questoes de educacao escolar indigena

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Questes de educao escolar indgena: da formao do professor ao projeto de escola

da formao do professor ao projeto de escolaJuracilda Veiga e Andrs Salanova(organizadores)

Questes de Educao Escolar Indgena:

Ncleo de Cultura e Educao Indgena

DEDOC 1

Dados internacionais de catalogao Biblioteca Curt Nimuendaj Veiga, Juracilda; Salanova, Andrs(Orgs.) Questes de educao escolar indgena: da formao do professor ao projeto de escola./ Darlene Taukane... (et al). - Braslia: FUNAI/DEDOC, Campinas/ALB, 2001. 172p. III Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indgenas (12 COLE Congresso de Leitura do Brasil, UNICAMP, 20 e 23 de julho de 1999). Bibliografia 1. Educao Indgena 2. Formao Profissional - Professores Indgenas 3. Poltica 4. Paresi 5. Bakairi 6. Guarani 7. Nambikwra 8. Irntxe 9. Lngua Indgena 10. Ensino Bilnge 11. Kaingang I. Ttulo II. Autor CDU 572.95(81):37

Capa: foto e criao de Wilmar DAngelis Fotografia: professores Guarani, Tranquilino Martinez e Silvana Verssimo, da Aldeia Pinhalzinho(PR), 2001 Catalogao e reviso bibliogrfica: Cleide de Albuquerque Moreira Bibliotecria/CRB 1100 Reviso final: Karla Bento de Carvalho/DEDOC Editorao: Marli Moura/DEDOC Impresso Grfica: Wilson Machado/DEDOC

ALB - Associao de Leitura do Brasil Ncleo de Cultura e Educao Indgena Faculdade de Educao / UNICAMP Cidade Universitria Zeferino Vaz 13081-900 - Campinas/SP - Brasil [email protected]

FUNAI - Fundao Nacional do ndio DAD - Diretoria de Administrao DEDOC - Departamento de Documentao SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 1Andar 70390-025 - Brasilia/DF - Brasil [email protected]

2001

Agradecimentos Ao Departamento de Documentao da FUNAI, que possibilitou a publicao deste livro. ALB e aos coordenadores gerais do 12 COLE, pelo apoio realizao do III Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indgenas.

SumrioApresentao ................................................................ 9 Captulo 1 Avanos e impasses no projeto de educao escolar diferenciada entre povos indgenasAvanos e impasses na educao escolar indgena: a experincia Kur-Bakairi Darlene Taukane ............................................................. 13 A educao indgena estava muito fechada Gilda Kuit ..................................................................... 24 Comentrio da debatedora .............................................. 30

Captulo 2 A educao escolar em novos contextos polticos e culturaisEducao escolar indgena: um projeto tnico ou um projeto tnico-poltico? Wilmar da Rocha DAngelis ............................................. 35

Educao escolar entre os Pareci, Nambikwara e Irantxe no contexto socioeconmico da Chapada dos Parecis - MT Daniel Matenho Cabixi .................................................... 57

Captulo 3 A formao de professores indgenas no BrasilRediscutindo a formao de professores no Brasil: aproximando-se da educao indgena Helena Freitas ................................................................. 73 A formao de professores indgenas no Brasil hoje Susana Grillo Guimares ............................................... 97 Professores Kaingang de Inhacor (RS): uma experincia de formao Juracilda Veiga .............................................................. 113

Captulo 4 A lngua indgena na escola: questes de poltica lingsticaPoltica e planejamento lingstico nas sociedades indgenas do Brasil hoje: o espao e o futuro das lnguas modernas Ruth Monserrat ............................................................. 127 A lngua indgena na escola indgena: quando, para que e como? Angel Corbera Mori ....................................................... 160

Apresentao

Questes de educao escolar indgena: da formao do professor ao projeto de escola rene os principais textos das conferncias e mesas-redondas realizadas durante o III Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indgenas, que fez parte do 12 COLE (Congresso de Leitura do Brasil), realizado na Unicamp entre 20 e 23 de julho de 1999. A proposta de fazer um livro com as principais apresentaes desse encontro surgiu durante o prprio evento e foi aprovada como resoluo na sesso final de avaliao. O principal motivo apontado foi a relevncia das contribuies e a importncia de ampliar a abrangncia de sua circulao. Dos textos aqui publicados, alguns correspondem verso escrita entregue pelo conferencista, enquanto outros resultam da transcrio das fitas gravadas. Para manter a unidade temtica, decidimos no incluir as muitas comunicaes apresentadas durante o encontro.

Os Encontros sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indgenas ocorrem desde 1995 no mbito do COLE1, promovido bienalmente pela Associao de Leitura do Brasil (ALB). Esses encontros tm, entre seus objetivos principais, trazer uma contribuio original reflexo dos diferentes agentes de programas de educao escolar indgena, em especial aos professores indgenas, permitindolhes uma compreenso maior do contexto no qual se insere o seu trabalho. Valoriza, por isso, a necessidade de rever consensos, pensar e repensar criticamente os caminhos e descaminhos da educao escolar entre os povos indgenas. E procura apoiar os grupos organizados destes mesmos povos na consolidao de um espao de autonomia que realize a escolarizao como um processo subordinado, em primeiro lugar, ao desenvolvimento prprio de cada cultura e de cada povo, e no a interesses de grupos da sociedade majoritria. O III Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indgenas teve, como pontos focais: a autonomia das comunidades indgenas na definio de seu processo de aquisio da escrita, a importncia da formao dos educadores como agentes desse processo de autonomia e a relao do ensino escolar bilnge com a definio de uma poltica lingstica de cada sociedade indgena.

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Os textos do primeiro encontro foram reunidos no livro Leitura e Escrita em Escolas Indgenas. W. DAngelis e J. Veiga (orgs.). Campinas: ALB e Mercado de Letras, 1997.10

O primeiro captulo deste livro, Avanos e impasses no projeto de educao escolar diferenciada entre os povos indgenas, corresponde abertura do encontro, em uma mesa composta por professores indgenas, e traz as contribuies das professoras Darlene Taukane e Gilda Kuit. O segundo captulo, A educao em novos contextos polticos e culturais, rene os textos da conferncia do lingista Wilmar DAngelis e da exposio de Daniel Matenho Cabixi na mesaredonda que se seguiu a ela. O primeiro coloca o problema das limitaes de um projeto histrico de cunho unicamente tnico, que reduz a questo indgena a uma dicotomia ndios x brancos, e de um projeto escolar assim orientado. J a exposio de Daniel Cabixi focaliza as tenses dos programas de educao nos contextos em que a sociedade indgena est imersa na presso dos interesses econmicos regionais, nacionais e globalizantes. A formao de professores indgenas no Brasil, que compe o terceiro captulo, rene as apresentaes de uma mesa-redonda que teve por objetivo aprofundar a reflexo acerca da formao de professores e avaliar distintos programas de formao e capacitao de professores indgenas em andamento no Brasil.O captulo se inicia com o texto da conferncia da pedagoga Helena Freitas, contextualizando o debate sobre formao de professores no Brasil para, em seguida, travar um dilogo entre sua perspectiva acerca do trabalho de formao e as necessidades de formao no campo da educao indgena. Segue-se o texto da exposio11

de Susana Grillo Guimares, que traa um panorama, ao mesmo tempo informativo e crtico, dos grandes programas de formao de professores, apontando os problemas de um esvaziamento das categorias com que se vem tratando a educao escolar indgena (diferenciada, intercultural etc.) e de uma generalizao dessa formao que, na prtica, contradiz os pressupostos que defende. O texto de Susana tambm exemplifica e enfatiza o papel da Sociolingstica nos programas bilnges. O captulo conclui-se com o texto da antroploga Juracilda Veiga acerca de uma experincia no-formal (tanto no sentido de no-oficial, como no sentido de no voltada titulao) de formao de professores Kaingang no Rio Grande do Sul. O quarto captulo est centrado no debate sobre Polticas Lingsticas, ensino bilnge e futuro das lnguas indgenas. Abre com o texto da conferncia da lingista Ruth Monserrat, que conceitua Poltica Lingstica e discute se h, ou no, uma poltica do Estado brasileiro voltada para as lnguas indgenas. Na seqncia, Monserrat discute as condies para uma poltica das sociedades indgenas de defesa e vitalizao de suas lnguas prprias. O segundo texto do captulo corresponde contribuio do lingista Angel Corbera Mori ao debate sobre o uso e o ensino das lnguas indgenas nos programas de educao escolar.Juracilda Veiga e Andrs Pablo Salanova Ncleo de Cultura e Educao Indgena, ALB

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Captulo 1AVANOS E IMPASSES NO PROJETO DE EDUCAO ESCOLAR DIFERENCIADA ENTRE OS POVOS INDGENAS

Avanos e impasses na educao escolar indgena: a experincia dos Kur-BakairiDarlene Iaminalo Taukane2 Meu nome Darlene Yaminalo Taukane. Perteno etnia Bakairi e atualmente sou Coordenadora da Educao Escolar da FUNAI de Cuiab - MT. Desde o segundo grau sou professora por opo, quando cursei o Magistrio. Dando continuidade aos meus estudos fiz graduao em Letras - Licenciatura Plena e, depois, o Mestrado em Educao Pblica, pela Universidade Federal de Mato Grosso. Recentemente, neste ano, lancei o livro que o resultado da pesquisa desse Mestrado. Esse

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Mestre em Educao. Coordenadora de Educao da FUNAI Cuiab.

livro sobre a histria da educao escolar entre os Kur-Bakairi. Quero agradecer coordenao desse congresso por eu estar aqui. a primeira vez que venho e participo de um Congresso da Leitura do Brasil. Embora eu j tenha ouvido falar, essa a minha vez; cada um tem o seu tempo, e eu creio que essa oportunidade o meu tempo. Quero dizer que ns, os povos indgenas, devemos nos orgulhar muito e ao mesmo tempo nos responsabilizar muito pelo fato de que ns no estamos nesse processo de discusso sobre a temtica de educao escolar, mas somos e fazemos parte desse processo. Eu no estou por acaso, estou de fato; esse o compromisso que temos, enquanto povos construtores da nossa histria. Se a gente tiver a clareza de que podemos e devemos construir a nossa histria, muitas coisas podero mudar muito no futuro, porque uma relao nova de oportunidades, de querermos falar da nossa caminhada e da nossa luta nas travessias de educao escolar indgena e fazer algo em prol de ns mesmos. Nesse sentido, agradeo aos nossos interlocutores a disposio de quererem nos ouvir, ouvir a voz dos povos indgenas. Ao mesmo tempo, ns queremos ter oportunidades de estar ouvindo o que vocs pensam da gente, principalmente em relao temtica da educao escolar indgena. Ento, o tema proposto dessa mesa : Avanos e impasses no projeto de educao diferenciada para os povos indgenas. Eu achei14

extremamente amplo e complexo o tema proposto, se pensarmos em falar de todas as experincias dos povos indgenas. Eu achei que muito compromisso para a minha pessoa, pela limitao do meu conhecimento diante de tanta diversidade e experincias dos povos. E fiquei pensando como estaria norteando a minha fala. Ento, eu estou aqui para falar da experincia que eu conheo e que vivenciei e que at hoje continuo vivenciando, cujo tema : Avanos e impasses na educao escolar indgena - A experincia dos Kur-Bakairi. A experincia de educao escolar indgena de que eu estou falando dos Kur, mas tambm somos mais conhecidos como Bakairi. Atualmente os Kur esto localizados em duas terras indgenas, denominadas de Santana, no municpio de Nobres, e Bakairi, no municpio de Paranatinga, ambas em Mato Grosso. Eu fao parte da sociedade dos KurBakairi do ltimo municpio. Na realidade, comecei a refletir e repensar sobre a educao escolar para e do povo Bakairi em 1994, quando comecei a fazer levantamento de dados para o Mestrado. At ento, eu no tinha a conscincia de que eu mesma era fruto de um projeto de educao escolar de negao, de no-valorizao cultural, enquanto pessoa e como mulher indgena. Fui me revendo: como fui educada nos moldes de uma educao para que eu me tornasse uma pessoa civilizada. At ento no se tinha a preocupao de uma educao diferenciada para o povo KurBakairi, assim como para os demais povos indgenas.15

Para falarmos e avaliarmos os avanos e impasses no projeto de educao diferenciada do povo Kur-Bakairi, primeiro quero falar um pouco sobre a histria do contato, com o objetivo de situar e, ao mesmo tempo, nortear a minha fala. Segundo os registros oficiais, os Kur-Bakairi de Paranatinga e de Nobres iam a Cuiab desde o ano de 1847, dirigindo-se sede da Diretoria Geral dos ndios da Provncia em busca de ferramentas, tecidos e armas de fogo. Eram considerados mansos, porm independentes pelo DiretorGeral, em seu relatrio de 1848 , ainda que mantendo relaes com os colonizadores (Barros 1977, 1992). Tem-se ainda o registro de que os KurBakairi conheciam a escrita e a educao escolar antes mesmo da implantao de qualquer escola [oficial] entre eles. Segundo fontes escritas, em 1882 o Capito Reginaldo, da regio de Nobres, dirigiuse ao Presidente da Provncia, atravs de um bilhete, comunicando-lhe que estava se dirigindo cidade acompanhado de 12 homens. Comentou o Presidente: Aquele cacique j se acha semi-civilizado, por ter sido criado por negociante portugus que residia na vila de Diamantino e deo-lhe as noes de primeiras letras que ainda conserva, pois que prevenio de sua vinda cidade atravs de um bilhete escripto de prprio punho (Alencastro, 1882: 33). Mas as passagens de Karl von den Steinen, em 1884 e 1887, alteraram profundamente a vida dos Kur-Bakairi. Foi atravs dessas expedies que os Kur que viviam, no Xingu, at ento isolados do ponto de vista do contato com os colonizadores,16

como os demais povos dessa regio tornaram-se conhecidos; uns e outros passaram, desde ento, a se visitar. Aps a passagem daquele cientista, o governo de Mato Grosso intensificou a sua poltica de atrair os Bakairi alto-xinguanos e outros povos que viviam nessa regio. Sobre a expedio de Karl von den Steinen entre os Bakairi, escreveu Capistrano de Abreu: Desde 1884/1885 voltou-se para eles a curiosidade do mundo cientfico, que bem merecem pela lngua que falam, grupo etnogrfico a que se filiam, costumes caractersticos que conservam, dupla face por que se apresentam, j domesticados no Tapajs, ainda perfeitamente selvagens no Xingu. Foi Dr. Carlos von den Steinen auxiliado pelo nosso governo que lhes concedeu a expedio entre os dois pontos, quem, estudandoos, abriu o que no exagero chamar uma poca para a nossa etnografia selvagem... (Abreu, 1976: 156). Em termos de classificao cultural, fomos includos na rea Cultural Uluri (Galvo, 1960), o que se explica pelo fato de que, historicamente, uma parcela de nossos antepassados viveu no Alto Xingu, na dispora, e hoje somos o nico povo Karib que vive no cerrado matogrossense. Em 1910 foi criado o Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais. Segundo registros feitos pelo Capito Ramiro Noronha, da Comisso Rondon, em 1920 foi implantado o Posto Indgena Simes Lopes, logo aps a realizao da primeira demarcao da rea Indgena Bakairi. E, em 1922, foi implantada a17

primeira escola indgena, posteriormente denominada Escola Rural Mixta do Posto Indgena de Simes Lopes. claro que essa escola veio para atender e cumprir o seu papel de civilizar, de acordo com os ideais e idias positivistas de Cndido Mariano da Silva Rondon, que norteavam toda a poltica indigenista. o que se pode depreender da seguinte passagem: A catequizao dos indgenas, compreendendo a sua incorporao nossa sociedade pela assimilao de nossas artes, de nossa indstria, como pela adoo de nossos hbitos, que resultam de nossas crenas religiosas. No sentido do positivismo destes termos, julgo-a ser um problema diretamente inabandonvel no presente (Ribeiro, 1970:135). De 1922 a 1942, a educao escolar indgena entre os Kur-Bakairi teve a principal funo de preparar a mo-de-obra do sexo masculino: a partir do momento em que eles sabiam ler e escrever, j podiam ser encaminhados para trabalhar na lida de gado como vaqueiros, ou como carpinteiros, oleiros, pedreiros e, principalmente, os que sabiam comunicar-se minimamente bem em Portugus, eram escolhidos como guias e tropeiros para transportar os mantimentos plantados e colhidos por eles, no trajeto da aldeia para Cuiab, na poca do SPI. Ento, a funo da escrita e da oralidade em lngua portuguesa est clara entre os Kur: era para a eficcia da mo-de-obra deles. Somente a partir de 1945 a educao escolar estendida para as meninas. Da mesma forma que os meninos, elas foram preparadas para lides domsticas, isto , para18

serem cozinheiras, costureiras, bordadeiras e boas esposas, nos padres culturais do homem branco. Se olharmos pela lente do retrovisor do tempo o que significou a caminhada dos povos em nome da educao escolar, que podemos avaliar e entender o porqu da educao diferenciada para os povos indgenas na nossa atualidade. claro que no estou aqui somente para falar da ingratido, do descaso imposto e praticado pela educao escolar entre os KurBakairi, mas tambm falar de alguns avanos, de alguns aprendizados no transcorrer da batalha. E, em primeiro lugar, quero considerar como um dos avanos o fato de que a educao escolar indgena, desde a promulgao da Constituio Brasileira de 1988, foi reconhecida legalmente, tanto no que diz respeito ao uso da lngua materna quanto aos processos prprios de aprendizagem. No ato de reconhecimento dos nossos direitos na Constituio, ns, indgenas, tambm nos fortalecemos enquanto povos nas nossas singularidades. No caso especfico dos Kur-Bakairi, os nossos avanos antecedem a prpria promulgao da Constituio brasileira de 1988. Em 1985, a educao escolar j era ministrada pelos prprios Bakairi e o pensamento da escola j era um instrumento de luta a favor de nossos interesses e para a construo de nossa autonomia, assim como o Posto Indgena e Posto de Sade j eram tambm administrados por pessoas da aldeia. O que representa um avano que, desde a sua implantao, a escola e o Posto Indgena sempre haviam sido dirigidos por no19

indgenas, mas a partir dessa data os professores indgenas se tornam visveis no cenrio da construo de sua prpria histria, marcada pela resistncia tnica. Em 1991, pelo Decreto 26/91, atribuda ao MEC a coordenao das aes referentes educao escolar indgena. No seu artigo 2 ele atribui s Secretarias Estaduais e Municipais de Educao a execuo de aes referentes educao escolar indgena. Em 1989, o quadro de professores j era estvel, quando eles comearam a ser contratados pela Prefeitura Municipal. importante esclarecer que, na aldeia indgena Pakuera, funciona urna eleitoral desde 1958: a 43 zona do municpio de Paranatinga. O nmero de eleitores nessa aldeia suficiente para eleger um vereador e, portanto, contribuem significativamente os votos dos ndios para a deciso da eleio do Prefeito Municipal. Nessa relao de contato branco e ndio, ns, os Kur, aprendemos a utilizar os nossos votos a favor de nossos interesses. Na ocasio da campanha eleitoral de 1997, elaboramos um documento aos candidatos Prefeitura Municipal, com a reivindicao da implantao e continuidade do Ensino Fundamental na aldeia. Hoje j uma realidade a extenso de 5 a 8 sries na aldeia e, gradativamente, conforme a formao de professores indgenas avanar, poderemos continuar lutando para a implantao de segundo grau e, a longo prazo, no custa sonhar com a universidade indgena na aldeia.20

Se compararmos a gerao alfabetizada pelas escolas do S.P.I. e da FUNAI, ns temos os dados de que 70% dos Kur so alfabetizados, sabem ler e falar em portugus. Todos tm uma comunicabilidade razovel com os no-indgenas e 20% no lem e tambm no falam portugus, apenas o entendem com auxlio de uma traduo na lngua materna. E 10% falam, lem e escrevem isto , fazem o uso da oralidade e da escrita em lngua portuguesa e na lngua materna, conforme seus interesses e necessidades no dia-a-dia: so professores, agentes de sade, Chefe de Posto e presidente da Associao Indgena. Um dos avanos, tambm, a prpria reflexo enquanto agentes educadores indgenas, desde 1985. Dez anos depois, em 1995, realizamos, pela primeira vez, um seminrio sobre educao escolar Kur, para avaliarmos a nossa caminhada. E refletimos muito, na poca, o destino da escola: que escola queremos? Essa poca era o auge da implantao e discusso sobre a educao escolar diferenciada intercultural e bilinge e essa expresso era interpretada literalmente pelos professores como a escola do MEC, a escola que o MEC quer para os ndios. Eu confesso que levamos um bom tempo para entendermos a proposta do MEC, porque a nossa prtica de docncia nas aldeias e a proposta de uma educao diferenciada eram bem diferentes. Deparamos com esta situao quando comeamos a falar de ns mesmos. Na poca foi uma boa discusso, mas creio que esses impasses j foram sanados, na medida em que estvamos fazendo21

reflexo do nosso papel e do nosso compromisso com a nossa comunidade com objetivo de que um dia pudssemos exercer a nossa cidadania indgena. Um dos impasses e desafios o destino dos alunos depois que terminarem seus estudos das sries de primeiro grau nas aldeias, quando tero que sair das aldeias para dar prosseguimento aos seus estudos, em nvel de segundo e terceiro graus. Mas, da mesma forma que existem os impasses e desafios, creio que haver solues concretas, para que eles possam, futuramente, buscar e correr atrs de seus sonhos. O que eu quero dizer, finalmente, que entre os Kur j realidade que o professor indgena e desempenha bem o seu papel; ele tem compromisso com a sua comunidade. Mas importante lembrar sempre que, para estarmos nesse processo de educao escolar que considero avanado, muitas guas j passaram debaixo e em cima da ponte. Sempre que olhamos e falamos do passado, no com sentimento de que somos derrotados mas com sentimento de refazer, reconstruir, reescrever a nossa histria com olhos e pensamentos do presente, para que haja a perpetuao no futuro: o desejo o sentimento de ser sempre Kur.

Referncias BibliogrficasABREU, Capistrano. Os Bacaeris. estudos e ensaios. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1976.22

BARROS, Edir Pina de. KuraBakairi/Kura Karawa: dois mundos em confronto. Braslia: UNB, 1977. (Dissertao de Mestrado). ______.Histria e cosmologia na organizao social de um povo Karib: os Bakairi. So Paulo: USP, 1992. (Tese de Doutorado). GALVO, Eduardo. reas culturais indgenas do Brasil: 1900-1959. Boletim do Museu Paraense Emlio Goeldi, Belm, n.8, p.1-41, jan.1960. RIBEIRO, Darcy. Os ndios e a civilizao. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1970.

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A educao indgena estava muito fechadaGilda Kuit3A educao indgena estava muito fechada. Agora que comeam a descobrir, a levantar o pano da educao indgena. Eu me formei na escola Clara Camaro4; sou das primeiras turmas que se formaram para a educao bilnge. Faz vinte e cinco anos que eu estou em sala de aula. Eu gosto muito do que eu fao, no sei se vou me aposentar ou no, eu fico em dvida ainda. Pois agora vejo que o que ns aprendemos l nos anos 70, hoje que ns estamos apresentando. H uns cinco anos para c que comeamos a compreender. Ns temos outras professoras aqui que se formaram l: a Rosngela, a Maria Virgnia, que da minha turma. Ento a gente comea a compreender que agora que ns vamos aproveitar aquilo que a gente aprendeu. Os no-ndios pensam que a educao indgena a mesma coisa que a de vocs, mas

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Presidente da Associao dos Professores Indgenas da regio de Guarapuava (PR) professora indgena, alfabetizadora, nascida em Ibirama (SC), filha de pai Xokleng e me Kaingang. Fala fluentemente o Xokleng, o Kaingang e o Portugus.4

O Centro de Treinamento Profissional Clara Camaro funcionou na rea de Guarita (RS), entre 1970 e incio dos anos 80. Entre 70 e 73 formou trs turmas de monitores bilnges, por convnio entre a FUNAI, o Summer Institute of Linguistics (SIL) e a Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil. 24

muito diferente. Ns sofremos muito durante os anos. Eu estava ouvindo a Darlene falar, e ns tivemos a mesma experincia, da escola comear e depois fechar; eu mesma fui vtima disso. Ia uns meses, parava, e depois comeava. Mas ns estamos aqui, resistindo ainda. Ento, no Paran, a educao indgena est, assim, se movimentando. Tem pessoas nos apoiando, as parcerias, porque sozinhos ns no vamos fazer mesmo, difcil. S que, h alguns anos, as pessoas que faziam isso no faziam com seriedade, faziam porque era o servio delas, mas agora mudou, depois dessa lei que nos ampara (a Constituio Federal de 1988). Mas ainda encontramos resistncia das pessoas que no entendem, que acham que a criana indgena tem que ser ensinada como qualquer outra criana. No s as pessoas l de fora, mas dentro de nossa prpria equipe. Ns enfrentamos muito isso: coordenadora, secretria municipal de educao; se a gente vai falar, eles acham que a gente no quer dar aula, no quer ensinar. Mas, depois do encontro que tivemos agora, a secretria de educao veio pedir desculpas para mim. Tivemos um desentendimento no incio do ano, e agora ela veio dizer para mim: agora que estou entendendo essa resistncia tua, porque que voc dizia para mim que isso no ia dar certo. A partir desse encontro que tivemos dia 5 e 6 de julho. Ento eu acho que ns ndios estamos ganhando espao para fazer as pessoas entenderem. Porque at h pouco ns no tnhamos esse espao

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de chegar e dizer para as pessoas o que que ns queremos, de que que ns gostamos, o que a nossa realidade. Ns no tnhamos esse espao. As pessoas brancas, os professores, as pessoas responsveis pela sociedade indgena vinham, impunham: vocs tm que fazer isso e pronto. Ns sofremos muito com isso, ns, professores ndios. A liderana mesmo passava a achar que os professores ndios no iam ensinar bem, que quem ensina bem o professor no-ndio. Por que o meu filho ndio vai escrever a lngua indgena se ele no vai usar? Era esse o entendimento deles: Eu no aprendi porque eu no sei falar a lngua (portuguesa); ento o meu filho vai ter que aprender a falar para aprender a ler. Ento ns sofremos. Existem reservas 5 indgenas no Paran que acham que os professores indgenas no vo ensinar to bem quanto o professor no ndio. O ndio s fala a lngua, como que ele vai ensinar as coisas do mundo dos brancos? Mas com essa organizao que ns tivemos agora, faz um ano e meio que ns criamos a associao; isto , j foi criada antes, mas eu fui eleita agora faz um ano e meio. Ento a partir desse momento, ns professores indgenas estamos lutando para isso, para que os ndios, nossas comunidades, vejam o

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As denominaes das reas indgenas tm mudado: atualmente so chamadas, pelo rgo federal indigenista (FUNAI), de terras indgenas, sendo consideradas reservas indgenas apenas as reas adquiridas de particulares para assentamento de populao indgena. comum, no entanto, que as comunidades indgenas continuem utilizando as antigas denominaes de reserva e Posto Indgena (Nota dos Orgs.). 26

professor ndio como qualquer outro professor. Porque s vezes ns temos professor capacitado e o ndio no acredita nele. Eu acho que isso um mal. Os ndios em geral so assim, pelo que eu entendi do que Darlene falou. Eu pensava que eram s os ndios da nossa regio, mas agora eu percebo que no. Mas aos poucos vai mudando; levou 25 anos para a gente poder chegar nesse espao, a gente sofreu, a gente batalhou. Hoje eu me sinto como quase realizada, pois, a partir desse momento, os nossos professores novos que vo continuar aquilo que ns conseguimos. Na nossa escola mesmo, h colegas que acham que no se deve fazer educao diferenciada: mas como? como vou fazer isso?, ento difcil a gente enfrentar; tem que fazer duas coisas: fazer o ndio entender e o no-ndio tambm. No fcil, a nossa luta! Temos que dizer para o ndio: ns vamos ter que aprender igual o branco. Podemos saber igual o que o branco sabe, sendo ndio. No mesmo instante, ns temos que enfrentar as professoras no-ndias, que esto l junto conosco. Temos que dizer: agora ns vamos ensinar o ndio assim, voc vai ter que entender, a nossa realidade. Ento uma coisa difcil para ns. uma luta diria, pode-se dizer. Ento, em uma das reservas que ainda conserva a sua lngua indgena, sua tradio e os seus costumes, poucos falam Portugus; s vezes eu estou l na minha sala de aula e vem uma ndia e me diz: me leve l na enfermaria porque eu quero remdio, mas eu no sei contar o que eu tenho.

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Ento eu tenho que deixar a sala de aula e ir l junto, depois voltar. Ento a gente faz um trabalho assim que gostoso, tudo o que acontece a gente est vivendo. Com a Juracilda l, eu pude tambm descobrir muitas coisas que eu no sabia, que eu acho que vo servir muito para ns, nessa luta. A Secretaria de Educao, depois desse curso, est de acordo com o que ns vamos fazer; inclusive j fizemos at nosso calendrio, nosso planejamento. O Estado est lutando para publicar o currculo. Talvez demore ainda um pouquinho, mas esto se preparando. Parece que, com a educao diferenciada, a partir desse momento a gente vai construindo essa unio dos ndios com os no-ndios, ns vamos conseguir realizar muita coisa. Aqui mesmo tem ndios de vrias etnias, vrias aldeias e estados, uma coisa muito interessante a gente saber, pela conversa dela, que o ndio, como ele pensa, quase igual. Eu me sinto contente de ver que ainda existem pessoas que lutam a favor dos povos indgenas, da educao indgena, porque eu considero que os ndios so de uma resistncia muito grande, apesar desses 500 anos que vocs esto, agora, festejando. Para ns no festa no. Ento, eu vinha viajando, e meu filho veio junto. Desembarcamos do nibus e ficamos l, descansando. Eu disse para ele: voc j imaginou que quando minha av me dizia que os ndios foram daqui, eles desceram a serra, com certeza eram daqui, eu disse para ele. A gente v esses nibus, esse movimento, esse asfalto com essas construes a. Quantas vezes os ndios no passaram a na28

picada, para descer. Eles dizem que foram para Santa Catarina, os ndios Xokleng so de Santa Catarina. Os ndios so resistentes mesmo. uma reserva s que existe l, e falam a lngua; todos os filhos falam a lngua; inclusive eu me criei com os Kaingang, meus pais vieram morar com os Kaingang quando eu tinha um ano. Falo a lngua Kaingang e falo o Xokleng; ento d para ver que uma resistncia enorme. Ento, eu estava mostrando para ele: olha, os brancos esto festejando 500 anos de Brasil. E ns? Cad o mato? Ns vemos s essas construes a. Eles contentes, acham que os ndios esto contentes com isso. Mas ele no esto, no. Mas, no ? Toda essa destruio que o homem branco faz, destri tudo e o ndio continua aqui. E isso muito bom, quando o ndio se sente valorizado e sente que pode fazer alguma coisa pela sua comunidade e pela sua gente. Ento isso que eu tenho para apresentar para vocs: minha experincia como professora, j faz 25 anos. Eu aprendi, chorei bastante e tem momento que eu achava que no ia continuar mais, mas agora eu acho que devo continuar, porque agora que est ficando bom mesmo. Eu gosto muito de brincar; como Darlene disse: os ndios discriminam muito as mulheres; ento ns mulheres sofremos muito com isso. As mulheres no tm voz ativa, as mulheres tm que ficar quietinhas, as mulheres no podem dar opinio. Mas ns estamos vencendo isso tambm. No s com os homens brancos no; os homens ndios esto pior, eu acho.

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Comentrio de Rosa Helena Dias da Silva6Quando eu me apresentei, eu disse que tive o prazer de estar nos trs encontros [1995, 1997, 1999]. E eu queria retomar algumas falas do Professor Bruno Kaingang, l em 1995, e do Professor Orlando Makuxi, que pertence COPIAR, que a organizao dos Professores Indgenas do Amazonas. Tambm a COPIAR esteve participando ao longo desses trs encontros. a partir de algumas falas que, desde 1995, a gente comeou a pensar, em 1997 a gente retomou, e agora, atravs das falas da Darlene e da Gilda, a gente volta a pensar. No que sejam as mesmas questes, mas so ainda questes que nos perseguem, nessa angstia de tentar entender melhor o que so realmente essas escolas indgenas. Qual o papel do professor indgena? Qual o papel das assessorias? Como ficam as universidades nessa histria? O que que vocs esperam da gente? Essas so as questes do grupo, essas questes aparecem tanto na fala da Darlene como na da Gilda. A Darlene no destacou, mas eu queria destacar: ela a primeira Mestre indgena. Nessa busca da profissionalizao, que um outro ponto de interrogao, tem a experincia tambm da colega Xokleng/Kaingang. Enquanto vocs

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Doutora em Educao, professora da Universidade do Amazonas e assessora da COPIAM (ex-COPIAR). Excepcionalmente, inclumos esse comentrio, da gravao do encontro, por sua pertinncia. (Nota dos Orgs.). 30

estavam falando, eu fiquei conversando comigo mesma. Conversando com a experincia que eu acompanho, que a dos professores indgenas do Amazonas, Roraima e Acre, que agora em agosto vo realizar seu 12o encontro anual, e escolheram como tema justamente Educao Indgena na trilha do futuro: o Brasil que a gente quer, so outros 500. Pegando justamente o eixo das pedagogias indgenas enquanto pedagogias da resistncia, que vocs j citaram, e pegando tambm a escola indgena e o papel do professor indgena enquanto enfrentamento de situaes novas, que se colocam pela questo do contato. Isso ficou claro na fala das duas colegas: a escola chega com o contato, com professor branco. E da eu queria perguntar um pouco sobre essas questes que so para mim at um pouco polmicas, que acabam atrapalhando um pouco o avano dos modelos indgenas de escola, que so mais questes da nossa sociedade branca do que questes de vocs (aquela velha questo de que o problema dos ndios so os brancos e no os ndios). A questo da legislao, por exemplo, que a gente poderia considerar os grandes avanos de que a gente vive falando, mas que acabam sendo tambm impasses: a questo das exigncias da LDB, das exigncias que acabam caindo, de novo, no formato e no modelo. Eu queria falar com vocs se no seria o caso de a gente comear a trabalhar o que a gente levantou no encontro passado, de que escolas indgenas so sistemas indgenas de educao escolar e que no31

se esgotam no sistema indgena, seno que dentro de um sistema do educao maior [oficial brasileiro]. Como que eles vo se articular? Como dito na fala da Darlene, quando ela coloca: a escola de 1 a 4 existe [na aldeia], mas e depois? Vem dessa questo do atrelamento. A educao indgena o sistema Fundamental, pronto... Sai por baixo, todas as garantias diferena, e a diferena virou o qu? Detalhe, adaptao. Queria trabalhar com essa idia: sistemas indgenas de escola. Eu fui buscar l no texto o que o Bruno falava em 95. H uma fala de um professor Ticuna, o professor Aldio Ticuna, que diz assim: Se no tivesse branco no meio dos Ticuna, talvez at hoje no teria escola. Da o Bruno falou assim para ns, no COLE: a escola entrou como um corpo estranho. A escola entra e se apossa da comunidade, no a comunidade que seu dono. Hoje os ndios comeam a dar as regras para o jogo da escola. T, voc fica aqui, mas dessa forma. Temos leis que do respaldo, mas ainda no estamos sabendo usar. E uma fala de um grande colega nosso na assessoria do Movimento de Professores, que o professor Mrcio Silva. O Mrcio me falou uma coisa em 88 que me instigou e me deu vontade de estudar: a escola indgena para ser boa, precisa primeiro ser dos ndios. Eu queria que vocs avaliassem como fica essa questo de ser dos ndios mesmos. Ento, para citar o Orlando Makuxi, ele diz isso: precisamos pegar as regras, os mecanismos colocados de fora, no caso a escola, e fazer deles32

parte de nossa sociedade. Precisamos nos organizar como povo. Temos que preservar a cultura e a lngua, mas no podemos preservar a fome. O que o Orlando Makuxi est trazendo so questes novas. Ento por isso essa loucura o papel do professor indgena. Tem que trabalhar tanto com a tradio quanto com as questes novas. um desafio imenso, eu tenho o maior respeito pelos professores indgenas que esto aqui tentando pensar essa questo, mas me angustio muito ao pensar como que a gente pode contribuir nessa discusso de vocs. com muito respeito que eu trago esses questionamentos.

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Captulo 2A EDUCAO ESCOLAR EM NOVOS CONTEXTOS POLTICOS E CULTURAIS

Educao escolar indgena: um projeto tnico ou um projeto tnico-poltico?Wilmar da Rocha DAngelis7

Esta conferncia tem um ttulo que talvez precise ser esclarecido. E como o ttulo traz uma pergunta, esclarecer o ttulo talvez seja tudo o que eu tenha que fazer aqui, e com isso estar dito o que me foi proposto discutir. A primeira parte do ttulo : educao escolar indgena. Bem, quanto a isso parece que bem pouco precisa ser dito, em termos de esclarecimento. Mas,

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Lingista e indigenista, professor no Departamento de Lingstica do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e membro do Ncleo de Cultura e Educao Indgena da ALB (Associao de Leitura do Brasil).

ainda assim, sabendo que serei repetitivo para muitos, vou arriscar esclarecer o que entendo por essas palavras. Educao escolar uma expresso que muitas vezes substituda, em nossa sociedade, pela palavra ensino, ou ainda, por ensino escolar. Por um lado, temos um substantivo (educao) que aparece seguido de um adjetivo (escolar), e isso significa que no de qualquer educao que se est falando, e muito menos de toda a educao em uma sociedade indgena (lembrando que a palavra indgena est funcionando como outro adjetivo, que qualifica a expresso educao escolar). O adjetivo (escolar) restringe o termo educao (da mesma forma como funciona em outras expresses como material escolar ou merenda escolar), de modo que aqui somos chamados a discutir o problema da educao realizada na escola. Por outro lado, importante observar que a palavra escolhida para falar do que se faz na escola foi educao e no ensino, o que talvez d mais destaque s responsabilidades dos professores e de todo o programa escolar, porque este faz parte do sistema educacional de uma sociedade. No entanto, bom destacar que, embora nosso foco seja a educao escolar nas sociedades indgenas, no admissvel discutir isso sem fazer referncia educao indgena como um todo, uma vez que entendemos que o que se ensina na escola36

de uma sociedade indgena deveria ser aquilo que aquela sociedade deseja que se ensine. Dizendo isso em outras palavras: a escola como diversas outras formas de ensino faz parte do sistema educacional de uma sociedade (lembrando que, nenhuma sociedade, por mais nveis de ensino que possua, educa seus filhos apenas na escola). A educao das crianas, sua socializao na comunidade, se faz na famlia, pelo ensinamento dos pais, pelas palavras e histrias dos mais velhos e por muitos outros meios que a comunidade possua, inclusive pela escola (ou seja, tambm pela escola). Por que importante compreender isso? Em primeiro lugar, porque disso que se trata, quando se fala em educao diferenciada. Na verdade, se quer falar de escola diferenciada, para dizer que a escola em uma sociedade indgena no ou, pelo menos, no deveria ser igual escola da sociedade brasileira no-indgena, exatamente porque os valores e as necessidades educacionais da sociedade indgena so diferentes, e por isso sua escola ser diferente. Isso significa que o sistema educacional de uma sociedade est subordinado aos interesses gerais dessa comunidade. Em outras palavras, a educao faz parte das polticas que cada sociedade ou comunidade adota, buscando a sua sobrevivncia e a continuidade das coisas que ela valoriza e em que acredita (por

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exemplo: sua lngua, sua msica, sua religio, etc.).8 Isso nos permite desenhar um esquema como o seguinte:

Escola Sistema Educacional Polticas Em segundo lugar, importante compreender isso, porque exatamente nesse ponto, ou seja, na relao entre a educao escolar e as polticas da sociedade indgena para sua sobrevivncia, que se coloca o problema do tipo de programa escolar que se quer planejar e desenvolver: trata-se de um projeto tnico ou de um projeto tnico-poltico? Bem, chegamos segunda parte do ttulo, a que coloca exatamente essa pergunta. Para entender a pergunta, precisamos saber o que se est

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Na nossa sociedade, a educao escolar reflete muito das diferentes opinies, crenas, valores que as pessoas ou grupos de pessoas adotam. Por isso, h muitas escolas diferentes: escolas confessionais (catlicas, luteranas, batistas, judaicas, etc.), escolas comunitrias, etc. Por isso, tambm, em alguns lugares h escolas apropriadas para pessoas surdas, e em outros no, porque algumas comunidades (cidades, estados) valorizam a Lngua de Sinais e respeitam as diferenas entre as pessoas, enquanto outras comunidades do valor a uma suposta igualdade que no reconhece diferenas. preciso no confundir as expresses todos somos iguais perante a lei e no fazer excepo de pessoas, com a idia de que efetivamente as pessoas so iguais. H muitas diferenas na nossa sociedade (a comear pela diferena de classes), e no reconhec-las como reais uma38

entendendo por projeto tnico e o que se entende por projeto tnico-poltico. Vamos comear, novamente, tentando clarear o sentido das palavras e expresses que estamos usando. Em primeiro lugar, vamos pr nossa ateno na palavra projeto. Muitas comunidades indgenas, ou quase todas, j ouviram essa palavra com um significado bem diferente do significado que vamos usar aqui. O que as comunidades indgenas costumam ouvir pessoas de ONGs, de universidades, da FUNAI, falando em fazer um projeto para conseguir dinheiro para uma lavoura, ou para uma construo, ou para a escola indgena, ou para a publicao de um livro, e coisas assim. Nesse caso, as pessoas esto usando a palavra projeto para significar um documento escrito, onde se descreve uma atividade bem definida e se apresenta um oramento (quer dizer, uma previso de gastos),

sria dificuldade de compreenso da realidade. Da mesma forma, a proposio (legtima) de que se deve tratar as pessoas com igualdade, no significa trat-las de forma igual. Em muitos casos, a nica garantia da igualdade o tratamento diferenciado. Por exemplo: como dizer que um ouvinte e um surdo tem as mesmas oportunidades em nossa sociedade se o segundo no pode ouvir rdio e no tem acesso real a mais de 90% da programao televisiva? E, alm disso, quantos surdos podem iniciar seus estudos em sua lngua, quando a maioria dos ouvintes de fato tem essa oportunidade? As confuses conceituais (e polticas), no entanto, levam a propostas ridculas, como a da chamada incluso, que alegando necessidade de tratamento igual coloca surdos em salas de ouvintes. Por que a poltica da incluso no coloca os pobres nas escolas dos ricos?39

pedindo dinheiro de algum rgo do governo ou de alguma entidade do exterior para realizar aquilo. Mas aqui, hoje, ns estamos falando de projeto em outro sentido. Aqui, quando estamos usando a palavra projeto, estamos falando de um plano, um ideal colocado por uma sociedade, ou um grupo da sociedade, para o seu futuro. Numa sociedade capitalista, como a sociedade brasileira, h muitos projetos diferentes, ou seja, muitos planos de futuro diferentes, conforme os interesses das pessoas. Por isso, numa sociedade como a nossa, existem partidos polticos, porque os partidos so diferentes agrupamentos de pessoas que tm projetos para a sociedade, ou seja, cada partido tem, nos seus planos, um ideal de sociedade diferente. E, para conseguir esse ideal, cada partido usa recursos diferentes. Alguns preferem usar mentiras na televiso e no rdio, dizendo que querem acabar com as desigualdades no Brasil, e na verdade so os partidos que mais se beneficiam com a existncia de tanta pobreza e desemprego no pas. Um caso bem claro, por exemplo, o do PFL, que todo mundo conhece, que o partido do Antonio Carlos Magalhes, do Bornhausen, e outros desse tipo, e que o partido do vice-presidente da Repblica. Outro partido que costuma mentir, dizendo que quer uma coisa, quando na verdade o seu projeto outro, o PPB do Paulo Maluf, que tambm apia o governo Fernando Henrique. Partidos como esses so chamados conservadores, porque o projeto deles conservador; quer dizer, eles querem conservar a sociedade do jeito que est, com as desigualdades40

que ela tem, garantindo que os privilegiados continuem com seus privilgios. Tem tambm o PSDB, por exemplo, que outro partido que est no governo do Brasil, e que o principal responsvel pela poltica econmica atual que vem trazendo mais dificuldades para a nossa populao. Alguns chamariam esse partido de reformista, porque o projeto dele, o ideal de sociedade que eles tm no de mudanas nas estruturas da sociedade. Ou seja, o PSDB no quer mudar a forma capitalista de organizar a sociedade brasileira, e o projeto dele no acabar com as condies que geram a fome e o desemprego. Mas o projeto dele um pouco diferente dos conservadores, porque esse partido pretende fazer reformas muito pequenas, pequenos ajustes na situao, algumas vezes apenas para aliviar as presses dos mais pobres (por exemplo, com a caridade da Comunidade Solidria). Pode-se dizer que a estratgia deles mudar um pouco para que tudo continue como est, ou seja: os que ganham muito vo continuar enriquecendo, e os pobres vo continuar dando seu trabalho em troca de muito pouco. Um projeto bem diferente o dos partidos chamados de esquerda, porque eles querem que a sociedade seja reorganizada de maneira bem diferente do que est hoje. Os projetos revolucionrios so os que no querem conservar as coisas como esto, nem simplesmente fazer reformas, mas querem mudanas profundas na sociedade. Um partido com um projeto revolucionrio tem o plano de construir um ideal de sociedade diferente, mudando as prioridades na aplicao dos recursos pblicos e governando em benefcio da maioria da populao, e41

no apenas para o benefcio de uma minoria privilegiada. Bem, com isso, fica claro o sentido em que estamos usando aqui a palavra projeto. E fica claro, tambm, o que um projeto poltico: um projeto poltico um plano de futuro para uma sociedade; um plano de futuro idealizado e defendido por um grupo de pessoas dentro dessa sociedade. Quando a sociedade mais unida, e no est dividida em classes sociais como a nossa, o seu projeto poltico pode ser um s, e todo mundo acredita nele. o que muitas vezes ns chamamos de projeto histrico. Toda sociedade tem um projeto histrico, mesmo que muitas vezes as pessoas nem percebam como ele foi constitudo e como elas embarcaram nele, digamos assim. Por exemplo, em nossa sociedade, a maioria das pessoas gasta cada vez mais energia eltrica, comprando cada vez mais aparelhos eletrnicos e usando cada vez mais certos recursos, como os computadores, etc. O que as pessoas que fazem isso no percebem que, para gerar a energia que cada vez mais gente consome no Brasil, preciso construir mais e mais hidreltricas, que vo alagar mais e mais terras, expulsando agricultores da lavoura ou inundando cada vez mais reas indgenas. Assim, sem mesmo perceberem, todas essas pessoas esto dando a sua parte na definio de um projeto histrico-poltico para o Brasil; e o projeto que elas esto ajudando a implementar, na prtica, um projeto que destri muitas comunidades e prejudica cada vez mais o meio-ambiente.42

O que acontece que, em sociedades como a nossa, onde h minorias que se beneficiam e enriquecem custa do trabalho da maioria9, existem aqueles projetos polticos diferentes, em constante disputa, mas existe sempre um projeto dominante, um projeto que consegue ganhar (ou forar) o apoio da maior parte das pessoas, mesmo que seja atravs da manipulao e de muitas formas de enganar. Isso se reflete na maneira como as pessoas votam ou deixam de votar (ou so obrigadas a votar) nas eleies; no tipo de programa que elas gostam de assistir na televiso ou ouvir no rdio, e em muitas atitudes que as pessoas tomam no dia-a-dia da sua vida. No incio dos anos 70 no Brasil, por exemplo, apesar de haver opositores, e apesar da luta dos partidos revolucionrios, a ditadura militar conseguia ter o apoio da maioria da populao brasileira, mesmo que isso tenha sido conseguido com muita censura imprensa e com o apoio declarado da Rede Globo, de muitas rdios e de vrios setores influentes. Aqui, portanto, est um ponto muito importante para tentarmos responder pergunta que est no ttulo dessa conferncia: ningum, na sociedade brasileira, escapa de estar apoiando algum projeto poltico. Em outras palavras: cada pessoa que vive no Brasil ou est apoiando e ajudando a sustentar o projeto poltico dominante (que ns sabemos que feito pela aliana dos conservadores com reformistas), ou est claramente apoiando um9

Seja pela explorao direta, seja pela manipulao dos recursos pblicos.43

projeto poltico diferente, que se oponha ao projeto dominante. No existem pessoas neutras numa sociedade em que existem disputas polticas como acontece na nossa. At o sujeito que anula seu voto, pensando que isso uma atitude de neutralidade, no percebe que, com isso, muitas vezes pode ajudar a manter a poltica dominante. Se no existem pessoas neutras, tambm no existem grupos e minorias neutras. Cada povo indgena, cada minoria lingstica, que vive dentro do territrio chamado brasileiro (a no ser que ainda esteja isolada na floresta) mantm relaes com a chamada sociedade nacional, integrando-se de alguma forma (e em alguma medida) nela. Assim sendo, os povos indgenas, por tambm participarem das relaes sociais, polticas e econmicas com a sociedade nacional brasileira, acabam sempre apoiando ou sustentando algum projeto poltico nessa sociedade. E aqui se coloca, ento, o problema da escolha por um projeto tnico. O que significa isso? Um projeto tnico um projeto histrico elaborado com referncia a um grupo ou grupos tnicos, ou seja, a uma ou vrias etnias. Uma etnia, como sabemos, um grupo de pessoas de uma mesma origem10, que partilham uma mesma identidade, se reconhecem e so10

A origem comum elemento importantssimo para o sentimento (ou reconhecimento) de pertena a um grupo tnico, ainda que esta no seja necessariamente uma origem biolgica comum (o que lembraria o conceito de raa, h bastante tempo abolido do vocabulrio das cincias sociais). Trata-se, o mais das vezes, do reconhecimento de uma origem 44

reconhecidos como um grupo ou comunidade humana diferente das demais11. Pois bem. Estou chamando de projeto tnico um tipo de projeto histrico de um grupo tnico (indgena ou no) que se baseie no fato de que as diferenas entre aquele grupo e os brancos so diferenas de origem, em geral tambm vistas como diferenas culturais e lingsticas 12. Os defensores

histrica comum. Em muitas sociedades indgenas ou outras minorias semelhantes, um indivduo pode ser considerado membro do grupo, apesar de sua origem biolgica reconhecidamente distinta (inclusive, muitas vezes, quando essa origem est no grupo social dominante), desde que efetivamente adotado e integrado no interior do grupo (como em casos de adoo de rfos, rapto de crianas etc.). No me parece, no entanto, que as adeses voluntrias e converses de f (por exemplo, ao judasmo, ao islamismo, ao budismo etc.) possam dotar o indivduo de uma identidade tnica socialmente aceita (freqentemente, nem para a unanimidade do grupo ao qual aderiu, nem para os outros grupos com o qual ele se relaciona). Como lembra Giralda Seyferth, Etnia tem sido um termo dos mais usados nos mais diversos contextos das cincias sociais, mas, inexplicavelmente, ou por causa de sua ambigidade, nunca recebeu uma conceituao mais elaborada. um termo que no se encontra nos dicionrios e enciclopdias de cincias sociais mais conhecidos (Dicionrio de Cincias Sociais. [2a. ed.] Rio de Janeiro: Fundao Getulio Vargas, 1987. Verbete Etnia, pg. 436). Atualmente segundo a mesma autora a classificao etnia se estende a praticamente todas as minorias que pretendem o direito de manter um modo de ser distinto; algumas delas, inclusive, reivindicam tambm sua independncia poltica. s vezes junto, s vezes em oposio idia de que uma etnia tem uma origem comum, sugere-se que uma etnia composta por pessoas que partilham uma cultura comum. No entanto, parece melhor, para atender diversidade de situaes em que grupos humanos reivindicam uma identidade comum, no incluir-se essa exigncia na definio, ainda que alguns ou vrios elementos culturais comuns costumem ocorrer nos grupos tnicos. Por exemplo: se admitirmos que exista algo como uma etnia brasileira, em termos bem gerais (ainda que exclussemos dela muitos grupos de ascendncia estrangeira recente, como italianos, alemes, libaneses, ucranianos, japoneses, palestinos etc.), quantas diferenas culturais no observaramos entre um brasileiro (caboclo, diramos no Sul - numa acepo diferente desse termo para o Norte do Brasil) da costa do rio Uruguai, no Rio Grande do Sul, de um brasileiro do sul da Bahia, ou de um brasileiro ribeirinho do Acre? 4512 11

de um projeto tnico acreditam que as dificuldades de sua etnia (povo indgena, por exemplo) se resolvero com mais escolas, com mais e melhor ensino escolar para suas crianas, e com maior habilidade para lidarem com as situaes interculturais. Quando esto engajadas em um projeto tnico, as pessoas acreditam que sua luta para conquistar espaos da sociedade dos brancos que as discrimina, e em geral pensam que isso se faz pelo esforo e capacidade de cada um, ou seja, acabam transformando uma situao poltica, econmica e social coletiva em uma questo praticamente individual. O caso mais extremo de um projeto tnico quando as pessoas daquele grupo passam a praticar a discriminao e o preconceito invertido: ou seja, passam a acreditar que o simples pertencimento a uma etnia diferente daquela dominante (isto , o simples fato de ser um nobranco) faz delas pessoas melhores que as pessoas da sociedade que as domina. Um projeto tnico , afinal, um projeto de pessoas com pouca ou nenhuma compreenso da forma como se constituem as relaes de poder numa sociedade como a nossa13. Por isso possvel, em um projeto desse tipo, que os lderes apelem para que as pessoas no olhem para as diferenas que existem entre elas mesmas e, principalmente, no critiquem o apetite pelo poder

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No devemos deixar de considerar a situao (alis, bastante comum) na qual os formuladores de um projeto tnico de fato tm um projeto poltico prprio e bem definido (que fica secreto), mas que para bem execut-lo, constrem um projeto tnico como forma de iludir os ingnuos e conquistar seu apoio. 46

ou o apetite econmico de alguns dentro do grupo, em nome de manter uma unidade que deveria ser valorizada acima de tudo. Exatamente por esse motivo, um projeto tnico bastante sujeito manipulao poltica 14. Alis, h um bom par de anos escrevi, em um outro texto: A participao dos povos indgenas no processo revolucionrio que transformar a sociedade brasileira (...) seria por demais frgil e pouco consistente se fundamentada to somente numa conscincia tnica. Na verdade seria impossvel, se o fundamental (...) que essa participao seja consciente. Se no h conscincia poltica e mesmo assim h participao/engajamento no processo poltico, ento evidentemente est ocorrendo manipulao (que tanto direita quanto esquerda sabem fazer)...15

Afinal, que tipo de projeto interessa educao escolar indgena?Agora j podemos voltar pergunta do ttulo, e sugerir uma resposta a ela. Vou escolher uma

14 A propsito, o que o projeto do governo brasileiro, em parceria com a Rede Globo de Televiso, para comemorao dos 500 anos de Brasil? Um projeto tnico, para afirmao de uma brasilidade pentacentenria? Ou um projeto poltico? muito importante conseguir responder bem a essa pergunta. Ela nos faz perceber que no existe projeto tnico que no seja tambm um projeto poltico, apenas as massas manipuladas que no percebem isso, e carreiam gua para moinhos alheios.

Os povos indgenas: conscincia tnica e conscincia poltica. Publicado na revista Perspectiva, da Fapes/Erechim-RS, junho de 1983, n 25, e no jornal Porantim, do Cimi/Braslia-DF, outubro de 1983, n 56. 47

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resposta no sentido de uma proposta. Isso quer dizer que, ao invs de discutir e analisar como so hoje as escolas e os programas escolares nas comunidades indgenas, eu vou sugerir o que eu penso que elas deveriam ser. Primeiramente, se no fui bastante claro antes, quero esclarecer agora que, na discusso entre definir-se por um projeto tnico ou por um projeto tnico-poltico, nem estou admitindo a possibilidade de que o projeto poltico indgena seja um projeto conservador ou reformista. No que isso no exista. Ao contrrio, existem projetos conservadores assumidos por ndios, e de fato isso acontece em muitos lugares do Brasil: todos ns conhecemos lideranas, autoridades indgenas e diversos ndios que optaram por reproduzir, na comunidade indgena, as mesmas diferenas de classe que existem na sociedade brasileira. claro que esses ndios conservadores costumam integrar o grupo dominante e privilegiado dentro de suas comunidades: so os que dominam a poltica e a entrada de recursos na comunidade; ocupam os postos e cargos remunerados mais importantes, como funcionrios da FUNAI ou da Prefeitura; e muitas vezes esto bastante envolvidos com os polticos conservadores brancos do seu municpio. Vejam bem: no estou dizendo que todo ndio que seja funcionrio ou assalariado defender obrigatoriamente um projeto conservador. Mas verdade que, entre os ndios que assumem e defendem um projeto conservador, muitos so48

assalariados do Estado. No porque esto em cargos do governo (como as pessoas costumam dizer), que eles so conservadores, mas bastante comum que se tornem conservadores porque vivem uma situao diferente e privilegiada em relao maioria dos ndios: eles tm um ganho (salrio) garantido todo ms, anos a fio, e tm a perspectiva de aposentar-se com um bom salrio para viver dele para o resto da vida. bem verdade o que ensinava, h mais de 100 anos, um revolucionrio alemo: a nossa prtica social (quer dizer, nosso dia-a-dia e as relaes sociais e de trabalho das quais participamos) condiciona bastante a nossa forma de ver o mundo e de avaliar as coisas. Um exemplo bem recente e bem tpico de uma autoridade indgena que assumiu um projeto conservador o de um cacique Kaingang, em uma rea indgena de Santa Catarina. Sua famlia (seus irmos, primos e cunhados) dominava a rea indgena, com uma poltica repressiva contra qualquer ndio que fizesse oposio. Com isso, usavam em benefcio prprio todos os recursos da comunidade, desde carros e mquinas agrcolas at os recursos naturais, como madeiras e pedras semipreciosas. Alm disso, seu grupo beneficia-se com o arrendamento das melhores terras de plantio da comunidade. O cacique tinha, tambm, mais de um mercado dentro da rea indgena (inclusive, explorando os aposentados, como fazem outros bodegueiros da regio). Finalmente, esse cacique estava bem integrado na poltica regional, sendo que a rea indgena representa uma parcela muito grande49

do eleitorado de um pequeno municpio que foi criado em volta dela. Assim, elegeu-se vereador pelo PMDB, controlando os votos da comunidade como um verdadeiro curral eleitoral (como se costuma dizer), e chegou a articular sua candidatura a presidente da Cmara. E, como uma parte importante da terra indgena, tomada dos Kaingang h 50 anos, e ainda hoje reivindicada pelos ndios, hoje patrimnio de grandes proprietrios ligados ao PMDB, ele nunca levou adiante as iniciativas propostas pela comunidade para recuperar aquela rea. Para concluir, vale dizer que ele possui a casa mais imponente e mobiliada da rea indgena, sendo o primeiro ndio da regio a possuir sua antena parablica. Em resumo: esse um exemplo bem claro de um grupo de ndios que assumiu um projeto poltico conservador, porque se beneficia diretamente dele e se torna, assim, um grupo privilegiado e dominante em sua rea. Em alguns casos, lideranas ou autoridades indgenas que se desenvolveram assim tornaram-se importantes figuras polticas para outras reas indgenas da sua regio, conquistando outros apoios dentro e, principalmente, fora da rea indgena, para ter mais poder e influncia. o caso, por exemplo, do professor e funcionrio da FUNAI, Pedro Seg Seg, que coordena, no Paran, uma organizao indgena que os brasileiros chamariam de pelega. H muitos outros, pelo Brasil afora, do mesmo tipo, que todos ns conhecemos. Mas, bom lembrar, no so apenas aqueles que se beneficiam pessoalmente que defendem um projeto conservador. Muita gente que no ganha nada50

com isso acaba defendendo esse estado de coisas, simplesmente porque no imagina que a sociedade possa ser organizada de forma diferente, ou at por razes de sua tradio cultural, que d muito valor e respeito aos caciques e autoridades, por exemplo. H outros, ainda, que embarcam na canoa furada de um projeto conservador exatamente porque acreditam em um projeto tnico: so aqueles que tm uma compreenso poltica limitada e acreditam que um ndio bem sucedido (seja como empresrio, seja como poltico regional) uma coisa da qual todos os ndios se deveriam orgulhar, assim como muito brasileiro assalariado orgulha-se de termos, no Brasil, um grande empresrio como Antnio Ermrio de Moraes16. O limite extremo dessa posio a de quem acredita que trabalhar para um patro ndio melhor que trabalhar para um patro branco. Pois bem, eu dizia que esse tipo de posio conservadora existe, e at bastante comum em sociedades indgenas pelo Brasil afora. No entanto, no essa posio que defendo, primeiro porque acredito que nenhum projeto conservador pode representar os interesses da coletividade de uma sociedade indgena. Segundo, porque entendo que todo projeto conservador s tem compromissos com os

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Isso tambm explica, por exemplo, porque os ndios no Brasil, de qualquer etnia, costumavam admirar (ou ainda admiram) o Mrio Juruna, Xavante que foi o primeiro indgena a se tornar Deputado Federal. Independentemente de qual fosse sua posio poltica e do papel que representasse na poltica brasileira, a perspectiva tnica (despolitizada) levava a que fosse admirado como ndio bem sucedido, ndio que branco respeita, ndio que ocupa lugar importante de branco e coisas assim que, embora jamais ditas pelas pessoas com essas palavras, traduzem o sentimento que justificava seu poder de provocar admirao. 51

interesses econmicos dos grupos dominantes17, e a nica circunstncia na qual esse tipo de projeto pode vir a apoiar um movimento tnico (seja ele indgena ou no) quando isso trouxer aos grupos dirigentes algum benefcio econmico, ou algum benefcio poltico que gere benefcios econmicos. E o inverso tambm previsvel: toda vez que uma reivindicao tnica contrariar interesses econmicos dos grupos dirigentes (ou interesses polticos que esto ligados a interesses econmicos dos grupos dominantes), ela certamente ser rechaada e, conforme o caso, at reprimida18. Em outras palavras, um projeto tnico cabe dentro de um projeto poltico conservador, desde que no contrarie os interesses dos grupos dominantes.19 Nesse caso, voltamos nossa pergunta do ttulo, que agora precisa ser mais especificada: a educao escolar indgena faz parte de um projeto

17 No nosso caso, so os setores privilegiados da sociedade dos brancos e, dentre eles, aqueles que esto vinculados ao chamado capital transnacional.

Vale lembrar que, h alguns anos, na vigncia da ditadura militar, o SNI (Servio Nacional de Informaes) impediu o registro de uma organizao que se chamou UNI - Unio das Naes Indgenas. O motivo da proibio era a compreenso dos militares de que a idia de naes indgenas era incompatvel com a unidade nacional brasileira, sendo por isso considerada subversiva da ordem nacional. Essa ainda a viso militar e, tudo indica, a posio geral do governo brasileiro.19

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Poderia acrescentar um terceiro motivo, pessoal, para recusar a posio conservadora: porque penso que os ndios que defendem um projeto conservador no precisam de apoios como o meu; ou eles se articulam com os que tm dinheiro e poder na sociedade regional (o que no o meu caso), ou se integram nesse projeto como pees e subalternos explorados, e para conseguirem isso podem dispensar qualquer ajuda. 52

tnico ou deve integrar um projeto tnico-poltico revolucionrio? Como sugeri no incio, esclarecer o ttulo talvez seja tudo o que eu tenha que fazer aqui, e com isso dizer o que me foi proposto discutir. Depois desse longo percurso, acredito que no s esclareci como eu entendo o significado das palavras presentes no ttulo, mas, tambm, como eu entendo que essas palavras se articulam para sugerir uma reflexo a respeito dos caminhos da educao escolar indgena. Por isso fui capaz de reescrever o ttulo, numa forma mais longa, mas que me parece mais esclarecedora: A educao escolar indgena faz parte de um projeto tnico ou deve integrar um projeto tnico-poltico revolucionrio? Sou dos que acreditam que uma pergunta bem formulada j nos d metade da resposta; ou, pelo menos, a forma mais garantida de encontrarmos a melhor soluo. Para essa pergunta, assim reformulada, sugiro a seguinte resposta: As limitaes dos projetos tnicos de fato impedem que eles sejam o caminho da conquista de verdadeira autonomia dos povos indgenas. Isso talvez explique porque no Brasil ainda no existe um movimento indgena autnomo (essa a minha avaliao, ainda que um tanto provocadora). Por outro lado, como j se discutiu, projetos polticos conservadores subordinam qualquer movimento ou53

organizao indgena aos interesses da classe dominante (que se beneficia das desigualdades sociais e do controle do Estado brasileiro). E nunca demais alertar que as presenas de misses religiosas quase sempre esto vinculadas com perspectivas polticas conservadoras. Concluo, portanto, que apenas um projeto poltico transformador (ou revolucionrio, como queiram) pode ser do interesse das sociedades indgenas, se elas desejam conquistar alguma autonomia de fato. No estou negando que muitas pessoas, e at comunidades indgenas inteiras, desejem desistir de qualquer projeto poltico prprio, e tornar-se uma comunidade plenamente subordinada nao e ao Estado brasileiro, simplesmente como mais uma comunidade rural brasileira. Isso uma deciso delas (embora, verdade, na maioria dos casos esta seja uma deciso praticamente imposta pelas condies de dominao, opresso e destruio que sofreram ou sofrem de parte dos brasileiros nondios, inclusive e sobretudo por meio dos governos e de muitas misses). O que estou dizendo que aquelas comunidades indgenas que alimentam o sonho de uma educao diferenciada, porque do valor sua identidade prpria de povo indgena e desejam manter ou defender sua cultura, seus valores, ou alguma autonomia enquanto sociedade diferenciada, para essas comunidades no existe alternativa seno integrar-se em um projeto poltico transformador, porque um projeto simplesmente tnico, ou um projeto poltico conservador, s podem levar manipulao por interesses de outros.54

Por outro lado, no estou sugerindo apenas uma adeso a um projeto poltico transformador pronto e acabado, porque corre-se o risco, tambm nesse caso, de servir de palanque para os outros, como se diz. A nica forma de construir um programa escolar realmente indgena que sirva ao futuro dessas sociedades com a busca de uma maior conscincia poltica, ou seja, com a busca de conhecer como funcionam e como se distribuem as relaes de poder na sociedade majoritria. Compreender isso perceber, entre outras coisas, que o poder no monoltico, ou seja, no um bloco inquebrvel concentrado em um lugar nico (e normalmente se pensa que esse lugar o governo). O poder s se concentra quando muitas pessoas ou grupos de pessoas abrem mo dele, e deixam que uma pessoa s ou um pequeno grupo concentre em si um poder que era de todos. Toda vez que preferimos deixar outros nos representarem, ou tomarem decises por ns; ou toda vez que aceitamos que outros decidam o que melhor para nossa vida, para nossa sociedade ou para os nossos filhos, estamos nesses casos abrindo mo do poder que nosso e deixando o poder se concentrar em alguns grupos. Resta responder: e o lugar do tnico nesse projeto? Respondo com um trecho de um outro texto meu, escrito h alguns anos: A questo indgena vai alm da luta pela mudana nas relaes de classe; e no campo da luta partidria, a questo indgena ultrapassa os partidos.55

Porm, ir alm e ultrapassar supe passar por, e algo mais. Ou seja, o componente tnico da luta indgena no dispensa, no anula, nem pode omitir o componente scio-econmico e o componente poltico classista que tambm est presente nela.20 Concluo com palavras da conhecida Declarao de Barbados, que faz ecoar a voz de Paulo Freire: preciso ter em conta que a libertao das populaes indgenas realizada por elas mesmas, ou no libertao.21

20

Panorama da produo indigenista no Brasil. Indito, 1991, p. 5 (ligeiramente adaptado). Fica bvio, me parece, que o que pretendo enfatizar nessa passagem a relao (e participao) necessria do projeto tnico-poltico em um projeto poltico mais amplo, e que esta mediao, em nossa sociedade, passa por partidos polticos em algum momento, quando se coloca a questo da disputa do poder poltico representado no Estado. A objeo de que no se deve partidarizar a questo indgena prpria de certas correntes do meio acadmico, mas est longe da realidade do indigenismo.

21

Declaracion de Barbados - Por la liberacin del indgena. In: Por la liberacin del indgena. Buenos Aires, Ediciones del Sol, 1975, p. 29. 56

Educao escolar entre os Pareci, Nambikwara e Irantxe no contexto socioeconmico da Chapada dos Parecis, MTDaniel Matenho Cabixi22Para que haja um entendimento mais prximo da educao escolar, em novos contextos polticos e culturais, eu gostaria de falar rapidamente sobre a minha experincia individual em termos da aprendizagem em uma escola de brancos, que num primeiro momento se deu na misso dos padres jesutas de Utiariti, da minha primeira infncia e segunda infncia at a adolescncia. Com dois anos eu fui tirado da aldeia e fui levado para esse patronato dos padres jesutas. Tanto verdade que eu no tive oportunidade de crescer junto com a minha me, com os meus parentes, com os meus tios, com os meus avs, com os meus bisavs, na aldeia, e isso criou uma ruptura muito grande em termos do meu conhecimento das tradies do meu povo. Foi uma perda da qual eu me ressinto muito, hoje em dia ainda. Mas, se por um lado eu perdi, eu no devo negar que, por outro lado, tambm, ganhei. Eu adquiri conhecimentos de vrios livros, e a escola onde estudei, apesar de alienante, me deu subsdios para que eu pudesse,

22

Da nao Pareci. Administrador da FUNAI em Tangar da Serra, Mato Grosso. 57

posteriormente, entender melhor as circunstncias em que eu fui criado; e me deu oportunidade, tambm, de eu entender melhor as necessidades do meu povo, as mudanas em andamento e, tambm, fez com que eu me engajasse definitivamente nessa luta, nesse trabalho que de lutar junto ao meu povo e s demais etnias da minha regio, das quais cito os Nambikwara, os Pareci e os Irantxe, que so trs grupos tnicos distintos que habitam a regio. O ecossistema onde se localizam esses povos muito semelhante, sendo regio de cerrado, de chapadas, com nascentes de muitos rios. Inclusive, ns habitamos a regio que o divisor das guas da bacia Amaznica e da bacia do Prata. Ento, h uma caracterstica muito particular, muito especfica do ecossistema geogrfico da regio, e esses trs grupos, hoje, vivem uma situao em termos econmicos, em termos sociais, em termos polticos, em termos culturais muito prxima, e tudo o que irei dizer aqui estar relacionado diretamente realidade desses trs povos. Quando se fala da educao escolar, tem-se um leque de muitas nuanas, muitas sobreposies de questes que, s vezes, at chegam a confundir a cabea da gente, porque a gente adentra num campo de conceitos cientficos, tcnicos, antropolgicos, que s vezes para ns so bastante incompreensveis e de difcil entendimento. Algum falava, ontem, se havia necessidade de ns, os indgenas, ingressarmos na escola Fundamental, no Ensino Mdio e no terceiro grau quer dizer, em58

nvel de faculdade , para que ns, indgenas, pudssemos ter a capacidade mais eficaz de atuarmos juntos, mais coletivamente, com maior eficincia e um maior resultado na nossa interferncia, na nossa atuao junto aos nossos povos, junto s nossas escolas e junto s nossas organizaes. Eu acho que, no presente momento, essa uma estratgia que tem que ser adotada por ns, pelo menos como estratgia do momento. Eu tive oportunidade de conversar agora, antes da conferncia, com o Daniel Munduruku, e ele me dizia do seu projeto de trabalho que est sendo implementado aqui em So Paulo, na questo da relao com as escolas, faculdades e programas educativos, projeto que me chamou muito a ateno, em funo de que tambm ns, em Tangar da Serra, estamos com um projeto junto s escolas da regio e, principalmente em Tangar da Serra, com os alunos que saram da aldeia, onde fizeram at a 4 srie, e ingressaram nas escolas brancas da cidade, em razo de no haver, na aldeia, o prosseguimento da 5 8 srie. Ento, eu vejo que existe de fato essa necessidade de que ns adquiramos tambm esses conhecimentos para que ns possamos estar tecnicamente e profissionalmente capacitados para podermos produzir e atuar com maior eficcia junto aos nossos povos. Para argumentar sobre os novos contextos polticos e culturais, eu gostaria de fazer um breve histrico do povo Pareci, para situar em relao ao passado, o presente e a perspectiva para o futuro do povo Pareci e dos Irantxe.59

A Chapada dos Parecis um territrio de aproximadamente 6 milhes de hectares, uma rea extensa, que o territrio tradicional dos ndios Pareci, dos Nambikwara e dos Irantxe. Num primeiro momento histrico houve o trabalho do extrativismo florestal e mineral, nos idos de 1700, quando foi descoberta uma mina aurfera em Diamantino, localizada exatamente dentro do territrio tradicional do povo Pareci, que era composto por trs distintos subgrupos: os Kaxniti, os Kosrini e os Waimare. E, em outro momento, a extenso das linhas telegrficas, feita pela expedio do Marechal Rondon, cruzou o territrio Pareci. Mais ou menos na mesma poca, comeam a adentrar o territrio Pareci as misses jesuticas e as misses de seitas protestantes, que entraram para evangelizar e catequizar os ndios. E, depois, veio a fase da introduo das estradas, principalmente a BR-364, que liga Cuiab a Porto Velho, e que cortou praticamente o corao do territrio tradicional Pareci e dos ndios Nambikwara, como tambm dos ndios Irantxe. E podemos tambm dizer que os Pareci foram submetidos ao dos poderes pblicos governamentais atravs da FUNAI, atravs do SPI e tambm atuao de organismos nogovernamentais, j nos idos de 1970. E, para chegar questo, eu gostaria de relatar aqui sobre as escolas que foram implementadas na rea Pareci e em toda regio. Num primeiro momento, foram criadas duas escolas no territrio Pareci, foi criada escola na terra dos Irantxe, cujos professores no tinham muito preparo60

em termos de capacitao profissional, em termos de conhecimentos, em termos de formao pedaggica, em termos de capacidade para produzir os currculos para as escolas. Simplesmente foi introduzido o modelo de ensino que as misses adotavam em Utiariti, modelo esse que foi desestruturador, que no reconhecia as culturas indgenas inclusive Utiariti era um lugar em que foram absorvidas umas oito etnias diferentes, e onde era proibido falar-se as lnguas indgenas, fazer as manifestaes das nossas culturas, sendo o nosso nico instrumento de comunicao a lngua portuguesa, com todas as conseqncias que todo mundo aqui sabe, j que a maioria aqui trabalha com ndios e conhece as conseqncias desse tipo de atuao. O importante para mim esclarecer a vocs que esse modelo de ensino trouxe uma desestruturao cultural, uma desestruturao ideolgica, poltica, social e, eu diria, at econmica, porque a gerao de adultos de hoje, que passamos pelas escolas da misso, hoje a gente percebe que sente uma dificuldade enorme em restabelecer os laos com a tradio antiga; perdeu a capacidade de iniciativa, de buscar junto aos ancios que detm o conhecimento tradicional, e de restabelecer novamente, dentro das circunstncias de hoje, uma nova estratgia de recuperao da cultura. E tambm, nesse processo de desagregao das culturas, houve o incentivo dos prprios missionrios de fazerem os casamentos intertribais, quer dizer, houve uma mesclagem muito grande por casamentos61

de diferentes etnias e hoje ns encontramos aldeias em que h adolescentes hoje que so filhos de Rikbktsa com Nambikwara, Nambikwara com Pareci, Pareci com Irantxe, Irantxe com Kayabi e assim por diante. Quando se pensa, hoje, em fomentar uma escola para essa realidade, a fica o paradoxo: em que lngua ensinar? Que cultura introduzir dentro dessas escolas? Uma vez que no se falam mais as lnguas, uma vez que as prprias crianas no tm um referencial: eles no sabem se eles so Pareci, se so Irantxe ou Nambikwara, ou se so Kayabi. Quer dizer, houve uma indefinio de personalidade tnica e isso muito prejudicial no contexto atual dessa realidade, como conseqncia dessa escola das misses tradicionalistas. E, quanto aos aspectos da restruturao scio-poltica desses grupos que foram afetados diretamente por esse programa de ensino, muito preocupante verificar que, quando se fala de um projeto tnico, no existe um parmetro de referncias que possam dizer que os Irantxe hoje tm um projeto tnico ou um projeto tnico-poltico. Ento, a gente no consegue perceber com clareza e com nitidez para onde esto caminhando esses grupos indgenas, enquanto existem, hoje, outras realidades em que os ndios conseguem ver com maior clareza essa questo de um projeto tnico e de um projeto tnico-poltico para os seus povos. Ento, dentro dessa realidade, os prprios professores ndios e os prprios alunos querendo62

aprimorar os seus conhecimentos e trabalhar com maior nfase a questo da educao nas escolas, que se pensou no Projeto Tucum, no Mato Grosso, com quatro plos, e que tem como objetivo fundamental formar os professores tcnica e profissionalmente em nvel de magistrio. Esse o objetivo principal do Projeto Tucum. Est previsto que o Plo 1 do Projeto v terminar agora em janeiro (de 2000) e, fazendo uma avaliao superficial dos resultados do Projeto Tucum, pelo menos para o Plo 1, que a minha regio, que abrange os Nambikwara, os Pareci, os Irantxe, os Umutina, os Rikbktsa, os Kayabi que so os grupos que esto mais diretamente vinculados ao Plo 1 , fazendo uma avaliao muito superficial em relao aos resultados desse projeto, preciso dizer, primeiro, que praticamente todos os professores que atuam nas aldeias so professores que tm, no mximo, a 5 ou 6 srie, e a maioria deles paga pelas prefeituras e eles adotam, dentro das suas escolas, essa sistemtica adotada em qualquer escola rural ou da cidade. Ento, tentando mudar um pouco essa realidade, fazendo com que os professores consigam ter uma viso mais clara em relao ao seu trabalho na sala de aula e a escola dentro do seio da comunidade, verifica-se que at hoje no houve um resultado muito positivo nesse sentido. Algum falava aqui, ontem, que o professor sai para caar, sai para pescar, e a prefeitura paga; essa uma verdade que a gente no pode negar, e no existe um mecanismo, nas comunidades, para cobrar desse professor essa assiduidade nas aulas.63

A avaliao que eu fao desse tipo de comportamento que o Projeto Tucum est terminando e no vai atingir, na prtica, seus objetivos iniciais pensados, que seriam o de capacitar os professores e de melhorar a qualidade do ensino, dentro das salas de aula, nas aldeias indgenas. E o preocupante, tambm, que se percebe que, quando se observa se existem comunidades ou povos que tenham uma definio muito clara em relao ao seu projeto poltico em termos de escola, no se sabe se existe uma conscincia muito clara em relao ao projeto tnico ou em relao a um projeto tnico-poltico em determinadas comunidades; na nossa regio percebe-se que os resultados nesse sentido so muito incipientes e que ns devemos trabalhar um pouco mais nesse sentido. Ento, quando me convidaram para vir para o COLE, sabendo da temtica que seria tocada uma das minhas grandes preocupaes aprimorar os meus conhecimentos, e eu posso at estar sendo um pouco ambguo, nesse sentido, porque eu estou vindo para fora buscar elementos, estou vindo para fora buscar conhecimentos que possam ser adaptados ou adequados nossa realidade; por que eu no buscar os conhecimentos tradicionais do meu povo e trabalhar em cima desses conhecimentos tradicionais para criar frmulas de uma nova pedagogia, de uma nova metodologia de ensino para a produo de currculos especficos? , a gente percebe que os professores tm uma grande dificuldade, no s de lecionarem de uma forma mais produtiva, mas, tambm, de produzir os seus prprios64

currculos. Toda a realidade, todo o contexto socioeconmico do entorno das terras indgenas exerce uma grande influncia nos parmetros de comportamento, hoje, no s da sociedade Pareci, mas tambm das outras sociedades indgenas no entorno. Ento, na questo da produo dos novos conhecimentos e na questo da estratgia de ensino, como eu acabei de dizer, na produo de novos conhecimentos os professores deixam muito a desejar e faltam definies mais claras por parte dos professores ndios em definirem com maior clareza as suas estratgias de ensino dentro de uma proposta poltica ou dentro de uma proposta tnica. Todos esses fatores esto vinculados, hoje, ao contexto socioeconmico e poltico da regio. A Chapada dos Parecis, hoje, vista como um dos maiores celeiros de produo de gros do Pas; uma rea, em termos geo-polticos e econmicos, extremamente importante para o estado de Mato Grosso e para o Brasil, porque praticamente toda a Chapada dos Parecis hoje se transformou num grande tapete de soja, arroz, milho, feijo, sorgo, canaviais, e isso tem refletido diretamente no modus vivendi das populaes indgenas que habitam essa regio. Tanto verdade que, na Chapada dos Parecis, esto implantados, hoje, dois grandes projetos econmicos do estado de Mato Grosso, constitudos pelas empresas Maggi e, todos conhecem, Olacir Francisco de Morais. Dois grandes produtores de soja (um j foi destronado como rei da soja, hoje e a famlia Maggi quem detm essa coroa de ser o65

maior produtor de soja do Pas). E, essas empresas, aliadas a outras empresas de menor porte, tm um programa econmico-poltico de grande envergadura para a regio. Por exemplo, a reserva Pareci est localizada estrategicamente na regio, de modo que ela representa o estrangulamento ou o avano desse projeto econmico das grandes empresas da regio, porque uma terra que est localizada geograficamente num ponto que d acesso para Porto Velho, onde foi implantada, atravs do Rio Madeira, a escoao da produo de soja da Chapada dos Parecis tem l no sei quantas barcaas, e cada uma transporta quinhentas toneladas de soja e tambm existe a pretenso de abrir um outro corredor de exportao via Tocantins-Araguaia, escoando a produo; e existe um projeto de construo de uma estrada ligando Cuiab a Porto Velho, cujo projeto j est aprovado no Congresso Nacional, e a pretenso que essa estrada j nasa asfaltada. Praticamente j est aprovada no oramento da Unio a abertura dessa estrada, e ela ir cruzar mais uma vez a terra dos Pareci. A mdia de produo da regio hoje de trs milhes e quinhentas mil toneladas de gros por safra e a previso haver aumento dessa capacidade de produo. Ento, os Pareci, hoje, especialmente as lideranas, so muito acariciados, se puxa o saco demais das lideranas, em funo desses interesses econmicos. a sereia cantando aos ouvidos do povo Pareci, do povo Nambikwara, do povo Irantxe, que so os mais afetados por esses grandes projetos.66

Dentro desse conjunto de fatores, eu gostaria de falar um pouco sobre a questo do material didtico at hoje produzido para os Pareci especificamente. A nica produo de material didtico que ns temos so umas cartilhas de 1 a 4 ano, formuladas pelo Summer, o Instituto Lingstico de Vero. incrvel perceber que essas cartilhas foram feitas dentro de uma tcnica que no hoje aceita pelos Pareci, em funo das diferenas dos subgrupos, que so os Kaxniti, os Waimare e os Kosrini e, como eu disse antes, tambm em funo de que os professores ndios ainda no conseguiram, eles mesmos no sei se por falta de interesse ou por falta de viso criar mecanismos de produo dos seus prprios materiais didticos. Essa conscincia do professor como a Darlene dizia ontem dessa preocupao de produo de dados, de registro; e por qu? Por que a produo de dados, por que o registro, por que o currculo? esses so questionamentos que a gente ainda no percebe, pelo menos no Plo 1 do Projeto Tucum, no consegue perceber isso com muita clareza ainda. uma coisa que tem que ser trabalhada ainda mais. E, dentro desse contexto todo, quando se fala em novos contextos polticos e culturais que volto questo das estradas hoje, que uma realidade na questo dos Pareci, a atuao dos organismos governamentais, a atuao das organizaes nogovernamentais (indigenistas, ambientalistas, o indigenismo missionrio), a questo das grandes monoculturas que so implantadas no entorno das terras Pareci, a questo das hidrovias, a questo do67

aumento da produo; dentro desse contexto todo, a gente fica imaginando que direo a realidade das nossas escolas tm que tomar. Porque percebe-se que h uma desvinculao da conceituao dos professores da sala de aula, em que eles s conseguem enxergar aquele pequeno mundo: eu sou o professor, vocs so os alunos, o material didtico esse, os contedos so esses e isso que eu vou repassar para vocs. Ento, o mundo dos professores fica estritamente fechado a esse micro-campo, sem poder extrapolar as portas da sala de aula, se integrar e interagir dentro das suas comunidades e, da, projetar-se comunidade como um todo, em relao s outras escolas e, desde a, surgir uma conscincia poltica em funo dessa realidade que hoje sobrecarrega a realidade dos povos Nambikwara, Pareci e Irantxe. Como adequar uma escola, uma proposta escolar, dentro dessa macro-viso que a gente v que os ndios tem dificuldade de enxergar, tm dificuldade de entender, tem dificuldade de agir ou reagir, em razo das fortes presses e tambm em razo, eu diria, da prpria misria material que se abate sobre essas comunidades? Existe, ento, um contra-senso dentro das prprias comunidades. S para citar alguns exemplos desse contra-senso, recentemente foi discutida a questo do arrendamento e da parceria agrcola nas terras indgenas. Num primeiro momento, os ndios achavam que poderiam e teriam plena liberdade de arrendar suas terras. Posteriormente, foi-lhes mostrado que seria impossvel, dentro de uma lgica legal, levar avante a discusso desses68

arrendamentos com os fazendeiros, que diariamente, quotidianamente, esto, no ouvido dos ndios, falando: por que vocs tm um milho de hectares a e vocs vivem nessa misria total? Por que vocs no arrendam essas terras? Vocs poderiam ganhar muito dinheiro com isso, plantando soja, milho, arroz, feijo etc, etc. E os ndios ficam obcecados pelo canto dessa sereia e no conseguem estabelecer, dentro do prprio sistema organizativo Pareci, mecanismos de relaes mtuas, mecanismos de estudo, mecanismos de avaliao, mecanismos de projees, enfim, eles s conseguem enxergar que o fazendeiro est ali do lado, tem uma bela manso, com antena parablica, freezer, gado no pasto, uma D-20, cinco D-20, uma frota de caminhes, s isso que eles conseguem enxergar e no mais alm disso. Ento, o desafio de uma proposta, de um projeto escolar para a nossa realidade extremamente grande, extremamente desafiador. Eu acredito que, dentro de poucos anos dificilmente a gente ir conseguir estabelecer parmetros junto aos nossos povos para que eles possam ter uma conscincia mais crtica, em funo de que muito mais fcil o prefeito da regio chegar l e falar para o ndio: , cacique; eu te dou uma D-20 e voc me deixa passar uma estrada. O fazendeiro chega l e fala: eu te dou duas F-4000 e voc me arrenda 600 hectares de terra. Ento, uma situao de extrema gravidade e de extrema preocupao que me deixa muito69

preocupado; e, quando eu disse, ontem, na abertura, que existe uma certa agressividade em relao influncia de terceiros, principalmente de ONGs indigenistas, aos Pareci, eu queria ressaltar aqui a mentalidade que no foi criada pelos Pareci, mas acarretada por influncia ideolgica do sistema econmico e poltico do entorno. Por exemplo, quando se fala em meio ambiente, a reflexo que os ndios fazem a seguinte: parece que h extrema preocupao em defender o jacar, defender o cgado, defender o papagaio, defender a rvore, e ns, os ndios? Esto canalizando milhes de recursos para defender os bichos da mata e ns, aqui, morrendo de fome. Agora a gente quer arrendar a nossa terra, a gente quer fazer uma parceria agrcola, vem um Procurador da Repblica, vem uma ONG, vem no sei quem mais, e fala que ns no podemos fazer nada. Que negcio esse? Ento, quando falei ontem, na abertura, que so agressivos nesse sentido, em funo dessa ideologia do entorno. Por exemplo, quando a gente conversa com os caciques Pareci sobre a questo da introduo de culturas perenes ou de programas que se dizem autosustentveis, eles simplesmente rechaam isso. Eles falam: no, isso besteira, isso mentira; isso no vai resultar em nada. Se os caras querem nos ajudar, mandem tratores, mandem equipamento, mandem insumos, vamos derrubar esse cerrado a, vamos produzir; isso que ns queremos. Ento, a se v o contra-senso, a ambigidade que existe dentro de um processo, que eu dir