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CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO QUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃO QUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃO QUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃO QUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃO? CAMINHOS POSSÍVEIS PARA UMA PRÁTICA DIALÓGICA Andréa Serpa 2010

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CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

QUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃOQUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃOQUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃOQUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃO? CAMINHOS POSSÍVEIS PARA UMA PRÁTICA DIALÓGICA

Andréa Serpa 2010

A�DRÉA SERPA

QUEM SÃO OS OUTROS �A/DA AVALIAÇÃO? CAMI�HOS POSSÍVEIS PARA UMA PRÁTICA DIALÓGICA

Orientadora Profa. Doutora Maria Teresa Esteban.

Niterói 2010

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense como exigência parcial para a obtenção do grau de Doutora em Educação.

ANDREA SERPA

QUEM SÃO OS OUTROS �A/DA AVALIAÇÃO? CAMI�HOS POSSÍVEIS PARA UMA PRÁTICA DIALÓGICA

BA�CA EXAMI�ADORA

___________________________________________________

Profª Drª Maria Teresa Esteban ( Presidente) – UFF

___________________________________________________

Profª Drª Joanir Gomes de Azevedo – UFF

___________________________________________________

Profª Drª Nilda Alves – UERJ

____________________________________________________

Profª Drª Marisa Narcizo Sampaio – UFRN

_____________________________________________________

Profª Drª Regina Maria Leite Garcia – UFF

Niterói

2010

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense como exigência parcial para a obtenção do grau de Doutora em Educação.

OBRIGADA...OBRIGADA...OBRIGADA...OBRIGADA... À minha família, porque me ensinaram À minha família, porque me ensinaram À minha família, porque me ensinaram À minha família, porque me ensinaram –––– antes de Hegel antes de Hegel antes de Hegel antes de Hegel –––– que nada que nada que nada que nada de grande de grande de grande de grande no mundo se faz sem paixão. Por me ensinarem que o amor constrói. Por me no mundo se faz sem paixão. Por me ensinarem que o amor constrói. Por me no mundo se faz sem paixão. Por me ensinarem que o amor constrói. Por me no mundo se faz sem paixão. Por me ensinarem que o amor constrói. Por me ensinarem o que é ético e justo. Obrigada.ensinarem o que é ético e justo. Obrigada.ensinarem o que é ético e justo. Obrigada.ensinarem o que é ético e justo. Obrigada. Aos meus amigos, porque me provaram Aos meus amigos, porque me provaram Aos meus amigos, porque me provaram Aos meus amigos, porque me provaram –––– Mario Quintana tinha razão Mario Quintana tinha razão Mario Quintana tinha razão Mario Quintana tinha razão –––– que a que a que a que a amizade é um amor que nunca morre. Vocês seguem sempre amizade é um amor que nunca morre. Vocês seguem sempre amizade é um amor que nunca morre. Vocês seguem sempre amizade é um amor que nunca morre. Vocês seguem sempre vivos em mim, e vivos em mim, e vivos em mim, e vivos em mim, e em cada linha que escrevo.em cada linha que escrevo.em cada linha que escrevo.em cada linha que escrevo. Às minhas professoras e professores da UFF/Grupalfa desta jornada que me Às minhas professoras e professores da UFF/Grupalfa desta jornada que me Às minhas professoras e professores da UFF/Grupalfa desta jornada que me Às minhas professoras e professores da UFF/Grupalfa desta jornada que me ensinaram ensinaram ensinaram ensinaram –––– antes mesmo de descobrir em Guimarães Rosa antes mesmo de descobrir em Guimarães Rosa antes mesmo de descobrir em Guimarães Rosa antes mesmo de descobrir em Guimarães Rosa –––– que eu quase que eu quase que eu quase que eu quase nada sei... que me ensinaram a desconfiar de muitas coisas. Minhas nada sei... que me ensinaram a desconfiar de muitas coisas. Minhas nada sei... que me ensinaram a desconfiar de muitas coisas. Minhas nada sei... que me ensinaram a desconfiar de muitas coisas. Minhas ororororientadoras, do mestrado e do doutorado, Joanir e Teresa, não existem ientadoras, do mestrado e do doutorado, Joanir e Teresa, não existem ientadoras, do mestrado e do doutorado, Joanir e Teresa, não existem ientadoras, do mestrado e do doutorado, Joanir e Teresa, não existem palavras para agradecer a vocês o carinho, apoio e a paciência que tiveram para palavras para agradecer a vocês o carinho, apoio e a paciência que tiveram para palavras para agradecer a vocês o carinho, apoio e a paciência que tiveram para palavras para agradecer a vocês o carinho, apoio e a paciência que tiveram para me guiarem até aqui, mesmo assim, muito obrigada! me guiarem até aqui, mesmo assim, muito obrigada! me guiarem até aqui, mesmo assim, muito obrigada! me guiarem até aqui, mesmo assim, muito obrigada! Aos meus companheiros e companheiras da UFF que Aos meus companheiros e companheiras da UFF que Aos meus companheiros e companheiras da UFF que Aos meus companheiros e companheiras da UFF que –––– assi assi assi assim como aprendi m como aprendi m como aprendi m como aprendi em Freire em Freire em Freire em Freire –––– construíram em comunhão muitos dos saberes que colhi por essa construíram em comunhão muitos dos saberes que colhi por essa construíram em comunhão muitos dos saberes que colhi por essa construíram em comunhão muitos dos saberes que colhi por essa estrada, espero que possamos ainda puxar muitos fios de nossas conversas...estrada, espero que possamos ainda puxar muitos fios de nossas conversas...estrada, espero que possamos ainda puxar muitos fios de nossas conversas...estrada, espero que possamos ainda puxar muitos fios de nossas conversas...

MUITO OBRIGADA...MUITO OBRIGADA...MUITO OBRIGADA...MUITO OBRIGADA... Às crianças. Aos jovens e adultos, às mães e professoras da rede púÀs crianças. Aos jovens e adultos, às mães e professoras da rede púÀs crianças. Aos jovens e adultos, às mães e professoras da rede púÀs crianças. Aos jovens e adultos, às mães e professoras da rede pública blica blica blica municipal do Rio de Janeiro. A coragem de vocês foi a inspiração, o desafio municipal do Rio de Janeiro. A coragem de vocês foi a inspiração, o desafio municipal do Rio de Janeiro. A coragem de vocês foi a inspiração, o desafio municipal do Rio de Janeiro. A coragem de vocês foi a inspiração, o desafio que as palavras precisavam para não se resignar ao silêncio. que as palavras precisavam para não se resignar ao silêncio. que as palavras precisavam para não se resignar ao silêncio. que as palavras precisavam para não se resignar ao silêncio. Às minhas colegas do CIEP Donga, obrigada pela generosidade, pela Às minhas colegas do CIEP Donga, obrigada pela generosidade, pela Às minhas colegas do CIEP Donga, obrigada pela generosidade, pela Às minhas colegas do CIEP Donga, obrigada pela generosidade, pela cumplicidade, pelos saberes compartilhados, pcumplicidade, pelos saberes compartilhados, pcumplicidade, pelos saberes compartilhados, pcumplicidade, pelos saberes compartilhados, por tudo que me ensinaram.or tudo que me ensinaram.or tudo que me ensinaram.or tudo que me ensinaram.

HHHHERANÇAERANÇAERANÇAERANÇA

Eu vim de infinitos caminhos,Eu vim de infinitos caminhos,Eu vim de infinitos caminhos,Eu vim de infinitos caminhos, e os meus olhos choveram lúcido prantoe os meus olhos choveram lúcido prantoe os meus olhos choveram lúcido prantoe os meus olhos choveram lúcido pranto pelo chão.pelo chão.pelo chão.pelo chão. Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos, essa vida, que era tão viva, tão fecundaessa vida, que era tão viva, tão fecundaessa vida, que era tão viva, tão fecundaessa vida, que era tão viva, tão fecunda,,,, porque vinha de um coração?porque vinha de um coração?porque vinha de um coração?porque vinha de um coração? E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos, do pranto que caiu dos meus olhos passados,do pranto que caiu dos meus olhos passados,do pranto que caiu dos meus olhos passados,do pranto que caiu dos meus olhos passados, que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?

Cecília MeirelesCecília MeirelesCecília MeirelesCecília Meireles

RESUMO

Este texto é o local de encontro entre muitas educadoras, de diferentes lugares e de diferentes tempos, convidadas por mim, para um diálogo que nos permita refletir sobre os desafios que nós, professoras, enfrentamos diariamente em nossas salas de aula, na busca dos caminhos possíveis para uma prática mais dialógica, na busca de uma escola mais democrática, comprometida com a emancipação de todos os sujeitos que nela se encontram, a partir da desterritorialização dos saberes e poderes. Parto do lugar de investigadora de meu Cotidiano e convido outras professoras, para diante de tantas preocupações e questões comuns, reunirmo-nos para debatê-las em busca de uma maior compreensão sobre nossas práticas, sobre nossos fazeres, sobre nossos sucessos e fracassos, e os fios, tantas vezes ocultos, que os produzem. Parto do vivido, das experiências que me marcaram, e marcam minha forma de estar no/com o mundo. Parto de muitos tempos e lugares, que no texto se confundem, se atravessam e se completam. Uma narrativa que se apresenta, antes de tudo, como uma conversa de professoras, talvez porque estas professoras compartilham comigo o lugar de onde falo, o lugar que me/nos intriga, que me/nos desafia, que me/nos faz querer buscar o diálogo, produzindo neste movimento uma epistemología legitimamente nossa. As vozes das mães, como de alunos e alunas e outros sujeitos que tecem conosco este cotidiano escolar surgem desafiando nossas certezas, nossos saberes, falando de outras escolas, de outros sonhos, de outras possibilidades. O projeto hegemônico que atravessa estes diálogos e estes sonhos, surge nos desafiando a rever nossas crenças e concepções pedagógicas, nossas contradições e ambivalências. O diálogo é o fio que vai costurando as teorias e as práticas, tecendo esta trama onde os currículos prescritos, nas deliberações e decretos e, principalmente, nas avaliações externas, adentram nossas salas de aula, nossos fazeres e nossas reflexões, que formam a complexa rede dos currículos praticados, dos currículos ocultos. Estes currículos atravessados, revistos, problematizados e regulados pelas práticas avaliativas, levam-nos a questão: quem são os “outros” na/da avaliação?

PALAVRAS CHAVE:; Avaliações escolares; fracassos e sucessos; culturas, currículos

e alteridades.

ABSTRATC

This text is the meeting place for many educators, from different places and different times, invited by me for a dialogue that allows us to reflect on the challenges that we as teachers face daily in our classrooms, in search of ways possible for a more dialogical practice in search of a more democratic school, committed to the emancipation of all subjects within it, from the dispossession of knowledge and power. Birth place of my investigator Everyday and invite other teachers to the face of such concerns and common issues, we gather to discuss them in search of a better understanding of our practices on our duties, about our successes and failures, and wires, often hidden, that produce them. Birth of the lived experiences that marked me, and mark my way of being in/with the world. Delivery of many times and places in the text that are confusing, and if you wander round. A narrative that presents itself first and foremost, as a conversation between teachers, perhaps because these teachers shared with me from whence I speak, the place that intrigue me/us, that challenges me/us, I/we do want to seek the dialogue, producing an epistemology in this movement rightfully ours. The voices of mothers, as male and female students and other subjects that weave us this school daily arise to challenge our certainties, our knowledge, talking to other schools, other dreams, other possibilities. The hegemonic project that runs through these discussions and these dreams, is challenging us to revise our beliefs and pedagogical assumptions, our contradictions and ambivalences. The dialogue is the thread that will sew the theories and practices, weaving this fabric where the curricula prescribed in the resolutions and decrees and mainly in the external evaluations, step into our classrooms, our duties and our reflections, which form the complex network curriculum practiced, the hidden curriculum. These schemes visited, reviewed, problematized and governed by the evaluation practices, lead us to question: who are the 'others' of/in assessment? Keywords: School Examination, Failures and Successes, Cultures, Curricula and Otherness.

�DICE

I. POR QUE PESQUISO?..........................................................................................01

II. O QUE PESQUISO? Esses tão meus, tão nossos lugares.....................................19

III.RODA VIVA.........................................................................................................34

IV. CONVERSAS......................................................................................................54

V. CHRONOS: O TEMPO QUE NOS DEVORA.....................................................79

VI. QUEM SÃO OS OUTROS NA/DA AVALIAÇÃO?..........................................99

VII. SUCESSOS & FRACASSOS...........................................................................125

VIII. NADANDO CONTRA O FLUXO..................................................................165

IX. LEONARDO......................................................................................................180

BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................210

A�EXOS

Resolução SME nº 946 de 24 de abril de 2007 ...........................................................216

Decreto nº 30426 de 26 de janeiro de 2009 ................................................................227

Resolução SME nº 1010 de 04 de março de 2009.......................................................237

Transcrição Grupo de Pesquisa DEZ/2008..................................................................239

Transcrição Grupo de Pesquisa ABR/2009..................................................................253

Alunos do PEJA/2010..................................................................................................276

Prova do Se Liga/Português.........................................................................................280

Prova do Se Liga /Matemática.....................................................................................285

1

I. POR QUE PESQUISO?

A Palavra Mágica Certa palavra dorme na sombra de um livro raro.

Como desencantá-la? É a senha da vida, a senha do mundo. Vou procurá-la. Vou procurá-la a vida inteira, no mundo todo.

Se tarda o encontro, se não a encontro, não desanimo, procuro sempre. Procuro sempre, e minha procura

ficará sendo minha palavra. Carlos Drummond de Andrade

Por que pesquiso?

Porque minha ignorância me insulta. Porque a mediocridade me atormenta. Porque

não estou na vida a passeio. O mundo me convoca, me provoca, me desafia a buscar

respostas para todos os seus/meus/nossos porquês. Pesquiso porque a miséria me ofende.

Porque existe uma história sendo escrita e não gosto do que leio. Poderia fechar o livro e

achar – como tantos acham – que com isso cessa minha responsabilidade na autoria dessa

história. Mas não posso.

Pesquiso porque me reconheço como gente no mundo. Um mundo que grita por

socorro, que exige minha presença, que exige muito mais, do que simplesmente, que eu

faça a minha parte, exige que eu faça parte, mesmo com todos os meus defeitos e limites.

Exige não que eu busque respostas para as minhas questões, às vezes tão fúteis e

egocêntricas, mas que encontre as questões que se apresentam nessa relação, doída,

inconformada, apaixonada, com o mundo. Exige que eu mude minhas perguntas, que eu

leia as respostas escondidas nas entrelinhas.

Pesquiso porque o conhecimento – que encontro em muitos lugares, em muitos

sujeitos, vestido e revestido de muitas formas – é o que me permite agir no/com o mundo.

O que me constitui para defender o que penso justo e para atacar o que penso perverso, e o

que me ajuda a estar permanentemente questionando estes dois lugares. A ferramenta que

me inscreve na vida, no lugar que escolhi para ser e estar.

Mas pesquiso também, porque se fiz do conhecimento uma ferramenta, fiz do saber

uma escolha.1 Quem escolhe ser professor, tem no saber sua matéria prima, seu barro, sua

1 “Em outras palavras, a idéia de saber implica a de sujeito, de atividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo(deve desfazer-se do dogmatismo subjetivo), de relação desse sujeito com os outros ( que co-constroem, controlam, validam, partilham esse saber).” Charlot, 2000: p.61

2

terra que precisa ser arada, cuidada, protegida, amada. Terra tão cruelmente queimada,

usurpada, devastada, roubada, terra mal dividida.

O saber é minha pátria. Sem ele sou errante, caminho para lugar nenhum, vago sem

sentido por uma vida vazia. O saber é minha nação sem fronteiras que se expande em cada

encontro, em cada nova voz que ouço, em cada sujeito que berra ou sussurra que sorri ou

desaprova, que me acolhe ou rejeita. O saber é minha paz e meu tormento. Quanto mais o

procuro, mais ele se esconde. Quando se mostra, às vezes não o vejo. Olho para luz e ele se

abriga nas sombras. Vasculho nas sombras e ele escapa pelas frestas. Desanimo. Minha

incompletude, minha solidão, me deprime. Ele senta ao meu lado e me conforta. Aprendi a

amá-lo assim mesmo. Se minha vaidade e egoísmo tentam prendê-lo, ele não canta mais.

Perde seu encanto e graça. Mas se o deixo livre, visita-me de vez em quando, quase o toco,

ele me toma. Assim ele me tem, mas eu não o tenho. Porque ele pertence a todos. Então

busco nos outros, nos muitos outros, o “meu” saber perdido, partido, escondido, e o

encontro nos mais improváveis lugares.

Vou juntando assim os pedacinhos de mim, os pedacinhos do mundo. Cada

pedacinho uma porta para o infinito. Cada pedacinho um todo em si mesmo. Pedaços que

às vezes se esbarram, às vezes se chocam, às vezes se completam. Pedaços que só

encontramos algum sentido quando vistos de muito perto. Pedaços que precisamos olhar de

longe para compreender...

Pesquiso, porque me disseram que não existe ensino sem pesquisa. Coloquei isto

em minha sacola de crenças e desde então só compreendo o meu ser professora quando

acompanhado do meu ser pesquisadora. Assumi habitar este estranho lugar, separado por

tantos discursos e práticas, entre a escola e a universidade. Assumi renegar os dois lugares

em seus limitados absolutos: lugar do fazer e lugar do pensar, para transitar livremente –

mas não impunemente – por ambos, tomando os dois como meus lugares, reivindicando

para ambos sua legitimidade na produção de saberes e fazeres, respeitando suas

especificidades, suas limitações, suas histórias, seus ritos, “manhas e manias” assumi o

diálogo.

Reviro minha sacola e lá está outra crença: a de que pesquisar – assim como ensinar

– é agir no/com o mundo. Quando ensino eu não transmito, eu não capacito, não treino,

não passo. Eu crio e recrio – com os outros – conhecimento. E este conhecimento nos

recria como sujeitos. Quando pesquiso, eu não desvelo, eu não descubro, eu crio e recrio –

com os outros – conhecimento. O que produz o saber é o encontro, é o estar inteiro neste

encontro, fazendo e pensando, vivendo e refletindo. Neste sentido cai a barreira criada – e

3

diria ilusória – de que a pesquisa é aprender sobre o mundo, e o ensino é transmitir o já

aprendido. Como se o conhecimento fosse um produto colhido por uns para ser

devidamente consumido – depois de grande manufatura como tantas vezes vemos – por

outros. A informação pode ser transmitida porque é um dado objetivo (mas não neutro!). O

conhecimento é subjetivo, a experiência que constitui os sujeitos. E o saber é relacional,

produzido na ação dos sujeitos com o mundo. Indissociáveis, complementares, um ganha

sentido com o outro. Pesquisa que não busca a interação e a intervenção na realidade não

produz saber. Produz ornamento, alegoria. Ensino que não questiona, que não busca

conhecer, não é ensino. É farsa.

Não posso formar sujeitos que caminhem pelos diferentes mundos do conhecimento

(experiências diferentes geram conhecimentos diferentes), que caminhem por este mundo

cada vez mais complexo que produz tantos saberes quanto dúvidas, se não assumo um

compromisso com o conhecer, se não assumo um compromisso de tornar este conhecer –

através da interação – saber. Se não busco respostas para minhas dúvidas, se não acredito

que possa construir no diálogo e no conflito novas possibilidades de existência, se não

busco ampliar este diálogo com o maior número de sujeitos, no maior número de lugares

possíveis, enfim se não acredito na possibilidade dos conhecimentos – compartilhados –

transformarem o mundo, então para que ensino? Para que pesquiso?

Para que investigamos novas formas e possibilidades de conhecer? Para que

elaboramos tantas questões, tantos argumentos, tantas leituras possíveis do mundo se ele

deve permanecer ou seguir na mesma e inexorável forma?

Para que buscamos novos métodos, novos recursos, novas práticas, para que

discutimos tanto sobre a necessidade de buscarmos uma excelência no ensino, na formação

de nossas crianças e jovens se o mundo já está condenado a ser miseravelmente o que é (e

o que ele é? Ele é uma coisa só? Ele é a mesma coisa que era?) pela eternidade? Talvez

possamos reconhecer nisso ecos de um sentimento Moderno: a crença de que o mundo

precisa ser transformado, o desejo de “arrumar” o mundo, de ver um mundo melhor. Que

seja! Não posso negar que desejo sim, viver em um mundo mais justo, mais solidário, com

pessoas que se respeitem, que sejam mais felizes. Mas não há nisso uma crença Iluminista.

Não tenho a fórmula ou a chave para criar este mundo, não acredito em soluções criadas

por uns para os outros. Tenho apenas a crença de que os seres humanos são capazes de

fazê-lo coletivamente. Que somos capazes de escrever uma história com menos sangue,

com menos arrogância, com menos truculência, com menos egoísmo, com menos

preconceito e ignorância.

4

Pesquiso porque o mundo “não é, está sendo”, e isso me inscreve como autora

neste mundo. Uma responsabilidade que nós professores precisamos assumir apesar do

peso, às vezes tão duro de aguentar. Responsabilidade que se torna inerente à escolha que

fiz e ao lugar que tomei para mim. Responsabilidade e consciência de que participar dessa

escrita exige a leitura de um mundo que não para e se deixa ler facilmente. Que não se

mostra inteiro, que não se mostra igual no tempo e no espaço.

Pesquiso porque ensinar dói. Quando meu aluno não aprende, dói. Quando não sei

como ou o que fazer com esta ou aquela criança, dói. Dói porque sei que posso escrever

com esta criança uma outra história, diferente daquela que tantos já escreveram, ou tentam

escrever, para ela. Porque sei que podemos e temos o direito – eu e ela – de sermos mais.

Pesquiso para saber como. Talvez não encontre as respostas para todas as perguntas que

tenho. Talvez a pesquisa não preencha todas as lacunas, as dúvidas, as angústias que o

cotidiano marca em nós, mas com certeza – e me permito ter algumas – o caminho que

trilhamos em busca de nossas respostas, nos torna professores melhores para as nossas

crianças, profissionais melhores para nossas escolas e sujeitos melhores para

transformarmos sim, o mundo em um lugar melhor.

Contando Histórias...

Uso as palavras para compor meus silêncios. %ão gosto das palavras fatigadas de informar.

Manuel de Barros

O que pesquisamos ganha outros sentidos quando o sujeito que pesquisa se

apresenta. Compreendendo os espaçostempos onde o sujeito que pesquisa se move,

podemos compreender melhor o que o move e porque o move. Que caminhos vão

constituindo o sujeito que fala, de onde fala e porque fala? Quais as vozes do mundo foram

se tornando a sua voz, e quais foram desafiando seus silêncios. Nas entrelinhas da pesquisa

o sujeito que pesquisa ecoa, se torna um dos muitos fios do contexto onde se produz o

texto. Conhecer quem é este sujeito é ir desvendando, apenas algumas das muitas partes,

que compõe a pesquisa. O mundo visto de um ponto, nem melhor nem pior, nem mais

profundo ou superficial, mas único, e que foi se constituindo a partir de uma história.

História que não segue um único curso, que foi sendo construída em meio a tempestades

5

que mudam nossa direção, encruzilhadas que nos exigem escolhas. Escolhas nem sempre

claras, nem sempre seguras, nem sempre possíveis, nem sempre felizes.

Como são tecidas nossas escolhas? Como os caminhos que percorremos nos levam

a lugares e saberes tão diferentes? Como vamos ao longo dos anos nos tornando os sujeitos

que somos, lendo o mundo dos lugares que lemos? Como nossa história nos traduz, nos

inspira e nos denuncia?

Os pesquisadores com o cotidiano são contadores de histórias? Não sei. Alguns são.

Eu sou. E tenho muito orgulho de ser uma contadora de histórias. Meu caminho como

professora me levou para este reencontro com uma das tradições mais milenares da cultura

humana. Afinal nossas histórias nos constituem e quando as compartilhamos elas criam e

recriam o mundo. “Tudo que não invento, é falso” me provoca Manoel de Barros. O que

somos nós senão uma invenção de nós mesmos? Uma criação de nossas grandes e

pequenas narrativas? As histórias que conto, são recriações, interpretações possíveis em

um universo de lembranças e tantas outras interpretações também possíveis. As histórias

que conto, não buscam a gênese de uma “a verdade”, são apenas traduções minhas, tantas

vezes defendidas com paixão, pois neste momento, são as minhas verdades possíveis.

Talvez o que busque ao contá-las, seja exatamente desafiá-las a permanecer as mesmas.

Talvez o que busque ao contá-las seja exatamente criar novas histórias e outras verdades

possíveis, criar novas e infinitas narrativas, na consciência de minha incompletude, fazer-

me outra.

Em noites frias de céu estrelado, homens, mulheres e crianças sentados ao redor de

uma fogueira ouvem e contam histórias. Histórias reais de caçadas, aventuras, perigos de

além mar. Histórias fantásticas sobre lutas de deuses e demônios. Histórias de amor, de

vida e de morte. Histórias onde se dividem os medos, angústias, sonhos, alegrias,

esperanças. Entre lágrimas e sorrisos vão aprendendo a falar de si, a falar do mundo, dos

muitos mundos que existem dentro de nós. Vão aprendendo que as palavras de

encantamento são poderosas, como é poderoso o ato de dizer. Envolvidos pelo mistério,

pelas chamas, pelos olhares cúmplices de quem divide um segredo vão construindo laços,

cultura e artes do viver. Vão refletindo sobre si mesmos e sobre os outros, sobre este

estranho estar no mundo.

Ao contar e ouvir histórias retomamos nosso lugar junto à fogueira, reencontramos

raízes perdidas, o cheiro e o gosto dos sonhos esquecidos, engolidos pelo cinismo e pela

solidão dos dias tristes. Nos encontramos com os outros e com nós mesmos.

6

Um encontro tantas vezes adiado pela velocidade e voracidade dos sons e imagens

vazias e descartáveis de mundos onde já não existem muitas fogueiras, nem céu estrelado,

nem histórias... Um encontro ao qual precisamos ir, para não nos perdermos de nós

mesmos.

Os contadores de histórias foram os primeiros grandes educadores. Antes de

criarmos este mundo que nos divide entre tantas especialidades eram os contadores de

histórias que falavam dos mundos que habitávamos e dos mundos que habitavam em nós.

Com suas narrativas desvendavam e criavam realidades, mergulhavam nas almas, curavam

feridas, exploravam possibilidades.

Contadores de histórias sabem que as histórias são balsâmicas, nos curam, nos

salvam, nos inventam, nos traduzem. Sabem que as histórias são ciência e arte, são mito e

fé, manifestação profunda disso que chamamos de humano em nós. Sabem que contar

histórias é compartilhar experiências, saberes, ir ao encontro, abrir portas, olhar para

dentro, olhar para o mundo.

Quando assumimos nosso lugar de narradores e não permitimos que apenas os

“outros” nos narrem, deixamos de ser os personagens – bárbaros, lascivos, preguiçosos –

da narrativa dos vencedores, para refletir sobre a nossa própria história. Para estes, nossas

histórias, são apenas “historinhas”, como somos apenas “professorinhas”, “gentinha”,

“povinho”. Mas quando assumimos nosso lugar de narradores, quando assumimos nosso

direito à palavra e tiramos nossas histórias das sombras em que foram atiradas, percebemos

quantas professoras existem tecendo com seus alunos, com as mães desses alunos, com

suas companheiras, outras realidades possíveis, realidades onde somos “gente” onde somos

“povo”. Percebemos que essas pessoas, de todas as idades, não são apenas espectadoras

dos projetos de escola, de mundo, de vida que são apresentados, mas que possuem

representações, saberes, desejos e projetos. Essas são as histórias que desejo contar.

Sou uma contadora de histórias. Sou uma professora, sou uma pesquisadora. Sou também

quem garimpa o refugo em busca das pedras esquecidas e para muitos de menor valor. Sou

também a artesã que tece os fios de muitas relações. Sou o caminho que me move, sou os

laços que me prendem, sou tanto o futuro que desejo quanto o passado que se inscreve em

mim. Todos estes “seres” constituem uma forma única de ser e estar no/com o mundo,

tramam as linhas e entrelinhas da pesquisa.

Contar a história de minha trajetória explica e apresenta o sujeito que fala, porque

fala e de onde fala. A história desta trajetória é um convite e um pacto. Convite ao

7

encontro, para que o leitor tome seu lugar junto à fogueira e possa unir-se a mim nesta

partilha, um pacto de honestidade entre autor e leitor.

Uma criança difícil...

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas (Manuel de Barros)

Meu pai leu em um livro – e ele lia muitos livros sobre os mais diferentes assuntos

– que se colasse o nome das coisas pela casa eu poderia aprender a ler com 2 anos, apesar

dos protestos de minha mãe, professora, que garantia que aquilo era impossível (ou pelo

menos improvável!). Eu não aprendi a ler com dois anos. Aprendi na cartilha Caminho

Suave mesmo, pelo método silábico mesmo, sem maiores problemas. Depois disso, toda

minha infância escolar foi medíocre. Naquele tempo a moda não era ser hiperativo – ou ter

déficit de atenção – era ter disritmia. Eu tinha. Quando converso com alguns amigos fico

com a impressão que minha geração teve mais disritmia que catapora. Talvez, quem sabe,

os hiperativos herdem a Terra.

No ano seguinte a professora da primeira série demonstrava uma profunda

preocupação comigo, avaliou meu comportamento distraído, distante, e não teve dúvidas:

chamou minha mãe e lhe disse que eu era “autista”. Diagnósticos não faltaram para tentar

justificar o meu longo fracasso pelos anos do “primário”. Segundo alguns representantes

de uma certa “ciência” eu tive disritmia, epilepsia, glaucoma, transtorno de personalidade.

Não sei se eu tinha “tudo” isso, mas tinha um profundo desencontro com a escola. A

criança que eu era em casa: curiosa, sagaz, interessada por conhecer muito do mundo, na

escola se tornava apática, distante, pequena.

Não conseguia ver a escola como um lugar que me ensinasse coisas que valessem à

pena, e talvez ainda tenha muita dificuldade de ver, apesar de compreender que carrego

comigo não apenas as marcas que doem, mas as que me constituíram, me formaram e me

permitiram ser também quem eu sou. Na maior parte do tempo a atividade escolar era para

mim um trabalho enfadonho que me desrespeitava não apenas por ser criança, mas por ser

um ser pensante.

8

Entretanto, eu fui uma criança disciplinada (pelo menos na escola), que gostava dos

ritos e cerimônias escolares, o que em uma escola de freiras nos anos 70 não eram poucos:

formar, cantar o(s) hino(s), marcar a caderneta, ver as filas de turmas com os uniformes

impecáveis... Adorava meu uniforme! Adorava o que ele representava, o sentimento de

pertencimento a algum lugar importante. Se meu boletim me excluía, meu uniforme me

incluía, me tornava parte – mesmo que a parte menos nobre – de tudo aquilo.

Gostava também dos textos dos livros didáticos adotados – Morte e vida Severina, a

letra da Banda, a tradicional Velhinha da Lambreta, a carta de despedida de Getúlio Vargas

(que eu não entendia, mas chorava de soluçar sempre que lia!). Mas não suportava as

perguntas que tinha que responder depois, a maioria muito obvia e sem graça (que tipo de

gente é essa que faz uma pergunta para a qual já sabe a resposta!? Pergunta de quem não

quer saber...) não gostava de ser tratada como idiota, apenas porque era criança. Gostava

das aulas de Ciências, História, Artes e “prendas domésticas” e definitivamente eu odiava a

tal da Matemática. O professor parecia ser de outro planeta falando uma outra língua.

Quando eu dizia “não entendi”, ele repetia naquela mesma língua e me olhava. Os colegas

me olhavam também com esperança que eu não perguntasse de novo e obrigasse a todos

terem de ouvir tudo aquilo outra vez. Eu me encolhia e me resignava, afinal eu era a

estrangeira naquela terra absurda, onde tanta gente parecia habitar com tanta habilidade, e

os outros estrangeiros como eu, já haviam aprendido a ficar em silêncio.

Então o mesmo silenciamento que tanto perturbou a professora da primeira série

agora era desejável? Escola. Lugar difícil de entender...

Depois de anos colecionando boletins medíocres, coloridos com suas notinhas em

vermelho que denunciavam como era tênue e estranha a fronteira que separava os 4,7 dos

5,0 os 5,9 dos 6,0 perdi, finalmente, o ano. E ganhei o resto da minha vida de presente.

A dor de viver aquilo tudo, a dor de ser tantas coisas que não entendia direito o que

eram, mas que com certeza eram ruins e me colocavam em um lugar muito diferente das

crianças tidas como “normais” agravaram as crises de enxaqueca (que me acompanham

desde os oito anos) e na quinta série, com a reprovação certa desde junho pelas contas

matemáticas da média escolar, meus pais, sob protestos da família inteira, me tiraram da

escola e me deixaram seis meses longe daquele lugar que tanto mal me fazia.

Fizemos um pacto. Eu iria descansar, cuidar da minha saúde, trabalhar com minha

mãe na escola dela – como auxiliar na turma do jardim – e no outro ano iria escolher uma

escola que gostasse. Mas isso existiria? Talvez. Eu gostava da escola da minha mãe.

Gostava de participar da organização das festas, onde todos – alunos, pais e professoras –

9

trabalham o dia todo com alegria e cooperação (entre algumas discussões e fofocas

também, é verdade!); gostava das excursões; gostava de cuidar e ensinar aos pequenos.

Descobri que ser professora era bem melhor que ser aluna. Descobri também que como

professora teria mais poder para mudar o que eu não gostava na escola, de fazer diferente.

Descobri que para isso precisaria primeiro vencer as barreiras que a escola me impunha.

Tinha 12 anos. Havia feito descobertas que eram muito mais importantes para mim, que

completar as lacunas com a cópia das respostas prontas.

Escolhi outra escola. Parecia um sítio, muito tranquilo sem o barulho de carros e

sirenes, poucos alunos na sala. A biblioteca ficava aberta durante o longo recreio (por que

o tempo encolhe quando a gente envelhece?). Ensinavam xadrez e eu aprendi, para

surpresa do meu pai que não entendia como alguém que não gostava de matemática podia

jogar xadrez tão bem (enquanto eu me perguntava o que meu pensamento estratégico para

o jogo tinha a ver com as equações do segundo grau?); tinha aulas de teatro e fazia parte do

time de handebol. Meu boletim e minha autoestima mudaram. Não mais apenas o uniforme

me fazia me sentir incluída.

Hoje, penso como pequenas coisas, mesmo dentro de um projeto ideológico

perverso e excludente, dentro da mesma perspectiva político-pedagógica podem produzir

muitas diferenças entre as escolas e podem produzir efeitos completamente diversos nos

sujeitos que vivem estas experiências. Minha nova escola não diferia muito em

metodologias, ou concepções de aprendizagem, no entanto, o silêncio do entorno, o

reduzido número de alunos por turma, a relação mais acolhedora e menos formal

representariam para mim uma grande diferença.

Outro espaço e outras relações foram fundamentais na tessitura da possibilidade de

sucesso escolar que até então eu não conhecia. Mas a escola ainda era um lugar com o qual

eu possuía muitos conflitos. Tinha entendido que precisaria vencer na escola para vencer

“a escola” ou as coisas que eu acreditava, precisavam ser mudadas na escola. Eu tinha

vencido apenas a primeira batalha. Muitas outras viriam.

No primeiro ano na escola Normal2, que iniciamos geralmente com 14 ou 15 anos,

apesar de ser ótima desenhista e ser responsável por quase todos os murais, cartazes,

álbuns seriados que circulavam na escola fiquei em recuperação em Educação Artística.

Era uma aluna bastante comprometida com o processo de tornar-me professora. Participava

2 Colégio Olavo Bilac, ensino privado, na Ilha do Governador. Em tempo: durante todo ensino fundamental e médio, fui aluna de colégios particulares, minhas histórias de fracasso, sucesso, fracasso não acontecem, portanto, na escola pública.

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ativamente das atividades da escola, tinha horas extras de estágio, inventava peças de

teatro e esquetes para apresentar para as crianças da escola. Mas, precisavam me lembrar

quem mandava, precisavam que eu cumprisse o que era exigido no currículo e fizesse uma

prova(?) sobre cores primárias e terciárias entre outras coisas. Fiz a prova e passei, mas o

caso virou motivo de piada na escola inteira – até entre os professores – trazendo certo

constrangimento para a professora de Artes. Por outro lado passei direto em Português

mesmo sem entender (por muito tempo): qual a diferença mesmo entre análise sintática e

morfológica? Até os 18 anos eu mal sabia a tabuada, dividir por dois algarismos então? Era

uma ciência mística, oculta. Mas estes são só alguns dos meus muitos não saberes,

produzidos em anos de aprovação – que não foi automática não! – em escolas privadas.

Acredito que a escola não me excluiu por que eu tive uma família que me apoiou e

não deixou que tantos rótulos e preconceitos se colassem em mim. Que nunca duvidou de

minha capacidade, inteligência e criatividade. Que sempre exigiu responsabilidade e

superação. Que nunca me permitiu ocupar o “lugar do coitado”.

Redes insuspeitas se movem na produção do sucesso e fracasso escolar. Minha

família tem uma parcela fundamental na produção desse sucesso, mas tenho certeza, não

foram os únicos sujeitos que teceram estes fios. Talvez sejam apenas a lembrança afetiva

mais significativa, na produção dessa narrativa, mas quantas professoras, professores e

colegas apoiaram, motivaram, produziram tantos dos saberes que me constituem?

Penso quantos podem contar com essas redes que potencializam nosso

aprendizado? Quantos foram e são simplesmente tratados como lixo e descartados?

Narrados e tratados como inúteis e incapazes? Quantas histórias foram silenciadas,

apagadas, quantos perderam o direito de ter suas diferenças respeitadas, quantos perderam

o direito a narrar-se, escrevendo outra história para si mesmo? Não posso escrever por eles.

Mas posso buscar por eles e por suas histórias, que nos ajudam a compreender como

acontecem estas relações tão complexas entre os sujeitos e as escolas. Compreender porque

escolas que ao mesmo tempo são capazes de promover o sucesso de uns, são tão

desastrosas para outros. Entender como nesta relação tensa entre os projetos hegemônicos

e os sonhos e desejos de cada ser escrevem-se histórias de sucesso ou de fracasso escolar.

Cheguei a Universidade, é verdade. Mas não graças aos milhares de testes e provas

que fiz. Na verdade não consigo me livrar do sentimento de que as escolas, principalmente

as da minha primeira infância, muito fizeram para que eu não chegasse, e que esta

trajetória só foi possível por milhares de outros fios que se cruzaram.

11

Apesar de gostar de muitas atividades que a escola oferecia, apesar de trazer lições

inesquecíveis e dias felizes – afinal nada é absolutamente uma coisa só – na maior parte do

tempo a escola atacou minha autoestima, minha paciência, minha criatividade, meu espírito

livre e minha vontade de pensar. Se acreditasse no que diziam as minhas notas do primário

dificilmente chegaria ao curso de formação de professores. Se acreditasse no 1,0 que tirei

em Matemática ou no lamentável 5,0 que tirei em História ainda no ensino médio, não

haveria nem mesmo tentado o vestibular para a UFRJ.3

Mesmo assim, pensando ter superado este processo e não mais acreditar no que a

escola dizia sobre mim, assustou-me imensamente quando minha orientadora no Mestrado

apresentou-me como uma pessoa “estudiosa”...(Quem eu?! Não é de mim que ela está

falando!)

Dei-me conta que mesmo após ter superado tantos obstáculos na escola, algumas

manchas ainda ficavam neste espelho que refletia a imagem que possuía de mim mesma

como aluna. Dei-me conta de como são poderosos e perversos os mecanismos de

desqualificação, as palavras e os olhares piedosos que o humilham muito mais que o

enternecem ou fortalecem. Dei-me conta de que, quando inscrevem essas coisas em nós

quando ainda não temos idade para compreendermos a profundidade com que isso nos

marca e nos defendermos, elas ecoarão por nosso futuro afora. Apagadas da superfície,

gravadas como ranhuras permanentes nas dobras de nossa alma.

Os muitos caminhos da pesquisa...

Sou professora. Filha de professora, neta de professora. Nunca entendi muito bem a

escola. Nunca gostei muito da escola. Nunca saí da escola. Algo neste lugar me desafia, me

angustia, me comove, me toca e por isso me move, me convida à pesquisa. Neste primeiro

capítulo introdutório, considero importante apresentar-me e apresentar os caminhos

percorridos no movimento da pesquisa, como e porque algumas escolhas foram sendo

feitas e outras abandonadas neste momento.

Tornei-me professora da Rede Pública do Rio de Janeiro em 2001. Escolhi

trabalhar em uma escola próxima à minha casa o CIEP Compositor Donga. Durante o

processo para tentar compreender como a escola Ciclada e Seriada conviviam no mesmo

3 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Curso de Pedagogia.

12

espaço na escola4 e produziam o lugar que me foi destinado como professora das classes de

Progressão5 busquei o Mestrado em Educação. Os caminhos da pesquisa foram levando-

me a pensar as diferentes propostas de organização curricular que estavam em jogo, como

estas propostas eram vividas e transformadas pelos sujeitos das escolas, questões relativas

à cultura escolar e alteridade. Durante o curso tive minhas certezas viradas pelo avesso,

encontrei algumas respostas, e aprendi, sobretudo, a desconfiar de como algumas das

perguntas eram/são feitas. Este trabalho reflete, portanto, esta busca que nunca termina,

não pelas respostas certas, mas por outras maneiras possíveis de perguntarmo-nos sobre as

questões que tanto nos afligem: por que alguns de nossos alunos não aprendem o que

queremos ensinar? Como ensinamos o que ensinamos? Por que e para que ensinamos o que

ensinamos? Que sentidos têm e produzem nossas práticas? Perguntas que nascem nas

conversas tecidas com os sujeitos que se encontram e desencontram, que compartilham

angústias e dúvidas.

Os sujeitos, mediados pelas práticas e palavras, produzem em seus encontros os

lugares. Neste movimento criam e recriam formas de viver. Em meu caminhar pela rede fui

refletindo sobre as diferentes formas como as professoras vão recebendo as orientações da

Secretaria, como as direções e coordenações vão interpretando e recriando estas

orientações, como as professoras e seus alunos, como as famílias interagem com estas

orientações.

O segundo capítulo apresenta um pouco dos lugares por onde caminhei e como

estes lugares e seus sujeitos foram apresentando questões e tensões, desafiando minhas

crenças, mostrando meus saberes e meus não-saberes, foram me fazendo outra. Lugares

que dão indícios de como as questões foram se apresentando – surgindo às vezes

timidamente, outras vigorosamente – à pesquisa.

Em 2007 assumi minha segunda matrícula na rede, isso me levou a percorrer outros

caminhos e outras escolas além do CIEP: a E.M. Denise Maria Torres e a E.M. Carlos

Besserman Vianna (Bussunda). Ao mover-me por estas diferentes escolas comecei a

refletir sobre a forma como essas três escolas, com arquiteturas, sujeitos e projetos tão

diversos se constituíam e como recebiam e recriavam o currículo prescrito pela Secretaria

4 Até 2007 a Rede Municipal do Rio só havia implantado o primeiro Ciclo – de alfabetização – e a partir do quarto ano de escolaridade os alunos eram conduzidos para as turmas de 3ª série, ou classes de Progressão. 5 Classes de Progressão eram as turmas que se formavam com os alunos oriundos do Ciclo de Alfabetização – três primeiros anos de escolaridade – que não eram considerados aptos à terceira série. Estes alunos permaneciam nas classes de Progressão por um tempo indeterminado, alguns por três anos ou mais.

13

Municipal de Educação. Currículo prescrito principalmente pela instituição da avaliação

externa, a primeira experiência na rede.

A partir do desafio colocado pela leitura desses espaçostempos que vão deixando

seus lugares cronológicos para assumirem outros lugares, o tempo do diálogo entre

experiências e acontecimentos, este texto vai ganhando novos questionamentos. Questões

que como rizomas, surgem e desaparecem para ressurgirem em outro momento. Mesmo

que a escrita me exija ainda, uma certa ordem...

Estes lugares foram, de certa forma, apresentando as sementes de algumas das

questões que nos conduziriam a pesquisa: os diferentes currículos praticados diante de um

único currículo prescrito; as avaliações externas do município e do país regulando, ou

tentando regular, nossas práticas; as estratégias de controle e as táticas de resistências; os

sujeitos que estabeleçam relações de saber/poder, cultura/alteridade que vão se

constituindo o chão onde desenvolvem as práticas de avaliação; conhecer os sujeitos da/na

avaliação.

Na reflexão sobre estes diferentes lugares e suas práticas comecei a perceber a

complexidade de uma rede com 1064 escolas, com modelos diversos, criando lugares

únicos. Lugares que não permanecem os mesmos, que vão se reconfigurando, se

transformando a cada momento e nos ensinando neste mover-se como cada escola cria e

recria seus currículos, que cria e recria suas práticas avaliativas. Uma reflexão que cresce

compartilhada por outros sujeitos. Movimentos de angústia, dúvidas, esperanças...

Uma Roda-viva, que vai crescendo e me arrastando, que vai me colocando frente a

frente com minhas incertezas e com minhas crenças. Questões que se desafiam e tantas me

partem ao meio colocando a pesquisadora e a professora em uma batalha constante. Uma

cobrando-me mais coerência teórico-metodológico, para que eu olhe para esse cotidiano

em sua complexidade, negando discursos totalizadores sobre a escola, e a outra se

revoltando com as intervenções em sua prática, com o atravessamento do projeto

hegemônico e suas minúsculas capilaridades no cotidiano. Professora que compartilha das

mesmas angústias de tantas e tantas professoras. Revolta que tantas vezes me impede de

ver a complexidade da escola que produzimos. Roda-viva onde enfrento minhas

ambivalências e contradições. Um sujeito que vive um entre lugar (Bhabha), sem saber que

direção tomar dentro de si.

A teoria escorre entre minhas frestas lembrando-me que não sou uma unidade, sou

um inteiro composto de partes inteiras de outros tempos, de outros espaços e outras

verdades. Que me lembra a impossibilidade de ser uma, quando sou habitada por tantas.

14

Lembrança dolorosa, mas primordial para compreender como somos incompletos e

deslizantes em nossa busca obstinada, e tantas vezes inútil, por plenitude e portos seguros.

Primordial para termos a consciência que é este sujeito, dividido e ambivalente, que narra.

A experiência de viver a implantação do Ciclo no Rio de Janeiro exigiu-me

enfrentar e aprofundar-me nas questões relativas a avaliação escolar, principalmente diante

das provas estandardizadas que eram então implantadas pelos governos federal e municipal

e as reações que atravessaram nossas práticas e discursos naquele momento.

Roda Viva – o terceiro capítulo – fala deste momento em que atuava nas três

escolas, ao mesmo tempo. Professora de Educação Infantil pela manhã na Bussunda,

professora do Ano 1 – classe de alfabetização – na Denise Maria Torres à tarde e

professora do PEJA – Educação de Jovens e Adultos à noite – e como a implantação deste

currículo regulado pela avaliação externa foi tomando uma centralidade em minhas

reflexões.

Narrar esta Roda Viva foi e é fundamental para compreender como algumas destas

questões foram emergindo e se configurando como uma preocupação central nesta

pesquisa. Enfrentar, em 2007 pela primeira vez, o Estado Avaliador e sua política de

avaliação externa foi crucial para defrontar-me com minhas crenças sobre a produção do

conhecimento, com as funções e sentidos da escola para as crianças das classes populares.

Preocupações que já eram presentes em minha discussão sobre currículo, ganham novas

faces, novas dimensões. Exigindo novas reflexões. Exigindo outras conversas.

Nossas conversas de professoras, discussões, desabafos e angústias compartilhados

no café, no refeitório, no tempo roubado aqui ali, longe do tempo estipulado, vigiado,

controlado ou tutelado, foram responsáveis por grande parte das questões que se

apresentam. Em busca de aprofundá-las, examiná-las e quem sabe, buscar responder

algumas delas, convidei algumas colegas – professoras alfabetizadoras – para uma roda de

conversas sobre avaliação escolar.

Conversas... o quarto capítulo nasce destas linhas que se cruzam e formam as

tramas da pesquisa. Poderia apresentar este capítulo como a “metodologia” da pesquisa,

mas prefiro apresentá-lo como trama mesmo, pois foi como trama, sendo tecido aos poucos

pelos próprios sujeitos da pesquisa, e não como um a priori que ele surge. Nasce do

movimento da pesquisa, que não esperou por uma metodologia para iniciar-se. Pesquisa

que, para mim, começa na confluência destes muitos temposespaços que foram me

constituindo e também me recriando. Os capítulos até aqui apresentados podem aparentar

uma certa linearidade no texto, mas foram constituídos em temposespaços muito diversos,

15

o que de certa forma, produz um texto escrito por um eu e um outro, que se afasta e se

aproxima de mim.

Escrever sobre nossas conversas como metodologia, nasce também do desafio, ou

convite, lançado por minha banca de qualificação, para que refletisse sobre a riqueza deste

movimento. A conversa como caminho, a conversa como metodologia de pesquisa, a

conversa como lugar de produção de conhecimento, a conversa como potencia pedagógica.

Como um convite à conversa apresento também este trabalho. Conversas que irrompem as

fronteiras do tempo e espaço, questões silenciadas em alguns momentos que se fazem

ouvir em outros, rizomas.

Em 2008 – após o CIEP Compositor Donga sofrer uma intervenção da

Coordenadoria Regional6 e mudar de Diretora – assumi a Sala de Leitura, ficando,

portanto, apenas no CIEP Donga. Esta escola, com quem sempre mantive um vínculo

afetivo profundo, apesar de muito conturbado, elejo para formar o núcleo de pesquisa que

irá refletir comigo sobre as questões que foram se apresentando. Convido inicialmente a

Direção, Coordenação e as professoras que compõem o núcleo de alfabetização da escola.

Convido as professoras que sempre buscam o diálogo, que irrompem minha sala trazendo

escritas de alunos, casos, dúvidas, angústias... Explico-lhes qual a minha intenção e

expectativa em relação ao grupo: que possamos discutir quais as nossas dúvidas, angústias

e práticas sobre as questões relativas a avaliação. Temos algumas conversas sobre minha

perspectiva de pesquisa, minha compreensão sobre como esta é uma prática coletiva e

dialógica. As professoras mostram-se animadas com a possibilidade de participar do

debate.

Combinamos então nossos encontros para os centros de Estudos Integrais7. Nosso

primeiro encontro “oficial” ocorre em dezembro de 2008 e o segundo em abril de 2009. A

pesquisa então passa a ser orientada pelo diálogo que se estabelece entre as questões que

me tocam e as questões que as professoras apresentam.

Os primeiros capítulos deste trabalho são uma reflexão sobre minha própria

trajetória e como neste caminhar de formação de professora/pesquisadora o cotidiano foi

me lançando desafios, me fazendo perguntas que não sei responder e me movendo para a

necessidade de pesquisar. Por isso iniciei apresentando-me e apresentando porque

6 @a Secretaria Municipal de Educação do Rio temos 10 CREs Coordenadorias Regionais responsáveis por acompanhar, fiscalizar, organizar administrativamente escolas de uma certa região. 7 @o Município do Rio de Janeiro os professores têm garantido no calendário Centros de Estudos Parciais – meio turno – quinzenais e um Centro de Estudo Integral – todo o horário – bimestralmente.

16

pesquiso, onde pesquiso, o que pesquiso – como a questão central da pesquisa surge neste

movimento do cotidiano – e finalmente, como pesquiso. O encontro com as professoras

foram silenciando algumas destas questões e apresentando outras. O encontro com as

professoras obrigaram-me a ir ao encontro de mim mesma também e enfrentar minhas

crenças sobre avaliação, revê-las, questioná-las, redimensioná-las. Estas questões – agora

não só minhas, mas nossas – passam a orientar a pesquisa e sua escrita.

Em nossas discussões percebi como somos atravessadas por diferentes

espaçostempos, como nossas trajetórias, nossas memórias e experiências com as escolas

por onde passamos nos constituem e formam nossas práticas. Por isso o texto desenvolvido

no quinto capítulo traz uma discussão sobre as temporalidades que nos atravessam,

temporalidades que, assim como os espaços (esses tão meus, tão nossos lugares) e as

palavras (conversas), vão os tecendo lugares.

Neste quinto capítulo minha voz encontra-se com a voz das professoras para refletir

como nossas concepções sobre o tempo – tempo escolar, tempo de aprender, tempo de

ensinar etc. – vão desenhando nossas práticas, e o quanto estas concepções sobre o tempo

são determinantes para a produção de lógicas que vão definindo o que é produtivo e,

portanto deve ser avaliado e o que não é produtivo e, portanto é ignorado em nossas

avaliações. Refletir sobre o que é produtivo ou não, sobre o que é tempo produtivo ou não,

nos leva a pensar sobre as relações que são estabelecidas em nossa sociedade entre

tempo/produção/sucesso.

A conversa sobre as nossas diferentes concepções a cerca do sucesso e fracasso

escolar de nossos alunos, ou porque alguns não aprendem o que determinamos no tempo

que determinamos, trouxe a reflexão sobre quem fracassa no cumprimento destas metas: o

aluno? A professora? A família? O método? Isso nos apresentou uma questão fundamental

a pesquisa, desenvolvida no sexto capítulo: afinal quem são os sujeitos na/ da avaliação?

Serão apenas os alunos, os avaliados? Quais questões subjetivas e culturais marcam estas

práticas? Quem autoriza uns a definirem em um universo infinito de saberes e informações,

de conhecimentos e disciplinas, quais são os aspectos mais relevantes, importantes e

fundamentais para “todos”? Como essa seleção é feita? Quais as consequências humanas e

sociais que estas seleções produzem?

Quem são os sujeitos na/da avaliação? Esta pergunta nos tomou e nos vez refletir

sobre a avaliação não como uma prática linear, como ação de um sobre o outro, mas como

relações complexas entre sujeitos, ideologias, valores. Relações de colonialidade, de

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subalternização e silenciamento das vozes do cotidiano escolar, por uma racionalidade

moderna, que tenta nos invisibilizar.

Esta questão que foi se apresentando na reflexão das próprias professoras muito

antes que eu a tivesse percebido, me ensinou mais uma vez, que é preciso ter a mão leve no

leme desta jornada, pois assim podemos ser levados por caminhos aonde nunca iríamos

sozinhas, e aprender não o que procurávamos, mas o que nem suspeitávamos encontrar...

Enfrento neste capítulo o desafio de pensar sobre como todos estes sujeitos

encontram-se em relação mediados por uma prática avaliativa que é fruto de uma teia onde

se cruzam diferentes concepções políticas e projetos de mundo, diferentes concepções de

ensinoaprendizagem, diferentes concepções de qualidade e produtividade escolar,

diferentes concepções de cultura e conhecimento, diferentes concepções de avaliação.

O que aprendemos, em nossas reflexões sobre o tempo (chronos), o que refletimos

sobre a complexidade das relações avaliativas na produção do conhecimento e sobre quem

são os sujeitos que nestas relações produzem, ou ocupam os lugares determinados como

sucesso/fracasso escolar entra inevitavelmente em curso de colisão, com as premissas que

sustentam os sistemas de avaliação voltados para correção do fluxo escolar com políticas

neotecnicistas para superação do chamado fracasso escolar, e as concepções de educação e

desenvolvimento humano cristalizadas nas crenças de uma suposta “normalidade”

universal destes processos.

Mobilizadas pela leitura e pelo vídeo8 de nosso primeiro encontro, as professoras,

que exigem de mim uma participação mais ativa no debate, me convidam a pensar sobre

outros caminhos que atravessam a pesquisa: a pesquisa como possibilidade de formação

dos professores; a investigação da história pessoal de cada professora com “a escola” e

como essa história nos forma; que concepções trazemos sobre o que é sucesso e fracasso?

Pensar sobre estes sujeitos na/da avaliação e suas histórias com a escola, me fez querer

entender como estes sujeitos concebem o sucesso ou fracasso escolar, e ampliar este debate

ouvindo outros sujeitos: os alunos da escola ( do PEJA).

Esta é a discussão que apresento no sétimo capítulo, para nos ajudar a compreender

como nossas concepções sobre sucesso/fracasso irão se refletir em nossas concepções e

práticas de avaliação. Como nossa concepção de fracasso se vincula a nossa relação com as

temporalidades únicas, com a normatização e universalização dos tempos humanos? Afinal

aquele que não aprende o que queremos ensinar no tempo “certo” é encaminhado a turma

8 @ossas Reuniões de Pesquisa foram gravadas, editadas e assistidas pelo grupo. Vídeo anexo.

18

dos “fracassados”. Como fomos produzindo socialmente estes lugares – o do sucesso e o

do fracasso – e como a escola foi sendo instituída como lugar de seleção dos sujeitos para

ocuparem estes lugares? Será que as expectativas de sucesso são sempre as mesmas para

sujeitos tão diferentes? O sucesso e/ou fracasso está diretamente associado aos sonhos,

desejos, expectativas e projetos sociais que se encontram em disputa na sociedade. Como

os sujeitos que tecem o cotidiano de cada escola compreendem estes lugares definidos

como sucesso e fracasso? Que sociedades discursivas possuem autoridade e legitimidade

para atribuir estes lugares aos demais sujeitos, mesmo quando estes não compartilham

desta avaliação? Como elas foram se instituindo e tentando silenciar outros discursos?

Nadando contra o fluxo, o oitavo capítulo complementa a discussão do sétimo

capítulo e se abre para novas discussões sobre esta escola erguida sobre os pilares da

normatização, do controle, da uniformidade de corpos e mentes, e como podemos

transformá-la, como muitas vezes o fazemos com nossas práticas, em uma escola onde eu e

meu aluno, sejamos reconhecidos em nossa própria forma de existência, em nossa própria

excelência e qualidade. Onde sejamos nós, avaliando nossas escolhas, nossos caminhos e

nossos saberes. Ou seja, é um capítulo que nada contra a naturalização de lugares tão

engessados em nossas escolas e concepções, que poucas vezes nos paramos para perguntar:

mas por que mesmo foram criados? Será possível fazer diferente? Assumo o contra-fluxo e

vou contracorrente dos que defendem as políticas de correção de fluxo escolar como

soluções para enfrentarmos a produção do fracasso escolar.

O último capítulo é um retorno ao início. Termino – apenas por que é preciso

colocar um ponto final neste trabalho – como comecei: contando histórias. Uma história

tão única e tão igual às histórias de tantas professoras e seus alunos. Uma história que nos

lembra que não precisamos apenas aceitar o que alguns dizem sobre nós, que nós podemos

dizer que somos e fazemos mais. Histórias que me fazem revisitar os lugares percorridos

ao longo do texto e como fui me fazendo outra. Outra pesquisadora, outra professora, outra

pessoa. E deste outro lugar fui compreendendo os limites e possibilidades, meu e dos

outros, na tessitura de outra escola possível. Pesquisa que ensina-aprende-ensina. Pesquisa

que pergunta-responde-pergunta. Pesquisa narrada por mim, escrita por muitos. Minha

história. Nossa história.

19

II. O QUE PESQUISO?

Esses tão meus tão nossos lugares...

“As ideias pedagógicas mais aceitáveis e potencialmente renovadoras podem coexistir, e de fato coexistem, com uma prática escolar obsoleta” (Sacristán 2000, p: 29).

Pesquiso, e minha pesquisa é efetivamente minha prática, o caminho que percorro e

os encontros que estabeleço com os sujeitos que habitam o mesmo espaço e comigo

dividem angústias, esperanças, medos, alegrias e tristezas.

Pesquiso, vasculhando nas memórias e nos acontecimentos, como nossas vozes –

de pais e mães, alunos e alunas, professores e professoras – tentam ser silenciadas,

desqualificadas, ignoradas – às vezes até por nós mesmos – e como este processo vem

criando, não raramente, escolas desprovidas de sentido, de prazer, de um significado maior

para os sujeitos que a priori são os responsáveis por sua tecitura. Pesquiso junto às escolas

por onde caminho, as histórias que vou

escrevendo nestes diferentes lugares, em

diferentes tempos, com diferentes

sujeitos, pesquiso nossos encontros e

desencontros, nossos saberes e nossas

dúvidas, produzidos nesses diferentes

espaços e tempos.

Em abril de 2007 a Secretaria

Municipal de Educação do Rio de

Janeiro publicava em seu D.O. a

“ampliação do sistema de Ciclos de

Formação para todo o Ensino

Fundamental da Rede Municipal de

Ensino”; defendendo a “opção por uma avaliação formativa, de caráter processual, que

deve ser diagnóstica, dialógica, investigativa, prospectiva e transformadora”; onde “o

acesso, a permanência e o sucesso escolar constituem direito do educando”9

A proposta de Ciclos de Formação – como a própria Secretaria Municipal de

Educação denominava10 – implementada no Município desde 2000 para os três primeiros

9 Texto integral : Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, resolução 946 de 25 de abril de 2007.

Rio das Pedras/RJ foto Andréa Serpa

20

anos de escolaridade e que produziu durante todos estes anos (de 2000 a 2007) escolas

híbridas e complexas por sua dupla natureza – projetos de ciclo e série convivendo ao

mesmo tempo no mesmo espaço – era neste momento ampliada, para todo ensino

fundamental, acabando – mesmo que apenas legalmente – com o ensino seriado na rede, o

hibridismo, entretanto, continuaria em nossas práticas, em nossas crenças e em nossos

discursos.

Neste mesmo momento – abril de 2007 – eu assumia minha segunda matrícula, e

era enviada para uma escola “modelo” em Rio das Pedras, localidade de Jacarepaguá a

qual só conhecia de nome. A apresentação oficial e extra oficial é de que era uma “favela”

constituída principalmente de migrantes nordestinos e por esse motivo – esta era a leitura

feita por muitos professores – as crianças eram muito mais bem educadas e “respeitavam”

os professores, diferentes “do que se vê por aí” (o que se vê por aí? Vê-se por aí por

onde?), que a liderança local impedia o tráfico de entrar, e que por isso também seria um

lugar “tranquilo” para trabalhar.11

Refletir sobre os discursos de boas vindas, me levou a algumas questões, como nós

– professoras eminentemente cariocas – percebemos a construção desta identidade –

carioca ou nordestina – como um fator determinante nesse “comportamento” mais ou

menos “educado”. O que estava sendo considerado “educado”? Muitas vezes diante das

marcas visíveis dos castigos impostos às crianças, e algumas vezes intervindo diretamente

(porque na nossa frente) contra a forma, tantas vezes violenta, que os pais “educam” seus

filhos, compartilhamos de certa forma um sentimento de conivência e concordância com

essa “educação”, já que ela é um forte instrumento de poder coercitivo e disciplinador

também para a professora que ameaça a criança com “- Você quer que eu chame sua

mãe?”, poder que, na mesma medida, muitos de nós nos ressentimos, quando

consideramos “ausente” nas famílias “cariocas”. Concluímos então que este povo

“nordestino” tido assim como uma totalidade que nega a riqueza e a diversidade de toda

uma região brasileira sabe educar seus filhos, enquanto nós, “cariocas”, outra totalidade

que traduz os milhares de habitantes desta cidade, não sabemos? O que estabelece o

comportamento destas crianças avaliadas como mais bem “educadas” é apenas a presença

10 Até 2008 fomos administrados pela gestão César Maia. Em 2009 assume a gestão Eduardo Paes. 11 Encontrei a mesma avaliação sobre a “tranqüilidade para se trabalhar” nos textos dos pesquisadores da PUC-RJ que desenvolveram pesquisa no local.Ver:BURGOS, Marcelo Baumann (org). A Utopia da Comunidade, Rio das Pedras uma favela carioca.Rio de Janeiro: PUC-Rio: Loyola, 2002.

21

dessa autoridade familiar ou outras relações – como a valorização da escola como meio de

ascensão social, o poder local que exerce uma vigilância constante, forte presença da

religiosidade e da moral cristã etc – contribuem para esta diferença em seu comportamento

na escola? Como construímos e produzimos estas identidades, ou estes discursos

totalizadores sobre estas identidades? Afinal, Rio das Pedras é uma favela ou comunidade

(como eles preferem ser chamados) com uma população de 60%12 de nordestinos. E os

outros 40% como assumem esta identidade? Como esta identidade local foi sendo histórica

e discursivamente criada e sustentada pelas relações de poder locais? Bauman nos ajuda a

refletir sobre a questão:

“O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo, cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar teimosamente, perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”, torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade.” (Bauman, 2005: p.35)

A ideia de identidade está fortemente ligada à ideia de comunidade. Em um

ambiente hostil, ou desconhecido, os sujeitos forjam suas identidades a partir de uma

comunidade que estabeleça e vigie as fronteiras. Ser um expatriado, um paria, significava

estar fora em um lugar que não era lugar nenhum. Solidão, exclusão. A colmeia protege, o

mundo devora. Pertencer a colmeia é submeter-se aos seus desígnios – o que oprime – mas

ao mesmo tempo gozar de sua proteção – o que conforta. Por isso a ambiguidade do desejo

de segurança oferecido por uma identidade comunitária. A comunidade guarda as

fronteiras que separam nós dos outros, e esta comunidade tanto é mais forte, quanto for

capaz de fazer os sujeitos acreditarem que os outros são uma ameaça real e constante. O

medo do “outro”, cria assim a identidade do “nós”. Torna-se fundamental para a

manutenção do poder dos guardas da fronteira alimentarem devidamente o mito da ameaça

do estrangeiro, do estranho, do diferente, do outro. Eles não só mantêm a fronteira fechada

para os que estão fora não entrarem, como eles mantêm a fronteira fechada para os que

estão dentro – e lhes são subservientes – não saírem e nem mesmo desejarem sair.

A história de Rio das Pedras é fortemente marcada por dois aspectos: a organização

popular local que em diferentes momentos históricos enfrentou o poder público e

econômico e sobre eles obteve várias vitórias e a instituição da Associação de Moradores

como um poder de governo local que regula, organiza, estabelece fronteiras, cria normas

12 Dados do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.

22

de ocupação13 e convivência e defende o que se configura como uma “moral nordestina”

local.

“(...) o associativismo em Rio das Pedras surge em um primeiro momento para assegurar a permanência dos moradores no local, mas sua consolidação é posterior, e está diretamente relacionada à necessidade de se organizar o processo de ocupação do território, controlando o acesso a terra e canalizando formas de pressão para conquista de bens públicos fundamentais, entre os quais energia elétrica e um mínimo de infraestrutura de saneamento.”(Burgos, 2002, p:61)

Como a escola lida com os sujeitos que exercem um poder de governo local? A

ausência do tráfico indica ausência de violência? Qual a influência do poder local na

construção/sustentação ideológica desta identidade local? Identidade, territorialidade,

organização popular e poder, violência e disciplina...

“As batalhas de identidade não podem realizar sua tarefa de identificação sem dividir tantos quanto, ou mais do que, unir. Suas intenções includentes se misturam (ou melhor, são complementadas por) suas intenções de segregar, isentar e excluir.” (Bauman, 2005: p. 85)

A formação da identidade local se constrói não apenas em função de uma origem –

região nordeste – comum, mas em função também da necessidade de reação e proteção à

própria negação sofrida por essa outra comunidade, carioca.

Rimos de sua linguagem,

cultura, superstições e demais

expressões. Nós – essa totalidade

criada discursivamente para o ser

carioca – somos modernos, urbanos,

cosmopolitas. Eles são atrasados,

ignorantes, roceiros. Para eles somos

irresponsáveis, preguiçosos, lascivos.

Identidades formadas. Fronteiras

criadas.

Ao criarem-se estas fronteiras,

com base na ameaça dessas outras

identidades hostis, que ameaçam a

13 Cabe a Associação de Moradores demarcar e distribuir terras conseguidas nas negociações com o poder público o que gera uma relação de gratidão – e servidão – da população com a entidade.

Carlos Besserman Vianna(Bussunda)

23

moral de meus filhos, a dissolução de minha família, a minha sobrevivência, o meu

emprego e segurança, aqueles que exercem o poder local são legitimados com certa

facilidade, o que não significa dizer que não existam sérios conflitos por este poder.

O que logo compreendi foi que a relação que a comunidade havia desenvolvido

com aquela escola em particular era muito específica, e iria marcar este primeiro ano de

funcionamento desta escola. Foram os pais organizados que exigiram da Prefeitura a

abertura e o funcionamento da escola, denunciando na mídia que seus filhos estavam sem

estudar, indo em comissões até a 7ª. CRE (Coordenadoria Regional)14 e devido a esta

pressão popular a escola começou, enfim, a funcionar, mesmo ainda sem a infraestrutura

prevista.

Para este início, enquanto os novos professores aprovados no concurso realizado

em novembro de 2006 passavam por todo processo de contratação, professores foram

deslocados às pressas das Coordenadorias Regionais e até da Secretaria da Educação. A

escola começou sem nenhum funcionário de limpeza – ou da COMLURB15 – para cuidar

da manutenção da escola. O funcionamento da cozinha ficou restrito, sem poder servir as

refeições previstas, por falta de gás e pessoal. Durante todo o ano as crianças, divididas em

3 turnos escolares ( 7h -11h / 11h-15h/ 15h-19h) só recebiam um lanche – 3 biscoitos, uma

caneca de suco e fruta, geralmente – o

que levou mais uma vez a organização

dos pais, já que as crianças,

principalmente do turno intermediário

estavam perdendo peso. Até minha saída

da escola em dezembro de 2007 este

problema ainda não havia sido

solucionado.

A Escola-Modelo é um projeto

desenvolvido entre 2001 e 2002 pela

RIOURBE em conjunto com a SME

(Secretaria Municipal de Educação) que

pretende oferecer um modelo

14@o Município do Rio de Janeiro temos as escolas divididas em 10 CRES – Coordenadorias Regionais, responsáveis pelo acompanhamento das escolas 15Companhia de Limpeza Urbana do Município do Rio de Janeiro que passou a ser responsável pela limpeza das escolas públicas.

Carlos Besserman Vianna (Bussunda)

Foto Andréa Serpa

24

arquitetônico mais funcional, preocupado com questões ambientais, sócio inclusivas e

econômicas. A luz natural entra pelas telhas de policarbonato e pelos tijolos de vidro,

assim como pelas grandes janelas das salas, que garantem a ventilação também. Toda a

escola possui rampas de acesso e corrimãos para os alunos com necessidades especiais de

locomoção. As portas e corredores são largos e os banheiros adaptados para cadeiras de

rodas. As salas de aula são grandes, parecidas com as do CIEP, mas acusticamente

trabalhadas de modo que a escola – ao contrário do CIEP – seja bastante silenciosa. As

paredes das salas e corredores são forradas por murais, o que evita o desgaste das paredes

com o cola e descola dos cartazes, economizando em manutenção, assim como as cores

escuras e vibrantes das lajotinhas – que não precisam ser pintadas anualmente – das áreas

externas.

A Escola-Modelo também foi idealizada para ocupar uma grande área plana e na

minha16 isso se traduzia em um bosque com muitas mangueiras e micos. Era uma escola

bastante espaçosa, contando com sala de leitura, laboratório, auditório, refeitório e cozinha

industrial. Uma escola que impressionava muitos professores, principalmente os que

vinham de realidades bastante diferentes, de escolas pequenas ou adaptadas. Escolas de um

outro tempo.

A Carlos Besserman Vianna (Bussunda) era uma escola em busca de sua

identidade, em um lugar que possuía uma identidade fortíssima, historicamente e

discursivamente constituída. Nós, professoras recém empossadas, chegamos para substituir

as professoras que haviam sido deslocadas de seus postos e que esperavam ansiosamente

por nós. Os pais também nos receberam com muita alegria, já que nossa chegada marcava

o fim de uma situação emergencial e temporária – o que geralmente causa insegurança –

para uma situação “definitiva” ou pelo menos assim compreendida, já que seríamos lotadas

na escola. Essa alegria e participação dos pais se fizeram sentir ao longo de todo ano letivo

que estive nesta escola. Eram presentes e atuantes em todos os momentos, participando de

mutirões de limpeza e organizando-se para cobrar a presença da COMLURB na escola.

Presentes nas festas e atividades como o PANSSUNDA (olimpíadas da escola) como em

reuniões e solicitações da Direção. Realmente o carinho e o respeito por esta escola

“conquistada”, podia ser sentido diariamente. E esta relação das famílias com a escola

refletia muito a relação que estas pessoas tinham com a própria localidade, e se refletia na

16 Tenho o hábito discursivo de, não importa por onde caminhe, ou o tempo e relações que crie, assumo prontamente os lugares como “meus”. Mesmo sabendo – como era o caso da Bussunda – que não seriam meus por muito tempo.

25

identidade que aquelas crianças iriam formando desde muito novas, e em sua relação com

a escola. O que mais uma vez me leva a refletir como as diferentes relações materiais com

o mundo vão nos constituindo diferentes sujeitos. O valor dado pela família à educação, às

relações de pertencimento a um lugar e a construção desta identidade eram peças chave na

relação que a criança construía com a escola, e esta relação por sua vez um dos fatores

fundamentais para a construção de uma escola rica em possibilidades para estas crianças.

Assumi minha segunda matrícula com certa tranquilidade, em uma turma de

crianças da Educação Infantil de quatro anos, que me tratavam – que esquisito! – por

senhora ou professora. E lá fui eu com meu violão, com meus fantoches e fantasias, com

meus riscos e rabiscos para este lugar tão longe da “minha” escola de origem, o CIEP

Compositor Donga.

O CIEP foi um modelo implantado a partir de 1983 pelo então governador do Rio

Leonel Brizola, a partir de um projeto de Darcy Ribeiro inspirado na escola Parque de

Anísio Teixeira. Coube a Oscar Niemeyer o projeto arquitetônico. Construído em grandes

áreas planas, os CIEP foram idealizados para funcionarem em tempo integral, assim como

sonhava Anísio Teixeira, oferecendo às crianças, além dos amplos espaços, atividades

extras, desportivas e culturais, assistência médico-odontológica, etc. Dos 506 CIEPs

construídos, 97 hoje pertencem à

Administração Municipal.

O CIEP Compositor Donga, foi

minha primeira escola na Rede, onde

ingressei coincidentemente também na

Educação Infantil, em 2001. Uma

escola onde jamais vivi um ano sequer

parecido com o outro, o que era ótimo

já que em minha vida também tenho

dificuldade de lidar com a rotina. Uma

escola onde os sujeitos e

acontecimentos se atropelam em uma

velocidade que leva qualquer

pesquisador do Cotidiano a uma

viagem vertiginosa com subidas e

descidas às vezes tão difíceis de

CIEP Compositor Donga / foto Andréa Serpa

26

acompanhar, de conseguir parar para ler o que estes acontecimentos nos contam em suas

entrelinhas. Uma escola que me desafia constantemente.

Após ter sido Apoio à Direção17 por cerca de um ano, minha relação profissional e

pessoal com a diretora tornou-se insustentável e por isto resolvi, com muita tristeza,

afastar-me da escola, ficando somente no turno da noite como professora do PEJA

(Educação de Jovens e Adultos) e fui fazer “dupla”18 em uma turma do primeiro ano do

primeiro Ciclo (antiga Classe de Alfabetização) na escola Denise Maria Torres, dirigida

pela antiga diretora adjunta do CIEP Donga, uma escola Lelé.

A escola Lelé foi projetada por João Filgueiras Lima (que tinha o apelido de Léle),

colaborador de Niemeyer em vários projetos e autor dos CIACs (Centros Integrados de

Ensino-1990) do Governo Federal. Construídas no mesmo período que os CIEPs,

chamados de Brizolões, as escolas Lelé, também chamadas de Brizolinhas, eram pré-

fabricadas para serem erguidas em 45 dias, em diferentes tipos de terrenos. São escolas

pequenas, com média de 8/10 salas de aula, fora os espaços administrativos e um

refeitório, também bastante pequenos, distribuídos em um único andar. Pelas condições

dos terrenos, ao contrário dos CIEPs, possuem, geralmente, pouca área externa, sem pátio

ou quadra de esportes.

17 Apoio à Direção é uma Função Gratificada, indicado pela Direção, terceiro oficialmente na hierarquia escolar para responder pela escola. 18 @a Rede Municipal do Rio os professores podem acumular outra turma, sem vínculo, recebendo pelos meses que trabalha.

E.M Denise Maria Torres / foto Andréa Serpa

27

Cada uma destas escolas se apresenta como um espaço a ser lido. Lugares que não

habito mais, mas que habitam em mim, que se tornaram experiências constitutivas deste

meu caminhar pela Rede Municipal do Rio de Janeiro. Tempos passados que marcam os

olhos presentes, que atravessam as leituras que hoje faço, as dúvidas que carrego, as

questões que me fizeram querer compreender um pouco melhor a pluralidade desta rede.

Lugares que, apesar da intencionalidade do padrão arquitetônico, apesar da

centralidade de pertencerem à mesma rede, apesar de estarem sujeitos às mesmas

exigências administrativas e pedagógicas, são rapidamente recriados pelos sujeitos que ali

instauram suas formas de viver. Diferentes modelos, reinventados pelo cotidiano. Como

aprendemos com Certeau: “Sem sair do lugar onde tem que viver e que impõe uma lei, ele

aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira daí efeitos

imprevistos” (2004,p: 93).

Modelos que como toda criação humana, estão impregnados de conceitos,

representam um tempo, uma ideia, uma intenção. Diferentes formas de materializar a

mesma instituição social: a escola; tendo a priori a mesma função: educar as novas

gerações; que guardam inscritos em suas formas, tamanhos, distribuição e organização dos

espaços, diferenças significativas, mas que possuem em si o mesmo limite: não foram

espaços pensados para as práticas pedagógicas defendidas para a construção de uma escola

que deseje o movimento e o encontro dos sujeitos na tessitura dos saberes. Não são espaços

pensados para uma escola que facilite a organização de trabalhos diversificados, o uso de

diferentes meios de comunicação, uma maior circulação dos alunos, ou outras dúzias de

estratégias para diversificar e enriquecer nosso fazer. São espaços físicos projetados,

basicamente, para escolas onde os alunos executem trabalhos individuais, silenciosa e

ordeiramente, que mantém a centralidade no professor (e no quadro, fonte de todo saber!),

um espaço comprometido com outro projeto.

Mesmo sendo recriados ou reinventados são espaços físicos que oferecem limites à

produção de uma outra escola possível. E podemos considerar essa uma, entre várias partes

integrantes do currículo efetivo, quando compreendido como uma prática complexa, como

lemos em Sacristán: “O conjunto arquitetônico das escolas, que regula por si mesmo,

como qualquer outra configuração espacial, um sistema de vida, de relações, de conexão

com o meio exterior, etc.” (2000, p: 93). Regula, mas felizmente não determina, é preciso

dizer.

Compreendemos que a escola, e me refiro aqui a cada escola em sua singularidade,

se configura como um tecido de mil cores, com uma trama complexa, atravessada por

28

diferentes concepções de mundo, diferentes sujeitos com diversos valores, crenças,

saberes. Cada uma marcada por sua própria história, pelo movimento daqueles que

imprimiram em suas paredes um certo fazer, um certo saber. Cada uma marcada pela

arquitetura de um tempo, por um projeto político pedagógico, constituída por tudo o que

está explicito e implícito, por seus discursos e práticas, por seus documentos e por seus

contratos não revelados. Cada escola um espaço. “Essa história começa ao rés do chão,

com passos. (...) Os jogos dos passos moldam os espaços. Tecem os lugares” (Certeau:

2004 p. 176).

Muitos e diferentes são os conceitos sobre espaço. Utilizado pela geografia,

história, filosofia etc. vem sendo interpretado e ressignificado por diferentes autores. Como

tantas outras palavras/conceitos. O conceito que utilizamos aqui, por coerência teórico-

epistemológica, é o conceito de espaço compreendido por Certeau.

Para o autor “espaços são lugares praticados”. Os espaços existem a partir do

mover-se dos sujeitos no/com o mundo. Este movimento, imprevisível, transforma os

lugares instituídos e planejados para o controle de mentes e corpos pela racionalidade

positivista, em lugares subvertidos pelos sujeitos.

Se Boaventura Santos nos convida a observarmos o tempo presente e buscarmos

nas experiências, nas entrelinhas, nas ausências, aquilo que foi sistematicamente ofuscado

pelas luzes do palco Iluminista, ignorado tantas vezes pelas metanarrativas modernas,

Certeau nos leva para as frestas, para as marcas que as pegadas deixam no chão. Mostra-

nos como os sujeitos não estiveram – ao contrário do que muitos pensam – parados,

quietos e hipnotizados pelo brilho das Luzes. Eles também se moviam. Caminhavam pelas

sombras. Enxergavam no espetáculo desenrolado no palco dos grandes acontecimentos

históricos, outras histórias que nem sempre lembramos de perguntar. Camareiras,

prostitutas, cocheiros, cozinheiros, soldados...que histórias além da História presenciaram,

ouviram, manipularam, teceram?

Isso não significa dizer que os espaços de regulação, de controle e de

subalternização não exercem um poder perverso sobre os sujeitos em nossa sociedade.

Reconhecer que os sujeitos não são simplesmente determinados pelos modos de

produção e regulação dos lugares não implica desconhecer os mecanismos – ou estratégias

para sermos fieis a linguagem do autor – que aqueles que ocupam – mesmo que não

permanentemente – um lugar central na estrutura das relações de poder se utilizam para

legitimar e preservar sua lógica, cultura e modo de produção e vida.

29

Compreendermos como estes lugares foram sendo criados em discursos e práticas,

é tão importante quanto compreendermos como foram sendo por tantas outras práticas –

muito mais que discursos – recriados. Entre a intencionalidade dos arquitetos, as ideologias

dos gestores e o uso diferenciado que professores e alunos fazem do mesmo lugar, são

escritos muitos e diferentes textos. Textos que dialogam, negociam e estabelecem o

currículo que buscamos ler nas paredes, salas, pátios, banheiros e corredores de nossas

escolas.

Como, em cada escola, os professores e alunos, os pais e a direção, enfrentam os

limites impostos por estes diferentes espaços? Como os compreendem e ocupam estes

espaços escolares? Como cada escola cria e recria estratégias para atender à reivindicação

de transformação desse espaço escolar? Como cada sujeito cria táticas que contribuem para

a permanência ou superação da organização espacial? E como estas táticas podem nos

oferecer pistas sobre as necessidades arquitetônicas e espaciais que precisamos para

criarmos um novo espaço para nossas escolas que se afaste de sua constituição física

secular? Um espaço que nos convide a construir uma outra escola.

Ao me tornar errante por esses lugares, realizando um trabalho distinto em cada um

deles, me relacionando de maneira completamente diferente com os sujeitos que se

moviam nestes lugares, estabelecendo com eles diálogos e relações construídas em espaços

e tempos diferentes, me dei conta da multiplicidade de escolas e da pluralidade das práticas

pedagógicas que (co) existem e que respondem, de maneiras distintas, às deliberações

curriculares propostas pela Secretaria. Consciência que já existia em mim teoricamente,

mas que ganha corpo e visibilidade surpreendente quando a materialidade do meu fazer

pedagógico se vê atravessada todo o tempo por estes movimentos distintos e plurais,

quando eu mesma enquanto professora/pesquisadora sou obrigada a pensar e agir não sobre

um lugar, mas sobre vários lugares, partes complexas de um todo complexo. Quando me

movimento não apenas por uma escola, mas por três, a polifonia destes lugares começa a

produzir em mim um diálogo onde semelhanças e diferenças, limites e possibilidades,

histórias de sucessos e fracassos, trajetórias dessas escolas e professores desafiam meus

saberes a permanecerem no mesmo lugar. Desafiam-me a ver-lhes e reduzi-los apenas a

uma “escola” discursivamente.

Com certeza, muitos educadores, pais e alunos, estão recriando estes espaços, e

nossa pesquisa tem a intenção de percorrer com eles alguns destes muitos caminhos.

Contando e recontando, nossos fazeres, nossas práticas, trazê-las para este momento para

30

que possam ser revistas, redescobertas e recriadas pela narrativa, poder que a palavra

rememorada nos oferece.

Com certeza também, esta recriação não é uma recriação tranquila, ordeira. Os

sujeitos se movem de diferentes lugares, assumindo táticas e estratégias, de acordo com as

posições que tomam neste tabuleiro. Tampouco esta recriação é necessariamente a favor ou

necessariamente contra os projetos de escola em disputa. São conflitos que vão escrevendo

as histórias destas escolas. Conflitos que nos afastam da ilusão positivista de um mundo

harmonioso. Harmonia que geralmente esconde na verdade a opressão, o assujeitamento de

uns pelos outros, e nos afasta do que defendemos: o crescimento com e através do outro,

no confronto legítimo de ideias, concepções e verdades, onde o outro, ao expor, analisar e

criticar minhas próprias contradições me permite investigá-las. Por isso, um conflito que

não nos assusta, mas nos intriga e nos oferece pistas sobre como cada escola vai sendo

produzida, como cada escola vai se constituindo a partir de suas batalhas internas –

professores, alunos, pais, direção, funcionários – e externas – Coordenadoria, Secretaria,

Políticas Públicas – como estas se articulam no dia-a-dia da escola produzindo um cenário

único, singular, complexo e mutante. O macro-contexto que atravessa nossas salas, nossas

práticas, nossas esperanças. Um micro-contexto que se insurge, que se ajusta, que se

rebela, que se adapta.

Investigando as práticas curriculares, os currículos instituídos e instituintes dessas

diferentes escolas, me vi sendo arrastada para a questão da avaliação. No curto

espaçotempo dos caminhos desta pesquisa, a rede municipal do Rio de Janeiro, passou por

uma série de reviravoltas nas políticas públicas, tendo a avaliação como o eixo central das

medidas de intervenção nos cotidianos escolares.

Estas intervenções produziram reações adversas em mim e nos contextos que

habitava, provocando-me, convidando-me, obrigando-me a pensar na tensão produzida

pela regulação dos processos de avaliações externas e universais e os fazeres de nós

professoras.

Como pesquisadores do currículo nos ensinam, cada escola é um campo de batalha

que precisamos observar e refletir cuidadosamente, não só através dos currículos

prescritos, que encontramos nos documentos oficiais como os decretos e regulamentações

publicados em D.O, ou como a própria Multieducação19, mas principalmente através dos

currículos praticados, formas e artes do dizer e fazer de cada escola . Para podermos seguir

19 Parâmetros Curriculares da Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

31

as pistas do que realmente acontece em cada escola, mesmo sem a pretensão de

compreendê-la ou explicá-la completamente, precisamos ler os discursos assim como os

silêncios e as práticas assim como as omissões, já que entendemos que toda manifestação

humana é essencialmente política, mesmo a ausência do desejo de se manifestar.

Observação e reflexão que não é de modo algum, pelo mesmo humano motivo, neutra. Que

não paira sobre a realidade, mas que dela participa, e que encontra exatamente nesta prática

o critério de verdade. Observações e reflexões construídas na prática cotidiana de

interações com os sujeitos e não sobre eles. Pesquisa onde não reificamos os sujeitos

transformando-os em objetos, ou mitificamos o pesquisador transformando-o em um

sujeito sobre-humano.

Observação e reflexão que são frutos da interação do pesquisador com o mundo, e

com as muitas vozes e práticas de outros pesquisadores, autores, sujeitos do cotidiano

escolar. Interação que se traduz e se corporifica quando, de meu lugar de professora,

assumo meu lugar de pesquisadora em meu cotidiano, me recusando a estabelecer um

tempo-espaço distinto para atividades distintas, entendendo ambas atividades como

constituintes uma da outra. Não faço e penso. Faço, penso, refaço, repenso. Compreendo

ser esta a natureza de meu próprio fazer pedagógico, razão primeira que me faz buscar

ampliar em todos os espaços – inclusive no espaço universitário, mas não somente – meus

saberes sobre o mundo e sobre os sujeitos com os quais dialogo e interajo na construção

deste mundo. Faz-me buscar o outro, os muitos outros, para constituir-me neles, para com

eles compreender-me melhor.

A eleição deste campo conceitual está fundada em nossa compreensão e

concordância com Sacristán de que “O currículo é um dos conceitos mais potentes,

estrategicamente falando, para analisar como a prática se sustenta e se expressa de uma

forma peculiar dentro de um contexto escolar” (2000, p: 30). Decretos estipulando formas

de conceituação, estabelecendo conteúdos e exercícios globais, provas universais, não nos

afastam da discussão curricular, ao contrário, acredito que a complexifica, já que estas

políticas públicas trazem, cada dia mais revigorada, para a nossa pauta de discussão, a

questão sobre quais conhecimentos são válidos, importantes ou necessários? São válidos,

importantes e necessários igualmente para diferentes sujeitos? Quem está autorizado a

defini-lo? Quais são as expectativas do estado sobre os sujeitos em formação? O que

pensam os sujeitos sobre estas expectativas? Quais são as “suas” expectativas?

Meu trabalho, nossas conversas, o movimento nos espaçostempos da pesquisa

foram me apresentando a impossibilidade de pensar o currículo sem pensar a avaliação; a

32

impossibilidade de pensar currículo e avaliação sem pensar cultura, alteridade,

colonialismo e modernidade; a impossibilidade de pensar as políticas públicas em seu

universo macro – prescritivo, regulador – sem pensar as ações microscópicas de

resistência: os pactos de solidariedade entre professoras e alunos, entre professoras e

professoras, entre mães e professoras. A impossibilidade de pensar qualquer coisa

isolando-a de seu contexto, ignorando a polifonia de seus textos, limpando-a para que não

mais se revela nossas incongruências, inconstâncias e ambivalências.

Este momento histórico vivido por mães/pais, alunas/alunos e

professoras/professores no Rio de Janeiro exigiu de nós reflexões e leituras profundas

sobre os conflitos vividos. As deliberações sobre a avaliação da rede, e todo debate social

provocado em torno dessas deliberações, deixou feridas antigas da escola pública mais

aberta e expostas, pelo menos em mim, de certa forma ainda recém chegada na história

dessa rede. Meu trabalho, nossas conversas, falam sobre estas feridas: como elas nos doem,

como juntas nós as suportamos, como juntas buscamos saná-las. Isto é o que pesquiso... o

que a pesquisa foi me desafiando a pesquisar.

Em um primeiro momento, encontrei em Foucault, Certeau, Morin e Sacristán,

parcerias importantes para orientar estas minhas questões, dúvidas e reflexões sobre a

complexidade das práticas escolares, sobre as relações de poder estabelecidas entre os

diferentes praticantes, e como estas práticas traduzem os currículos das escolas. Outros

autores foram se fazendo necessários e sendo convidados a participar de minhas/nossas

reflexões por exigência da própria pesquisa, pelas questões apresentadas pelo próprio

Cotidiano. Assim Paulo Freire, Carlos Skliar, Maria Tereza Esteban, Homi Bhabha, como

muitos outros, se fazem ouvir nas entrelinhas de meus pensamentos e hoje habitam em

mim, apesar de minhas contradições. Estes autores entre tantos outros não foram

escolhidos ao acaso. São fruto de uma opção, de uma forma de compreender o processo de

pesquisa e construção do conhecimento.

Os autores citados entre tantos outros, são autores que rompem com concepções

dicotômicas da realidade, problematizando o mundo para além de mocinhos e vilões.

Autores em quem nós, pesquisadores do Cotidiano, encontramos as questões necessárias,

para perceber as muitas realidades, os muitos mundos e muitas culturas que se enfrentam

em nosso dia-a-dia. Autores que nos convidam a pensar sobre a dialógica do mundo. Na

polissemia que encontramos, não só nos outros, mas em nós, e que formam não apenas

nossos discursos sobre a escola, mas se deixam ler em nossas práticas. Convidam-nos a

pensar sobre o poder que deixa de ser uma entidade metafísica para encontrar seu lugar no

33

mundo humano, nas práticas dos sujeitos, e que sem deixar o seu trono de visibilidade, sem

deixar de existir como macro-poder revela-se também, nas sombras, nos micro-poderes,

exercidos por todos nós, e em muitos sentidos, ora na superação e ora na adesão dos

modelos de escola em debate.

Autores que nos convidam a adentrar a vida, com toda sua complexidade e

mistérios, que nos convidam a olhar a escola, caminhando por seus corredores,

compartilhando suas dores, olhando nos olhos de quem fala e de quem faz esta escola

acontecer. Convidam-nos a ler as complexas relações entre os sujeitos e os poderes que

circulam, que exercemos e que se exercem sobre nós. Ler nas encruzilhadas dos decretos,

determinações, deliberações sobre avaliação os projetos que são escritos “para” a escola

pública, mas ler também este currículo impresso em suas paredes, em seu movimento vivo,

deslizante, mutante, contraditório. Este currículo praticado, onde o sentido da escola é

escrito, onde seus valores são tecidos, onde seu coração pulsa.

34

III. RODA-VIVA

Era um dia de festa em minha pequenina escola Lelé a DMT (Denise Maria

Torres). Um entre muitos outros, já que a escola contava naquele ano (2007), com um

grupo de professoras muito “barulhentas” e “bagunceiras” (eu inclusive!), o que de certa

forma, quebrava com a formalidade e certo conservadorismo que a escola havia construído

nos anos anteriores. Puro acaso! Não nos conhecíamos até aquele momento, mas a

solidariedade no cotidiano, o trabalho coletivo organizado por uma Coordenação muito

presente, com autoridade conhecida e respeitada – que resistia mesmo aos momentos de

autoritarismo – por seu compromisso, paixão e envolvimento com a escola, as dimensões

da própria escola que facilitavam mais o contato, ou por outras mil razões que minha razão

desconhece, haviam instituído um grupo que discutia, participava, propunha, interagia de

uma forma muito divertida, o que tornava a escola um lugar onde gostávamos de estar. Um

lugar de encontro. Foi em um dia de festa – culminância do primeiro projeto desenvolvido

pelo grupo – que recebemos a notícia da Resolução 94620, que iria marcar profundamente

toda Rede Municipal do Rio de Janeiro durante o ano de 2007.

Como sempre, quando sou tomada de um sentimento de raiva – e uso raiva porque

indignação não traduz a dimensão de minhas emoções/reações – busco na palavra meu

conforto, meu alívio. Mas não foi com facilidade que assumi o risco de preferi-la. Assim

como não é com facilidade que transito entre estes dois mundos: o da escola e o da

academia, e tento estabelecer um diálogo entre eles, vivendo em uma fronteira que muitas

vezes me cobra caro estar neste “lugar”, me dividindo em partes que lutam – com igual

vigor – e defendem, às vezes com lógicas diferentes, a mesma escola. Identidade

ambivalente onde tantas vezes sou transformada no “outro” de mim mesma.

Lembro-me de assistir na TV – o que me motivou a comprar o livro – Marilena

Chauí – entre muitos outros grandes pensadores do mundo – falando sobre o “Silêncio dos

Intelectuais”. Sua reflexão sobre a diferença entre os “especialistas” que emitem opinião

sobre tudo e qualquer coisa, e os “intelectuais” que necessitam de um tempo para

amadurecer suas leituras e críticas, não se deixando tomar pela avalanche dos

acontecimentos – reais ou produzidos pela mídia – que muitas vezes nos levam a opiniões

superficiais e/ou irresponsáveis. Preocupa-me, por essa consciência de minha

responsabilidade como professora/pesquisadora, de minha responsabilidade como

20 Resolução que estabelece a ampliação do Ciclo para todo ensino fundamental. Em anexo.

35

intelectual, o dizer descompromissado, o dizer leviano produzido no calor da paixão, o

dizer que ainda não repousou no silêncio para amadurecer...

Ciente de minha responsabilidade vou à busca das palavras que me revelam, e ao

me revelarem, revelam também um tempo, um pensamento. A palavra escrita permite que

eu me reencontre e possa compreender o meu vivido, depois que a história me deslocou de

um lugar para outro. A palavra permite que eu rememore e que observe as contradições

que a paixão, livre da censura da razão, guarda em minhas sombras. A palavra rememorada

me permite vasculhar os meus porões e descobrir aquilo que, no fundo, habita em mim. A

palavra guardada, registrada, se não me permite desdizê-la, como me alerta Marilena

Chauí, me permite recriá-la. E isso, como sujeito histórico que sou, me é direito.

Por isso guardo e levo em minha bagagem, algumas palavras destes momentos, por

isso escrevi em abril de 2007 o texto que segue, e o deixei guardado até o momento:

“Tem dias que a

gente se sente

como quem partiu

ou morreu (…) a

gente quer ter voz

ativa no nosso

destino mandar,

mas eis que chega

roda viva e

carrega o destino

pra lá(…)”

(Chico Buarque)

“A Coordenadora Pedagógica comunica ali mesmo no corredor, como quem conta

um segredo: foi publicada a resolução de avaliação do novo Ciclo21. Os conceitos

extremos foram suprimidos e agora temos que “encaixar” todos os nossos alunos em MB

(muito bom) B (bom) ou R (regular) o O (ótimo) e o I (insuficiente) foram retirados, talvez

exatamente por se tratarem de extremos. Sem dar tempo para que pudéssemos – eu e

outras duas professoras – digerirmos esta informação, continua, com aquele prazer

21 DO do Município do Rio de Janeiro (27/04). Resolução SME nº 946, de 25/04/2007.

E.M Denise Maria Torres / foto Andréa Serpa

36

sádico, que todos nós temos um pouco, de quem vê a oportunidade de compartilhar sua

própria dor: e os P I ( professores dos últimos ciclos antiga 5ª. – 8ª) deverão se reunir e

chegar a um conceito global para o aluno, ou seja, os seis ou oito professores deverão

chegar a um consenso sobre cada aluno. Inevitavelmente me vem à mente: vão acabar

seguindo a mesma lógica e eliminando os extremos, para chegar rapidamente a um acordo

vão distribuir uma quantidade absurda de B para quase todos, afinal ninguém é “muito

bom” em tudo ou “regular” em tudo, a opção acaba sendo mais mediadora,

principalmente quando você imagina um professor que tenha seis turmas diferentes – não

necessariamente compartilhadas com os mesmos colegas – tendo em média 40 alunos em

cada turma, são aproximadamente 240 alunos para serem “negociados” em grupos

diferentes. Quantas horas tal procedimento demanda? Este tempo será garantido? Quais

os critérios para tal negociação? Como evitar a soma de letrinhas e tirar uma média

aritmética? O objetivo no final das contas não é gerar estatísticas positivas? Então não

seria melhor dar logo MB para todo mundo e pronto? Perguntas que muitos professores se

fazem. Perguntas sem respostas claras.

Sinto um calafrio na espinha, e de repente dissipa-se a alegria que sentia naquele

momento de festa de nossa escola, A culminância do projeto imprimira um ritmo frenético,

com professores e alunos circulando, arrumando a exposição dos trabalhos, fazendo os

últimos ensaios, a escola pulsava, viva, alegre, produtiva...de repente tive vontade de

chorar. Chorar mesmo, de tristeza, de raiva, de frustração. Mas não chorei, só entristeci e

guardei bem lá no fundo esta tristeza fora de hora.

A professora J. que trabalha no Estado como prof. de Educação Física traz a

prova de um jovem, 21 anos, “esforçado”, “bonzinho”, da 8ª. série. A avaliação trazia

cinco perguntas sobre o tema trabalhado: Os jogos Pan Americanos. Ela pede que a

Coordenadora tente ler a resposta da pergunta: O que é o Pan? (olha aí o tal prazer

voltando!) O texto, além dos, cada vez mais absurdos e comuns (e tolerados) erros

ortográficos, possuía problemas sérios de organização interna, como se quem o tentasse

escrever não fosse falante da língua portuguesa, mas um estrangeiro, que conhecesse

alguns substantivos, alguns verbos, mas nenhum conectivo ou organização frasal. O aluno

usava parágrafos e letras maiúsculas, vírgulas, pontos...Talvez eu (não sei as demais

professoras) não possua conhecimento linguístico suficiente para uma análise

aprofundada do que tentamos ler, mas como leitoras compreendíamos claramente que o

texto não cumpria sua função social: não comunicava.

37

Este jovem de 21 anos, aluno da 8ª. série, não conseguia se fazer compreender,

mesmo demonstrando certo conhecimento sobre a estrutura e organização da língua. @ão

conseguia exprimir através da escrita um conhecimento – que acredito que possua – sobre

os jogos que vão ocorrer em sua cidade, sobre sua preferência por uma modalidade, sobre

os estádios e países que irão participar.

Reflito sobre a avaliação. Parece-me pertinente. O tema é atual, bastante veiculado

pelos meios de comunicação, está presente em nosso cotidiano e segundo a professora foi

desenvolvido e sistematizado na escola, e pelo que observo diariamente de seu trabalho,

acredito em sua afirmação. Será o tema tão distante da realidade, ou do interesse deste

jovem? Será que este foi o motivo de sua dificuldade? Volto a refletir sobre a estrutura do

texto.

@ão. O problema que vimos no texto não era a falta de um conhecimento do

conteúdo específico, mas a falta de clareza, coerência e sequência lógica na estrutura do

dizer. As palavras se perdiam e se chocavam procurando um lugar para se encaixar, mas

sem encontrá-lo.

Lembrei-me de ler alguns textos assim, em redações de professoras do curso de

Pedagogia à Distância. Textos cheios de palavras, ideias, orações que se digladiavam em

busca de um caminho, de um sentido. Lembrei-me de tantas e tantas histórias de

professores, de suas expressões, risos e assombros diante desta escrita recortada, ilegível,

incompreensível. Lembrei-me também de uma outra forma de texto, no meu tempo de

ginásio (na verdade segundo segmento do 1º. Grau, mas todo mundo chamava – e

continua chamando – de ginásio mesmo!) era comum os professores acharem graça das

respostas “tolas” quanto ao conteúdo, mas extremamente criativas no poder de “enrolar”

ou usar a língua. Inventávamos textos divertidos que podiam não responder quais os

afluentes do rio Amazonas, mas eram escritos em um português razoável (no meu caso um

pouco menos que razoável!), que cumpriam de certa forma a intenção do autor,

comunicavam nossa ignorância geográfica com charme e leveza esperando garantir ao

menos a simpatia do professor. Jovens astúcias!

A professora trouxe o texto para ilustrar o sentimento cada vez mais comum, cada

vez mais latente nos corredores das escolas por onde caminho: o que estamos fazendo com

nossas crianças e jovens? Que escola é essa? Porque negamos a eles aquilo a que tivemos

direito, e que nos trouxe até aqui? Que permitiu nossa aprovação no concurso público,

nosso ingresso nas universidades? Que nos permite expressar e compartilhar nossos

pensamentos e sentimentos com o mundo? Em que parte do caminho em busca da

38

compreensão e respeito aos saberes dos alunos, busca importante e necessária, abrimos

mão dos “saberes” da escola? Em que parte desse nosso caminho, desse nosso pensar

uma educação inclusiva, democrática, o compartilhar, o negociar, o confrontar, o

questionar os saberes, se transformou na omissão ou no sucateamento de conhecimentos

fundamentais para a inserção e uma participação ampliada do sujeito em um mundo cada

vez mais complexo, que exige cada vez mais de todos nós? Ou o ler e escrever deixaram de

ser fundamentais em nossa sociedade?

A professora trouxe o texto também, para ilustrar uma longa discussão que

mantém com a Coordenação sobre a produção textual igualmente ilegível dos seus alunos

do terceiro ano do ciclo (antiga 2ª. série) e sua preocupação com esta leitura – e

avaliação – extremamente condescendente sobre a produção textual dessas crianças.

Discussão fértil onde a Coordenadora consegue perceber e valorizar – o que concordo – o

que eles sabem e aprenderam, enquanto a professora preocupa-se – o que também

concordo – com o que eles, em nosso julgamento, deveriam e precisariam saber.

Enquanto a escola pulsava, em meio aos desenhos, poemas e música, voltava a

velhas questões, a antigas dores. Se por um lado concordava, por tudo que havia visto e

aprendido, que precisamos de uma escola afirmativa, onde a criança possa ser vista e

avaliada pelo que é, pelo que sabe e pelo que faz, por outro lado, preocupava-me o quanto

a defesa desta pedagogia – ou o uso que se fazia dela – poderia custar e comprometer o

trabalho de nossa escola e o futuro daquela criança. Perguntava-me como garantir uma

escola de qualidade onde cada sujeito pudesse ser parâmetro de si mesmo? Como

permitir que meu aluno, tantas vezes orientado pelo prazer momentâneo e efêmero, tantas

vezes orientado pela lei do menor esforço, pudesse estabelecer realmente quais os

parâmetros ou limites para sua aprendizagem? Estaria eu subestimando a capacidade de

meus alunos encontrarem o próprio caminho no universo cada vez maior de informações e

saberes? Ou seria a minha incapacidade de garantir espaços e tempos para que estes

interesses se manifestassem? Ou ainda minha herança jesuíta, que desejava no fundo no

fundo fazê-los à minha imagem e semelhança? O que eles queriam?

Volto a caminhar neste lugar perdido entre os sentidos que o sujeito, que o mundo

(no sentido mais amplo) e que nós professores, criamos para a escola, sem saber ao certo,

muitas vezes, por onde devo ir.

Se aprendi duramente, desde criança, como pode ser perverso ter um parâmetro

externo, imposto tantas vezes de maneira cruel, ter um modelo ao qual se deve seguir,

desejar, copiar e ajustar-se para ingressar no mundo dos “normais”, o oposto pode

39

tornar-se igualmente perverso: a ausência de qualquer parâmetro. Se cada sujeito for

parâmetro de si mesmo, se cabe a cada um definir não apenas o seu tempo de

aprendizagem, mas o que, quando e “se” quer aprender, como conceber e estabelecer um

conceito para o que chamamos (clamamos e proclamamos) de qualidade? Este tempo –

cada vez mais ampliado – que nossos alunos levam para aprender – cada vez menos o que

queremos que aprendam – reflete realmente nosso respeito ou nosso descaso? Ou ambos,

dependendo do praticante?

Como podemos conceber ou estabelecer metas comuns ou avaliações que mesmo

não tendo como objetivo comparar ou classificar sujeitos possam servir de bússola para

orientar um trabalho que tem em sua estrutura e forma a coletividade? Sim, porque não

somos preceptores, não somos filósofos em um palácio educando pequenos Alexandres.

Somos professores de dezenas de crianças, amontoadas em salas nem sempre confortáveis,

que nos trazem histórias nem sempre bonitas, que por milhares de motivos e razões

estranhas, algumas vezes ocultas, outras vezes não, aprendem o que desejamos ensinar-

lhes, ou não.

Somos professores de uma rede que estabelece parâmetros, em um país que

estabelece parâmetros, em um mundo que estabelece parâmetros. Parâmetros que devem e

precisam constantemente ser revistos, criticados, debatidos, analisados, e rompidos à

medida que se tornem grilhões, mas que precisam existir, já que nossa existência é social e

coletiva. Uma existência ainda pouco democrática e pouco participativa que precisa

aprofundar esta discussão, que precisa encontrar uma maneira que mesmo sendo plural

respeite cada sujeito em sua singularidade. E que por outro lado, mesmo respeitando o

sujeito, seus saberes, suas experiências, seus desejos, encontre seus parâmetros, seus

objetivos, suas metas, enfim, sua finalidade.

E talvez seja a ausência deste processo coletivo e democrático o maior “calcanhar

de Aquiles” da implantação do Ciclo no Município do Rio de Janeiro.

As portarias e resoluções “caem” sobre nossas cabeças como ordens “Del rei” e

nos chegam na forma de fragmentos, informações desencontradas, silêncios. Multiplicam-

se as perguntas sem respostas que alimentam a sensação de desordem e falta de rumo, que

por sua vez, alimentam a desconfiança e resistência do corpo docente, como podemos ler

nos depoimentos, questões e desabafos postados na internet:

40

“Se preparem, mestres, pois corre um boato22 que os conceitos extremos vão ser excluídos, ou seja, os conceito "O" e "I" não mais existirão, passando a valer somente os conceitos "MB", "B" e "R". %ossos alunos merecem. %ão merecem???? (prof. Jesus)”·

Simples resistência conservadora ou percepção intuitiva e crítica do uso das

teorias pedagógicas e escolas filosóficas para se desqualificar o ensino para as classes

populares no Município do Rio de Janeiro? Prefiro ter certo respeito pelo que Paulo

Freire chama de “saber de experiência feito” e ao contrário do que vem sendo feito

sistematicamente por nossos gestores, ouvir atentamente a voz destes professores, que

percebem cada vez mais as contradições entre a estrutura material, a (ausência de) uma

prática democrática e os discursos político-teóricos, e reagem a ela de diferentes, e

legítimas, formas.

Os professores são constantemente acusados pelo fracasso do sistema escolar, que

seriado ou ciclado, vem estampando um resultado constrangedor em muitas pesquisas

sobre a educação, perdendo a credibilidade frente à sociedade que “leiga”, tenta

compreender: porque nas últimas décadas as crianças passam tanto tempo na escola (200

dias letivos) e aprendem menos do que se aprendia? Podemos escrever (e como

escrevemos!) vários tratados explicando os motivos sócio-político-econômicos-culturais-

linguísticos-bio-psicológicos que explicam este fato percebido pelos “leigos”. Explicam,

mas não justificam.

Como vai longe de mim a tarefa de tentar justificar, tentarei apenas refletir sobre

alguns dos fatores que contribuem para tornar esta escola “inteligível” e “absurda” aos

olhos de pais e professores a partir de alguns ecos...

“Bem... Vamos ver o "lado bom" da coisa: economia de caneta vermelha!!!!!! Tudo azulzinho e "bunitinho".Aliás, tô até pensando em dar uma adiantada no meu trabalho e ir colocando logo os conceitos do ano inteiro de cada aluno. Prá que pensar muito? Já resolvi: TODOS os meus alunos vão ganhar um lindo conceito R e, caso ocorra um "milagre", é só emendar a "perninha" do R e ele vira um B! Quem sabe no mês que vem eu preencho logo a aprovação de todos (Simone)”23

A professora expressa, com ironia e certa amargura, um desprezo bastante comum

nas falas dos professores com quem venho compartilhando este cotidiano marcado por um

sentimento de impotência e desvalorização que podem se refletir ou não em sua prática,

22Grifo meu. 23 Idem.

41

mas que seguramente circulam como veneno em nosso sangue, matando pouco a pouco a

esperança, alimento de nosso fazer.

Lemos ainda na mesma página algumas observações:

“A educação está uma bagunça mesmo. É o fim da picada... Estou sem palavras... (Mariana)”. “Que legal! Então vou fazer uma pergunta FÁCIL: Pra que vai servir o professor? (Aparecida)”. “Somos, no máximo, a versão tupiniquim da supernanny. mas não tão super(anônimo)”.

O que motiva estas reações tão desalentas sobre a nova avaliação? Como uma

categoria profissional que expressa de maneira tão clara uma autoestima dilacerada, o

cansaço e a descrença, pode transformar a educação e contribuir para a transformação

do país?

Compartilho com meus colegas o desassossego e a tristeza de quem se sente posto

a parte, coisificado e assujeitado como uma peça dispensável em uma engrenagem muito

maior que parece conspirar contra nosso fazer, contra a escola, contra o professor e

contra o aluno.

@ão apenas pela mudança na forma de aferir conceitos, mas pela ausência da voz

dos educadores, dos pais e dos alunos neste processo.

@ão apenas porque depois de anos de críticas à limitação dos conceitos numéricos,

continuamos apenas trocando números por letras, e que dessa vez teremos que representar

toda a diversidade e pluralidade que encontramos em nossas salas, em uma escala de 0 a

3, mas simplesmente porque essa avaliação não contribui para tornar esta escola visível,

compreensível, mensurável, ou melhor. Sabemos, ou melhor, acreditamos, que ela se

presta apenas para mascarar ainda mais o fracasso escolar, não o fracasso do aluno em

aprender o que julgamos importante ensinar, ou fracasso do professor que julgamos não

conseguir ensinar, mas o fracasso deste sistema que realmente não parece se importar

nem com um ou com outro, enterrando a ambos em um fazer vazio de sentido e de

esperança.

Por que avaliamos? O que avaliamos? Avaliamos nosso fazer, nosso fazer junto,

nossa capacidade de criar no espaço escolar um lugar onde eu professor me reconheça

como sujeito, onde meu aluno se reconheça como sujeito. Avaliamos este fazer e seu

sentido para ambos, professores e alunos. Avaliamos os saberes compartilhados. Avaliar é

perguntar se valeu a pena? Valeu a pena levantarmos de nossas camas, deixarmos nossas

42

famílias, deixarmos nossos amores, nossos prazeres, para estarmos aqui, juntos?

Construímos algo? Transformamos algo? Aprendemos algo?

Quando planejamos nossas aulas e estabelecemos nossos objetivos pensamos: O

que eu vim buscar aqui? O que eu quero? Quando encontramos com os outros – nossos

alunos, pais, colegas, coordenadores – compartilhamos e negociamos este querer. Ao

nosso querer somam-se outros, e outros ainda precisam travar muitas batalhas. E em

algum momento desta trajetória paramos para nos olharmos e perguntarmos: Vamos em

frente? Vamos por aqui? Devemos voltar? Estamos no rumo certo? É isso o que

queremos?

Onde encaixamos nossos números e letras nesta estrada? Será realmente esta a

questão fundamental?

Como professora não me lembro de sentir a necessidade ou precisar “colar” uma

letra ou um número em meu aluno para estabelecer o que pensava de seu

desenvolvimento, ou entender que isso produziria maior ou menor sucesso em minha/nossa

prática. Também sempre encarei a avaliação como um reflexo de um processo

estabelecido na interação do professor com o aluno, e não como um reflexo do que meu

aluno sabe ou deixou de saber. Ele com certeza sabe muito mais do que eu imagino, e

sempre muito menos do que eu gostaria que soubesse (e como os coitados sofrem com essa

minha ansiedade!). Avalio não a ele, mas a nós. A nossa capacidade de negociarmos estes

saberes de forma produtiva, qualitativa e crescente em nossa prática e convívio diários.

Ele não aprende sozinho, eu não ensino sozinha. @ós criamos juntos este lugar do

aprender. Tenho dificuldade, portanto, de compreender como este lugar pode ser

“repetido” ou “recuperado”, já que para mim este lugar é sempre criado e recriado.

Refletir sobre o processo de aprendizagem, sobre suas idas e vindas, sobre os

fatores que interferem e contribuem para o aprendizado significativo deste ou daquele

conteúdo ou valor sempre me pareceu mais produtivo. Concordo, portanto, com a

necessidade dos relatórios de avaliação, com registro diário de percepções,

acontecimentos, avanços e desassossegos vividos na prática pedagógica. Concordo com

uma avaliação qualitativa, com a história escolar entendida como um processo contínuo.

Mesmo assim, compreendo e compartilho a dor dos professores que se sentem

traídos ao perceberem que nas entrelinhas dos discursos pedagógicos está escrito, mais

uma vez: “O fracasso da educação é culpa sua, o problema é seu! Resolva-o ou esconda-

o, mas não me atormente com ele. @ão posso perder votos!” O que mais atormenta a

muitos de nós professores é perceber que o foco da questão recai sempre sobre a questão

43

metodológica – não temos conhecimentos pedagógicos para diversificarmos nossa prática

e garantirmos o sucesso – ou sobre a questão de formação – somos incompetentes mesmo!

O que nos atormenta é que em momento algum (no interior da rede) se discute seriamente

as condições sociais, econômicas e infraestruturais que serão oferecidas como suporte a

esta prática. Em momento algum se discute – ou se propõe soluções – como somos reféns

da violência dos alunos, da negligência dos pais, da burocracia inútil, da ausência de

recursos humanos e materiais. @ão temos nas escolas Orientadoras Educacionais, não

temos Inspetores, nem segurança, entre outras milhares de “ausências” sentidas que

conspiram para que a nossa escola pública não encontre a qualidade que desejamos.

Será que ao reduzir todo fracasso escolar à questão “metodológica” ou de

“formação” não estamos buscando uma explicação simplista e aprofundando ainda mais

o abismo que existe entre a escola que se diz querer e a escola que se está permitindo ter?

Ao reduzirmos a questão do fracasso escolar a questões meramente pedagógicas (mesmo

reconhecendo sua importância ou centralidade no debate), não estaremos descolando a

escola – enquanto instituição – de seu universo social, político e cultural e a tornando-a

uma entidade metafísica que paira sobre o mundo? E que pode ser idealizada, e

“resolvida” por decreto, independente dos sujeitos que irão, nas suas relações estabelecer

sua existência real?

Talvez não seja fundamental quando discutimos ou teorizamos sobre os

procedimentos e formas de avaliação, a questão se vamos aferir números ou letras, cinco

ou três letrinhas, mas esta questão vem sendo o centro das discussões dos professores

neste momento. Por quê? @ão podemos simplesmente ignorar o fato do quanto isso

mobilizou a atenção dos docentes (e dos pais, dos alunos, da mídia, da Câmara, do MEC)

do Rio.

Sinto um profundo estranhamento quando me deparo com as declarações, não

raramente raivosas, contra o Ciclo e claro, contra a Resolução de se aprovar

automaticamente todos os alunos. Contudo esta não é uma prática recente ou “resolvida”

só neste momento. Há alguns anos sofremos várias pressões, e não raramente sedemos a

elas, para aferirmos conceitos irreais, aprovando alunos nos quais não reconhecemos – no

nosso julgamento – condições de seguirem e cursarem as “séries” posteriores.

“Ameaçados” com a necessidade de relatórios e capacitações – feitas fora do horário de

trabalho – os professores há muito tempo vêm realizando avaliações muito aquém do real

conhecimento esperado – por eles – para cada nível ou etapa escolar, há muito tempo que

alunos medíocres chegam às séries finais com uma escrita “primária”, ortograficamente

44

ilegível, gramaticalmente assustadora, e com fragmentos de um conhecimento

desarticulado. Lembro-me de haver ensinado (na EJA – SI@TUFRJ)24 um rapaz que

carregava, com certo orgulho, um diploma de ensino fundamental completo, efetuar (no

papel como eles diziam) uma divisão simples (48 dividido por 2, por exemplo), operação

que nunca conseguira efetuar na vida (?) e que era fundamental para seu trabalho.

Que o fracasso escolar não é recente, não foi inventado pelo Ciclo, e que a

educação na rede vai – na sua maioria – muito mal, qualquer um que saiba realmente ler

e escrever, e peça para seu filho adolescente de 15 anos (10 de escola) anotar um recado,

já sabe. Mais de uma vez já assisti aos pais entrando escola adentro arrastando –

literalmente – o filho pelo braço e perguntando para a professora e para a diretora se

alguém sabia dizer como o filho “analfabeto” poderia cursar a 5ª. série se não sabia ler

ou escrever? Que escola era essa?

“Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber” (Foucault, 2004, p.71)”.

Paro para tentar entender as voltas tortuosas desta estrada onde começo a invejar

este pai pela autoridade, liberdade e clareza de dizer aquilo que a nós professores vem

sendo negado: seu filho “não” aprendeu a ler e escrever. É analfabeto. Mas a escola lhe

confere um “B” ou um “R” – tanto faz – a escola o mantém assim. Que escola é essa?

Talvez seja essa a pergunta que nos cabe continuar fazendo e tentando responder. Que

escola é essa? Que escola é essa onde sentimos – e nos ressentimos – de duas grandes

ausências: o professor e o conhecimento. Como conceber, e defender, uma escola que não

ouve um e não valoriza o outro?

A forma autoritária, desarticulada, pouco discutida e mal fundamentada como o

Ciclo vem sendo implantado acaba por gerar constrangimentos até em quem o defende

como proposta de organização do tempo escolar e possui a compreensão de seu caráter

inclusivo. Frente à realidade caótica que vislumbramos, nossos argumentos se silenciam,

parecem hipocrisia, ou ingenuidade, diante desse atentado a Educação. Escola inclusiva,

mas que não tem respeito pela voz dos pais, alunos e professores? Formadora de cidadãos

autônomos, mas que participam apenas do processo de execução das ordens

“superiores”? 24 Projeto de Alfabetização de Adultos para os funcionários da UFRJ desenvolvido pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ, entre 1996 e 2000. Há mais de dez anos atrás, portanto.

45

Ouço professores indignados como eu, mas por milhares de razões diferentes das

minhas. Alguns ressentidos com a perda do “poder” de “dizer” que o aluno poderia ficar

reprovado(?), outros não com a aprovação automática em si, mas com o fato do aluno

agora ter consciência dela(?), outros ainda afirmam que perderão o “controle” sobre seus

alunos, já que não podem “ameaçá-los” com o conceito “I”. Posso não concordar com

tais questões, mas continuarei lutando pelo direito que cada professor tem de discuti-las e

ser ouvido com respeito. Pelo direito de nesse debate poder expor e confrontar suas

opiniões com outras, criando a possibilidade de se reinventar como educador.

Vamos discutir quais os saberes necessários ao cidadão do século XXI? Concordo.

Quando os professores serão convidados para essa discussão? Quando seremos ouvidos?

Que saberes são esses que podem prescindir do aprendizado da língua com a qual o

sujeito se insere no mundo? Quando os pais dos alunos serão respondidos efetivamente?

Quando sua voz encontrará uma interlocução respeitosa, que entenda como legítima sua

indignação diante do filho “analfabeto”? Quando os nossos alunos serão ouvidos? Seus

desejos, suas necessidades, seus sonhos?

Talvez esteja na hora de pais, professores e alunos serem incluídos de fato, na

discussão sobre esta escola que ao encerrar os sujeitos em suas paredes os exclui do

direito de conhecer outras formas – tão legítimas quanto as que já possuem – de ser, estar,

ler e compreender o mundo. E o direito de decidir que escola, de fato, querem.

Talvez, a discussão que devemos buscar cada vez mais esteja muito além das milhares de

estratégias que aqueles que exercem o poder buscam para controlar e excluir, muito além

das milhares de táticas que nós, professores e alunos, utilizamos para burlar, sabotar,

recriar, e consignificar o espaço escolar e tomá-lo como nosso lugar. Talvez a discussão

que devemos buscar comece em nos perguntarmos se estamos prontos para assumir este

debate democrático, que inclua não só os professores, mas toda a comunidade escolar, em

busca dessa escola que queremos? Pelo que estamos assistindo, percebemos que aqueles

que estão na gestão das políticas públicas não estão prontos para nos incluir – pais,

alunos e professores – neste debate. @ão estão prontos para assumir “a dor e a delícia”

ou os riscos e possibilidades de uma prática democrática. Mas e nós? Estamos?”.

Releio o texto e em muitas partes penso para quem o escrevi? Quais eram os

sujeitos com quem buscava virtualmente este diálogo, quem era meu “auditório”. Penso se

46

o escreveria desta maneira para publicar na revista da rede25, ou se o escreveria desta

maneira para apresentá-lo especificamente à academia. É interessante pensar como

pertencer a estas diferentes “sociedades do discurso” – que tantas vezes produzem textos e

conceitos que se antagonizam pela diversidade dos lugares de enunciação, pela diversidade

dos contextos com que são proferidos – provocam em nós tensões que, se por um lado nos

afastam das interdições e silêncios que uma “sociedade” tenta de seu lugar impor a outra,

nos obriga a mergulhar nas contradições e na complexidade em que estes discursos são

produzidos. Obriga-nos a escutar as vozes que vamos internalizando e que produz em cada

um de nós este “microcosmo heteroglótico” (Bakthin).

Sendo plural, nosso enunciado sempre se orienta a partir do que já foi dito, ou seja,

é uma resposta a tudo que já foi dito, seja para apoiar ou rebater; sempre espera uma

resposta, falamos sempre para alguém; que é internamente dialogizado, é heterogêneo e se

constitui de múltiplas vozes, assimilamos infinitos enunciados alheios. Quanto mais

aumentam nossos grupos de interlocução mais estas vozes se multiplicam dentro de nós, e

mais complexa fica nossa interlocução com o mundo. Se o texto que produzi em abril de

2007 é de certa forma uma resposta às milhares de vozes que se fizeram ouvir naquele

momento, dentro e fora de mim, hoje ele exige também, uma resposta.

Releio e encontro muitas dobras, muitas frestas, muitas questões que acreditava

resolvidas em mim, mas que se ainda estão aí, escondidas nas sombras, esperando a

oportunidade de me tomar de assalto, é porque ainda são espectros de um outro tempo que

habita em mim. Fragmentos de uma educação positivista, fragmentos de ideais

humanistas...ideais eurocêntricos...talvez sejamos assim mesmo...fragmentos de muitos

outros nós.

Um destes espectros que assombra não só a mim, mas a muitos professores, é a

questão dos parâmetros. Discussão que acompanho há anos em nossa escola e que volta e

meia me cobra respostas, sem que me sinta ainda capaz de oferecer alguma que seja digna

e coerente que me satisfaça, mas que espero com a ajuda das professoras e dos teóricos,

amadurecer.

Enquanto brigava com meus fantasmas a professora R. adentrou minha Sala de

Leitura26 com uma questão que a atormentava, em busca de alguém que a ouvisse e

25 Revista @ós da Escola, onde tenho três artigos publicados, e todos artigos devidamente pensados para o “auditório” : professores da rede. 26 Além de professora do PEJA, assumi a função de Sala de Leitura em fevereiro de 2007 no CIEP Donga em minha segunda matrícula.

47

auxiliasse em suas angústias. Professora de uma turma de 3ª. Série – que neste momento

era Ciclo, eu sei, mas era assim que a professora chamava seu grupo – estava em dúvida

como conceituar seus alunos. Ela refletia que como recebeu um grupo majoritariamente

ainda não alfabetizado, e como agora, poucos meses depois, muitos já eram capazes de

escrever palavras estes alunos mereceriam o maior conceito27. Contudo esta seria uma

avaliação que teria como parâmetro a própria turma e não os parâmetros estabelecidos pela

rede para o período em que as crianças deveriam – no nosso entendimento – estar, e muito

menos o parâmetro pessoal daquelas crianças que na avaliação da professora, mesmo sem

escrever ainda, tiveram um excelente desenvolvimento, se comparadas unicamente a elas

mesmas ao iniciarem aquele ano. A professora continuou seu desabafo, refletindo ainda

sobre os motivos que levaram estes alunos a chegarem a 3ª. Série sem aprenderem a ler e

escrever se ela, que “não se considera melhor do que ninguém”, os alfabetizou em poucos

meses. A resposta que ela sabia, mas temia pronunciar: “porque não os ensinaram”, fica

no ar. A preocupação de ter seu trabalho avaliado negativamente por uma avaliação

exterior, a preocupação de aferir conceitos que correspondam a uma realidade local

valorizando o desenvolvimento pessoal de cada aluno, mas que ao se distanciarem da

avaliação universal da rede, ou do país, desvalorizem seu trabalho junto aquelas crianças, é

uma preocupação corrente, e a meu ver, legítima de muitos professores.

A professora R. não responde, mas pergunta, e ao perguntar deixa claro seu

descontentamento de receber ano após ano crianças que no seu entendimento foram

vítimas de um grande descaso. Não posso como professora a nove anos da rede, negar que

muitas vezes compartilhei do mesmo sentimento de minha colega. Sentimento gestado em

observações de práticas nem sempre comprometidas com o ensino público ou com as

crianças das classes populares. Como professora não posso negar que nosso

corporativismo, que muitas vezes silencia esta incômoda questão, surge nas entrelinhas,

quando assumimos o discurso unilateral – culpabilizando somente as crianças e suas

famílias – sobre as dificuldades de aprendizagem sem discutirmos não só nossa dificuldade

ao ensinar, como nossa dificuldade de denunciarmos o quanto muitos não ensinam. No

entanto, como pesquisadora me obrigo a dizer também, que se esse é um aspecto possível

na leitura dessas crianças que “de repente” aprendem, não é o único.

Uma das questões levantadas pelo grupo de professoras alfabetizadoras foi

exatamente à mágoa que sentem quando após um ano inteiro de investimento no 27@a Rede até 2008 utilizávamos 4 conceitos : MB (muito bom); B (bom); R (regular) e RR (registra recomendações). Alterado pela Resolução nº1010 de 04 de março de 2009.

48

desenvolvimento de uma criança, todo o mérito por seu aprendizado é atribuído a colega,

como se apenas ela fosse responsável pelo sucesso do aluno. Chamam atenção para o fato

de que muitas vezes a criança trilha caminhos construindo saberes insuspeitos e que em um

certo momento estes saberes tomam forma, ganham visibilidade. O que significa que

muitas podem ter sido as professoras que ofereceram uma contribuição fundamental para o

sucesso futuro deste aluno.

Estas diferentes situações, todas legítimas, todas possíveis, mostram a

complexidade do cotidiano, e o risco de olharmos para a escola de uma maneira simplista

ou reducionista, como tantos fazem, como tantas vezes nós fazemos: a criança não sabe

porque não nasceu para aprender. A criança não sabe porque o professor não ensinou. Ou

seu inverso: a criança nasceu inteligente consegue aprender. O professor não ensinou por

isso a criança não aprendeu.

Entre o ensinar e o aprender existe uma infinidade de fios que tecem diferentes

situações, possibilidades e realidades. Por isso não podemos reduzir o “real” a uma única

narrativa. A relativização não é omissão diante das muitas realidades que existem, mas um

exercício de compreendê-la sem simplificá-la para caber em nossas hipóteses e pré-

concepções. Não é negar ou fugir dos “fatos”, mas examinar os “fatos” como fenômenos

complexos que são.

Quando um rapaz chega a 8ª. Série – sem passar, portanto, pela escola Ciclada

proposta pela gestão da Prefeitura do Rio até 2008 – incapaz de comunicar-se pela escrita,

não houve, de fato, ensinoaprendizagem. Em suas reflexões a própria professora aponta

um outro lado obscuro desta questão: “muitos colegas chegam ao final do Ciclo [terceiro

ano do primeiro Ciclo] e como já está em dezembro e não querem preencher aquele monte

de relatório, simplesmente passam os alunos assim”. Temos assim professores que

entendem os relatórios de avaliação dos alunos tidos como “com dificuldades” como um

castigo e simplesmente mascaram os resultados. Mas por outro lado temos professoras

comprometidas com o aprendizado de seus alunos que se veem sabotadas por avaliações

que não traduzem o trabalho realizado ou o sucesso alcançado por estas crianças. Nada é

simples, por isso a necessidade da pesquisa, da reflexão compartilhada sobre este

cotidiano.

Não sei o que responder a professora. Suas questões me silenciam. E não por

cautela como adverte Chauí, mas por ignorância mesmo. Neste momento a avaliação

começa a se desenhar como uma questão central na discussão curricular que vinha

orientando minhas reflexões até então. Quando ela surge na escola, provoca uma série de

49

discussões sobre o interculturalismo, sobre diversidade, sobre respeito às singularidades,

sobre os “parâmetros”, sobre a possibilidade real de termos alguma “unidade na

diversidade”. Quando ela surge na escola, na forma de provas da Rede Municipal ou prova

do Governo Federal, surge não apenas como aquilo que revela – nossas dificuldades ou

nossa incompetência – mas também como aquilo que esconde – o sucesso real de muitos

alunos e professores que superaram muito mais do que estas avaliações conseguem captar.

As diferentes temporalidades no processo de aprendizado de cada sujeito, os diferentes

processos de aprendizagem e sua visibilidade para nós, educadoras.

Como poderemos romper com as relações de subalternidade, como poderemos criar

uma avaliação dialógica28, que sirva realmente ao processo de aprendizagem, de formação

dos sujeitos enquanto sujeitos, quando a avaliação que hoje temos na escola se revela como

uma forma perversa de tentar regular os currículos e práticas?

Se o “vestibular” ou o “mercado de trabalho” aparecem – e eu infelizmente ouço

todos os dias de minha Sala de Leitura como aparecem – como a grande finalidade da

escola, a grande bússola que orienta discursos e práticas de muitos educadores, temos

agora as provinhas e provões, que secundarizam cada vez mais os Parâmetros Nacionais, a

Multieducação, os Projetos Políticos Pedagógicos, e as práticas de alunos e professores.

Mas qual a alternativa? Que avaliação seria coerente com um projeto de escola que

valorizasse os saberes dos alunos como conteúdos legítimos e que nos oferecesse pistas

reais sobre seu processo de aprendizagem? Que não fossem forjadas ou mascaradas em

milhares de táticas de professores ou estratégias de gestores? Uma avaliação a favor do

aluno.

Volto ao texto de 2007. Nele ecoam as vozes dos professores com os quais

compartilhei um entre os muitos momentos de conflito que este lugar de fronteira – entre a

escola e a academia – me coloca. Lembro-me de ficar olhando aquele mar de guarda-

chuvas coloridos sob a chuva fina, ônibus e mais ônibus chegando com pais, alunos,

professores, e até alguns diretores que estavam lá “escondidos” para apoiar o movimento

contra a ampliação do Ciclo para todos os anos da rede, que naquele momento era

traduzido por muitos na rede, apenas, como aprovação automática. Olhava para as faixas

pedindo a reprovação dos alunos (ou a transparência?) e pensava no quanto era estranho

28Defendo que a dialógica é um conceito fundamental para construção de uma escola democrática e inclusiva onde os diferentes sujeitos tenham suas lógicas e saberes legitimados e possam se constituir no e com o outro. Assim entendo que uma avaliação coerente com esta escola deva ser uma avaliação dialógica. Tecida com os alunos e não para os alunos.

50

estar ali. Lutando contra uma proposta que acreditava e defendia, ao lado de professores,

pais e alunos que defendiam uma escola que sempre – desde aluna – detestei.

Por muito tempo este sentimento me acompanhou. Não estaria eu participando de

um movimento extremamente reacionário que na verdade defendia uma escola excludente?

Uma escola que fazia pais e alunos clamarem por “reprovação”? Como chegamos a este

ponto? A ponto de um descrédito tão grande que pais e alunos solicitavam a exclusão, a

seleção e classificação? Ou não era por “reprovação” que os pais e alunos clamavam, mas

por uma escola que compreendessem, que respeitassem, que efetivamente ensinasse algo

aos seus filhos e não distribuísse diplomas? Não estariam sendo os pais e alunos,

perversamente tomados por esta lógica reacionária e estariam em breve, na sequência,

marchando (como já ouvi algumas defesas) pela volta dos castigos físicos na escola?

Momentos complexos, com muitas leituras possíveis.

Volto ao texto que escrevi no calor destes momentos. Não ecoa nas entrelinhas uma

defesa corporativa que ao generalizar e dicotomizar as posições gestores e professores,

acaba servindo exatamente a este movimento reacionário? Ao generalizar minhas

angústias, que são compartilhadas por muitos dos professores que de vez quando rompem

minha sala adentro trazendo suas dúvidas e questões em busca de uma ação pedagógica

mais efetiva junto aos alunos, ao generalizar nossa indignação com as armadilhas e

estratégias de gestões que parecem conspirar contra nossos alunos, não é de certa forma

invisibilizar que existem outros professores, outras práticas, outras lógicas em jogo neste

tabuleiro, e quem nem sempre tem raiz na preocupação efetiva com a qualidade do ensino,

lógicas movidas por outros sentimentos e valores? Não é desconsiderar os profissionais

que se encontram hoje também na gestão de nossas escolas buscando alternativas a estas

estratégias perversas – que existem e que não abro mão de denunciá-las – criando novas

possibilidades de aprendizado para nossos alunos?

Quando volto ao texto de 2007, percebo como as armadilhas da Modernidade, suas

generalizações e dicotomias, seus lugares fixos e suas análises deterministas permanecem

apesar da compreensão da complexidade. Percebo a força do desejo de organizar o real e

encontrar soluções definitivas para problemas complexos. O desejo de desfiar este

emaranhado e arrumá-lo em um novelo. Mas a realidade não me permite. “A vida é mais

rica, e menos elegante, do que quaisquer princípios que pretendam orientá-la...”(Bauman,

2005: p.85).

A escola é constituída por este emaranhado. Assim como os guarda-chuvas,

naquela manhã chuvosa diante da Prefeitura, que desenhavam um tecido multicolorido,

51

desigual, plural. Assim como os sujeitos, de diferentes idades, classes, ideias que

ocupavam aquele lugar por motivos muito diversos, antagônicos, contraditórios.

Muitos estavam ali em busca de uma escola melhor. Mas não necessariamente

possuíam a mesma compreensão do que é essa “escola melhor”. Muitos estavam ali porque

realmente desejavam uma escola que possibilitasse a conquista dos saberes que permitiria

aos seus filhos ocuparem um “outro” lugar no mundo, um lugar mais “legítimo” que só

certo “saber” outorga. Muitos estavam ali simplesmente porque tinham medo. Medo de

perderem sua “autoridade”, medo de perderem sua “munição” contra os alunos. Medo de

não saberem o que fazer, afinal se já estava difícil “segurar” essas crianças e jovens com as

ameaças de provas, notas baixas e reprovação, como mantê-los atentos (?!) e comportados

durante as aulas? Atenção e disciplina que não garantiram ao jovem aluno de minha

colega J. o aprendizado da língua escrita adequadamente, pelo visto.

De fato a questão da disciplina/indisciplina é uma questão que assume uma

centralidade absurda nos debates na escola. Contudo, raramente vejo este debate

aprofundar a questão da falta de sentido dessa escola não só para estes jovens como para

nós, professores e professoras. Da falta de sentido que o próprio ato de aprender, que

parece ser tão natural à vida, ganha na escola. “Eles não querem saber”. Como nós,

adultos, educadores, produzimos esta geração de seres humanos que não desejam saber

mais? O que eles não desejam saber? Porque não desejam saber? Eles não querem saber o

que queremos ensinar...mas querem outros saberes? Quais? Como esta negociação é

possível dentro da escola para além da imposição, retaliação ou suborno?

Volto aos corredores festivos da Denise Maria Torres. Aqueles corredores não

negavam o texto rancoroso e sem esperança que havia produzido? Aquela escola – que

fazíamos naquele momento – não criava um sentido para aqueles alunos, que se

preocupavam muito mais com seus trabalhos expostos, com seus saberes valorizados, com

o encontro e alegria do encontro, com a riqueza daquele vivido colorido, onde professores

e alunos interagiam sem sisudez, sem silêncios desnecessários, fazendo uma escola que se

colocava muito além da questão da quantidade de “letrinhas” e provas. Não foi essa escola

que vivi durante um ano, onde tanto aprendi e onde também ensinei? Não foi essa a escola

onde diariamente compartilhávamos nossas dúvidas, confrontávamos nossas certezas, e

lutávamos para fazer o melhor por nossos alunos, que esperavam ansiosos, rostinhos

colados nas grades na esperança de ver a professora e começar nossa “confusão” diária,

que tanto produziu de saberes, independente das resoluções que chegavam? Eu não estava

lá, não compartilhei e vivi esta história? Por que a ofuscar seu brilho sob as luzes desse

52

palco de acontecimentos políticos? Acontecimentos que precisam sim, serem discutidos e

analisados, mas que não bastam para compreendermos como os sentidos das escolas são

produzidos.

Fecho, por enquanto, minha mala de recordações, não sem saudade desta escola,

minha também. Sigo viagem por outros caminhos...

Um macro-currículo em 2007 prescrevia uma escola Ciclada para toda a Rede.

Apenas dois anos depois, com a mudança de governo tivemos outras diretrizes curriculares

que prescreviam a volta (mesmo que ela nunca tenha de fato ido para lugar algum) de uma

escola seriada29, com um primeiro Ciclo de Alfabetização e anos escolares – do terceiro ao

nono – ou seja, legalmente mista de novo, com avaliações do nível central bimestrais,

reprovações anuais, material didático único elaborado pelos “especialistas” e a

implementação de uma tabela que transformava – agora oficialmente – números em letras.

Após dois anos de uma orientação curricular que defendia a reorganização dos

tempos e espaços escolares na busca da inclusão dos sujeitos no mundo do conhecimento,

temos hoje um currículo regulado por provas únicas para as 1064 escolas da rede. Isso ao

lado de outros currículos, tecidos em cada uma destas escolas de maneira única, singular,

por diferentes sujeitos que estabelecem diferentes relações com este tempo/espaço escolar.

Que currículos são estes? Que reações, atravessamentos e práticas as avaliações

padronizadas irão provocar em nossas escolas? Como diferentes professores irão

compreender as novas orientações curriculares? Que mudanças de fato são produzidas no

cotidiano da sala de aula diante das diferentes propostas da gestão pública para educação?

Apesar da intenção de nos reduzirem a aplicadores/corretores de provas, nossa pretensão

vai além, para tentar contribuir com uma reflexão sobre as bases epistemológicas da

proposta que está sendo implementada na Rede Municipal do Rio de Janeiro, tendo em

vista a possibilidade de construirmos, não só teoricamente, mas efetivamente, uma prática

curricular que discuta, reflita e avalie estes fundamentos, apesar de toda a complexidade e

certos limites que este desafio nos coloca. Nossa pretensão é ir ao encontro, caminhar

junto, pensando com os muitos outros que estão trilhando a mesma estrada, como as

relações de poder/saber, cultura, alteridade, currículo e colonialidade são vividos,

praticados e também como os enunciados produzem as diferentes pronúncias destas

múltiplas e complexas realidades.

29 Decreto n° 30426 de 26 de janeiro de 2009 e Resolução n°1010 de 04 de março em anexo.

53

O modelo de escola que tanto criticava – a escola esquizofrênica que a

simultaneidade de termos Ciclo e Série na mesma Rede produziu – virou uma escola

Ciclada, com forte oposição de vários segmentos da comunidade escolar. Agonizou

durante dois anos morreu sem que muitos comparecessem ao seu velório. A escola seriada

voltou a se instalar com o Decreto nº 30426 de 26 de janeiro de 2009. Os três primeiros

anos compondo um Ciclo de Alfabetização e a volta de anos escolares.

Nos corredores de minha escola atual, o CIEP Compositor Donga, as expressões

são uma mistura de descrença e cansaço. A insegurança sobre o futuro; a certeza –

construída historicamente – de que não importa o que aconteça ou digam no final a conta

será cobrada do professor; desconfiança. A escola que “todos” pareciam querer, não traz

esperança.

(...) a história da educação nos oferece uma trajetória suficiente para que sejamos precavidos e para pensar que, se depois de tantas luzes e ideias clarividentes, a realidade continua sendo bastante insatisfatória para os estudantes, isso se deve ao fato de que a mudança dos discursos não se concretiza em um projeto prático para os docentes, porque não temos levado em conta àquelas condições inerentes à escolarização, às formas precisas como a cultura está encapsulada nos contextos escolares” (Sacristán: 1996, p. 35).

Novos currículos são prescritos, novas avaliações impostas. Mas essa cultura

encapsulada escreve outros currículos e outras práticas de avaliação. Que processos estes

currículos e avaliações desencadearam dentro da escola? Como os professores e alunos vão

reagir às novas formas de avaliação, onde a avaliação do processo de aprendizagem é

invisibilizada pelo espetáculo do “salto de qualidade” que a avaliação externa diz produzir?

Como estas políticas públicas irão atravessar as práticas cotidianas e as relações dentro de

nossa escola? Até que ponto estas políticas públicas desmobilizam nosso querer pensar,

querer fazer? Que relações serão estabelecidas entre as novas propostas curriculares e de

avaliação e a cultura escolar em que minha escola está inserida? Que saberes estas relações

produzirão?

54

IV. CO2VERSAS...

Certas palavras não podem ser ditas em qualquer lugar e hora qualquer.

Estritamente reservadas para companheiros de confiança,

devem ser sacralmente pronunciadas em tom muito especial

lá onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples: definem partes do corpo, movimentos, atos

do viver que só os grandes se permitem e a nós é defendido por sentença dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

Carlos Drummond de Andrade

Quando nos aventuramos pelos tortuosos caminhos de pesquisar com o cotidiano, e

não sobre ele, enfrentamos muitas encruzilhadas, algumas armadilhas e certos desafios.

Negarmos a “coisificação” que transforma os sujeitos em objetos e a arrogância que

transforma o pesquisador em soberano defensor do estatuto da verdade produzida por uma

realidade única e inexorável, nos obriga a enfrentar que mergulhamos em um rio de águas

profundas sem saber exatamente o que esperar do que vamos encontrar. As águas são

turvas, as correntezas imprevisíveis e as certezas que usamos como salva-vidas, muitas

vezes não nos salvam, ao contrário, algumas vezes até nos arrastam para o fundo.

Ao compartilhamos nossas trajetórias, experiências e reflexões com os outros

sujeitos com quem vamos produzindo a pesquisa estes se tornam também narradores,

parceiros na pronúncia do mundo. Contudo, dizê-lo é muito mais simples do que fazê-lo.

Partilhar as experiências, assim como as narrativas e as reflexões produzidas

coletivamente pressupõem assumir uma escrita sobre a qual, ao registrarmos, podemos ter

certa autoria, mas não o controle. Significa produzir um texto onde as vozes não sejam

apenas um ponto de apoio, as escoras, onde vou erguer o prédio de minha sabedoria, sob as

quais vou erguer minhas argumentações e verdade, mas exatamente o contrário, são vozes

que nos desequilibram, nos convidam para o embate e para o debate. Significa produzir um

texto marcado pelo movimento de vozes que se atravessam, e ao se atravessarem provocam

umas nas outras mudanças de rumo, mudanças de perspectivas. Que ao se atravessarem

vão formando uma trama que não se submete ao nosso desejo cartesiano de desfiar o real

para encontrar-lhe as pontas e assim arrumá-lo em nosso carretel. Vozes que ao se

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cruzarem e ao se encontrarem, provocam novas experiências umas nas outras, deixam

marcas.

Sujeitos que, como nos aponta Bhabha, encontram-se muitas vezes em antagonismo

ou contradições, não apenas em relação uns aos outros, mas a si mesmos, pois como eu,

são constituídos de muitas vozes, tempos e espaços diferentes, histórias que podemos até

reescrever, mas que deixam ranhuras, marcas, textos ocultos inscritos em nós. Sujeitos que

são desafiados a produzir juntos e pensar juntos encontram-se – um encontro raramente

harmonioso e tranquilo – neste espaço da tradução e da negociação. Traduções que tantas

vezes nos traem, negociações nem sempre possíveis. No encontro com o outro, eu sujeito

plural, polifônico, muitas vezes reconheço partes adormecidas ou ignoradas de mim

mesmo, e assim posso refletir sobre elas. O outro se apresenta como um espelho que

reflete, muitas vezes, as partes invisíveis de mim. A dialogicidade aqui compreendida é

composta, não apenas pelo enfrentamento e/ou negociação entre diferentes lógicas

externas, mas pelo enfrentamento/negociação entre diferentes lógicas internas que nos

compõe e dialogam com diferentes lógicas internas que compõem os outros sujeitos. Não

apenas duas lógicas que se contrapõem, mas sujeitos ambivalentes, compostos por muitas

lógicas, que se contrapõem. Na conversa, o deslizar entre estas lógicas.

Neste encontro, esta negociação entre diferentes lógicas e desejos, percepções e

medos, levaram-me a buscar aprofundar minhas reflexões sobre a conversa como noção

(conceito ou princípio) potencial, e como uma necessidade de coerência teórico

epistemológica, para desenvolver uma pesquisa com o cotidiano. Contudo preciso dizê-lo,

não tenho a pretensão – nem Bakthin me permitiria – de ser inaugural.

A conversa como metodologia de retrorreflexão vem sendo utilizada por alguns

grupos que buscam nesta prática criar um lugar de encontro onde os sujeitos possam

reinventar a si e a suas realidades através da palavra compartilhada.

As rodas de conversa, metodologia bastante utilizada nos processos de leitura e intervenção comunitária, consistem em um método de participação coletiva de debates acerca de uma temática, através da criação de espaços de diálogo, nos quais os sujeitos podem se expressar e, sobretudo, escutar os outros e a si mesmos. Tem como principal objetivo motivar a construção da autonomia dos sujeitos por meio da problematização, da socialização de saberes e da reflexão voltada para a ação. Envolve, portanto, um conjunto de trocas de experiências, conversas, discussão e divulgação de conhecimentos entre os envolvidos nesta metodologia.(http://www.agb.org.br/XE%PEG/artigos/Poster)

Onde se inicia a pesquisa com o Cotidiano? Quando se inicia? Os caminhos de

minha pesquisa foram feitos de muitos começos, tantos que percebi que a pesquisa não foi

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feita de começos, mas de muitos e infinitos meios: fragmentos da vida da escola,

acontecimentos e falas recolhidas aqui e ali, desabafos no café, professoras que adentram

minha sala e meus pensamentos com suas angústias e alegrias, com suas dúvidas e

descobertas, festas, decretos, provas, bilhetinhos...

Um destes muitos começos/meios foram às conversas entre o grupo de professoras

alfabetizadoras de minha escola, que despertaram a mim, assim como a outras

pesquisadoras do Grupalfa, para a potencialidade daquelas conversas como uma das

formas possíveis de investigarmos com o cotidiano. Uma metodologia que se produz com

os sujeitos e suas vozes em um movimento dinâmico e imprevisível. A cada nova palavra,

a cada novo acontecimento, a cada nova experiência ressignificado na palavra do outro a

pesquisa abria-se para uma nova trilha. Caminhos abertos pela conversa...

Caminhos que nos impõe certos desafios. Como produzir um texto de pesquisa

onde as vozes dos sujeitos sejam respeitadas em sua diferença e não reduzidas por mim aos

meus interesses? Ao assumirmos que não acreditamos, na existência da neutralidade, nem

na pesquisa, nem no autor que a narra, como produzir um texto onde as contradições e as

ambivalências presentes nos sujeitos e em mim não sejam invisibilizadas, para produzir um

texto “limpo” de nossas incongruências, mas ao contrário, o precioso material de nossa

investigação, reflexão e produção de um conhecimento coletivo? Isso é possível? É

possível uma pesquisa que siga o ritmo vertiginoso, os caminhos tortuosos do pensamento

vivo em seu movimento? Dizer, pensar, redizer, repensar... Afinal do que se trata nossa

pesquisa?

Trata-se, isto sim, de modos de fazer cotidianos, artes outras que a racionalidade dominante, carregada de emoções, intuições, imaginação criadora e de outra racionalidade, que combinam possibilidades geradoras de inúmeras alternativas capazes de desenvolver trajetórias impossíveis de pra determinar, porque caóticas, e, por consequência, auto-poéticas, imprevisíveis, diferentes a cada momento, só se deixando ver por quem aprendeu a ver para além do instituído.(Garcia, Alves. 2006).

Para uma concepção de ciência que pretende apreender o “todo”, não. Para uma

ciência que pretende dissecar este todo em partes desarticuladas, não. Mas para uma

ciência que se interessa pelas relações complexas, pelo pensamento que vai se produzindo

na pronúncia da palavra compartilhada, talvez. Talvez seja possível aprender com a palavra

que flui, com a palavra que ainda não foi sacralizada, aprender com o que ainda é semente,

com o que ainda esta em produção no interior de cada sujeito, aprender com o latente.

Talvez seja possível aprender também com as nossas dúvidas e silêncios. No entanto, não é

57

possível aos pesquisadores e pesquisadoras com o cotidiano vencer este desafio – nem

muitos outros – sozinhos(as).

Na produção da pesquisa com o cotidiano acredito que seja fundamental a prática

da orientação coletiva. O diálogo produzido no espaço da orientação coletiva, tanto com as

orientadoras/orientador e seu grupo de orientandos, quanto – como acontece no Campo de

Pesquisa com o Cotidiano da UFF – com todas as doutorandas/doutorandos do campo, é

primordial para apresentar a pesquisadora/pesquisador novas possibilidades de leitura e

interpretação de suas experiências, ampliando as possibilidades de compreensão e reflexão

sobre os acontecimentos vividos, sobre as entrevistas, sobre os caminhos da pesquisa.

A interlocução, tanto com os sujeitos da pesquisa, quanto com os autores,

professoras, professores e colegas, servem de bússola – pois quando estamos perdidas nos

indicam caminhos possíveis – de combustível – pois quando estamos cansadas nos

potencializam com novos desafios – e de alimento – pois quando nos sentimos vazias nos

enchem de outros saberes. Na leitura do outro me encontro e também me perco, o outro

tantas vezes me exige um exercício de paciência e humildade, de escuta e compreensão

nem sempre fácil, mas assim me ressignifico, me compreendo, me desafio. Nos olhos do

outro, dos muitos outros, o leme da ética, do respeito, da seriedade que a pesquisa, seus

sujeitos e lugares merecem.

Sempre acreditei no diálogo como o lugar onde os sujeitos, que se assumem como

narradores, compartilham experiências. Estes aspectos – a experiência, a narrativa e o

diálogo – são para mim indissociáveis e complementares, os fios que formam o tecido da

pesquisa, e assim como acredito, do processo de ensinoaprendizagem também.

As experiências que constituem os sujeitos ao serem narradas permitem que estes

sujeitos interajam criando representações de si mesmos e do mundo. O diálogo surge como

o lugar onde é possível tecer o encontro entre as diferentes experiências e narrativas, assim

como, refletir sobre estas, nos diferentes espaçostempos em que se encontram e se

desafiam. O confronto entre as diferentes experiências que nos constituem e a partilha de

diferentes narrativas faz do encontro entre os sujeitos uma prática potencialmente

educativa.

Explorar a potencialidade desse encontro, compreendendo as relações entre a

produção das experiências, narrativas e diálogos como os fios com os quais acredito se

produzam as pesquisas e as práticas pedagógicas significativas, vem se constituindo um

desafio em busca dos sentidos do meu fazer/ser professora/pesquisadora. Com estes fios

vou tecendo minha pesquisa, meu texto, minha prática. Muitos outros se apresentam ao

58

longo da produção desta escrita, contudo, quero neste momento pensar como estes três

conceitos se articulam e me permitem pensar os caminhos da pesquisa – e sua escrita –

com o cotidiano.

Para Benjamim30 a experiência é a fonte onde os narradores bebem. Experiências

que vão se constituindo tanto no conhecimento adquirido ao longo de anos de permanência

em certo lugar, como naquelas adquiridas no caminhar pelo mundo. Podemos refletir então

que, se nossa narratividade encontra, por um lado, um terreno fértil nas experiências que a

proximidade, que a familiaridade e o conhecimento histórico sobre certo lugar nos permite,

brota também, por outro, nas experiências adquiridas no caminho, no vagar – e

vagabundear – pelo mundo. Olhar do nativo e do estrangeiro. Olhar antigo, olhar amigo,

olhar do novo, olhar de novo. Olhar os minúsculos fios que tecem a trama, assim como a

paisagem tecida que só com a distancia podemos perceber.

Narrar é a possibilidade de compartilhar essas experiências. Acreditar na

possibilidade de que essas experiências entre nossos olhares nativos e estrangeiros – e

penso que, de certa forma, sempre possuímos ambos – possam ser dividas e multiplicadas.

Fiel a este princípio minha proposta inicial para a formação do grupo de pesquisa

para discutir Avaliação no CIEP Compositor Donga foi: diante de tantas preocupações e

questões comuns, reunirmo-nos para debatê-las em busca de uma maior compreensão

sobre nossas práticas, sobre nossos fazeres, sobre nossos sucessos e fracassos. As

professoras que compuseram inicialmente o grupo são professoras que de alguma se

oferecem à conversa, que expressam continuamente o desejo de querer refletir

coletivamente sobre as questões de nosso fazer pedagógico, professoras que

compartilharam – em 2008 – o desafio de assumirem a “classe” de alfabetização. Essa

conversa foi dirigida as professoras que de alguma forma, ao longo de nossa convivência,

demonstraram inquietações, angústias, desejos de conversar, e o convite foi estendido à

equipe técnico pedagógica da escola por uma questão ética de respeito as profissionais que

coordenam os processos. Permaneci no exercício de sedução para que o grupo se ampliasse

e outras professoras participassem de nossas conversas, já que aconteciam no espaçotempo

destinado ao nosso centro de estudos integral31. Infelizmente, por muitos e diferentes

motivos, que podemos apenas conjecturar, isso não aconteceu. O que move alguns sujeitos

a desejarem participar do diálogo e o que os paralisa? Porque algumas aceitaram com

30Texto O @arrador: considerações sobre a obra de @ikolai Leskov. 31 Centros de Estudos Parciais – meio turno – quinzenais e um Centro de Estudo Integral – todo o horário – bimestralmente.

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entusiasmo a possibilidade de conversar sobre questões que as mobilizam no dia-a-dia,

enquanto outras professoras – que vivem angústias parecidas – e até mesmo a própria

coordenação pedagógica da escola esquivou-se do debate? Não tenho as respostas para

estas questões. Milhares são os fios que tecem nossos desejos e os nossos receios.

A primeira conversa, no café, no corredor, no tempo roubado, emprestado aqui e

ali, foi individual, com cada professora, para explicar que eu entendia a pesquisa como

uma prática indissociável de nosso caminhar coletivo. Expliquei a cada uma que por nossa

história recente na rede e no país, meu interesse tem se voltado para as questões relativas à

avaliação e seu atravessamento em nossas práticas diárias, por isso neste primeiro

momento estava propondo que este fosse o foco do grupo, que iria à medida que fôssemos

caminhando, definindo coletivamente quais questões seriam fundamentais ao nosso debate,

quais eram – para além das minhas – as nossas questões.

Foi interessante notar que apesar do foco estar previamente negociado, nossas

ideias fugiam de nós nos levando para aqueles lugares onde nossos sentimentos nos

mantinham ancoradas: a dor de nosso trabalho não reconhecido, a insegurança diante do

olhar (e do julgamento/avaliação) dos outros; nossos saberes não valorizados; os saberes de

nossos alunos que não valorizávamos, ou aqueles que mesmo quando valorizávamos não

sabíamos como expressar; a alegria do sucesso; a necessidade de nos dizermos, de nos

mostrarmos, de nos pensarmos. A necessidade de nos tornarmos senhoras de nossa palavra,

de nos enunciarmos e anunciarmos, de nos tornarmos sujeitos na pronúncia do mundo, do

nosso mundo. Comecei ali a me dar conta de que a conversa não seria prisioneira de meus

interesses ou questões. Que assumir a conversa seria assumir seguir por onde a palavra nos

guiasse, e humildemente, aprender com ela. Claro que não segui mansamente por esse

caminho. Tentei resistir. Vigiar o “foco” para que não nos perdêssemos em nossos bate-

papos. Com o tempo percebi que não nos perdíamos, ao contrário, nos encontrávamos com

nossa própria palavra. Com nós mesmas.

Sentadas em semicírculo, enquanto conversávamos sobre nossas experiências, as

linhas que separavam os diferentes espaçostempos onde nossas trajetórias foram se

constituindo e produzindo saberes sobre “a” escola e sobre a “nossa” escola, foram se

diluindo, se cruzando e se complementando. Nas memórias compartilhadas, sobre nossos

tempos de escola, sobre as escolas que frequentamos e sobre as escolas que produzimos,

nos aproximamos e nos afastamos, ora falamos de uma escola que nos é próxima,

conhecida, familiar, ora tecemos nossas críticas, pontuamos como estrangeiras, as suas

contradições e incongruências. Ao nos movermos para diferentes espaçostempos nossas

60

identidades deslizam para outras escolas, para outro tempo, onde habitávamos este lugar –

institucional – não apenas como professoras, mas também, como alunas.

Ao compartilharmos estas experiências, selecionadas por nossas memórias,

percebemos que não mais poderíamos tecer as generalizações, que tantas vezes fazemos,

sobre as práticas pedagógicas – assim como o julgamento moral de sua perversidade ou

virtude – de forma tão linear ou simplória, pois os sentidos que estas práticas adquiriram

para nós, eram absolutamente diversos. Memórias de práticas similares – presentes em

vários cotidianos escolares – adquiriram sentidos diversos e produziram lembranças e

relações diversas com “a” escola. Nossas memórias nos falavam de “escolas”.

A importância deste movimento, de investigar nossos saberes produzidos pela

familiaridade, pela proximidade com a escola, assim como investigar nossas memórias

sobre nossas experiências com a escola, nos possibilitam tecer numa mesma narrativa as

duas formas de experiência apontadas por Benjamim.

Se Benjamim nos convida a pensar sobre a relação entre narrativa e experiência,

Larosa nos provoca com a dimensão que a palavra (conceito) experiência possa adquirir.

Vivemos em um espaçotempo que se autoproclama “era da comunicação”. E de

fato os meios de comunicação foram uma das revoluções mais significativas em nosso

modo de vida nas últimas décadas. Os meios de comunicação aproximaram o mundo.

(Aproximaram? Que múltiplos sentidos podem ser lidos nesta palavra? O que ela revela, o

que ela esconde?).

Sofremos uma avalanche diária de informações, e enquanto o espaço parece se

expandir ao infinito o tempo parece se reduzir no sentido contrário. Vivemos muitas coisas

ao longo de nossos dias, e as vivemos com tamanha velocidade que rapidamente

desaparecem sem deixar grandes vestígios em nós. Em outras palavras, a multiplicidade e

velocidade com que vivemos os acontecimentos não permitem, geralmente, que se

constituam como experiências. Eles passam por nós, mas em nós não se fixam, em nosso

peito não fazem morada, não são digeridos, não são absorvidos e, portanto, não nos

transformam.

Uma experiência deixa marcas. Uma experiência muda nossos rumos, nossos

sonhos, nossas vidas. Uma experiência também surge como uma porta que se abre e nos

apresenta novas possibilidades de caminhos. Nossas experiências são a essência de nossas

narrativas. Podemos contar ou descrever uma vivencia, um fato, um acontecimento. Mas

quando narramos uma experiência, convidamos outros seres humanos a compartilharem

conosco de nossa humanidade. Narrar uma experiência é abrir-se ao encontro. E talvez,

61

seja exatamente este encontro que percamos na troca diária e desesperada de milhares de

informações, tantas vezes inúteis.

As experiências a quais nos referimos, portanto, são aquelas que não são

esquecidas, não são embotadas pelo tempo, ao contrário, são aquelas que quanto mais

narramos, quanto mais revisitamos, mais se expandem em nós, mais nos produzem como

sujeitos. São aquelas que quanto mais compartilhamos, mais significados encontramos,

mais cresce em nosso peito e mais fundo nos marca a alma. São aqueles nossos alunos que

nos ensinam a ser professoras, com quem sempre aprendemos algo, quando invadem

nossas lembranças nos provocando um meio sorriso, uma meia tristeza...

Estas experiências, ao serem narradas, compartilhadas com outros sujeitos, às vezes

são envoltas por uma aura de cumplicidade e respeito, onde mesmo ideias contrárias, se

permitem ouvir com atenção. A experiência dota a narrativa de certa legitimidade e

profundidade que a informação fortuita raramente possui. O narrado talvez não seja

compatível ou mesmo simpático à minha “verdade”, mas ao ser narrado com verdade, ao

ser ouvido com verdade, permite que eu perceba quantas verdades existem mundo a fora,

permite que eu repense, que eu reflita sobre as minhas “verdades”. Um encontro nem

sempre possível, encontro, tantas vezes, raro. Por isso um momento importante quando

acontece. Mas um encontro que vem acontecendo em muitas escolas, que vem sendo

vivenciado por muitas professoras-pesquisadoras, por muitas pesquisadoras-professoras

que juntas vem aprendendo o poder transformador da palavra compartilhada, como narra a

professora-pesquisadora Mitsi Lacerda:

Foi Renata quem me fez pensar nisso. Ela é uma das participantes de nosso grupo de professoras ontem contamos e refletimos as histórias de escola. Fez-me pensar nisso quando disse “as coisas que eu falei no grupo já não falaria hoje, e as hipóteses que eu apresentei também não seriam as mesmas. Hoje eu penso diferente”. (Lacerda, 2002).

A nossa escola, enquanto instituição, foi fundada sob os pilares do racionalismo.

Enciclopédica e bancária quantas aulas ainda hoje não passam de um desfile de

conhecimentos desconectados, desarticulados e sem sentido? O tecnicismo, amplamente

desenvolvido nos anos de chumbo e que agora vem mostrando novo fôlego e vitalidade,

ressurgindo com novas roupagens em várias propostas dos gestores em Educação de vários

municípios, vem sustentado na crença de que o ser humano se desenvolve – adquire

conhecimentos que o transformam qualitativamente – através da aquisição dessas

informações.

62

Contudo, se nossa razão é capaz de adquirir e processar informações, estas por si

só, não serão suficientes para produzir uma transformação dos sujeitos em sua relação com

o mundo. E é exatamente neste ponto que a experiência faz toda a diferença. Na

experiência conhecer, viver, sentir, perceber, tornam-se elementos indissociáveis na

produção do saber. Conhecer não basta. Identificar, diferenciar, reconhecer, e todos os

verbos que “aprendemos” a utilizar para pré-fabricar nossos “objetivos”, não bastam. É

preciso sentir. É preciso ser afetado pela vida do outro, pela narrativa do outro, pela

experiência do outro. É preciso tornar-se senhor de sua própria palavra, narrá-la e

ressignificá-la a cada narrativa. E é preciso escrever este (inter) texto com o outro.

Acredito, portanto, que a produção de saberes acontece na partilha das experiências,

na dialogicidade do ato de ensinaraprender, e que “tentar” racionalizar o conhecimento,

apagando as marcas de nossa subjetividade, de nossos sonhos e desejos, de nossos medos e

crenças, produz – entre muitos outros, é verdade – um certo tipo de conhecimento escolar

pelo qual todos nós, de uma forma ou outra, passamos: um conhecimento que passa por

nós, nos atravessa, sem em nós inscrever marcas mais profundas, sem em nós encontrar

sentidos. Um conhecimento que muitas vezes nos permite marcar as respostas “certas”,

mas não a nos comprometermos com elas. Conhecer (e diferir, reconhecer, relacionar, etc.)

é fundamental para saber. Mas só conhecer não basta, é preciso produzir saberes, e este,

assim como entendo, acontece na relação dialógica com o outro e na relação dialética com

o mundo.

Ao pesquisarmos assumimos uma postura dialógica diante das enunciações do

outro e de nossas enunciações. O que dizemos, o que o outro diz, nossas experiências, as

experiências dos outros, nossa narrativa, a narrativa dos outros estão em constante

movimento. E é exatamente isso que a professora Renata anuncia: o movimento de seu

pensamento frente ao movimento do pensamento dos outros. Encontramos, não raramente,

em livros produzidos a partir de diálogos, de conversas entre sujeitos que compartilham o

mesmo ofício, espaço ou sonho, momentos em que um dos interlocutores assume: “agora

você me fez pensar algo que nunca tinha pensado” ou “agora falando com você eu me dei

conta”. Fazer o outro pensar. Pensar com o outro. Essa é a metodologia, o princípio, o

caminho que esta pesquisa escolheu trilhar.

Interagimos com todas as vozes sociais que nos cercam, que acolhemos consciente

e inconscientemente no mundo, produzimos um enunciado que nos precede – já que muitas

vozes se farão ouvir em nossos textos – e um enunciado que espera resposta – que se

apresenta ao mundo não de forma passiva, mas interativa, propositiva, provocativa.

63

Estas relações dialógicas travadas entre diversos enunciados são espaços de

permanente tensão. O diálogo é este espaço de luta entre as vozes sociais, que por sua vez

são também plurais. “Bakhtin não é apenas o filósofo das relações dialógicas em sentido

amplo; o diálogo é também, no seu pensamento, a metáfora daquilo que poderíamos

considerar como sua grande utopia” (Faraco, 2003, p.72) talvez este seja o aspecto onde

sua voz (ou vozes) mais se faça necessária à nossa compreensão sobre pesquisa, e sobre

ensinoaprendizagem. Quando releio certas passagens que escrevi, penso no quanto a utopia

de Bakhtin – assim como a utopia de Freire – são vozes que constituem a minha própria

utopia.

Contudo, se por um lado, acredito no diálogo como uma possibilidade de

negociação entre diferentes lógicas, acredito também que esta negociação é tensa, difícil e

muitas vezes encontra limites – principalmente quando nos encontramos na fronteira – nem

sempre clara – entre o diferente e o antagônico – mas acima de tudo, acredito que é o

caminho para compreendermos a complexidade do mundo, sua dinâmica, sua pluralidade e

formas possíveis de negociação e construção coletiva. Compreendermos que existem

muitos mundos por serem pesquisados e descobertos quando nos movemos ao encontro

dos outros e de suas “estranhas” lógicas. Jorge Luis Borges, falando com admiração sobre

um hábito japonês de acreditar – e preferir – que o interlocutor tenha razão, nos faz pensar

nas possibilidades de nossa utopia: “Podemos estar errados, o interlocutor pode estar tão

errado quanto nós, mas de qualquer forma, o fato de supor que o interlocutor tem razão é

um bom prelúdio para o diálogo”. (Borges, 2009). Nesta perspectiva o diálogo é possível

não só porque abrimos mão de nossas certezas, mas porque ao mesmo tempo, nos

permitimos pensar que talvez, o outro tenha algo a nos dizer, algo a nos ensinar.

Minha utopia, entretanto, não é uma utopia ingênua, de quem acredita ser fácil ou

“sempre” possível dialogar com tantos outros. Nem sempre é, ou pelo menos, nem sempre

assim percebemos no espaçotempo presente onde o diálogo é produzido. Por isso não

podemos compreender nossas conversas apenas como um diálogo que acontece em um

tempo linear, de entendimento harmônico, ou de superação dialógica constante e continua.

Resolvi que meu caminho na pesquisa exigiria a presença viva e encarnada de muitos

outros sujeitos. Por isso venho defendendo a conversa como o lugar fundamental e

privilegiado onde estes sujeitos se encontram, se desafiam, se complementam, se

antagonizam, se movem e se transformam.

E foi a própria pesquisa que fez com que eu me movesse nesta direção que ainda

não sei se compreendo bem. A conversa. Mais uma vez, os caminhos da pesquisa

64

desafiam-me a mergulhar em águas turvas, sem certeza do chão sob meus pés. Agarro-me

aos meus companheiros de jornada – Bakthin e Freire – como criança em primeiro dia de

aula: desejo, mas não quero ir. Ir para onde? Ir com quem? Ir por quê?

Penso em minhas colegas professoras, que compartilharam comigo suas

experiências e comigo teceram a narrativa da pesquisa. Sim o que temos e fazemos é, com

certeza, uma conversa, uma roda de conversas. Mesmo que a timidez e a opressão da

filmadora tenha nos inibido no inicio, é claro que o que tivemos (e ainda temos) é uma

conversa. Uma conversa que flui, que segue meio sem rumo, sem direção... cada uma com

seu novelo de verdades, de saberes, de experiências ao colo vai cruzando seu fio com a

outra. Puxa, amarra, desfaz. Às vezes formamos lindos mosaicos, às vezes a trama se

esgarça. Paramos, mudamos de rumo, depois retomamos os pontos frágeis de outros

lugares. Voltamos ao dito, rememoramos, reelaboramos. Mas não serão diálogos? Serão

conversas? Mas não sou eu quem – inicialmente – provoca os debates com questões, então

não será uma entrevista? Ou um grupo focal?

Se a entrevista, no sentido a ela atribuído pelo dicionário, como conferência ou

conversação entre pessoas, assume um sentido que se aproxima das nossas conversas, na

prática social, tão comum nos meios de comunicação, ou na prática metodológica assumida

em várias pesquisas, ganha sentidos e contornos diferentes, talvez exatamente por filiar-se

a pressupostos epistemológicos diferentes. Em muitas entrevistas, espera-se uma separação

de papeis entre os sujeitos: o que vai responder – e tentar não ser pego em armadilhas que

o comprometam com respostas que gerem consequências inesperadas – e o que vai

inquirir, aquele que deve se manter o mais impassível o possível diante das respostas para

não influenciar o entrevistado. O entrevistador figura, nesta perspectiva, como aquele de

quem se espera um controle, um roteiro astuto e eficaz, de perguntas inteligentes capazes

de extrair do entrevistado o máximo de informações que, em seu julgamento, sejam do

interesse público. Existe um desejo de distância, uma certa crença na imparcialidade e

neutralidade do entrevistador, que deve conduzir o entrevistado, rumo “a” verdade. Em

outra perspectiva o entrevistador assume uma outra postura, buscando uma conversa mais

dialogizada, onde se deixa surpreender, questiona, discorda, pensa e repensa junto com o

entrevistado. Ele vai tecendo junto com o entrevistado os caminhos por onde a conversa

desliza, flui sem respeitar muito as margens pré-estabelecidas. Uma entrevista pode ser

uma conversa ou uma arguição, depende dos sujeitos que nela se colocam, de suas crenças,

interesses e possibilidades.

65

Em nossa perspectiva, não existe um inquisidor. Os sujeitos interagem, produzindo

um diálogo onde todos levantam questões, provocações, reflexões. Onde as respostas não

terminam em um ponto, mas em reticências, que movimentam o pensamento do outro.

Diferentes experiências são narradas, e nas narrativas somos levadas ora ao riso, ora

às lágrimas, ora à indignação ou sonho. Quantas vezes paramos e dizemos: agora você me

fez pensar outra coisa... e percebemos assim o quanto o pensamento do outro vai

convidando o meu a realizar um movimento vertiginoso onde pensamos não só sobre o que

o outro diz, mas sobre o que dizemos, não só sobre a experiência que o outro narra, mas

sobre nossa própria experiência ressignificada no pensamento do outro. Aprendemos com

o outro mais sobre nós. O que sabemos amplia-se, morre, renasce. As professoras vão

assumindo e se revezando no protagonismo das questões e das respostas, e não há lugares

fixos: questionam-se umas as outras e a mim. Não existem roteiros, não existe um lugar

onde se deva chegar, o caminho da conversa e sua própria tessitura é o lugar.

Lógicas que se enfrentam ou se complementam formando outra coisa: uma ideia

que às vezes perambula entre o lá e o cá sem achar um lugar fixo... e o silêncio. O silêncio

que se apresenta também, como um texto a ser lido. Afinal, não lemos no silêncio a

concordância ou desaprovação? A indiferença arrogante, ou o acolhimento carinhoso? O

silêncio é um texto que se inscreve entre os espaços das palavras, como o negro espaço

entre as estrelas, que se não existisse, não seria possível ver o que brilha. Diante da

presença da palavra vigorosa de uns, não se ouve o silêncio oprimido de outros? Plateia das

vozes espetaculares e barulhentas, não existe o silêncio da prudência?

Mas podem as ideias vagar sem encontrar pouso? Sem demarcarem seus territórios

e neles fincarem suas bandeiras? Às vezes quando paramos diante do pensamento do outro

e abandonamos nosso lugar sem ir necessariamente para outro, parece que sim... ficamos

ali, habitando um lugar que não reconhecemos como lugar, lugar nenhum, mas que vai se

configurando como o lugar do silêncio, o lugar das incertezas, o lugar tão temido por nós e

nossa lógica moderna. Lugar mal-dito, porque tememos e de certa forma desconhecemos

as palavras para o que ainda não é límpido e certo. Porque será que ainda acreditamos que

só as certezas são dignas das palavras? Ou porque acreditamos que os silêncios são fruto,

apenas de incertezas? Nosso texto foi sendo produzido, também, por palavras incertas e

silêncios convictos.

As informações que se amontoam em nossos correios eletrônicos, ou piscam

tentando ganhar um segundo de nossa atenção, apresentam-se geralmente como certezas

inquestionáveis, apesar de não sobrevirem a mais nova certeza inquestionável (e

66

científica!) da semana que vem. Muitas vezes passamos anos acreditando que uma

experiência que nos marcou profundamente só tem uma interpretação possível, e de

repente o outro me faz compreender que o que vivi e o que narrei pode ser compreendido

de outra maneira. De muitas outras maneiras. Por isso a narrativa de uma experiência é

mais que descrever. É mais que simplesmente contar uma “historinha” para o deleite da

plateia.

Ao compartilharmos uma experiência a retiramos de seu lugar fixo para entregá-la

ao mundo, e não sendo mais apenas nossa, ela ganha milhares de outras narrativas

possíveis, milhares de tons, milhares de possibilidades. Uma pesquisa sempre será apenas

uma, ou algumas, dessas possibilidades, mas a sua leitura por outros sujeitos será uma

porta aberta para o infinito.

Diálogos ou conversas? O que produzimos em nossas pesquisas? O que

experimentamos em nossas práticas? Por que quando produzimos alguns textos, encontros,

seminários, reflexões fazemos uma opção distinta? Conversas com professoras, diálogos

com professoras? Aprendemos que cada palavra é um conceito. Que conceito distingue

conversa de diálogo? Existe uma distinção? Acredito que toda conversa é um diálogo. Mas

todo diálogo se produz como uma conversa?

Onde dorme meu coração? Não sei. Talvez nos dois. Talvez não exista uma

fronteira que coloque estes termos em lugares tão fixos e por isso seja tão difícil

reconhecer-lhes as semelhanças e diferenças. Talvez diálogos e conversas não sejam assim

tão indissociáveis na forma como os compreendo e utilizo, ou ainda na forma como

compreendem e utilizam tantos pesquisadores e pesquisadoras.

Como Latour me ensinou a desconfiar dessas fronteiras fixas, dessas palavras

(conceitos) que arrastam suas correntes e âncoras, na tentativa sempre vã, de não se

deixarem levar pela correnteza de significados, produzidos pelo movimento da própria

língua, eu tenha dificuldades de encontrar-lhes um lugar. Então este deverá ser apreendido

por cada um, como um banquete servido para que cada qual se sirva, como desejar. Como

aprisionar em um único – e verdadeiro – sentido, palavras que são produzidas em

contextos históricos e sociais tão plurais, tão diversos?

Minha pretensão não permite que eu vá além de oferecer alguns elementos para a

reflexão sobre alguns dos muitos sentidos e possibilidades que estas palavras (conceitos)

oferecem às nossas pesquisas e fazeres pedagógicos, e assim examinar-lhes o potencial

metodológico que conferem às nossas pesquisas com o Cotidiano, e como os sentidos que a

elas atribuímos relacionam-se dialeticamente com nossas práticas como pesquisadores e

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pesquisadoras. Não se trata de definir qual o sentido “exato” as palavras/conceitos

conversa, ou diálogo, ou entrevista, possuem. Mas quais os sentidos que estas palavras

foram adquirindo no caminho desta pesquisa, na açãoreflexãoação, dos sujeitos. Quais

sentidos são coerentes com as escolhas teóricas que fazemos.

Muito próximas no sentido a elas atribuído pelo dicionário – conversação, troca de

ideias e informações – como estas palavras (conceitos) foram sendo separadas pelo uso e

adquirindo um sentido tão diverso? Por que uma – diálogo – é tão utilizada e possui amplo

referencial teórico, enquanto a outra – conversa – ficou relegada a um plano menor?

Como ambas habitam em mim, talvez seja assim mesmo que eu deva seguir. Uma

já é velha companheira e apego-me a ela como um náufrago em mar bravio. A outra é

companhia querida, que me acompanha por toda parte, mas vulgar. O sagrado e o profano,

a pesquisa e sua escrita, um dos grandes desafios para aqueles que desejam pesquisar com

o cotidiano.

O diálogo é um conceito desenvolvido e utilizado de diferentes formas por

diferentes campos de pesquisa. Mesmo possuindo compreensões distintas e plurais, que

subsidiam práticas distintas e plurais, encontra-se no lugar do sagrado, lugar do instituído,

goza de uma aura de cientificidade enquanto a conversa, prática vulgar, do homem

ordinário, das gentes do mundo, assim como tantas outras práticas humanas, são tratadas,

muitas vezes, com indiferença, como uma trivialidade indigna das artes da ciência.

Como pesquisadora do Cotidiano, ensinaram-me a revirar o lixo. A olhar para tudo

que é desprezado, invisibilizado ou ignorado por ser considerado menor. As práticas

pequenas, as pequenas ranhuras que se escondem por trás de cada texto, os sussurros, as

sombras. A conversa surge então como uma destas práticas.

Como tantas outras coisas que acabam se tornando invisíveis pela exposição, a

conversa é uma prática cotidiana, sobre a qual não prestamos muita atenção, pelo menos

até que sintamos falta de ter com quem conversar! Aí o vazio que se instala nos faz

perceber a importância do banal, e a conversa, ignorada em sua presença, torna-se uma dor

quase insuportável em sua ausência. Muitos na sua falta enlouquecem. Mas o que é uma

conversa? E de que conversa, afinal, falamos?

Em nosso dia a dia usamos milhares de expressões que revelam a complexidade

dessa palavra. Temos “conversas de pé de orelha”, “conversa fiada”, “conversa de

comadre”, “uma conversa séria”, “conversa difícil”, “uma conversinha”, “conversa pra boi

dormir”, etc. No entanto nem toda interação humana, mediada pela palavra, é

compreendida como uma conversa. Assim como nem tudo que chamamos de conversa, a

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conversa em seus múltiplos sentidos, é a conversa que me interessa particularmente refletir

e defender como uma metodologia potencializadora de nossas pesquisas e práticas.

Ao longo do nosso dia podemos entabular uma série de diálogos, curtos ou longos,

que não se configuram necessariamente como conversa que desejamos investigar como

metodologia. Podemos passar horas falando com um colega de trabalho sobre uma

atividade que estejamos fazendo juntos, solicitar informações, prestar informações, sem

que uma “conversa” seja estabelecida. Um casal convive diariamente, vai ao mercado, fala

das contas, dos filhos e uma hora um deles se queixa: “nós não conversamos mais!”.

Se nosso primeiro pensamento sobre o que é “conversa” nos leva para o lugar

comum, vulgar, trivial, quando pensamos no oposto, a ausência de conversa, esta ganha

outros sentidos: torna-se a necessidade de partilhar algo mais profundo, mais intenso, mais

verdadeiro, e é esta exatamente a dimensão da conversa que me interessa explorar. Quando

ausente, a conversa adquire uma importância fundamental nas relações humanas. Ao nos

ressentirmos de sua ausência, geralmente reconhecemos que a “conversa” é o fio que nos

conecta aos outros seres humanos de uma forma mais íntima, pessoal e significativa.

Falamos com muita gente, mas precisamos ter com quem conversar.

Na obra “As ligações perigosas” de Choderlos de Laclos, escrita na forma de cartas

entre as personagens, e adaptada para o cinema, a Marquesa de Merteuil exige que o

Visconde de Valmont encerre seu relacionamento – maquiavelicamente tramado pelos dois

– com a madame de Tourvel. Na obra de Laclos a Marquesa – quando percebe que a

paixão do Visconde tornou-se real – envia a Valmont, em um claro desafio, um roteiro

jocoso e perverso para encerrar uma relação indesejada, que o Visconde, no livro,

encaminha a madame de Tourvel.32

O cinema coloca as personagens frente a frente, e diante de uma madame de

Tourvel desesperada, Valmont repete mecanicamente “está fora do meu controle” (não

tenho culpa, não posso fazer nada a respeito). A mulher vai se dilacerando frente aquele

homem, buscando por ele em cada enunciado ávido por uma resposta, enquanto ele ao

32 "De tudo nos aborrecemos, meu anjo, é uma lei da natureza; não tenho culpa. Se agora me aborreço duma aventura que me ocupou inteiramente durante quatro longos meses, não tenho culpa. Se tive tanto amor como tu virtude, e já é afirmar muito, não é para admirar que um tenha acabado ao mesmo tempo que a outra. @ão tenho culpa. Resulta disso, que desde há algum tempo te engano: mas também a tua implacável ternura a isso me obrigava! @ão tenho culpa. Hoje, uma mulher que amo loucamente exige que te sacrifique. @ão tenho culpa. Bem vejo que julgarás chegado o momento de me chamares perjuro, mas se a natureza concedeu aos homens apenas a constância, e legou às mulheres a obstinação, não tenho culpa. Crê-me; tal como eu escolho outro amante. Este conselho é bom, muito bom; se o achas mau, não tenho culpa. Adeus, minha amiga, tive-te com prazer, deixo-te sem pena; talvez volte ainda. É assim o mundo. @ão tenho culpa”.

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repetir impassivelmente o mesmo texto, e apenas o mesmo texto, oferecendo apenas a

mesma resposta a toda nova interlocução, encerra qualquer possibilidade de conversa.

Rompe o vínculo, porta-se intencionalmente como um “outro”, coloca-se na

posição do estranho, cerra a porta da comunicação que existia entre os amantes. Ela adoece

e morre.

Quantas vezes diante de um interlocutor buscamos desesperadamente “fazer

contato”, argumentamos, provocamos, alteramos o tom e o ritmo das palavras, mas

ouvimos mecanicamente a mesma resposta a todas os nossos enunciados? Quantas vezes

nossos alunos tentam em vão estabelecer algum vínculo, articular uma conversa enquanto

repetimos mecanicamente, de forma quase dogmática, nossos regimentos, nossas normas,

nossas verdades, sem ouvi-los? Para que uma conversa exista é preciso muito mais do que

duas pessoas que falem. É fundamental duas pessoas que realmente se ouçam. Duas

pessoas que realmente se importem com o que é dito.

O contrário também é verdadeiro. Como ouvimos na canção: “Um dia ele chegou

tão diferente do seu jeito de sempre chegar. Olhou-a de um jeito muito mais quente do que

sempre costumava olhar. E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar,

e nem deixou-a só num canto... 33”. E o que muda quando mudamos o jeito de falar? Um

dia alguém chega senta-se ao lado de um outro alguém e de repente em uma frase, em um

breve enunciado – às vezes até mesmo em um breve silêncio – se estabelece o vínculo, a

partilha, o entendimento e o reconhecimento onde minha humanidade encontra a sua34.

No entanto, aprendi, ou me dei conta, em uma conversa de botequim, que este

encontro nem sempre acontece, no mesmo espaçotempo para os dois interlocutores. Muitas

vezes o entendimento, a negociação é atravessada por tantos sentimentos – vaidade,

amargura, teimosia, mágoa, arrogância, etc. etc. – que deixamos de nos ouvir uns aos

outros. Outras vezes não são sentimentos, mas ideias, concepções, nossas filiações e

convicções que só nos permitem – quando permitem – ouvir parte do que o outro diz. E

penso que não tenhamos como fugir disso. Temos nossos sentidos sempre atravessados por

nossas crenças, temos que compreender os limites de nossa compreensão, de nossa

possibilidade de tradução, ter a consciência de que a compreensão absoluta não existe.

33 Valsinha – Chico Buarque 34 Como na cena emblemática vivida por Fernanda Montenegro e Francesco Guarnieri em Eles não usam Black Tié. Sem uma palavra em cena, os atores representam o vinculo entre um casal que cata feijão junto, como juntos catam os cacos da dor que compartilham, como juntos lutam cada batalha da vida.

70

O que não significa que uma conversa não possa acontecer – ou continue

acontecendo – dentro de cada um dos interlocutores, horas, dias ou mesmo anos depois.

Pois o tempo ao nos deslocar, nos permite não só ad-mirar o que não foi visto, mas ouvir o

que foi dito, repensar o que foi dito. O tempo nos permite viver outras experiências e estas

nos possibilitam retomar uma conversa antiga, com novos entendimentos, recriando a

conversa vivida em um tempo passado.

Conversava com uma amiga (professora também) na mesa de um bar – lugar que

sempre me inspira boas conversas – e ela me relatava seus conflitos no trabalho e sua

dificuldade para conviver com as diferentes concepções de mundo, de infância, de

educação, que encontrava tanto com o grupo de professoras e agentes educativas, quanto

com a equipe dirigente da creche onde trabalha35. Narrava-me o quanto se tornavam

polemicas as muitas questões que levantava nas reuniões: as práticas religiosas nas rotinas

da creche; a falta de higiene em algumas práticas (como usar um único sabonete para dar

banho nas crianças); a falta de um objetivo pedagógico claro nas dezenas de atividades

festivas; a burocracia que roubava tempo de atividades mais importantes; a ausência

constante da direção, etc. Questões que a faziam ser combatida, que desgastavam sua

relação com o grupo, fazendo-a sentir-se só, como se fosse uma educadora perdida no túnel

do tempo, vivendo em uma escola que pensava não ser possível mais existir. Mas que,

infelizmente, ainda existem.

Enquanto isso, meu pensamento vagava, percorrendo suas palavras, mas também as

reflexões do meu texto, o que me fez questioná-la porque insistia em argumentar, reclamar,

defender posições que sabia não seriam bem recebidas pelo grupo? Perguntei-lhe se achava

que estava sendo ouvida? Se achava que valia a pena tanto desgaste? (às vezes nem eu

acredito nas perguntas tolas que faço! Poderia botar a culpa no álcool, mas não era ainda o

caso). Ela disse que sim! Que embora as relações continuassem ruins, muitas ações, muitos

fazeres pedagógicos acabavam se transformando, mesmo quando suas colegas não

admitiam sua influência nesta mudança. Bakthin se apresenta sem cerimônias em nossa

conversa, e pergunta: mas isso importa? A autoria importa? Não será a transformação que

a palavra produz no outro o mais importante? Então as ideias que você tem e defende são

só suas? Elas não pertenceram a tantos outros antes de ti? Quantas dessas ideias não foram

também estranhas, de difícil digestão, e depois tornaram-se suas?

35 Creche administrada pela Prefeitura de São João de Meriti, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro.

71

Ela me fez pensar então, o quanto eu estava vendo a conversa, muitas vezes, em um

espaçotempo linear, fixo, e talvez marcada por minha própria vivencia na pesquisa, como

uma experiência idealizada, entre sujeitos idealizados. Pude perceber que a palavra

pronunciada pode ficar como semente plantada em nós por muito tempo. Uma conversa

pode estar acabada para um sujeito, mas permanece encarnada no outro, mesmo que este

outro demore a se dar conta das palavras que movem. São as vozes a que Bakthim se

refere, que permanecem em nós, perdem sua origem, sua autoria, mas preservam o mais

importante, produzindo profundas transformações no processo de se tornarem nossas.

Assim penso na potencia da conversa, não apenas entre os iguais, ou semelhantes, mas

entre os diferentes.

Permanece, contudo, a necessidade que esta conversa se produza como uma

experiência, ainda que precise de tempo para maturar, ser digerida, ser absorvida, esta

conversa precisa deixar marcas, precisa seguir viva dentro de nós.

Uma outra professora – que trabalha em minha escola – entra nervosa em minha

sala. Ela é minha colega e confia que eu possa ajudá-la a decidir sobre que atitude tomar

em uma situação referente a uma criança que teve um excelente desenvolvimento, mas que

se encontra, em sua avaliação, muito aquém do que deveria possuir para seguir em frente,

questão recorrente em meu/nosso cotidiano. Ela narra sua aflição, os caminhos e os

descaminhos de seu pensamento, que se encontra confuso, nebuloso, em conflito: reprová-

la e correr o risco de “jogar no lixo” todo o trabalho de motivação e autoestima

conquistados a duras penas, que modificou a relação da criança com o seu próprio processo

de aprendizagem ou aprová-la e correr o risco de ser criticada por não saber avaliar uma

criança sem “condições” de cursar o ano seguinte? Seu pensamento devaneia e ela fala

comigo e consigo ao mesmo tempo, eu acompanho agradecida pelas coisas que ela me faz

também pensar: quantas vezes ela foi rigorosa em seus critérios de aprovação/reprovação

para depois constatar que outros alunos, muito “piores” que os seus retidos, cursavam a

série posterior? Quantas vezes ela reprovou um aluno e este perdeu o interesse e piorou seu

rendimento ao invés de melhorar? Quantas vezes ela reteve um aluno que em dois meses

de aula no ano seguinte apresentava um desenvolvimento muito acima da turma o que além

de gerar um arrependimento na professora, desestabilizava o trabalho em sala, já que ela

desejava (e acreditava) na organização de uma turma homogênea? (E ela me desperta para

algo que ainda não tinha pensado: como a retenção também produz heterogeneidades,

sendo uma contradição dentro da própria lógica que a defende).

72

Eu escuto, pergunto, questiono, sugiro. Pensamos juntas sobre as escolhas e os

caminhos. Não travamos uma batalha de palavras. Não existe – necessariamente – a

intenção de vitória de um argumento ou de uma ideia. Existe uma partilha. Um convite

para entrar em um labirinto de pensamentos e ajudar a encontrar algum caminho. Ela sabe

que possuo muitas opiniões contrárias a algumas de suas práticas. Mas sabe também que a

respeito como professora interessada, comprometida e séria que é. Ela não me procura para

confirmar o que já sabe, mas para discutir, refletir e dividir o peso de uma decisão que sabe

ser muito séria na vida de uma criança. Uma decisão que não pode ser leviana, tomada com

a arrogância de quem conhece todas as respostas. Assim como sabe que eu também não

possuo “todas” as respostas, mas compreendo cada criança em sua singularidade como

uma questão única, um desafio único a ser investigado e refletido, motivo sim, para muita

conversa.

Walter Carlos Costa ao nos apresentar a concepção do oral de Borges nos convida a

pensar sobre o momento que eu e a professora vivemos:

“(...) não se trata simplesmente de conversa mundana ou de conversa para fins de comunicação imediata, tampouco se trata de conversa de salão literário: é uma conversa elaborada, em que os interlocutores compartilham leituras e opiniões sobre os problemas do ofício.”(Costa in Borges,2009)

A conversa surge como uma reflexão compartilhada sobre as experiências que

vivemos e que vão nos constituindo, que nos desafia a pensar com o outro sobre o mundo

que vivemos e fazemos. Mas isso não seria o conceito de diálogo compreendido em Freire?

Quando defende que não podemos pensar sem os outros, nem para os outros, mas com os

outros?

Kavaya (2007) nos apresenta uma interessante reflexão sobre o conceito de diálogo

em Freire e a Ondjango (casa de conversa) africano/angolano, feita de pau-a-pique, circular

e sem laterais, à sombra de uma grande árvore:

Trata-se da casa de conversa, de reunião, de hospedagem, de partilha de bens/refeição/serviços, de educação/iniciação sociocultural, de entretenimento e/ou de fazer justiça. Antes de tudo, se trata de uma casa, ponto de partida e ponto de confluência; de uma casa com as condições de se poder sentar, reunir junto de alguns mais-velhos; trata-se de um lugar de encontro.

O que me chamou atenção nesta “casa de conversa” foi exatamente seu caráter

plural e sua importância social. Ondjango tanto é o local dos fóruns oficiais para se

deliberar sobre questões sociais e políticas, quanto é um local de hospedagem, de festa.

73

Tanto é utilizada como espaço de educação das novas gerações, como espaço de encontro

para partilha. Centro vital da organização social de um povo, não separa o que em nossa

cultura seria profano – encontro para relatar acontecimentos cotidianos e vulgares – do que

consideramos sagrado – questões de justiça por exemplo – e que por ser sagrado é restrito

aos iniciados, exige fronteiras, portas fechadas, vigias e trancas, austeridade.

A vida partilhada não é dividida em diferentes espaços (e estes não possuem

necessariamente uma hierarquia) possui apenas um: Ondjango, o lugar de conversa. O

lugar onde os sujeitos devem se encontrar e dividir suas experiências, criar com suas

diferentes narrativas a identidade de seu povo.

Quando discutimos o conceito de espaço como o lugar praticado (Certeau), para

além de sua configuração física, mas sua produção pelos sujeitos que nele se encontram e

ali instauram formas do viver, a Ondjango nos mostra um mesmo lugar, que vai se

transformando em diferentes espaços segundo as práticas dos sujeitos, ganhando novos

contornos segundo a finalidade dos encontros, segundo a intenção das conversas. As

configurações que este lugar adquire, não são, portanto, criadas pela organização material

do mesmo, mas pelas diferentes formas que adquire a palavra.

Aqui, a linguagem define o espaço. Não existe a tentativa de limitá-lo ou produzi-lo

no controle de sua arquitetura, mobiliários, horários, regimentos. Assim o mesmo lugar –

para eles sempre sagrado mesmo quando nas atividades mais simples ou cotidianas –

ganha seus contornos pela palavra:

Aí, segundo a pertinência do vivenciado, o ohango (conversa/diálogo) tomava vários significados: “ondjango”, enquanto “ulonga” (relato da vida desde o encontro anterior), “elongiso” (ensinamento e aprendizado), “ekuta” (partilha de bens alimentares), “ekongelo” (reunião de caráter deliberativo), “ekanga/okusomba/okusombisa” (reunião para fazer justiça e sentenciar para punir ou absolver o argüido), “okupapala” (encontro de entretenimento, festas e danças culturais e tradicionais, conforme a situação vivida no momento: morte caça, casamento, iniciação sociocultural e comunitária, acolhimento de uma visita etc.), “ondjuluka” (encontro para organizar um mutirão comunitário a favor de algum da comunidade em situação de doença, problema socioeconômico, intervenção de ajuda na sua lavoura etc.) (Kavaya, 2007).

Ondjango convida-me a pensar no quanto, e até que ponto, a disposição das

cadeiras, a organização do espaço escolar, reflete-se realmente na produção ou não, de

“lugares de conversa”. Sem menosprezar o poder da organização espacial, as fronteiras

visíveis e invisíveis que se erguem entre os sujeitos pela força da arquitetura e

planejamento estratégico de um espaço, sou assaltada pela memória de quantos “círculos”

74

de silêncio, belicosos e autoritários, participei. Quantas aulas estive onde um aluno inicia

um relato de suas experiências e todos, subvertendo a disposição das carteiras, viram-se

para ouvi-lo com atenção e respeito, e estabelecem uma conversa.

Ondjango convida-me também a pensar nas diferentes intencionalidades das

conversas. Conversas de relatos, troca de experiências, entretenimento... conversas para se

fazer justiça, se ensinar, resolver problemas. Algumas mais livres, outras mais diretivas,

todas compreendidas como conversas, na dimensão do encontro, da necessidade do

encontro.

Para referir-se a linguagem (ou palavra) os gregos usavam mytos e logos. Separava-

se assim, a palavra mítica, mágica, religiosa, a palavra que narrava o sagrado, da palavra

que expressaria o pensamento e a realidade. Os mytos que possuíam em sua narrativa o

poder encantado de organizar e nos ajudar a compreender a realidade vão perdendo sua

importância diante do logos: a palavra racionalizada, expressão das ideias, dos conceitos,

da verdade. Lançadas às sementes que cresceriam no solo fértil da modernidade,

começavam a gestar o mundo cindido entre o sagrado e o profano, entre a razão e todas as

outras formas de conhecer o mundo, consideradas indignas, menores, e por isso mesmo

eclipsadas pela luz da ciência. Mas a palavra seguiu sendo razão e encantamento,

pensamento e magia. Nossas narrativas continuaram a existir como mytos e logos, e ambos

nos constituem, indissociavelmente.

Em nossa cultura, ou melhor, nos traços ocidental e racionalista de nossa complexa

cultura mestiça, a conversa é profana na origem e na forma. A conversa não exige

questionários, métodos e fórmulas, a conversa nem sempre tem um objetivo claro ou pré-

determinado, e tampouco um fim pré-concebido, ela não exige planejamento ou controle,

mas como percebemos, nem sempre necessita deles para ser considerada produtiva ou um

sucesso.

Neste sentido desenha-se certa fronteira com o conceito de diálogo em Freire que

nos adverte que: “O diálogo não pode converter-se num bate-papo desobrigado que

marche ao gosto do acaso entre o professor ou professora e os educandos” (2005).

Compartilho com Freire a crença da intencionalidade e a compreensão de que a prática

pedagógica é uma prática diretiva: quem ensina, ensina algo, a alguém36. Como sujeitos

produzidos pela modernidade, fomos ensinados a sempre ter um projeto para o mundo. E

de fato temos, pois acreditamos que o mundo precisa sim, ser transformado. 36 “E ensinar é um verbo transitivo-relativo. Quem ensina, ensina alguma coisa – o conteúdo – a alguém – o aluno”. Freire, 2005.

75

Entretanto a prática da pesquisa chamou minha atenção exatamente para a

potencialidade educativa do acaso. Realmente temos, muitas vezes, na conversa a

“desobrigação” de chegarmos a um ponto pré-determinado, conquistar conhecimentos pré-

concebidos, atingir um objetivo. Contudo, isso não significa que conhecimentos não

tenham sido produzidos, que pessoas e realidades não tenham se transformado neste

processo. A potencia do acaso está exatamente na ausência do roteiro. Sem caminhos

rígidos a serem percorridos, sem margens, sem fronteiras, as conversas nos levam para

lugares – e saberes – insuspeitáveis, exatamente por isso revela o novo, o que ainda vai

latente em nossos corações, as incertezas que nos moverão para o desconhecido.

Exatamente por isso não permite que nossas pesquisas, ao trilharem apenas pelos caminhos

desejáveis, se tornem a confirmação de nossas certezas, e não, a investigação de nossas

dúvidas.

Certa ausência de controle – sobre a pesquisa e sua escrita – provoca insônias,

calafrios e mal estar, com certeza. Mas toda essa insegurança é compensada pela riqueza

das descobertas que nos permitimos encontrar. Conversar não é interrogar, não é arguir,

não é separar os sujeitos entre os que elaboram as perguntas – e analisam as respostas

segundo seus manuais – e aqueles que respondem as perguntas – às vezes de forma

“errada” e “insatisfatória”; não é estabelecer um diálogo dividido entre os que sabem e os

que não sabem; os que possuem as chaves da compreensão da palavra do outro, e os que

não compreendem nem mesmo o que dizem.

Não podemos fazer pesquisa com estranhos. Não podemos ser sujeitos estranhos ao

universo da pesquisa. Não fale com estranhos! Nossas mães nos aconselhavam zelosas.

Não fale com estranhos! Tantas mães repetem cautelosas. No entanto, nós só “falamos”

com os estranhos. Mas com eles não conversamos. Os “estranhos” são aqueles que nos

parecem hostis, e como bem nos alertam nossas mães, nem sempre nos querem bem, ou

nos fazem bem. E como nos veem como estranhos também, não acreditam facilmente em

nosso bem querer. Por isso não podemos conversar com eles. E por isso também, nem

sempre eles querem conversar conosco. Conversamos com nossos companheiros, que

mesmo quando nos recriminam, discordam ou debocham, nos amam, nos querem bem.

Contudo, quando conversarmos com um “estranho”, ele deixa de ser estranho, sem

necessariamente que isto o converta a um “mesmo”. A conversa – em minha utopia –

76

possibilita o encontro com o “outro” que permanece “outro” sem necessariamente ser

“estranho” (bizarro, esquisito, fora do comum37). Eis o poder e a magia da conversa.

O sucesso da conversa é a entrega. É o encontro. Que, no entanto, como vimos,

nem sempre acontecem no mesmo momento para os diferentes interlocutores. Uma

conversa acontece realmente onde existe cumplicidade, segurança, confiança, respeito,

dignidade e afeto. As pessoas que conversam afetam-se com o que é dito pelas outras,

porque compreendem que o dizer das outras pessoas é importante, porque as pessoas que

falam são ou tornaram-se – com o deslocar no tempoespaço – importantes. Naturalmente

isso não exclui a tensão, o conflito que às vezes adia o final de uma conversa – se é que ela

termina – por muito tempo.

Falamos com muita gente, mas quando insistimos na conversa, mesmo as mais

difíceis, é porque confiamos que o outro está nos ouvindo, mesmo que nem sempre

concordando. A conversa é uma profissão de fé no outro ser humano, e em sua capacidade

de nos ouvir, e quem sabe um dia, mesmo sem concordar, nos compreender.

Falamos muito o tempo inteiro, mas conversamos mesmo apenas em algumas

ocasiões. E talvez saibamos intuitivamente exatamente o momento em que uma conversa

começa. Quantas vezes convivemos meses, anos com algumas pessoas, e depois de uma

“conversa”, saímos com a sensação de ter conhecido alguém novo? De que a relação com

aquela pessoa não será mais a mesma.

Quando o que é dito ganha uma relevância mais profunda, as pessoas envolvidas na

conversa reposicionam seus corpos, aproximam seus ouvidos, olham nos olhos, as vozes se

alteram. Existe uma resposta física, emocional e mental a uma conversa. Existe um desejo

de participar, um desejo de ouvir e ser ouvido. Um desejo de mergulhar no outro, de saber

mais, de ouvir mais. Decifrá-lo e devorá-lo. Antropofagia.

Essa conversa pode ser com um amigo, com um professor, com um aluno, como

pode ser com um compositor, com um pintor, com um autor, com um outro ser humano

que nos toque e crie em nós essa estranha necessidade do encontro. E essa saudade, de

tanta gente, que fala comigo, que me aconchega, ensina e consola, mas que jamais

conhecerei...

Para uma perspectiva científica moderna, pseudamente neutra, esta conversa é

inconcebível, pois é rica demais em subjetividades, é humana demais para ser fonte de

informações sobre o universo humano. Para a pesquisa com o cotidiano, é uma opção de

37 Dicionário escolar da Língua portuguesa. Academia Brasileira de Letras.

77

conhecer e pensar sobre a vida e sobre os sujeitos, com os sujeitos no momento em que a

vida acontece.

Para nossa prática pedagógica é uma questão a ser refletida: entre tantos os

momentos que passamos em uma sala de aula, quando conversamos? Será que conversar é

mesmo perda de tempo? E o quanto este compartilhar experiências, ouvir o outro, narrar-se

potencializa o ato de aprender? Será que o controle sobre os diálogos pedagógicos para que

não escapem ao acaso produz um diálogo pedagogicamente potencializador entre os

sujeitos?

Acredito que aprendemos uns com os outros, quando compartilhamos nossas

experiências, quando nos sentimos seguros para nos narrarmos e confiamos em nossos

companheiros. Acredito que quando fazemos isso estabelecemos com os outros um

diálogo, e que uma das formas que este diálogo assume em nosso cotidiano é a conversa. E

digo uma das, porque o diálogo pode assumir muitas formas, e algumas delas, como vimos,

possuem fronteiras, normas, objetivos, que geralmente a conversa não respeita. Conversa

não possui roteiro. Nem estruturado, nem superestruturado Conversa é fluxo.

Para Jorge Luis Borges os gregos inventaram o diálogo – e segundo ele com o

diálogo o princípio civilizatório – e assim os homens descobriram que não precisavam se

matar diante de alguma discordância podiam dialogar. Penso que talvez sim, os gregos

tenham produzido um dos conceitos de diálogo que mais marcaram nossa civilização

ocidental, mas a conversa, desconfio, é bem mais antiga...

Tão importante para a cultura e civilização Grega, que alguns filósofos da

Antiguidade Clássica, desenvolveram um conceito de diálogo como método. Havia uma

intencionalidade e uma diretividade na discussão para que o discípulo compreendesse

determinada ideia ou conceito. Em uma relação assimétrica um interlocutor – reconhecido

como mestre – utilizava a forma de perguntas e respostas para desconstruir as ideias pré-

concebidas – vulgares, erradas – dos pupilos, para em seguida orientá-los, com o mesmo

método de perguntas e respostas para as conclusões que esperava que alcançassem.

Percebemos que, quando assim compreendido, o diálogo assume alguns a priores:

primeiro se estabelece o conhecimento dos “pupilos” como um conhecimento restrito,

falho, incompleto, portanto negado como conhecimento. Segundo se acredita que o

conhecimento do mestre, ao contrário, é expressão da “verdade”. O diálogo neste sentido –

e não esqueçamos que o diálogo como conceito tem muitos sentidos e alguns bastante

diversos deste – torna-se o caminho utilizado para fazer com que os sujeitos abandonem

suas próprias ideias e convicções e assumam as do mestre como suas.

78

Os sofistas, filósofos do período socrático, apresentavam-se como mestres da

oratória e da retórica, artes fundamentais para uma atuação política na polis. Para os

sofistas não importava onde estava “a” verdade, pois “a” verdade estaria com aquele que

melhor a apresentasse e defendesse, aquele que houvesse desenvolvido a arte da persuasão.

Aquele que tivesse aprendido a usar a palavra como espada. A palavra para

desarmar e vencer o outro. O diálogo – quando nesta perspectiva – muitas vezes nos

desafia para um duelo. Quando nesta forma, o diálogo apresenta-se como uma lógica que

combate à outra e tenta provar-se superior em “verdade”.

A conversa que interessa a nossa pesquisa é aquela que permite que uma lógica

ressignifique-se na outra, expanda-se na outra, aprenda com a outra. Enquanto nesta

perspectiva de diálogo alguém sai vencedor do debate, na conversa, na perspectiva que

defendo, não vencemos ou perdemos, aprendemos. E aprender significa tanto ganhar como

perder muitas coisas...eu, por exemplo, quanto mais aprendo, mais perco a paz.

Minha contribuição a esta conversa não será lançar luz sobre as trevas. Não será

oferecer soluções ou respostas, mas contribuir na busca de outras reflexões possíveis, em

busca de outras práticas e outras escolas possíveis, não porque eu acredite que não façamos

um trabalho sério e comprometido com nossos alunos, mas exatamente por esta seriedade e

comprometimento que nos exige buscar sempre, criar sempre, investigar sempre, pois o

mundo está permanentemente se recriando, e os desafios são muitos.

Minha contribuição a esta conversa será ser, de certa forma e neste momento, a

fiandeira dessas muitas linhas que se cruzaram: nossos saberes humanos, docentes, outros

saberes, nossos não-saberes e os não saberes dos outros...

O diálogo travado na conversa perde sua hierarquia – mestre/pupilo – assim como

sua diretividade. A conversa é por natureza democrática, rizomática, indirigível. Começa

em um ponto que não necessariamente foi aquele que você estipulou para começar, e

termina em lugares absolutamente imprevisíveis. A conversa em sua dialogicidade e

dinâmica nos produz outros na interação com as experiências dos narradores, não

possuindo, portanto, garantia de portos-seguros onde ancorarmos. Mesmo quando partimos

com um mapa, os ventos, as mares, e a própria viagem vai nos transformando e

transformando nossos caminhos. É preciso deixar-se levar...

Uma conversa também, nem sempre se encerra quando nos despedimos, pois

seguimos uns nos outros, continuando mentalmente, por muito tempo, a conversa

inacabada...

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V. CHRO2OS: O TEMPO QUE 2OS DEVORA

“O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”

Carlos Drummond de Andrade

Na mitologia grega, no início havia Chronos (tempo) que uniu-se a Anaké

(inevitabilidade) e criou o Universo e a Terra. Sem forma, sem começo e sem fim. Sua

representação em muito se assemelha com o mito Judaico-cristão do Deus único. E talvez

por ser muito confundido com Cronos (Saturno) – pai de Zeus38 – é visto como aquele que

devora seus filhos.

Herdeiros da tradição e “veneração” da cultura greco-romana temos em Chronos

um mito interessante para refletirmos a gênese – mesmo que parcial, já que somos antes de

tudo mestiços – de nossa relação com o tempo, como aquele que cria a vida, que traz o

novo e como aquele que no fim, nos devora, nos conduz de volta a intemporalidade, ao

infinito, à eternidade. O tempo – Chronos – está no começo e no fim das coisas.

Esta relação mítica é uma alegoria interessante ao analisarmos como o sujeito

ocidental vai se afastando do conceito de um tempo cíclico “primitivo” para a

temporalidade criada por Chronos. Como vamos deixando de perceber a vida – também –

como ciclos que se alternam – mesmo que não se reproduzam da mesma maneira – as

estações, os períodos de plantio e colheita, os ciclos do dia e da noite, os ciclos da vida,

para uma concepção linear, para uma planificação de nossa própria história.

A história vista “chrono-logicamente”, além de silenciar outras “lógicas” de relação

dos sujeitos com o tempo, é um tempo que avança do ontem para o amanhã transformando

o hoje apenas em um lugar de passagem. Um lugar onde muitas vezes estamos sem habitar,

marcados ora pela nostalgia do que se foi, ora pela ansiedade do que virá, desperdiçamos a

possibilidade de encontrar no tempo presente, nos sujeitos presentes as respostas que não

foram encontradas no passado e que tantas vezes nos perseguem por séculos e séculos

(futuro adentro). Como nós, professoras, alunas e alunos, nos relacionamos com essas

temporalidades em nosso Cotidiano? Como esta lógica do tempo nos atravessa e marca

nossas práticas, nossos fazeres? Nosso tempo de produção de saber presente é um lugar de

passagem ou podemos torná-lo outro lugar?

38Cronos casado com Reia temia ser destronado por isso devorava seus filhos. Reia salvou seu filho Zeus dando uma pedra para o marido engolir. Zeus cresceu, matou o pai, salvou os irmãos e tornou-se o Deus supremo do Olímpo.

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%ós víamos a Eneida já estava lançando fonema, Cássia já estava lançando fonema e eu e Cristiane trabalhando o nome, trabalhando sílabas, contando pedacinho, contando nomes, recortando nomes colando tudo, e a gente naquele desespero todo. Sabe? Bateu um desespero muito grande. E depois que a gente começou, e as crianças sem a gente lançar fonema nenhum as crianças já começaram as hipóteses de escritas delas, aí Cristiane “Poxa Aline valeu a pena, nós não gastamos tempo!”, falei “Poxa Cristiane, que bom!”.(Aline) A gente tem o hábito de se colocar o tempo – deles – a gente acha assim vou dar o fonema assim até tal, vou dar as dificuldades até tal, vou lançar isso depois que acontecer aquilo, a gente tem essa “mania” né? A turma não respondia com rapidez e a gente continuava trabalhando, continuava trabalhando, e ficava preocupada, tinha muito pra se fazer, mas acabou que quando começaram a ler, foram mesmo.(Cristiane)

As professoras percebem e relatam que apesar da escola e os sujeitos estarem

marcados por esse tempo, por essa cultura “chrono-lógica”, outros tempos são necessários

e possíveis, outros tempos são exigidos pelo fazer. Percebem que ao seguir outras lógicas

de temporalidade com as crianças – apesar do desespero – não “perderam tempo”. E seu

desespero revela, em certa medida, a própria relação que ambas as professoras estabelecem

com esse tempo escolar, demarcado, linear e evolutivo. Revela, em suas preocupações,

quanto à necessidade dos grupos de alfabetização seguirem o mesmo currículo, o mesmo

tempo, o tempo de cada fonema, as concepções que mediam a relação das professoras com

o tempo e o fazer escolar.

Quantos de nós, professores e professoras, ainda acreditamos que desenvolver com

o aluno certos saberes – que em nossa lógica cartesiana e evolucionista já deveriam possuir

– é perder tempo? Quantos de nós, professores e alunos somos arrastados por essa

correnteza que desqualifica o tempo presente, o trabalho presente, as possibilidades

presentes, para ficarmos presos nesse rodamoinho onde lamentamos o que eles deveriam

saber e não sabem; o que os “outros” das outras turmas, das outras escolas, dos outros

países, sabem e os nossos não sabem? Nos preocupamos com o que eles terão de aprender

e – desconfiamos – não conseguirão, a tempo? Quando conseguimos nos mover para além

dessas temporalidades que esvaziam o tempo presente como tempo de possibilidades,

como tempo de criação, percebemos, como as professoras perceberam, que não perdemos

tempo. Que todo tempo escolar é tempo de aprender, e que ensinar o que o aluno ainda não

sabe, não é perder tempo, é exatamente a finalidade do tempo da escola. Por isso sempre

me aborreceram muitíssimo as criativas nomeações como recuperação paralela ou a mais

81

recente e não menos absurda (re) alfabetização39. A primeira por ter o pressuposto de que

o conhecimento é algo que se acha e se perde, afinal só se pode recuperar alguma coisa que

foi perdida, que se tinha e se perdeu, o que obviamente não é o caso dos alunos que

destinamos a “recuperação” já que eles efetivamente nada perderam, apenas ainda

encontram-se em um outro tempo no processo de construção do conhecimento. O conceito

de “recuperação” está muito mais vinculado a concepção de tempo do que de

conhecimento. Um artifício para que o sujeito recupere o “tempo perdido” e retorne a um

curso que supostamente deve seguir junto aos demais. Outra questão importante é

pensarmos até que ponto este processo de recuperação, ou recuperação paralela se dirige

realmente ao aluno, expressa uma preocupação com seu desenvolvimento, ou até que ponto

é uma solução (?) para os problemas institucionais de fluxo, produtividade, eficiência etc.

Ou seja, a quem realmente serve a recuperação? O que realmente se busca recuperar, o

aluno ou o dinheiro “gasto” com ele? A preocupação é realmente a criança e seu

desenvolvimento ou o custo que o tempo que “certas” crianças precisam causam ao

sistema?

A segunda nomeação para mim é mais difícil ainda de compreender: como é

possível uma criança que não foi alfabetizada, ou assim é considerada, ser re-alfabetizada?

Então devemos ignorar que a educação em suas muitas dimensões, inclusive a

alfabetização, é um processo?

Estas concepções, estas lógicas, criam uma temporalidade na escola, onde o

presente como tempo de aprender deve subordinar-se a um futuro. O que é preciso

recuperar é o “tempo perdido”, por isso é preciso (re) fazer, (re) ensinar, o que

efetivamente não foi feito, tampouco ensinado. O futuro atropela o presente, e sem

perceber, muitas vezes mata sua própria possibilidade de existência.

Como rompemos com a armadilha de tornarmo-nos, assim, um eterno vir a ser – o

que é fato – sem nos darmos conta do que somos – o que também é fato? Nosso tempo

pode ser representado por um segmento de reta que aponta em duas direções: para o

passado e para o futuro (hoje cada vez mais para o futuro!), sem que o presente encontre

seu lugar, seguindo perdido entre uma temporalidade ou outra, não sendo, portanto, visto

como um espaço fundamental para compreensão crítica do passado e construção reflexiva

39O termo foi criado pela SME -RJ para designar as turmas de correção de fluxo – para onde são encaminhados alunos considerados com distorção série-idade e ainda não alfabetizados – que substituíram o lugar deixado após a saída do projeto encomendado SE LIGA, que não prevê a continuação do projeto para além de um ano, estejam os alunos alfabetizados ou não. Estes projetos serão detalhados ao longo do texto.

82

do futuro. Compreensão crítica do passado que não nos imobilize, ou justifique nossa

ausência no tempo presente, mas, ao contrário, que seja a história que nos move para essa

construção reflexiva de um futuro que tenha sentido para os sujeitos, como percebe a

professora Cássia:

Então, no início quem chega na minha sala, pensa que é um “furdunço” [bagunça, desordem] por quê? Porque eu os deixo à vontade. Então eu pego jogos...dois meses é muito de conversa, bate – papo, brincadeira, deixo eles lá embaixo à vontade sempre cinco, dez minutos depois do almoço, depois do lanche, para eu ver, como é que eles são? E começo a me relacionar com eles. Quero saber que tipo de aluno eu vou trabalhar? Como é que é a família dele? O que ele gosta? O que ele não gosta? Daí, agora eu vou começar a caminhar. A partir do momento que eu vejo quem é esse aluno, como é a comunidade que ele vive, o que ele faz, o que ele entende de mundo, o que ele entende de relação social, agora eu vou começar a trabalhar.(Cássia)

Para a lógica mercantilista, ou produtivista, o tempo de relação dos sujeitos é um

tempo improdutivo40. O tempo usado no diálogo, no encontro, na investigação sócio-

cultural do complexo universo em que nossa criança está inserida é um tempo

desperdiçado. O tempo de conviver com o outro e estabelecer com ele as bases da relação

que será necessária à produção do saber, o tempo de se produzir uma avaliação diagnóstica

para poder estabelecer as condições necessárias às práticas pedagógicas, é lido como

“tempo perdido”. Por que? Talvez porque não sejam consideradas atividades de avaliação

diagnóstica. Diferentes concepções de ensinoaprendizagem orientam diferentes

concepções de avaliações. O que é conhecer o outro? Como investigar seus saberes – reais

e proximais – para planejar uma ação pedagógica a partir destas informações? Com

questionários e entrevistas estruturadas? Ou com a convivência e troca de experiências

entre professoras e alunos? Que procedimentos avaliativos produziram informações

realmente relevantes para a intervenção pedagógica?

A professora Cássia reconhece a necessidade dessa interação, dessa observação e

estudo sobre a história do grupo que precisa formar. Reconhece as atividades como

essenciais ao desenvolvimento do trabalho, contudo, ela mesma as coloca, pelo menos

discursivamente, como um tempo anterior ao trabalho pedagógico efetivo. O tempo de

“ver quem é este aluno” não é considerado pela professora, neste momento de sua

narrativa, como um momento de trabalho, como prática pedagógica de avaliação que irá

40 Mesmo as empresas que adotam políticas de “bem estar” oferecendo atividades físicas, massagens, salas de descanso o fazem em espaços organizados e controlados pela empresa, não são, necessariamente, espaços de integração. E o objetivo final permanece: garantir menos licenças médicas e maior produtividade ou seja: como explorar melhor a mão-de-obra.

83

proporcionar não apenas informações necessárias sobre os processos de interação do

grupo, mas sobre os saberes que circulam, os desejos, os caminhos possíveis. Por isso

conclui dizendo “agora eu vou começar a trabalhar”. E o que fazia antes não era

trabalho? O que efetivamente a professora compreende como trabalho escolar? Sua prática

desenvolve-se no sentido de valorização do encontro, do diálogo, do reconhecimento de

sujeitos e construção de laços e parcerias como parte do desenvolvimento do fazer

pedagógico. Utiliza os jogos e brincadeiras como instrumentos de mediação das relações

que o grupo vai constituindo, contudo ela não considera essas ações, parte da própria

prática, como trabalho pedagógico. Continua de certa forma, presa a uma lógica onde o

trabalho de construção das relações humanas não é parte do processo de

ensinoaprendizagem, mas um a priori, uma fase preparatória – importante, mas ainda

descolada – do trabalho propriamente dito. Este processo de avaliação inicial, que não é

anterior ao trabalho pedagógico, mas parte fundamental dele, parece não gozar do mesmo

prestígio que a avaliação conhecida como somativa, ou final. Misteriosamente parecemos

apagar as marcas, as informações recolhidas do ponto de partida, para fixarmos nossos

holofotes apenas nos pontos de chegada. Ao fazermos isso, acabamos por ignorar a

trajetória percorrida pelos diferentes sujeitos, e avaliamos apenas o resultado final. Ou seja,

dentro de certa lógica, o ponto de partida, o caminho trilhado é ignorado, desvalorizado,

menosprezado em função apenas de um resultado final. A educação que, por princípio,

para uns é um processo, para outros nada mais é do que um produto, uma mercadoria.

Estes como gerentes de uma fábrica, olham para os alunos como se fossem uma matéria

prima que, depois de submetidos a um mesmo procedimento de manufatura, passam por

um controle de qualidade onde os que estão aptos a serem consumidos ganham um lugar

nas prateleiras, enquanto os outros, imperfeitos, são descartados, ou voltam ao processo de

manufatura, para serem reciclados. Crianças-biscoito.

Quando esta lógica é hegemônica na escola, querendo controlar nosso tempo, para

uma maior “produtividade”, a escola se torna ao contrário, menos produtiva, exatamente

porque desperdiça as experiências que constituem os conhecimentos dos sujeitos,

conhecimentos que se tornaram saberes compartilhados.41 A professora Cássia compreende

41 “Em outras palavras, a ideia de saber implica a de sujeito, de atividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo (deve desfazer-se do dogmatismo subjetivo), de relação desse sujeito com os outros (que constroem, controlam, validam, partilham esse saber)”.Charlot, 2000: p.61.

84

que se estes conhecimentos não puderem ser negociados, compartilhados, não haverá, de

fato, produzido o saber, na perspectiva que defendemos.

Eu lembro que na primeira aula eu os separei em grupos: - Agora vamos trabalhar em grupos. Eu vi que eles ficaram assim meio desnorteados, parecia que eles nunca tinham trabalhado dessa maneira, em grupo. Botei em quatro, trouxe meu material, que eu vi que não podia contar com eles para eles trazerem o material deles, para poder enriquecer a aula, então eu trouxe tudo aquilo, trouxe jornal, trouxe revista, aí eu lembro que uma colega passou e falou assim: “Você é louca, você vai trabalhar dessa maneira com esse tipo de turma? Eles não sabem trabalhar assim!”. Eu também não sei se eu sei, eu vou tentar junto com eles fazer alguma coisa. E daí começamos.(Cássia)

Não, a professora não é louca. Apenas compreende, ou intui, que a escola é feita de

outras temporalidades, que os alunos possuem diferentes temporalidades, e que a totalidade

– desse tempo único e universal – não existe, nem fora da escola, nem dentro dela.

Compreende que investigar os diferentes conhecimentos produzidos pelos alunos no curso

de sua breve – porém intensa – história exige uma relação com o tempo escolar diferente

das impostas nos programas pré-moldados. Neste sentido, que o tempo investido na

avaliação diagnóstica, na investigação dos saberes dos alunos, é um tempo tão produtivo,

ou mais, do que uma avaliação somativa, ou classificatória posterior. Compreende que o

saber precisa ser produzido coletivamente e que isso exige outro tempo, e que isso não é

tempo perdido. Compreende que sua formação como professora também se dá neste tempo

presente e coletivo – “Eu também não sei se eu sei, eu vou tentar junto com eles fazer

alguma coisa” – pois cada turma, cada grupo de sujeitos precisa negociar sua forma de

produzir conhecimentos. Isso não é dado, é encontrado, é tecido, é produzido no fazer

diário. Existia uma avaliação, com base em uma observação primeira, que mostrava para a

professora que aquelas crianças não sabiam trabalhar em grupo. Existia uma crença de que

este trabalho coletivo era uma aprendizagem fundamental e significativa – ou a professora

não investiria nele – e existia a certeza de que isso precisava ser ensinado. Nossa colega

parece não compreender isso e assusta-se “eles não sabem trabalhar assim”, e diz isso

como se fosse esperado que aos seis anos de idade, no primeiro ano oficial de escolaridade,

eles já devessem saber trabalhar em grupo, ou isso não devesse ser mais ensinado, já que

não sabiam. Mesmo que nem a professora soubesse ao certo como ensiná-los, como diz o

dito popular, “não sabia que era impossível, foi lá e fez”.

Nossa lógica conservadora nos faz acreditar que os conhecimentos devam ser

primeiro adquiridos e depois executados. E entre outras coisas, esta crença faz com que

nossa colega acredite que só seria possível desenvolver um trabalho em grupo se este

85

grupo já possuísse conhecimento prévio sobre esta prática. Como tantos outros colegas,

que simplesmente justificam que “nada” podem fazer, pois os alunos não sabem o que já

deveriam saber. Pensam o trabalho do professor como se fosse uma linha de montagem

onde a cada ano – ou setor – só fosse possível encaixar mais uma peça se a peça anterior

estiver no lugar, caso contrário, a esteira para.

Apesar de sua prática, a professora Cássia não reconhece – discursivamente – que

seu fazer, que seu trabalho, não inicia após adquirir certos saberes e certas informações

sobre o grupo. Que estabelecer esta relação com o grupo, que a busca por estes saberes, por

estas pistas nas histórias singulares de cada criança, constituem seu trabalho.

Nesta perspectiva podemos refletir porque muitos ainda compreendem que a

formação dos educadores vem antes da prática, sendo a prática uma consequência linear

dessa formação. O que a professora nos convida a refletir é que o que antecede à prática, à

ação, é antes de tudo a vontade, o compromisso de fazer e a crença de que algo pode ser

feito. Mas também, que a prática, o estudo, a investigação do que esta realidade – singular

e mutante – nos exige, não antecede a ação pedagógica, mas a constitui. A teoria não

precede à prática, ela é produzida na prática em seu movimento. Investigar a realidade e os

sujeitos com quem trabalhamos não antecede nosso trabalho, mas é parte indissociável

dele. Para esta compreensão precisamos romper com certo modelo de linha do tempo, onde

a simultaneidade é ofuscada pela linearidade.

Observo que por sua história conservadora e por herdarmos espaçostempos

construídos não para esta escola que muitos desejamos, mas para outros projetos de escola,

precisamos cada vez mais reinventar a forma como lemos, ocupamos e porque não,

transgredimos, com os limites impostos por estes espaçostempos estipulados ou inscritos

em nossos prédios e currículos42. Inscritos em nós.

Uma limitação inscrita em nós que percebo, é a concepção – ainda – de que apenas

a sala de aula é um espaço educativo. Se defendermos que a escola deve cada vez mais se

aproximar da vida, ou melhor, compreender-se como vida e não como um tempo que

antecede a vida, se entendermos que todo tempo de convivência é essencialmente

pedagógico – ou deveria ser – precisamos pensar um currículo que extrapole as paredes da

sala de aula e compreenda todo o espaço escolar como espaço de ensinoaprendizagem.

Movo-me indisciplinadamente no tempo e retorno a 2002 quando tive a

oportunidade de aprender isso com meus alunos de Progressão. Depois de algum tempo 42 @o capítulo anterior discuti os espaços de diferentes escolas por onde trabalhei – Modelo, Lelé e CIEP – e sua articulação com os currículos, por isso retomo essa referência ao espaço-tempo escolar.

86

angustiada com a falta de progresso na construção de relações que permitissem uma

convivência respeitosa entre eles, e a possibilidade de executar trabalhos em grupos (ou

qualquer outro também!), resolvi que no pátio da escola teria a oportunidade de

compreender como aquele grupo se organizava melhor do que quando “aprisionados” no

espaço da sala de aula, espaço marcado pelas idealizações e limites que tanto eu quanto as

crianças já havíamos construído (e precisávamos desconstruir!).

Uma vez “soltos” no pátio comecei a observar quais os laços que se estabeleciam,

como se comportavam quando não havia – supostamente – um controle atento da

professora. Comecei também a utilizar este espaço para ouvir as histórias, dúvidas sobre os

mais diversos assuntos, tristezas e sonhos que fluíam no caminhar descompromissado,

braços dados com a professora, ou sentados ao sol, livres do medo, da vergonha, do

distanciamento que a sala de aula, mesmo contra minhas intenções, acabava impondo.

No pátio da escola, comecei a por em prática todo um currículo que o espaço

historicamente marcado da sala de aula não me permitia ousar. A hora do “recreio” que

com certeza era compreendida por muitos como a hora de deixá-los livres (e nos

libertarmos deles), era compreendida por mim como a hora de conhecer as diferenças e

singularidades de meus alunos, estabelecer laços afetivos no e com o grupo, observar o

desenvolvimento oral, a coordenação motora, o comportamento social, as lideranças – e

como estes sujeitos a exerciam – e os excluídos socialmente pelo grupo. Ou seja, o que

para uns era lido como a hora do caos, para mim, ao contrário, era a hora de observar a

ordem que existia naquele grupo particular, mesmo que em 2002 não tivesse consciência

tão clara desse fazer.

No pátio, correndo atrás de uma bola, pude discutir com os alunos a importância de

se estabelecerem e negociarem objetivos a serem alcançados (no caso um gol, no início

corriam todos para lugar nenhum), regras a serem respeitadas, necessidade de confiança e

respeito pelo companheiro, necessidade de respeitar o espaço, o corpo, o jeito de ser do

outro.

Aprendi também a importância do “brincar com”. Não só propor, intervir com

sugestões de regras ou mediar os conflitos. Brincar junto, se colocar ao lado, participar.

Assumir, naturalmente e eventualmente, a liderança deste grupo no seu brincar. Trocar

informações sobre os brinquedos de ontem e de hoje.

Ao “brincar com” assumi um lugar diferente na estrutura daquele grupo. Um aluno

ganhava-me no jogo de damas (e não porque eu deixava, sou é ruim mesmo!) para o

espanto de outros alunos que tinham o seu paradigma: a professora sabe, eu não sei!

87

Colocados em xeque. Riam de minha dificuldade com as mãos e com as rimas,

compreendiam que a infância deles e a minha poderiam ser compartilhadas em um novo

tempoespaço. Compreendiam-me como sujeito e eu deixava de ser, talvez por alguns

momentos, a adversária, como muitos me viam. Sujeitos que não são melhores uns do que

os outros, mas que são diferentes, que possuem saberes diferentes, que possuem

temporalidades e histórias diferentes que podem ser compartilhadas, que podem aprender a

fazer junto.

A questão do brincar, apesar de toda pesquisa no campo da psicologia, e da própria

educação, a respeito, continua muitas vezes renegada na escola, como “perda de tempo”,

mas apesar da forte pressão ideológica, percebemos que não é uma questão tranquila para

os professores, nossas concepções e conceitos de tempo, e principalmente de tempo

produtivo, tempo controlado em uma perspectiva moderna, choca-se com nosso

reconhecimento da importância do tempo da infância, do tempo do brincar, e o

reconhecimento deste como tempo de aprender, como mostra nossa discussão no grupo de

pesquisa:

- Até porque a gente não valoriza muito esse momento de brincar com os grandes. Isso daí é uma falha. Eu assim analiso, hoje, como uma falha. Porque a gente vê o cara de 7 ou 8 anos e ele não precisa mais brincar.(Aline) - E esse é o seu grande né? Seis, sete anos...porque o grande da Cristiane está com oito, nove.(Andréa) - É, mas quando eu peguei o terceiro ano do Ciclo também, há dois anos atrás...o cara não precisa mais brincar. E hoje já analiso como um erro. Eu sei que a gente dá os conteúdos, as outras coisas que a gente precisa trabalhar, a gente deixa um pouco de lado esse brincar do aluno. Mas eu tenho consciência de que é muito importante. Mas em contrapartida...(Aline) - Mas acho que tem a ansiedade nossa também.(Rosângela) - Em contrapartida, tem essa ansiedade, e tendo tanta coisa do conteúdo para ser trabalhado eu me privo de conhecer meu aluno sem ele estar atrás de um pedaço de papel.(Aline) - Eu acho essa uma questão interessante. Como na escola nós achamos algumas práticas, nós até reconhecemos algumas práticas como importantes, fundamentais, e, no entanto, como essas nossas práticas acabam sendo reguladas por esse currículo – e vocês podem discordar, eu estou fazendo essa leitura pelo que vocês estão me dizendo – eu sei que importante brincar, até como isso esta atravessando e vai chegando até na Educação Infantil, eu sei que é importante brincar, eu sei que a criança da Educação Infantil o importante para ela é desenhar...%a Educação Infantil você começa desenhando com um papel desse tamanho (A3/ grande) para a criança ir limitando o espaço, mas como essa cobrança e essa preocupação do cara ter um pré-requisito de saber usar um caderno, de saber segurar um lápis, de saber escrever numa linha, como é que isso vai tomando o meu tempo – que não é grande, que a gente sabe que não é grande – quer dizer como é que isso vai tomando o meu tempo de outras atividades, para eu ir priorizando essas atividades de adaptação dessa criança a essa cultura escolar, a essas normas escolares, mesmo em detrimento de algumas práticas que até sei, e julgo importante, porque eu tenho que administrar o meu tempo. (Andréa)

88

Levanto a questão que vinha sendo de certa forma, e em vários momentos distintos,

apontada pelas professoras no grupo: como muitas de nós negociamos um currículo e as

práticas que julgamos importantes, com outros currículos prescritos e suas práticas

históricas, que nem sempre garantem o sucesso escolar do aluno? Tentamos administrar

nosso tempo para fazermos o que julgamos importante e fundamental, mas percebemos

que nem sempre é fácil decidir o que é importante e fundamental diante dos desafios que

temos. Para algumas professoras como Cássia definir e assumir esta prática significa

muitas vezes o isolamento, para outras como Aline angústia e insegurança.

Propor outra organização temporal para as práticas educativas é propor que se

compreenda que o tempo, este conceito construído e, portanto, transformado social e

historicamente, precisa ser relativizado e flexibilizado segundo as necessidades de cada

sujeito, onde o processo de aprendizagem e desenvolvimento não podem mais ser

encarados como uma corrida de obstáculos, onde vence aquele que conseguir superar mais

rápido cada barreira. Que aprender e se desenvolver exige estabelecer uma relação crítica

profunda, transformadora, dialética e dialógica com o conhecer. E que esta relação da

criança com o mundo se estabelece, muitas vezes, de forma melhor e mais profunda,

quando mediada pela relação lúdica, quando estabelecida pelo brincar com o outro.

A questão discutida no grupo nos possibilita refletir sobre vários aspectos

curriculares, culturais e sociais presentes neste debate, mesmo sabendo que não

chegaremos a compreender todas as dobras que eles ocultam.

A forma – ansiosa – como as professoras encaram os “conteúdos” a serem “dados”

nos faz pensar até que ponto esta ansiedade é provocada pelo medo da avaliação alheia:

dos colegas, dos pais, da sociedade, sujeitos que, não raramente, compartilham a mesma

preocupação com a capacidade da escola produzir alguém de valor para o futuro. Até que

ponto também, essas tensões são provocadas pela falta de segurança teórica e conceitual da

professora para reivindicar sua autoridade como – também – sujeito de saber e desenvolver

o trabalho que acredita. Ao mesmo tempo em que a professora reconhece o “erro” de

privar o seu aluno “já grande” do brincar e reconhece a importância deste brincar como

um fator importante no desenvolvimento dessa criança reconhece que se priva também de

informações importantes que a ajudariam a compreender melhor cada sujeito em seu

processo; reconhece que só consegue se relacionar com aquele sujeito “atrás de um

pedaço de papel”.

O pedaço de papel, devidamente preenchido com linhas e mais linhas de uma

informação vazia de sentido; o tempo controlado, tecnicamente organizado, otimizado,

89

produtivo (?) tem produzido, a rigor, exatamente o que? Tem produzido para quem?

Tempo desperdiçado para milhares de crianças e jovens brasileiros para quem esse pedaço

de papel nada, ou muito pouco, significou.

Importa menos a quantidade de informações, do que o quanto elas potencialmente

permitem que nos transformemos em seres humanos diferentes e (porque não?) melhores.

Não melhores uns do que os outros ou sobre os outros, mas melhores: mais solidários mais

justos, mais éticos, mais pacíficos, mais democráticos, mais respeitosos com a vida no e do

planeta.

Importa menos a velocidade com que memorizamos e acumulamos estas

informações, do que o sentido que adquirem em nosso caminhar no mundo, ampliando

nossa participação consciente e crítica na vida. Importa menos a quantidade do que

conhecemos do que as relações que conseguimos estabelecer entre o que conhecemos e o

que nos permite uma maior inserção no mundo, que nos permite estabelecer as relações

que ampliam nossa possibilidade de conhecer com autonomia, que ampliem nossa

possibilidade de produzir e compartilhar saberes.

Ao buscarmos uma outra relação com o tempo nós, professoras, vamos tecendo

uma outra escola possível, isso não significa que essa é uma escola que tenha menosprezo

pelo conhecimento, ao contrário. É uma escola que vai buscar no diálogo, na investigação

sócio-cultural de seu entorno geopolítico, a pluralidade de conhecimentos necessários à

ampliação da participação dos sujeitos em um mundo democrático, em um mundo onde

não apenas o conhecimento do tipo escolar, ou os saberes tidos como “cultos”, a cultura

tida como “superior”, seja objeto de estudo, pesquisa e reflexão, mas que exatamente o

confronto, o diálogo entre os muitos saberes, entre as diversas fontes e formas de conhecer

possam formar um ser humano diferente. Uma escola que reclama por conhecimentos

significativos para os sujeitos e não apenas aqueles que servem ao treino e adaptação a

uma certa cultura escolar que tão pouco tem feito por nossas crianças e jovens e que

privilegiado em nosso passado, não construiu para nós, sujeitos do presente, um futuro

necessariamente melhor.

Apesar de trilharem caminhos próprios, de construírem com seus grupos histórias

únicas, as professoras Aline, Cristiane, Cássia e Rosângela perceberam com suas práticas

que ao investir nosso tempo e atenção no presente, tendo independente de nossas

expectativas e temores, coragem para resistir às pressões que o passado e o futuro exercem,

não “perdem tempo”, ao contrário, produzem saberes.

90

Voltemos ao mito que me inspirou. Chamou-me atenção o Tempo gerar o universo

e a Terra justamente com a Inevitabilidade. Sendo filhos do Tempo com a Inevitabilidade,

nosso destino resumir-se-ia a caminhar por esta reta, conduzidos pelas mãos de nossa Mãe,

ao encontro derradeiro com o Pai. Anula-se na lógica do mito (na chrono-lógica) toda

possibilidade de ação fora desta reta. No entanto, as professoras demonstram com suas

práticas que é possível – mesmo com certa dor e insegurança – encontrar alternativas

outras para fugir – mesmo que ainda não completamente – dos trilhos impostos por esta

lógica. Mover-se é difícil, mas possível.

As reflexões de Boaventura de Souza Santos contribuem muito para este nosso

debate, pois como ele aponta: “(...) a compreensão do mundo e a forma como ela cria e

legitima o poder social tem muito que ver com concepções do tempo e da temporalidade”.

E a compreensão do mundo a partir desta concepção cronológica, assim como a ação dos

poderes legitimados nesta mesma lógica, produzem a pressão e a ansiedade que fazem com

que mesmo quando possuidoras de outros saberes sobre a temporalidade infantil, e sobre o

desenvolvimento de nossos alunos, nossa ação pedagógica no sentido de romper com esta

lógica não seja tranquila ou segura, e isso podemos ler nos currículos praticados e em

nossas reflexões debatidas. Atravessadas não por uma lógica, mas por lógicas que se

digladiam produzindo em nós ora ambivalências, ora contradições.

Neste sentido vale pensarmos de que forma nossa concepção “chrono-lógica” que

desdenha da nossa possibilidade de ação no tempo presente, que dota nosso futuro uma

inexorabilidade perversa, vem criando e legitimando o poder social estabelecido? Este

mesmo poder que tanto tememos não é de certa forma o mesmo que exercemos uns sobre

os outros? Poder que em nossa sociedade, como nos aponta Bauman, não encontra sua

força (apenas) no panóptico, no controle – sorria você esta sendo filmado! E vigiado,

analisado, avaliado – do olho que tudo vê, mas também no sinóptico, o controle exercido

pelos olhos de todos sobre todos. Não é esse olhar que dirigimos aos nossos alunos, pais,

colegas? Não é o olhar desses, assim como de outros tantos sujeitos, que nos incomodam,

nos preocupam? Não seria o diálogo um caminho possível para transformarmos essa

vigilância desconfiada em ações pedagógicas mais integradas e coletivas? Ao nos

movermos na direção do outro, buscando esse encontro, não criamos outras possibilidades

de relações para além do panóptico ou do sinóptico? É possível acreditarmos que este

diálogo é possível entre sujeitos que estão colocados uns frente aos outros em relações de

poder desiguais e marcadas socialmente por sentimentos de culpa, medo, desconfiança e

rancor?

91

Como as nossas escolas, enquanto instituições sociais vêm contribuindo para

preservação e/ou problematização desta concepção de tempo? Quando aceitamos e

reproduzimos na escola estas relações com o tempo e impômo-las aos nossos alunos, que

compreensão de mundo(s) produzimos? A mesma que tantas vezes nos faz sentir reféns?

Não sendo unitárias, mas plurais, concepções que se chocam e se conflitam, como estas

concepções realmente organizam ou marcam o nosso fazer? Para investigarmos estas

questões precisamos de tempo...

Boaventura nos desafia com a seguinte proposição:

“Proponho uma racionalidade cosmopolita que, nesta fase de transição, terá de seguir a trajetória inversa: expandir o presente e contrair o futuro. Só assim será possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo hoje”.43

Para expandir o presente e contrair o futuro o autor nos propõe três procedimentos

sociológicos, que me parecem procedimentos igualmente importantes para o trabalho

pedagógico do professor/pesquisador: a Sociologia das ausências; a Sociologia das

emergências e o trabalho de tradução.

A Sociologia das ausências são as experiências que já estão disponíveis, porém

invisibilizadas. Marcadamente as análises sociológicas desenvolvidas dentro da lógica da

Modernidade se debruçaram sobre as grandes narrativas, retirando do palco social os

sujeitos e seus fazeres, o que não significa que estes fazeres não estiveram ou ainda não

estejam presentes na produção das relações sociais, o que nos cabe, portanto, é buscar esta

sociologia para tornar visíveis as práticas que foram jogadas na escuridão e que nos

oferecem outras leituras possíveis sobre o real, encontrar a história silenciada

especialmente, nesta parte da terra, nossa terra. Experiências de professoras que mesmo

com suas dúvidas e inseguranças, escrevem outros currículos possíveis, escrevem outras

práticas e outros tempos possíveis. Professoras como Cássia, que tantas vezes se sentem

sós, porque suas experiências vividas, como as narradas pela professora, não interessam às

manchetes do jornal, não ocupam o palco dos espetáculos, ausentes, tantas vezes, dos

discursos oficiais. São práticas miúdas, silenciosas, de sujeitos – professores e alunos – que

produzem outras realidades nas salas de aula, mas que são invisibilizados por discursos

padronizados e generalizadores sobre nossas escolas.

43 Idem.

92

Porque eu vi que eram turmas totalmente carentes de tudo, sem perspectiva de nada, sem projeto de vida para nada, primeiro que eram crianças com um histórico de vida que eu procurei durante dois meses conhecê-los, a maioria não tinha família, tinha tudo desestruturado, são carentes de tudo: de amor, de afeto, de carinho. Criança de S.O.S, criança de Frei Luiz44, crianças que não conheciam seus pais, crianças que os pais rejeitavam, era isso que estava na minha sala e eu tinha que trabalhar isso, e no final do ano eu tinha que, pelo menos desenvolver alguma coisa, e eles falaram “professora foi bom, foi legal a senhora estar com a gente”. Apesar de tudo, foi o que eu gostei no final do ano, eles chegaram perto de mim – chega uma hora que eu não estava mais aguentando eles, meu Deus meu limite chegou! – e eles chegaram “professora muito obrigado por tudo” e eu recolhi todos aqueles bilhetinhos, e quando eu vi que eles escreveram os bilhetes de amor pra mim, que eles conseguiam, num espaço limitado por eles, eles me entregaram, eu falei assim “valeu a pena o meu trabalho!”. %ão tinha ninguém para reconhecer, não tinha ninguém para valorizar, não teve ninguém para dizer assim “Cássia que trabalho legal que você fez!” para eu me sentir assim “poxa eu trabalhei, eu consegui!”. %ão teve motivação.(Cássia)

Como também não havia ninguém, além da própria professora Cássia, para

investigar e refletir sobre que práticas são estas que constroem alternativas possíveis com

as crianças que tantos consideram “impossíveis”. Crianças como tantas outras que em

tantas escolas ocupam as estatísticas do fracasso escolar, mas que conseguiram neste

momento, nesta experiência vivida, reconhecer um sentido que tantas vezes parece ausente

em nossas escolas. Crianças que aprenderam a ler e escrever. E escrevem. Mas

permanecem invisíveis, muitas vezes para a própria escola, permanecem invisíveis para a

própria professora que diz não haver sido reconhecida, quando tantas crianças

manifestaram seu reconhecimento: “professora muito obrigada por tudo!”. Então o

reconhecimento que é esperado pelas professoras é o reconhecimento dos sujeitos que

valem? Daqueles que tem importância? Quem pode expressar e reconhecer melhor nosso

trabalho do que aqueles que nos acompanharam e construíram conosco essa trajetória?

Nossos alunos e suas famílias. Afinal são eles os sujeitos mais importantes, aqueles que

nos justificam e nos reconhecem. Para eles trabalhamos, ou deveríamos trabalhar, não para

Secretarias, Ministérios e suas tolas estatísticas. Para o que estas pessoas desejam, aspiram,

buscam, querem e podem aprender.

Mas quando estas histórias não são compartilhadas, quando a professora, temendo

ser incompreendida, opta por certo isolamento em relação ao grupo de professores,

recolhe-se, o que aparece é apenas o “fracasso”.

44 Aldeias Infantis S.O.S é uma instituição que abriga cerca de nove crianças em casas, distribuídas no terreno como em uma aldeia entorno de um pátio central, sob a responsabilidade de uma mãe social. Frei Luiz é uma instituição Kardecista que presta assistência social a crianças carentes da região.

93

Como professora, Cássia compreende e valoriza a necessidade de sua turma

aprender a trabalhar em grupo, no entanto, como ela mesma aponta, sente-se cada vez mais

sozinha em seu fazer:

E eu percebo que a cada ano eu não consigo mais participar assim, como elas duas, fizeram um grupo, estabeleceram metas, elas foram juntas, eu acabo sempre – já é a segunda escola – e eu percebo que a cada ano eu estou trabalhando cada vez mais sozinha e isolada, porque eu não consigo trabalhar junto com alguém, como elas fizeram, estabeleceram suas metas, suas diretrizes e foram. Porque o meu esquema de trabalho é completamente diferente.(Cássia)

Sabemos que existem milhares de professores, produzindo com seus alunos,

experiências como a vivida por Cássia. Várias pesquisas já desenvolvidas relatam histórias

de sucesso e práticas que criam outras possibilidades de aprendizagem para as crianças das

classes populares. No entanto, outras milhares de professoras, seguem sozinhas, longe dos

holofotes, não percebendo que, muitas vezes, sua solidão é alimentada por sua própria

dificuldade de integrar-se, assim como defende e ensina para suas crianças, tornar-se

sujeito em um coletivo diverso, cheio de antagonismos e contradições. Talvez precisemos

prestar mais atenção às lições que ensinamos, para aprendermos também, com elas. Não

somos um país de longa tradição democrática, ao contrário, fomos colonizados,

tiranizados, por muitos e muitos anos de nossa história. Nossas relações tanto nas macro

esferas quanto nas micro esferas são marcadas por essa tirania, arrogância, vaidade,

egoísmo. A democracia para nós é um aprendizado que está apenas se iniciando, e que

precisa ainda lutar contra as máscaras que tentam lhe impor, contra os simulacros de

democracia que servem apenas para referendar práticas autoritárias que exibem um sorriso

cínico e um discurso hipócrita: “Mas foi o coletivo que resolveu...”. Manipulações, espaços

“concedidos”, negociatas, pactos corruptos. Enquanto estes forem os materiais que formam

nossa democracia, teremos ainda muito que percorrer, e muitas lutas ainda por vir.

O segundo procedimento proposto por Boaventura, a Sociologia da emergência,

expande o domínio das experiências sociais possíveis. São as experiências que se

encontram presentes, mas ainda como possibilidades, que podemos deixá-las emergir,

tornarem-se concretas. São aquelas que precisamos lutar para que não morram sufocadas

antes mesmo de nascerem. E por isso não podemos nos silenciar, ou nos recolher.

Acredito que estes procedimentos propostos oferecem também a nós professores, a

oportunidade de buscarmos e tornarmos visíveis experiências outras em educação que

tantas vezes ficam ocultas sobre os discursos hegemônicos do fracasso escolar, da “má”

94

formação dos professores, da incapacidade de nossos alunos. Experiências que hoje já

acontecem, mas que são desprezadas – ou desperdiçadas – enquanto se elaboram planos

mirabolantes para um futuro sempre muito distante. Planos que muitas vezes nada mais são

do que ecos – com novas roupagens – de um passado elitista e excludente responsável em

grande parte pelo anunciado “fracasso” que continuam querendo imprimir aos sujeitos.

O trabalho de tradução proposto por Boaventura Santos se baseia na ideia de

inteligibilidade recíproca das experiências, saberes e práticas presentes nas diversas

culturas e povos. Ajuda-nos a pensar o mundo em sua pluralidade, em sua multiplicidade,

em sua diversidade, sem reduzi-la a um convívio “tolerante” entre os diferentes, mas uma

comunicação viva e possível entre as diversas possibilidades de existência humana, diálogo

entre as muitas formas de ser e estar no e com o mundo. Diálogos que permitem

encontrarmos outras perguntas e outras respostas possíveis fora de nossa lógica restrita e

limitada por nossos preconceitos e prepotências.

Às vezes eu pego coisas deles que eles trazem. Infelizmente eles gostam muito de Funk – não sei se felizmente ou infelizmente – mas não é a minha praia! Mas eu trabalho a praia deles. E dali eu começo a traçar, vamos trabalhar essa palavra, eu começo a instigar eles “vocês já ouviram falar sobre isso? Aquilo outro... o que a gente pode trabalhar em cima disso?” E eles começam a trazer para mim.(Cássia)

A professora Cássia enfrenta, como eu enfrentei e como muitas de nós enfrentamos,

o desafio de nos movermos de nossos lugares para compreender o lugar de onde o outro

nos fala. E enfrentamos esse desafio, nem sempre, por uma crença teórica a priori, mas por

uma exigência do cotidiano, por compreendemos que ou nos movemos e buscamos este

encontro, ou efetivamente, nada de produtivo acontecerá realmente em nossas salas de

aula. Enfrentamos o desafio de fazermos isso sem tentarmos traduzir o “outro” em um

“mesmo”, acreditando em um diálogo possível de se construir, não apesar da, mas na

diferença.

Ir ao encontro. Estabelecer – para além dos limites impostos – um espaço e um

tempo de diálogo para que os conhecimentos apareçam, sejam compartilhados e se tornem

saberes. Não é ser tolerante com uma cultura e/ou com suas muitas representações

superficiais apropriadas, reificadas, e pasteurizadas para um mercado consumidor. É

conhecê-la, discutí-la, problematizá-la. A “praia deles” é o Funk. E o que eles realmente

sabem sobre esta “praia”? O que nós sabemos sobre “esta praia”? Esta “praia” tem uma

história, tem diferenças, tem conflitos, é mais do que um gênero musical. É uma forma de

expressão humana que revolucionou os corpos, os modos e as relações entre as pessoas.

95

Trabalhar o Funk é mergulhar em questões de gênero, de sexo, de diferenças entre as

múltiplas realidades sócio culturais nas quais esses sujeitos transitam. É mergulhar em um

universo de perda, de dor, de violência, e também de esperança, de desejos, de afirmação

de diferentes identidades, de resistência. É mergulhar em um complexo universo humano.

E realmente este universo humano é tal singularidade que não é a minha “praia”? Este

universo humano não seria a “praia” da escola? Por quê? Ao nos movermos de nosso lugar

podemos encontrar um mundo a ser explorado em “outras praias” e percebemos que estas

“outras” são também as “nossas”, com questões específicas, mas com muitas questões

semelhantes ou possíveis de serem compreendidas, um mundo com vastas possibilidades

de saberes. Ou como nos ensinou Freire:

“%inguém ensina o que não sabe. Mas também, ninguém, numa perspectiva democrática, deveria ensinar o que sabe sem, de um lado, saber o que já sabem e em que nível sabem, aqueles e aquelas a quem vai ensinar o que sabe.” (Freire, 1992: p. 131)

Boaventura discute como a Modernidade criou uma racionalidade que

simplesmente “escolheu” de forma arrogante ignorar as experiências do espaçotempo

presentes, já que o reduzia ao que “já não é” e ao que “ainda não é”. As atenções se

centram não no mundo que existe, mas no mundo que existiu e existirá, uma versão que

abrevia o mundo presente onde este futuro é de fato tecido, assim como as leituras

possíveis deste mundo e de sua tessitura. Modernidade que nos arrasta para expectativas

que enclausuram o sujeito neste espaço-tempo do devir.

Como iniciar a alfabetização com aqueles alunos? Que vieram assim, uma grande parte, sem escrever o nome, sem reconhecer as letras do alfabeto, sem relacionar grafema/fonema, então assim, inicialmente foi muito desesperador pra gente.(Aline)

E o que devemos esperar exatamente de um aluno que ingressa no primeiro ano do

ensino fundamental? Da ausência de quais pré-requisitos a professora se recente? O aluno

do Ano Um45 ainda não é alfabetizado. Mas o que ele já é? O que ele já sabe? O tempo nos

devora de tal forma que o futuro expande-se ferozmente arrancando a criança de sua

infância – mesmo que nem sempre consiga arrancar a infância da criança – seu tempo de

ser aquilo que ela é, aprisionando-a naquilo que ela deve se tornar, e faz isso pressionando-

a com aquilo que ela deveria ser e ainda não é. E esta sensação de inadequação com o

presente, não raramente, forma adultos insatisfeitos com o que são e com o que tem,

45 Antiga Classe de Alfabetização (crianças de seis anos)

96

levando a essa relação consumista insaciável com o mundo na tentativa de ter e ser mais. O

que temos e o que somos não importa. Importa o que teremos e o que seremos em um

futuro que nunca chega.

Se o aluno do Ano Um gera esta expectativa em sua professora, à medida que os

anos passam estas expectativas tendem a se tornarem cada vez maiores, e o presente cada

vez mais encolhido, e as experiências vividas por nossas crianças e jovens cada vez mais

desperdiçadas.

Hoje muito se proclama sobre vivermos o tempo da “informação”. Os meios de

comunicação geraram uma nova forma de ser e estar no/com o mundo. Espaços foram

encurtados, o tempo cada vez mais faminto devora-nos impiedosamente, gerando inclusive

uma série de doenças psicossociais46 relacionadas à ansiedade, solidão e vazio existencial

já que entre milhares de coisas, não temos mais “tempo” para nós e para estarmos com

aqueles que amamos. Muitos intelectuais discutem se a riqueza e a proliferação dos

acontecimentos que nos engolem como ondas, correspondem ao aproveitamento da riqueza

e proliferação das experiências, e do conhecimento que estas experiências produzem. Em

outras palavras: diante de tudo o que acontece em nosso tempo presente, o que

transformamos realmente em conhecimento, em experiência vivida, pensada, refletida? O

que transformamos em saberes? O que realmente temos aprendido com tantas

experiências? Esta avalanche de experiências – muitas vezes fugazes e voláteis – tem

contribuído efetivamente para um mundo e seres humanos melhores? Marilena Chauí nos

alerta para o perigo deste tempo que devora nosso direito a uma experiência refletida, que

devora nosso direito de pensarmos os acontecimentos de forma responsável, que devora

nosso direito de construir reflexões mais profundas nos arrebatando com opiniões muitas

vezes efêmeras e rasas.

“Manisfestar-se sobre tudo, assumir posição e ter opinião sobre tudo, mudar de atitude conforme mudem os ventos, abandonar a obra já escrita, desdizendo-a e desdizendo-se, é irresponsabilidade, não é liberdade”(Chauí, Marilena: 2006, p. 26).

O mundo ocidental – como o conhecemos e temos vivenciado – produz uma

sensação de vertigem, de viagem por um videogame, onde sobra pouco ou quase nenhum

tempo para observação, reflexão, análise, muitas vezes, práticas tidas como “perda de

tempo” e como sabemos “tempo é dinheiro” (dinheiro para quem?).

46 Síndrome de Bournout, Síndrome do Pânico, Transtorno Obssessivo Compulsivo, Hiperatividade, etc.

97

No entanto, a proliferação de acontecimentos e a grande circulação de informações

não têm produzido, a rigor, uma riqueza de experiências, conhecimentos ou saberes.

Desconfio que ao contrário. A velocidade com que o futuro engole o presente que é

impiedosamente descartado como passado vem buscando reduzir sistematicamente, as

possibilidades de o mundo – ou mais sujeitos neste mundo – pensar e recriar a si mesmo,

as possibilidades de compreendermos as outras lógicas que operam o mundo e criam outras

realidades, outros saberes, outras experiências. Ou como diz Boaventura Santos é um

desperdício das experiências, e daí a necessidade de criarmos uma outra racionalidade,

criarmos outras relações e concepções de espaço-tempo, para ampliarmos o presente e

assim ampliarmos nossa compreensão sobre os mundos que formam esta totalidade que

chamamos de mundo.

A liberdade que procuramos – se é que podemos encontrá-la – não está no direito

de opinarmos (e votarmos pelo telefone e pela internet) sobre a avalanche dos

acontecimentos que se sobrepõem uns aos outros criando não raramente sujeitos

indiferentes diante da efemeridade dos próprios acontecimentos, preocupados apenas com

o que virá, esperando como espectador – ora entusiasmado, ora descrente – do que o futuro

“inevitavelmente” nos reserva, ao invés de assumir o leme dessa nau, a caneta dessa

escritura. Nossa liberdade como intelectuais que “todos” somos (Gramsci), se existe, está

exatamente na possibilidade de ampliarmos nosso presente, examinando atentamente

nossas experiências para encontrarmos nelas a pluralidade de outras racionalidades

possíveis. Libertando-nos, ou pelo menos combatendo bravamente, essa tirania de um

futuro idealizado que nos comprime e nos reduz.

A ideia linear de Progresso – uma das mais caras à lógica positivista – marcou e

marca profundamente não só a relação que estabelecemos com o tempo – que muitos hoje

buscam romper – como a relação que estabelecemos com os outros sujeitos e com o

mundo.

A linearidade e o progresso vêm se reproduzindo até hoje em nossa sociedade,

prometendo a solução dos nossos problemas presentes – produzidos exatamente pelo

sistema-mundo capitalista que estas lógicas sustentam – em um futuro deslumbrante, nos

mantendo – ou tentando manter – como crianças sempre a espera do nosso “felizes para

sempre”. E se no passado esse sonho da felicidade eterna era sustentado (?) pela promessa

da segurança produzida pelo trabalho, hoje se sustenta (?) pelo desejo produzido pelo

consumo. Produtores ou consumidores continuamos, muitas vezes, limitados por nossos

antolhos, destinados a este caminhar por uma estrada vazia, olhando sempre em frente...

98

Desconhecendo a riqueza do caminho, sonhando com um horizonte que sempre se afasta a

nossa chegada.

As teorias do caos e da complexidade vêm desestabilizando estas e outras

concepções modernas, e nos fazendo buscar compreender a diversidade das muitas

realidades possíveis, ao invés de buscarmos simplesmente encaixar estas realidades em

nossas teorias.

O sonho positivista de controlar o mundo, gerando uma “ordem” que nos levasse ao

“progresso”, tanto quanto outros sonhos que acreditavam ser possível o “controle” dos

sujeitos, ajustando-os ao tempo implacável de Chronos, acabou sendo vencido pela própria

história. Quando chegamos ao fim da história, percebemos que ela não acabou. Que ela se

refaz e se reescreve todo o tempo, infinitamente, mas não necessariamente para melhor.

Sua escrita se faz nas escolhas que fazemos, nos saberes que produzimos juntos, nas

experiências que compartilhamos ou desperdiçamos, se faz também no caos que nos

arremata e como sobrevivemos e aprendemos com ele.

Nossa alternativa então, não seria mais tentar elaborar uma teoria que possa

produzir um futuro melhor, mais justo, mais “evoluído” superando a violência e a barbárie

de nossos (sempre nossos) tempos. Nossa alternativa é buscar na experiência real, no

vivido, na prática, indícios, pistas de como as teorias se movem, como os saberes são

produzidos e reproduzidos pelos sujeitos no ato da existência, como estes saberes se

tornam – ou não – poderes em determinados grupos e momentos, como estas experiências

não se deixam simplesmente transladar entre os sujeitos e suas diferentes realidades geo-

sócio-culturais. Nossa alternativa é buscar compreender e dialogar com as experiências de

professoras como Aline, Cristiane, Cássia e Rosângela. Compreender e dialogar com as

minhas próprias experiências, dialogar com as experiências e reflexões dos autores de

outros tempos e outros espaços, vencendo a linearidade dos acontecimentos, das vozes e

dos pensamentos, vasculhando as pistas do passado, examinando e refletindo sobre nosso

presente, para com eles tecermos novos saberes sobre a escola.

Nossa alternativa é tornar visível tanto às experiências historicamente segregadoras,

autoritárias e excludentes quanto às experiências que agora, no mundo presente, no tempo

presente, já estão sendo produzidas por sujeitos que já são, que já colocaram em curso

práticas inclusivas, democráticas, plurais e que já instauram um presente melhor para

muitos. Nossa alternativa é mergulhar na realidade, partir para a vida e aprender com ela.

Mesmo sabendo que a vida será sempre muito mais do que nos é permitido compreender.

99

VI. QUEM SÃO OS OUTROS 2A/DA AVALIAÇÃO?

“Como posso dialogar, se parto que a pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua deterioração que devo evitar? Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido com ela?”.

(Freire, 2005, p. 93).

Este texto nasce de um convite. Um convite feito às professoras que foram por

diferentes caminhos se apresentando ao diálogo. Um convite sobre pensarmos juntas sobre

coisas que nos cercam de tal forma, que muitas vezes por sua excessiva e espetaculosa

exposição, deixam de ser objeto de nossa “ad-miração”. Um convite a nos voltarmos e ad-

mirarmos, olharmos com a calma – coisa que muitos em nossa sociedade, prisioneiros de

Chronos vivem a nos negar – olharmos com curiosidade e criticidade, aquilo que estando

visível se mostra tantas vezes encoberto. Olhar que interroga, mas não se deixa paralisar

pela complexidade da interrogação. Que busca na ação, no movimento, compreender

melhor suas próprias dúvidas. Um convite dirigido a diferentes auditórios, a diferentes

leitores, mas que trás em cada dobra e em cada linha a lembrança deste encontro e por isso

é escrito com e para professoras.

E em nosso primeiro encontro, em dezembro de 2008, não nos faltaram dúvidas,

que longe de serem respondidas, foram apenas se aprofundando e ganhando novos

enunciados, novas maneiras de perguntar, novas questões. Uma dessas questões (ainda em

discussão) que muito mobilizou nosso pequeno grupo foi assim elaborada pela professora

Aline:

É o que nós estávamos conversando em “off”, acho que é muito relevante, e acho que não é uma dificuldade só minha não, acho que é a dificuldade de muitos professores quando param pra conceituar seu aluno. Por que a gente no final de cada período a gente tem que dar um conceito. RR, R, B, MB47, e o que eu estava conversando com elas, Ronald e Giovani, meus dois casos que eram críticos e que no final do ano se transformaram em caso de sucesso. Críticos porque não escreviam nem o nome e de sucesso porque hoje já conseguem escrever – com autonomia – quaisquer palavras que tenham assim os fonemas simples e já arriscam a escrita até com coisas complexas tipo no hallowen: bruxa, caldeirão, e eles começam a formular hipóteses de escrita em cima disso também. Mas eu avaliei eles como R. Isso porque eu tive que medi-los eu tive que classificá-los e compará-los com os outros alunos. E aí eu estava conversando com a Rosângela e a Rosângela “Aline se você sente que você foi injusta, porque você classificou-os como R?”. Porque eu não seria justa com os demais da sala. E eu tenho que tirar um parâmetro comum. Tem como você ajudar a gente a enxergar? Como avaliar? Sei lá estes dois alunos...será que eu fui injusta?(Aline)

47 @este momento (2008) na prefeitura do Rio ainda usávamos os conceitos RR (registra recomendações) R(regular) B(bom) e MB (muito bom). Atualmente usamos I(insuficiente) no lugar de RR.

100

Como ajudar as professoras a “enxergarem”, talvez eu também não saiba. Mas

Cristiane e Aline, como muitos professores, sofrem com um conflito ético como nos

aponta Sacristán: “O conflito ético se coloca como inevitável quando a avaliação cumpre

simultaneamente funções tão diversas, servindo cada uma delas a interesses muito

diferentes”.(Sacristán, 1998: p.337).

Que funções são essas? A função de comparar, classificar, conferir um valor a um

sujeito, selecionar e por fim incluir os aptos e refugar os não-aptos, estabelecer as

fronteiras. A função de investigar, de compreender os processos, a relação que cada aluno

estabelece com as informações, como cada aluno transforma essas informações em

conhecimento, que conhecimentos são esses, e como ampliá-los. A função de controlar, a

função de compreender; a função de impor modelos culturais, a função de conhecer outras

lógicas.

Domingos Fernandes (2010) nos apresenta como os modelos de avaliação

coexistem através da história dividindo-se basicamente em modelos de avaliação

empíricos-racionalistas e modelos de avaliações democráticas, voltadas para uma agenda

social. A avaliação baseada em objetivos, concebida por Ralpf Tyler nos anos 30 do século

passado, mostra ainda bastante vigor nos projetos neopositivistas e neotecnicistas que

orientam as políticas públicas e sustentam o estado avaliador, contrapõe-se às avaliações

centradas nos sujeitos e suas experiências, práticas investigativas e emancipatórias

(Esteban, 2003).

O conflito que muitos professores vivenciam é a consciência de que as informações

colhidas e mensuráveis muitas vezes não são as mais relevantes na história da relação

daquele aluno com o saber. Mesmo assim tornam-se as únicas informações que aquele

sujeito herdará para o resto de sua vida. Sujeito transmutado em número, número lido

como fracasso e fracasso registrado, marcado pelo poder da palavra escrita, pelo poder do

documento.

Acredito que para compreendermos melhor este conflito ético que hoje aporta em

tantas salas de aulas, para compreendermos quais forças se movem no jogo da questão da

avaliação precisamos não nos deixar arrastar pela roda viva dos acontecimentos, vencer o

tempo que nos empurra com ferocidade, para refletirmos: Quem avalia quem? Quem são

estes sujeitos na/da avaliação? Quais objetivos – políticos, culturais, econômicos e

pedagógicos – cercam esta prática?

101

Quem avalia, avalia alguém. Quem são estes sujeitos e como se percebem nesta

relação? Como esta relação – avaliativa – se traduz como prática social?

A professora Aline revela seu desejo que o grupo – e eu especialmente – ajude-a

como avaliar, não todo e qualquer aluno, mas estes alunos em particular. Os alunos

“críticos”, ou como reforça Cristiane em sua expectativa: “Então, como eu vou avaliar,

como eu vou olhar para ele, esses que estão com dificuldade”.

Então o interesse das professoras se dirige diretamente para aquele que é percebido

como o diferente, o “caso crítico”. Quais são os casos críticos na escola? Como eles vão

sendo percebidos e assim definidos? Como nós professores vamos construindo estes

lugares e separando-os como lugares distintos e que nos desafiam.

Então avaliar os “mesmos” os “iguais” não é um problema. São os “difíceis” que

nos preocupam. Os que trazem visibilidade às nossas limitações, a limitação dessa escola

que se pretende para todos, mas descobre que esta multidão exige de nós muito mais do

que historicamente temos oferecido.

As professoras em debate refletem sobre este modelo de escola e sobre o caráter

normativo, homogenizador que produz estes “casos críticos”. No calor da discussão a

professora Rosângela dispara: “Avaliação é comparação? É comparar? Olhar um grupo e

o outro?”. Ao que Aline responde: “Eu acho que tem esse fundo comparativo. Acho que

toda avaliação tem também um fundo comparativo. Você tem que comparar. Você tem que

medir, você tem que classificar, infelizmente”.

Professora Cássia compreende de outra maneira:

Então você não está avaliando. Eu avalio assim, se você está colocando alguém dentro de um parâmetro, você está colocando ele dentro de uma caixa, agora você tem que se encaixar aqui tem que entrar aqui nesse quadrado, “ah, mas eu sou redondo!”, mas você tem que entrar aqui nesse quadrado, “mas tem que entrar aqui nesse triangulo”. Então eu acho que avaliação não é parâmetro, algo estabelecido. Senão vira uma coisa pré-estabelecida, pré-conceitual, ai você tem que guiar o sujeito ali...eu acho que avaliação é algo muito maior, e a gente como estava acostumado a ser avaliado assim, que a gente era colocado ali naquela maneira. (Cássia)

Mais uma vez as diferentes funções e práticas que atendem por um só nome – em

nosso cotidiano – se confundem. No entanto as professoras são capazes de perceber que

existem diferentes intencionalidades – que não ocupam lugares fixos nem no mundo nem

em nós – que fazem da compreensão da prática avaliativa uma atividade complexa. Cássia

assim como Rosângela coloca em cheque o que compreendemos por avaliação. É

comparar? Pergunta uma. É colocar o individuo em caixas que não lhe servem? Questiona

102

a outra. E não estão sozinhas nestas questões. O grupo percebe-se como fruto desta mesma

perversidade, desta mesma escola. Reflete sobre a educação que recebemos e como

podemos agora reproduzir ou não as mesmas relações, as mesmas práticas. A professora

Aline percebe que “nós estamos impregnados daquilo ali, isso faz parte do meu ser”.

(Penso imediatamente: preciso conhecer a história destas pessoas...).

Contudo, isto que faz parte do meu ser, não me determina. Não impede meu

movimento no mundo. Não impede que quando colocado em diálogo, em conflito com as

outras formas de perceber realidades tão próximas, tão semelhantes, eu reavalie meus

conceitos e práticas, eu escolha ser outro.

Eu acho que hoje a avaliação evoluiu muito. Ela não se restringe mais a uma prova, nem a um momento, um único dia no decorrer daquele bimestre...hoje é o dia que você vai ser avaliado. Hoje todos nós professores temos consciência que a avaliação é um processo que se dá diariamente, que o desenvolvimento do aluno, ele é diário, mas minha grande dificuldade, realmente é essa. Porque quem pegou os relatórios lá de três, quatro anos, o indicador MB tinha lá as competências para o aluno realizar. Se você pegar hoje também tem! O indicador B tem as competências. O indicador R tem as competências. Eu não estou enclausurando o aluno na possibilidade não. Ah ele é R e acabou. Eu tenho consciência de que ele com o potencial dele houve um grande desenvolvimento na potencialidade dele, e ele tem muito mais potencial. Eu tenho consciência que o Ronald pode muito mais do que ele me mostrou. Eu tenho consciência também que eu trabalhei a auto estima dele pra ele começar a pensar que ele tinha possibilidade de ele alcançar o desenvolvimento que ele conseguiu me mostrar até hoje, no final do ano. Só que eu continuo batendo naquilo: o indicador B o indicador MB são outras competências que ele ainda não alcançou. Quem o enclausura naquela hipótese ali R, RR é o sistema não sou eu. Eu li lá para ser B ele tem que ser isso, isso e isso. Infelizmente ele não é isso, isso, isso. Mas ele foi muito mais se eu comparar com o que ele começou no inicio do ano. Ele conseguiu se superar tanto, só que ele não conseguiu atingir aquilo ali que esta sendo pedido.(Aline)

Então a avaliação evoluiu porque investigamos com mais recursos, ou mais rigor,

os conhecimentos que legitimamos, que consideramos validos? Muitos professores – não

diria que todos – possuem sim, consciência de que é preciso avaliar diariamente,

constantemente. Mas esta avaliação constante ou diária ou até mesmo a avaliação

formativa, defendida muitas vezes como sinônimo de uma avaliação mais “progressista”,

significa realmente uma avaliação do processo da relação com o saber que cada sujeito

estabelece? Ela pretende investigar o desenvolvimento de cada educando, os desafios

superados por aquele ser humano em especial, ou ela na verdade, representa um desejo de

controle ainda maior? Um ajuste passo a passo daquele individuo ao sistema, à ordem, à

norma, ao mesmo? Em outras palavras: para que eu avalio? Qual é a função que a

103

avaliação cumpre no processo pedagógico? Que aspectos políticos, sociais e culturais

definem esta função?

“Para avaliar, é preciso produzir instrumentos e procedimentos que nos ajudem a dar voz e visibilidade ao que é silenciado e apagado. Com muito cuidado, porque a intenção não é melhor controlar e classificar, mas sim melhor compreender e interagir”. (Esteban, 2005: p.32).

Será que a avaliação “evoluiu” na direção de reconhecer suas práticas como uma

necessidade do processo de ensinoaprendizagem de cada sujeito em sua relação com o

saber, ou continua prisioneira de nosso passado colonial, tentando nada mais do que

verificar se estamos conseguindo de fato, profundamente e constantemente, transformar os

pequenos selvagens em civilizados? Os pequenos bárbaros em consumidores aptos ao

mercado globalizado? O fato de utilizarmos outros procedimentos ou instrumentos

diversificados basta para transformarmos o caráter normativo e seletivo das práticas de

avaliação? Que papel nossos alunos representam nesta avaliação “evoluída”? Eles

compartilham conosco deste processo? Eles o compreendem e co-dirigem? Ou a avaliação

ainda é um ato do professor sobre o aluno? Que mudanças significativas realmente

aconteceram nas práticas de avaliação em nossas escolas, não em relação aos instrumentos

utilizados, mas em relação aos conceitos que sustentam estas práticas? Quem são os

sujeitos na/da avaliação? Avalio com o aluno, ou avalio o aluno? Os outros sujeitos que

compartilham conosco os tempos e espaços escolares pensam e participam desse processo?

O Brasil é um país colonizado que sofre – como todos nossos vizinhos latino-

americanos – com a colonialidade, que aprisiona o senhor dentro de nosso peito escravo,

reconhecendo neste senhor o modelo e o ideal de um mundo civilizado, harmonioso,

evoluído. O que nos faz suspeitar que a dificuldade para a “criação de uma vigorosa

mentalidade democrática no Brasil” (Teixeira) encontre raízes muito mais antigas, quanto

profundas, do que nossa jovem história.

“Para Costa Lima, a intelectualidade brasileira sofreria de “torcicolo cultural” (termo empregado por Roberto Shwarcz): estaria sempre voltada para aquilo que o estrangeiro disse ou poderá dizer sobre certo nome ou obra, não havendo capacidade própria de interpretação”(Gontijo, p.272).

E talvez nossa intelectualidade seja apenas uma expressão dessa subalternização,

uma expressão significativa, já que os intelectuais pela posição social que ocupam,

deveriam representar aqueles que, rompendo com o senso comum, gozariam de mais poder

para a construção de um pensamento autônomo, livre e crítico, capaz de pensar o mundo a

partir de sua própria realidade. Marilena Chauí defende que “O filosofo não pode, de modo

104

algum, separar-se e afastar-se do mundo, pois não estamos no mundo (como queria Sartre

ao falar em situação), mas somos do e com o mundo.”(2006: p.23), concordamos e

acrescentamos que não só o filosofo, mas o intelectual e o educador não podem afastar-se

do mundo, devendo portanto pensar a partir do mundo que os forma e com o mundo com

que dialogam. Isso não significa de forma alguma dizer que devemos abandonar todas as

obras produzidas além mar – o que seria arrogância – mas assumirmos nosso papel de

escriturários, nosso lugar na pronúncia do mundo. E garantirmos com nossos alunos este

mesmo direito.

Como povos colonizados, e como povos ainda presos a esta colonialidade – que se

hoje perde seu território, com certeza expande-se assustadoramente por tortuosos caminhos

da língua e cultura – nos encontramos muitas vezes reféns dessa identidade forjada que não

nos pertence. Sonhamos os sonhos dos outros. Seus cabelos e corpos, seus modos e modas,

sua cultura, sua língua. Tudo no/do senhor é melhor, é perfeito. Cremos nisso de tal forma

que deixamos de nos perguntar: se tudo no senhor é melhor e perfeito e ele governa o

nosso mundo porque nosso planeta afunda cada vez mais em miséria e sofrimento?

Para fugir do lugar da imperfeição, da barbárie, da ignorância, nos travestimos, nos

violentamos, apagamos nossas memórias, para nos alimentarmos com as gloriosas

memórias dos nossos senhores. Assim eles nos ensinaram e assim nós aprendemos. Mas

como sujeitos históricos, podemos nos reensinarmos e nos reaprendermos. Deixar de ser o

que não somos e o que não seremos, para tentar compreender como nossa identidade se

constitui, como ao nos movermos em nosso lugar, nos formamos, criamos outros – nem

piores nem melhores, mas outros – saberes sobre o mundo.

A identidade “europeia” construída no processo de colonização – principalmente do

continente Americano – contribuiu para a consolidação dos ideais da Modernidade. Ora,

um dos ideais mais caros ao pensamento moderno, uma de suas crenças mais sólidas, é

acreditar que o mundo caminha do caos (do primitivo, da barbárie) para a ordem (para a

civilização, para o progresso) e que, como nos ensina Bauman, “O outro da ordem não é

uma outra ordem: sua única alternativa é o caos”. (1999: p.14), Não existe neste

pensamento a possibilidade de buscar compreender uma outra ordem possível. Se a ordem

é a luz que ilumina o mundo, o caos é seu buraco negro. Neste sentido, nossa cultura, nossa

língua, nossos valores e nossos deuses são uma eminente ameaça ao futuro, são o lugar da

antimatéria, daquilo que não “sendo”, engole ferozmente tudo o que “é”, e por isso precisa

ser absorvido e neutralizado – mesmo que não completamente – ou exterminado. E como

105

temos assistido ao longo de nossa história, “exterminado” tem sido uma opção bastante

frequente.

O caos como “outro da ordem” é pura negatividade. Interessante ver como este

princípio se aplica em vários aspectos, reações políticas que se negam umas as outras,

acusando-se umas as outras de levar com suas ideias o caos a sociedade, como no caso das

resistências a qualquer mudança pedagógica, entendendo esta mudança como a passagem

da ordem – que mesmo que nós não gostemos conhecemos – ao caos. Neste sentido, a

ordem se confunde com aquilo que é conhecido e o caos com aquilo que é desconhecido,

portanto incerto, provavelmente ilógico, irracional, confuso, anárquico, pior.

Na escola, não é raro vermos como qualquer proposta que ameace a ordem

historicamente estabelecida para esta instituição, rapidamente seja acusada de promover o

caos, a desordem, a falência cultural e social. As reações em defesa dessa história

“gloriosa” do passado da escola lembram com saudade, do rigor, da consistência, da

disciplina. Saudade dessa escola que ensinava.

E muitos que compartilham desta memória, esquecem os milhões de cidadãos

brasileiros que viveram outras histórias, ou nem sequer foram convidados para partilhar do

maravilhoso mundo dos saberes “historicamente produzidos pela humanidade”, pois

mesmo pertencendo a esta humanidade, sua humanidade foi historicamente negada mesmo

produzindo saberes, estes saberes foram sistematicamente desvalorizados, esquecidos,

silenciados. Escola para uns, não para outros. E ainda temos muitos que compartilham

destas mesmas memórias – não com tanta saudade – perguntam-se até hoje, o que

realmente aprendemos na escola?

Na produção desta “ordem” escolar, entre muitas outras práticas hoje abolidas ou

severamente criticadas, a prática dos “exames”, e a decorrente classificação e

hierarquização dos sujeitos, surge como uma das barreiras mais difíceis de romper na

produção de uma escola realmente inclusiva, democrática e dialógica. E talvez esta

resistência presente na cultura escolar, sustentada por mãe e pais, professores e

professoras, especialistas e até mesmo pelos próprios alunos e alunas, possa nos oferecer

algumas pistas sobre o quanto esta cultura escolar produz exclusão para além dos discursos

mais progressistas. Reflitamos um pouco com a professora Cássia:

O sistema não esta preocupado da maneira que você esta avaliando. Essa subjetividade, esse olhar nosso, porque agora ele calça meia, vem com a meia limpinha, de uniforme, sapato, toma banho, quando o sistema só que o que? Saber de quanto e números. E quando ele cair lá fora o sistema que vai avaliá-lo de maneira muito mais drástica, vai colocar ele numa caixa sim,

106

porque o sistema lá, vai reprová-lo por meio ponto, por zero vírgula cinco, que ele vai ter que fazer uma prova para conseguir um emprego, que ele vai ser avaliado no vestibular...e ele não vai conseguir chegar lá. Porque o sistema não vai olhar se ele tomou banho, se ele conseguiu escrever o nome todo, se ele conseguiu pintar num espaço entre linhas. O sistema vai querer colocar ele na caixa.(Cássia)

Mas quem é o sistema? Uma entidade metafísica que paira sobre nós? Homens

poderosos em seus ternos pretos fumando charutos e conspirando para espalhar a miséria e

degradação? A mão invisível, o olho do Grande Irmão? Cássia percebe que existe – e

existe mesmo – um poder – que como nos aponta Foucault é exercido pelos sujeitos de

diferentes formas e diferentes lugares – que tenta nos ajustar, cooptar ou excluir. Não

percebe que quando dizemos, como Aline: agora ele calça a meia, vem com o uniforme

limpinho, toma banho; também estamos dizendo que acreditamos em um sistema, em

normas de conduta, de apresentação, de “civilidade”. Que também estamos avaliando este

menino segundo nossos parâmetros culturais de sociabilidade. Então essa subjetividade,

esse olhar nosso, também é marcado por um sistema que valoriza mais certas condutas do

que outras, certos saberes do que outros, certas formas de ser e estar no mundo do que

outras, que estamos exercendo este poder (mesmo sem o terno e o charuto!). Por que?

Porque avaliar, ou melhor, examinar alguém é compará-lo com um mapa de padrões pré-

estabelecidos.

Mas afinal: o que é avaliação? Existe avaliação justa? Avaliar é possível?

Perguntam-me as professoras quando percebem a multiplicidade de sentidos que o

conceito assume em nossos discursos e práticas. Como avaliar? Como produzir uma

avaliação justa em uma sociedade injusta? Encontramos algumas das respostas a estas

questões na própria historia da educação. Esta prática de exame, que para muitas

professoras parece indissociável e indispensável à prática pedagógica, é na verdade uma

construção histórica que serve a certos objetivos políticos claros, e que já nasce marcada

por seu aspecto seletivo e com a função de estabelecer hierarquia, como nos ensina

Barriga:

Primeiro porque o exame foi um instrumento criado pela burocracia chinesa para eleger membros das castas inferiores. Segundo porque existem inúmeras evidências que antes da Idade Média não existia um sistema de exames ligado à prática educativa. Terceiro porque a atribuição de notas ao trabalho escolar é uma herança do século XIX à pedagogia. Herança que produziu uma infinidade de problemas. Dos quais hoje padecemos.(Barriga, 2003, p.55).

107

Um desses problemas é a crença hegemônica de que os sistemas de avaliação são

responsáveis por produzir sucesso escolar.48 A crença em que submeter sujeitos diferentes

a um mesmo processo produz uma igualdade. E talvez isso seja em parte verdade. Produz

ou tenta produzir uma igualdade ao adestrar todos para que se submetam a esta lógica e a

considerem “normal” e justa. Que estas crianças cresçam e considerem normal e justo que

a inclusão de alguns justifique a exclusão de tantos. Que considerem normal e justo que as

condições sócio-econômicas e culturais não sejam levadas em consideração na hora de

distribuir diagnósticos, pareceres, conceitos ou notas sobre sujeitos que desconhecem.

Aline me questiona e pede socorro: Tem como você ajudar a gente a enxergar?

Como avaliar? Sei lá estes dois alunos...será que eu fui injusta? Mas talvez a resposta

esteja em sua própria reflexão: Porque eu não seria justa com os demais da sala. E eu tenho

que tirar um parâmetro comum. Isso é injusto? Sim é. E dentro desta lógica, deste sistema,

não existe a possibilidade de não ser. Contudo dentro de nossas salas existe sim, a

possibilidade de pensarmos a avaliação para além desta função restrita e classificatória,

existe sim, a possibilidade de pensarmos outras possibilidades para nossas práticas

avaliativas como práticas de investigação do processo de produção de conhecimento dos

sujeitos e de um grupo de sujeitos sem compará-los entre si. Mas para que isso aconteça é

preciso que nosso compromisso seja muito antes com o aprendizado de nossos alunos do

que com a produção de notas, conceitos, pareceres etc. Que o nosso foco seja o processo

ensinoaprendizagem e não as estatísticas. Que não nos deixemos encantar pelo falso canto

da sereia e façamos nosso trabalho a favor do aluno e não contra ele.

Como nós professoras somos formadas – e conformadas – em uma lógica que

acredita ser normal que os seres humanos só tenham o direito de existir quando

comparados a outros? Que exista realmente alguma possibilidade de justiça nesta

comparação? Como se sentiriam os professores, coordenadores, diretores e gestores se a

população fosse chamada para lhes atribuir notas, tivessem seus nomes expostos em uma

lista na internet com seus desempenhos grifados em vermelho sem que fossem levadas em

consideração as diferenças entre suas realidades, trajetórias e recursos? Como foi se

estabelecendo esta nossa crença na justiça de um processo tão injusto?

48 Diane Ravitch Secretária-adjunta de Educação do Governo Bush, responsável no governo de Bill Clinton pelos testes federais, 20 anos depois, comenta o fracasso do projeto, que em vez de melhorar a educação está formando alunos apenas treinados para fazer uma avaliação. Entrevista Jornal O Estado de São Paulo. 02.08.2010.

108

A ciência moderna construiu um ideário de essência, de natureza humana, que não

raramente desconsidera as questões de espaçotempo, de cultura e história, que discutimos

anteriormente, e as práticas de examinar os sujeitos nascem atravessadas por este ideário.

Examinar alguém é confrontá-lo com um padrão. Um padrão de saúde, de beleza, de

conhecimento, de comportamento, etc. Examina-se para atestar a normalidade tendo como

parâmetro esta ideia de uma essência, de uma natureza, de uma forma ideal a ser alcançada

por todos. Esta ideia da existência, de algo essencialmente bom, normal e humano cria em

nós, professoras, um compromisso com uma prática que se dirige cada vez mais para um

ajuste à norma – seja ela qual for – sem que muitas professoras questionem-se sobre o seu

papel neste processo, sobre a legitimidade desse processo, sobre os interesses que movem

os sujeitos que estabelecem estes parâmetros para milhares de crianças que desconhecem,

sobre o que este processo tem produzido e contribuído efetivamente para a superação das

profundas desigualdades que foram historicamente produzidas em nosso país.

Como seres culturalmente localizados e historicamente datados, me parece

improvável fugirmos disso. Fugirmos de nossa obrigação, como educadores e como

adultos que somos, de ensinarmos às novas gerações os valores que acreditamos, os

conhecimentos que nos são caros, nossas moral, nossa lei. A questão é quem são os

sujeitos que estabelecem estes conhecimentos? Quem os autorizou a decidirem em nome

de milhares de cidadãos aquilo que lhes é caro saber? Como negociamos esses sistemas de

valores e crenças, de conceitos de sociabilidade e moral com os diversos sistemas que

convivem na escola? Com os diferentes modos de ser, compreender, estar e conviver

no/com o mundo? Queremos uma escola – e uma sociedade – monológica ou dialógica?

Ou acreditamos realmente que nosso saber, nossa moral e nossa lógica são os

essencialmente humanos, os essencialmente melhores, e os essencialmente únicos

possíveis?

Aline por sua vez, vive uma crise de consciência, e sofre, pois mesmo dizendo:

“quem enclausura ele ali naquela hipótese R, RR é o sistema não sou eu”. Percebe-se que

sua subalternidade a este sistema reproduz toda a opressão que ela também como sujeito

sofre. Por mais que eu tente fugir, algo dentro de mim grita: não é necessariamente o

sistema, somos nós! Cada sujeito no seu mover-se e na forma como estabelece essa relação

de poder e saber com o outro, que sustenta ou revoluciona o próprio sistema. Cada sujeito

em sua prática diária que cria possibilidades de outras lógicas agirem na escola, formando

sujeitos menos prisioneiros do que nós mesmos somos. Aline reconhece que sua formação,

dentro de uma das caixinhas que Cássia falou, a tornou, de certa forma, prisioneira da

109

lógica da “ordem”, e a cada encontro49 vem se percebendo neste lugar. Lugar que muitos

de nós ocupamos, defendemos e muitas vezes sem percebermos, reproduzimos. Lugar que

questionamos e reinventamos... Aline narra uma experiência como aluna e nos oferece

muitas pistas sobre algumas escolhas pedagógicas que faz:

Eu queria falar da minha professora de História, professora Leni, que morava lá em %iterói, pegava o 268, a gente ficava tudo na esquina esperando dona Leni na sétima e na oitava série. E uma vez ela desconsiderou uma questão minha de História porque eu respondi com as minhas palavras, e eu não podia ter respondido, porque ela me disse que ela me deu o questionário e era para ter respondido igualzinho estava no questionário. (...) Mas graças a Deus eu consigo me desvencilhar disso e não exijo do meu aluno isso. Isso é uma das coisas que eu consegui bem trabalhar dentro de mim e não sou desse lado que o aluno tem que reproduzir do jeito que eu quero, a resposta sempre fechada, porque a gente sabe que tem outras possibilidades, mas à parte daquela rigidez, daquela postura, infelizmente eu não consegui me desvencilhar. Fiquei passada com aquilo, porque eu estudei tanto cara, e ela me deu nove? Ai ela me justificou, não estava igual ao questionário, era para eu ter respondido igual: “Aline eu não dei o questionário?”. Eram vinte questões, aí ela pegou dez questões e deu na prova: “Eu não dei o questionário? – Deu dona Leni – Mas você não respondeu igual! – Pode deixar dona Leni da próxima vez eu vou fazer o dever de casa direitinho, vai ser igualzinho com todos os pontos e vírgulas!”.

E de fato Aline preocupa-se com cada ponto e vírgula do que lhe mandam fazer.

Examina os descritores, fica atenta às determinações e deseja apresentar tudo corretamente

como se buscasse acertar o questionário de dona Leni. Coincidência ou não, formou-se em

História como a professora que a marcou. Consciente ou não, carrega essa imagem onde

não adianta desafiar o poder instituído, para superar as barreiras que são postas – e sabe

que para crianças pobres são muitas – é preciso responder com as palavras certas, é preciso

atender às expectativas daqueles que tem o poder de julgar. Isso marca sua história e

atravessa suas práticas, pois é fundada em suas experiências. No entanto, isso é apenas

uma das muitas partes da professora contestadora, crítica, que defende seus alunos contra

tudo que acha injusto na escola. A criança que foi ainda habita o adulto que se tornou, no

entanto essas marcas revelam-se de diferentes maneiras em suas práticas.

A professora Cristiane, sempre alegre, falante e exuberante, nos faz rir quando fala de sua

timidez na escola, e reflete o quanto isso a marca como profissional:

49 O grupo de pesquisa formado no CIEP teve um segundo encontro em abril de 2009 onde a transcrição e o vídeo do primeiro encontro foram debatidos.

110

O que pegou pra mim é o seguinte: o olhar diferente para aquele que não aprende, a preocupação com aquele que se sente diminuído. %o meu olhar eu vejo isso. Está voltado para aquele que se acha incapaz. “Por que você se acha incapaz? %ão você não é incapaz!”. Eu fico irritada com isso. Então uma das coisas que eu faço de imediato com qualquer turma é motivação: “Eu acredito em você! Você vai saber! Você vai aprender sim!”. Justamente pela minha experiência.

Para além da formação acadêmica que recebemos, além das capacitações que

participamos, além dos textos que lemos, fomos refletindo, como “justamente pelas nossas

experiências” fazemos certas opções pedagógicas. Então vamos buscando compreender

nosso fazer neste complexo que é tecido a partir de nossas experiências como alunas e

nossas memórias sobre a escola, nas teorias que aprendemos, nas experiências como

professoras.

No movimento da pesquisa, fomos nos dando conta do quanto investigar nossas

experiências passadas e presentes, pensando nelas a partir de outros lugares, percebendo-as

a partir das leituras dos outros, nos permitia refletir sobre nossas práticas, crenças e

possibilidades. Em outras palavras, o quanto compartilhar nossas memórias, o quanto a

produção de nossas narrativas, nos permitia um espaço de formação rico e significativo.

Ao vasculharmos nossas memórias sobre a escola, encontramo-nos com várias

escolas. Histórias de sucesso, histórias de fracasso, lugar de alegrias, de mágoas, de

aprendizado. Nossas memórias são sempre uma seleção afetiva que fazemos em um

acontecimento. Uma versão que produzimos, uma interpretação de nossos sentidos ao que

foi vivido. E como nos aponta Bhabha “Relembrar nunca é um ato tranquilo de

introspecção ou retrospecção. É um doloroso re-lembrar, uma reagregação do passado

desmembrado para compreender o trauma do presente”. (Bhabha: 1998, p. 101). Por isso

(re)lembrar, lembrar outra vez, nunca é o mesmo lembrar. O lembrar produz um

movimento que nos torna outro, e ao nos tornarmos outros, encontramos outros sentidos

em nossas lembranças, produzindo assim um movimento dialético. Quando

compartilhadas, estas memórias ganham ainda a possibilidade de interpretações e

ressignificações a partir dos outros sujeitos, o que nos possibilita um aprendizado infinito

sobre nossas lembranças.

Rosângela entra em minha sala de leitura e pede para que eu veja um pequeno texto

que produziu a partir das nossas discussões (transcritas e entregue às professoras) no grupo

de pesquisa que formamos na escola. Relata que não conseguiu dormir pensando sobre as

coisas que discutimos. Não posso deixar de dizer que me surpreendo com sua iniciativa.

Rosângela, a mais calada em nossos vigorosos debates, mostra-se uma observadora atenta

111

e com suas intervenções pontuais muitas vezes não permite que nosso grupo – eu inclusive

– seja arrastado por totalizações do real, generalizações e conclusões precipitadas. O que

para mim é um exercício constante e difícil – vencer o hábito de afirmações apressadas e

geralmente inflamadas – para a professora Rosângela parece ser uma forma de

pensamento. Tranquila, ponderada, com humildade, mas firmeza, sempre nos chama

atenção quando colocamos pontos nos lugares das vírgulas. Sua timidez e insegurança

visíveis contrastam com as vozes contundentes das outras professoras. Talvez seja seu

silêncio atento e reflexivo que tenha possibilitado a percepção de questões que eu mesma

não havia percebido. Digito o texto e entrego uma cópia a cada professora, e agora a vocês,

nossos (as) convidados (as)...

Voltando a falar sobre Avaliação.

Continuo me sentindo muito desconfortável ao pensar nas comparações que ocorrem. Isto é, nós profissionais da educação passamos o ano inteiro observando, anotando, acompanhando os avanços, as dúvidas de cada aluno, ou seja, passamos o ano avaliando. Sim, porque a avaliação é constante e ela é o nosso instrumento, que nos mostra onde estão as falhas no processo da aprendizagem para que possamos replanejar.

Termina o ano e esse nosso aluno passa das nossas mãos para as mãos de outro profissional, o que ocorre então é que alguns desses “profissionais” começam a avaliar, não sei se o aluno ou se o professor que estava com ele no ano anterior. Isso me angustia, está faltando ética em alguns dos nossos companheiros.

Essa minha insatisfação aumentou ainda mais este ano, pois, descobri (não sei se estou sendo dura demais ao falar isso) que esses profissionais ao receberem aquela turma iniciam o ano muito rígidos na avaliação. Ouvi por diversas vezes críticas severas a determinados alunos, como se o erro tivesse sido do professor do ano anterior. É claro que isso não ocorre com todos os colegas. Esses profissionais parecem criticar a turma severamente no primeiro momento e no decorrer do ano, essa turma apresenta uma melhora “grandiosa”. O que eu percebo é que esse profissional esta tentando se vangloriar, dizer que os méritos são só seus. O trabalho que você realizou no ano anterior não valeu.

Também sabemos que algumas mudanças na avaliação ocorrem com algumas crianças, que estão atravessando momentos difíceis na sua vida e apresentam dificuldade no aprendizado e algumas até regridem.

Outras vezes essa mudança na avaliação do aluno, ocorre por desatenção do profissional que não percebeu esse bom desempenho do aluno, ou porque o aluno é pouco participativo, ou porque ele não soube realmente avaliá-lo. Mas esses fatos que são sem dúvida preocupantes, não são o motivo do meu desabafo. O que realmente incomoda é a questão da ética, ou melhor, da falta de ética de alguns profissionais.

Também vejo isso nessa Secretaria. Cada profissional que chega lá critica o trabalho do seu antecessor. E dentre todas as críticas o mais é criticado é o professor.

Precisamos mudar isso. Precisamos nos unir e mostrar a beleza do nosso trabalho. %ão podemos deixar que alguns profissionais menosprezem o nosso saber, o nosso fazer pedagógico e principalmente, temos que mostrar que não somos os culpados pela “decadência da educação” .

A aprovação automática, hoje tão criticada, foi uma tentativa de melhora que em muitos casos deu certo, mas que foi imposta. Os políticos precisam aprender a nos ouvir e principalmente a nos valorizar, pois somos

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bons, não temos apoio nenhum e ainda assim fazemos um bom trabalho. Ainda somos comprometidos e apaixonados por nossa profissão.

A avaliação do aluno mostra todas as nossas falhas? Eu acho que não. Mostra o que temos que trabalhar mais, não o que não tenha sido trabalhado. Devemos usar o instrumento da avaliação para replanejar. Para qual mundo a gente vai formar essa criança? (Rosângela)

O movimento do cotidiano me levou das questões curriculares para as práticas de

avaliação. Inquieto, este cotidiano mais uma vez toma as rédeas da pesquisa, e os sujeitos

que compartilham comigo este caminho me convidam a pensar sobre quem são realmente

os sujeitos na/da avaliação. Outras questões começam a surgir, mas não fui eu quem

primeiro as identificou.

Quando começamos este diálogo, o aluno era percebido e discutido como este outro

que é avaliado. Um outro que sofre a avaliação. Contudo, como Rosângela nos convida a

pensar, a avaliação é uma prática que envolve muitos sujeitos e muitas relações. Não só os

alunos são avaliados. Professores e professoras são avaliados, pais e mães são avaliados,

sistemas são avaliados. E a consciência desta avaliação exerce um poder sobre as práticas

curriculares e as práticas avaliativas, e talvez a consciência dessa avaliação nos arraste,

para a pouco produtiva troca de culpabilidades.

Uma rede de vigilância – ou poder sinóptico como vimos – vai sendo tecida de

diferentes pontos, por diferentes sujeitos, produzindo discursos sobre o fazer pedagógico

que desqualificam certas práticas ao invés de dialogarem sobre elas. Vigilância que não se

personifica apenas nos sujeitos que ocupam os lugares do poder instituídos, que se

personifica em nós, porque compartilhamos com estes sujeitos a crença de que existe

realmente uma única prática válida a qual todos devemos nos ajustar para alcançarmos um

único saber válido que é socialmente legitimado.

O texto de Rosângela traduz um sentimento do grupo de que algumas colegas –

assim como algumas mães, coordenadoras, diretoras, técnicos, burocratas etc –

desconhecem – ou não fazem questão de conhecer – os processos desenvolvidos, a

complexidade e o movimento do processo de aprendizado vivido por professoras e alunos.

Desconhecem que este processo sofre reveses provocados por questões sociais que, muito

antes de exporem o fracasso escolar dessas crianças, expõem o fracasso de nossa sociedade

para com estas crianças, que o fracasso escolar é apenas uma evidência a mais de nosso

fracasso como adultos, de nosso fracasso como sociedade, incapaz de oferecermos às

nossas crianças dignidade para que possam se desenvolver e aprender como lhes é de

direito.

113

Seu texto mostra certo ressentimento – também coletivo – com os discursos sobre o

fracasso, que são produzidos levianamente, para logo em seguida, milagrosamente

alardearem o seu próprio sucesso. Discursos que, como discutimos anteriormente,

encolhem o presente, invisibilizam muitas práticas pedagógicas potencializadoras dos

sujeitos, para em um movimento posterior se apropriarem dos resultados positivos

produzidos. Percebe também que esta prática discursiva – que visa produzir realidades –

atravessa tanto as micro-relações da escola – onde um busca a autoafirmação

desqualificando o trabalho do outro – como na macro esfera das políticas públicas onde os

que chegam recusam-se a admitir a história do que já foi produzido por seus desafetos

políticos para fazer uma política – e um discurso – do inaugural.

Reclama por seu direito à voz e faz isso em nome de uma classe – que defende ser

comprometida e apaixonada – sem perceber que aqueles a quem criticava anteriormente,

formam, também, esta classe. Mas não por acaso isto acontece logo após sua crítica a

macro-esfera do poder público. Ou seja, ao longo de seu pequeno desabafo, move-se do

primeiro lugar no qual filia seu pertencimento – as professoras desqualificadas por suas

colegas dentro da escola – para o pertencimento à classe de professores desqualificados

pelos sujeitos que ocupam os lugares do poder instituído. E, neste movimento, ao ressaltar

as qualidades – comprometidos e apaixonados – invisibiliza, neste momento, as diferenças.

Reflito sobre como nossas identidades são forjadas de acordo com certas fronteiras, e como

dependendo dos “outros” que ameacem nossas fronteiras, essas identidades se movem,

negociando com antigos “outros”, novas comunidades, fundando novos lugares.

Quem são os sujeitos na/da avaliação? A cada fala, a cada movimento das

professoras, mais sujeitos – improváveis ou insuspeitáveis – vão deixando as sombras e

participando da construção de nossas subjetividades. Mais sujeitos são reconhecidos como

interlocutores – mesmo que desavisados – das relações que atravessam as práticas

pedagógicas e avaliativas. Aline nos ensina isso com seu relato inesperado:

E o pior de tudo, é que a gente faz isso tudo porque a gente já sabe, que a avaliação do outro vai estar lá frente. Essa professora brincou tanto, e deixou isso aqui de lado. E às vezes não é grande coisa que deixou de lado não, às vezes é uma coisa mínima. Então o outro olha; “essa professora vivia no pátio, essa professora vivia brincando no pátio”. Eu desci esse ano para brincar de coelhinho na toca, porque usei lá os atributos das letras, nome, para eles se organizarem, usei os números, trabalhamos conjuntos, mas de maneira diversificada, dentro do coelhinho na toca, cada hora tinha um conjunto com uma determinada característica que o aluno tinha que cumprir: letrinha inicial, quantas letras tem o nome, quantas sílabas tem o nome. Tinham tocas diferenciadas. Ai o que acontece, a gente às vezes fala assim “caramba” e quando passou a menina da cozinha eu falei “olha eu estou

114

aqui trabalhando, mas não é coelhinho na toca não”, eu estava dando satisfação para ela... (risos) estou falando sério (Aline) Você fez isso Aline?!(Rosângela) É...Porque às vezes as pessoas já veem a gente tão mal né? Sabe com olhar tão pejorativo na maioria das vezes, às vezes eu me sinto assim sabe, vigiada um pouco, “o que será que esse professor esta aprontando”. Então eu acho que a gente já faz isso, já abandona determinadas coisas, para dar conta daquele conteúdo, para dar conta daquilo ali, mesmo sabendo que aquele outro lado podia proporcionar, em longo prazo, um crescimento maior, mas você tem medo realmente, lá na frente, o que o outro vai falar?(Aline)

Quem são esses espectros que se movem em nossas sombras? Os “outros” que

falam de nós? Nossas certezas sobre seus discursos, sobre suas vozes algozes apontando

nossas falhas e incapacidades, em que medida refletem o nosso compartilhamento de uma

mesma lógica? Em que medida não é a mesma voz, nossa voz? A voz do colonizador que

ecoa em meu peito, fazendo com que me sinta pequeno e medíocre diante do olhar

supremo? Olhar do “outro”. Avaliação do “outro”. Um “outro” muitas vezes imaginário,

uma totalidade inexistente, mas para nós personificada em cada um dos olhos que nos

avalia, o mau-olho. Fantasma de um “outro” que é a expressão de uma lógica que quer se

sobrepor e invisibilizar as demais. Lógica que tantas vezes defendemos, como guardiões da

ordem, capitães do mato, que no fundo, morrem de medo que ela perceba a nossa

inadequação, nossa pele também negra, nosso português também mal falado, nosso desejo

de fazer parte de um mundo que nos humilha e nos nega.

Na (mono) lógica da ordem só existem os saberes legitimados pela ordem, só existe

a linguagem da ordem, só existe a racionalidade da ordem, só existe a moral da ordem. E o

que existe fora da ordem é o caos. O refugo, o lixo, a negação da ordem. Para fugir desse

lugar do lixo, atiramos nossas crianças em sacrifício. Que sejam eles os avaliados, não eu.

Que sejam eles os fracassados, não eu. Que sejam eles os renegados, não eu.

Aline quer fugir do dilema que se coloca. Quer acreditar em outra prática possível,

mas não quer ocupar o lugar destinado aos dissidentes. Vive a angústia de uma identidade

cingida que vagueia na fronteira entre lugares muito distintos, ambivalências que nem

sempre consegue negociar e que se tornam contradições. Quer fazer outra escola, mas quer

ser reconhecida pela escola que existe. Quer transformar suas práticas, mas quer que elas

sejam legitimadas por uma ordem que não quer a transformação. Quer o reconhecimento

dentro de uma lógica que a todo o momento questiona.

Aluna da escola pública, oriunda das classes populares, a filha obediente e

estudiosa da servente. Aline orgulha-se – e com razão – dessa escola e de sua persistente e

115

vitoriosa conquista, de sua adequação às normas, aos parâmetros, à ordem. Sabe que aquilo

que infelizmente existe – quando preferíamos que não existisse – torna-se um problema a

ser resolvido, nossos casos “críticos” e difíceis como aponta Cristiane. Os sujeitos que

passam pelo processo escolar – assim como por muitos outros processos – são

devidamente examinados quanto a sua capacidade de adequação ou não ao mundo da

ordem. Recebidos com benevolência para serem submetidos a este processo os habitantes

que vagavam perdidos pelo mundo do caos – da ignorância, da bestialidade, da barbárie –

tem a chance de pertencerem ao mundo da ordem – dos saberes, da cultura, da civilização,

ciência e tecnologia – infelizmente muitos fracassam: suas aptidões, saberes, cultura,

linguagem são insuficientes. Foram examinados – às vezes por diferentes e minuciosos

processos e metodologias que reforçam nossa boa vontade em incluí-los – mas falharam.

Não aprendem. Não são capazes de aprender – ou não aprendem como os outros, no tempo

certo, da forma certa – por isso, resta-nos devolvê-los ao caos de onde saíram, e aumentar

os muros em torno da ordem, para que estes excluídos não se voltem invejosos e

ressentidos contra nós.

Entretanto, Skliar nos questiona: “acaso todo ser humano está aprisionado numa

relação de exclusão/inclusão?” (2003: p. 95).

Não estaríamos sempre nos movendo nestes lugares, nos incluindo em alguns nos

excluindo de outros, criando nestes lugares, que a ordem só consegue ver como caos, o que

na verdade, são outras ordens possíveis? Nestes lugares onde a escola da ordem só

consegue identificar o fracasso, outros sucessos possíveis?

Mas talvez não nos baste criar outros sucessos possíveis. Desejamos sua

legitimação, seu reconhecimento, desejamos que sua qualidade seja proclamada e “vista”

pelos “outros”. E quando nosso sucesso depende da aprovação da ordem, talvez não seja

exatamente o sucesso que buscamos. O sucesso que meu aluno reconhece: “obrigada

professora!” não vale! É preciso que números produzidos em exames estéreis falem sobre

conhecimentos estéreis afirmando, não nossa capacidade de aprender, não nossos saberes,

mas nossa capacidade de submissão a esta lógica. Não nos treinam para que possamos um

dia realmente nos tornar o que são, mas para que sejamos sempre esta mímica, esta

caricatura risível que no fundo sabe-se um “quase” igual. Guardião de valores que não são

os seus, de uma moral que não é a sua, de uma lógica que nem compreende muito bem.

É preciso que avaliações descontextualizadas, rasas e não raramente, com

enunciados confusos e mal formulados, nos treinem em sua lógica unilateral, nos

conformem a sua estética e linguagem, nos incluam em seus paradigmas para que

116

continuemos excluídos do direito à voz, à vida. Não são exames sobre conhecimentos. São

currículos que prescrevem como devemos proceder para sermos incluídos. Que prescrevem

sua lógica, sua ideologia, sua forma de organizar o mundo. Que prescrevem que existe uma

única resposta certa, uma única forma de ler o mundo, não nos cabendo mais, portanto

interpretar o mundo pelos nossos olhos. Aprendamos a marcar as respostas certas e

seremos incluídos, eis o ouro dos tolos!

Inclusão. O uso cada vez mais insistente e cada vez mais frequente, sua presença de

forma espetacular na mídia, ou seja, o fato de ganhar o picadeiro e luzes nos discursos de

diversos – e às vezes antagônicos – segmentos de nossa sociedade, traduz-se para nós,

exatamente aquilo que caminha na sombra. O discurso da inclusão esconde a prática da

exclusão. Inclusão significa compreender, envolver. Significa tornar o que está fora parte

daquilo que está dentro. Uma concepção, a princípio, muito digna e defendida por muitos

com sincera intenção de tornar o mundo um lugar mais justo. Contudo, as reflexões sobre

alteridade e cultura nos levam à seguinte questão: quem define o que é dentro e o que é

fora? Quero trazer o excluído para o meu mundo e torná-lo parte dele, mas isso não seria

negar a existência de outras possibilidades de mundo? Não seria tentar, na verdade, ajustá-

lo? Não seria mais uma armadilha da modernidade que nos acompanha? Acreditar que

existe um mundo do lado de fora – necessariamente ruim – e outro do lado de dentro –

necessariamente bom? E ao trazê-lo para meu mundo eu realmente o recebo como igual ou

o condeno a ser um “quase igual”, uma mímica risível de mim mesmo, aquele que ainda

não é, ainda não sabe, ainda não tem, e que dificilmente será, saberá ou terá o que tenho,

habitante de lugar nenhum, vivendo no limbo entre o que foi, mas não é mais, e o que

poderia ser, mas por mil artimanhas, não será totalmente, habitante de um tempo presente

que teimamos renegar.

Para recebê-lo dentro, qual preço cobro por sua passagem? Sua história, sua

memória, sua língua e cultura. Uma vez em meu território (cultural) o que ofereço? Meu

mundo “made in China”. E este mundo onde pensamos incluir “os outros”, é realmente o

melhor? Ou quanto mais próximos deste iluminado centro, mais prisioneiros nos tornamos

de sua força gravitacional? Mais denso e pesado se torna o espaço em que nos movemos,

mais perdemos de nossa possibilidade de criação e movimento? Onde mais cedo ou mais

tarde seremos incinerados pela luz?

Naturalmente isto não significa dizer que não desejo “incluir” os que não comem

no mundo dos que comem, “incluir” os que não têm acesso à saúde, educação e trabalho

digno no mundo dos que têm. O que vem me atormentando é pensar em qual dos muitos

117

mundos desejamos incluí-los? No mundo do mercado? No mundo do consumo? Em nosso

maravilhoso mundo do espetáculo e da indiferença?

Será a nossa única alternativa “incluí-los”, ou estes sujeitos podem, do seu próprio

lugar, a partir dos seus próprios saberes, de sua própria cultura, tecerem outras

possibilidades de trabalhar, conhecer, de produzir outras formas de existência? Ou o que

particularmente me interessa como professora: que escola nós podemos, juntos (pais,

alunos, professores, funcionários) fazer?

O desafio que se coloca, para nós, professores pesquisadores, está exatamente na

leitura deste cotidiano, buscando compreender tanto a fundamentação, a base

epistemológica, as intenções dos currículos prescritos, como os limites e possibilidades

criados pelo currículo praticado em seu movimento real, sua inconstância, sua

complexidade. Compreender nestes lugares periféricos, onde os difíceis, os inomináveis, os

monstros, os sujeitos que habitam as sombras, indesejáveis e cada vez mais “indesejosos”

de serem consumidos pela luz, produzem outras possíveis formas de ser e estar no/com o

mundo, formas que ameaçam e subvertem a ordem que o centro tenta impor. Formas que

por sua vez, não são necessariamente alternativas melhores, ou menos violentas, mais

justas ou harmoniosas, são apenas outros lugares que se multiplicam na complexidade de

nosso mundo e que precisamos “admirar”, pois revelam muito mais do que pensamos

saber, mas não sabemos, pensamos conhecer, mas não conhecemos.

Neste sentido, se Certeau nos ajuda a compreender este “mover-se” dos “ninguém”

os estudos sobre Colonialidade e Modernidade muito contribuem para pensarmos mais

objetivamente este macro-contexto percebido por Cássia e por Rosângela onde nossas

escolas são inscritas. Como estes macro-contextos se inscrevem em nós professoras,

integrando nossa subjetividade e como nós sustentamos ou não estes macro-contextos com

nossas micro-ações, em nosso micro-contexto escolar.

Se por um lado o Centro (hegemônico) tenta nos dominar com essa rede de

vigilância, utilizando-se de seu lugar e de estratégias para consolidar e legitimar suas

práticas, por outro lado cabe aos sujeitos da periferia utilizarem-se de táticas para subverter

este controle.

Sabemos também que quanto mais próximos ao centro maior poder este centro tem sobre

os “corpos” e quanto mais afastados menor poder – de controle – o centro possui. O centro

dita as modas e os modos, inventa, discursivamente, inclusive quais são as “diferenças”

permitidas, aceitáveis, toleráveis. Inventa “diferenças” para tentar exercer um controle

sobre as diferenças reais. O centro dita como estas “diferenças” devem conviver

118

civilizadamente, quais os espaços permitidos para essa convivência. O mercado cria e

estimula diferentes “tribos” que não apresentam muitas vezes, diferenças político,

culturais, ideológicas, éticas ou estéticas essenciais, mas “nichos” de mercado,

multiplicando as formas de consumo: roupas, cabelos, revistas, programas, clubes, etc

Quando as diferenças fora dos manuais – alteridades reais e legítimas – se

manifestam devem ser devidamente neutralizadas e exterminadas, fisicamente se

necessário (e geralmente o é!) para que não comprometam a harmonia da sociedade

democrática burguesa. Ou seja, estabelecem a diversidade na homogeneidade. Na ideia de

diversidade as diferenças que podem ser absorvidas se tornam parte de uma unidade. Na

diversidade o que existe são variações de expressão do mesmo, ou seja, não são realmente

diferenças. As alteridades que denunciam as tensões nesta tentativa demagógica de um

discurso de inclusão são combatidas com extrema violência, pois ferem a imagem de uma

sociedade democrática, “tolerante”, plural e harmoniosa.

Contudo, o centro que se autoproclama como ideal como oásis da humanidade

esconde a relação ambivalente que possui com seu entorno, pois é também refém da

periferia que o cerca (já que periférico significa exatamente entorno de) e que representa

um perigo constante ao poder central, já que o delimita. A periferia por encontrar-se

espacialmente fora, tem a possibilidade de crescer – e exercer pressão – em todas as

direções, enquanto o centro para expandir-se tem necessariamente que expandir-se na

direção da periferia.

Assim, a “periferia” surge não como o espaço do abandono somente, mas como

espaço de possibilidades, e como território de conquista. Como um espaço de maior

mobilidade, criatividade e maior insurgência. Na periferia, afastando-se do poder – e do

fascínio – exercido pelo centro, mais possibilidades de reinvenção dos espaços pelos

sujeitos, mais possibilidades de recriação de novas práticas sociais na formação desses

espaços, mais autonomia, mais liberdade e, portanto, mais possibilidades de emancipação

dos sujeitos.

O espaço periférico, enquanto preso ao lugar de enunciação do centro, fica reduzido

ao lugar da ausência: ausência de cultura, ausência de saberes, ausência de civilização. O

centro por sua vez, cria um paradoxo: ao mesmo tempo em que se autoproclama como

lugar ideal, e modelo a ser seguido, constrói muralhas cada vez mais altas para não

permitir que os “indesejáveis” (negros, latinos, orientais, homossexuais, deficientes,

muçulmanos, etc) adentrem em seu seleto mundo.

119

“Falar de exclusão é falar de distância e ao mesmo tempo de fechamento. Já não se trata de fronteira e sim de muralha, de fora e de dentro. O que está dentro constrói sua muralha e delimita e defende assim seu território. É o que está dentro que constrói a muralha, não o de fora.”(Moreno: 2005, p. 188)

Resta à periferia então apenas consumir os dejetos – culturais, tecnológicos,

científicos – produzidos pelo centro, e sonhar romper as muralhas? Acreditar que a saída é

individualmente, cada um, segundo seus “talentos”, “potencialidades” e principalmente

“vontades” escalar sozinho esta muralha e fazer parte do seleto grupo dos que comem, dos

que têm, dos que são, dos que sabem? Ou quem sabe, libertar-se do sonho de ser o “outro”

e construir em seu próprio lugar outras possibilidades de existência dignas. “Pode o lugar

ser reconcebido como projeto? Para que isto ocorra necessitamos de uma nova

linguagem”. (Escobar: 2005, p. 152).

Ao libertar-se do lugar de enunciação do centro, a periferia descobre sua própria

história, estabelece sua própria linguagem, aprende com suas próprias experiências,

constrói alternativas possíveis ao sistema imposto pelo centro e assim desmascara seu jogo

de luz e sombra. Ao encontrar o seu próprio lugar de enunciação a periferia constrói novas

possibilidades de relações dos seres humanos com o mundo.

Se historicamente a escola foi palco da disseminação e legitimação dos discursos

Modernos e Colonialistas sobre o mundo, pode ela, assumir também o papel de

problematizar esses discursos e encontrar seu lugar como parceira na construção de outros

discursos possíveis, outros saberes possíveis, de outras relações possíveis, de outro mundo

possível. “É tempo enfim de deixar de ser o que não somos”(Quijano: 2005, p. 274).

Quem determina a inclusão/exclusão são os mesmos que determinam quais os

saberes constituem o sucesso/fracasso do outro. E esta vem se apresentando – até este

ponto de nossa caminhar – como uma de nossas principais questões: quem são os “outros”

da/na avaliação?

Se o outro da ordem, não é uma outra ordem, uma outra possibilidade de existência

e saber, mas sua negação, o outro da avaliação – seja ele o aluno, a professora a mãe – é

alguém sobre quem me cabe decidir se pertence ou não a minha ordem de saberes e

valores. Neste sentido, avaliar o outro, ter um juízo de valor sobre o outro é retirar dele –

ou negar-lhe – a possibilidade de romper com o binômio dentro ou fora, oferecendo-me a

possibilidade de compreendê-lo dentro de sua própria ordem, de saberes e valores.

Negação que o coloca invariavelmente fora, enquanto reduz igualmente as minhas

possibilidades de aprender com ele sobre a complexidade do mundo.

120

E esta questão desenha-se como uma das que mais toca a professora Aline, e neste

primeiro momento a questão que de certa forma, mobilizou o grupo. Como avaliar a

experiência única e singular de um sujeito único e singular a partir de parâmetros

universais?

O garoto teve um crescimento pessoal tão grande.(...) Estava vindo limpo, com o sapato menina! Preto da escola, com meinha branca, uniformizado: “Tia hoje eu tomei banho!”. Ele passou até a valorizar o momento de vir para escola. E mesmo assim eu tive que dar um indicador R pra ele. Eu pô, ele é R se eu comparar com os outros trinta, mas o garoto teve um crescimento pessoal tão grande, e eu não pude dar MB. Porque eu comparando ele com o outro, ele não é tão bom quanto o outro sabe? Eu tenho que classificar o cara e é isso que me entristece. %o final eu fico entristecida com isso.” (Aline).

A professora sente-se injusta, perversa, triste. Não possui meios para dar

visibilidade ao processo vivido por seu aluno como ser humano que durante esta

convivência com a professora reconstruiu sua autoestima aprendeu a valorizar a escola,

aprendeu que era capaz de aprender. Ela sabe ou intui, que na realidade as informações

sobre o processo de aprendizagem e desenvolvimento desta criança não encontram espaço

para sua expressão.

“Simultaneamente, essa avaliação permite verificar o rendimento da professora; o resultado de sua turma indica seu desempenho, que pode ser medido, produzindo uma classificação na qual a professora é exposta. Ao avaliar também é avaliada. (Esteban, 2005: p.21).

Sabe que estão sendo esperados – da professora e do aluno – outros saberes. Sabe

que sofrerá um julgamento – pelos outros professores do futuro – e com medo, prefere

deixar o aluno sozinho em seu fracasso, do que assumir o sucesso da experiência vivida,

mas não faz isso impunemente.

Eu acho que você tem que pegar a realidade do aluno antes, durante e no final do processo. É aquela coisa é o aluno com ele mesmo. Eu avalio ele com ele, o potencial que ele me mostrou que ele é capaz ou o avalio com aquele que já estava à frente, num processo cognitivo à frente dele e que no final rendeu mais do que ele? E aquilo o que a realidade escolar vai me cobrar? Qual é a realidade? Se a criança da Cristiane vai para antiga terceira série que é o primeiro ano do segundo Ciclo. Qual é o “nível”? Qual é o conhecimento acumulado tem que ir para começar aquele processo de primeiro ano do segundo Ciclo? Então é nisso que eu me debato muito, como avaliar esse aluno sem ser perversa? Porque às vezes eu me sinto perversa.

Volto no tempo e lembro da professora R. que entrou em minha sala com a mesma

questão. O conflito da professora Aline é um conflito entre desejo de expressar o sucesso

das experiências vividas e o desejo de ajustar-se ao sistema, à ordem estabelecida. Ela

121

compreende como professora que desenvolveu com o seu aluno uma trajetória positiva,

vencedora de muitos obstáculos, produtiva. No entanto compreende que está submetida

não só a um parâmetro oficial, como a uma cultura escolar. Cultura que ela mesma partilha

ao esperar conhecimentos prévios de sua turma de alfabetização. Cultura que ainda revela

em grande parte o quanto é prisioneira das concepções cartesianas, o quanto ainda acredita

que só é possível ensinar partindo do simples para o complexo, dos estados de prontidão,

dos pré-requisitos. Cultura tantas vezes presa à lógica da ordem. Cultura que não

compreende a pluralidade, e por tanto não compreende a existência de outras lógicas e

fazeres possíveis.

Aline encontra-se dividida entre seu desejo legítimo de oferecer aos seus alunos

uma escola pública de qualidade – como ela se orgulha de ter tido – que permita a eles

como permitiu a ela mesma ter orgulho da pessoa que se tornou, e o desejo de valorizar as

conquistas desses alunos. Dividida entre o que deve ser valorizado ou não na avaliação.

Serão os saberes todos iguais, muitas vezes nos perguntamos? Como a professora

Aline reflete: “Essa questão da gente valorizar o que o aluno traz, eu não sou contra não,

mas o aluno tem que participar desse saber que a escola se propõe a ensiná-lo”. E Aline

não diz isso de qualquer lugar. Diz isso do lugar da menina filha da servente, nascida em

uma família pobre que precisou se superar inúmeras vezes para alcançar um lugar que

sabia não ser destinado, de graça, a ela. Um lugar que precisa ser conquistado. Que às

vezes cobra altos pedágios para quem quer passar. Em seu compromisso com estas

crianças, com as quais se solidariza na origem e na história, sabe – ou acredita – que

precisa garantir que os “saberes da escola” sejam aprendidos, para que tenham alguma

chance nessa batalha. Aline, de certa forma, tenta garantir o “tudo que tem direito” que o

aluno Bruno do PEJA acredita ser papel da escola ensinar. É preciso entender que é deste

lugar que eles falam. Lugar legítimo.

Isso me faz pensar no quanto histórias diferentes, produzidas em contextos

diferentes, dotam às vezes o mesmo texto – no caso, a inclusão dos sujeitos em certo

universo de saberes – de sentidos muito diferentes. No entanto, a questão da relação entre

os diferentes saberes e sua legitimação pela sociedade, permanece. Se o olho do furacão

das questões curriculares – o que ensinar – no cotidiano consegue se flexibilizar e atender a

diferentes demandas culturais, políticas e pedagógicas, quando na forma de avaliação

torna-se um verdadeiro vendaval. Ao determinar o que será válido para permitir a

caminhada sem retenções, para legitimar os alunos e professores como um sucesso, a

avaliação atravessa de forma feroz as discussões curriculares, muitas vezes tentando impor

122

de forma autoritária limites às práticas curriculares da sala de aula, ou seja, temos a

“liberdade” de ensinar tudo o que quisermos, respeitarmos os saberes dos alunos,

trabalharmos diferentes textos, diferentes lógicas, mas no final o que importa é que ele

tenha a competência de realizar a “minha” prova. Faça o que quiser desde que faça o que

eu mando. Seja o que quiser, desde que no final, seja minha imagem e semelhança.

As diferentes formas de compreender o mundo e de buscar respostas para as

questões que nos desafiam não tem naturezas diferentes? Com certeza. Existem diferentes

formas de pensarmos, compreendermos e representarmos o mundo (a arte, o mito, a

religião, a ciência, a política..). Existem diferentes formas de elaborarmos as perguntas e

não raramente estas formas (como a cartesiana) que aprendemos terminam por determinar

as respostas que encontramos.

Não foram poucos os intelectuais que investigaram estas diferentes formas, não são

poucos os que debatem a existência dessas diferentes formas. Minha questão, entretanto, é

perguntarmo-nos: quem determinou que existe uma relação hierárquica entre elas? E por

quê? Quem determinou que mesmo quando o aluno chega a uma conclusão correta, existe

uma única forma correta de raciocínio, uma única fórmula, uma única possibilidade de

execução, interpretação, leitura?

Educadores e educandos são sujeitos que se movem em uma instituição como

vimos, notoriamente e historicamente seletiva e excludente. E torna-se cada dia mais

seletiva e excludente porque – entre dezenas de outros aspectos – está fundada na lógica

dos saberes hierárquicos, que como vimos ainda se constituem um paradigma bastante

forte para alguns professores.

Quando um saber – maior, melhor, mais complexo, mais completo, mais eficaz,

mais objetivo, enfim mais – se elege – e é reconhecido – como “o saber”, posiciona tudo o

que venha a ser vivido, experimentado e aprendido em relação a si mesmo; voltamos a

falar de uma ordem que não concebe a possibilidade da coexistência, a possibilidade da

pluralidade e da diferença fora de uma verticalidade na qual ocupa o ápice. Posição que

naturalmente não deseja ver subvertida por uma horizontalidade de saberes que ameaçam

sua “natural” – e tantas vezes insegura – superioridade.

O (a) professor (a) é um sujeito de muitos saberes. É sua obrigação ética e

profissional adquirir, e aprofundar constantemente estes saberes. Mas nesse aprofundar é

preciso que ele (a) questione a ideologia das hierarquias dos saberes, para buscar

profundidade não apenas no mesmo, mas no outro. “Ad-mirar implica pôr-se em face do

123

“não-eu”, curiosamente, para compreendê-lo. Por isto, não há ato de conhecimento sem

admiração do objeto a ser conhecido”(Freire, 2002: p.63).

É preciso que esta profundidade seja produzida na tensão da polissemia das

palavras, na pluralidade das formas, na diversidade da vida. E isso o professor, a

educadora, aprende com seus alunos e alunas, com seus colegas, com sua família...aprende

na feira, no mercado, no banco. Aprende nos livros e nos filmes. Aprende com adultos e

com crianças. Aprende com o não-eu. Aprende com o radicalmente “outro”. Porque

ninguém mais que o outro tem esse poder de me mover do meu cômodo lugar de saber,

ninguém mais do que o outro desfralda minhas contradições, meus não ditos, meus mal-

ditos. Enquanto o mesmo no máximo me provoca para aprofundar aquilo que já sabemos e

cremos, o outro me expulsa de minhas certezas e me coloca no caminho de aprendiz outra

vez...com o outro eu tenho consciência de minha incompletude e por isso sigo aprendendo,

e por isso posso ensinar. Como nos mostra Cássia:

Ele me ensinou montaria, como botar a cela no cavalo, Me ensinou um monte de coisa porque essa é a vivencia dele. Quando eu vi da sala, eu dando aula para turma da tarde, e ele lá na beira do rio com o cavalo achei aquilo interessante. %a próxima aula o botei na frente da turma “Me explica como esse negocio de cavalo, porque eu não sei?”, ele foi explicou como botava cela, como é que laçava. A gente tava dando uma recreação e o cavalo dele estava ali no outro terreno, e ele falou “quando acabar aqui eu vou pegar o cavalo e vou levar pra casa”, mas como você não está com a cela, não está com nada? “não professora é assim” e ai ele me mostrou como é que fazia. Eu fiquei maravilhada.(Cássia)

Quando compreendemos que o mundo pode ser aprendido de muitas formas, de

várias maneiras, e que é exatamente na forma como essas milhares de maneiras se

tencionam, se desafiam, se hibridizam que o saber pode se aprofundar, que começamos a

compreender o potencial transformador do diálogo em Freire e sua necessidade para a

construção de uma escola mais democrática.

“%o fundo ninguém chega lá, partindo de lá, mas de um certo aqui. Isto significa, em última análise, que não é possível ao (a) educador (a) desconhecer, subestimar ou negar os “saberes de experiência feitos” com que os educandos chegam à escola” (Freire, 1992: p. 59).

Porque ao fazê-lo o educador nega não só ao aluno a possibilidade de “chegar lá”

ou seja, explorar outro universo de saberes produzidos, como também não se permite a

“chegar lá” explorar todo o universo de saberes produzidos por seus alunos em suas

trajetórias – mesmo quando tão curtas como no caso das crianças – que são expressões

legítimas dos sujeitos em sua ação no/com o mundo.

124

Este projeto como vimos não é uma proposta nova ou original. Na verdade foi o

projeto da vida de importantes educadores brasileiros como Anísio Teixeira e Paulo Freire

entre muitos outros, que desde as primeiras décadas do século XX já produziam em suas

obras as sementes para a construção de uma escola pública comprometida com a formação

de um cidadão e de uma democracia que buscassem superar as desigualdades e a nossa

subalternização política, econômica e social e cultural.

Os desafios para a construção desta cidadania, para a construção de uma

democracia latino-americana, estendem-se para além da distribuição mais justa dos bens

produzidos, estende-se para além da inclusão de uns no mundo pensado, organizado e

gerido por outros.

Nosso desafio encontra-se hoje, não somente, mas também, em construir uma

sociedade democrática onde possamos incluir de fato cada vez mais sujeitos na discussão

sobre quais os bens (materiais e intelectuais) nos são realmente necessários e importantes;

quais os saberes são realmente necessários e importantes para cada realidade geo-política-

social; ao invés de pressupormos, de prescrevermos, de pré-conceituarmos o que é

importante e necessário para um “todos” que não existe enquanto unidade, mas como

pluralidade.

Os desafios para a construção desta educação, anunciados em nosso passado

relativamente recente, continuam a espera de mais educadores, de mais intelectuais,

dispostos a pensar com o mundo, através de um diálogo que não vise silenciar o outro, mas

aprender com o outro, construir com o outro, novas possibilidades de aprendizado, novas

possibilidades de existência. O convite está feito.

125

VII. SUCESSOS & FRACASSOS...

“Chamo de fracasso premeditado aquele resultante da omissão da ação das autoridades, das políticas públicas; o fracasso possível é aquele decorrente de condições eventuais e circunstanciais. Considerar eticamente a existência de fracasso premeditado é um choque; este é, sem dúvida alguma, quase criminoso”. (Aldaíza Spozati, 2000: pág. 23).

O fracasso premeditado, apesar de ser constatado, é um filho feio e, portanto, sem

pai. Nos diferentes “projetos” que a modernidade tem para resolver o problema do refugo

humano, produzido por suas próprias lógicas e práticas, assumem e tratam o fracasso como

eventual e circunstancial, e não raramente, natural e individual. Ou seja, ele simplesmente

nasce, surge, existe sem que ninguém seja responsável – histórica e socialmente – por seu

surgimento.

Projetos de diferentes concepções políticas e ideológicas defendem em um discurso

quase que uníssono o mesmo: correção do fluxo escolar (defasagem série/idade), formação

do cidadão para a democracia e inclusão social, com ênfase no mundo do trabalho. Estes

princípios estão presentes em nossa LDB (9394/96) assim como nos parâmetros e

diretrizes curriculares. Contudo, estes princípios ganham diversos sentidos nas vozes dos

diferentes sujeitos que os utilizam para justificarem seus projetos.

Neste sentido, o Programa Acelera Brasil, produzido e lançado em 1997 pelo

Instituto Aírton Senna (com apoio do FNDE/MEC e Petrobras) nos oferece pistas

interessantes para pensarmos as lógicas que vem se consolidando em muitos projetos

defendidos pelas políticas públicas para educação nas últimas décadas. E como nestas

lógicas são compreendidos os lugares do sucesso/fracasso escolar.

O Instituto Aírton Senna surge em novembro de 1994, e se apresenta como uma

ONG dedicada a propor “soluções criativas, eficazes e de grande impacto” para os

problemas educacionais do Brasil. Desde 2004 integra a rede de cátedras da UNESCO e

colabora diretamente para atingir as metas propostas pela ONU para países “como” o

Brasil.

Apesar de ser uma instituição voltada exclusivamente para a educação sua

presidência e conselho consultivo não conta com a presença de educadores, mas

representantes da mídia e empresários dos mais diversos setores50.

50

Presidente da Splice do Brasil Telecomunicações e Eletrônica; Presidente da Gallery/Oggi/Bricon/Artell Editora; Jornalista da Rede Globo de Televisão; Presidente do Grupo Facility; Fundador-presidente da LUCCRA – Lucro com Responsabilidade; Fundador-presidente e sócio-proprietário da G7 Cinema; Jurista;

126

Com o objetivo de substituir a política de repetência – que concordamos é perversa

e excludente – por uma política de “sucesso” inspirado nas soluções que deram certo em

diferentes partes do mundo estes programas ignoraram, no entanto, as óbvias diferenças

sociais, políticas, econômicas, culturais, projetos que geralmente selecionam apenas as

partes que cabem as professoras, alunos e família (apostilas, provas, métodos), mas

excluem do pacote de “importação” as partes que cabem ao Estado: infraestrutura, recursos

materiais e humanos, salários compatíveis e uma vida digna para essas crianças e suas

famílias.

O programa Acelera Brasil oferece em um pacote fechado, “ estruturado”, aos

municípios e estados, todos os passos que, “se tiverem vontade política”, devem seguir

para que em quatro anos “coloque em ordem” o fluxo escolar através de programas de

Aceleração que permitem aos alunos “pularem” depois até duas séries. Viviane Senna,

presidente do Instituto explica melhor:

“O Programa assume a escola e os professores como são, reconhecendo suas potencialidades, bem como suas limitações e dificuldades. Por essa razão, desenvolve os materiais voltados diretamente para o aluno. Esses materiais são fortemente estruturados, de maneira assegurar que mesmo um professor inexperiente, ou com preparação insuficiente – como é o caso de muitos professores no Brasil – seja capaz de proporcionar ao aluno um programa de qualidade. Os materiais incluem uma variedade de abordagens e atividades, com elevado grau de participação dos alunos na sala de aula, na escola e na comunidade.(...) Baseiam-se em temas práticos, do quotidiano, e de interesse do mundo infanto-juvenil.(Viviane Senna Lalli, 2000: pág. 146)

Aqueles que me conhecem – e por tudo que leram até aqui, com certeza já me

conhecem um pouco – sabem o profundo desafio que encontro ao iniciar essa conversa.

Levanto-me do computador e sirvo-me de uma taça de vinho. Retorno, respiro... suspiro.

Compartilho com vocês, e sei que muitos compreendem, meus longos minutos de

silêncio. Às vezes preciso de silêncio para acalmar a indignação da professora e deixar a

pesquisadora refletir. Às vezes, preciso da indignação da professora para lembrar à

pesquisadora qual o sentido de nossa luta, de nossa vida, de nossa escrita.

Olho para as avaliações do Se Liga, olho para as avaliações da Prefeitura do Rio.

Olho para as avaliações da Provinha Brasil. Como evitar um certo cansaço diante da

história que se repete? Como deixar de pensar, o que foi feito de tudo que aprendemos,

discutimos, de todos os conhecimentos que produzimos sobre o ensinoaprendizagem, sobre

Presidente da A@FAVEA; VP da Martins Comércio e Serviços de Distribuição S/A; Presidente do Conselho de Administração da Concórdia Holding; Presidente da EAZ Participações Ltda; Area Director Europe da AMCHAM; VP Executivo do Banco Votorantin S/A.

127

desenvolvimento e produção de conhecimento humanos? Como voltamos a este ponto?

Depois de tudo o que já vivemos? Talvez certo darwinismo em mim nutrisse esta

esperança tola de lutarmos novas batalhas, que evoluíssemos em nossas discussões, mas a

realidade desfaz esta ilusão e me lembra que os tempos históricos não são lineares,

convivem, nascem, morrem, renascem, não exatamente os mesmos, mas tantas vezes sob

os mesmos fundamentos, mostrando as diferenças de quem olha o mundo de certos

lugares...

Este sentimento levou-me a refletir sobre como em apenas duas décadas, os

discursos pedagógicos hegemônicos na década de 80, a pedagogia crítica, progressista, que

se fortaleceu com a abertura política do país, com a volta de vozes como a de Paulo Freire,

Frei Beto, Darcy Ribeiro, entre tantos outros que inspiraram toda uma geração de

educadores, que tiveram acesso finalmente às obras “censuradas” de Vigostsky, Bakthim,

Freinet, foram, ou estão sendo invisibilizadas por projetos neotecnicistas?

Como os debates sobre alfabetização e letramento, sobre psicogênese e

neurolinguística, construtivismo e socio-interacionismo, sobre as diferentes temporalidades

propostas pela escola Ciclada e Seriadas, ou seja, debates sobre ensinoaprendizagem, estão

dando lugar em nossos corredores escolares à discussões sobre como melhorar índices e

provas, como conseguir prêmios e bônus? Como podemos transformar nossas escolas em

agências preparatórias para provas e simplesmente silenciarmos sobre tudo que vivemos e

aprendemos?

Estas angústias levaram-me a buscar compreender as relações entre os percursos

políticos destas duas décadas e como eles vem atravessando nossos discursos e práticas

cotidianas. Sem a pretensão de fazer uma análise de conjuntura política e social – o que

outros pesquisadores já fazem com muito mais competência do que tenho – necessitei

apenas retormar algumas questões dessa macro estrutura para compreender como a história

deu esta volta sobre si mesma. Sendo a Aírton Senna uma ONG tentei compreender como

esta relação entre o chamado terceiro setor e a administração pública foi acontecendo.

Segundo Souza (2009)51, as Ongs surgem no Brasil em um momento muito

peculiar: entre as décadas de 60 e 80, ou seja, surgem exatamente no momento em que

partidos políticos e representações sindicais eram perseguidos. Surgem como organizações

populares legítimas para tentar enfrentar os problemas sociais locais. Surgem não apenas

51

Professor Doutor da Universidade de Viçosa que publicou sua tese sobre Movimentos Sociais,

Ongs e Educação.

128

como uma Ong, organização não-governamental, mas muitas, como organizações contra-

governamentais.

Se em um primeiro momento as Ongs integraram um movimento de resistência e

oposição ao governo, a partir da década de 90, com a consolidação do projeto neoliberal no

mundo ocidental como política hegemônica globalizada, muitas Ongs sofrem uma

metamorfose, e outras tantas são criadas, não mais em uma perspectiva contra-

governamental, mas em uma perspectiva de parceria, principalmente com a articulação – e

tantas vezes dependência – das Ongs aos fundos estatais e/ou internacionais.

Muitas Ongs – e nunca é demais lembrar da pluralidade de natureza das Ongs e das

diferentes opções político-ideológicas que elas contemplam – entram neste cenário, e

mesmo sendo instituições sem fins lucrativos, assumem os discursos, interesses e ideologia

defendida pelos setores privados, ou a chamada ideologia de mercado. Nos discursos

produzidos em defesa de sua atuação, a afirmação de que o Estado – tomado com uma

totalidade e ignorando-se os muitos sujeitos que o formam – é ineficiente, incompetente,

corrupto e, portanto incapaz de produzir ações “profissionais” competentes, mais técnicas e

eficazes. A solução? Transferir a responsabilidade estatal sobre vários setores para a

coordenação ou controle privado. Um outro argumento usado para transferir as atribuições

públicas para as Ongs – principalmente as comunitárias – é de que estas conheceriam

melhor a realidade das comunidades e por isso sua ação seria mais eficiente. Este não é,

com certeza, o caso da ONG Aírton Senna.

O Instituto Aírton Senna não surge de um movimento social ou político, não surge

vinculada a comunidades ou representa um grupo de educadores. Surge como uma

organização autossuficiente – financiada pelos royalties do financiamento das marcas

Aírton Senna, Senninha, Senninha Baby e do investimento dos “aliados socialmente

responsáveis” como: Bradesco capitalização, Instituto Unibanco, Brasil Telcom, Microsoft

Educação, Simens, Suzano, Vale do Rio Doce entre outros. Surge, portanto, vinculada aos

representantes dos setores empresariais e financeiros da sociedade, as elites dirigentes.

Representa os interesses, e uma certa compreensão utilitária e funcionalista, pragmática e

reduzida do que seja uma educação “de qualidade” destinada as classes populares, que

parte majoritária deste segmento, possui.

No site não deixa claro como estabelece esta parceria com as cidades e estados que

contempla com seus programas. Sendo autossuficiente e contando com tão ricos aliados

“socialmente responsáveis” oferecem gratuitamente seus programas aos governos? Como

se estabelece financeiramente esta “parceria”? Considerando que imagens do Senninha

129

estampam todos os materiais dos projetos Acelera e Se Liga, qual o custo em royalties

pago pelos governos que adotam os programas e seus materiais?

Estas informações não estão facilmente disponíveis, mas lemos na página do MEC

em novembro de 2009 que o investimento do governo Federal – via Ongs como Instituto

Aírton Senna e o Instituto Alfa e Beto (outra ONG que oferece o mesmo tipo de serviço) –

em programas emergenciais de correção de fluxo em vários estados que “pediram socorro”

seria da ordem de 78 milhões de reais. Milhões dos cofres públicos destinados ao setor

privado, para fazer o que o Estado deveria fazer e não faz. Para corrigir o fracasso escolar

produzido no descaso e falta de investimentos nas séries iniciais da educação básica.

O dinheiro que falta para os investimentos em infraestrutura, salários, recursos

materiais e humanos, parece sobrar para o terceiro setor. Então o que falta para a educação

não é exatamente dinheiro, mas falta vontade política para assumir suas responsabilidades

e investir diretamente nas escolas garantindo a estas maior autonomia e eficiência,

preferindo omitir-se e transferir para o terceiro setor a responsabilidade de implantar

políticas públicas para a educação. Mas sendo estas Ongs do terceiro setor, uma

representação dos interesses privados, como garantir uma política pública comprometida

realmente com o interesse das classes populares?

A chamada política de “parceria” que traz a ONG Aírton Senna para dentro de

tantas redes públicas, nasce exatamente na consolidação de um certo discurso hegemônico

em nossa sociedade de que o Estado não tem capacidade de oferecer serviços de qualidade,

e que, portanto, a solução é a privatização dos serviços públicos. Um destes caminhos para

a privatização é a chamada “parceria” com certas Ongs. Mas será que o que falta ao Estado

Brasileiro é realmente competência? Ou será sua filiação ideológica com este discurso uma

posição confortável? Ao transferir a responsabilidade das soluções para o terceiro setor

cabendo ao Estado apenas pagar a conta e apresentar os resultados, este deixa de assumir

sua parcela de responsabilidade, podendo capitalizar politicamente os resultados: o sucesso

é nosso, o fracasso, é sempre dos outros.

No site do Instituto Aírton Senna, encontramos a descrição de seus programas

orientados para a Educação formal: Acelera Brasil, Se Liga, Circuito Campeão, Gestão

nota 10 e Fórmula da Vitória. Destaco os dois programas implantados na Rede Municipal

do Rio de Janeiro: O primeiro a ser implantado na rede o Se Liga, segundo o Instituto:

O programa, criado em 1999, é emergencial e ajuda a corrigir o fluxo escolar do Ensino Fundamental porque combate o analfabetismo nas primeiras séries, além de contribuir para a diminuição da evasão escolar. Em um ano, alfabetiza

130

crianças que repetem, porque não sabem ler nem escrever, para que possam frequentar o Acelera Brasil e, depois, retornar à rede regular. Os alunos que repetem um ou mais anos são avaliados para checar seu nível de leitura e escrita. Caso não alcancem o desempenho desejado, entram no Se Liga. Em salas de, no máximo, 25 alunos, um professor da rede de ensino, devidamente capacitado, aplica a metodologia do Programa que, além da ênfase dada à leitura, oferece às crianças materiais específicos que facilitam e qualificam o aprendizado. O Se Liga é política pública nas redes de ensino da Paraíba, Pernambuco, Piauí, Sergipe, Tocantins e Distrito Federal. Está presente em 890 municípios de 25 Estados e DF.

O segundo programa adotado pela rede, o Acelera Brasil, é assim descrito no site

do Instituto Aírton Senna:

Criado em 1997 o Acelera Brasil é um programa emergencial, de correção de fluxo do Ensino Fundamental. Ele combate a repetência que gera a distorção entre a idade e a série que o aluno frequenta e, também, o abandono escolar. Os alunos alfabetizados, mas que repetiram o ano, são agrupados em salas de até 25 crianças e acompanhados por um professor da rede de ensino devidamente capacitado para aplicar a metodologia do Programa. Tanto os alunos como o professor têm acesso a material didático específico, além de monitoramento e avaliação constantes. As aulas são pensadas para cumprir 200 dias letivos com atividades integradas à realidade dos participantes. Há lições de casa, trabalhos em grupo, momentos voltados à leitura e um acompanhamento personalizado pelo professor. O Acelera Brasil é adotado como política pública nas redes de ensino da Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul, Sergipe, Tocantins e no Distrito Federal. Está presente em 955 municípios de 25 Estados e DF.

Por onde começar nossa conversa, sem esta sensação de que tudo que tenho para

dizer já foi tão brilhantemente dito por tantos autores mais talentosos que eu, por tantos

pesquisadores mais competentes que eu, e de certa forma, sem este amargor que nos trás a

necessidade, a obrigação histórica de dizer de novo...

Olho para as avaliações do Se Liga, programa do Instituto Aírton Senna implantado

para a correção de fluxo pela Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, e que vem sendo

adotado por outras Secretarias de Educação, vendido como um programa de excelência

educacional, elaborado por um conjunto “especialistas”.

Avaliação de Português:

HOJE É DIA DE CIRCO

_ HOJE TEM MARMELADA?

_ TEM SIM, SENHOR!

_ HOJE TEM GOIABADA?

_ TEM SIM, SENHOR!

_ HOJE TEM BANANADA?

_ TEM SIM, SENHOR!

131

_ E O PALHAÇO, O QUE É?

_ É LADRÃO DE MULHER!

_ E ESSA MOÇA NA JANELA?

NÃO TEM NO FOGÃO UMA PANELA?

_TEM SIM, SENHOR!

_ HOJE TEM ESPETÁCULO?

_ TEM SIM, SENHOR!

_ ENTÃO, VENHA CRIANÇADA!

1. QUEM ESTÁ NA JANELA, QUANDO O PALHAÇO PASSA, É UMA

(A) MULHER.

(B) CRIANÇA.

(C) MOÇA.

Avaliação de matemática

1. Alice é muito criativa e tem uma imaginação que vai

longe!

Um dia ela se imaginou no país das maravilhas como

na estória que havia lido. Lá todos os bichos falam. As

flores também falam. Até as cartas de baralho falam!

Legenda de acordo com a história:

Chapeleiro = macaco

Dodô = pássaro

Rainha de Copas = a rainha

Rei de Copas = o rei

Valete de copas = “um dos guardiões” soldado

Coelho Branco = coelho

Gato risonho= gato

Pinte as personagens que responde a pergunta abaixo:

(A) Quem está entre o rei e a rainha de copas? 52

Eu, como professora, em meus limites e dificuldades, fico buscando compreender

como o lindo palhacinho que é ladrão de mulher (mas vê uma moça na janela quando

passa!) e Alice no País das Maravilhas se apresentam como temas práticos do quotidiano

infanto-juvenil dos rapazinhos que formam a maioria dos alunos da turma do Se Liga em

minha escola? Talvez sejam temas do cotidiano das demais crianças das escolas do Rio.

Talvez de algumas. Talvez algumas professoras, como praticantes (Certeau) que são,

utilizem sua experiência e compromisso e consigam torná-los significativo, consigam

construir com seus alunos e alunas algum sentido para os temas que simplesmente caem

52 Avaliações integrais em anexo.

132

em nossas salas de aula como naves extraterrestres que pousam em uma quadra de escola

de samba.

Acredito que muitas outras conseguem encontrar brechas e rotas de fuga que

permitam tecer relações pedagógicas que produzam aprendizados mais importantes e

significativos do que “pintar o personagem entre o Rei e a Rainha de Copas”. Acredito

também que se deva creditar muito mais a elas e aos alunos e alunas o esforço para superar

a falta de sentido dos materiais oferecidos, as experiências bem sucedidas, consideradas

como sucesso. Consideradas porque a avaliação do que seja um leitor/escritor alfabetizado

varia de concepção para concepção. Para alguns o aluno ser capaz de ler e escrever “o tatu

na toca” é uma referência para julgá-lo alfabetizado. Para outros esta competência envolve

muito mais.

No entanto, este movimento de superação e reinvenção para não desperdiçar mais

um ano da vida escolar dos alunos com cópias e exercícios inócuos, deve ser bem mais

difícil para os professores e professoras inexperientes, com uma formação insuficiente

como sugere Viviane Senna, e principalmente para os professores e professoras inseguros

(as), que tendem a agarrar-se a estes materiais como principal metodologia de ensino e

fonte de informações.

Estas avaliações feitas no mês de outubro (2009) correspondem a terceira avaliação

realizada pelas turmas do Se Liga, onde se encontram crianças e jovens que deveriam pela

lógica idade-série estar cursando o sexto, sétimo ano de escolaridade.

Os alunos que compõem a turma são extremamente faltosos. A professora tenta em

vão seguir o material “fortemente estruturado” que não prevê a ausência do aluno – apesar

de esse ser, não o único, mas um dos principais motivos que conduziram os alunos a este

grupo em particular – nem os muitos dias letivos ocupados por festas, reuniões, ou

excluídos por recessos de feriados, falta de luz, licenças médicas da professora etc. Sendo

obrigada a seguir para a lição seguinte com toda a turma, que deve caminhar sempre junta,

a mais convicta professora é vencida pela concretude de um cotidiano que não se define

em um calendário.

A “variedade de abordagens” resume-se a atividades acartilhadas utilizadas – e

criticadas – há mais de 50 anos, mais, muito “mais do mesmo”: Lição 1: o Tatu. Lição 2:

Panela e Faca. Copie, copie, reproduza, copie.

Ao final deste processo (criativo, eficaz e de grande impacto?) e com o fim do

programa Se Liga – segundo a portaria de matricula para 2010 – os alunos capazes de

escrever frases como “o tatu na panela” considerados, portanto, alfabetizados, deverão

133

ingressar em turmas de “Aceleração” para continuar seus estudos e poderem ser

matriculados no 6º ou 7º ano de escolaridade (antigas 5ª e 6ª série).

E os alunos que mais uma vez fracassaram? Aqueles que após um ano nestas

classes diferenciadas não aprenderam nem mesmo estes rudimentos da escrita e da leitura?

Estes (acreditem ou não!) foram encaminhados de volta ao fluxo normal, ou seja, foram

matriculados nas turmas de 4º ou 5º ano, onde poderão – e com certeza muitos serão –

reprovados até atingirem a idade de abandonarem a escola, ou na melhor das hipóteses,

serem encaminhados ao PEJA, onde finalmente deixarão de ser uma estatística indesejável.

O programa não admite a possibilidade de fracasso, ou seja, repetência do aluno no Se

Liga, então ele permanece um ano na escola, alfabetiza e contabiliza os “seus” sucessos,

nos devolve os que fracassaram no programa, e parte. Nós continuamos.

Após os primeiros minutos de estranhamento, tentando compreender que lógica

orientava tal procedimento, a primeira vista absurdo e incoerente, percebi que diluídos no

fluxo dos números de alunos que terão êxito, serão devidamente escondidos dos olhos do

mundo ao tornarem-se apenas estatísticas “aceitáveis” de fracasso escolar.

Junte-se a isso o fato de que os alunos retirados do chamado fluxo, ou seja, aqueles

que passarão a integrar as turmas de “projetos”, não realizarão as avaliações externas,

uma vez que não fazem mais parte das turmas avaliadas. Em outras palavras, a primeira

providência que estes projetos de correção de fluxo garantem é que estes alunos não mais

comprometam as estatísticas do desempenho escolar com seus fracassos. O projeto entra

por uma porta, os alunos desaparecem pela outra e em menos de um ano podemos ir para

os jornais noticiar que nossos índices melhoraram. O problema é que a produção do

chamado fracasso escolar é uma torneira aberta e o fluxo desta produção parece ser bem

mais intenso do que a capacidade que temos tido, até o momento, de resolvê-lo.

Com sempre vemos nos desenhos animados: para uma faxina rápida, resolve-se o

problema do lixo espalhando-o debaixo do tapete. Investe-se (?) um pouco mais no que é

possível salvar e atira-se no mar de lama os que não “tem jeito”. De um jeito ou de outro o

problema do fracasso é resolvido e podemos ir para televisão anunciar nosso “sucesso” na

produção de uma escola de qualidade. No sucesso das políticas de transferência de

responsabilidade.

E nestes dois anos não faltaram anúncios, já que hoje em nossa rede, paralelo ao

sistema oficial de ensino, foram lançado vários projetos. Escola do Amanhã Se Liga, Re-

Alfa, Acelera, Fórmula do Gol, Alfa-beto, Nenhum a menos, Pequenos cientistas,

Educopédia, Voluntários, Estagiários, Professores de Elite... Projetos que nem sempre

134

produzem na prática a qualidade anunciada, e muito menos os resultados esperados. A

quantidade de projetos causa um congestionamento no tráfego de informações – que

preciso dizer desde 2001 quando ingressei, já era engarrafado – deixando professores

desorientados quanto à forma de trabalhar, avaliar, conceituar, relatar etc.

O que devo dizer? O que já foi dito e repetido tantas vezes, por tantos teóricos mais

capazes e mais eloquentes do que eu, ao longo da história da educação? Talvez.

Talvez ainda seja necessário continuarmos dizendo, continuarmos examinando as

lógicas e conceitos que se movem nestes projetos, já que eles insistem neste retorno

renovado às mesmas práticas que excluíram tantos, e por tanto tempo, da escola. Insistem

nas mesmas práticas que produziram este mundo, nosso mundo presente tal qual ele é,

mesmo que eu saiba que ele não é uma coisa só.

Há algumas décadas discutimos as diferentes perspectivas epistemológicas que vão

orientar e dar significado às nossas escolhas pedagógicas. Estudamos para compreender

como acontece o desenvolvimento e sua relação com a aprendizagem: nossas práticas

pedagógicas são profundamente atravessadas – mas não definidas – por como

compreendemos esta relação. Minha dificuldade como educadora em compreender e

aceitar certos projetos que são (re)introduzidos como novidades, consiste muitas vezes

nestas diferenças de perspectivas e crenças teórico-epistemológicas, outras vezes, em

aceitar que estas teorias sejam apenas ignoradas e tratadas como se a educação seja uma

ciência e uma prática de tal “obviedade” que prescinda de reflexões específicas podendo

ser reduzida em sua complexidade a simples manuais. Outras vezes, em aceitar que estes

manuais inspirados no mundo corporativo, no mercado financeiro, queira tratar a escola de

formação básica, o ensino fundamental onde afinal educamos crianças e formamos

pessoas, como uma linha de montagem.

Apesar da afirmação que os materiais – cartilhas e provas – são desenvolvidos

especificamente para os alunos, o programa primeiro desconhece quem sejam estes alunos,

em segundo, toma estes alunos – assim como aos professores e professoras – como um

grupo homogêneo. Os alunos fracassam todos pelo mesmo motivo? São todos iguais em

seus não-saberes? Todos os milhares da nossa rede? Todos os milhares do nosso Brasil? É

uma simplificação tão absurda da realidade sócio-cultural escolar que tenho dificuldades

de acreditar que existam “especialistas em educação” que realmente acreditem nisto.

Os fundamentos da pedagogia utilizada pelo Projeto Acelera ou pelo Se liga, não se

centra no aluno, tampouco no professor, sujeitos que desconhece. Centra-se na técnica. Tal

qual o projeto de educação defendido durante os anos de chumbo do governo militar, tal

135

qual o projeto defendido na antiga LDB 5692/71, mesmo ganhando novas e mais perversas

roupagens. Centra-se no que Luckesi observa como “senso comum pedagógico”:

“Em geral, e a não ser em uma minoria de casos, parece que o senso comum é o seguinte: para ser professor do sistema de ensino escolar, basta tomar um certo conteúdo, preparar-se para apresentá-lo ou dirigir o seu estudo; ir para uma sala de aula tomar conta de uma turma de alunos e efetivar o ritual da docência: apresentação de conteúdos, controle dos alunos, avaliação da aprendizagem, disciplinamento etc.” (1994: pág, 97).

No projeto proposto por este neotecnicismo para resolver os problemas de fracasso escolar

o senso comum pedagógico compreende que o professor bem formado deve ser o sujeito

capaz de aplicar, preferencialmente com a menor interferência pessoal possível, uma certa

técnica, um determinado método, que vão assim garantir a absorção de certos “conteúdos”.

O aluno é compreendido “como um ser incapaz de criar. Ele tem que reter e repetir os

conhecimentos e não inventá-los”. (Luckesi, 1994: pág 99). Por isso os materiais são

“estruturados” de forma orientar os alunos para as já velhas conhecidas – e igualmente

criticadas – atividades de reprodução, e apesar dos discursos produzidos defenderem um

“salto de qualidade”, um aumento da eficiência e eficácia da educação, o que impera

nestes materiais é a simplificação e redução do conhecimento, a tal ponto que este se torna

incompleto, incorreto53 e, portanto, irreal.

Atividades amplamente utilizadas nos anos de ouro do tecnicismo, onde eu e

Rosângela nos educamos e fomos adquirindo as lacunas que hoje percebemos em nosso dia

a dia e que percebemos na formação de muitos profissionais que nos prestam serviços.

Lacunas que muitas vezes são desafios que precisam ser superados para nossa atuação

como professoras. Uma escola que não forma o cidadão que defendo, e que tão pouco,

forma o técnico que diz pretender. Compreendo que por diferentes objetivos políticos e

ideológicos este projeto não se comprometa com o projeto de pessoa humana que eu,

Cássia, Rosângela, Aline, Cristiane, Kátia, e tantos outros esperam. Mas não deveriam

comprometer-se ao menos, com o projeto que dizem defender?

Serão estes conhecimentos fragmentados, simplificados e avaliados por

instrumentos de medidas reduzidos e, portanto frágeis, que produzirão “trabalhadores

para a economia globalizada”? Ou ainda, “sujeitos aptos para as novas tecnologias”.

Serão estes os conhecimentos que nossas escolas oferecerão aos alunos das classes

populares para “formar jovens que ingressem preparados no ensino médio, para se

53 Como por exemplo, fazer o aluno copiar várias vezes SSA SSE SSI SSO SSU ou RRA RRE RRI RRO RRU como se na divisão silábica – que não vou nem discutir a utilidade – de nossa língua isso fosse permitido.

136

tornarem profissionais e cidadãos aptos a fazer escolhas informadas.”(Cláudia Costin,

Secretária de Educação RJ). Temo que não.

Muitos de nós, educadores ou não, diante de tais avaliações, fossem nossos filhos bem

sucedidos ou não nelas, iríamos até a escola questionar a qualidade destes instrumentos.

Que valor realmente possuem? Que conhecimentos são realmente avaliados por

instrumentos tão reduzidos? Principalmente aqueles que defendem estes instrumentos

como balizadores do conhecimento de seus filhos, ficariam indignados se dois meses de

estudos fossem “medidos” por provas tão inócuas. Quem de nós, educadores ou não,

aceitaria ou acreditaria na seriedade de uma prova de matemática que atestasse a

competência de nosso filho para cursar o sexto ano – antiga quinta série – pedindo para

pintar a figurinha entre a figura A e B? Ou atestasse sua competência como leitor e escritor

em uma prova que pouco se lê e menos ainda se escreve?

Eu não defendo a prova como um instrumento de avaliação significativo. Não

acredito nela já faz anos. Mas os que dizem acreditar, os que defendem julgar e publicizar

resultados de sucesso ou fracasso escolar com base neste instrumento, precisam

comprometer-se no mínimo, com a qualidade técnica deste instrumento, precisam mostrar

seriedade e coerência pedagógica no que fazem. O que não aceito, nem como professora,

tampouco como pesquisadora, é que se faça todo um discurso contra a chamada

“aprovação automática” e se invente uma “aprovação facilitada”, mantendo o

descompromisso com a produção dos conhecimentos a que este aluno tem direito.

Quais os objetivos e justificativas para que o dinheiro público seja investido, não no

processo de fortalecimento dos anos iniciais de alfabetização, para prevenir e reduzir o

número de alunos que fracassam, assim como o aprendizado efetivo dos que não-

fracassam, mas em programas e projetos de “correção de fluxo” que após um ano de

investimento abandonam a escola e nos devolvem o “problema” que receberam para

resolver? Que concepção de conhecimento – e de processo de produção de conhecimento –

estes projetos, e as políticas públicas que os adquirem possuem?

Almerindo Janela Afonso nos ajuda a compreender como fomos produzindo e re-

produzindo estas concepções nas últimas décadas:

“A partir da década de oitenta, o interesse demonstrado pela avaliação, sobretudo por parte de governos neoconservadores e neoliberais, começou a ser traduzido pela expressão “Estado avaliador” (cf.%eave, 1988; Henkel, 1991b; O’Buachalla, 1992; Harthey, 1993). Esta expressão quer significar, em sentido amplo, que o Estado vem adotando um ethos competitivo, neodarwinista, passando a admitir a lógica do mercado, através da

137

importação para o domínio público de modelos de gestão privada, com ênfase nos resultados ou produtos dos sistemas educativos.(2005: pág.49)”

Por isso expressões como aluno/cliente, gerência de ensino, gestão escolar,

indicadores, performances, custo/beneficio, invadem o vocabulário escolar com uma

preocupação centrada no produto e não no processo da educação, contra-mão das

epistemologias antipositivistas, interculturais e etnográficas.

O Estado mostra então sua triste face. Mostra como governa segundo os interesses

privados das classes dirigentes e sua ideologia, e não a favor das classes populares. Mesmo

sendo, ou devendo ser, público em sua natureza, deixa-se invadir e ser administrado pelos

preceitos do mercado financeiro, pelas lógicas do capital. Contudo, isso ocorre, não só no

estado representado na figura de seus gestores. Não vamos cair no mesmo erro de pensar

que o Estado é apenas sua face visível, que é homogêneo, ou um corpo único.

A defesa do discurso privatista ocorre no estado representado pela professora (e

mães, merendeiras, diretoras etc) que reproduz os mesmos discursos de desqualificação da

escola pública e seus sujeitos (o povo brasileiro é sempre o outro!); que reproduz a

naturalização da seleção e exclusão como caminhos para a qualidade; que reproduz a

lógica e o discurso de que educação é uma mercadoria; que defende uma pedagogia

centrada em prêmios e castigos; e ao reproduzir vai tecendo as finas teias onde esta

privatização do estado se sustenta, se alimenta e cresce. Os discursos produzidos pelo

mercado, pelas elites, invadem o cotidiano e nele são produzidos e reproduzidos,

mostrando como o poder circula, cria capilaridades e nela se ergue e se sustenta, como nos

mostra Foucault. Por isso não basta combater os discursos e práticas produzidos no lugar

do visível, mas estes produzidos nos sussurros do cotidiano, estas práticas que em silêncio

vão produzindo exclusão. Combatê-los mostrando que neste mesmo cotidiano circulam

outras práticas, outros discursos, que produzem outros sucessos, que produzem outras

relações vem sendo nosso desafio.

O Estado avaliador vem se apoiando sobre alguns pressupostos que muitas de nós

professoras, ao enfrentar os desafios reais dos cotidianos das salas de aula sabemos

equivocados, ou no mínimo frágeis. Algumas experiências ao longo da história já

confirmaram estas fragilidades, no entanto a crença de que os seres humanos quando

vigiados e punidos produzem mais permanece. A crença no behaviorismo e ajuste do

comportamento aos objetivos desejados através de um programa de estímulos-respostas

permanece. A crença de que o pleno (é possível?) domínio dos meios produzirá os fins

desejados, permanece.

138

Precisamos ainda refletir que, mesmo sendo implantadas em vários lugares do mundo

ocidental, vinculadas a um projeto que atravessa fronteiras, a perspectiva do Estado

avaliador, que já vem sendo revista em alguns países por seus “efeitos” colaterais, ganha

no Brasil muitos matizes que nos são próprios. Concordamos que exista na agenda global

um projeto estruturado para a área da educação – o que encontramos claramente no site do

Banco Mundial, por exemplo – e que esta seja um campo estratégico para a implantação do

projeto neoliberal como um todo, contudo, como cada país, que possui uma história e uma

cultura própria traduz este projeto? Como as elites locais implantam esta agenda global?

Como os interesses locais são negociados com os internacionais?

Se no mundo capitalista globalizado (que é uma generalização que devemos tomar

cuidado!) possa existir um interesse sincero e um compromisso sério com o aumento da

escolarização e formação dos sujeitos mesmo que nesta perspectiva positivista e

produtivista – e não estou garantindo que exista – no Brasil precisamos enfrentar

realidades que nos são próprias, como nosso passado colonial e coronelista, nosso presente

colonialista e nossa estrutura governamental “reconhecidamente” e diariamente noticiada

como corrupta e burocrática. Sim é verdade, nossos governantes não são exatamente

conhecidos por sua histórica eficiência ou competência na gestão pública, mas não é

simplesmente incompetência, é uma opção ética e política. Esse é exatamente o aspecto

que favorece a privatização de tantos setores: saúde, educação, iluminação, coleta de lixo,

transporte etc. E que sobrevive mesmo após as pífias atuações dos setores privados e

recordistas em reclamações no Procon: como no caso da telefonia no Brasil, (privatizadas

em nome da qualidade provocada pela concorrência) bancos, planos de saúde, etc.

Precisamos nos perguntar se, mesmo partindo da lógica e concepção de produção

do conhecimento que defendem, mesmo com interesse na produção de estatísticas

favoráveis a imagem de um país do BRIC54, na prática, no cotidiano, no dia a dia das

escolas, o que estas políticas tem produzido qualitativamente de mudanças? E o que

compreendem por sucesso escolar? A perspectiva de sucesso é este medido por avaliações

como as que analisamos? O sucesso que esperam para os seus será o mesmo que defendem

para os “outros”? Que qualidade escolar é exatamente essa que defendem para a escola

pública, para as classes populares?

Precisamos refletir com calma sobre algumas das práticas defendidas pelo projeto

do estado avaliador e que são transladadas de uma cultura à outra, de um país a outro,

54 Brasil, Rússia, Índia, China. Países emergentes no mundo do capital globalizado.

139

ignorando suas particularidades. Práticas como: provas únicas, metas utópicas, prêmios por

“produtividade” para alunos e professores, exposição na internet dos resultados, relação

on-line com familiares, etc.

Durante todo este trabalho discutimos como este projeto ignora quem são os

sujeitos da/ na avaliação. Ao aderir à prática de avaliações únicas este Estado avaliador

ignora a diversidade de realidades sócio, econômicas e culturais vividas pelos sujeitos que

pretende avaliar.

O Estado avaliador ignora as realidades avaliadas, principalmente no Brasil, porque

conhecer ou reconhecer as realidades avaliadas implicaria assumir sua responsabilidade na

produção destas realidades, em outras palavras, se o estado avaliador iniciasse sua

avaliação pela própria atuação precisaria investir seus recursos para combater o fracasso

social que suas políticas ineficientes produzem antes de se preocupar com o dito fracasso

escolar.

Se o Estado (gestores) começasse avaliar a própria atuação talvez revertesse o

fracasso social produzido pela ausência de uma política séria de emprego e renda que

garantissem outra estrutura familiar para nossas crianças; o fracasso social da segurança

pública, para que nossas crianças não ficassem expostas e crescessem tendo como

referência modelos de violência (e sobrevivência); o fracasso, portanto, no cumprimento

do ECA (estatuto da criança e adolescente); o fracasso social do sistema de saúde pública,

onde nossas crianças não recebem o devido acompanhamento para suas necessidades e

demandas; se começasse a avaliar seu papel na construção do fracasso escolar perceberia

que após anos de discussão ignora-se o básico: número de alunos por turma, salários dos

professores, formação continuada, infraestrutura humana e física. Não houve nenhum novo

investimento na estrutura humana ou material das escolas – com exceção daquelas que são

produzidas como vitrine política – mas acredita-se na mudança dos resultados,

simplesmente porque agora faremos uma prova.

O estabelecimento de metas, que não raramente inicia-se muito alto, e diante da

realidade vai gradativamente sendo reduzido até produzir avaliações vazias. É outro

aspecto interessante que nós, professoras da rede, acompanhamos nestes dois anos de

projetos no Município do Rio de Janeiro. Os resultados positivos vão sendo fabricados a

custa do esvaziamento dos conteúdos. Passa-se uma tinta na parede mofada, mas não se

conserta o vazamento. Sabemos o que acontece.

Se nos discursos oficiais é apresentada uma escola rigorosa com a avaliação e

aprovação dos alunos, na prática acompanhamos provas que foram sendo “simplificadas”

140

para garantir a maior aprovação possível dos inúmeros candidatos a reprovação. Em outras

palavras: diante do número assustador de crianças que mesmo realizando provas com

questões que se repetiam de um bimestre para o outro, que mesmo fazendo uma prova final

com questões que foram uma coletânea de questões dos três primeiros bimestres, iriam

ficar reprovadas, nossa rede ofereceu ainda a possibilidade de uma nova prova, realizada

no meio das férias escolares, aplicada pela direção da escola, para reduzir o número dos

retidos.

Assim, se ouvimos com insistência o discurso sobre o fim da aprovação automática,

como prova de seriedade e qualidade do trabalho na rede, na prática continuamos

aprovando crianças que não correspondem aos “descritores” ou aos “parâmetros”

defendidos pelo projeto de acordo com os anos de escolaridade. Para justificar tantos

projetos e gastos, e sem conseguir atingir as metas estabelecidas, se cria uma nuvem de

fumaça sobre uma realidade incômoda: eles não aprenderam. Ah! Mas saltaram até dois

anos! Crianças com uma alfabetização frágil e mal consolidada são atiradas de volta “ao

fluxo” sem, no entanto, possuírem os conhecimentos – que para este projeto seriam pré-

requisitos – necessários à série/ano correspondente. Promessas de sucesso que não se

consolidam no cotidiano. Tiram e devolvem o aluno ao fluxo sem que ele ocupe, nele ou

fora dele, o lugar do sucesso. Sujeitos que não importa o lugar que ocupem na rede: fora ou

dentro do fluxo, permanecem nas margens. O que estas experiências, esse jogo de lugares,

cria nos sujeitos? Como eles compreendem e leem estes lugares que ocupam dentro da

escola? Talvez responder isso exija outra pesquisa...

Os prêmios por produtividade são um aspecto interessante, que se vincula com os

aspectos acima. Se inicialmente uma avaliação externa pode oferecer indícios, alguns

dados sobre o processo de aprendizado dos alunos, seu vínculo a uma premiação – em

dinheiro ou bens – pode tornar esta mesma avaliação uma fraude. Em um país que provas

de concursos e vestibulares são compradas, onde trabalhos e diplomas são vendidos no

jornal e na internet, podemos realmente acreditar na idoneidade deste processo? Queremos

realmente atestar e divulgar o “fracasso” destes alunos quando nossa sobrevivência está em

jogo?

Em uma realidade sociocultural como a nossa não é difícil imaginar os prêmios aos

alunos sendo trocados por mantimentos (e bebidas, e drogas, etc), não é difícil imaginar

141

professores sendo fortemente pressionados55 para alterarem os conceitos de “certos”

alunos... ou seja, em nosso país não é difícil de imaginar o quanto nocivo pode ser

transformar a avaliação escolar em moeda, em um negócio. Serão realmente premiados os

“melhores”? Melhores em que? Em fazer provas?

Chegamos então a outro ponto fundamental para pensarmos as políticas públicas

defendidas pelo projeto do estado avaliador: a classificação pública das escolas e dos

alunos. No Brasil, a imprensa tem sido bastante generosa em reportagens sobre a

comparação de escolas de realidades absolutamente diferentes. Assim, são alardeados os

resultados positivos de escolas com uma qualidade “inquestionável” que atentem a

crianças selecionadas, crianças sócio e economicamente favorecidas, enquanto ignora-se

que a escola pública é para todos, não para os que demonstram ser mais capazes – e ricos –

na porta de entrada. Nestas reportagens – e lógicas – ignora-se, por exemplo, quais

condições físicas e humanas são oferecidas em muitas das escolas apresentadas como

classe A? Quais os salários pagos aos professores? Quais as diferenças da infraestrutura

humana que conta com o apoio de especialistas em educação, psicólogos, fonoaudiólogos

etc? Quais as práticas de seleção inicial e contínua impostas às famílias?

Diante de qualquer “problema” de rendimento ou comportamento escolar estas

crianças são encaminhadas para um acompanhamento feito por uma junta de profissionais,

os melhores que suas condições financeiras permitem pagar. As escolas na verdade, muitas

vezes apenas encaminham e aguardam a solução do “problema”, e caso a família não

apresente uma solução, a criança é convidada a se retirar da escola, pois não atende ao

“perfil” de aluno da instituição. Escolas, como costumo dizer, “para todos”: param “todos”

na porta e permitem que só alguns poucos escolhidos ingressem! Sucesso construído às

custas da exclusão. Este é o modelo que desejamos implantar em nossas escolas públicas?

Na pauta do projeto do Estado avaliador, a insistência na ideia de que as escolas privadas

são superiores às públicas e com isso justificam sua lenta privatização, deslocando o

investimento do setor público para o privado, esquecendo que a escola pública não é uma

empresa que “vende” uma mercadoria a um cliente. Que a educação não é simplesmente

um bem a ser negociado. Ela é um direito. Não nos cabe selecionar ou classificar os

alunos. Nos cabe ensiná-los. Esse é o nosso dever.

55 @a rede, em escolas com projetos especiais, foi criada uma premiação em dinheiro que pode chegar a R$ 3.000,00 para alunos com conceito MB. Em um país que se mata por um par de tênis, não é difícil de imaginar o que as pessoas seriam capazes de fazer para garantir, a qualquer custo, este prêmio.

142

As escolas públicas de nossa rede vêm sendo submetidas a esta classificação

pública, e sua vinculação a prêmios e benefícios. Contudo, essa classificação e

hierarquização entre as escolas públicas, não são utilizadas pelo estado avaliador como

parâmetro para a necessidade de maior investimento naquelas que mais precisam, muitas

vezes, ocorre exatamente o contrário. O investimento naquelas que apresentam maior

possibilidade de “retorno” e “capitalização” política, e desprezo e indiferença para aquelas

que representam um problema a ser escondido.

As comparações entre estas escolas de elite e a maioria das escolas públicas – e

digo maioria porque a prática de seleção não é restrita ao setor privado – e entre as escolas

públicas de uma rede acontecem, portanto, só entre os resultados, ignorando todo o resto.

Essas comparações ao contrário de serem motivadoras, acabam por produzir um

sentimento de impotência. A desqualificação pública de professoras como Aline, como

Rosângela, Cris ou Cássia, como as milhares de professoras que defendem a escola pública

com compromisso e seriedade, possui um lento efeito corrosivo sobre nosso ânimo e

vontade, contribuindo inclusive para o abandono da rede.

O mesmo acontece quando defendemos um projeto que acha justo classificarmos

nossas crianças. Com o agravante de que estamos defendendo a exposição de nossas

crianças a um constrangimento público, como se não bastasse ter que conviver com o

fracasso dentro da escola, ela precisa conviver com o fracasso exposto para todos os seus

amigos, vizinhos e familiares. Conviver socialmente com a estampa de que “os outros são,

você não é”. Os outros conseguem, você não consegue. Você é o último de sua sala, de sua

escola... Como acreditar que isto irá motivar a criança – como se o resultado dependesse

apenas de sua vontade – a superar suas dificuldades? Pelo número de adultos com a

autoestima estraçalhada que recebemos no PEJA todos os dias, posso dizer com segurança:

não motiva. Talvez na lógica corporativa, empresarial, onde concursos e prêmios por

produtividade são um lugar comum, mesmo gerando estresse, competição desenfreada,

úlceras, gastrites, síndromes e infartos, funcione. Com seres humanos em formação, eu

questiono. Questiono não só se é funcional ou realmente produtivo, mas se é humano e

ético.

Quando esquecemos que a educação é um “direito” da criança? Não um troféu a ser

exibido. O conhecimento é um direito da criança. Não uma nota, nem um conceito, muito

menos sua desqualificação e segregação motivados por eles. Notas e conceitos podem ser

até uma fonte de informação para nosso investimento na educação da criança, mas só

interessam aos que podem realmente investir a favor de seu aprendizado, e se for esse o

143

objetivo, o que não vem sendo o caso. A nota/conceito acaba responsabilizando a criança

ou sua família, por um fracasso que ela não produz sozinha, um fracasso que como venho

defendendo, é na verdade produzido em primeira instância pelo próprio estado avaliador,

nos seus princípios e instrumentos e não simplesmente, ou somente, pelos sujeitos

avaliados.

Para o senso comum (pedagógico) – e parece-me irresponsável que as políticas

públicas de um Estado que se pretende avaliador sejam orientadas por ele quando nossas

universidades, escolas e professoras tanto produziram historicamente sobre educação – o

conhecimento confunde-se com uma coleção de nomes, data, fatos, desarticulada e sem

sentido. O conhecimento parece ser o conjunto de informações que são apresentadas ou

lidas no livro-texto e o processo parece ter sido o de reter essas informações, na memória,

para depois repeti-las.(Luckesi, 1994: pág, 101). Às vezes não acredito que o processo de

ensinoaprendizagem seja ainda simplificado e reduzido a esta perspectiva. Não acredito

como uma política de Estado para a educação possa simplesmente ignorar tanto as

produções técnico-científicas produzidas nos últimos séculos. No entanto, parece que não é

colocada em discussão, ou é convenientemente esquecida, a questão do que é

aprendizagem? Como o ser humano aprende? O que é aprender? Freinet já nos ensinou há

um século, que:

O que uma criança não aprende hoje, ou esta semana, ou mesmo este ano, aprenderá mais tarde. O essencial é que o indivíduo cresça, se enriqueça, se fortifique fisiológica, intelectual, moral e psiquicamente, que assente lógica e poderosamente sua personalidade. Todo o resto virá em acréscimo.(2001: pág. 104)

O essencial é que a escola – e a sociedade – esteja a favor do sujeito e compreenda

o sujeito como uma totalidade – fisiológica, intelectual, moral e psíquica – e não apenas

como um possível produtor, consumidor, produto. Para isso deve ser favorável e atenta ao

seu desenvolvimento integral.

Para Piaget o desenvolvimento – maturidade psicogenética das estruturas mentais –

precede o aprendizado. Todos os sujeitos, dentro de uma determinada faixa etária,

apresentam certa uniformidade de estruturas possíveis que permitem aprender

/compreender/fazer certas operações mentais. Em Vigotsky a relação

desenvolvimento/aprendizagem se inverte: é o aprendizado que precede o

desenvolvimento. Para o primeiro é preciso ser – psicogeneticamente falando – para

aprender. Para o outro é preciso aprender – e todos nos encontramos desde o nascimento

neste processo, portanto muito antes das escolas entrarem em nossas vidas – para ir

144

produzindo uma forma – histórico-social – única de ser, ou seja, a aprendizagem precede o

desenvolvimento.

Para Vigotsky “A aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda aprendizagem

da criança na escola tem uma pré-história”(1998: pág.109). No entanto para estes

programas alunos que possuem 12 anos de existência, dentro e fora da escola, nada sabem,

iniciemos do zero. Do nosso zero. Cabe-nos perguntar então: se nada sabem, então nada

desenvolveram? Se nada desenvolveram, então nada são?

Nesta perspectiva, questionamos a lógica que sustenta a ideia de “re-alfabetizar” os

alunos encaminhados para as turmas de correção de fluxo. Eles não estão fora de um fluxo

de aprendizagem, uma vez que demonstram terem se desenvolvido em vários outros

aspectos da vida social e cultural, que demonstram vários outros aprendizados. Mas algo

acontece especificamente com o aprendizado escolar. Vigotsky ensinou-me que o “bom

ensino é o que se adianta ao desenvolvimento” (1998: pág114), neste sentido as turmas de

correção de fluxo posicionam-se na retaguarda deste desenvolvimento, e não raramente, o

ignoram.

Precisamos então nos perguntar porque estes alunos que aprendem e que se

desenvolvem fora da escola formam as estatísticas que lemos como “fracasso escolar”.

Precisamos desdobrar nossas perguntas e buscar compreender porque “nós” como

sociedade, como escola, como adultos, fracassamos mais no ensino de uns do que de

outros? E para isso, compreender melhor o que realmente chamamos de fracasso. Mas

temos também que desdobrar nossas perguntas para saber o que estamos realmente

chamando de sucesso? Pensar nos deslocamentos, deslizamentos destes lugares.

Quantas vezes ainda estas mesmas alternativas continuaram a ser implementadas

sem uma discussão mais profunda com os sujeitos que vivem a escola? Quantas vezes

novos projetos, novos programas sempre lançados com grandes custos de marketing, irão

destituir nossos cofres públicos de um dinheiro sempre tão necessário para o investimento

real e direto em nossas escolas?

Rótulos, diagnósticos, pareceres. Depois de passar a infância entre tantos “exames”

que tentavam me encaixar em seus lugares preconcebidos aprendi a desconfiar de todos

eles. Por isso me tornei professora. Para voltar e lutar contra essa escola. Lutar contra o

mundo que faz isso com suas crianças. Por elas e por mim.

O chamado “fracasso” é um lugar doloroso. E se a dor algumas vezes nos ensina

coisas importantes, muitas vezes nos atira em uma vida embotada e infeliz, de onde nem

sempre conseguimos sair. Para alguns, esse processo apresenta-se como uma seleção

145

natural, onde podemos separar o “joio do trigo”, para outros se apresenta como um projeto

injusto e perverso. Um projeto que não é natural, mas político, histórico e social.

O lugar do fracasso e o lugar do sucesso são lugares criados socialmente,

constituem-se lugares diferentes, pois o chamado “sucesso” nos possibilita (mas não

garante!) morar, comer, vestir, calçar, etc. além de produzir algo que faz muita diferença

na forma como participamos do mundo: permite que tenhamos orgulho e amor próprio.

Permite também o acesso a certos bens materiais e culturais dos quais os sujeitos exilados

na situação do fracasso encontram-se, muitas vezes, privados.

O lugar do sucesso – quanto mais consolidado – expande as fronteiras físicas e

culturais, permitindo aos sujeitos ampliarem sua ação no/com o mundo, sua interação e

participação na vida social, local e global.

Como estes lugares – do fracasso e do sucesso – são criados? Como produzimos

uma sociedade que vai compreendendo que educar é expor suas crianças a experiências

seletivas e classificatórias, cada vez mais cedo? Que devemos aplicar às nossas crianças a

lei da selva para que apenas os mais rápidos, os mais altos e os mais fortes sobrevivam,

enquanto os demais sirvam de adubo ao “ciclo da vida”?

Por outro lado, não posso deixar de pensar: não seriam estas práticas de exame e

seleção apenas uma forma de definir qual a melhor forma de “consumir” cada sujeito?

Como aproveitar melhor – na cadeia produtiva – tanto os que fracassam como os que são

considerados bem sucedidos? Ou seja, no mundo – ocidental, capitalista – criado

hegemonicamente sob a lógica do consumo, não apenas os bens materiais: celulares,

carros, computadores, televisores etc são produzidos e adquirem um “valor” simbólico,

como tão bem nos ensinou Marx, tornando-se um fetiche; os sujeitos reificados, depois de

serem “coisificados” são transformados em produtos, e produtos são feitos para serem

consumidos, ou se não prestam para nada, se são defeituosos, descartados.

Muitos debates nos chamam a atenção que este projeto de mundo tenta nos criar

para sermos apenas “consumidores”, ou “produtores”. Pois acredito e acrescento que

precisamos lembrar que, cada vez mais, deixamos de ser considerados sujeitos para

assumirmos – no projeto hegemônico em curso – o lugar dos objetos.

O valor que cada individuo/produto adquire, não é necessariamente adquirido por

algum valor intrínseco – tudo que sabe, consegue, conhece, pode, aprende, faz – mas pelos

valores atribuídos – momentaneamente – pelo mercado, pelo valor que adquire na

possibilidade ou não de ser devidamente consumido pela cadeia produtiva. Por isso alguns

jogadores de futebol – que têm todo meu respeito como atletas – recebem 100 vezes mais

146

do que qualquer cientista em busca da cura da aids ou do câncer. Eles representam uma

mercadoria vendável, consumível pela grande massa, pela grande mídia. Isto me obriga a

retomar uma velha pergunta: qual é exatamente o produto que uma “escola produtiva”

deve oferecer para o consumo social? Quais são os conhecimentos (e valores) que devem

ser agregados a este individuo/mercadoria para que ele tenha algum valor?

Como o mercado exige sempre novos produtos, bens, serviços e indivíduos, estes

lugares não são tão fixos e determinados. São lugares – cada vez mais – deslizantes,

fluidos, instáveis. Deslizamento que acontece não só pelo desejo do mercado, mas também

pelas tensões produzidas nas relações de significação destes lugares. O “mercado”, essa

entidade quase metafísica que tenta nos impor sua ordem, é desafiado constantemente

pelas “astúcias” dos sujeitos que criam outros lugares de sucesso, que criam outras

possibilidades de existência fora dessa relação seletiva e hierarquizada, que inventam

lugares de sucesso coletivo e não individuais, ou seja, que insistem em ferir o projeto

hegemônico, demonstrando de forma impertinente que outro mundo e outras relações são

possíveis.

Nestas relações tensas que vivem em constante conflito e desafio, assistimos como,

na tentativa de manter o controle, projetos contra hegemônicos veem muitas de suas

práticas e discursos sendo “incorporados”, transfigurados e indevidamente apropriados,

esvaziados de potencia e sentido por sujeitos que, na verdade, comprometem-se com o

projeto hegemônico, o que produz, muitas vezes e para muitos, a sensação de que não

existem diferenças ou tensões, que não existem diferentes projetos, diferentes concepções

de mundo e diferentes propostas político-pedagógicas em luta nas escolas. Diferentes

concepções sobre o que é o fracasso e o que é o sucesso, conceitos que não possuem um

lugar fixo nem em nossa sociedade, nem em nossas escolas e tampouco em nós, tentam ser

invisibilizados em discursos totalizadores.

Em nossa sociedade, ambos sujeitos, o do sucesso e do fracasso, são sim, muitas

vezes, apenas produtos a serem consumidos – de formas bastante distintas – e/ou

descartados e para isso lugares de “sucesso” e de “fracasso” vão sendo ressignificados e

recriados a cada instante. Qual o papel da escola neste processo? Na produção dos

chamados sucessos e os chamados fracassos? O que fazer com o número cada vez mais

significativo dos que fracassam? O que fazer quando nos nossos casos de “sucesso escolar”

fracassam na vida e no mundo do trabalho? Que sentidos estes lugares assumem em nossos

discursos? O que é ter sucesso? O que nós professoras pensamos sobre estes lugares? O

que pensam os alunos? As famílias?

147

Talvez possamos compreender melhor esta questão tão amplamente anunciada e

discutida por vários setores da sociedade – o fracasso escolar – pensando no seu inverso: o

sucesso escolar, ou ainda, o que entendemos por não-fracasso. Como fomos nos

produzindo neste binômio sucesso/fracasso e como estes lugares são compreendidos

realmente, para além da compreensão hegemônica, que tantas vezes simplifica, naturaliza e

tenta apagar as tensões existentes na produção desses lugares?

Como estes lugares são compreendidos não apenas quando olhamos para os

mecanismos excludentes dos projetos hegemônicos em curso – o que é necessário – mas

quando olhamos também para as concepções e alternativas que são tecidas pelos sujeitos

que ressignificam estes lugares, que não apenas os ocupam, mas os transformam? Quando

olhamos para a complexidade que estes lugares adquirem em cada escola, em cada sala,

onde mesmo havendo os mecanismos de regulação e controle, onde mesmo havendo um

forte movimento reacionário e excludente, existem as pessoas? Existem homens e

mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos que escrevem outras histórias.

Antes cabe perguntar: por que pensar sobre o sucesso/fracasso escolar? Discussão

que parece ocupar um dos lugares privilegiados no debate educacional – e social – presente

na história da educação e que já mereceu atenção de tantos pensadores, filósofos e

educadores importantes?

Interessa-me particularmente pensar como estas concepções vão se forjando nas

educadoras, alunos, mães e demais sujeitos que hoje integram e debatem as redes e

programas de avaliação escolar. Interessa-me também, pensar com minhas colegas e com

muitos outros sujeitos como as concepções pedagógicas e nossas práticas vão sendo tecidas

a partir de nossas histórias vividas como alunas e professoras. Pensar os muitos fios que

formam esta trama onde alguns “sujeitos” avaliam tantos outros “sujeitos” e a eles se

referem como sucesso ou fracasso.

Esta questão surge como fundamental na medida que observamos que alguns

professores, escolas e sistemas fazem opções políticas e pedagógicas a partir de suas

crenças e concepções sobre o que é sucesso e o que é fracasso, assim como este

sucesso/fracasso escolar articula-se com o sucesso/fracasso como sujeito no mundo, e não

raramente, a um mundo reduzido ao seu aspecto econômico/produtivo da lógica capitalista.

Opções (escolhas) que tantas vezes ignoram as vozes de nossos alunos, mães, pais,

colegas...

Palavras (conceitos) tão utilizadas, como tantas outras – eficiência, qualidade,

eficácia, produtividade etc. – escondem em seu excesso de exposição, a ilusão de que

148

existe uma compreensão homogênea, um acordo tácito sobre o que cada uma significa.

Escondem a polifonia e o movimento que cada palavra vai adquirindo no seu caminho

coletivo de significações e ressignificações.

Minha inquietude sobre o tema me acompanhou até a sala de aula, pois não posso

despir-me de ser professora, sem tornar-me uma sombra de mim mesma. Lugar que me

move sempre em direção aos outros para compartilhar minhas incertezas e investigar as

certezas que os movem.

Como busco, quase sempre, dividir com os sujeitos a minha volta minhas questões

e angústias, propus uma atividade conjunta com minha amiga – professora Fátima – com

quem compartilhava em 2009 o mesmo segmento: Bloco 2 (3a./4a.séries) no PEJA I

(Programa de Educação de Jovens e Adultos do município do Rio de Janeiro).56

A partir de um pequeno texto57 convido os alunos a responderem com suas

reflexões sobre duas questões: 1) O que é ser um verdadeiro campeão? O que é sucesso

para você? 2)E qual o papel da escola para formar verdadeiros campeões? O que ela deve

ensinar?58

O cotidiano nos mostra que a compreensão do que é sucesso, do que é fracasso, é

bastante complexa e adquire sentidos múltiplos nas experiências dos sujeitos. Nossa

história é o que vai conferindo sentido a esses conceitos/palavras, e como mesmo sendo

polifônicos, plurais, são também singulares, estes conceitos/palavras podem assumir tantos

sentidos quantos sujeitos existam pensando sobre eles. Multiplicidade que as definições:

sucesso é... o fracasso é... tentam apagar, ou ignorar. Meu objetivo, portanto, não parte em

busca de definições, ao contrário, volta-se para encontrar os muitos sentidos que o

cotidiano e os sujeitos que tecem este cotidiano conosco forem nos apresentando. Por isso

os convido para a conversa...

“Eu me sinto uma verdadeira campeã, por estar estudando, que para mim era uma dificuldade, porque quando a gente pensa que a vida é só brincadeira, estamos enganados. Eu sou campeã. Levo minha filha na escola, vou para

56 O PEJA é o projeto da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e atende a pessoas jovens – a partir de 14 anos com grande distorção série/idade – e adultos. Funciona em dois segmentos PEJA I (correspondente aos cinco anos iniciais de escolaridade) e PEJA II (do sexto ao nono ano) divididos em dois Blocos I e II. Ensino noturno e de caráter acelerativo. Trabalhei sete anos neste segmento na prefeitura do Rio. Em 2010 assumi o Bloco 1 – turma de alfabetização. 57 @as Olimpíadas especiais de Seatle (USA) um grupo de jovens com “retardo mental” participaram de uma corrida de 100 metros. Um dos competidores cai e começa a chorar.Todos os outros competidores voltam, o consolam, uma menina com Síndrome de Down beija o menino, então todos se abraçam e concluem a corrida juntos, sob os aplausos de todo o estádio. 58 Todas as respostas em anexo.

149

casa trabalhar e lá ajudo meu marido. Volto para casa faço janta, pego minha filha na escola e depois venho para a escola, só nessas coisas eu me sinto uma verdadeira campeã. Eu já fui uma pessoa muito rebelde, mas com a ajuda do meu marido hoje faço tudo isso, eu já sou campeã. Sucesso para mim é ser uma mãe do jeito que eu sou e uma mulher que conquista tudo que quer. Para mim sucesso não é só aparecer na TV, mas sim trabalhar por tudo que se quer. Ser promovida na empresa, isto para mim é um sucesso”(Luciane).

Luciane nos mostra como sua ideia de sucesso comporta vários aspectos, como é

uma trama tecida por muitos fios. Desloca-se de uma concepção limitada a uma coleção de

informações que deve memorizar e repetir, ou uma coleção de bens que deve adquirir e

expor, e me convida a pensar que são muitos aspectos que produzem um lugar de sucesso,

e que eles não são excludentes, mas complementares. Em sua concepção de sucesso entram

o orgulho de ser boa mãe, uma mulher firme, trabalhadora, capaz de reescrever a sua

própria história e viver uma vida – que não é brincadeira – da qual se orgulha. Luciane

compreende que foi capaz de fazer escolhas que foram certas para sua vida, que foi capaz

de se reinventar, que ocupa um lugar importante na vida de sua família. Uma mulher que

tem a consciência da diferença entre o seu sucesso, tecido no cotidiano de uma vida que a

desafia a estudar, trabalhar, cuidar, crescer e os sucessos momentâneos, artificiais e

volúveis, que a mídia fabrica e com o qual tenta inferiorizá-la, com seus modelos éticos e

estéticos.

Ou seja, apesar da força que este projeto hegemônico tem, apesar de todos os

artifícios e recursos que utiliza para nos conformar a uma só ideia de sucesso,

subalternizando e desqualificando nossa existência fora de seu controle, mulheres como

Luciane sabem que a vida, que sua vida pode ser digna e feliz. Ressalta, também, que é

sucesso também trabalhar pelo que se quer, e ter uma promoção no mundo do trabalho, ter

seu trabalho reconhecido através de uma promoção. Ela nos mostra que seu sucesso é

construído no dia a dia de uma vida enfrentada com coragem, onde ela assume com

seriedade vários papeis: o de mãe, de esposa, de trabalhadora, de aluna. Como ela,

milhares de mulheres país a fora vão escrevendo histórias de sucesso e nessa escrita

forjando as colunas que sustentam suas famílias. São sim, campeãs, mas nem todas

possuem esta consciência, sendo tantas vezes humilhadas e subalternizadas, por um

discurso hegemônico que as desqualifica: analfabetas, burras, feias, gordas, vadias,

ouvimos em tantas “músicas”, assistimos em tantos programas de TV. O sucesso de

Luciane não vende revista.

Francisca, outra aluna do PEJA nos oferece mais elementos para pensarmos o que é

um ser humano de sucesso:

150

“%a minha opinião o verdadeiro campeão é aquele que tem um coração cheio de amor aos seus semelhantes. Todos devemos ser solidários. Saber ver a vida como realmente ela é: bonita. Todos os dias o sol nasce para todos, mesmo que algumas nuvens o encubra. Ele sempre vai estar ali para esquentar e aquecer. (...) O verdadeiro sucesso é sentir que aqueles companheiros a quem amamos estão bem e com saúde. É ver que na vida todos somos campeões.”(Francisca)

Influenciada pelo texto que motivou a reflexão, ou talvez por suas crenças

religiosas, ou ainda por valores familiares, ou um pouco por tudo isso, valoriza a

solidariedade e o companheirismo. Francisca defende uma ideia de sucesso que se encontra

na contramão da competição, da seleção, da classificação. “Todos devemos ser solidários”,

mas como ser solidário quando transformamos o mundo em uma corrida de obstáculos

onde só os primeiros colocados comem, moram, vivem com dignidade? Como ser solidário

quando transformamos o mundo em um grande reality show onde vencem aqueles que

mais manipulam, mentem, promovem intrigas e traem? Aqueles que usam os

companheiros como escada para alcançar o desejado primeiro lugar? Francisca tem outra

ideia de sucesso. O seu sucesso é conquistado com o outro e não sobre o outro. Não é

preciso que alguém fracasse para que eu vença, não é preciso eliminar meu companheiro,

mas torcer por ele. E para isso tem uma ideia muito interessante sobre o papel da escola:

“O papel da escola é ensinar, educar, colaborar com a criança. Entender que nem toda criança é igual. Que tem seus problemas com pai e mãe, às vezes até alguns traumas, e ajudar. Conversando com os pais. Ter bons professores. O papel maior da escola é ensinar seus alunos a ter um bom futuro. Entender que nunca é demais estudar e ser educado. Que só através da educação e do estudo a gente abre vários caminhos para um futuro feliz. E que para ser campeão basta seguir os ensinamentos do dia a dia. %ão ficar desanimado e desistir no meio do caminho. A escola e os professores têm um papel muito importante na vida de seus alunos. O maior é dar bons exemplos.”(Francisca)

Impressiona-me – e sei que não mais deveria – como Francisca, esta mulher que

retoma depois de anos, seus estudos, um adulto de baixa escolaridade e considerada em

função disso, por tantos, de baixa capacidade, consegue compreender algo que para alguns

sujeitos com alta escolaridade e, portanto reconhecida capacidade, é difícil de reconhecer

ou aceitar: “nem toda criança é igual”, são diferentes em histórias, desejos, possibilidades

e nosso papel é colaborar com cada uma, ajudar estas crianças a encontrarem um sentido

na escola.

Ressalta que é importante que a escola crie os espaços de conversa com os pais, não

espaços onde os pais (mães, tias, avós...) são convocados apenas para comunicações ou

reivindicações da escola, convidados como espectadores da cena escolar ou como varias

151

Secretarias de Educação vem adotando: espaços on line de comunicação de “resultados”

escolares; mas espaços de conversa, de encontro.

Com clareza, Francisca nos diz que o papel da escola é ensinar e educar, papel que

muitas vezes parece ser esquecido em projetos que reduzem a função da escola a uma

agência de treinamento para provas. Lembra que nosso papel é colaborar com as crianças,

ou seja, trabalhar a favor delas e não contra elas. Trabalhar para – compreendendo suas

diferenças – potencializá-las para que entendam que “nunca é demais estudar e ser

educado”, nem só estudar, nem só ser educado, mas ambos. Francisca não prioriza uma ou

outra quando elabora sua ideia de sucesso escolar, ao contrário, cria uma unidade onde o

estudar – adquirir/produzir novos conhecimentos – é indissociável do ser educado, que nos

remete a uma dimensão muito mais ampla sobre o próprio papel da escola. Ao ressaltar que

“nunca é demais” nos lembra que este processo de aquisição/produção de novos

conhecimentos e educação não possui fronteira, é um fluxo continuo, por isso um direito

de crianças, jovens e adultos de qualquer idade.

Em suas reflexões ela nos oferece também pistas sobre a importância e centralidade

que dá ao papel da escola como fomentadora de um futuro feliz. Compartilha de uma

concepção – um otimismo pedagógico – onde a escola torna-se a principal responsável

pela construção de um futuro próspero e de sucesso, ou seja, uma escola “redentora”. Neste

sentido, ao colocar a escola sob o foco, não percebe todos os outros fios sociais que vão

formando a trama onde os sujeitos são divididos em sucessos ou fracassos. Não percebe

também que a mesma escola que é capaz sim, de contribuir para “abrir caminhos”, também

cria muralhas. Muralhas responsáveis pela exclusão no passado de muitos de seus colegas

no PEJA, que em algum momento “ficaram desanimados e desistiram no meio do

caminho”.

Francisca que sabe que os ensinamentos estão presentes em nosso dia a dia, no

cotidiano, portanto, finaliza com algo que considero fundamental: estes ensinamentos são

aprendidos muito mais em nossas ações, em nossas práticas, na forma como nos

apresentamos diante de nossos alunos, de nossas colegas, das mães de nossos alunos. A

escola precisa de bons professores, nosso papel é muito importante. Importante demais

para reduzirem-se a discursos que não se materializam em ações. Bons professores educam

mais com suas ações mais do que com suas palavras. Que exemplos de respeito, cidadania,

democracia, justiça, solidariedade estamos oferecendo aos nossos alunos? Ou seja, nos

currículos que são escritos por nossas ações, nos currículos que praticamos, o que

realmente estamos ensinando? Ao avaliarmos os comportamentos de nossas crianças

152

compreendemos que eles foram aprendidos de nós adultos? Que eles, de fato, não nascem

prontos?

Em minha história, assim como nas histórias das professoras que convidei para a

conversa, ecoam pistas sobre como currículos invisíveis foram se inscrevendo em nós,

tecendo saberes sobre a escola e nos constituindo professoras. Estes currículos são

formulados e praticados tendo como referenciais – antes de muitos outros – nossas crenças

sobre a função social da escola, sobre os sujeitos que desejamos formar, sobre o mundo

que nós vivemos e o mundo que nós desejamos. Sobre o que consideramos sucesso e o que

apontamos como fracasso: nosso, do sistema, da família ou de nosso aluno.

A professora Aline tem profunda clareza sobre suas crenças, e profundas dúvidas

sobre elas também, dúvidas que compartilhamos...

Eu acredito na escola pública. Porque eu sou fruto da escola pública. Quero dizer que eu acredito muito nela. Isso aí eu falo aonde eu vou, eu falo para todo mundo, eu acredito ainda muito nela. (...) E aí sempre fui uma aluna assim, sempre muito esforçada, fazia todas as tarefas, queria sempre sentar na frente, sempre me dei bem com todos os colegas, sempre fui assim nem muito fechada nem muito expansiva, mas eu falava muito.(...) E minha mãe sempre confiou muito em mim, então isso é uma coisa muito bacana, e eu espero poder confiar na %atália59 igual minha mãe confiou um dia em mim. Minha mãe nunca precisou verificar se aquilo que eu falava era verdade sabe?! Então assim, muito legal.(...)Eu me acho muito exigente. Eu sou uma pessoa muito exigente pelo que eu exigia de mim. Família pobre, minha mãe servente da escola, eu sempre com aquele medo, com aquele receio. Então eu sempre fui uma pessoa, muito exigente primeiro comigo. E isso eu não sei se é uma falha ou uma coisa positiva que eu cobro dos meus alunos. Eu sou muito exigente com a maneira do cara sentar, com a maneira do cara se portar, com a maneira do cara falar. Eu acho que isso vai ser muito bom para vida dele. Mas será que isso vai ser muito bom para vida dele? Às vezes eu também me questiono em relação a isso, mas eu não consigo mudar isso Andréa.(...)E por isso que eu tomo como bom para vida dele também, e é por isso que eu falo que eu acredito que eu acredito na escola pública que eu sou fruto da escola pública e eu me considero um bom fruto dessa escola. Está entendendo?! Eu acho que se hoje eu encontrar com meus professores eles vão gostar de olhar pra mim e ver a pessoa que eu me tornei e que eles ajudaram que eu me tornasse o que eu sou hoje. E minha família também. Minha mãe que hoje não está mais entre nós, mas que eu acredito também tenha muito orgulho disso.

Aline foi aluna da escola pública. Acredita nesta escola e compreende que esta

escola contribuiu para que ela fosse um caso de “sucesso” escolar. Aline nunca ficou

reprovada, e acredita que isso – a reprovação – venha a ser uma experiência muito ruim.

Foi uma aluna “esforçada”, exigente consigo e com os outros. Comportada, ajustada,

preocupada com normas, pareceres, decretos, leis. Preocupada em incluir-se no mundo

59 @atalia é uma sobrinha que a professora cria desde muito pequena.

153

conforme suas regras. No entanto, isso não a impede de ser um ser humano cheio de

dúvidas e incertezas... Sua história a forma, mas não a conforma.

“Eu acho que isso vai ser muito bom para vida dele. Mas será que isso vai ser

muito bom para vida dele?”. Aline resume nesta frase uma das grandes questões com que

nos defrontamos. Uma questão que me tira a paz e me faz habitar um lugar que desliza

constantemente sobre meus pés.

Ao educarmos fazemos escolhas que irão marcar as vidas de nossos alunos. A

consciência disso já seria o bastante para nos exigir muita cautela, muita reflexão e muita

responsabilidade.

Tenho lido, concordado, observado e defendido o quanto nossas escolhas são fruto

muito mais de nossas experiências e de nossas crenças do que das teorias, do que de uma

certa ciência, geralmente “aprendida” de forma mecânica para passarmos em alguma

prova. Experiências – pessoais, humanas, subjetivas – muitas vezes são negadas como

“objeto” de estudo e, portanto, pouco refletidas, pouco analisadas, apesar de oferecerem

valiosas pistas sobre como são tecidas as relações de ensinoaprendizagem entre

professoras e alunos.

Aline fala de sua origem. Fala de como é pedir licença para existir neste mundo,

esforçar-se para não ser motivo de vergonha, de mais problemas, além da própria pobreza.

Fala da necessidade de subordinar-se para ser aceito, para que um dia seja motivo de

orgulho. Fala de como é preciso aprender a sentar corretamente, falar corretamente, como é

preciso ser correto e confiável para ser um “bom fruto”. Sabe que para se tornar esse bom

fruto é preciso ser exigente. Sabe quais são os caminhos a serem percorridos para a

esperada “inclusão”. Tem isso como um valor. Tem isso como uma maneira de ser e estar

no/com o mundo. Contudo isso não a impede de duvidar: será que isso será bom para a

vida desta criança como foi para a minha vida? Onde se encontram a minha vida que se

perde no passado, e a dessa criança que ecoará pelo futuro? Um futuro cada vez mais

incerto? Será que existem fórmulas, receitas e caminhos que possam ser repetidos para

proporcionar o “sucesso” de cada aluno? De cada sujeito? E os diferentes tempos

históricos que nos separam? E as diferenças sociais e históricas entre a minha origem e a

origem de meu aluno? São muitas as perguntas que atordoam nossas cabeças.

Bruno, um jovem aluno do PEJA, sujeito de outro tempo, preocupa-se mais com o

que a escola pode oferecer hoje, pode significar hoje, pode ser hoje:

154

“Para mim tem que ensinar tudo o que tem direito. É dar educação aos alunos menores e não pichar os muros da escola. Ensinar a não usar drogas, não roubar e não ser bandido. Muitas escolas não fazem isso, mas tinha que fazer para os alunos aprenderem melhor. E dar festas nas escolas, como festa junina, dia das crianças, teatro, campeonatos de futebol, vôlei e handebol, e muito mais coisas para os alunos se interessarem mais nas escolas” (Bruno).

Bruno nos lembra e ensina que não é no futuro, distante e incerto que

encontraremos nossas respostas para o sentido da escola. Nossas respostas encontram-se na

escola que fazemos hoje, no presente, no nosso dia a dia. Primeiro, ao contrário de tantas

afirmações que garantem que nossos jovens nada querem, Bruno diz: quero tudo que tenho

direito! Depois, lembra-nos em sua juventude, que como adultos, temos responsabilidades:

temos que ensinar aos pequenos que devem respeitar e preservar o bem público – coisa que

muita gente grande, estudada, devidamente testada e aprovada (e eleita!) ainda não

aprendeu – que não devemos nos ferir e ferir aos outros; que não podemos ser omissos e

burocráticos; que a vida é feita de riso, de encontro, de arte, de esporte e que assim como a

vida deveria ser a escola, para ter sentido. Bruno sabe que existe uma relação estreita entre

a formação ética, o compromisso social e a possibilidade de aprendizagem: “muitas escolas

não fazem isso, mas tinham que fazer para os alunos aprenderem melhor”. Bruno sabe que

existe um universo de possibilidades cada vez mais ignoradas nas propostas curriculares

centradas na cognição (ou pseudocognição). E nós o que realmente sabemos?

Queremos nos “orgulhar” de nossos alunos. E o que nos traz orgulho quando temos

notícias de nossos alunos? O que lemos (e avaliamos) como sucesso?

Para muitas de nós, professoras das classes populares, invariavelmente em primeiro

lugar: saber que não perdemos nosso aluno para o mundo do crime (o que de fato hoje é

uma grande vitória!); segundo saber que ele continuou estudando (o que diante dos

números de evasão ao fim da idade escolar obrigatória é outra grande vitória!); que tem um

emprego público! Melhor ainda. Ou seja, geralmente desejamos para nossos alunos, a

nossa vida, ou vida melhor.

Nossa ideia de sucesso vincula-se, geralmente, em primeiro lugar ao sucesso

profissional e a estabilidade econômica. Queremos para eles o que desejamos para nossos

filhos, irmãos, amigos, etc... Nosso projeto de inclusão traz, portanto, inscrito nele: uma

vida honesta – ainda que difícil – “moralmente” correta, com uma escolaridade suficiente

para garantir a “tranquilidade” financeira e uma aposentadoria feliz.

155

Aline acredita na escola pública que a formou. Da alfabetização ao curso de

História na UERJ60. Deseja oferecer aos seus alunos esta mesma escola, ou uma escola que

ofereça as mesmas possibilidades de sucesso. Mas ao mesmo tempo não demonstra tanta

segurança sobre quais opções deve fazer para proporcionar isso. Sabe que sua história é

irreproduzível. Que cada aluno seguirá por seu próprio caminho. Sabe também que muitas

vezes ao tentar formatá-lo a seu projeto produz uma situação de fracasso para esta criança.

Então, o que vai ser bom para a vida dele? Essa uma questão que atravessa as escolhas

curriculares que toda professora faz, consciente ou não das razões – ideias, conceitos e

preconceitos – que as movem. Escolhas que, independente das políticas públicas que

buscam regular ou orientar nossas práticas, materializam-se nas relações de

ensinoaprendizagem que produzimos.

Somos arrastadas eu, Aline e tantas outras professoras, para um lugar difícil de

habitar. Somos mulheres de um certo tempo e de uma certa história. Fomos criadas dentro

de um espaçotempo marcado pelas lógicas – crenças e teorias – da modernidade. Ou seja:

temos um projeto. Um projeto para o outro. Na verdade, o mesmo projeto para todos os

outros. Um projeto que defendemos do lugar – de sucesso – do qual nos orgulhamos.

Sabemos andar, sentar, falar “corretamente” e sabemos que este corretamente nos confere a

possibilidade de ir a lugares, sentar-nos à mesa e sermos ouvidos por mais pessoas que

aqueles que não sabem. Também sabemos ler, escrever, pensar... Olhamos o mundo a

nossa volta e desejamos transformá-lo. E durante muito tempo este foi um lugar que com

toda força de minha indignação militante, ocupei feliz e tranquila. Então Bauman veio me

assombrar com a lembrança de que:

“A história moderna tem sido, portanto, a história da produção de projetos e um museu/túmulo de projetos tentados, usados, rejeitados e abandonados na guerra contínua de conquista e/ou desgaste que se trava contra a natureza” (2005: pág, 34).

Lembrar-me também que é exatamente neste processo de produção de projetos em

busca da perfeição, da superação dos limites da natureza, da civilização – ou do sucesso –

que produzimos grandes quantidades de refugo, além de um “museu de grandes

novidades”(Cazuza). Ao retirarmos nossos Deuses Gregos61 da pedra bruta acumulamos

uma pilha de cascalhos, nosso lixo, nosso problema, nosso fracasso.

60 Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 61 “Indagado sobre como obtinha a bela harmonia de suas esculturas, Michelangelo teria respondido:” É simples. É só você pegar um bloco de mármore e cortar todos os pedaços supérfluos.”@o auge do Renascimento, Michelangelo proclamou o preceito que foi guia da criação moderna. A separação e a

156

Queremos o melhor para nossas crianças. É justo, é legítimo e humano nosso

querer. Mas o melhor que queremos não é invariavelmente um modelo forjado a nossa

imagem e semelhança? Não estaremos chamando de fracasso isso que é produzido

exatamente na distancia que existe entre nosso querer e o querer – tantas vezes ignorado e

desconhecido – do outro? Queremos todos o mesmo?

À voz de Bauman, juntam-se Skliar, Certeau, Bhabha. Todos me obrigando a

enfrentar a modernidade que habita em mim e perguntando-me: Então você – quem diria –

tem um projeto de sucesso para o outro? Então você, agora que cresceu, vai definir – como

tantos já fizeram – o que os outros devem ser, saber e fazer para serem um sucesso? Vai

prepará-los para serem devidamente “incluídos” neste mundo?

Instalo-me na fronteira e olho em volta buscando um caminho. Fronteira que a

pergunta de Aline denuncia, fronteira de nossas certezas. Não posso voltar. Por mais que

me seduza, por mais que sinta arder o desejo de lutar pelo outro, de fazer pelo outro, de

libertá-lo, emancipá-lo, de trazê-lo para o meu mundo e incluí-lo, não posso mais. Contudo

não consigo tampouco, atravessar a ponte e abandonar esse desejo de viver em um mundo

mais justo, mais humano, mais digno, um mundo, para mim, melhor.

Fazer com o outro. Libertar-me com o outro. Caminho tão difícil. Principalmente

quando o outro é uma criança ou um jovem por quem temos que lutar dia-a-dia, uma

criança que temos a obrigação ética, moral e profissional de defendermos contra tantas

perversidades. Quando o outro é um adulto marcado por tantos “nãos” que colaram nele

vida a fora: não sabe, não pensa, não tem, não é... E muitas vezes o que espera é que você

simplesmente continue este processo, subalternizando-o mais uma vez, negando-o mais

uma vez.

Como não ser parte desta perversidade? Como tecer com nossos alunos uma escola

que os permita conhecer o sucesso, a afirmação de suas existências, a legitimidade de suas

vozes sem que estas sejam hierarquizadas tendo o “meu” projeto como critério para este

sucesso? Como nos posicionarmos político-pedagogicamente de forma que nossas leituras

e avaliações destas crianças reconheçam uma “pluralidade de formas de excelência

escolar” (Afonso, 2005: pág, 38), rompendo com uma concepção colonialista de

excelência escolar. Como incluir em nossos projetos a escola que Bruno, Francisca e

Luciane desejam? Como negociar com esses sujeitos outros projetos de escola possíveis,

destruição do refugo seriam o segredo comercial da criação moderna: cortando e jogando fora o supérfluo, o desnecessário e o inútil, seriam descobertos o belo, o harmonioso, o agradável e o gratificante.”. (Bauman, 2005, pág. 32)”.

157

que sejam cada vez mais afirmativos e potencializadores, que sejam cada vez mais dignos

para os sujeitos? Para isso proponho que examinemos em primeiro lugar o que temos

produzido realmente como sucesso escolar?

“Os dados recentes do U%ICEF anteveem que 41% das crianças brasileiras estão fadadas ao fracasso escolar e a reproduzir no futuro a situação de atual de fracasso dos seus pais. Está sendo considerado aqui como fracasso o fato de não ter completado as oito séries. %o entanto, estarão os 59% que concluem as oito séries incluídos no não-fracasso ou no sucesso escolar?” (Aldaíza Spozati, pág, 23:2000).

Leio o texto acima e penso em minha amiga Rosângela narrando sua história com a escola:

Eu também estudei em uma escola Municipal, mas eu não fui bem alfabetizada. Eu tive assim, até o %ormal, até o período do %ormal eu tinha assim, erros ortográficos, que até hoje de vez em quando eu fico, eu pergunto a Aline não tem erro aqui não? Porque eu tenho realmente essa insegurança, porque eu fui muito mal alfabetizada e isso me assusta muito. Quando eu fiz %ormal eu tinha uma professora de linguística, acho que era de linguística e ela até começou a fazer um trabalho comigo e ela dizia assim pra mim: “Caramba, você lê, você presta atenção, faz todos os exercícios” e ainda assim eu não fixo, eu não guardava aquilo. Se você me perguntar de novo, se sair naturalmente eu escrevo numa boa, se eu parar para pensar eu tenho dúvida, isso não é normal. Então eu acho que foi parte da minha alfabetização, que teve alguma falha aí. Eu não sei, não consigo diagnosticar qual foi, mas eu acho que teve alguma falha aí. Eu fui uma menina assim tímida, extremamente tímida, sempre muito na minha, ficava quietinha lá no meu canto e tinha essa insegurança muito grande desde criança. Eu me via assim, muito burra! O tempo inteiro muito burra!

Rosângela é um caso de sucesso escolar?! Vejamos: ela é uma pessoa idônea a espera de

sua restituição do imposto de renda anual como todos os bons cidadãos; chegou ao curso

superior – é formada em Serviço Social – e passou em um concurso público; mora em uma

casa confortável e tem sua aposentadoria garantida (pelo menos é o que todas esperamos!).

Isso superando o estigma de que era uma criança muito burra, que não fixava “e isso não é

normal!”. Rosângela acredita ter sido mal alfabetizada. Acredita que alguma coisa

aconteceu nos anos iniciais de sua formação que comprometeu seu desempenho – e talvez

muito mais sua autoestima e segurança – ao longo de sua vida escolar e profissional.

Jussara Hoffmann concorda com a percepção de Rosângela:

Diria que se discute o sistema de avaliação para disfarçar o problema, tampando o sol com uma peneira de grandes furos. O desencadear dos problemas está na alfabetização. As crianças não estão sendo alfabetizadas no tempo e com a competência que deveriam, porque não se constituem para elas espaços efetivos de aprendizagem entendida em sua concepção multidimensional.(2005: pág, 60).

158

Rosângela deixou sua infância há três, quatro décadas no passado, consta dentro

dos 59% dos alunos que alcançaram o sucesso escolar. Ela superou as barreiras que lhe

foram sendo impostas e formou-se, mesmo que carregue pela vida fora dúvidas sobre a

própria capacidade e/ou conhecimentos, mesmo que reconheça hoje, de seu lugar de

mulher adulta e professora, o quanto a escola, sua escola, se por um lado contribuiu para

que se formasse, por outro, falhou em sua formação.

Rosângela nos ajuda a pensar na necessidade de refletirmos melhor sobre nosso

conceito de sucesso escolar e as formas que este se vincula a uma ideia de sucesso no jogo

social capitalista. Como “medimos” o sucesso escolar? Como determinamos o fracasso? É

possível “medir” o sucesso? “Determinar” o fracasso? Nossas histórias vêm mostrando que

isso é um pouco mais complexo do que alguns discursos levianamente fazem crer. “O

fracasso escolar num sistema de informação rígida e empobrecida significa o fracasso

global do aluno/a. A informação diferenciada dá a chance de que esse sujeito encontre

julgamentos positivos sobre si, em alguma qualidade, que o motivem e valorizem seu

esforço. (Sacristán, 1998: p.315).

Se os testes a que fomos submetidas a vida inteira falharam ao constatar tantas

lacunas em nossa formação, se foram incorretos os dados sobre os conhecimentos que

adquiri em matemática e Rosângela sobre a própria língua, como podemos – ainda –

acreditar que estes mesmos testes sejam capazes de constatar o que realmente sabem ou

não sabem nossos alunos? Fontes de certa informação? Talvez. A fonte de informação

privilegiada para juízos e avaliações tão contundentes sobre fracassos e sucessos? Duvido.

A ciência moderna fundada no desejo voraz de conhecer, prever e controlar o

mundo, acaba tantas vezes cega diante da própria arrogância. Limita-se a conhecer apenas

o que pode – ou acredita poder – controlar e prever. E como a natureza – física, biológica

ou social – não é absolutamente controlável ou previsível, opta, não raramente, por destruir

o que não pode ser controlado ou previsto. Não aprende com o incontrolável, não aprende

com imprevisível. Segura da universalidade de suas lógicas, da pertinência de suas

perguntas e da certeza de suas respostas não compreende a vertigem do mundo, onde

diferentes lógicas operam diferentes saberes, onde nossas perguntas precisam ser refeitas,

onde nossas respostas não servem a todos os sujeitos, a todos espaçostempos.

Eu não respondia corretamente muitas das perguntas – tantas vezes tolas – de

minha escola. Mas respondia muitas outras, que nunca quiseram saber, que nunca ousaram

perguntar. Rosângela com certeza traz consigo também muitas respostas, mas o que marca

sua lembrança e sua história é o que a escola não a ensinou. Um sentimento de ter algo

159

roubado ou negado. Enquanto a fogueira da inquisição escolar queimava os “fracassados”

pequenas fagulhas eram atiradas por toda parte. Distantes da fogueira reluziam como

sucesso.

Desde criança ouvimos e muitas vezes reproduzimos que devemos estudar para

“ser” alguém. Depois de um tempo percebemos – ou somos levados a crer – que no jogo

que está em curso, não precisamos necessariamente estudar para “ser alguém”, mas superar

a escola. Superar a escola desvincula-se do adquirir novos conhecimentos e multiplicam-se

a venda de diplomas e certificados do ensino médio a teses de Doutorado. O conhecimento

deixa de ser, para muitos, um valor em si, sendo reduzido a um papel que possui um certo

valor cambiável no mercado. Crianças de seis anos assim como profissionais já em idade

madura deixam-se perder em uma teia onde “estudar” vira comparecer, cumprir, passar...

“Estudar para passar, e não para aprender, é o processo dominante na maioria dos alunos do meio popular, mas não de todos. Há aqueles que não entendem por que estão na escola, alunos que, de fato, nunca entraram na escola, estão matriculados, presentes fisicamente, mas jamais entraram na lógica específica da escola (...) O que significa para um aluno aprender?” (Charlot: 2005 p.52).

Superar as barreiras impostas pela escola também não oferecem garantias de que

“sejamos alguém” neste jogo, e muitos acabam infelizmente compreendendo que para ser

“alguém” você não precisa de estudo, mas de dinheiro. É essa escola que queremos? É esse

o mundo que queremos?

Muitos de nossos jovens percebem também, cada dia mais cedo, que existe algo de

hipócrita e falso no discurso que relaciona diretamente o sucesso escolar/ascensão social e

por isso nossa primeira vitória – contra o mundo do crime – é tão importante, e cada dia

mais difícil. Neste sentido o não-fracasso escolar é mais do que um processo de inclusão

social é a defesa da possibilidade de uma futura vida adulta mais digna para estas crianças.

Nesta perspectiva, os sentidos de sucesso e fracasso deslizam e são produzidas

outras lógicas. O mercado – das modas e modos – assume um certo comportamento – lido

como marginal – assume a música, a postura corporal, a linguagem do “mundo bandido” e

a transforma em um espetáculo, em um produto desejável. Hoje vemos jovens, inclusive de

classe média alta, assumindo traços dessas identidades “bandidas”, imitando e valorizando

comportamentos violentos, sádicos, desafiadores.

Por outro lado – e existem com certeza ainda milhares de lados neste caleidoscópio

– as crianças e jovens das comunidades populares crescem lendo estes códigos de conduta

como lugares de sucesso, lugares onde aqueles que são negados pela sociedade e pela

160

escola, são reconhecidos como “os caras”, aqueles que não precisam curvar-se ao poder

prometido por anos de estudo e conhecimento, eles já possuem um poder de fato, um poder

que intimida, desafia e muitas vezes até se sobrepõe a professoras, diretoras e outras

autoridades estatais representantes da “sociedade de valor”. O discurso do fracasso

utilizado pela escola, muitas vezes não os atinge, simplesmente por que do lugar onde eles

nos olham, os fracassados somos nós. Nós temos um tal conhecimento que nos garante o

que exatamente? Uma miséria de salário, pouco poder, nenhum respeito social. Segurança?

Paz? Também não? Saúde? Dignidade? Do lugar onde muitas dessas crianças e jovens nos

olham, somos a promessa que não se cumpre, somos o exemplo de nossa própria mentira.

O discurso do fracasso é a pronúncia do outro, do lugar onde ele te olha e te avalia segundo

suas referências e valores. Assim não apenas eles fracassam aos nossos olhos, como nós,

os seus outros, também ocupamos o lugar identificado como fracasso.

Já em sua comunidade, passeando em seus carros importados, possuindo as

mulheres que querem, comprando tudo e todos, existem jovens que são conhecidos e

reconhecidos (graças inclusive, a certo glamour produzido pela mídia, sobre estes sujeitos

e suas vidas) sucessos em um certo mundo onde o que vale é o dinheiro, a força e o poder.

Contudo, este mundo, que opera nesta lógica, não é apenas o mundo do tráfico, ou das

milícias, ou de qualquer outra forma de organização “marginal”, este é também o mundo

“oficial” produzido pelo mesmo projeto hegemônico que defende que o “terror” é sempre

produzido pelo “outro”, não reconhecendo este outro como espelho. Seja nas favelas, em

Wall Street ou Hollywood o que vale é o dinheiro, a força e o poder. São redes que

mantém uma relação – dialética e dialógica – e que vão tecendo uma compreensão sobre

como devemos ser e estar neste mundo inexoravelmente preso dentro desta teia. Essa é a

lição produzida por essa concepção de mundo, através de múltiplos recursos, em várias

linguagens, com as mais diversas roupagens. Valorizam e ensinam – para além dos seus

discursos sobre democracia, cidadania, respeito etc – para nossos jovens e crianças. E eles,

parecem, têm prestado atenção sim!

Nós temos nos preocupado muito em discutir nossa compreensão sobre o fracasso,

mas precisamos prestar mais atenção também, na produção do nosso discurso sobre

sucesso, e o que ele tem ensinado às novas gerações. O que aplaudimos? O que

valorizamos?

Estes não são lugares únicos ou fixos, são lugares deslizantes, são identidades que

se criam e recriam a cada momento produzindo diferentes concepções de sucesso e,

portanto, ressignificando o lugar do fracasso para os diferentes sujeitos e grupos sociais.

161

Concepções que na escola entram em conflito. Um conflito de interesses, valores,

expectativas, desejos.

Podemos considerar que nós, professores e professoras, das redes públicas de

ensino somos – em nossa perspectiva burguesa – um sucesso escolar, afinal somos todos

concursados, nos submetemos as “avaliações” elaboradas pelos “especialistas” que

selecionaram em um universo imenso os “melhores” (não é essa a crença?), mas o que de

fato isso nos garante?

Uma escola pública com uma qualidade tão (legitimamente) questionada que estes

mesmos sujeitos são considerados inaptos, despreparados. O que houve neste processo que

faz com que os mesmos sujeitos considerados mais aptos pelo concurso – assim apontados

pelas provas – razão primeira utilizada por tantos discursos para justificar o investimento

no estudo, meses depois ingressem na longa fileira dos “incompetentes”? Eles se

transformaram ou o processo de seleção apoia-se em critérios que precisam ser revistos?

Em ideias e crenças equivocadas? Então treinamos crianças na arte de fazer provas, na arte

de passar em concursos, que no final das contas além de não garantirem uma seleção

eficaz, não provam nada?!

Agora (2010) entre mais um dos projetos fantásticos para elevação da qualidade da

rede, serão contratados sem concurso público, acadêmicos para formarem uma tropa de

elite de professores, com salários diferenciado dos concursados, sob a alegação de que o

concurso não seleciona bem. Ou seja, a prova única elaborada pelos “especialistas” serve

de parâmetro para qualificar e desqualificar nossas crianças, mas não serve para selecionar

os professores? A mesma universidade que forma os acadêmicos que serão contratados

como professores de elite62 é incompetente para oferecer os profissionais que elaboram as

provas de seleção? Ou seja, nos discursos oficiais encontramos uma contradição interna,

onde a avaliação global ora é um instrumento privilegiado, ora é um instrumento

questionável.

Concordo com o debate sobre os instrumentos de avaliação e seleção serem

questionáveis, mas não posso concordar com tamanha incoerência: são questionáveis para

a seleção de professores, mas não dos alunos? Então nos resta a pergunta: como

selecionar? Existem instrumentos capazes de garantir realmente a qualidade desta seleção?

62 Ignorando neste discurso o número de professores pós-graduados que nossa rede possui.Ou ainda um número infinito de professores que possuem décadas de experiências bem sucedidas em suas salas de aula. Conhecimentos adquiridos ao longo de suas carreiras.

162

Podemos ampliar esta reflexão e perguntar o que provou a prova que aprovou os

policiais que nos roubam e compactuam com o crime? O que provou a prova que aprovou

os juizes que vendem sentenças, os advogados que contrabandeiam celulares, os médicos

que violentam, roubam, vendem receitas ou simplesmente ignoram seus pacientes.63 O que

as provas que todos estes profissionais, e tantos outros, concursados ou escolhidos por

seleção não menos exigente e excludente feita pelo mercado, exemplos de sucesso escolar,

provam? Casos isolados? Talvez. Extremos? Com certeza. Mas não são exatamente nossos

“monstros” que nos mostram64? Que mostram as fragilidades desta crença na

imparcialidade do projeto seletivo? Que os “melhores” passam? Talvez sejam exatamente

estes pequenos grandes monstros que produzimos que mostrem toda a falência deste

projeto que acredita que o “ótimo é inimigo do bom”65. Quem são os melhores em nossa

sociedade? O que valorizamos como melhor? Como os avaliamos e assim os definimos?

Quem serão os escolhidos para determinar quem serão os ótimos e quem serão os bons?

O que todos estes sujeitos que passaram em tantas provas, que comprovaram sua

competência em marcar os x certos nas respostas certas, que provaram ser capazes de jogar

o jogo da seleção e exclusão com maestria, que acumulam milhares de informações e um

certo conhecimento que os permitiu conquistar um lugar – do sucesso – ambicionado por

tantos – que fracassam – nos provam?

Provam que perdemos o rumo. Que na ânsia de transformar nossas escolas em uma

agencia de treinamento para um futuro que não questionamos e aceitamos como

inexorável, não sabemos mais o que realmente é importante formar. Que tipo de ser

humano estamos formando e para que mundo? O quanto isso realmente nos preocupa? Que

espaços a informação e a formação ocupam em nossas práticas?

Quais são os conhecimentos realmente necessários para a formação de um ser

humano que tem como desafio reverter a relação predatória devastadora que estabelecemos

com o planeta nos últimos séculos para talvez, garantir um futuro viável e sustentável?

As milhares de informações que nos chegam diariamente sobre aquecimento global,

guerras territoriais, êxodo de populações inteiras, aterros sanitários gigantescos, lixo

industrial e tecnológico, derramamento de petróleo nos oceanos, desmatamentos, etc,

bastam para formar sujeitos que em um futuro próximo abram mão de seu direito de

63 @otícias amplamente veiculadas por toda mídia: jornais, internet, televisão, revistas etc. 64 A raiz etimológica da palavra monstro, amostra, mostra é a mesma. Filosoficamente nossos monstros seriam projeções de nós mesmo, como o Mr. Hyde que habita em nós. 65 Frase da primeira carta dirigida aos professores pela nova gestão/2008.

163

“consumir” para coletivamente mudar a história do planeta? Formar sujeitos que trabalhem

juntos, a favor de um bem comum, de um projeto comum? Que criem outras relações entre

si e com o mundo?

Volto as concepções de escola que Bruno, que Francisca, que Luciane defendem.

Volto a escola que Aline acredita. Na escola que desejam, a ética, a solidariedade, o

respeito e a responsabilidade consigo e com os outros, são aspectos centrais do projeto:

“estudar e ser educado”. Quais são os aspectos centrais de tantos projetos em curso

orientados pela lógica hegemônica do capital?

Estes sujeitos não nos desafiam a pensar que existem muitas outras escolas sendo

desejadas e tecidas, muitos outros projetos em curso, projetos muito mais complexos,

muito mais humanos, apesar da invisibilidade a que são relegados?

Quais são os saberes que realmente permitirão que um dia a palavra cidadania

ganhe um sentido e principalmente uma maior materialidade nos corredores de nossas

escolas, nas salas de espera de nossos hospitais, na credibilidade em nossa justiça?

Existem hoje, em nossas escolas, muitas professoras como Aline e como

Rosângela, muitos alunos como Bruno e Francisca que produzem outras relações, que

produzem outras experiências de sucesso. Mas quando poderemos retirar das sombras

essas outras escolas que são tecidas e investir na ampliação de sua ação para que cada vez

mais casos de desrespeito, desleixo e violência contra a vida humana sejam de fato, casos

isolados? Por que a escola que desejamos precisa enfrentar tantas dificuldades, sobreviver

a tantas sabotagens, regulações, para se fazer existir? Enquanto nossos projetos lutam para

sobreviver nos áridos terrenos que precisamos vencer, um outro projeto continua

acorrentado no passado dessa escola cognitivista, conteudista e bancária.

“Que tipo humano estamos formando quando um estudante sabe as regras de

combinação dos elementos químicos se, ao mesmo tempo, não consegue explicar as causas

e consequências da poluição no mundo ou o terror à guerra biológica?”(Sacristán: 2003,

p.57). Que tipo de humano estamos formando quando esse mesmo ser humano conhece,

explica, disserta, reproduz e até produz conhecimentos, mas simplesmente não se importa?

Não assume um compromisso com este saber? Este saber não o transforma? Afinal o que é

aprender?

Em 1985, quando aluna da escola Normal, minha professora de Didática, dona

Selma, ensinou-me algo que carreguei comigo por toda minha vida como docente e como

gente: aprender é transformar-se. Aprender é apreender, é trazer para dentro e tornar este

164

aprendizado parte de você. Parte do que é, do que pensa, do que faz. Estas provas têm

provado o que realmente aprendemos? O que elas provam?

Provam que – décadas depois – em muitos dos projetos em curso continua-se

privilegiando uma educação fragmentada, sem significado. Que não formam homens e

mulheres, que tendo seus saberes compartilhados e ampliados na relação que estabelecem

com os milhares de saberes que produzimos, se tornam mais solidários, mais responsáveis,

com mais respeito por si e pelos outros, como desejam os nossos alunos do PEJA, como

desejam muitos de nossos professores e professoras, como eu desejo.

Provam que se continua privilegiando conteúdos desarticulados com a vida e com a

arte de viver, que se continua buscando verificar a capacidade que “alguns” tem de

memorizar informações – muitas vezes tão desarticuladas que acabam por formar uma

sopa de letrinhas sem nexo – com as quais muitos destes sujeitos não possuem,

necessariamente, algum compromisso ético, moral ou social.

Provam que muitos projetos que dizem buscar incluir os sujeitos – cidadãos de um

simulacro de democracia – cada vez mais o encarceram em uma vida egoísta, fútil,

descartável, individualista e o mais triste, sem sentido. E o encarceram com a pior das

mentiras: de que esse é o melhor futuro para ele. Mas não foi isso que eu ouvi dos meus

alunos, não é isso que ouvimos das professoras.

O desinteresse, resistência, rebeldia e indisciplina, são frutos não apenas da fome

ou ignorância, da miséria ou violência, mas também da consciência. Muitos percebem que

não são poucas as cartas neste jogo que já estão marcadas e que sua derrota, neste campo

onde o outro é o “dono da bola” se não é certa, é no fundo no fundo esperada por muitos e

desejada por outros tantos. Como disse Mark Twain “podemos mentir para uma pessoa,

por muito tempo, para muitas pessoas por pouco tempo, mas para todo mundo o tempo

todo, não”. A história é sempre reveladora. O tempo nos esfacela muitas máscaras e

entrega nossas belas mentiras.

165

VIII. 2ADA2DO CO2TRA O FLUXO...

“Tanto os estudos etnográficos como as sofisticadas análises da educação têm chegado a resultados similares: gasta-se muito, gasta-se mal, o sistema é ineficaz, as taxas de repetência são extremamente elevadas e o aluno reprovado e submetido a sucessivos fracassos muitas vezes tende ao abandono e/ou evasão.” (Prado, 2000: pág.49)

Isso em 2000. Em 2010 gasta-se muito, gasta-se mal e os alunos continuam sendo

submetidos a sucessivos fracassos. Acredito que os programas de correção de fluxo serão

apenas mais alguns dos projetos condenados a ocupar seu lugar no museu de projetos

fracassados da modernidade. Não preciso e não quero esperar para que a história confirme

isso, e que daqui a três ou cinco décadas estejamos orientando teses e dissertações sobre o

fracasso escolar. Vidência? Não, evidências. Por que tenho esta crença? Vejamos.

Em primeiro lugar, porque como vimos, já vai longe no tempo a política de

correção de fluxo, em nossa e tantas outras redes; e mais antiga ainda a prática de formar

turmas unicamente composta por “problemas” – todos os que a escola não compreende ou

não sabe como lidar: comportamentais, de aprendizagem, necessidades especiais etc

reduzidos ao mesmo – isolando-os do resto da escola para que não comprometam os “bons

frutos”.

O problema do chamado fracasso escolar não é recente nem na história da rede

municipal do Rio de Janeiro, tampouco na história do país. Paulo Freire já nos chamava

atenção para essa escola que não produzia sentidos para os alunos das classes populares,

impondo-lhes conhecimentos e linguagem alheias as suas culturas e com isso os excluía.

Ao contrário do que se quer fazer acreditar, as práticas mecanicistas utilizadas amplamente

pelo governo militar nas décadas de 60 e 70 não produziram sucesso escolar, ao contrário,

produziram mais fracasso, exclusão e repetência. Produziram um funil que excluía as

crianças ainda nos primeiros anos do ensino fundamental.

Portanto as chamadas novas pedagogias, ou novas práticas e abordagens,

fundamentadas em estudos científicos de diversas áreas sobre a produção do

conhecimento, não são responsáveis, como certos discursos parecem querer fazer crer, pelo

fracasso das crianças das classes populares, ao contrário, foram buscas legítimas por outras

formas de ensinar que combatessem o fracasso histórico produzido pelos métodos

bancários de uma metodologia primeiro: enciclopédica – criticada desde da Escola Nova –

depois tecnicista – criticada pela Pedagogia Crítica – empírico-racionalista, produzidos nos

166

anos de ditadura. Foram respostas ao fracasso histórico produzido por anos de políticas

públicas equivocadas descompromissadas com os alunos das classes populares.

No Relatório de Desempenho da SME/1997, Spala (2005)66 aponta que do total de

82.064 alunos matriculados na Rede Pública Municipal, ficaram retidos 21.108 na 1ª.série.

Em 199867 era criado o projeto – para combater a defasagem série/idade, repetência e

evasão – Alunos com oito anos ou mais na 1a. série. O programa previsto para acontecer

em dois anos fracassou, e os 26% de alunos repetentes subiram para 28%, o que

congestionava ainda mais o tal “fluxo escolar”. Diante deste quadro a SME cria em 2000 o

Programa de Aceleração I ao mesmo tempo em que institui o Ciclo de Alfabetização,

agrupando os três primeiros anos de escolaridade em um único ciclo sem retenções. Com

as eleições no final de 2000, César Maia assume a prefeitura do Rio e implanta as turmas

de Progressão. Como muitos dos alunos ao final do Ciclo de alfabetização não estavam

alfabetizados eram encaminhados às turmas de Progressão, para com uma “metodologia

diferenciada” concluírem sua alfabetização e retornarem ao fluxo. Como isso não acontecia

para todos os alunos foi criada a Progressão II. Neste momento eu entrava na rede e

assumia em 2002 minha primeira turma de Progressão. Recebi alunos com um longo

histórico de fracasso na rede e que eram jogados de projeto em projeto. Tinha alunos dos

09 aos 18 anos em uma única turma. Muitos com diagnóstico de retardo, e outros

simplesmente com comportamento considerado inadequado ao espaço escolar. Com a

criação do PEJA em minha escola, muitos foram encaminhados para o turno da noite, de

onde – como era de se esperar – se evadiram.

As propostas para estas turmas se assemelham em muitos aspectos com as

propostas das Ongs: treinamento específico para os professores regentes destas turmas,

material diferenciado, acompanhamento específico por elemento externo, redução do

número de alunos por turma, reuniões especiais, etc.

A defesa teórica para projetos de aceleração da aprendizagem busca uma

fundamentação teórica em Piaget: a aceleração de aprendizado considera que os alunos

mais amadurecidos, que estão em outra “fase” de desenvolvimento, possam acelerar os

estudos, “pulando” etapas que são próprias das crianças pequenas, pois já a superaram. Ou

66

Fátima Terezinha Spala. Políticas de Inclusão e Formação de Professores Alfabetizadores da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

67 Antes de 1998 já haviam turmas com o mesmo “perfil”, e ao longo da história possuiram muitos nomes: renitentes, classes especiais etc. @ão farei um levantamento histórico profundo neste estudo, quero apenas sinalizar a existência deste modelo, que como podemos constatar historicamente, nunca funcionou.

167

seja, já possuem outras estruturas mentais desenvolvidas, portanto seu aprendizado pode se

dar mais rapidamente. O que significa que não levam em consideração os diferentes

caminhos, aprendizados, e relações afetivas que estas crianças produziram nestes anos de

fracasso escolar. Fracassar ensina coisas. E sujeitos diferentes vão se formando nestes

aprendizados.

Historicamente estas turmas criadas com as mesmas expectativas e propostas, são

ocupadas pelos mesmos sujeitos de sempre, um lugar dos “ninguém” da escola.

Tivemos algum sucesso com algumas crianças em nossas Progressões de 2004, que

quando finalmente retornavam ao “fluxo” apresentavam muitos problemas de adaptação,

querendo retornar às turmas de “projeto”. Mas impomos a muitas outras apenas mais uma

experiência frustrante de fracasso. Elas não aprenderam coisas? Com certeza sim. Mas não

coisas o suficiente para tirar-lhes do lugar do fracasso. E o que aprendem com isso, o que

isso ensina? O quanto isso invisibiliza, até para estas crianças e jovens, o seu próprio

aprendizado, atirando tantos em um processo de depressão e revolta? Elas sabem que as

outras crianças acompanham um fluxo que é contínuo e evolutivo até finalmente acabar.

Suas histórias na escola são diferentes: elas circulam, de projeto em projeto, ano após ano,

cada ano com um nome estranho e diferente, sem um ponto de chegada visível. Isso causa

um desconforto, uma sensação de ser colocado a parte, que nós professoras destas turmas,

podemos sentir quando integramos estes grupos. Estamos dentro, mas não fazemos parte.

No projeto implantado para a turma do Se Liga, isto foi assumido de uma forma

ainda mais contundente. Os alunos do projeto não eram contemplados com Educação

Física ou Sala de Leitura68. Serei mais clara: o projeto os impedia de participar de outras

atividades escolares que não fossem as previstas no livro. Isso os excluía de participação

na própria vida da escola.

Fui professora de duas Progressões, trabalhei no ciclo, na série, na alfabetização e

no PEJA. Acompanho desde 2001 a existência dessas turmas. A lógica que as forma. O

desconforto que causam dentro da escola. Acompanhei muitas histórias, muitas narradas

em minha dissertação de mestrado. Essas histórias me fazem olhar para as “novas” turmas

de correção de fluxo com muita desconfiança.

68 Como professora de Sala de Leitura, apesar de ser contrário a orientação da Secretaria, criei um horário fixo de atendimento semanal para todas as turmas da escola comparecerem a Sala de Leitura para atividade de contação de história e empréstimo de livros. Imaginem meu “descontentamento” ao saber que uma turma, em processo de alfabetização, seria excluída desta atividade e do acesso semanal aos livros.

168

Com a mudança de Secretária, mais uma vez retornamos ao mesmo. Mesmos

discursos, mesmas justificativas, mesmas lógicas. Uma década depois, a SME constata

ainda o mesmo fracasso e propõe as mesmas soluções. Só que desta vez, implantadas pelas

Ongs. O que na minha opinião traz novos elementos e agrava o processo de exclusão

dentro da inclusão.

Em 2009 o Projeto Se Liga entra e sai de nossa escola sem fazer a menor diferença

em nossas vidas. Para substituí-lo (não era para ele ter corrigido o fluxo então como

continuam existindo essas crianças? Perguntem-se.) é implantado o Re-alfabetização

(Realfa para os íntimos). Mesmas professoras, mesmos alunos, mesma escola, mesmos

problemas cotidianos de indisciplina, assiduidade, evasão etc.

Publicado em DO no dia 27 de maio de 2010, a resolução No. 1079 instituiu os

projetos especiais para a correção de fluxo na Rede Municipal do Rio de Janeiro. Nesta

resolução ficou estabelecido que:

Para os alunos oriundos

Enturmação

Reprovação

REALFABETIZAÇÃO 1

2o. ao 5o. ano não alfabetizados

defasagem idade série 2 anos

ou mais

2o. ao 6o. ano

ou aceleração 1

Não fica retido. Recebe realfabetizaçao no contra turno sistema

de tutoria.

I REALFABETIZAÇÃO 2

6o. ano, não alfabetizados

6o. ano Aceler

ação 2

Não há previsão

II ACELERAÇÃO 1 Do projeto

realfalfabetização 1 5o. ou

6o. ano Não há previsão

V ACELERAÇÃO 2 7o. e 8o.

defasagem idade série 2 anos

ou mais

Aceleração 2 ou

Ensino Médio

Prova final nota 5,0 Repete

Aceleração 2

Uma professora da turma do Acelera (professora em 2004, como eu, de uma das

Progressões do Donga) mostra-me o material previsto para sua turma e diz que está muito

preocupada. Professora experiente com “este tipo de turma” vem buscando atender aos

objetivos traçados, mas não acredita que muitos de seus alunos estejam prontos. Os alunos

que compõem a turma do Acelera 1 são oriundos da turma do Se Liga, onde o material

utilizado – uma cartilha silábica comum e ruim – estabelecia para o aluno uma

alfabetização mecânica e bastante simples, chegando ao final do ano e sendo considerado

apto o aluno que lesse e escrevesse frases como “o tatu na panela”.

169

No Acelera o aluno depara-se com quatro livros, com cinquenta páginas em média

– um para ser desenvolvido a cada bimestre, ou seja: cada livro uma prova – que

apresentam conteúdos bem mais complexos, textos extensos e uma série de informações

que devem ser retidas e repetidas. A professora comenta a distância entre os objetivos

traçados para um projeto e para o outro, a falta de continuidade, e coerência entre os

materiais. Ela, assim como muitas outras professoras, não acredita que estas crianças

estejam prontas para serem reconduzidas “ao fluxo” muito menos em uma turma de 5o. ou

6o. ano (antigas 4a. e 5a. séries). Contudo não há previsão de retenção no projeto. Não só a

resolução oficial é absolutamente omissa neste sentido como os sujeitos “responsáveis” por

estas informações não sabem o que responder. Se seguir a lógica da enturmação de 2009

para 2010, que já apresentei neste trabalho, estes sujeitos que “fracassarem” serão diluídos

no fluxo, sendo encaminhados para as turmas regulares, tenham obtido sucesso ou não no

projeto.

A Realfabetização dois que pelas informações do documento oficial não é uma

continuidade da Realfabetização 1, já que o aluno reprovado na Realfabetizaçao 1 retorna

ao fluxo e cumpre uma realfabetização em contra-turno em sistema de tutoria – seja lá o

que isso signifique na prática69 – e não é encaminhado a outra turma especial, o aluno ou

vai para o 6o. ano ou para a Aceleração 2, ou seja, de lá, se não ficar retido, ele sai para o

ensino médio. A possibilidade de repetir o projeto só está prevista para os alunos do

projeto especial de Aceleração 2, onde, no entanto, também é previsto pelo documento:

&3o. @o projeto especial Aceleração 2, o aluno que obtiver nota final inferior a 5 (cinco)

no módulo, será reavaliado e, se receber nota igual ou superior a 5 (cinco), está

substituirá a nota final do módulo.

Lembrei-me de nossa LDB 9394/96 quando prevê no Art.24, inciso V, a) a

avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos

qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de

eventuais provas finais; preocupava-se ou referia-se, em minha leitura e interpretação, com

a valorização do processo de aprendizado sobre resultados finais negativos. Mas e ao

contrário a lei não se aplica? Um resultado final positivo(?) substitui todo o ano letivo?

Dito de outra maneira um resultado regular ao final substitui os resultados ao longo do

período? Não está mais uma vez explícito uma certa “facilitação” para a aprovação,

69 Minto. @a prática pode significar mandá-lo para o Apóio à Alfabetização, feito por voluntários e por mim – por ordem da CRE – que consiste em um atendimento de duas horas semanais no contra-turno. Que como pude verificar nestes meses é outro engodo já que eles – como era de se prever – simplesmente não vão.

170

contrariando o defendido pela lógica deste projeto, que seria garantir um salto de qualidade

na educação? E antes que pareça uma defesa pela reprovação dos alunos – o que sou contra

– quero deixar claro que o que desejo trazer para nossas reflexões são as contradições entre

os discursos e as práticas produzidas que o projeto apresenta. O descompromisso com o

aprendizado, com o conhecimento, para centrar as ações políticas no simples passa/não

passa, dos alunos.

Criou-se uma rede paralela (4 anos de escolaridade) à própria rede, para no

complexo jogo de idas e vindas, de enturmações e falta de informações, fazer com que

estes alunos desapareçam de nossas estatísticas. Os alunos encaminhados para estes

projetos “especiais” que tem como desafio encurtar seu tempo dentro da escola, não fazem

as avaliações institucionais e, portanto contribuem para que os nossos índices de sucesso

aumentem, estão presentes, mas estão fora. Existem, mas são invisíveis.

Portanto, minha primeira crítica aos programas de correção de “fluxo” escolar é que

para nós que observamos seu funcionamento in loco, que conhecemos os materiais e a

forma como eles são implementados, eles não têm o objetivo de corrigir o fluxo, ou de

garantir efetivamente o conhecimento a estes sujeitos, o que eles pretendem é fazer

desaparecer estas crianças e jovens tão inconvenientes de nossos índices, para em seguida

fazê-los desaparecer da forma mais rápida possível de nossa escola. Na verdade os

programas de correção de fluxo tornam-se um rio silencioso que corre nos subterrâneos de

nossa escola, para desaguar bem longe dos olhos da sociedade.

Estes programas de correção de fluxo ou correção da defasagem série/idade

simplesmente ignoram os conhecimentos não só dos alunos, como dos professores e da

comunidade escolar ao qual se destinam, tomando todos os sujeitos responsáveis e

participantes do processo de ensinoaprendizagem como se não tivessem uma história,

conhecimentos prévios ou interesses diversos. Por que iniciar com um aluno (que

supostamente deve “acelerar” seus estudos) que já escreve palavras completas e lê, mesmo

que ainda não fluentemente, pela cópia das sílabas simples? Se o tempo é tão valioso por

que fazê-lo percorrer caminhos já percorridos?

A escola contribui para o fracasso destes projetos, enturmando nestas classes todos

os sujeitos que são considerados um problema, inclusive aqueles que a escola tem

consciência que necessitam de outro encaminhamento – que exigiria muito mais empenho

e articulação com a saúde – e que assumem, ao enviá-los para estas turmas, apenas

encontrar um lugar onde “atrapalhem menos”.

171

Ao enturmá-los todos juntos, a escola os apresenta como uma unidade em seus

fracassos, mesmo conhecendo os diferentes caminhos, as muitas histórias que levam estes

sujeitos a ocuparem estes lugares. Muitos destes meninos, e aqui vou falar no masculino

porque estas turmas são formadas 90% por meninos na minha escola e em várias que

conheço, e este me parece um dado bastante relevante, não possuem nenhum problema de

aprendizado, ao contrário, muitos deles são reconhecidos pela própria escola como sujeitos

inteligentes, espertos, lideranças “negativas”. São encaminhados a estas turmas por

problemas de “disciplina”, que não desaparecem, ao contrário, muitas vezes se agravam.

Ao fecharmos nossos olhos para os diferentes caminhos, processos e aprendizados

produzidos por estes meninos, não nos permitimos uma intervenção pedagógica eficiente,

que se oriente a partir do que eles sabem, construíram e acumularam nestes anos de vida,

dentro e fora da escola. Trilhar o mesmo, ser tomado a partir do zero, ser colocado no lugar

do que nada sabe, torna-se muitas vezes enfadonho – e desrespeitoso – com estes meninos,

que acabam reproduzindo os comportamentos reativos já esperados pela escola, que por

sua vez os utiliza para justificar o fracasso do sujeito: “esse não tem jeito!”.

Além do pressuposto explícito de que os alunos não aprendem simplesmente

porque nós, professoras, não temos competência suficiente, para elaborar materiais tão

magnificamente estruturados (como os que vimos!), e ensinarmos nossos alunos a marcar

bolinhas em cartões resposta, existe um pressuposto que estes sujeitos passaram anos de

suas vidas dentro da escola e “nada” aprenderam, já que não correspondem ao modelo

preestabelecido pelos “avaliadores”. E longe de mim o interesse e irresponsabilidade de

afirmar que aprenderam o suficiente ou o que acho que lhes seria de direito aprender, o que

Bruno, Luciana, Francisca e tantos outros alunos reivindicam ser dever da escola ensinar.

Contudo, como compreendem que nós nada sabemos para ensinar e os alunos, nada

aprenderam, somos tomados a partir do marco zero e iniciamos um programa que

simplesmente ignora as diferenças sociais e locais para pretensamente nos “incluir” na

sociedade.

Obrigo-me a dizer que é verdade, existem muitos professores inexperientes e tantos

outros com uma formação insuficiente – e gostaria de me incluir nesta insuficiência, pois

creio que mesmo que estude minha vida inteira nunca será o suficiente para a

complexidade que a prática docente exige – e um número ainda considerável de

professores desmotivados, descomprometidos e outro tanto de professores ao acaso: não

conseguiram fazer coisa melhor de suas vidas e foram ser professores, sua última e

172

degradante opção. Contudo, esse quadro que apresenta um perfil tão diverso de

profissionais não me parece privilégio ou exclusividade do magistério.

Entretanto, temos que discutir se serão melhores professores em um programa que

os desconsidera como sujeitos de saberes excluindo-os do processo de

ensinoaprendizagem, tratando-os e expondo-os como executores mecânicos e acéfalos de

um produto pré-fabricado homogenizador e universal? Não seria como dizer não importa

que o médico seja bom ou ruim nós garantimos que um único medicamento prescrito irá

proporcionar a todos a cura? Contratem-se então voluntários: sigam o manual!

Isso não seria simplificar uma prática complexa que no contexto social de nosso

país exige muito mais de nós? Ignorar a importância dos aspectos relacionais? A

importância da formação de professoras e professores para a mediação entre os sujeitos,

entre os sujeitos e os conhecimentos, entre os sujeitos e as culturas, etc. Esta simplificação

não reduz a atividade docente a uma atividade burocrática e mecânica desconsiderando seu

caráter político, social e cultural?

Uma das reclamações frequentes das professoras que foram arrastadas e

convencidas da “mágica” destes programas é que o formato fechado ignora o quanto estes

alunos faltam, o que dificulta a sequência prevista, entre outros problemas cotidianos para

a implementação do “método”.

Nossa formação é, com certeza, insuficiente para responder às múltiplas questões

que se apresentam em nossos complexos cotidianos. Para conhecer tantas diferenças, tantas

possibilidades, tantas lógicas que se operam no sujeito em seu processo de

amadurecimento, de descoberta e interação com o mundo. Por isso pesquisamos,

estudamos, refletimos, interagimos, ouvimos o outro, fazemos com o outro. Talvez não se

trate de criar e recriar novos/velhos projetos, apenas ir ao encontro, sentar-se na roda,

contar e ouvir histórias, aprender com elas...

“Discordando de que os sujeitos que atuam na escola são

incompetentes ou que a solução para a crise da escola sejam “novos projetos”, defendemos só se contribuir para a transformação da escola, reconhecendo-a como um espaço/tempo de permanente transformação, em que sujeitos mutantes e complexos vivem complexos processos que, para serem compreendidos, exigem pesquisa e humildade para romper com a onipotência que nos formou.” (Garcia e Alves, 2006: pág 16).

A consciência da complexidade e de nossa própria incompletude nos exige muito

mais humildade e cuidado ao oferecer prescrições universais, estruturas e modelos únicos

que prometem “qualidade” e “sucesso” para esse “todos” ignorado.

173

O programa implantado baseia-se em uma generalização e universalização não só

de lógicas e modelos, mas de sujeitos. E demonstra claramente isso ao trazer personagens

que “obviamente” fazem parte do universo infanto-juvenil de algumas crianças, questões

elaboradas em uma lógica que “obviamente” vê uma distinção entre “mulher” e “moça”,

que “obviamente” sabe o que é um tatu, um circo, um personagem da Disney.70 Qual a

função desta avaliação? Qual a função de uma avaliação que não serve para qualificar a

escola, mas para desqualificar os sujeitos?

Paulo Freire nos ensinou que partir dos saberes de experiência dos sujeitos não

significa limitar-se a eles. É função e dever da escola ampliar o universo cultural e social

dos alunos, fazendo-os reconhecer e respeitar suas culturas assim como outras tanto as

igualmente subalternizadas quanto aquelas legitimadas pelas elites.

Acredito, portanto, que é fundamental que a escola proporcione ao aluno o maior

número de interações e descobertas possíveis. Que permita que ele possa conhecer para

poder de fato escolher, o que é primordial na formação de qualquer cidadão. No entanto, ao

partir de um pressuposto universalista para um conhecimento reduzido e homogêneo, não

nos comprometemos com esta ampliação, com esta aprendizagem significativa.

Um segundo aspecto que quero destacar – entre tantos outros que ainda podemos

analisar futuramente – é que os programas de Correção de Fluxo como o Acelera Brasil

mesmo com muitas diferenças ideológicas e conceituais, baseiam-se na crença de que

existe um fluxo a ser seguido. Fluxo é algo corrente. Quando falamos em correção de

fluxo, estamos garantindo que este fluxo – que corre – deva correr em uma certa direção e

em um certo tempo, quando isso não acontece temos que corrigir o fluxo. Quando falamos

de defasagem idade/série, estamos vinculando o aprendizado de cada sujeito a um fluxo de

tempo que pressupõe que os seres humanos devam aprender as mesmas coisas, ao mesmo

tempo, para serem considerados “normais” ou um “sucesso” escolar. Mesmo que esta

corrida imposta às crianças em idade escolar não represente no futuro um ponto de chegada

comum, ou determinado, muitos dos projetos para a escola insistem nesta lógica.

Pais, mães, professoras, de diferentes classes sociais preocupam-se com este fluxo.

Ter um filho em uma série adiantada a sua idade é um prêmio; lutas são travadas

diariamente para que crianças em idade de Educação Infantil – e às vezes creche – sejam

submetidas ao treino motor da cópia de letrinhas – que muitas vezes nada significam para

70 A professora do quinto ano ( 4ª série) entra na minha sala de leitura e diz que ficou surpresa pois um terço da turma – com idade entre 9 e 11 anos – não reconhece o Sítio do Pica-Pau Amarelo ou seus personagens, apesar da ampla exposição – tanto na escola, como na mídia – que esta obra de Monteiro Lobato tem.

174

elas – e outras práticas mecânicas, que algumas crianças realizam até com certo prazer,

mas que muitas vezes impõe-se prioritariamente sob atividades de criação, experimentação

e vivências; lutas para que as crianças que fazem aniversário no meio do ano ingressem

cada vez mais cedo no ensino fundamental.71

Por que tanta pressa? O que isso representará para a vida dessa criança? Por que

exigir de crianças tão pequenas o treino, a paralisia do corpo, o silenciamento das vozes, a

morte – decretada com a entrada no ano um – de sua infância, aos cinco anos e meio, seis

anos? Agora acabou a brincadeira! Agora é sério. Bem vinda à escola “produtiva”.

Isso nos faz pensar que a função prioritária do projeto do Estado avaliador não é

realmente garantir uma escola de qualidade “para todos” – o que na verdade não acreditam

ser possível, já que não acreditam que “todos” tenham mérito para tal – mas impor a

“todos” lógicas do mercado capitalista: controle sobre os tempos dos sujeitos, incentivo a

alta competitividade, exclusão dos “menos” capazes (ou ajustados?), premiação dos “mais”

capazes (ou ajustados?), a definição do valor de um conhecimento, e do sujeito que o

possui, por seu potencial mercadológico, pela possibilidade de trocá-lo por bens de

consumo. Freinet nos inquieta e nos questiona:

Mas alguém acredita verdadeiramente que realiza alguma ação útil quando o

afastamos artificialmente da lenta formação funcional que lhe era essencial, para iniciá-lo, mediante lições, exercícios de memória e castigos, num intelectualismo que está além dele? O resultado será perturbá-lo, desenraizá-lo, desequilibrá-lo, comprometer sua ascensão normal para a verdadeira inteligência.(2001: pág.62)

O que é uma educação séria? Copias imensas para manter os corpos inertes e as

bocas fechadas? Programas que obrigam a todas as trinta crianças de uma sala aprenderem

– responderem – o mesmo, ao mesmo tempo, com as mesmas palavras, marcar as mesmas

cruzinhas, nas mesmas – e únicas – alternativas? Entrar na lógica da competição? Isso é ser

sério? A aluna Zenaide nos aponta outras direções oferecendo outros sentidos para

pensarmos o que é “competir”, o que é “vencer”.

“%a minha opinião ser verdadeiro campeão não é chegar em

primeiro lugar, mas chegar até o final. Semelhante às Olimpíadas é a nossa vida. Muitos disparam na frente para chegar em primeiro lugar, mas quando se deparam com as dificuldades, desistem. O importante é sempre competir e chegar até o final da corrida. Perseverança é seguir em frente apesar dos obstáculos”((Zenaide).

71 A rede Municipal do Rio de Janeiro estabeleceu em 2010 o ingresso das crianças com 5 anos e meio nas classes de Ano 1 (alfabetização).Como efeito colateral reduz-se o tempo de “brincar” da Educação Infantil para introduzir cada vez mais cedo atividades que na década de 80 denominávamos e criticávamos como exercícios de prontidão.

175

Porque apesar de tentarem nos impor a lógica da corrida, do pódio, da medalha,

para muitos de nós, não é isso, no final que conta. O que conta é a tenacidade com que

encaramos nossos limites, nossos desafios e vamos percorrendo passo a passo um caminho

que é só nosso. Chegar antes ou depois não importa, importa a qualidade do caminho

trilhado. Qualidade que tem sido preterida pelos processos acelerativos que dizem

preocupar-se com o tempo. Ora, fosse a escola de tempo integral, com se defende desde o

inicio do século passado, como propôs Anísio Teixeira, e como implantou Darcy Ribeiro,

poderíamos nos preocupar menos com o tempo e mais com a qualidade desse tempo

escolar. E não falo de uma escola de tempo integral apenas para mantê-las longe dos

perigos da rua, enquanto seus pais trabalham. Não somos um depósito, um armazém de

crianças.

Falo da escola integral que permita a esse aluno tempo para viver experiências

concretas e significativas de aprendizagem, em um currículo que permita que outros

conhecimentos sejam valorizados, que outros saberes sejam desenvolvidos, onde encontre

o apoio que necessita para ir ao longo do percurso escolar adquirindo as competências

fundamentais à sua interação ampliada com o mundo, sem necessidade nem de retenções,

nem de “pulos”.

A ideia de sucesso escolar ganha na voz de Zenaide novos vértices. Para uns, ser

um sucesso escolar, é acompanhar o fluxo. Você não aprendeu as regras da ortografia? Não

aprendeu a somar para depois subtrair? Esqueceu-se de quase tudo que “aprendeu” este

ano entre o Natal e o Carnaval? Tudo bem, se o que foi medido garantiu que acompanhasse

o fluxo, você é um sucesso escolar!

Como muito bem observa Sacristán: “O êxito e o fracasso escolar não são

realidade ou apreciações objetivas de competências do estudante, mas o resultado de

como se entende e como se aprecia o processo e os resultados de aprendizagem.”(1998: p.

306) ou daquilo que resolve-se compreender e medir como aprendizagem, não

significando, necessariamente, que o examinado tenha sido, de fato, aprendido.

Iniciei este texto falando sobre escolhas. E ao longo dele apresentei muitas escolhas

de muitos sujeitos que pensam a escola que fazemos. Para nós professoras, esta escolha me

parece ser uma escolha teórico-epistemológica fundamental para que tenhamos clareza de

nosso papel de educadoras no processo de ensinoaprendizagem. Para que possamos refletir

sobre o que significa exatamente nossa crença em um fluxo único e universal que todos os

sujeitos devam acompanhar para alcançar o selo da “normalidade”.

176

A crença nesta universalidade do que seja “normalidade” criou para nós parâmetros

muitas vezes intransigentes e arbitrários, que vem ao longo de nossa história se traduzindo

em uma violência contra sujeitos e grupos, culturas e nações.

As ciências que tentam produzir estas linhas fronteiriças entre o normal e o anormal

ignoram muitas vezes que as diferenças histórico-socio-culturais – examinadas entre

outros, por Vigotsky em seus trabalhos – produzem aprendizados e, portanto,

desenvolvimentos diferentes, que se não percebidos como tais, atiram os sujeitos no lugar

fora do curso, no lugar da anormalidade.

Devemos encarar com tranquilidade o fato de um aluno permanecer dez anos em

uma escola, vivendo em uma sociedade altamente letrada como são as sociedades urbanas,

e não aprender a ler e escrever? Claro que não! Mas as sociedades urbanas, em especial a

nossa no Rio de Janeiro, possui muitos textos que precisam ser lidos, interpretados e

refletidos também. Ela não é só letrada. Ela é injusta, violenta, excludente. Estes textos

também se inscrevem em nós, cariocas, professoras e em nossos alunos e alunas, também

nos formam e constituem nossos aprendizados, marcam nossas relações, atravessam nossas

práticas.

Não proponho que ignoremos que existe um fenômeno que deva ser estudado e

analisado a exaustão para que isso não mais aconteça. Contudo incomoda-me as propostas

inócuas que vem se apresentando, que parecem nos afastar cada vez mais deste futuro

possível. Propostas que muitas vezes ignoram que:

“A educação é um serviço para ser prestado aos cidadãos, seja qual

for seu ponto de partida e o ritmo de seu progresso. A avaliação deve servir ao conhecimento de suas necessidades em vez de ser uma corrida de obstáculos para se superar ou elemento de hierarquização e exclusão desse serviço” (Sacristán, 1998: pág. 299)

Programas que tanto reduzem a complexidade do fracasso como não problematizam

o conceito de sucesso, oferecendo programas que não tratam do problema da aprendizagem

ou não-aprendizagem, mas do tempo e como é bastante enfatizado nos documentos, do

custo deste aluno, não vem produzindo ao longo de nossa história recente, resultados muito

brilhantes. Interessante notar que nas propagandas dirigidas a elite à educação não é custo.

Para criança rica educação é investimento, para criança pobre é custo. Ignora-se também

que um dos países onde mais se paga imposto deveria ter vergonha de investir o que

investe em educação e dizer que educação é prioridade.

177

Flexionar o tempo para que o aluno se adapte melhor ao curso da escola; recuperar;

reconduzir, reagrupar, realfabetizar72. Classes para avançar o tempo perdido, o dinheiro

perdido...

Acredita-se que o aluno “perdeu” algo que devemos recuperar. Mas o que? O

conhecimento? O tempo? O dinheiro público? Por isso ele definitivamente deve passar por

um processo que ignora completamente todos os múltiplos aspectos que contribuíram para

este afastamento do aluno do curso considerado “normal” e simplesmente “refaça”,

“reaprenda”, retorne.

O uso cada vez mais insistente do “re” fazer indica uma falta de disposição para

pensarmos alternativas realmente inovadoras, que caminhem em outras direções, que

aprendam com seu próprio fracasso, que levem em consideração as reflexões produzidas

pelos sujeitos das escolas, de cada escola. “Re” fazer é fazer o mesmo de novo. Insistir na

repetição dos mesmos modelos, dos mesmos caminhos, dos mesmos manuais.

Trabalhei em 2002 e em 2004 com classes de Progressão73, que assim como os

programas de Aceleração tinham como objetivo a correção do fluxo. A proposta muito se

assemelhava com as muitas outras que vão nesta direção: classes com alunos “fora do

fluxo”. Re-projeto fadado ao re-fracasso.

Nos cursos de “capacitação”, as “capacitadoras” enlouqueciam com as questões

para as quais não tinham respostas nos manuais: os alunos são muito faltosos, se ele não

vai, como aprender? Eles têm baixa autoestima, se eles não acreditam, como aprender?

Eles trazem muitos problemas sócio-familiares, comportamento altamente violento, o que

eu faço? Etc. etc. etc. Resposta (única): rever o método! Conclusão: alunos que

acumulavam três anos em classes de Progressão até serem convidados a ingressarem no

PEJA, de onde (com sorte!) poderiam se evadir mais facilmente. As mesmas perguntas, as

mesmas respostas, as mesmas perversas soluções... Precisamos vencer este ciclo vicioso

que se formou, mesmo que as políticas públicas – e todos os sujeitos que, de diferentes

pontos da trama social, as sustentam – nos arrastem para essa “re” invenção do passado.

“Por outro lado, como alguns estudos de caso têm demonstrado, uma

gestão escolar muito polarizada na função de controlo organizacional provoca efeitos contraproducentes podendo levar alunos e professores a um maior desinvestimento na escola – o que, por sua vez, implica, paradoxalmente, um novo ciclo vicioso que Linda Mc%eil(1988) designa por “contradições do controlo”.(Afonso, 2005: pág 47)

72 O termo foi introduzido pela nova gestão da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, 2008. 73 Experiência narrada em minha dissertação de Mestrado: Cultura Escolar em movimento: diálogos possíveis, 2006.

178

Hoje o programa Se Liga, transformado em Realfa, retoma a crença tecnicista (de

fundo behaviorista) de que controlando (?) os meios, determinamos os fins, desde que o

“manual” seja seguido fielmente, ignorando a complexidade das relações que alunos e

professoras encontram na sala de aula. Supervaloriza os métodos e técnicas e subestima os

sujeitos envolvidos diretamente nas relações que irão produzir ou não um aprendizado

significativo e um sucesso real do processo. Re-vive, ou tenta reviver, a história da

educação brasileira que produziu entre outras coisas os milhões de adultos analfabetos, que

como os meus alunos (do PEJA), foram excluídos desta “saudosa” escola “que ensinava”.

Reunir em uma mesma turma um grupo de alunos considerados “fracassados” não

representa novidade nem para escola, tampouco para a rede. Elaborar para estes alunos um

material específico – fortemente estruturado – também não. Empurrar para debaixo do

tapete as discussões sobre as condições materiais, os recursos humanos, a realidade sócio-

política do país, como se ela nada tivesse a ver com a produção do fracasso, também não. E

concordamos que: “Insistir na reprovação e nas práticas tradicionais de avaliação,

viajando na contramão da evolução teórica em educação, como solução para problemas

que são políticos e administrativos é, no mínimo, cruel e antiético. (Hoffmann, 2005: pág,

60).

E investir dinheiro público na compra de materiais muitas vezes de qualidade

duvidosa, com pressupostos homogeneizadores e universalistas, fundados em um senso

comum pedagógico, ignorando a produção científica do campo, quando turmas de

Alfabetização são formadas com mais de 30 alunos; em salas nem sempre confortáveis, em

escolas sem profissionais especializados, com recursos humanos e materiais reduzidos em

uma realidade social que a ausência e omissão do poder público tornam cada vez mais

insuportáveis, me parece realmente, no mínimo, cruel.

Em nosso CIEP a equipe de 5 pessoas é responsável por cerca de 1300 alunos, 40

funcionários, divididos em três turnos de 7h às 22h, suas funções incluem prestação de

contas, inventários, supervisão de obras, atendimento aos pais, matrículas, históricos,

primeiros socorros, conferir e pesar mercadorias da merenda, substituir professores

ausentes, fiscalizar os banheiros e corredores, coordenar os diferentes horários de entradas

e saídas de alunos, distribuir material e uniforme, cumprir toda burocracia administrativa,

ver os emails, comparecer a reuniões e, às vezes, com o tempo que sobra, quando sobra,

pensar as questões pedagógicas da escola, o que raramente é feito, mas isso afinal, parece

ser irrelevante, já que temos quem pense por nós.

179

Apesar de obrigatório para as escolas da rede privada, no município do Rio não

existem profissionais concursados, ou com formação acadêmica profissional, para os

cargos de Diretor, Secretário Escolar, Coordenador Pedagógico e Orientador Educacional.

O diretor é eleito pela comunidade escolar, e pode ser professor de qualquer disciplina sem

formação em administração escolar. O coordenador pedagógico, também com qualquer

formação, assim como o diretor adjunto e apoio à Direção são indicados pela direção.

Orientador Educacional não existe. Secretário Escolar, também não existe.

Talvez devêssemos parar de tentar re-ensinar e simplesmente ensinar. Parar de fazer

jogos de palavras, já que é impossível re-alfabetizar, e simplesmente alfabetizar.

Comprometermo-nos – professoras, alunos, famílias, gestores – com avaliações que

contribuíam realmente para direcionar um trabalho diversificado que respeite cada aluno

em seu processo de construção e produção do conhecimento e não com uma frágil

recuperação paralela e uma infeliz e inócua infinidade de re-fazeres.

Talvez devêssemos parar de esperar pelo fracasso para reduzir o número de alunos

por turma. Não esperar pelo fracasso para pensar seriamente um projeto para alfabetizá-los

efetivamente. Não esperar pelo fracasso para garantir espaços de formação continuada – e

de qualidade – para todos os professores.

Talvez devêssemos pensar sobre que “sucesso” escolar é esse que a escola vem

produzindo para a partir dele repensar porque e como definimos que tantos vêm

fracassando.

O fracasso existe. Não é só do aluno, não é só da professora, não é só da família

individualmente. O fracasso é também social. O fracasso é também consequência do

projeto de mundo hegemônico que temos em curso. E mesmo que sejam criados

mecanismos para invisibilizá-lo ou amenizá-lo produzindo os sucessos necessários à

sustentação do próprio sistema, não acredito que dentro deste projeto surjam soluções reais

para resolvê-lo. Não acredito que tenham epistemologicamente a crença nesta

possibilidade, tampouco politicamente esta intenção.

Por isso precisamos investigar e retirar das sombras os outros projetos que, sem

ocupar as páginas da impressa e telejornais, criam experiências de sucesso que produzem

relações emancipatórias e potencializadoras, que produzem outros cidadãos. Que mostram

como outras escolas são produzidas, como outras escolas são desejadas.

Não existem respostas simples. E se estas respostas existem, nós só as

encontraremos juntos.

180

IX. LEO2ARDO...

A conclusão deste ou de qualquer trabalho é sempre um desafio muito grande para

mim. Primeiro porque a vida não para, não me deixa colocar um ponto final, sem a

sensação de que muitas outras histórias precisariam ser contadas, de que muitas outras

vozes precisariam ser ouvidas. Depois, porque meu processo de pesquisa e escrita se faz

neste vai e vem de ideias, de conclusões parciais e dúvidas que se movem, que se

desafiam, que são revistas e reescritas, página a página, capítulo a capítulo, dia a dia.

Este é, portanto um trabalho inconcluso. Como eu. No entanto, preciso contar mais

uma história. Uma história de amor. Como são escritas tantas histórias de amor entre as

professoras e seus alunos, entre a professora e seu fazer, sua profissão. Não o amor

preconizado por querer se fazer do magistério um sacerdócio, ou esperado por um falso

vínculo familiar (tia, segunda mãe). Falamos de outro tipo de amor. O amor de que nos fala

Freire, amor produzido na solidariedade, no reconhecimento do outro como sujeito de

importância e valor, amor onde eu me produzo como gente no mundo. Uma história que

não conclui, ao contrário, deixa aberta uma porta para que nossas conversas continuem...

Uma história que precisa ser contada, mas não como uma ilustração de tudo que

discutimos, sobre as teorias que defendemos, o que seria um desrespeito, não só pela

professora Aline e seu aluno Leonardo, mas por todas as professoras e seus alunos a quem

penso, esta história tão bem representa. Uma história que nos justifica, nos dignifica, nos

tira dos porões onde tantos insistem em nos atirar. Convido Aline para narrá-la:

O aluno Leonardo que eu chamei a minha mesa e estava fazendo um trabalho com ele e chegou uma mãe e a mãe perguntou pra mim: “– Aline ele não reconhece as letras do nome?”. Era justamente o nome que ele estava montando. E eu falei “ – %ão ele não está reconhecendo, ora ele escreve o nome sem apoio, mas inverte tudo e oras ele consegue escrever com apoio e mesmo com apoio tem dias que ele não escreve.” E a mãe falou: “ – Engraçado eu já encontrei com ele na Lan House e ele mexe nos computadores, ele joga nos computadores da Lan House...e como Aline que ele não está aprendendo a ler?” Eu falei : “ – É eu também estou me perguntando, agora a senhora trouxe uma coisa que eu não tinha conhecimento, e eu mais do que nunca me pergunto, porque o Leonardo não está aprendendo a ler?” E é uma coisa que eu tenho me defrontado desde que a mãe do Fernando comentou isso comigo. Que eu até comentei de pegar o teclado do computador para ver se ele joga, se ele esta familiarizado com aquele teclado e começar a perguntar para ele o que tem no teclado...Sei lá partir daquele teclado ali que ele acessa sempre, que ele tem acesso aquele teclado e tentar fazer alguma nova

experiência com ele, já que eu não tenho dado conta, com as coisas que eu tenho feito em sala com ele.(Aline)

Leonardo/ Foto Andréa Serpa

181

Logo depois de nossa roda de conversa, procurei Aline para saber mais sobre o

aluno Leonardo, Leozinho como ela o chama. Leonardo é um dos muitos filhos de uma

“família-fracasso”. Uma entre muitas outras famílias que a nossa escola identifica,

reconhece – e não raramente rotula – pelo sobrenome: filho de quem? Ih vai ser problema!

Irmão de quem? Dei aula para a família toda, nenhum deles jamais aprendeu!

Fui professora de uma das tias de Leonardo na classe de Progressão quando ela

tinha 10 anos. Não consegui alfabetizá-la. Ela também não conseguia escrever o nome sem

um apoio. Perdia-se quando tinha que contar quantidades acima de 3, mesmo olhando para

as tampinhas coloridas sobre a mesa. Tentei desesperadamente tudo o que sabia: materiais

concretos, jornais, gibis, rótulos, até mesmo a cópia exaustiva do próprio nome, confesso.

Nada. Meu “tudo” não foi o bastante. Depois de mais alguns anos na escola, indo de turma

em turma, de fracasso em fracasso, foi encaminhada ao PEJA, ainda na classe de

alfabetização. Permaneceu no programa até engravidar. Hoje é mãe. E a escola já teme ter

que receber seu filho.

Precisamos pensar com mais cuidado sobre esta sociedade que produz este fracasso

em série. Não apenas de um indivíduo, mas de uma linhagem de fracasso, uma classe de

fracasso. Penso na perversidade de se nascer predestinado pelo peso de um sobrenome que

apaga seu nome – e talvez por isso este capítulo traga o nome desta criança – que ainda tão

cedo, ou mesmo antes de nascer, o condena a lugar de onde é tão difícil sair, simplesmente

porque muitas pessoas já naturalizaram que este é o seu lugar. Lugar que afinal alguém

precisa ocupar para iluminar o sucesso de outro alguém. Como nascer no fim de sua

história? Nascer em uma história que não precisa ser escrita, pois todos já sabem o final?

Compreendo que pertencer a uma família nos proporciona muitas experiências

semelhantes, mas não semelhantes o bastante para apagar as marcas de nossa história, de

nossas vivências e singularidades. Existe, nos discursos produzidos sobre estas famílias-

fracasso, um teor ora inatista, ora empirista, ora genético, ora social, o que não faz muita

diferença, que geralmente é utilizado para justificar os resultados destas crianças na escola.

Ecos de discursos pedagógicos de tantos tempos se confundem: a criança não aprende

porque é desnutrida; não aprende porque os pais são geneticamente comprometidos pelo

álcool e pelas drogas; não aprende por que não possui “capital cultural”; não aprende por

que vem de uma família que é toda analfabeta; não aprende por que tem alguma “doença”.

Não ignoro que muitas destas crianças são vítimas sim, do mesmo abandono, da

mesma falta de carinho, da mesma miséria que embrutece tantos corações humanos,

produzindo tantas infâncias tristes. Contudo, não podemos tomar os sujeitos como uma

182

imensa massa sem rosto, apenas pelos lugares que ocupam. Outras infâncias, igualmente

tristes, igualmente abandonadas, igualmente carentes de atenção, são produzidas em

diferentes universos e classes sociais. Também não podemos ignorar que, para além de

nossos lugares-comuns, produzidos em nossas experiências culturais, existem outras

formas de carinho e de atenção. Por tudo isso, não podemos usar as suas histórias para

justificar o nosso abandono, justificar o nosso desinteresse. Usar essa crença darwinista em

uma seleção natural para fabricar exclusão e miséria. As crianças, assim como nós, são

sujeitos que possuem uma história, mas esta história possui muitas linhas, entrelinhas,

muitos textos ocultos que nem sempre nos permitimos ler. Textos que ignoramos muitas

vezes, apenas por julgarmos os livros pelas capas.

Nosso trabalho é buscar as histórias destas crianças e reescrever outras histórias

com elas e não apenas reproduzir as histórias de abandono e indiferença que muitas já

vivem nesta sociedade. Acreditar que estas crianças aprendem sim, e que talvez sejamos

nós que ainda não saibamos exatamente como, que talvez sejamos nós que precisemos

garantir outras condições, reinventar o espaço escolar, produzindo um lugar de

aprendizagem mais efetivo.

Já vivemos, na rede do Rio de Janeiro, assim como tantas professoras em muitas

outras redes, tantas “novas” e “revolucionárias” experiências que insistem nos mesmos

velhos caminhos, nas mesmas velhas técnicas mnemônicas, nas instruções programadas,

nos mesmos paradigmas pedagógicos que produziram décadas de fracasso escolar,

ignorando sistematicamente as experiências reais de sucesso produzidas por caminhos

insuspeitáveis, por caminhos que não podem ser traduzidos em manuais, por que são

únicos, singulares, produzidos na observação, na investigação e no encontro das

professoras com seus alunos.

Aline tem por hábito e por compromisso pedagógico, realizar um trabalho

individual com os alunos que, por diferentes razões, apresentam um desenvolvimento

diferente do esperado, já que na escola, não raramente, espera-se pela homogeneidade, pela

relação linear entre: idade cronológica, desenvolvimento e aprendizagem; e qualquer

diferença é logo percebida como insuficiência, carência, dificuldade, e infelizmente,

doença. Aqueles que ela, em sua avaliação diária, percebe alguma dificuldade, traz para

perto de sua mesa e começa um trabalho diferenciado. Não re-alfabetiza. Alfabetiza quem

precisa. E não vou dizer que é fácil, que é simples, resultado de um método “criativo e

inovador” ou apenas a expressão da boa vontade ou compromisso da professora. Não é.

183

A professora comprou – com os próprios recursos – uma impressora velha para

imprimir trabalhos diversificados para a turma, porque toda “cota” de xerox da escola está

comprometida com a reprodução de provas da Prefeitura. Como tantas outras professoras,

faz muitos investimentos que são pessoais, de tempo e dinheiro, tentando criar uma

condição de trabalho mínima diante do desafio de atender aos 30 alunos de sua classe. Boa

vontade e compromisso muitas tem, já tempo e dinheiro para arcarem com recursos

próprios, nem todas possuem. Por que abro esta discussão? Porque é injusto vermos o

dinheiro público sendo desperdiçado com a iniciativa privada, recursos negados ao

professor, que precisa retirar do seu minguado salário condições para proporcionar ao seu

aluno um trabalho sério, trabalho que não é reconhecido, tampouco valorizado. Trabalho

que quando produz do chamado fracasso é creditado diretamente na conta do aluno, da

professora e da família, e quando produz o chamado sucesso é creditado aos “parceiros” e

seus métodos redentores.

Não posso reproduzir o discurso confortável – e simplista – que nossas autoridades

produzem, onde “querer é poder”, e todos os problemas da escola serão resolvidos no dia

em que as professoras “quiserem” ensinar, ou como também simplificam tantas

professoras, no dia em que os alunos “quiserem” aprender.

Leonardo era uma criança que inspirava preocupação na professora, como eu em

outro tempo, com outras crianças, como tantas professoras, diante de tantas crianças. Aline

se confronta com seus não-saberes, professora que possui a consciência de que precisa

investigar, tentar, buscar novas experiências quando o que sabe “não está dando conta”.

Preocupar-se não basta. Fazer o que sabemos, o que aprendemos, não basta. Talvez

seja o suficiente para muitos, mas nunca será para todos. Por isso o trabalho docente é um

trabalho de investigação constante do processo de cada aluno. A avaliação da professora

não é dirigida apenas ao aluno Leonardo, a quem não culpabiliza pela própria não-

aprendizagem, é dirigida ao processo. Tampouco esconde-se ou deixa-se paralisar atrás do

histórico de fracasso da família desta criança. Não procura justificativas para o fracasso.

Procura caminhos para o sucesso de Leonardo. Compreende que o sucesso dele, mesmo

quando invisibilizado, é o seu sucesso. O aprendizado deste menino, mais do que qualquer

outro, a faz sentir-se justificada como educadora. Educá-lo é muito mais importante do que

encontrar culpados, desculpas, ou produzir estatísticas favoráveis ou não. Educá-lo é o

mais importante. Fazê-lo superar seus limites, garantir que ele tenha acesso a um

conhecimento que é direito dele, e que já foi negado, ao longo de tantos anos, a sua

família, colocando-os socialmente em um lugar ainda mais inferior do que a própria

184

pobreza já os coloca. Afinal o que fazer por sujeitos que além de serem miseráveis são

“burros de nascença”?! Como libertar-se de um desígnio tão infeliz? Como encontrar para

si mesmo um lugar digno, como ser respeitado, como ser reconhecido como um cidadão

ocupando tal lugar?

Em seu trabalho como professora Aline possui algumas informações sobre o

processo de aprendizado e desenvolvimento de Leonardo, possui algumas informações

sobre a relação que esta criança foi construindo com a escrita. Informações que são

geralmente produzidas em um contexto muito específico. O contexto escolar. Um contexto

que já projeta sobre Leonardo uma série de expectativas desde seu ingresso. Que o avalia a

partir de seus materiais estruturados, social e culturalmente localizados, dentro de

parâmetros preestabelecidos, ignorando quaisquer outras informações sobre esta criança, a

não ser sua origem inglória. Instrumentos que como alguns “especialistas” defendem:

sendo “neutros” e “objetivos” poderão nos oferecer dados “objetivos” e “neutros” sobre

um sujeito que na verdade é subjetivo, bio-histórico e, portanto, politicamente instituído,

localizado, formado, assim como os sujeitos que o avaliam, e que não são, portanto, nem

neutros, tampouco objetivos. A neutralidade e a objetividade vêm sendo historicamente

grandes marcas do discurso hegemônico que universaliza – sob o véu do discurso de uma

certa ciência e uma certa técnica – sua própria leitura do mundo, fazendo o resto da

humanidade deitar-se em sua cama de Procrusto74, produzindo em nome da bandeira da

inclusão de alguns, uma multidão de mutilados e deformados.

Leonardo me faz pensar como a origem – a comunidade primeira a que

pertencemos – formadora e constituinte de nossas identidades, aqui é fator fundamental

para invisibilizar a identidade desta criança. Uma origem que muitas vezes consegue

apagar a singularidade dos sujeitos reduzindo-os apenas a uma só história: a de sua família.

A história de sua família não se confunde com a dele, torna-se a dele. Engolido pela

mesma maldição, seu futuro é tido como inexorável. Faz-me pensar como isto se reproduz

e famílias inteiras também são engolidas por suas localizações (e expressões, e linguagens,

e lógicas) geopolíticas e sociais; engolidas pelas milhares de “avaliações neutras e

objetivas” (que certo pensamento hegemônico produz) que busca reduzi-las apenas a

lugares de ausência, lugares de negação. O mesmo discurso, a mesma lógica, as mesmas

74 Procrusto era um bandido que mantinha em sua casa uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual convidava todos os viajantes para se deitarem. Se os hóspedes fossem mais altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, os mais baixos, eram esticados até atingirem o comprimento certo. Dificilmente uma vítima sobrevivia ao processo pois poucos se ajustavam exatamente ao tamanho da cama.

185

“objetivas e neutras” avaliações, excluindo pessoas, famílias, comunidades inteiras, na

busca pela harmonia de uma sociedade dos “mesmos”, dos “iguais”. Busca que tanta dor já

causou a humanidade, escrevendo os capítulos mais feios de nossa história. Quando

aprenderemos?

De repente (nestes repentes que se dão em nosso cotidiano e mudam nossos rumos)

diante da fala da mãe, a professora percebe que as informações que conseguiu reunir sobre

sua criança a partir do seu movimento no universo escolar, são insuficientes. Que existe

um Leonardo fora da escola. Um Leonardo que ela não conhece. Que este Leonardo possui

outras relações com a língua, que possui outros interesses e o mais importante: outras

possibilidades.

Aline, como já vimos, aceita os instrumentos que medem os não-saberes de seu

aluno, até aceita compará-lo com os parâmetros que estão estabelecidos para ele. O que ela

não aceita é que ele não seja capaz de alcançá-los e por isso investe em atividades para

ensiná-lo. Neste processo, percebe que os instrumentos que utilizou para avaliá-lo não

foram suficientes para oferecer dados que permitissem uma nova orientação em sua prática

pedagógica com o menino. Sua avaliação até então constatou o que Leonardo não sabia,

mas não ofereceu pistas para que ela planejasse ações concretas a partir do que ele já sabia,

e pudesse assim encontrar um caminho por onde pudesse construir com ele um

aprendizado significativo.

A avaliação obtida a partir dos instrumentos produzidos pelo contexto escolar, e,

portanto limitada às suas lógicas e práticas seculares, não reorientou sua prática a partir das

possibilidades de Leonardo, apesar de sua crença em que elas sempre existiram.

A mãe de uma outra criança foi até a sala informar a Professora sobre a

transferência de seu filho para outra escola já que estava de mudança para o Nordeste.

Quando entrou na sala espantou-se ao ver que Leonardo não sabia ler e escrever, porque o

conhecimento que possuía dele havia sido construído em outro contexto, ao observar a

prática da professora e as respostas de Leonardo coloca em xeque a própria avaliação sobre

os saberes e não saberes do menino. Como esta criança que não escreve o próprio nome

consegue entender-se com o computador, em um teclado alfanumérico, com comandos

escritos em tela? Por que Leonardo consegue aprender na Lan House, mas não na escola?

A professora ao buscar atender pessoalmente Leonardo já partia do pressuposto que

ele era capaz de aprender. Contudo a informação da mãe a fez compreender que precisaria

buscar por onde o aprendizado especificamente daquela criança caminharia. Por isso,

pensa no teclado do computador.

186

A mãe oferece à professora pistas sobre os interesses e reais possibilidades de

aprendizado para o aluno. A professora atenta a esta voz, não a ignora, ao contrário,

investiga, tenta, organiza novas atividades – que nunca havia tentado antes – com um

recurso que nunca havia usado antes.

No percurso que trilhamos ao longo deste trabalho, assumimos a defesa de uma

escola realmente democrática, produzida em uma relação dialógica entre os muitos sujeitos

que compõe a comunidade escolar. Assumimos que a partilha de seus diferentes saberes e

a ação coletiva destes sujeitos são os caminhos que acreditamos poderá transformar a

escola neste espaço democrático, formadora de cidadãos mais conscientes e solidários na

sua relação uns com os outros e com o mundo.

Democracia é uma destas palavras desbotadas pelo uso leviano, tanto mais usada

quanto mais ausente nas relações sociais. Ao longo de nossas reflexões fomos assumindo a

radicalidade deste conceito e negando, por isso, as intervenções unilaterais, as imposições

monoculturais, que não respeitam os saberes e desejos dos muitos outros que compõe o

mosaico escolar.

A mãe que atravessa, por um acaso do destino, o caminho de Aline e Leonardo, nos

desafia a pensar quantas informações importantes, quantas pistas e quantos caminhos

possíveis, deixamos de trilhar por estarmos tantas vezes prisioneiras de nossas práticas, de

nossas certezas, de nossos métodos, de nossos lugares. A mãe, que oferece outras

informações, recolhidas na vida, onde este menino se forma, com apenas uma pergunta,

contribui para refazer toda a avaliação da professora sobre Leonardo, obrigando-a a rever

seus próprios saberes e, portanto, sua própria prática alfabetizadora em relação àquele

menino.

Mas a mãe não contribui apenas com Aline, contribui conosco, para pensarmos nas

possibilidades que uma avaliação mais democrática, com a participação dos sujeitos que

compartilham muitos outros espaçostempos além do escolar e que neles tecem outros

saberes, poderiam produzir se começássemos a pensar a escola realmente como um lugar

autônomo, democrático e plural. Pensar o quanto uma avaliação produzida a partir do

encontro destes diferentes sujeitos e suas diferentes percepções, nos ofereceria informações

fundamentais para reorganizar nosso trabalho e potencializar o aprendizado efetivo de

tantas crianças que ainda atravessam anos e anos sem aprender. E se as famílias

participassem da avaliação destas crianças?

Em nossas rodas de conversa, aprendemos o quanto a leitura do outro, as

experiências compartilhadas, as memórias revisitadas, provocavam em nós um movimento

187

transformador. Ampliada esta roda, teríamos na escola um espaço onde as mães, tias, avós,

onde as merendeiras, as professoras e alunos poderiam criar uma rede de saberes

ampliados sobre cada cotidiano escolar, não necessitando que outros lhes dissessem o que

são, o que sabem, o que produzem.

A defesa por essa escola autônoma, democrática, que respeita a diversidade, não é

novidade no discurso pedagógico (e político). Presentes nos textos produzidos desde a

abertura política do país, talvez revelem as utopias de uma geração que viveu ou cresceu

sob a ditadura: cidadania, liberdade, autonomia, gestão democrática; presentes em leis,

decretos, diretrizes etc. representam ainda um longo caminho de luta e conquista no

cotidiano e na cultura escolar. Caminhos que podemos refletir a partir da presença

espontânea e inesperada da mãe no cotidiano da professora Aline.

A fala da mãe mostra os limites dos conhecimentos pedagógicos produzidos pelos

métodos e instrumentos tradicionais na investigação dos saberes de Leonardo, mostra

também o limite de qualquer conhecimento que seja produzido unilateralmente, sem buscar

a complexidade desta criança que é formada em uma teia de relações e sujeitos. Limites

que quando não se reconhecem como limites acabam atribuindo ao outro, a

responsabilidade pelo fracasso.

A fala da mãe mostra como a voz do outro, do não-eu, daquele que não é o mesmo,

não fala do mesmo lugar, não usa as mesmas lógicas, pode, quando ouvida, transformar

práticas e oferecer alternativas na construção do sucesso escolar de crianças condenadas ao

fracasso.

Ocasional, furtiva, elementar. A fala da mãe rompe o cotidiano da professora sem

planejamento, sem um estatuto que delimite qual será seu lugar e sua contribuição. Ela não

é “convidada” pela professora, ela não ocupa um lugar pré-definido, com suas falas

restritas a sua condição de “leiga” de “estranha” ao universo escolar. Ela não participa de

um simulacro de democracia, de um jogo onde os sujeitos são utilizados para referendar

um projeto que já possui todos os trajetos definidos, todas as falas que serão legitimadas ou

silenciadas já definidas. Talvez por ser inesperada, ela não encontra as barreiras

comumente erguidas contra os saberes que existem para além dos muros da escola. Talvez

por encontrar a professora em um momento de fragilidade diante de sua própria

impotência, diante do não-aprendizado de seu aluno, talvez porque nosso cotidiano seja um

tecido de acasos mesmo, não sei. Mas sei que a voz da mãe foi fundamental para que algo

novo fosse criado, para que a professora investigasse outras formas de ensinar.

188

Defendemos ao longo deste trabalho que precisamos questionar a ideia de inclusão

que vem sendo apresentada pelo projeto hegemônico, e refletir sobre um projeto onde os

sujeitos possuam outras alternativas para além de ser, ou tentar ser, um outro idealizado,

padronizado, tentar ser o mesmo. Um projeto onde a alternativa seja criar de seu próprio

lugar, a partir de sua própria cultura, seja uma possibilidade concreta. A voz da mãe

reacende nossa crença nesta possibilidade. Talvez não devêssemos esperar pelo acaso das

vozes furtivas que irrompem nossas salas, e quando ouvidas, criam novas possibilidades.

Talvez pudéssemos retomar a utopia de uma escola democrática, autônoma, plural,

produzindo encontros onde estas outras vozes fossem ouvidas com mais atenção, com mais

cuidado, com mais respeito. Onde estas vozes fossem responsáveis por escolher seu

próprio destino, ao invés de serem subjugadas por um destino escolhido por outros, que

não as ouvem, tampouco as respeitam. Vozes que quando se encontram tecem novos

caminhos, descobrem juntas novas possibilidades.

Ao conversar com a professora Aline sobre sua experiência com a mãe e com a

informação que ela havia trazido, lembrei-me que havia descartado um computador velho

que tinha em casa e que levei para a escola para facilitar o cadastro de livros na sala de

leitura. Uma máquina sem drives de acesso, sem placa de som, mas que possuía instalado o

software de texto (Word). Propus a professora resgatarmos este computador do cemitério

de quinquilharias do almoxarifado e instalarmos em sua sala. Ela concordou

imediatamente.

A chegada do computador – lixo tecnológico para muitos – na sala de aula foi

recebida como uma revolução cibernética. Todos queriam olhar, mexer, escrever coisas...

Enquanto as crianças olhavam maravilhadas os desenhos do clipart (arquivo de desenhos),

os diferentes tipos de letras e as possibilidades de escreverem em tamanhos e cores

diferentes seus nomes, conversava com Aline sobre as possibilidades de explorar o novo

elemento mesmo com as limitações que apresentava. Para as crianças parecia não importar.

Era um computador! Um computador de verdade na sala delas!

Leonardo também ficou maravilhado. A partir daquele dia ele realizava várias

tarefas, não no caderno ou nas folhas, mas na telinha. Aline procurou saber como ele

utilizava o computador na Lan House, ou seja, o que ele já sabia. Partindo destas

informações prontificou-se a ampliá-las oferecendo outras informações: no início

Leonardo usava basicamente as setas de direção, que permitiam seu movimento no jogo.

Aline começou a explorar com ele as demais teclas, propondo atividades relacionadas a

algarismos e quantidades. Ou seja, começou a alfabetização pela linguagem matemática.

189

Depois ampliou estas atividades de correspondência para as letras. Atividades simples,

sem profundas transformações no método. No entanto, que produziram uma nova vida

escolar para o menino.

Leonardo aprendeu seu nome. Aprendeu a ler. Aprendeu a escrever: na tela, no

papel... Aprendeu também que é capaz de aprender. Rompeu com a profecia de sua

família. E em seu aprendizado ensinou a todas nós que não existem fórmulas, nem

manuais, nem métodos que substituam o olhar atento e interessado da professora, que

substituam a investigação, a busca por outros caminhos, por outras soluções. Que a

avaliação que nos interessa é esta que nos indica por onde seguir, que nos permita

encontrar as chaves que abrem o segredo do aprendizado para cada criança.

Não existem chaves iguais. Para o Leonardo foi o computador. Para outra criança

isso talvez nada represente. Para algumas é livro que as encanta, para outras a letra da

música que gostam. Para outras receitas, jogos, histórias sobre os cavalos que pastam no

pátio...

Perguntei a professora Aline ao que ela atribuía, primeiro a dificuldade de

Leonardo e depois o sucesso obtido por ele?

Eu, inicialmente pensei que a dificuldade do Leo se devia a algum

fator orgânico, como por exemplo, dificuldade de visão, audição, de retenção de informações. Bem, o aprendizado surgiu depois que consegui compreender que ele não alcançaria bons resultados ser eu não mudasse a maneira de proceder. Seria necessário fazer algo que fosse capaz de atingi-lo não somente pedagogicamente, mas também afetivamente.

A avaliação que realmente nos importa é esta que potencializa professoras e alunos,

que nos faz buscar novas formas, que nos faz ousar, criar, descobrir novas maneiras de

produzir o conhecimento que nos interessa. Uma avaliação que nos permita conhecer esse

aluno em seus muitos contextos, em suas muitas possibilidades, que nos permita ensinar,

uma avaliação que permita ao aluno mostrar o que sabe, o que já aprendeu. Uma avaliação

– parafraseando Freire – “a favor do aluno e não contra ele”, a favor da professora, a favor

do ensinoaprendizagem, a favor da escola e não contra ela.

O que permitiu o sucesso de Leonardo, além dos muitos fios que já vimos, foi um

processo onde a professora desloca a avaliação unicamente do Leonardo – que deveria ter

algum problema! – para si mesma – “eu preciso mudar a maneira de proceder”. Uma

avaliação onde Leonardo não é o único elemento – depositário de informações a serem

sacadas por uma prova – deste processo, mas um sujeito que na relação com outros

190

sujeitos, vai se revelando, e revelando os limites e possibilidades não apenas dos seus

saberes, como os limites e possibilidades dos saberes da professora.

Nestes saberes Aline vai separando em sua narrativa a ação pedagógica de uma

ação capaz de atingi-lo afetivamente. Penso o que é esta ação pedagógica sem uma

dimensão afetiva? Como ensinar sem atingir afetivamente75. Lembro de nossas memórias

compartilhadas nas conversas sobre as escolas que experienciamos. Não foram nossas

memórias produzidas exatamente por tudo que a escola nos afetou e por todos os afetos

que produziu? Penso que não existe um alcance pedagógico descolado do alcance político,

social, e afetivo. Penso que não existe no processo de aprendizado de qualquer um de nós,

esta possibilidade cientificista, ou cognitivista, que exclui o afetivo do processo de

aprendizado.

Como ensinar crianças com a autoestima dilacerada, que cumprem a profecia que

os outros escreveram para ela? Aline nos conta que diante da possibilidade de aprender,

Leo mudou: “... a postura dele mudou, a maneira dele vir para a escola mudou (agora só

vem de banho tomado, roupa limpa e muito gel no cabelo) mudou a relação que ele tinha

com a leitura e a escrita e ele aprendeu”. Acreditar na possibilidade de aprender o

transformava, e à medida que ele se transformava, aprendia. Ele mudou não só a relação

que tinha com a leitura e escrita, ele mudou a relação que ele tinha consigo mesmo. Como

sujeito de saber, ele é capaz de se amar, de se querer bem, de querer se fazer bem. E nos

reconhecermos como capazes de aprender, nos faz sim, muito bem!

Aprendemos quando algo nos afeta, nos invade os sentidos, nos transforma.

Quando aprendemos algo significativo o olho brilha. Por essa compreensão de

aprendizado, não posso pensar uma avaliação que frature este ser humano em partes

desiguais e só se interesse por uma ou duas partes desse sujeito atirando no lixo todo o

resto. Preciso avaliar um sujeito inteiro, complexo em saberes, para empreender uma ação

pedagógica também inteira (como alias, já compreendiam os gregos!) e complexa em

fazeres.

A avaliação surge na relação entre estes sujeitos que se defrontam com seus saberes

e não saberes. A professora Aline não avalia o aluno Leonardo. Ela avalia, ou reflete,

questiona, investiga, o aluno, o processo, e a si mesma. E descobre que o fator mais

importante, neste caso, é mudar sua maneira de proceder. A professora nos lembra com sua

75 Interessante essa nossa língua portuguesa: ao verbo afetar o dicionário (Academia Brasileira de Letras) atribui: causar um efeito geralmente negativo;, ao substantivo afeto define como sentimento terno que nos liga a algo ou alguém. Penso como a escola nos afeta e produz afetos .

191

resposta, que se existe aprendizagem sem ensino – sistematizado, intencional – ensino sem

aprendizagem não existe. É possível aprender sem que exista uma intenção prévia deste

aprendizado. Aprendemos na feira, no cinema, na Lan House. Mas é impossível dizer que

houve ensino onde o aprendizado não se efetiva. E no caso de Leonardo, menino em

processo de alfabetização, efetivá-lo significava torná-lo um sujeito que compreendesse e

utilizasse a linguagem escrita como expressão de sua humanidade, que se apropriasse da

leitura e escrita como se apropriou do computador, significava torná-lo autor.

Lembro da professora entrar saltitante em minha sala trazendo-me os primeiros

bilhetinhos escritos por Leonardo, todos de caráter sexual, envolvendo a professora e seu

marido, ou as coleguinhas da turma. Ríamos dizendo “queríamos que ele escrevesse! E

agora ele se tornou autor de contos eróticos”. Ilustrados!

Lembro-me dos olhos cúmplices da professora e seu menino quando vieram outra

vez para me mostrar como ele estava lendo bem: “Escreve uma frase aí Andréa, pode ter a

dificuldade [ortográfica] que for!”. Escrevi. Leonardo leu e sorriu. Primeiro para a

professora, depois para mim. Sorriso largo. Tão seguro, tão feliz! Como toda criança

deveria ser diante da palavra escrita! A escrita e sua leitura para ele não eram um lugar

maldito. Um lugar que o reduzia, que o maltratava. A escrita e sua leitura eram fonte de

alegria, de reconhecimento, de prazer. Ser capaz de ler e compreender a graça no pequeno

texto que lhe escrevi criava para Leonardo uma outra identidade. Ele retomava o direito de

ter uma história. E nós havíamos compartilhado com ele essa sua pequena/grande

conquista.

Leonardo era uma criança a meio caminho do fracasso escolar. Caminho traçado do

berço. Poderia ter reproduzido a história de seus pais, seus tios, seus irmãos. Poderia ser

apenas mais um, entre os milhares que fracassam. Que seguem sendo represados, nesta

escola que se diz para todos, mas onde “tantos” passam apenas para receber seu selo de

“defeituoso”, “incapaz”. Leonardo poderia ter se perdido em meio às progressões,

acelerações, realfabetizações que insistiriam nos mesmos caminhos, nos mesmos métodos

enfadonhos, no mesmo fracasso... Mas ele reescreveu, com sua professora, sua história.

Uma história que ainda não acabou, ao contrário, está apenas começando. Seu

sucesso foi ter vencido a enorme barreira que separa os que sabem ler e escrever dos que

não sabem. Mas daqui para frente ainda terá que vencer muitos obstáculos. A cada passo

terá de provar que é capaz de dar as respostas certas, que é capaz de sobreviver a todas as

provas e testes que tentarão desqualificá-lo atirando-o outra vez no fosso dos ignorantes.

Tentarão destruir sua autoestima, tentarão apagar-lhe o sorriso confiante e vitorioso

192

daquela manhã em minha sala. Talvez ele ainda conte com muitas professoras como Aline

ao longo de seu caminho. Talvez não. Mas eu acredito que ter superado tudo o que superou

em seus poucos anos vida, mostra a força de seu espírito. Eu acredito no sucesso de

Leonardo. Talvez apenas porque eu precise desta crença para continuar lutando.

Leonardo era uma criança perdida. Mas nós o encontramos. E encontramos muitos

Leonardos, Ronalds, Giovannis76... quando nos predispomos a procurá-los. Quando não

aceitamos que eles se percam invisibilizados pelo sobrenome que carregam, pelas marcas

de cultura e de classe que trazem em seus corpos miúdos, escondidos atrás de um número

ou uma letra que não os traduz.

Letras e números que produzidos pelas “avaliações externas” estão ensinando às

professoras – mesmo as que no primeiro momento eram defensoras deste tipo de medida –

a desconfiarem dos antigos “neutros e objetivos” instrumentos de avaliação. Não foram

poucos os relatos do quanto os resultados obtidos pelos alunos nestas avaliações são

contraditórios com o desenvolvimento que o aluno apresenta em sala. Alunos com conceito

I que acertaram na loteria da “provinha” e conseguiram MB, alunos MB que tiveram uma

pontuação baixíssima por diferentes motivos. Poucos casos? Não. Muitos casos relatados

em conselho onde o conceito da professora não se encaixava com o conceito obtido na

prova externa. Então afinal o que realmente sabem ou não sabem estas crianças? Como

estes sujeitos distantes podem saber o que estas crianças sabem, se não sabem quem estas

crianças são?

“A avaliação externa encaminhada para dar certificados ou títulos aos alunos/as, conhecida também como exames públicos, dominante em outros sistemas educativos, é uma forma de controle sobre o currículo que se retira exclusividade da avaliação de alunos/as pelos professores/as, diminuindo-lhes a autonomia no planejamento e a realização de sua prática.”(Sacristán, J e Gómez, P. pág. 319, 1998)

A busca por uma certa cientificidade dos processos educativos que é utilizada como

justificativa para a prática das avaliações externas, no cotidiano de nossas escolas, vem

sendo questionada pelas professoras, diante dos resultados incoerentes (com as avaliações

internas) que apresenta, deixando cada vez mais claro, para estas professoras, que a perda

da autonomia que sofremos no controle de nossas escolhas curriculares não representou –

como algumas até esperavam – uma maior visibilidade dos processos vividos. Todo o

investimento que muitas fizeram em “preparar” seus alunos para adaptarem-se a forma das

avaliações, seguindo os materiais – cadernos de apoio pedagógico de exercícios – mostrou-

76 Referência a outros alunos citados anteriormente na tese.

193

se, de certa forma inútil, já que os resultados obtidos pelos alunos nas avaliações não

expressaram este esforço, e não apresentaram um retrato semelhante ao que a professora

conhece de sua turma, o que fez com que a eficácia do próprio instrumento fosse

questionada no conselho. O que não surpreende, uma vez que estes instrumentos, para

serem utilizados em larga escala, precisam sofrer uma redução e simplificação, não

possuindo o alcance da avaliação produzida na relação da professora com sua turma. Ou

seja, estes instrumentos, não vêm contribuindo para revelar quem são de fato os sujeitos

da/na avaliação.

Quem são os sujeitos na/da avaliação? O aluno Leonardo e seus saberes

insuspeitáveis; a professora Aline e sua busca pelo sucesso com seu aluno; a mãe que

observa e revela; eu como professora da sala de leitura que apoio a professora em suas idas

e vindas nas tramas da avaliação; as colegas que ouvem a narrativa de Aline sobre seus

alunos e repensam os seus pequenos Leonardos, e discutem, e refazem... Somos todos

sujeitos neste processo onde estas vozes se cruzam, se desafiam e aprendem juntas.

Sujeitos presos na mesma teia com tantos outros sujeitos, às vezes tão diferentes de nós: os

que publicam índices comparativos de pessoas em jornais; os que não imaginam como ser

possível uma sociedade sem competição e comparação; os que defendem que crianças

devam ser treinadas e preparadas para enfrentarem e se conformarem com os milhares

processos de exclusão de suas vidas. Estes são os muitos sujeitos que produzem esta

relação onde nos avaliamos uns aos outros, lutando pela narrativa desta história.

Certa vez, eu disse que o currículo é uma arena. A avaliação dentro desta arena

vem sendo a batalha mais difícil que já travei. Sua complexidade, o movimento dos

sujeitos, as concepções que temos e algumas que nem suspeitamos ter, os diferentes

projetos de mundo que estão postos no tabuleiro. As práticas que contribuem para a

emancipação dos sujeitos e aquelas que insistem em os apequenar.

Quais os caminhos possíveis para uma prática dialógica dentro desta arena? Talvez

estes que trilhamos. Estes por onde Aline e Leonardo nos conduzem. E tantos outros

escondidos nos corredores de nossas escolas, nas salas dessas professoras.

A conversa que nos possibilitou o encontro com nossas memórias e saberes sobre

as escolas que habitam em nós. Que nos possibilitou conhecer e nos confrontarmos com

estas escolas nos fizeram compreender onde nascem nossas convicções, nossas angústias, e

como estas atravessam nossas práticas pedagógicas, principalmente as relacionadas à

avaliação. Compreender o quanto estas práticas são atravessadas pelas relações de poder,

194

por nossas diferentes formações culturais, pela forma como nos relacionamos com um

“outro” que não podemos simplesmente supor.

A dialogicidade que nos colocou frente a frente, e foi nos mostrando que quando

olhamos nos olhos dos outros vemos refletidos nossos medos, nossas dúvidas, nossas

esperanças.

Disse em algum momento desse nosso caminhar que o tema combinado para o

debate – avaliação – em muitos momentos fugiu de nós e a conversa foi nos levando para

outros lugares. Hoje penso que não. Tudo o que discutimos sobre nossas práticas, sobre

nossas histórias, sobre nossas dificuldades, não nos afastaram da discussão sobre avaliação,

ao contrário, foram me mostrando como é impossível pensar estas práticas de avaliação

sem pensar quem são os sujeitos que estão postos nesta relação.

Relação porque ao contrário do que me pareceu a primeira vista, a avaliação não é

apenas uma ação de um sujeito sobre o outro, nem apenas a ação de um Estado avaliador

sobre os sujeitos, mas uma relação que se estabelece entre os muitos sujeitos que no seu

mover-se vão apresentando uns aos outros várias questões, vão apresentando uns aos

outros os próprios limites das práticas avaliativas, e denunciando o quanto perigoso é

tomar os indícios que qualquer avaliação nos oferece como um estatuto de verdade, como

um retrato neutro, imparcial e completo, seja de um sujeito ou de uma realidade.

Fui aprendendo como a avaliação é uma relação complexa produzida em

espaçostempos que se cruzam, em lugares que são produzidos por grupos – e subgrupos –

muito diferentes, onde saberes e poderes se desafiam, onde memórias e narrativas se

encontram, onde culturas e alteridades dialogam. Complexidade produzida também na

relação entre diferentes setores da sociedade e seus diferentes representantes, produzida na

disputa entre os projetos colonialistas e os emancipadores, no movimento dos currículos

que são prescritos e daqueles que são praticados.

Aline preocupa-se com a avaliação da merendeira sobre o seu trabalho, como se

preocupa com a avaliação da Secretaria sobre o seu trabalho, como se preocupa com a

avaliação que produz sobre o Ronald, sobre o Giovanni, sobre o Leonardo. Rosângela e

Cristiane preocupam-se com a avaliação dos colegas sobre os seus trabalhos, Cássia

preocupa-se com a avaliação dos alunos produzida na comparação dos sujeitos, preocupa-

se em avaliar quem são seus alunos, o que sabem, preocupa-se em estabelecer uma relação

dialógica com eles. E cada uma de nós, em algum momento, se encontra nesta

encruzilhada de preocupações, de interesses, de expectativas projetadas.

195

Como nos alertou Sacristán, as professoras vivem um “conflito ético”, diante das

diferentes funções da avaliação. Isso fica claro diante do debate entre a professora Aline,

com apoio de Cristiane, com a nova coordenadora pedagógica da escola.

A coordenadora cobrava das professoras um relatório individual dos alunos77, pois

havia percebido que os textos estavam muito parecidos ou iguais, de acordo com o

conceito que cada criança tinha obtido. Aline então lembrou que recebemos uma tabela

para “avaliar” os alunos de acordo com alcance dos descritores – mistura de conteúdos e

habilidades – de cada bimestre, e que segundo esta tabela os alunos eram, sim, distribuídos

em apenas cinco possibilidades, então porque ela deveria fazer um relatório ressaltando

informações que não interessavam a Prefeitura? Que não seriam levadas em conta na

conceituação de seus alunos? Na produção dos quadros estatísticos?

As mesmas professoras que se preocupam com o desenvolvimento de cada aluno.

As mesmas que avaliam diariamente desenvolvimento de cada aluno, produzem relatórios

uniformes, padronizados e afirmam: não sou eu que os coloco dentro destes parâmetros é a

Prefeitura!

Não posso negar que me divirto com a radicalização e o debate que se segue,

porque percebo nele uma certa denúncia. Denúncia sobre o sistema que se impõe às

professoras, que as trata como operárias de uma linha de produção que devem apenas

cumprir com o ordenado. Radicalizar o ordenado, nesta situação, é mostrar a incoerência

do próprio projeto.

À medida que a coordenadora – que até duas semanas antes era uma “colega”,

representava agora este outro distante: a Secretaria – argumentava que era impossível os

alunos serem iguais e por isso o relatório deveria relatar as diferenças, o processo de cada

um individualmente, as professoras respondiam: “Então não deveriam ser colocados todos

debaixo dos mesmos conceitos! Então não deveriam ser tratados todos como iguais nas

provas! @ão deveriam ter que todos fazer o mesmo exercício, ao mesmo tempo. Se são

tratados como iguais ou como blocos de igualdade segundo parâmetros preestabelecidos,

se são obrigados a realizar as mesmas tarefas e ao mesmo tempo, porque produzir

relatórios singulares?” Em outras palavras diziam claramente: “amarre-se o burro de

acordo com a vontade [do burro]do dono!”.

77 Os relatórios a que me refiro encontram-se no final do diário de classe da rede, onde os professores devem registrar reflexões sobre o desenvolvimento de cada aluno, seus processos de ensinoaprendizagem, as experiências significativas. @ão são relatórios para serem enviados aos responsáveis ou a Supervisão Externa. Mas são utilizados em caso de solicitação externa por médicos, conselho Tutelar ou transferências.

196

Claro que compreendo a posição da coordenadora – também refém das

contradições do projeto da rede – tentando resgatar o sentido do relatório, tentando

convencer as professoras da necessidade de registrarmos em algum lugar as singularidades

dos sujeitos. E tenta fazer isso não com quaisquer professoras, ou com outras professoras,

mas com estas com quem conversamos ao longo deste caminho.

Talvez, se eu estivesse no lugar da coordenação, tentasse fazer o mesmo: convencer

as professoras que independente do sentido atribuído ou não pela Secretaria, o relatório é

nosso e podemos subverter seu uso, assumindo a autoria de seu texto, imprimindo nele

informações importantes sobre o desenvolvimento de nossos alunos, para além das

avaliações massificadoras. Podemos nos apropriar dele e consignificá-lo em nossos

fazeres.

Acompanhamos estas professoras há algum tempo, e vimos a relação

compromissada e interessada que possuem com o fazer pedagógico. Porque então estas

mesmas professoras parecem, com suas posições tão radicais, ajustar-se ao projeto de

avaliação da Prefeitura?

Parecem, mas não se ajustam. Suas ambivalências e aparentes contradições

refletem-se para mim, como táticas de resistência. Táticas que denunciam a falácia deste

projeto planificador e homogeneizador de nossas complexas realidades.

Percebo que as professoras tentam separar seu trabalho pedagógico do que

consideram um trabalho burocrático. O trabalho que é para si, do que é para o outro. Não

qualquer outro, mas esse outro que não as respeita, que as descarta, que as ignora como

sujeitos de saber. Como disse Rosângela, o que realmente importa, anotam em seus

“caderninhos”. Informações que utilizam para pensar cada criança, para se replanejar. Tal

como alguns terapeutas, muitas professoras fazem anotações para si mesmas, usando as

próprias palavras e impressões como forma de registro dos momentos, desabafos, dúvidas,

hipóteses... mas estas não fazem parte dos relatórios “oficiais” que são produzidos para

uma plateia específica, e muitas vezes uma plateia na qual não se acredita, uma plateia

ausente: “ninguém vai ler isso mesmo!” e quando se acredita que alguém lê: “que diferença

faz, se ninguém contribui para a solução dos meus problemas, se estou sozinha, sou eu que

tenho que dar meu jeito?”.

Os registros “oficiais” – relatórios que devem ser registrados nos diários de classe –

precisam de um vocabulário específico – muitas vezes usados apenas para ocultar o que

realmente quer se dizer – as professoras acreditam que são documentos produzidos apenas

para os “outros”, uma escrita que não é minha, ou para mim, uma escrita usada não para

197

mostrar, mas para esconder, uma escrita sem autoria. Um trabalho meramente burocrático

que a grande maioria dos professores cumpre de forma mecânica. Um documento

desacreditado, porque não cumpre com sua função de oferecer informações que

contribuam para uma reflexão coletiva dos vários sujeitos interessados no processo de

ensinoaprendizagem, principalmente quando no projeto em curso78 professores e alunos

são reduzidos a índices e tabelas. Um documento que é produzido, muitas vezes, apenas

para tentar “defender” a escola contra o fracasso do aluno, quer dizer, produzidos como um

“prontuário policial” e não um “relatório pedagógico” sobre o desenvolvimento das

crianças.

São escritas diferentes que cumprem funções diferentes. A escrita não possui uma

só função, mas várias. Ela é campo de poder, onde os discursos travam batalhas, mas ela é

também uma ferramenta de organização mental e emocional, que nos permite uma

autorreflexão deslocando-nos no tempo e no espaço. Por isso os relatórios dos alunos

podem também assumir várias funções, depende da relação que o autor/autora estabeleça

com o texto produzido.

Mas como devolver a unidade e coerência a tão diferentes instrumentos de

avaliação, de forma que os documentos oficiais produzidos contribuam efetivamente para

reflexão dos professores sobre sua prática, sobre o aprendizado de seus alunos, e não sejam

apenas simulacros? Para que as informações obtidas nestes documentos sejam realmente

expressões legítimas sobre as experiências vividas, sobre os saberes conquistados, e os

possíveis caminhos que ainda nos restam percorrer? Como devolver a estes instrumentos

sua credibilidade, sua utilidade e funcionalidade e resgatá-los do lugar simplesmente

figurativo que ocupa em tantas escolas? Como produzir instrumentos de avaliação que

estejam a serviço da professora e sua reflexão, a serviço do aluno em seu aprendizado?

Instrumentos que façam sentido? Como o poeta nos lembra: “(...)que a importância de

uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a

importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em

nós.”(Manoel de Barros). Como criar instrumentos que falem de encantamentos e

aprendizagens, de desejos e conquistas e não de dados, datas, nomes, regras? Instrumentos

que nos falem do que é importante na escola, na relação da professora com seu aluno, na

78 Realmente não interfere no conceito do aluno os dados registrados no relatório sobre seu desenvolvimento, sendo assim, mesmo que a professora sinalize no relatório um sucesso do processo vivido pelo aluno, isto será invisibilizado pelas notas obtidas nas provas internas – da escola – e externas – da prefeitura.

198

relação do aluno com os conhecimentos do mundo? Que falem deste sujeito que ao se

encantar com o ato de aprender, desencanta o feitiço que o mantinha aprisionado no lugar

do não-saber. Instrumentos que falem do que realmente é importante: os conhecimentos

que estes sujeitos produzem e conquistam juntos, e que como nos ensina o poeta, não serão

medidos por fitas ou balanças, nem por provas ou índices... Talvez porque assim como as

poesias, não tenham medidas...

Para começar, precisamos refletir sobre nossas escolhas docentes diante das muitas

funções que a avaliação possui, e a partir desta reflexão, decidir de que forma vamos nos

posicionar profissionalmente, política e pedagogicamente diante dos instrumentos e

práticas propostas para a avaliação dos nossos alunos. Compreendo que os instrumentos de

medida estandardizados, produzidos em uma perspectiva monocultural, irrompem as salas

de aula e produzem movimentos complexos e reações diversas, muitas vezes levando

professores e professoras a se entrincheirar ainda mais neste campo de batalha.

Compreendo que privilegiar estes instrumentos externos em detrimento dos saberes

docentes sobre os alunos e sobre os processos vividos provoca ressentimentos e reações

nem sempre éticas ou justas, contribuindo para que outros instrumentos ou processos de

avaliação sejam descartados, ou sejam tratados com desprezo pelas professoras. Instaura-se

um conflito, ético com certeza, muitas vezes doloroso, que cobra de nós escolhas, nem

sempre fáceis, nem sempre possíveis, mas escolhas necessárias.

A avaliação escolar possui não apenas diferentes instrumentos, formas e processos.

Possui diferentes intenções, funções, interesses. Possui diferentes fundamentos teóricos

epistemológicos que se filiam a diferentes projetos políticos. Projetos políticos diferentes,

mas que ao se apropriarem de certas palavras, de certos textos e lugares comuns produzem

um discurso que parece sempre o mesmo, mas não é.

As professoras percebem e denunciam, por exemplo, a incoerência entre o discurso

da diversidade – e, portanto respeito à singularidade dos processos de ensinoaprendizado

vividos – e as práticas – implementadas pelo controle dos currículos e avaliações –

pasteurizadoras dos sujeitos. Percebem um movimento onde o discurso por uma escola

autônoma, democrática, que respeita os saberes dos alunos e a diversidade, que pretende

formar o cidadão crítico, participativo etc. etc. etc. encontra-se na contramão do kit escola:

planejamento, método, currículo, recursos e avaliação, que chega pronto para ser aplicado,

ignorando a participação das comunidades escolares.

Mas muitas vezes, não percebem que, como peças fundamentais nesta arena,

precisam escolher se aceitarão os mecanismos de regulação do projeto hegemônico ou

199

construirão com seus alunos alternativas de emancipação. Talvez possamos devolver aos

instrumentos, aos processos e práticas avaliativas sua legitimidade, se os tornarmos nossos,

se escolhermos buscar alternativas que se comprometam com os nossos alunos e com sua

aprendizagem efetiva. Saber a que projeto servimos, a quem servimos, nos ajuda a definir

quais os instrumentos nos servem ou não.

Penso, portanto, que um caminho possível, para uma avaliação que contribua

efetivamente para a emancipação dos sujeitos é aquela que respeite o protagonismo

compartilhado destes sujeitos, onde não existam coadjuvantes ou figurantes, mas todos

possam assumir a narrativa dessa história que produzem juntos. Aquela que compreende

que não se pode ignorar os sujeitos que de fato vivem o processo de produção e descoberta

dos conhecimentos. Compreende que não se pode avaliar o “outro” sem o “outro”.

Compreende que este “outro” a quem pretendo avaliar, não é um objeto que devo

“encaixar” em meu projeto civilizador, mas um sujeito. Sujeito de saberes e de desejos,

sujeito com sonhos, com aspirações, com vontade própria como me lembrou recentemente

minha aluna Rute.

Rute é uma aluna especial – tem síndrome de Down – que tenho em minha turma

do PEJA. Ela tem 22 anos, é muito alegre, um pouco tímida e senta-se pertinho de mim, já

que sempre passo atividades diferenciadas em seu caderno ou proponho alguns jogos que

exigem minha participação. Noite dessas, resolvo trabalhar com recorte e colagem de

figuras estabelecendo alguns critérios de pesquisa – sugestão da professora itinerante que

acompanha o trabalho com alunos especiais – e viro-me confiante para Rute e digo-lhe o

que vamos fazer. Para minha surpresa, Rute com ares de rainha inglesa, levanta a mão em

um gesto elegante e me diz com toda calma do mundo – e com firmeza – “não, muito

obrigada!”. Paro diante de Rute totalmente desnorteada e insisto – de meu lugar de poder –

tentando seduzi-la, intimidá-la: “Olha Rutinha todo mundo vai fazer, vai recortar...” sou

interrompida com outro “não, muito obrigada!”, desta vez mais firme e um tanto

aborrecido. Diante do firme querer de Rute cedo e lhe pergunto finalmente: “então o que

quer fazer?”. Rute responde sorrindo tranquilamente: “escrever”. Percebo naquele instante

o quanto Rute é realmente especial.

Fico pensando neste sujeito que conquista o direito de dizer “Não, muito

obrigada!”. Não, muito obrigada hoje eu não quero fazer o que você deseja! Não, muito

obrigada, mas hoje eu quero ser senhora de meu próprio desejo. Quero poder ser livre para

desejar, quero ser respeitada em meu direito de desejar, quero que confie em meu desejo.

Que confie que meu desejo também é potente, que também cria possibilidades de aprender.

200

Rute não disse que não desejava nada, que desejava apenas algo lúdico ou divertido, ela

queria escrever. Ela também não se recusou a realizar outras tarefas, e no final da aula

resolveu fazer a atividade de recorte e colagem, e a fez com prazer e atenção. Não foi má

vontade, ou preguiça o que moveu Rute, foi outro desejo. Desejo legítimo, desejo potente,

desejo que não compromete a qualidade do trabalho pedagógico, ao contrário, o dota de

sentido para o aluno.

Fico pensando quando nós, professoras, vamos conquistar essa consciência

emancipada e simplesmente compreender que somos sujeitos de querer.

Que como Rute vamos, com firmeza e serenidade simplesmente dizer: “Não, muito

obrigada!” o seu projeto não me seduz. Não, muito obrigada, mas eu não quero magoar

meu aluno comparando-o com outra criança. Não, muito obrigada, eu não quero ignorar

tudo o que sei e aprendi para utilizar materiais inócuos e mal feitos e produzir uma

existência escolar estéril. Não, muito obrigada não é essa escola que eu acredito, e não será

essa a escola que farei. Rute me faz refletir então, como o processo de avaliação exige de

nós professoras muito mais do que descobrir quais são os saberes dos outros. Exige

também que estejamos atentas a quais são seus desejos. Pois tão importante quanto saber o

que sabem, é conhecer o que desejam saber. Afinal, somos movidos pelos nossos desejos.

E estes desejos estão sempre presentes, visíveis ou não. E como são eles que nos

movem, mesmo ignorados, encontrarão uma forma de se impor. As crianças assim se

movem e provocam diversas situações de resistências, que diante da intransigência ou

autoritarismo, podem se tornar verdadeiras batalhas dentro da escola. As professoras e

professores também possuem táticas que utilizam para sobreviver à intransigência e

arrogância dos projetos que invadem seu cotidiano sem pedir licença. Sem a coragem de

Rute para dizerem “não, muito obrigada”, inscrevem de outras formas seus desejos.

As políticas implantadas pelo projeto do Estado avaliador – que vão se

consolidando em muitos países – provocam reações que nem sempre são justas, nem

sempre são éticas ou honestas, nem sempre são produtivas no cotidiano escolar. Reações

minúsculas e silenciosas que vão mostrando as fragilidades de uma estrutura que – não

quer reconhecer – a importância deste protagonismo dos sujeitos da/na avaliação.

Sujeitos que nem sempre, possuem organização política, ou ações coordenadas, que

não ocupam as manchetes dos jornais, mas que em seus fazeres minúsculos, vão criando

alternativas às políticas implantadas, vão fazendo “outros usos”(Certeau) dos produtos

impostos. Muitas vezes não contestam, mas também não obedecem simplesmente. Esses

movimentos vão tecendo um cotidiano complexo onde as macro-políticas esbarram nas

201

micro-práticas invisíveis. O terreno onde esta batalha acontece? Nossas escolas. As

principais armas do conflito? Os instrumentos de medida e avaliação.

A batalha travada entre essas diferentes forças (macro e micro) que se movem, ao

invés de tornar as práticas escolares e os conhecimentos produzidos pelas escolas mais

visíveis e transparentes, para que possamos refletir e interferir qualitativamente neste

processo, ao contrário, tornam os processos cada vez mais obscuros, as informações cada

vez mais mascaradas, cada vez mais contraditórias e incoerentes. Muitas vezes os sujeitos

avaliadores – seja professor, gestor ou Secretaria – produzem apenas o que “interessa”

mostrar, sem que necessariamente o que foi mostrado seja expressão da realidade vivida e

conhecida. Em outras palavras produzimos, muitas vezes, um processo de avaliação onde o

que se esconde é muito maior do que se revela. E isso, tenho certeza, não contribui para a

qualidade de nossa escola.

A avaliação conhecida como “formativa”, que no cotidiano escolar pode significar

uma investigação cuidadosa dos processos de aprendizagem dos alunos como também um

controle passo a passo de um currículo arbitrário, é de qualquer forma, aquela reconhecida

e utilizada pelas professoras como a prática que contribui efetivamente para reorganização

do trabalho escolar com cada criança.

A avaliação somativa – realizada ao final de uma etapa e de preferência por

avaliador externo – que está sendo assumida como política pública em várias

cidades/países, e prevista em nossa LDB, tem como objetivo, ou justificativa, proporcionar

uma visão ampla de um sistema de ensino, mapeando suas fragilidades para um melhor

planejamento das ações. Uma avaliação que permita aos governos replanejar seus

investimentos em educação.

Procurei ao longo deste trabalho, buscar compreender como certos projetos

pedagógicos foram se configurando – a partir das discussões sobre currículo e práticas de

avaliação – em nossos discursos e práticas e as questões teóricas, epistemológicas e

políticas que estão em conflito nestes projetos. Penso que precisamos retomá-las para

refletir melhor sobre esta dimensão – somativa – da avaliação e a função que vem

assumindo no projeto de sociedade hegemônico que está em curso.

Nas cartas que estão sob a mesa hoje, ecos de uma filosofia positivista, que inspirou

os projetos tecnicistas que inundaram as escolas na década de setenta. Ecos de uma crença

behaviorista onde o controle dos meios determinará o fim. Crença na objetividade, na

neutralidade científica, crença no método. O estado avaliador não pode, como vimos,

comprometer-se com uma avaliação que investigue a ação pedagógica e suas infinitas

202

variáveis socio-econômicas-sociais. Tampouco, esta avaliação estatal serve para que

possamos refletir sobre os processos de aprendizagem dos alunos, realimentando este

processo, por que seus instrumentos são limitados pela própria dimensão e alcance de uma

avaliação universal de milhares de crianças e jovens, limitados pela necessidade de serem

processados e transformados em dados. O estado avaliador encontra-se restrito, portanto a

uma sondagem limitada, de conhecimentos limitados, em uma forma limitada de aquisição

de informações. Admito que apesar destes limites, alguma informação estas provas podem

oferecer, contudo estes limites da avaliação não são reconhecidos quando se tornam

públicos os juízos de valor sobre as instituições ou alunos, tornando-as um estatuto de

verdade sobre o outro. O que é, no mínimo, preocupante.

O paradigma cientificista, que busca controlar o processo de ensinoaprendizagem

como pensa poder controlar uma linha de montagem de uma fábrica, encontra-se na base

das crenças que sustentam este projeto, e somente um projeto filiado a estas crenças,

admite que um instrumento único possa oferecer um mapeamento da “realidade” escolar de

um país continente como o Brasil.

É preciso acreditar na universalidade de lógicas, de conhecimentos, de cultura e de

uma certa essencialidade dos sujeitos, para admitir que este instrumento auxiliará na

construção de uma escola realmente melhor para um certo “todos”. No entanto como nos

lembra Sacristán&Gómez “Essa primeira seleção do objeto de avaliação, que nos parece

natural, revela o papel que esta cumpre”.(1998). Por que em um universo imenso de

saberes e experiências humanas, apenas tão poucos conteúdos e disciplinas são

privilegiados? Por que dentre as milhares de formas e maneiras de expressão humana

apenas uma ou algumas serão privilegiadas?

No longo caminho da história da educação brasileira não foram poucos os

educadores que já nos alertaram que a nossa escola, como instituição, é organizada para o

sucesso das classes altas e médias e para o fracasso das classes populares. A opção

“natural” por saberes que “naturalmente” temos que ter, feitos por aqueles que

“naturalmente” possuem estes saberes, e “naturalmente” decidem por nós, vem sendo uma

das questões que tenho enfrentado na defesa de uma escola democrática e plural.

A seleção da forma e dos conteúdos escolares únicos, não apenas empobrecem as

possibilidades curriculares e produzem um “epistemicídio” como nos ensinou Boaventura,

como são uma forma perversa de seleção e desqualificação de tantos outros.

Vou continuar defendendo a importância de meu aluno ler e escrever. Vou

continuar defendendo a importância de ensiná-lo a refletir, pensar e questionar as

203

informações que encontra em suas múltiplas leituras. Mas não farei isso por ele, ou para

ele. Farei com ele. Investigando passo a passo o sentido que este ensinaraprender tem para

nós dois.

Outra crença, necessária para justificar esta ação interventora da política pública, é

que a avaliação somativa, e principalmente, a exposição social dos resultados comparativos

(de realidades dispares), servirão como motivação para que as escolas empenhem-se mais

na busca do sucesso escolar. Minha questão é: a que preço? Sofrer um processo de

comparação pública, quando este público tantas vezes ignora as condições reais a que

sujeitos e instituições estão submetidos é motivador ou injusto e humilhante?

Cabe ao governo estabelecer uma política pública para a educação. Não discordo.

Contudo, em um país que se pretende democrático esta política pública deveria levar em

conta outros interesses além dos interesses do mercado financeiro. O mundo é maior do

que a bolsa de valores. Existem outras formas de viver, outras possibilidades de existência

e principalmente de felicidade e dignidade para a vida humana para além das grandes

corporações, para além dos Shopping Centers. Existe a possibilidade de conhecer, crescer,

ser feliz e produzir outras riquezas a partir de outros lugares, sem que “todos” precisem

lutar para serem os mesmos, ocupando os mesmos lugares. Lugares que sabemos, não

estão disponíveis, ao contrário, são cada vez mais escassos e seletivos. Lugares marcados.

O governo defende uma escola de qualidade. Não discordo. Mas o que é uma escola

de qualidade? Quem define que existe apenas uma forma de qualidade? Em uma

perspectiva democrática defendo que os sujeitos tenham o direito de discutir que qualidade

é esta. O que é qualidade escolar? Por que os protagonistas da vida escolar não participam

desta discussão? Acaso pais, mães, professoras e alunos nada têm a dizer sobre a qualidade

que desejam e precisam ser tutelados?

Por que as avaliações nesta perspectiva gerencialista sobre as escolas, em busca da

comprovação da sua eficácia, aqui no Brasil, não incluem uma avaliação – também externa

para sermos fieis ao paradigma defendido – da eficiência das gestões públicas? Por que não

são avaliadas as estruturas, os investimentos, a performance dos Secretários e demais

setores hierárquicos na produção dessa qualidade escolar? O governo nos avalia. Quem

avalia o governo? Afinal, as decisões estatais – na contratação de professores, planos de

carreira e salários, infraestrutura física e humana, número de alunos por turma, tempo

integral, etc. – são aspectos fundamentais para a construção da qualidade escolar. Por que a

avaliação vem sendo um processo unilateral, já que a justificativa é conhecer para melhor

investir na qualidade desta escola?

204

Bernadette Gatti (2009) apresenta em seu artigo que o SAEB (Sistema Nacional de

Avaliação Básica) é composto por dois grandes eixos: o primeiro voltado ao acesso e o

segundo a qualidade da educação básica. Neste último destaca quatro eixos: o produto,

desempenho do aluno; o contexto, nível socioeconômico, hábitos de estudo, condições de

trabalho docente, grau de autonomia da escola, matriz organizacional; o processo,

planejamento de ensino, projeto político-pedagógico da escola, tempo escolar e estratégia

de ensino; os insumos, infraestrutura, espaço físico e instalações, equipamentos, recursos

materiais e didáticos.

Podemos dizer que o governo Federal compreende então, que a qualidade do ensino

não é produzida apenas pela análise do “produto”, ou seja, pelos índices e notas dos

alunos, mas por um conjunto de fatores compostos pelos contextos, processos e insumos.

No entanto, os três últimos eixos parecem invisibilizados e nos discursos que circulam na

sociedade, só a nota do aluno aparece. Os debates sobre condições de trabalho docente,

sobre os fatores socioeconômicos, sobre os projetos e infraestrutura parecem ofuscados

pelos quadros e tabelas comparativas de notas.

Se nossa LDB prevê um controle de qualidade das escolas pelo governo federal – o

que inspira os governos locais a fazer o mesmo – prevê também – e talvez paradoxalmente

– que nossas escolas tenham um projeto político-pedagógico e uma gestão democrática. No

entanto, como desenvolver um projeto com autonomia, respeitando as necessidades,

interesses, sonhos e desejos de cada comunidade escolar se a educação está cada vez mais

regulada pelas avaliações externas? Como garantir a autonomia e a democracia escolar

frente aos projetos homogeneizadores que estão invadindo nosso cotidiano? O conflito não

é apenas das professoras, é institucional.

A avaliação somativa define quais são os saberes – mínimos – que “todos” devem

possuir, mas ignora quais são os milhares de outros saberes que possuem. Assim como

ignora suas diferentes lógicas e linguagens. Por isso possui um caráter político excludente.

Como será excludente qualquer projeto que tenha como paradigma transformar o outro no

mesmo, que tenha como objetivo comparar aqueles que mais sucesso alcancem tentando

ser o mesmo. Excludente porque sabe que o pódio só possui um lugar mais alto, mas

mesmo assim, acredita que é justo que milhares fracassem, chorem, desistam, morram,

para que um triunfe. Enquanto insistirmos neste projeto, sempre alguns triunfarão, e

milhares serão excluídos. E muitos acharão justo. Eu não.

Como educadora acredito que o conhecimento, produzido na partilha e no encontro

com outros seres humanos, este que amplia nosso entendimento e ação no e com o mundo,

205

nos torna melhores. Como educadora seguirei insistindo com os meus alunos que eles tem

o direito, que podem e devem buscar a cada dia serem melhores. Mas não direi para o meu

aluno que ele precisa ser melhor do que o outro. Direi que ele precisa superar todos os seus

limites, mas não que deve buscar superar o outro. Direi que juntos aprendemos mais,

podemos mais e seremos mais. Mas não mais do que o outro.

A ação reguladora da avaliação somativa, associada a lógicas e métodos do

mercado financeiro como: competições e comparações, bônus, prêmios e retaliações; vem

transformando a escola em uma agência de concurso, com muitas professoras mais

preocupadas em “treinar” os alunos na linguagem específica da prova do que com o

aprofundamento dos conceitos. Afinal o “produto” da escola precisa ser traduzido em um

número. Mas este número traduz realmente o que esta escola produz?

“A confusão chega a um ponto em que nós, professores/as, não

sabemos bem se avaliamos porque queremos comprovar o ensinado ou ensinamos porque teremos que avaliar. Para os alunos/as, a situação é evidente: têm claro que a avaliação não é diagnóstico do aprendido, mas razão para estudar.”(Sacristán, J e Goméz, pág 327, 1998)

Estudar ou preparar-se para o exame? Razão para estudar ou para memorizar os

questionários das donas Lenis? O produto da escola – que penso deveria ser um

conhecimento significativo – amplia-se ou é reduzido pela avaliação somativa (interna ou

externa) quando esta assume o protagonismo das práticas pedagógicas? O que realmente a

escola ganha ou perde em qualidade quando a avaliação somativa torna-se o eixo central

dos fazeres escolares, relegando a um segundo plano o próprio processo de

ensinoaprendizagem?

Quando apresentei a discussão sobre sucesso/fracasso, discutimos como diferentes

concepções de mundo vão produzindo respostas muito diferentes sobre o que cada um de

nós, professores e professoras, alunos, mães, pensamos sobre qualidade, sobre o sucesso

escolar, sobre o que deve ou não a escola produzir. E vimos como é impossível traduzir

nossos sonhos, aspirações e desejos, nossas experiências e saberes em números, como é

impossível reduzir o ser humano a tão pouco. Vimos também que as aspirações desses

sujeitos não são mínimas, ao contrário, eles possuem grandes expectativas em relação ao

que a escola pode ou deve lhes proporcionar. Uma escola que não deseja ser mínima.

Ao impor as escolas esta política centrada nas avaliações externas, vemos em nosso

cotidiano, muitas vezes, a forma tornando-se mais importante do que o conteúdo. Uma

escola mínima, que oferece o mínimo, formando sujeitos mínimos. Porque apenas o

206

mínimo pode ser verificado. Ou talvez, porque seja o mínimo mesmo que este projeto

pretende produzir.

Professoras (e as famílias, e os alunos) aprendem que a habilidade que mais importa

desenvolver é o ajuste das crianças a uma certa “linguagem” escolar, as lógicas dos

avaliadores, e bem sucedidas/conceituadas serão as mais bem ajustadas. Um projeto que

esconde sob o discurso da inclusão, sob a bandeira da qualidade, cidadania, democracia,

etc. apenas a mesma velha intenção: ajustar os sujeitos mais adaptáveis ao mundo do

capital, descartar o (imenso) excedente, sobrepor os interesses econômicos das classes

dirigentes aos sonhos e possibilidades individuais, e justificar tudo isso com: “demos

iguais oportunidades a todos, mas o mercado seleciona os melhores, é a lei da natureza!”.

O projeto não pretende realmente incluir “todos”, simplesmente porque não há lugares para

“todos” neste projeto. Mas pretende sim, conformar todos à sua lógica, conformar todos à

sua soberania, conformar todos às suas necessidades, impedindo – ou tentando impedir –

que alternativas reais a este projeto surjam, que os sujeitos livres de seu controle, de sua

avaliação e permissão para existir, possam produzir conhecimentos significativos que nos

permitam transformar nossas vidas, nossas histórias. Produzir outros caminhos.

Se temos professoras simplesmente ajustando-se a este projeto regulador – por

adesão, ignorância ou simplesmente indiferença – temos outras que ainda insistem na

busca por estes caminhos, e outras ainda que tentam equilibrar-se nesta corda bamba,

sabendo que não importa a escolha que faça, a dor do tombo é certa.

Precisamos então nos perguntar entre as diferentes funções que as práticas de

avaliação cumprem quais nos fortalecem, quais nos subalternizam? Quais nos emancipam

e quais nos acorrentam?

Estas diferentes práticas de avaliação que possuem diferentes intencionalidades,

que se vinculam a projetos diferentes, que possuem diferentes lógicas e diferentes éticas,

nos proporcionaram diferentes perguntas, algumas indignações, mas que nos fazem

perceber que a avaliação que mais contribui para o nosso trabalho não é feita de um

momento, ou um dado. Não é uma prova ou um conceito, não é nem mesmo aquela

produzida para o espetáculo ridículo do “milagre” dos projetos salvacionistas79 veiculado

pela mídia. Que apesar da expectativa de termos nosso trabalho legitimado socialmente, da

79 Infelizmente é prática política corrente em nosso país preocupar-se mais com a propaganda e com os ganhos eleitorais que possam ser capitalizados em projetos espetaculares, do que com projetos conscistentes mas nem sempre visíveis a curto prazo. Assim a cada nova gestão é preciso mudar a cor dos prédios, os nomes das coisas, inaugurar coisas novas mesmo que as velhas necessitem de manutenção etc.

207

expectativa de termos nossas diferentes realidades compreendidas, a avaliação que nos

importa é um processo de investigação sobre a relação de ensinoaprendizado que se

estabelece entre a professora e seu aluno.

A avaliação que nos importa é aquela que se estabelece a partir desse pacto de

solidariedade entre os sujeitos que se compreendem aprendentes sobre um processo nem

sempre claro, nem sempre fácil, nem sempre seguro. Sujeitos que se importam uns com os

outros, que se compreendem parceiros, que se encontram. Que não são consumidores e

produtores, não são gerentes e clientes, não são carrascos e vítimas, que não são

inimigos.80 São seres humanos compartilhando das possibilidades e limites que sua

humanidade permite na aventura de aprender. A avaliação que nos importa é aquela que

nos coloca a favor do aluno e não contra ele, a favor de seu aprendizado e sua emancipação

e contra sua exclusão e subalternização. A avaliação que importa, a nós educadoras, é

aquela que se coloca a serviço da compreensão do processo de aprendizagem de cada

criança, de seus desejos e sonhos, para contribuir com seu desenvolvimento, com sua

relação com o mundo que a cerca.

O país quer que a educação tenha qualidade. As famílias querem – e tem direito – a

uma educação de qualidade. Será que só os educadores não desejam uma educação de

qualidade e por isso precisam ser chantageados, premiados, ameaçados? Será que o

conhecimento é algo tão ruim que os alunos precisam ser coagidos ou comprados para que

desejem aprender? E que aprendizado será produzido se os sujeitos vêm o conhecimento

como um meio e não um fim em si mesmo? O conhecimento em si não possui valor

algum? É preciso que seja trocado por um prêmio? É isso que desejamos ensinar realmente

para nossas crianças?

Ou será que a concepção de qualidade que possuem os projetos classificatórios e

seletivos, tantas vezes ancorados em currículos monoculturais e eurocêntricos, ignoram as

concepções de qualidade que possuem estes alunos e educadores, ignoram que para

alcançarmos uma educação de qualidade é preciso que muita coisa mude não só na escola,

mas nas relações que a própria sociedade vem estabelecendo com o conhecimento, como

transformá-lo em uma mercadoria, ou moeda de troca, por exemplo. Será que temos o

mesmo projeto para a educação destas crianças? Será que acreditamos nos mesmos

caminhos? Será que pretendemos formá-las para o mesmo mundo? Comparar crianças

80 @a lógica de certos setores empresariais os vendedores são treinados para ver o cliente como um inimigo a ser conquistado, dominado. Vista como uma empresa a escola acaba “herdando” não só o vocabulário, mas as lógicas e estratégias deste mercado.

208

desde o mais cedo possível, para deixar claro que “neste” mundo só existem poucas vagas

na “primeira classe” e que é preciso deixar – muitas vezes a qualquer custo – a

concorrência para trás para garantir seu lugar, é formar que tipo de cidadãos? Para que tipo

de sociedade?

Ao longo de nossas conversas fui percebendo que a avaliação que nos importa é

aquela produzida na relação de Cássia com seu aluno cavaleiro, a que produz a partir do

diagnóstico dos saberes e desejos de seus alunos; na relação de confiança de Cristiane com

os alunos inseguros; no olhar atento e interessado de Rosângela para aqueles que como ela

escondem atrás da timidez uma autoestima frágil; na relação de Aline com Leonardo.

Relações onde as professoras, primeiro acreditam na possibilidade de ensinar –

crença fundamental para produzir seu movimento – depois reconhecem os seus não-

saberes e investigam os saberes, e os porquês de cada aluno, buscando pistas por onde

estes saberes se produzem, e finalmente, abrem-se à possibilidade de criar alternativas que

atendam as necessidades dos seus alunos. Sempre? Não, pois este é um exercício constante

de nos formarmos educadoras. A aluna de dona Leni, traz em sua memória, em seu

coração, como tantas de nós, uma lembrança que não se desfaz, mas aos poucos, liberta-se

de seu espectro e vai se fazendo outra professora. Um “fazer-se” que não tem fim, tem idas

e vindas, tem erros e acertos, por isso exige de nós não só a busca pelo conhecimento

constante, mas pelo autoconhecimento permanente.

Ao compreendermos a avaliação como uma relação onde garimpamos indícios não

apenas sobre o processo de aprendizado de nossos alunos, mas também indícios sobre a

professora que sou, os conhecimentos pedagógicos que possuo para ensinar, sobre a

qualidade das informações que possuo sobre todo esse processo, refletindo constantemente

sobre a complexidade dessas informações, e compartilho esse processo dialogicamente

com os outros sujeitos da/na avaliação me coloco em um movimento de formação

contínua.

Professoras que não são formadas para serem apenas fiscais de um projeto de

seleção e classificação de pessoas. Que não usam os conhecimentos escolares – que como

vimos são apenas uma seleção arbitrária no universo dos conhecimentos humanos – para

desqualificarem seus alunos, reprodutoras das relações colonialistas.

São estes os sujeitos – professoras, alunos, famílias, etc – invisibilizados, tantas

vezes silenciados e ignorados, outras vezes desrespeitados e desqualificados, que em suas

relações produzem a avaliação que realmente potencializa o aprender e o ensinar.

209

Eles não precisam de prêmios ou dinheiro, nem de viagens ou computadores, o que

estas pessoas precisam mesmo, é de respeito. Respeito por suas identidades, por suas lutas,

por seus fazeres diários, contínuos e tantas vezes solitários. Respeito por seus diferentes

tempos, por seus diferentes contextos, por suas culturas diferentes.

Sujeitos que tem o direito de libertar-se de ser uma nota, um número que

representam apenas o que eles geralmente “não são”, sem traduzir as batalhas que precisam

travar contra a miséria, contra a violência, que aqueles que lhes querem avaliar produzem,

que precisam lutar contra a humilhação de serem julgados por sujeitos que não os

conhecem, que nos os respeitam, e que tantas vezes nem mesmo competência possuem

para julgá-los, mas o fazem com a arrogância que o poder e a ignorância unidos produzem.

Com a mesma ignorância e arrogância com que os europeus olhavam para os índios e

negros, com a mesma ignorância e arrogância que o asfalto olha para as favelas, com a

mesma ignorância e arrogância que a cidade olha para o campo, que o centro olha para a

periferia. Pretender avaliar sem conhecer quem são estes sujeitos – tão outros – na/ da

avaliação, é realmente apenas pretensão. Para avaliar é preciso deslocar-me de meu próprio

centro, para compreender os processos de aprendizagem do outro a partir dele mesmo, a

partir de seu contexto, de sua vida, de sua história. É preciso que eu também possua

consciência de que sou um outro nesta relação, e que nela coloco também minha história,

minhas crenças, meus sonhos. E ainda que existem estes “outros” que tentam nos ignorar

como sujeitos neste processo. Então a avaliação é também este lugar, onde estes muitos

outros se encontram. Onde alguns se unem para sobreviver. Onde alguns se isolam e

tentam lutar sozinhos. Onde alguns tentam nos negar o

direito à vida. Onde outros lutam pelo direito de

mostrar que são muito mais, que sabem muito mais,

que produzem muito mais, do que 5 letrinhas ou 10

números podem representar.

Sujeitos que, como Leonardo, lutam para ter o

direito de ter um nome que o dignifica, luta pelo direito

de sorrir diante da palavra lida e compreendida, direito

de ser acompanhado em seu sorriso por todos aqueles

que com ele, tornaram este momento possível. Direito

de lutarmos por esta felicidade que encontramos ao

compartilhar os nossos saberes. Direito de sermos felizes.

Aline/Leonardo. Foto Andrea Serpa

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