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QUESTÃO SOCIAL, RESPONSABILIDADE SOCIAL E DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL: UMA NOVA ABORDAGEM Heric Santos Hossoé 1 Resumo O presente estudo se propõe a compreender as relações explícitas e implícitas entre o Estado neoliberal, o Terceiro Setor, e a sociedade civil, no enfrentamento da questão social, tendo como objeto central de estudo a mediação dos conceitos de responsabilidade social e desenvolvimento sustentável, bem como sua função na conjuntura social atual. A pertinência e a relevância da difusão do conceito de responsabilidade social é, portanto, estudada com base na comparação entre os pressupostos formadores do seu conceito e as consequências reais resultantes da sua aplicação no corpo social para o enfrentamento da questão social. Palavras-chave: Questão Social; Desenvolvimento Sustentável; Responsabilidade Social; Terceiro Setor; Estado; Abstract This study intends to understand the explicit and implicit relations between the neoliberal State, the Third Sector, and civil society, in the face of the social question, having as central object of study the mediation of the concepts of social responsibility and sustainable development, as well as As its function in the current social context. The pertinence and relevance of the diffusion of the concept of social responsibility is therefore studied based on the comparison between the presuppositions forming its concept and the real consequences resulting from its application in the social body to face the social question. Keywords: Social issues; Sustainable development; Social responsability; Third sector; State; 1 Doutorando em Políticas Públicas pela UFMA, trabalha na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Email: [email protected]

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QUESTÃO SOCIAL, RESPONSABILIDADE SOCIAL E DESENVOLVIMENTO

SUSTENTAVEL: UMA NOVA ABORDAGEM

Heric Santos Hossoé1

Resumo O presente estudo se propõe a compreender as relações explícitas e implícitas entre o Estado neoliberal, o Terceiro Setor, e a sociedade civil, no enfrentamento da questão social, tendo como objeto central de estudo a mediação dos conceitos de responsabilidade social e desenvolvimento sustentável, bem como sua função na conjuntura social atual. A pertinência e a relevância da difusão do conceito de responsabilidade social é, portanto, estudada com base na comparação entre os pressupostos formadores do seu conceito e as consequências reais resultantes da sua aplicação no corpo social para o enfrentamento da questão social.

Palavras-chave: Questão Social; Desenvolvimento Sustentável; Responsabilidade Social; Terceiro Setor; Estado;

Abstract This study intends to understand the explicit and implicit relations between the neoliberal State, the Third Sector, and civil society, in the face of the social question, having as central object of study the mediation of the concepts of social responsibility and sustainable development, as well as As its function in the current social context. The pertinence and relevance of the diffusion of the concept of social responsibility is therefore studied based on the comparison between the presuppositions forming its concept and the real consequences resulting from its application in the social body to face the social question.

Keywords: Social issues; Sustainable development; Social responsability; Third sector; State;

1 Doutorando em Políticas Públicas pela UFMA, trabalha na Universidade Federal do Maranhão (UFMA),

Email: [email protected]

1 – INTRODUÇÃO

Diante do agravamento da questão social impressa na crescente degradação do

valor econômico-social do trabalho, duramente comprovada pela proliferação do

subemprego, do mercado de trabalho informal e do exército industrial de reserva, a

solidariedade é apontada por muitos, tanto nos meios acadêmicos, como principalmente fora

deles, como a solução emergencial mais adequada.

O modelo capitalista, nesse contexto, seria o alvo principal se aplicada a lógica

formal à previsão da reação popular mais acertada. Curiosamente, a reação popular mais

proeminente é uma ilógica apatia, e uma consequente reprodução do aprofundamento da

questão social. Em lugar da condenação da opinião pública ao capital, surge, fortemente

difundido nos meios de comunicação de massa, um termo que parece condensar a tão

esperada solidariedade como solução emergencial: A responsabilidade social. O termo traz

em sua essência uma convocação aos capitalistas, mas que inclui também os trabalhadores

e seus aspirantes, a se unirem para a formação de uma frente de solidariedade para o

combate dos problemas sociais e para o preenchimento do espaço deixado pelo Estado na

esteira de sua reestruturação em direção a sua redução ao mínimo. Com a difusão do

conceito no mercado consumidor a responsabilidade social ganha então status de fator de

decisão para a preferência de uma marca em detrimento de outra.

Nesse cenário, a responsabilidade social vem se consolidando como uma

eficiente ferramenta na ampliação da participação da iniciativa privada em atividades

relacionadas ao terceiro setor. No entanto, essa participação parece não conter apenas o

componente solidariedade, existe muito mais substância capitalista do que a aparência, com

efeitos diversos sobre a reprodução da questão social no Brasil. Esse estudo se propõe a

fazer emergir todos os novos e difusos laços entre o público, o privado, o terceiro setor, a

questão social, e os conceitos de responsabilidade social, este como eixo principal da

análise, apontando a relevância do seu papel de mediador dos interesses do capital.

2 – A REESTRUTURAÇÃO DO CAPITAL, A AUSÊNCIA ESTATAL E A AFIRMAÇÃO DO

TERCEIRO SETOR

A questão social, enquanto efeito do antagonismo inerente à relação capital x

trabalho, sofre diretamente todos os reflexos proporcionados pela reestruturação do capital.

As condições históricas que ao mesmo tempo propiciam o desenvolvimento do Terceiro

Setor, propiciam também o agravamento da questão social e uma curiosa “inversão social”

onde a sociedade civil ocupa a lacuna social estatal, representada pela partilha dos

problemas sociais entre os setores o que pode-se entender por responsabilidade social. A

reformulação dessas relações entre os setores e a questão social reside no processo de

globalização, mais precisamente na discrepância representada pela “globalização” dos

problemas e não das riquezas.

Apenas um aprofundamento na observação da nova condição história

estruturante do capital pode ser capaz de fornecer a real posição de cada setor no

enfrentamento da questão social e a função essencial de cada ferramenta conceitual no

contexto da reestruturação capitalista. Cada categoria identificada no estudo deixará

transparecer certamente sua particularidade e sua multiplicidade encerradas na complexa

inter-relação entre todas inerente a todas essas categorias. Mas antes de qualquer análise é

necessário, em primeiro lugar, fixar as particularidades atuais que delimitam os conceitos

referentes às categorias a serem trabalhadas, a começar por uma breve contextualização do

Estado atual.

2.1 - O Estado, o neoliberalismo e a legitimação do Terceiro Setor

Após o ápice do modelo de bem-estar social no final dos anos 60, alcançado

pelos países de capitalismo avançado, entendido também pelo conceito de “estado

máximo”, iniciou-se um recuo da participação do Estado na economia com o objetivo de

abrir mercado para a expansão do capitalismo, diminuir o déficit público, e

consequentemente uma diminuição da cobertura social nas garantias dos direitos adquiridos

pelos trabalhadores. Essa expansão do capital, condensada no termo globalização, passou

a impor uma certa postura padronizada aos países envolvidos em seu processo. A essa

postura pode-se atribuir uma série de pressupostos conhecidos como neoliberais, que

tornaram-se publicamente integrados às agendas nacionais de todos os países, como

preceitua Carlos Montaño (2002):

Em novembro de 1989 realizou-se uma reunião entre os organismos de financiamento internacional de Bretton Woods (FMI, BID, Banco Mundial), funcionários do governo americano e economistas latino-americanos, para avaliar as reformas econômicas da América Latina, o que ficou conhecido como Consenso de Washington. As recomendações desta reunião abarcaram dez áreas: disciplina fiscal, priorização dos gastos públicos, reforma tributária, liberalização financeira, regime cambial, liberalização comercial, investimento direto estrangeiro, privatização, desregulação e propriedade intelectual. (Montaño, São Paulo, 2002, 29).

As diretrizes expostas no Consenso de Washington passaram a ser

imediatamente incorporadas às ações da maioria dos Estados capitalistas constituindo uma

verdadeira reforma do Estado que de acordo com Carlos Montaño (1999, p. 29):

Está articulada com o projeto de liberar, desimpedir e desregulamentar a acumulação do capital, retirando a legitimação sistêmica e o controle social da “lógica democrática” e passando para a “lógica da concorrência” do mercado (cf. Montaño, 1999). Sendo assim, concebe-se como parte da reforma (“flexibilização” e precarização) das bases de regulação das relações sociais – políticas e econômicas -, portanto, articulada à reestruturação produtiva e ao combate ao trabalho, no seio da reestruturação do capital. É, assim, uma verdadeira contra-reforma, operada pela hegemonia neoliberal, que procura reverter as reformas desenvolvidas historicamente por pressão e lutas sociais e dos trabalhadores.

A orientação neoliberal é justificada, pelos seus criadores, como um mal

necessário para enfrentar uma inevitável globalização da economia, e que, portanto, é a

chave para que os países possam ingressar no mercado globalizado e participar do

processo de mundialização do capital em franca expansão. No entanto, é um ponto

interessante que o modelo neoliberal, é sim implantado por todos os países capitalistas, em

especial os ocidentais, mas com intensidades diferentes. Os países de capitalismo

avançado incorporaram alguns pressupostos e outros não, e quando o fizeram foi com

certas reservas para não prejudicar demasiadamente os direitos e garantias sociais

conquistadas pela sua classe trabalhadora. Já nos países em desenvolvimento, como é o

caso do Brasil, os pressupostos ditados pelo Consenso de Washington foram admitidos

rapidamente e praticamente sem reservas, agravando e aprofundando, dessa forma, a

questão social.

E como expõe Carlos Montaño, “na verdade, a função das “parcerias” entre o

Estado e as ONGs não é a de “compensar”, mas a de encobrir, a de gerar a aceitação da

população a um processo que, como vimos, tem clara participação na estratégia atual de

reestruturação do capital. É uma função ideológica”.

Essa ideia é legitimada através do instrumento representado pelo conceito de

responsabilidade social, que deve ser compartilhada por todos os setores da sociedade,

designando que todos são vítima do mesmo problema e que a união dos setores para o

enfrentamento do problema é a mais adequada postura na conjuntura histórica atual.

A sociedade civil é, dessa forma, levada a se responsabilizar pelas deficiências

do Estado, eximindo este, do papel de implementador de políticas de solidariedade, e então

há nesse momento, uma troca da solidariedade universal pela solidariedade individual. Essa

troca fetichizada pelo incentivo dado ao Terceiro Setor pelo Estado, e isso é uma

característica marcante das diretrizes neoliberais, para o eufemismo do agravamento da

condição social enfrentada pelas populações afetadas por essas determinações.

Um outro “benefício” agregado à expansão do Terceiro Setor, defendido pelas

doutrinas neoliberais, é o da geração de emprego. Com a profissionalização do Terceiro

Setor, o crescimento da demanda cada vez maior, tanto de profissionais especializados

quanto não especializados para atuarem nesse setor, abriu um espaço inegável de

oportunidades aos desempregados, com a geração de um considerável número de postos

de trabalho. Isso é, certamente, extremamente positivo dentro da conjuntura econômica

atual com altos níveis de desemprego, e é, portanto, um forte argumento neoliberal

largamente difundido. Por outro lado, o efeito negativo, ocultado pelo argumento neoliberal,

é que esses postos de trabalho gerados pelo Terceiro Setor são ainda mais suscetíveis às

penalidades residuais do modelo neoliberal do que os postos de trabalho convencionais na

iniciativa privada, dada a instabilidade financeira e sazonalidade de atuação das

organizações do Terceiro Setor.

Dessa forma, os postos de trabalho gerados por essas organizações são, em

geral, de baixa remuneração, sazonais, e instáveis, reproduzindo, desse modo, a debilidade

do emprego que é uma das principais causas do agravamento da questão social, a qual o

Terceiro Setor conceitualmente se destina a enfrentar.

Conforme leciona Carlos Montaño (1999):

Efetivamente, afirma-se que o “terceiro setor” emprega grande volume de trabalhadores. Com isso, as ONGs, as Oscips, mais do que organizações de ajuda à comunidade, Têm se transformado em organização de “auto-ajuda”, por quanto tem uma utilidade fundamental voltada para seus membros: ser uma fonte de emprego.” Esclarecendo o efeito oculto na geração desse volume de postos de trabalho, continua Montaño: “O efeito direto disso é a diminuição dos impactos do desemprego operado particularmente na indústria. Mais ainda, o encobrimento das reais dimensões desse processo de demissão em cascata, o que tenderia a conformar maior convivência com estes índices de desemprego, relativizados pela absorção de trabalho no “terceiro setor” como estratégia de sobrevivência do trabalhador desempregado, apenas que este fato é instrumentalizado pelo capital para aplainar e apaziguar os ânimos, diminuir insatisfações, reduzir a conflitividade. Coincidentemente, para Antunes, ‘o “Terceiro Setor” não é uma alternativa efetiva e duradoura ao mercado de trabalho capitalista, mas cumpre um papel de funcionalidade ao incorporar parcelas de trabalhadores desempregados pelo capital. (Montaño, São Paulo, 1999, 113).

Dessa forma, fica explícita a motivação que move as atenções do capitalismo

em direção ao fomento do “Terceiro Setor”, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada,

sendo a sociedade civil, nesse contexto, inoculada pela difusão da nova postura de

responsabilidade social do capital e permeada pela concepção de orientação neoliberal

dessa postura, reajustando a conformidade da população frente ao agravamento da questão

social.

Para um entendimento mais concreto dessa motivação é indispensável uma

contextualização mais relacional entre o Terceiro Setor e os dois outros Setores, bem como

a explicitação da dualidade de sua essência.

2.2 - Terceiro Setor: desenvolvimentos e envolvimentos históricos

Não é recente a participação de empresas e capitalistas nos problemas sociais,

afinal a filantropia, como uma forma inicial de atuação social, existe desde que o mundo

passou a conhecer o capitalismo como modo de produção, recente, pode ser considerada, a

profissionalização dessa participação. Surgida na primeira metade do século XX, nos

Estados Unidos, a definição do que hoje se conhece como Terceiro Setor, passou a ser

atribuída às organizações privadas, sem fins lucrativos, voltadas ao atendimento de

demandas sociais, através da produção de bens e serviços com caráter público, e que

diferencia-se do primeiro setor, o Estado, por ser privado, e do segundo setor, Empresas

Privadas, por não ter fins lucrativos. Mas o termo terceiro setor só veio a ser difundido a

partir dos anos 70 com o início da reestruturação capitalista para o modelo neoliberal.

Segundo Carlos Montaño (2002) “Tão incerto quanto a origem é sua evolução

conceitual. Se o termo foi cunhado nos EUA na transição dos anos 70 para os anos 80, ele

vem diretamente ligado a outro conceito: a filantropia” Ainda segundo Carlos Montaño aput

(Acotto e Manzur, 2000) “definiram-se, como organizações do “terceiro setor”, aquelas que

são: provadas, não-governamentais, sem fins lucrativos, autogovernadas, de associação

voluntária.”

Acrescenta-se a origem do termo a concepção de Leilah Landim “ele tem

nacionalidade clara. É de procedência norte-americana, contexto onde associativismo e

voluntariado fazem parte de uma cultura política e cívica baseada no individualismo liberal”

(Landim, 1999)

Marcado por uma relativa importância no início do século XX, causada

principalmente pelo modelo liberal do estado vigente, onde a instituição do “Estado Mínimo”

fornecia espaço para o crescimento, o Terceiro Setor, passou a ser um apoio necessário às

ausências do Estado em demandas sociais. Já com a mudança para o modelo do Welfare

State, ou estado de bem-estar social, a partir dos anos 30, o Terceiro Setor ficou afastado

da mídia, sendo retomado com força máxima a partir do final dos anos 70, com a

implementação do neoliberalismo, onde ganhou não só espaço nos compêndios

acadêmicos, mas também na mídia de massa.

Já a profissionalização do Terceiro Setor, observada a partir do final dos anos 70

é consequência de toda uma conjuntura histórica onde a reorientação dada ao capitalismo

pelas doutrinas neoliberais, instituiu a diminuição da participação do estado e uma

consequente necessidade de uma justificativa social para tanto, com a finalidade de

amortecer o impacto social negativo que inevitavelmente sofreriam o capitalismo e o Estado.

E essa justificativa veio na forma do Terceiro Setor, incentivado pelo Estado, através de

benefícios tributários para as organizações caracterizadas como tal e as empresas que as

apoiam, e incentivado pela iniciativa privada que, pelos benefícios tributários e publicitários

resultantes da associação com organizações do Terceiro Setor, passaram a canalizar parte

considerável de seus recursos para o apoio a essas organizações. Mas a diferença, dessa

vez, que impulsionou de fato a iniciativa privada a apoiar sistematicamente o Terceiro Setor,

fica por conta de um detalhe sutil, mas de envergadura global: a incorporação do conceito

de responsabilidade social como vanguarda da gestão empresarial.

Esse conceito passou a ser implantado por diversas empresas e começou a

ganhar espaço na mídia de forma a estabelecer uma dicotomia entre as empresas, entre as

que possuem e as que não possuem a responsabilidade social na pauta de seus

planejamentos estratégicos.

3 – RESPONSABILIDADE SOCIAL: A INDIVIDUALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL

A popularização da incorporação do conceito de responsabilidade social no topo

da pauta dos planejamentos estratégicos da vanguarda da gestão empresarial é relacionada

com a difusão do conceito e o incentivo estatal e privado dado à profissionalização do

Terceiro Setor. À primeira vista essa relação entre os sujeitos envolvidos se apresenta como

casual, dada a independência entre os sujeitos tal como são tratados nos meios de

comunicação de massa, o que denota uma percepção de que o surgimento desse conceito

é fruto de uma consciência social maior por parte das empresas e da sociedade civil,

atribuindo um caráter extremamente favorável e enaltecedor da imagem de todos aqueles

que de alguma forma estejam engajados às causas sociais sob a bandeira da

responsabilidade social.

Está subtendido, nesse novo contexto, que as empresas privadas aliadas ao

indivíduo tem que fazer a sua parte para o enfrentamento da questão social, e para isso,

longe de uma determinação em torno da medida realmente necessária da participação de

cada um para a solução total do problema, há uma concepção difusa em que para participar

basta estar associado e contribuir com alguma organização do Terceiro Setor ou mesmo

desenvolver alguma ação de solidariedade para se desonerar do encargo social demandado

pelo conceito de responsabilidade social. Mas essa complexa relação bem como as reais

causas e consequências da massificação do conceito de responsabilidade social e

desenvolvimento sustentável não se encerram nessa afirmação, há um conjunto muito

específico de relações e motivações que irão emergir da exploração mais profunda de tais

conceitos.

3.1 - Responsabilidade Social e Desenvolvimento Sustentável: essência ou aparência?

Seguindo um padrão capitalista de auto ajuste às expectativas e às tendências

de consumo do mercado, as empresas redirecionam sua estratégia de atuação no mercado

a cada nova possibilidade mercadológica que possa ampliar a aceitação de seus produtos.

E a indicação de um novo fator de decisão de compra, o da ‘responsabilidade

social”, fica claro quando, segundo os resultados da pesquisa “Responsabilidade social e

ética da administração” (Robbins e Coulter, 1998), realizada com aproximadamente 2 mil

consumidores norte-americanos, mais de 65% dos entrevistados (dois terços) “(...)

afirmaram que trocariam de marca para um fabricante que apoiasse uma causa em que

acreditassem, enquanto um terço [cerca de 35%] era mais influenciado pelo ativismo social

de uma empresa do que por seus anúncios”. A grande importância atribuída à

responsabilidade social e ao desenvolvimento sustentável na vanguarda estratégica da

gestão empresarial não é, portanto, fruto apenas de uma suposta conscientização social e

ambiental, mas sim da impossibilidade de expansão mercadológica diante da não

adequação da estrutura das empresas à esses novos conceitos. O retorno social é, dessa

forma, o grande prêmio mercadológico impulsionador da nova postura social adotada pelas

empresas.

Com a explicitação do retorno social obtido pelas empresas, fica claro que o

benefício publicitário de uma imagem empresarial fortemente aliada à responsabilidade

social é o objetivo central de toda a estratégia das gestões orientadas pelos conceitos do

marketing social. A valorização da imagem perante os concorrentes é o benefício obtido que

tem o propósito eficaz de gerar o aumento das vendas e do faturamento, que dessa forma, é

a grande força motivacional que impõe a nova postura social das empresas, e não apenas o

compromisso social como aparenta. Não que essas empresas não realizem ações sociais

ou não beneficiem a sociedade, o que de fato acontece, mas sim que a postura da

responsabilidade social é antes mais um instrumento capitalista do que pura participação

voluntária nos problemas sociais.

Há, portanto, uma dualidade na essência do envolvimento das empresas com

problemas sociais que determina por um lado, o da aparência, a “participação social”, e pelo

outro o da essência, a “promoção social”. Ainda associado à difusão do conceito de

responsabilidade social encontra-se não só a participação da iniciativa privada, como

também a sugestão da participação da sociedade civil na composição conjunta de um “front”

de ajuda ao Estado no enfrentamento dos problemas sociais. Nesse aspecto podemos

identificar um efeito resultante da aliança entre os setores, na qual sua elevada importância

emana do seu desconhecimento por parte da maioria da população, que é a “atenuação

aparente” da contradição capital x trabalho presente na questão social. Vale reforçar que

essa “atenuação aparente” da questão social se dá pelo desvio da atenção da população do

foco causador dos problemas sociais ao partilhar a responsabilidade social entre todos os

setores da sociedade, tornando tanto a causa quanto a solução dos problemas sociais

difusos no corpo social.

Para melhor discutir esse efeito faz-se necessário a definição das balizas da

questão social que, conceitualmente é tão complexa quanto sua essência no corpo social.

3.2 - Questão Social: questão de Marketing?

Há uma certa indefinição devido à pluralidade de conceitos para o termo questão

social, bem como redefinições acerca do que seria uma nova questão social, no entanto, a

enumeração da totalidade dessas definições excederia o propósito do presente trabalho.

Dessa forma torna-se mais adequada a exposição de uma concepção mais genérica e

difundida que pode assim ser representada por Raul Carvalho e Marilda Iamamoto (1983):

A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão. (Carvalho e Iamamoto, São Paulo, 1983, p. 77).

Já para Robert Castel (1997), a questão social é assim caracterizada:

Como uma aporia fundamental, na qual uma sociedade experimenta o enigma da sua coesão e trata de conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe de novo em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos se denomina uma nação) para existir como um conjunto vinculado por relações de interdependência”. Assim, por exemplo, a questão social na primeira metade do século XIX na Europa emanava da pobreza da classe trabalhadora, “populações flutuantes, miseráveis, não socializadas, cortadas de seus vínculos rurais e que ameaçam a ordem social, seja pela violência revolucionária, seja como uma gangrena. (Castel, São Paulo, 1997, p. 165).

Definindo, portanto, que a falta de coesão social era o espaço preenchido pela

questão social presente na contradição da relação entre capital e trabalho, oriunda da

expansão do capitalismo. Entretanto, no contexto atual, a perca da centralidade do trabalho

no eixo da questão social faz surgir uma nova corrente teórica que coloca que essa

reconfiguração social representaria uma nova questão social, conforme afirma Robert Castel

(1997):

A nova questão social hoje parece ser o questionamento desta função integradora do trabalho na sociedade”. Uma desmontagem desse sistema de proteção e garantias que foram vinculadas ao emprego e uma desestabilização,

primordialmente na ordem do trabalho, que repercute como uma espécie de choques em diferentes setores da vida social para além do mundo do trabalho propriamente dito. (Castel, São Paulo, 1997, p. 165-166).

A origem desse processo é a flexibilização do trabalho, que em decorrência da

abertura dos mercados nacionais e a expansão do processo de mundialização do capital,

vem determinando o caráter volátil do emprego, que é alocado pelo capital na região do

mundo onde representa menor custo, e maior precarização do trabalho. Isso acarreta na

redução da oferta de emprego, da remuneração e das organizações sindicais, gerando uma

inevitável perda de garantias e direitos sociais lentamente conquistados pelos trabalhadores

nas décadas precedentes. Dessa forma, o emprego da maneira como é conhecido, com

estabilidade e proteções sociais, está desaparecendo em detrimento da flexibilidade do

mercado de trabalho.

É certo que isso é um fenômeno global, decorrente da mundialização do capital,

mas é importante observar que o processo de flexibilização do trabalho e suas

consequências socialmente degradantes podem ser observadas gravemente incorporadas

ao contexto social mais rapidamente e com maior intensidade em países em

desenvolvimento, a exemplo do Brasil, por não terem ainda uma solidificação das garantias

sociais conquistadas pelos trabalhadores e uma economia mais vulnerável.

A questão social pode assim ser entendida como uma categoria que encerra em

si a contradição inerente ao capitalismo presente na distribuição social desigual entre a

produção e a apropriação da riqueza gerada, condensando no antagonismo interno à

relação capital x trabalho a essência reprodutora dos problemas sociais característica do

modo capitalista de produção. Tendo a questão social acompanhado a dinâmica das

transformações do capitalismo, podemos notar que perde força a luta de classes uma vez

que nem o mínimo da estabilidade do emprego pode ser garantida no contexto atual onde a

luta pelas garantias sociais perde espaço para a luta pela manutenção do posto no mercado

de trabalho. Por isso a perda da centralidade do trabalho na atual questão social é

resultante da reestruturação do capital em busca de maior produtividade e lucratividade, o

que por si só deveria motivar uma forte reação contrária da sociedade civil em direção à

iniciativa privada e ao Estado que, por sua vez, reforça a situação incorporando os

pressupostos neoliberais.

Como explicar, dessa forma, a falta de expressão de movimentos contrários a

essa nova ordem e a apatia da sociedade civil exemplificada pela individualização

representada pelo conformismo da luta apenas pela manutenção do emprego? Como

explicar a já citada “atenuação aparente” da questão social? A resposta para esses

questionamentos encontra-se na difusão, pelos meios de comunicação de massa, da ideia

de que a crise do capitalismo atual, bem como todas as suas consequências, a exemplo da

precarização do trabalho, não é culpa do capitalismo e sim de um novo e inevitável contexto

histórico, e que, portanto, o capital de culpado pela origem do problema passa a ser vítima.

Essa ideia é também legitimada pelo Estado que passa a reduzir seu campo de

atuação social, atendendo ao conceito de “estado mínimo”, e incentiva abertamente a

instituição e o crescimento do Terceiro Setor e da participação da iniciativa privada através

de incentivos tributários. A essa postura do Estado cabe observa-se a essência de alguns

pressupostos neoliberais adotados que servem de guia para praticamente todos os Estados

capitalistas envolvidos no processo de globalização da economia.

4 - CONCLUSÃO

Essa breve análise das relações entre os setores e a questão social, bem como

seus novos mecanismos de reprodução, dentre eles a responsabilidade social e o

desenvolvimento sustentável, se propôs a expor as estruturas de uma conjuntura arriscada

que prenuncia momentos mais instáveis na coesão social. Há um encadeamento lógico,

mas atemporal, onde a crise do modo de produção capitalista encontra a saída neoliberal,

esta por sua vez determina a instituição do estado mínimo, este deixa uma ausência social

inaceitável como legado, e que para justificar e tornar menos inaceitável canaliza subsídios

para a criação de um Terceiro Setor, socialmente legitimado pela difusão do conceito de

responsabilidade social que acaba por pressionar, pelas vias mercadológicas, as empresas

a adotarem como diferencial de mercado, estabilizando dessa forma os ânimos da

sociedade civil e fornecendo combustível ao agravamento da questão social. O que parece

não ser levado em conta nesse encadeamento lógico, sugerido pelas doutrinas neoliberais é

que no fim de seu percurso, com o agravamento da questão social, o empobrecimento da

população gera inevitavelmente uma diminuição do mercado com indicações de uma

provável outra crise que já não poderá mais sugar da sociedade civil as forças para sua

superação, dado o grau de achatamento da mesma. É sob essa via de raciocínio que pode-

se inferir que a oscilação do foco da difusão do conceito de responsabilidade social perante

a opinião pública pode ser na verdade ajustado para gerar a estabilidade apenas necessária

à reprodução do estado neoliberal.

Portanto, a aparência de boa ação da responsabilidade social oculta a

fragmentação do enfrentamento da questão social. Dessa forma a união coletiva para a

formação de uma força de solidariedade acaba por proporcionar um efeito contraditório, já

que a solidariedade pregada pelo conceito de responsabilidade social é na verdade uma

afirmação do individualismo onde cada indivíduo ao ser solidário através desses meios

contribui com sua parte não se importando se está colaborando para uma solução parcial ou

total, e se sua contribuição já foi ofertada, nada mais tem a ver com esses problemas, sendo

a soma dessas contribuições, por serem fragmentadas e difusas, apenas formadoras de

uma parcialidade na solução dos problemas sociais, ficando a totalidade prejudicada e

encoberta pelo efeito social da “atenuação aparente” da questão social.

Diante do exposto, fica justificada toda a abertura ofertada pelas doutrinas

neoliberais ao Terceiro Setor e à difusão do conceito de responsabilidade social, bem como

a distinção da dualidade social a que se propõe essa abertura. Não que uma sociedade

permeada pelo conceito de responsabilidade social seja apenas uma sociedade fadada à

exploração neoliberal e a proliferação desse conceito seja apenas instrumental desta, há

certamente inegáveis benefícios inclusos no fato de que, de uma forma ou de outra, as

pessoas acabam por se sensibilizar mais com as questões sociais e que essa sensibilidade

pode aguçar mais o envolvimento social e a cobrança de soluções para os problemas

sociais. De um lado a responsabilidade social pode ser aproveitada pelo neoliberalismo para

seus propósitos, mas por outro lado o fosso entre as expectativas de solução dos problemas

sociais e a insuficiência real dessa solução pode apontar para uma pressão social,

potencializada pela já adquirida consciência social, para a luta por soluções menos parciais

e mais efetivas.

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