecido John Cage, Yoko se liga definitivamente ao Fluxus. Este termo foi originalmente inventado por George Maciunas, lituano nacionalizado americano, com estudos em arquitetura, arte e música, designer gráfico, galerista, escritor, performer e compositor, para ser o título de uma revista que teria como objetivo publicar textos dos artistas da vanguarda, muitos dos quais tiveram seus trabalhos apresentados, entre 1960 e 1961, no estúdio de Yoko Ono e na AG Gallery, de Maciunas, ambas em Nova Yorque. Todavia, ‘Fluxus’ (nome de origem latina, que entre tantos sentidos diz, por exemplo, de uma “mudança contínua”, ou “estado não determinado”, “flutuante”), termo que ele apreciava por seus “significados muito amplos e engraçados”17, passou a designar as performances e happenings realizados pelo grupo, bem como suas publicações e vídeos.

O grupo Fluxus configurou-se como uma comunidade informal de músicos, artistas plásticos e poetas de várias nacionalidades,

17 MILLER. Op. cit., 2002, p. 90

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radicalmente contrários ao status quo da arte e interessados em uma integração mais íntima entre a arte e a vida.

Prefigurando-se no final dos anos 50 e com um período de maior atuação na contribuição às grandes transformações da arte que ocorrem nos anos 60, o grupo Fluxus se localiza entre influências mútuas de outras manifestações artísticas que aconteceram e aconteciam. Concomitante com a Pop Art, o Novo Realismo, e herdeiros de movimentos com que compartilhavam ideais, tais como a Internacional Letrista (IL/1952), primeiro grupo dissidente do “Movimento Letrista” (ML/1946), de Isidore Isou. A esquerda dos letristas, dirigida por Guy Debord, invadiu uma conferência de imprensa de Charlie Chaplin no Ritz de Paris, durante o verão de 1952, e foi denunciada por Isou aos jornais, o que resultou no destaque da esquerda, do corpo principal do movimento, tornando-a, assim, a “Internacional Letrista”.

Também o “Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista” (MIBI/1953), nasce a partir das divergências sobre arte e cultura entre Asger Jorn, fundador do MIBI e Max Bill, reestruturador da Bauhaus de Klee e Kandinski. E a “Sociedade Psicogeográfica de Londres”, nome inventado durante a conferência de unificação do MIBI e IL, surge para aumentar o internacionalismo do evento.

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Esta fusão incluiu influências adicionais do movimento COBRA (grupo constituído em novembro de 1948), depois de seis membros abandonarem uma conferência no Centro Internacional para a Documentação da Arte de Vanguarda em Paris, em protesto contra o nível superficial do debate. Dotremont, importante integrante do grupo, declara que a única razão para manter a atividade internacional, é uma colaboração experimental e orgânica, evitando teoria estéril e dogmatismo. Criou ainda o nome COBRA, que veio das primeiras letras das cidades COpenhague, BRuxelas e Amsterdã.

A unificação efetiva do “MIBI”, “IL”, e da ainda não-existente “Associação Psicogeográfica de Londres” aconteceu no dia 28 de julho de 1957. Depois de devida votação, a fusão dos grupos e a fundação da “Internacional Situacionista” (IS), na vila italiana de Cosio d’Arroscia, Liguria, foi proclamada.

A arte pode deixar de ser uma relação de sensações e ser uma organização direta de sensações mais elevadas: a questão é produzirmos a nós mesmos e não coisas que nos domine. 18

18 Publicado no # 1 de Internacional Situacionista (1-VI-1958).

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De uma forma ou de outra, as correntes que precederam a IS viam no seu propósito a redefinição radical do papel da arte no século 20. Os próprios situacionistas se dispuseram a assumir a tarefa de “superar” a arte, abolindo a noção dela como uma atividade especializada/separada, e transformando-a naquilo que seria parte da construção da vida cotidiana.

Debord diz que a construção de situações começa nas ruínas do espetáculo moderno, e é fácil visualizar a que ponto o próprio princípio do espetáculo está ligado à alienação do Velho Mundo. Pois ao contrário, os experimentos revolucionários e mais pertinentes da cultura vêm tentando quebrar a identificação psicológica do espectador, para levá-lo a atividade, provocando sua capacidade de revolucionar sua própria vida19.

Ainda nos primeiros números da revista, os membros compreenderam que a superação da arte só viria pela transformação ininterrupta do meio urbano. Não construir cidades ideais, como havia se pensado por muito tempo, mas fazer do urbanismo e da arquitetura ferramentas de uma revolução do cotidiano.

Essas idéias foram esgotadas nas discussões da Internacional Letrista - grupo do qual Debord participou antes da IS, e posteriormente, 19 HOME, Stewart. Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século XX. São Paulo: Conrad Editora, 2004

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nos estudos sobre arte e urbanismo que resultaram na psicogeografia e no seu procedimento de pesquisa – a deriva.

As teorias de urbanismo e arquitetura nascem de um ensaio do Letrista Ivan Chetcheglov, intitulado “Formulário Para Um Novo Urbanismo”. Neste, Chtcheglov proclama uma nova forma de vida urbana, uma nova cidade construída.

E você, esquecida, suas lembranças destruídas por todos os lamentos do mapa mundi, abandonada no Caves Rouges de Pali-Kao, sem música e sem geografia, já não partindo para a fazenda onde as raízes pensam na criança e onde o vinho termina em fábulas de calendário. Agora, está terminado. Você não verá mais a fazenda Ela não existe. É preciso construir a fazenda.20

E inicia o formulário atestando, com veracidade, que nós estamos entediados na cidade, e que não há mais nenhum templo para o sol. Porém, nesta nova cidade, cada homem viveria em sua própria catedral e a principal atividade dos habitantes seria a contínua “deriva” através de zonas destinadas a alterar humores e percepções dos habitantes.

20 IVAIN, pseudônimo francês do russo Ivan Chtcheglov, teórico político e poeta, nascido em 1934.

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Os Situacionistas cunharam a expressão urbanismo unitário para descrever seus experimentos para criar uma nova cidade que permitiria que os habitantes jogassem e realizassem seus desejos. Arquitetura, colagens de mapas, instalações de arte e a deriva, eram meios usados pela IS em seus experimentos.

A deriva era uma prática experimental de urbanismo unitário que consistia em vagar sem objetivo e sem destinação através da cidade, explorando suas ambiências. A psicogeografia foi usada para descrever o estudo dos efeitos do meio ambiente urbano na psique. E então, a IS produziu relatórios psicogeográficos baseados nos resultados de suas derivas. Com o passar do tempo a IS sofreu muitas modificações. Em março de 1962, aconteceu uma separação do movimento, quando seis membros da facção artística abandonaram a facção mais politicamente orientada por Debord (único membro a estar com a IS durante toda sua existência). A Internacional Situacionista aspirava grandes transformações sociais e políticas.

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Já ao Fluxus, foram indispensáveis os princípios de George Maciunas, que acima de tudo, pretendia, na atmosfera poética do trabalho que deu início, uma arte feita de simplicidade, anti-intelectual, que desfizesse a distância entre o artista e o não-artista, uma arte em estrita conexão com o trivial e ordinário da vida, com uma abordagem mais democrática no sentido de que todos poderiam fazê-la e que, segundo princípios coletivos e finalidades, eram visceralmente sociais.

Também Fluxus rejeitava o “objeto de arte (...) como um bem não-funcional a ser vendido e meio de vida para um artista” 21, em favor de uma produção anti-individualizada.

Ao assumir uma posição contrária ao sistema artístico imperante, incluía os meios próprios de expressão do Fluxus (concertos, publicações, arte postal, etc.) que, “na melhor das hipóteses, considerava transitórios (uns poucos anos) & temporários até o momento em que as belas artes pudessem ser totalmente banidas (ao menos em suas formas institucionais) e os artistas encontrarem outra ocupação” 22.

No seu manifesto de 1966, Maciunas declara que Fluxus “abandonara a distinção entre arte e não-arte”, abandonara a

21 ZANINI, Walter. A Atualidade de Fluxus. Ars. Ano 2. Nº3. São Paulo: Departamento de Artes Plásticas ECA – USP, 2004.

22 Carta de George Maciunas a Tomas Schmidt (janeiro, 1964) em HENDRICKS. “Col-lective”. Op. cit., 1988, p. 37.

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“indispensabilidade, exclusividade, individualidade, ambição, habilidade, complexidade, profundidade, grandeza, valores institucionais e utilitários” e conceituava-o como “mono-estrutural, não teatral, não barroco, impessoal, qualidades impessoais de um simples evento natural, um objeto, um jogo, um quebra-cabeça ou piada. É a fusão do Spike Jones, piadas, jogos, vaudeville, Cage e Duchamp” 23.

A compenetração de Maciunas, estudioso do Fluxus no seu relacionamento com as vanguardas, demonstra-se no diagrama intitulado «Expanded Arts Diagram» que ele elaborou em complexa tentativa de organicidade. Este diagrama estabelece relações entre muitos artistas, especialmente no período da década de sessenta e os conceitos empregados para definir suas atividades.

Maciunas sofreu um choque cultural, em fins da década de 1950, ao entrar em contato com os músicos La Monte Young (o criador da short form) e

23 Manifesto reproduzido em HENDRICKS. Op. cit., 1988, p. 31

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Richard Maxfield, seu professor. Com isso, a Galeria AG de Nova Yorque, de sua co-propriedade, especializada em arte abstrata - a exemplo do que antes haviam começado a fazer Yoko Ono e Toshi Ichiyanagi no seu apartamento de Manhattan e outros artistas em diferentes locais da cidade - converteu-se em 1961, por breve tempo, em núcleo de conferências e performances musicais (ou “concertos”, como eram ironicamente nomeadas).

Participavam dessas reuniões La Monte Young, Dick Higgins, Toshi Ichiyanagi, Yoko Ono, Al Hansen, Walter de Maria, Jackson Mac Low, Ray Johnson, Henry Flynt, Philip Corner, Richard Maxfield, além de Cage, tido como mestre de vários deles. Nessas ocasiões, rememorará depois Maciunas, “fazia-se tudo o que Fluxus fez mais tarde, porém sem utilizar esse nome” 24.

O grupo marcou um momento de experimentação comum entre artistas da Europa e América do Norte, possibilitando a afirmação

24 MILLER. Op. cit, 2002, p. 87

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da idéia de coletividade como distintiva das proposições artísticas posteriores.

Esses artistas eram, entre outros, Nam June Paik e Wolf Vostell, do avançado meio musical e artístico de Colônia. Deram, então, início ao projeto que se transformou no marco fundamental da história da coletividade, a sua certidão “oficial” de nascimento: a multiperformance “Fluxus Internationale Festspiele Neuester Musik” (Festival Internacional Fluxus de Música Novíssima), no salão de festas do Museu do Estado de Wiesbaden, entre 1º e 23 de setembro de 1962. Dela constava quatorze concertos de músicos e artistas de diversas nacionalidades, ativos em dois continentes: Dick Higgins, Alison Knowles, George Brecht, La Monte Young e Maciunas, nos Estados Unidos e, na Europa, Ben Patterson (americano estudante de música em Colônia), Wolf Vostell, Tomas Schmidt, o coreano Nam June Paik, Emmett Williams, Arthur Koepcke e Robert Filliou. Houve, igualmente, a execução de peças de ausentes, como uma de John Cage. O grupo fez, assim, seu aparecimento como fruto de uma internacionalização de propósitos.

As performances tinham sua base na “música” ou “anti-música” que criavam com revolucionário caráter teatral, visual e sonoro, através de ações, em que, além de Cage, havia a influência dos “rumores” de Luigi Russolo.

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Como na atitude comportamental das serate de Filippo Tommaso Marinetti e outros poetas e artistas futuristas e dos eventos dadaístas, repulsa e receptividade alternaram-se na participação do público: o prefeito da cidade quase perdeu o cargo por ceder o salão do museu. Indignados, vários jornais alemães, citados por Hanns Sohm, usaram expressões como “arte terrorista” e “cultura em pane” ou então encararam os espetáculos como meras “variedades musicais” 25.

Havia, em primeiro lugar, o choque do que se entendia por música e o que se apresentava, arbitrariamente, nas características experimentais do Fluxus.

Fluxus não era simplesmente um ato de fazer repensar a tradição da arte ou mesmo de encaixar-se em contextos contra-culturais correntes, e sim uma oposição completa a qualquer continuidade da música estabelecida.

Faça você mesmo. Este pensamento fundamenta as ações e a obra do grupo Fluxus, boa parte da qual existiu sob a forma de orientações escritas a serem levadas adiante por outros. Em 1965,

25 SOHM, Hanns. Happening & Fluxus. Colônia: Koelnischer Kunstverein, 1970. Trata-se do pesquisador alemão, autor do levantamento de grande número de happenings e performances realizadas em várias cidades européias e nos Estados Unidos nos anos 60, assim como dos dados bibliográficos essenciais de seus autores.

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Maciunas diz que a tarefa do artista era demonstrar que qualquer coisa pode ser arte e que qualquer pessoa pode fazê-la.

Em Lighting Piece, por exemplo, de 1955, Yoko Ono convida o público a observar a consumação de um palito de fósforo pelo fogo e em Painting To See The Skies (Pintando para ver os céus), de 1961, apresenta uma folha que contém instruções (em japonês) de como transformar uma tela de pintura convencional em uma espécie de óculos para observação do céu.

E é este tipo de proposição - estas instruções que se utilizam de um procedimento da literatura - que formará o corpus de seu trabalho intitulado Grapefruit.

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2. Grapefruit(Livro de Instruções e desenhos de Yoko Ono)

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Publicado em 1964, o Grapefruit se configura como um livro de instruções a serem realizadas pelo outro. Os títulos das instruções ora são formados pela palavra peça, ora pela palavra pintura, ora poema, algumas vezes não têm título, e sim pequenos desenhos, ora estão em japonês, ora são listas ou pequenas cartas. Todos eles apontam para algo em comum (o Texto), e todos eles pretendem nos enviar para um além da língua.

Em uma das páginas da parte 1, nomeada Música, podemos ler:

PEÇA AQUÁTICARoubar a lua na água com um balde. Seguir roubando até que não se veja mais a lua na água.

Ou em outra página, na parte 2, denominada Pintura :

PEÇA PARA O VENTOCortar um quadro em pedaços e deixar

que se percam no vento.

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As instruções fazem com que as imagens sejam formadas em um lugar sensível, que pode pelas barreiras transponíveis do imaginário ser realizadas, mesmo se seus elementos forem absurdos e/ou fantásticos. Este lugar incomum transporta toda e qualquer impossibilidade do real para o patamar do possível.

A respeito dessas “pinturas para serem construídas dentro da cabeça”, Yoko em seu livro diz:

Na cabeça, por exemplo, é possível que uma linha reta exista, não como segmento de uma curva, mas como uma linha reta. Também uma linha pode ser reta, curva e alguma coisa mais ao mesmo tempo. Um ponto pode existir como 1, 2, 3, 4, 5, 6 objetos dimensionais ao mesmo tempo ou em tempos distintos em diferentes combinações, segundo o desejo de percebê-los. O movimento da molécula pode ser contínuo e descontínuo ao mesmo tempo. Pode ter cor e/ou não. Não existe objeto visual que não exista em comparação com, ou simultaneamente com outros objetos, porém essas características podem ser eliminadas se assim se desejar. Um pôr de sol pode durar dias. Podem-se comer todas as nuvens do céu. Pode-se juntar, por telefone, uma pintura e uma pessoa que esteja no Pólo Norte, como se fosse um jogo de xadrez.

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Lidando diretamente com a importância das palavras tradicionais na arte, que por si só designam respeitavelmente a categoria referida, Yoko define seus títulos acima de tudo, de acordo com uma vontade/desejo e um humor que vão além de uma referência do texto com o que irá surgir.

YOKO ONO-1964

PINTURA PARA EXISTIR SOMENTE ENQUANTO FOR COPIADA OU FOTOGRAFADA

Deixe pessoas copiarem ou fotografarem suas pinturas.

Destrua os originais.

Estas instruções que podem ter sido deixadas como cartas e hoje descobertas, que podem ter vindo enclausuradas em garrafas antes vazias, que podem também nunca terem sido achadas nem esquecidas são ainda o antigo e sempre o novo meio de fazer com que o espectador se torne seu próprio sujeito.

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Fluxus e a contemporaneidade

A arte é um encontro contínuo e reflexivo com o mundo em que a obra de arte, longe de ser o ponto final deste processo, age como iniciador e ponto central da subseqüente investigação do significado.

Michael Archer

Legados ou patrimônios são como totens inseridos na sociedade, e que portanto não podem ser modificados, comidos ou mortos, tornam-se algo imutável que só se respeita e nunca nos responde.

Procedimentos anunciados já no começo do século XX pelas vanguardas históricas, ou na verdade ainda antes por Antonin Artaud na formação inquestionável de seu teatro da crueldade, sugeriam a fusão entre arte e vida.

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Happenings, performances, mail-art, intermedia e outros são, em meados dos anos 60, então exercidos cotidianamente pelo grupo Fluxus e como meios de vida são ensinados familiarmente. Pedem inclusive por continuidade. O caráter efêmero e temporal de tais manifestações, imersos subitamente no cotidiano, finalmente confundem a arte com a vida.

Mesmo que estas expressões artísticas sejam advinhas de um período específico, as questões abordadas e lançadas são extremamente atuais. Não só porque interrogam as posições sempre instáveis dentro do sistema da arte, mas também os meios que a legitimam. É ainda necessário sublinhar que estas ações, por partirem do cotidiano, a lançam para uma plataforma infinda de produção. Ou melhor e ainda, vivência artística.

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alguns dos PROCEDIMENTOS:(A QUEBRA DAS FRONTEIRAS)

ARTE POSTAL: O grupo Fluxus foi o grande impulsor da criação da arte postal. O ano de 1962 é considerado o marco formal de seu surgimento, quando o artista americano Ray Johnson (1927-1995) criou a New York Correspondance School of Art, escola referente à pintura abstrata que cria um jogo de palavras entre a escola de arte vigente e as escolas por correspondência, comuns na época. Ray Johnson preferiu soletrar “correspondance” (“dance”, em português, dançar/dança), finalmente batizando a escola, e salientando as relações entrelaçadas que ele havia criado através do correio.

Porém, anteriormente a esta oficialização, muitos artistas já utilizavam a via postal para trocar criações e experiências estéticas, estabelecendo diálogos sem fronteiras. Deste modo, as experiências

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de diversos movimentos como futurismo, dadaísmo, surrealismo, arte pop, neo-dadaísmo, neo-realismo e conceitualismo, estão entre os antecedentes históricos desta forma de comunicação artística.

Entre vários motivos que levaram a criação da arte postal, estão o descontentamento com a política de arte e com as galerias “importantes”, também a necessidade de ampliar a função do artista, internacionalizando-o e fazendo com que ele participe de exposições sem jurados e sem muitas concessões. Para o artista que se utiliza desta via de expressão, a arte não é tida como mercadoria e sim como meio de comunicação (Paulo Bruscky, artista pernambucano, em suas correspondências introduz um carimbo com os dizeres: “Hoje a arte é este comunicado”). Sendo uma maneira rápida e ampla de difusão artística, o armazenamento e consumo faz da arte postal uma manifestação artística doméstica por excelência, e assim, ao alcance de todos.

As “regras” que de alguma forma caracterizam a arte postal, foram sendo incorporadas no transcurso de seu desenvolvimento, e então impedem que as obras sejam comercializadas, que exista júri de admissão, que haja devolução das obras, que exista algum tipo de censura. Também, há total liberdade de meios e suportes, incluindo a liberdade de formas e gêneros. Todas as obras recebidas podem

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eventualmente ser expostas e todo participante das mostras recebe a documentação respectiva gratuitamente.

Hoje a arte postal não só conta com a participação de artistas plásticos, mas também de poetas, músicos, arquitetos, fotógrafos, renomados e anônimos, que encontram neste meio uma maneira livre e especial de expressão.

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alguns artistas de ontem e de HOJE:

Marcel Duchamp (Blainville, 1887 – Newilly, 1968)

Como um dos precedentes mais importantes da arte postal, Duchamp instaurou um novo modo de agir/pensar sobre Arte. Acreditou na idéia da não-superioridade do artista como criador, e colocou a escolha como elemento determinante de uma intervenção pessoal na criação, permitindo a qualquer pessoa uma produção artística.

Não só pelo fato da produção Dadá pretender estar ao alcance de todos, que este movimento pode ser também considerado um precursor da arte postal, mas também pela produção de 14 postais – Rendez-vous dimanche 6 fevrier 1916 á 1h ¾ de l’ aprés-midi - , que

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Duchamp enviou a seus mecenas Mr. e Mrs. Walter C. Arenberg – que, segundo Merz Mail (2001), podem marcar um dos inícios no mundo da arte que se utiliza do formato e das características do cartão-postal. Este meio foi utilizado amplamente pelos dadaístas, sendo Duchamp seu precursor dentro do movimento.

Kurt Schwitters (Hanover, 1889 – Ambleside, 1948)

Artista excêntrico de seu tempo, Kurt Schwitters se posicionava contra a Arte com A maiúsculo.

Sua atitude de recusa aos materiais tradicionais em favor de materiais “menos nobres”, como bilhetes usados de ônibus, selos, rolhas, trapos, botões, pedaços de cartas, recortes de jornais, o aproximava da prática dadaísta. Porém, ele não aceitava a negação da artisticidade feita pelos dadaístas e por isto não foi acolhido no Clube Dadá, criando, portanto, seu próprio

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Dadaísmo. Schwitters dizia que a obra é apenas o lugar onde terminam e se incrustam as coisas mais heterogêneas. Recolhe tudo o que não serve mais para a sociedade de consumo e junta pedaços de diferentes realidades, reconstruindo a intrincada trama da existência, dando forma à collages e assemblages.

Ele também manipula e interfere em 11 postais editados por Paul Steegmann, que continham obras suas destruídas pela guerra no intuito de preservá-las. Além desta evidente atitude de artista postal, Schwitters é ainda o inspirador de artistas postais contemporâneos que se utilizam de “retalhos da existência” para compor suas obras postais e se comunicar com o mundo afetuosamente.

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Ray Johnson (Detroit, 1927 – New York, 1995)

Foi somente a partir da criação da New York Correspondance School por Ray Johnson que esta maneira de produzir arte tomou corpo, e parou de ser o que estudiosos afirmavam ser até então incidental.

Além disso, Johnson foi também o responsável pelos primeiros happenings, os quais chamou de nothings. Apesar do caráter incomum e totalmente pessoal de sua arte e de seus métodos, bem como de seu papel seminal na arte postal, Ray Johnson é também associado à arte conceitual, às atividades do grupo Fluxus e a outras manifestações, apesar de manter-se sempre como um artista independente. Para ele o trabalho original e a cópia tinham o mesmo valor pois ele acreditava que ambos contavam a mesma história. Por sua ampla participação na rede postal e pela grande utilização de cópias é difícil encontrar um catálogo de arte postal que não mencione seu nome.

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Paulo Bruscky (1949)

Artista plástico e desenhista, nasceu no Recife em 1949, filho de um fotógrafo polonês e de uma pernambucana de Fernando de Noronha. Prioriza as pesquisas experimentais no seu trabalho. A partir de 1969, aumenta suas realizações no campo da arte conceitual e experimental fazendo pesquisas múltiplas que envolvem o espaço e o ambiente, em intervenções e materiais diversos, como happenings, carimbos, copy art, áudio arte, etc. Desenvolve, a partir de 1970, pesquisas em copy art (eletrografia), expondo o resultado numa mostra individual na Galeria Empetur, em Recife. Em 1973, ingressa no Movimento Internacional de Arte Postal. Em 1974, lança, com Daniel Santiago, o Movimento/Manifesto Nadaísta, que faz uso do suporte super-8. Alguns materiais utilizados no seu trabalho são o gelo, a fumaça, a tecnologia, fazendo uso do tempo e de “coisas sensoriais” também como elementos de criação. Foi um pioneiro na aplicação

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artística de várias tecnologias, como gravação eletrônica, projeção de diapositivos, fac-símile, filme super-8, vídeo, xerox, off-set e mimeógrafo, sendo também o pioneiro da vídeo-arte fora do eixo Rio-São Paulo. Possivelmente, foi o mais entusiasta promotor da arte postal no Brasil da qual possui uma coleção de valor inestimável.

INTERMEDIA:

Em 1966, o poeta Dick Higgins concebeu o termo Intermedia, uma categoria formal para definir uma inter-relação entre diferentes meios que se fundem conceitualmente em um novo meio. “Quando dois ou mais meios discretos se fundem conceitualmente, eles se tornam Intermedia. Diferem de meios mistos, sendo inseparáveis na essência

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da obra de arte”¹26

O happening, no final dos anos 50 e começo dos 60, ajudou Higgins a desenvolver sua idéia de Intermedia. Em meados da década de 50, pintores nos Estados Unidos e na Alemanha começaram a voltar-se para trabalhos em que criavam adicionando ou removendo, substituindo ou alterando componentes da obra visual. Começaram incluindo objetos em suas obras e, em seguida, realizando colagens que envolviam o espectador as quais chamaram “ambientes”. Em 1958, incluíram pessoas como parte de suas colagens, o que definiram como happening. Foi assim que Higgins chegou ao que poderia definir como Intermedia.

VÍDEO-ARTE

Nascido na Coréia em 20 de julho de 1932, Nam June Paik estudou história da música, história da arte e filosofia na Universidade de Tóquio. Em 1956 foi para a Alemanha continuar seus estudos sobre história da música na Universidade de

26 Higgins define Intermedia no seu livro Horizons: The poetics and Theory of the Intermedia.

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Munique. Lá ele encontra os músicos Karlheinz Stockhausen e John Cage. Ambos influenciaram Paik com suas idéias de composição e performance.

Mais tarde, Paik se integra ao grupo Fluxus, e partir de 1963, quando ele e Wolf Vostell realizaram intervenções nas imagens da televisão: assim a Vídeo-Arte começa a tornar-se parte integrante da arte contemporânea.

A primeira produção artística do pioneiro da vídeo-arte, em 1963 na cidade de Weisbaden, Alemanha, sob o emblema da anti-arte – legado dos dadaístas – e em parceria com Joseph Beuys, foi a elaboração da instalação “Exposição de Música, Televisão Eletrônica”, que consistia em manipular os elementos eletrônicos e a tecnologia,subvertendo os efeitos das imagens recebidas e questionando os procedimentos comerciais dos meios de comunicação de massa.

E no centro, no limiar de diálogos e influências do autor/ator de happenings John Cage e os artistas da comunidade Fluxus, emerge a carreira de Paik.

“Assim como a colagem substituiu a pintura a óleo, o raio

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catódico substituirá a tela”, afirmou Paik ao apropriar-se da linguagem e do suporte da televisão com a intenção de denunciar os perigos de um meio de comunicação tão poderoso culturalmente. “Eu uso a técnica para poder odiá-la melhor”, sentenciou em 1973.

Também em 1973 cria o vídeo “Tributo a John Cage”, mais uma homenagem para outra pessoa importante na sua trajetória. Na 13a. Bienal de São Paulo, em 1975, apresenta “Jardim de TV”, em que mistura plantas em meio a TVs ligadas, transformando os aparelhos em fontes luminosas. Em 1988, nos Jogos Olímpicos em Seul - sua cidade natal -, os écrans, dispostos às centenas, produzem imagens e luzes, e inventa novos estandartes semelhantes a uma Torre de Babel.

Trabalhou o vídeo e as assemblages dos monitores com primazia, desconstruindo a técnica aos extremos da criação e expandindo os domínios da linguagem artística.

Os trabalhos de Paik não utilizaram somente a televisão como suporte. Com o tempo, incorpora vídeo-esculturas com aparência de robôs, fios, metais e aparelhos de rádios. Na década de 1990, integra o laser em suas obras.

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A partir desta época, a ousadia, a antiarte, a invenção a partir da técnica e os meios de comunicação de massa, ampliaram e influenciaram o uso de uma série de recursos para o desenvolvimento da web art.

Paik abriu portas e deixou a sua marca. É referência nas principais escolas de artes, internet, museus e galerias do mundo; dissolveu os limites da representação, realizou interfaces objetivas num desdobramento poético.

Nenhum artista teve influência maior em imaginar e realizar o potencial artístico do vídeo e da televisão do que Nam June Paik. Com vastas instalações de vídeos, produções globais de televisão, de filmes e de performances, Paik remodelou nossas percepções da imagem na arte contemporânea.

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O COLETIVO como plataforma para uma discussão de autoria/autoridade

“Nas margens do canal, o velho pintor destrói sua tela, e aproximando o celular ao seu marca-passo, suicida-se telefonicamente”

(Luther Blisset, “Mil formas de uma morte direta”).

Qualquer um poder ser Luther Blissett, basta adotar o nome Luter Blisset. Seja você também Luther Blissett!.

Este convite foi lançado em meados dos anos 90, a princípio na Itália, e se transformou em uma das idéias mais transgressoras da atualidade.

Aceito, o convite se transforma em diversas aparições simultâneas de Luther Blissett em várias partes do mundo. Alastra-se a idéia como uma praga, que surge para botar abaixo as noções de identidade, individualidade, valor e verdade.

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Luther Blisset utiliza a arma do pseudônimo e da pseudo-profecia, viaja de uma época a outra e de um corpo para outro, é o netinho de Lon Chaney e grão-guardião do segredo do Neuronômicon, é o terceiro Lee Harvey Oswald e o bobo inconsciente que vira as costas para seus homônimos em um Meeting da New York Correspondence School. Luther Blisset não é o primeiro nome múltiplo da história, nem será o último, assim como Monty Cantsin desfigurou com sangue as obras-primas dos Museus principais, como Karen Eliot viajou entre os cinco sexos sem precisar se precaver, assim como Lieutenant Murnau tocou em concertos contemporâneos em cidades diferentes sem precisar executar uma só nota.

Luther Blisset, escrevendo a sua própria história, está reescrevendo a história e se auto-divulga. Assim como Harry Kipper procurou seu primeiro contrato como ator publicando uma falsa resenha no London Times, como Guglielmo Achille Cavellini mandou os grandes de cada época escrever cartas de recomendação, em reconhecimento de sua genialidade, como Mario Rossi pediu, em carta registrada, aos prefeitos de todas as cidades italianas para nomear uma rua em sua honra.

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Luther Blisset é uma presença silenciosa e inquietante, que observa tudo e todos; seu rosto impassível você pode encontrar entre o público das últimas fileiras nas audiências do processo contra Pacciani (O “Monstro de Florença”, acusado de ter matado vários casais de namorados em bosques), e entre os jornalistas na frente da mais luxuosa mansão de Arcore (Mansão de Sílvio Berlusconi, político proprietário de um monopólio de rádios, TVs e mídia impressa); entre os convidados em uma foto antiga da sua primeira comunhão ou na seção de cartas ao diretor de um folheto de quadrinhos das Testemunhas de Jeová.

Luther Blisset plagia uma cultura que já é “blobizada” (programa televisivo que reúne trechos de vídeo aparentemente sem conexão, satirizando a própria inconsistência da mídia) até a medula, porque de qualquer forma todos já copiam sem pedir permissão. Sua escrita move-se inalcançável entre dimensões e autores, como os personagens de um romance de Philip K. Dick, explicitando aquilo que está implícito e tornando escandalosamente enfurecedor aquilo que é ignorado e tolerado por todos.

É ainda muitos em um e um no multíplice, é a poesia da Rede e a doçura do anti-dogma, é a possibilidade de viver vidas à distância e

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de ser vivido por muitos em uma única existência.

(ARTE E VIDA)

CAOS“Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares

(públicos ou privados) onde você teve uma revelação

ou viveu uma experiência sexual particularmente inesquecível”.

MANIFESTO TERRORISMO POÉTICO Dançar de forma bizarra durante a noite inteira nos caixas eletrônicos dos

bancos.Apresentações pirotécnicas não autorizadas. Land-art, peças de argila que

sugerem estranhos artefatos alienígenas espalhados em parques estaduais. Arrombe apartamentos, mas, em vez de roubar, deixe objetos Poético-terroristas. Seqüestre alguém

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& o faça feliz. Escolha alguém ao acaso & o convença de que é herdeiro de uma enorme, inútil e impressionante fortuna - digamos, cinco mil quilômetros quadrados na Antártica, um velho elefante de circo, um orfanato em Bombaim ou uma coleção de manuscritos de alquimia. Mais tarde, essa pessoa perceberá que por alguns momentos acreditou em algo extraordinário & talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existência. Fique nu para simbolizar algo. Organize uma greve na escola ou trabalho em protesto por eles não satisfazerem a sua necessidade de indolência & beleza espiritual. A arte do grafite emprestou alguma graça aos horríveis vagões de metrô & sóbrios monumentos públicos - a arte - TP também pode ser criada para lugares públicos: poemas rabiscados nos lavabos dos tribunais, pequenos fetiches abandonados em parques & restaurantes, arte-xerox sob o limpador de pára-brisas de carros estacionados, slogans escritos com letras gigantes nas paredes de playgrounds, cartas anônimas enviadas a destinatários previamente eleitos ou escolhidos ao acaso (fraude postal), transmissões de rádio pirata, cimento fresco... A reação do público ou o choque-estético produzido pelo TP tem que ser uma emoção pelo menos tão forte quanto o terror - profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angústia dadaísta - não importa se o TERROR POÉTICO é dirigido a apenas uma pessoa ou várias pessoas, se é “assinado” ou anônimo: se não mudar a vida de alguém (além da do artista), ele falhou. O TP é um ato num Teatro da Crueldade sem palco, sem fileiras de poltronas, sem ingressos ou paredes. Para que funcione, o TP deve afastar-se de forma categórica de todas as estruturas tradicionais para o consumo de arte (galerias, publicações, mídia). Mesmo as táticas de guerrilha Situacionista do teatro de rua talvez já tenham se tornado conhecidas & previsíveis demais. Não faça TP para outros artistas, faça-os para aquelas pessoas que não perceberão (pelo menos não imediatamente) que aquilo que você fez é arte. Vista- se de forma intencional. Deixe um nome falso. Torne-se uma lenda. O melhor

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do TERRORISMO POÉTICO é contra a lei, mas não seja pego27.

O ESPAÇO COMO ESPAÇO NÃO ELEITO

TAZ. Ou Zona Autônoma Temporária. Movimento nomeado por Hakim Bey, já que ele mesmo defende não o ter criado e sim posto um nome esperto. Escritor, ensaísta, e acima de tudo poeta e anarquista, Bey tem reunido como fruto de uma profunda pesquisa, ensaios, textos, panfletos e todo material subversivo escrito em livros instigadores que foram mundialmente conhecidos, sendo que CAOS – Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares e TAZ – Zona Autônoma Temporária, influenciaram diversas correntes de pensamento da arte subversiva do fim do século XX e século XXI.

Entre vários conceitos desenvolvidos por Hakim Bey, Zona Autônoma Temporária, é a idéia da criação de espaços temporários que passam despercebidos pelas formas tradicionais de controle. Estes espaços não são regidos por regras externas a ele, e são criados por grupos não hierarquizados, para como diz o próprio Hakim Bey, se organizarem para a maximização de atividades prazeirosas, sem

27 Hakim Bey em seu livro Caos: Terrorismo Poético e outros Crimes Exemplares

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controle de hierarquias opressivas. As Zonas Autônomas Temporárias carecem de fim para iniciar, como o próprio nome diz. Elas se proliferam.

Todos estes procedimentos já iniciados no início do século XX e aqui rapidamente esboçados apontam para um questionamento do objeto de arte, da natureza da arte e suas fronteiras repensadas incessantemente, fazem surgir e surgir eternamente uma vontade de realização que, localizada em uma frívola diversidade, nunca há de se findar.

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Endereços eletrônicos:

http://www.merzmail.net/http://www.artnotart.com/http://www.fluxus.org/http://www.ubu.com/

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artefinal - sebastião miguel