quanto.vale.ou.e.por.quilo

Upload: yuri-fernando

Post on 11-Jul-2015

452 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Quanto Vale ou por Quilo?Roteiro do filme de Sergio Bianchi

Quanto Vale ou por Quilo?

Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi do filme de Sergio Bianchi

So Paulo, 2008

Governador

Jos Serra

Imprensa Oficial do Estado de So Paulo Diretor-presidente Hubert Alqures

Coleo Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho

Apresentao

Segundo o catalo Gaud, No se deve erguer monumentos aos artistas porque eles j o fizeram com suas obras. De fato, muitos artistas so imortalizados e reverenciados diariamente por meio de suas obras eternas. Mas como reconhecer o trabalho de artistas geniais de outrora, que para exercer seu ofcio muniram-se simplesmente de suas prprias emoes, de seu prprio corpo? Como manter vivo o nome daqueles que se dedicaram a mais voltil das artes, escrevendo dirigindo e interpretando obras primas, que tm a efmera durao de um ato? Mesmo artistas da TV ps-videoteipe seguem esquecidos, quando os registros de seu trabalho ou se perderam ou so muitas vezes inacessveis ao grande pblico. A Coleo Aplauso, de iniciativa da Imprensa Oficial, pretende resgatar um pouco da memria de figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveram participao na histria recente do Pas, tanto dentro quanto fora de cena. Ao contar suas histrias pessoais, esses artistas do-nos a conhecer o meio em que vivia toda uma classe que representa a conscincia crtica da sociedade. Suas histrias tratam do contexto

social no qual estavam inseridos e seu inevitvel reflexo na arte. Falam do seu engajamento poltico em pocas adversas livre expresso e as conseqncias disso em suas prprias vidas e no destino da nao. Paralelamente, as histrias de seus familiares se entrelaam, quase que invariavelmente, saga dos milhares de imigrantes do comeo do sculo passado no Brasil, vindos das mais variadas origens. Enfim, o mosaico formado pelos depoimentos compe um quadro que reflete a identidade e a imagem nacional, bem como o processo poltico e cultural pelo qual passou o pas nas ltimas dcadas. Ao perpetuar a voz daqueles que j foram a prpria voz da sociedade, a Coleo Aplauso cumpre um dever de gratido a esses grandes smbolos da cultura nacional. Publicar suas histrias e personagens, trazendo-os de volta cena, tambm cumpre funo social, pois garante a preservao de parte de uma memria artstica genuinamente brasileira, e constitui mais que justa homenagem queles que merecem ser aplaudidos de p. Jos SerraGovernador do Estado de So Paulo

Coleo AplausoO que lembro, tenho. Guimares Rosa

A Coleo Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa a resgatar a memria da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compem a cena brasileira nas reas de cinema, teatro e televiso. Foram selecionados escritores com largo currculo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a histria cnica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituda de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre bigrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens so pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetria. A deciso sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantm o aspecto de tradio oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleo que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biogrficos, revelando ao leitor facetas que tambm caracterizam o artista e seu ofcio. Bigrafo e biografado se colocaram em reflexes que se estenderam sobre a formao intelectual e ideolgica do artista, contex tualizada na histria brasileira, no tempo e espao da narrativa de cada biografado.

So inmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crtico ou denunciando preconceito seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso pas. Muitos mostraram a importncia para a sua formao terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televiso, adquirindo, linguagens diferenciadas analisando-as com suas particularidades. Muitos ttulos extrapolam os simples relatos biogrficos, explorando quando o artista permite seu universo ntimo e psicolgico, revelando sua autodeterminao e quase nunca a casualidade por ter se tornado artista como se carregasse desde sempre, seus princpios, sua vocao, a complexidade dos personagens que abrigou ao longo de sua carreira. So livros que, alm de atrair o grande pblico, interessaro igualmente a nossos estudantes, pois na Coleo Aplauso foi discutido o processo de criao que concerne ao teatro, ao cinema e televiso. Desenvolveram-se temas como a construo dos personagens interpretados, a anlise, a histria, a importncia e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correo de erros no exerccio do teatro e do cinema, a diferena entre esses veculos e a expresso de suas linguagens.

Gostaria de ressaltar o projeto grfico da Coleo e a opo por seu formato de bolso, a facilidade para ler esses livros em qualquer parte, a clareza de suas fontes, a iconografia farta e o registro cronolgico de cada biografado. Se algum fator especfico conduziu ao sucesso da Coleo Aplauso e merece ser destacado , o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu pas. Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficcia a pesquisa documental e iconogrfica e contar com a disposio e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleo em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilgios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais que nesse universo transitam, transmutam e vivem tambm nos tomaram e sensibilizaram. esse material cultural e de reflexo que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert AlquresDiretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

Imagem do set de filmagens de Quanto Vale...

ApresentaoO objetivo deste livro oferecer ao leitor um painel multifacetado sobre a criao e recepo do filme Quanto Vale ou por Quilo?, de Sergio Bianchi. Para isso publicaremos o roteiro completo, numa verso anterior s filmagens e com vrias cenas que no esto na edio final e mais algumas que no foram filmadas. O roteiro ter tambm comentrios dos autores do roteiro (Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi), discutindo as diferenas entre o roteiro e o resultado final, e explicando algumas tcnicas utilizadas. Na Introduo do livro, um dos roteiristas do filme, escreve um artigo explicando o mtodo de criao do diretor Sergio Bianchi. uma anlise de como o trabalho prtico de um roteirista de cinema. Oferecemos tambm ao leitor alguns textos inspiradores do filme. Publicamos o conto Pai Contra Me, de Machado de Assis, que serviu de inspirao para o incio dos trabalhos e cuja histria est no roteiro final do filme. Publicamos tambm as crnicas do pesquisador Nireu Cavalcanti, que foram adaptadas para a linguagem audiovisual no filme. Por fim, organizamos uma pequena coletnea, com crticas de jornais e revistas, discutindo o filme. Esperamos assim dar ao leitor uma viso panormica da criao e recepo do filme Quanto Vale ou por Quilo? Os organizadores

11

Escrever com Sergio BianchiO trabalho do roteirista inventar as regras do filme Se um roteirista chegar para trabalhar com Sergio Bianchi, trazendo uma formulinha mgica de um dos manuais de roteiro, um dos famosos best-sellers de roteirista-mirim (tal como o de Syd Field e outros do mesmo estilo), seu trabalho no duraria uma semana. No haveria comunicao. Sergio, que muito provavelmente no perdeu tempo lendo esses manuais e no deve ter opinio formada sobre o assunto, muito provavelmente renegaria, meio que por instinto, esse papo todo de ter um monte de regras, uma srie de paradigmas. Acharia esses manuais, que supostamente so manuais prticos, muito tericos. O mesmo aconteceria se um roteirista mais experiente chegasse para trabalhar com o peso de sua prtica e com suas frmulas estabelecidas de sucesso. Sergio tambm no acreditaria nelas. No fundo, o que Sergio tem uma natural, saudvel e instintiva averso a qualquer tipo de regra pr-estabelecida. Quanto Vale ou por Quilo? foi meu primeiro roteiro de filme de longa-metragem. Como eu no vinha da prtica, cheguei ao trabalho ainda com o frescor da teoria e, portanto, ainda liberto das regras fceis de sucesso. Eu logo

13

percebi que minha experincia anterior como crtico de cinema da Revista Sinopse seria til. Primeiro porque a analise , em si mesma, muito prxima de uma parte essencial do trabalho do roteirista: refletir sobre o que se escreveu. Mas tambm porque, no treino de anlise de filmes, eu percebi que os melhores filmes no se encaixam em nenhum modelo terico (em nenhum dos tais paradigmas) e que no adianta ver os filmes como modelos pr-estabelecidos. A grande sacada analtica entender as regras internas obra. Sim, as regras. Pois, voltando para o pargrafo anterior, no hesito em afirmar que todo bom filme cumpre regras.14

Alguns ainda confundem a quebra de regras clssicas de roteiro dramtico com ausncia de regras. No plo oposto aos que tm as regras infalveis, os paradigmas do sucesso e as frmulas exatas para conquistar o pblico; est o mito do artista louco, que acaba com tudo isso e expressa seu eu interior. como se a autoria fosse, necessariamente, pura intuio e o processo de escrita de um autor se aproximasse sempre da escrita automtica. O roteiro, dentro desse mito, viria das profundezas do vulco-autor Sergio Bianchi. Nada disso verdade. No processo de escrita do roteiro eu percebi que os filmes de Sergio Bianchi no tem nada de automtico ou intuio primitiva. Ao contrrio, o roteiro veio de muito trabalho e muita anlise crtica do que estvamos fazendo.

Um processo bastante racional e reflexivo, tudo pensado e discutido. O prprio Bianchi, alis, no tem nenhuma averso s regras. Sua averso em relao s regras externas, autoridade vinda de fora, imposta por frases feitas, por manuais de roteiro do tipo faa voc mesmo a casa de seu cachorro em sete lies, e por frmulas fceis de sucesso. O que Sergio quer que as regras venham do prprio filme. Um dos objetivos do processo de escrita do roteiro era encontrar as regras internas da obra que estvamos criando, e uma das funes de nosso trabalho como roteiristas era ajudar Sergio nessa busca. Nosso grande desafio foi construir as regras internas ao filme que estvamos fazendo, as regras que iriam garantir a unidade estilstica do filme. Era como se estivssemos criando a nossa prpria priso, para dentro dela, sermos livres. No comeo do processo, essa lgica interna ao filme ainda estava embrionria, mas ela gradativamente surgiu e foi aprimorada. Ao final de meses de trabalho as regras surgiram naturalmente, se precipitaram em nossa cabea, quase uma reao qumica, resultado das milhares de experincias que realizamos com mltiplos ingredientes dramticos e com muita, muita anlise dos resultados. A era rever tudo e dar unidade. O roteiro estava pronto. claro que ainda era apenas um roteiro, no sentido literal da palavra. Uma espcie de

15

mapa de orientao para a equipe seguir em seus prprios processos de criao. Mas se a direo, os atores, a montagem, o som e todas as outras partes criativas da obra compreenderem e / ou sentirem a linha indicada no roteiro, se conseguirem seguir os mapas indicados, acreditamos que Quanto Vale ou por Quilo? ter a unidade que caracteriza as grandes obras. Teoria e prtica na formao do roteirista: a anlise de filme e as reflexes sobre a prtica No existe uma diferena to clara entre teoria e prtica. Pelo menos, no existe essa diferena entre boa teoria e boa prtica. Em cinema, a boa teoria no desconsidera o objeto e nem vive no mundo abstrato das idias. A boa teoria costuma ser uma reflexo sobre a prtica. Assim, uma anlise de filme terica pode ajudar mais um realizador, do que a grande maioria dos manuais prticos. O manual do Field, com sua mania enlouquecida de impor regras fixas, muito mais terico (no mau sentido de desvinculao da atividade prtica), do que o livro Serto Mar, no qual o crtico Ismail Xavier analisa comparativamente filmes clssicos e modernos, tentando entender as regras internas de composio de cada filme. Ao ler Ismail, aprendemos a entender a lgica interna aos filmes, coisa essencial ao roteirista. Se tentar aplicar Field sua prtica de escrita, o roteirista pode estar apenas engessando sua criao. O que Ismail deixa claro que,

16

ao contrrio da utopia autoritria dos manuais, cada filme tem sua regra. Por isso um bom livro de anlise de filme uma espcie de RPG do roteirista (os RPG so jogos com regras prprias e complexas, que criam universos paralelos e interativos, simulando jogos prximos aos jogos dramticos da vida). Esse RPG da anlise de filme fundamental na formao de um roteirista ou cineasta. O mito de que se aprende fazendo est cada vez mais restrito aos primrdios da arte ou aqueles que podem se dar ao luxo de errar vrios filmes antes de acertar. H algum que pode se dar a esse luxo? Sinceramente, eu no conheo. Da a importncia de, antes de praticar, ter uma boa e longa etapa de estudos, onde a anlise de filmes realizados por outros (as reflexes sobre a prtica) entram como exerccio de simulao do trabalho. O aprendizado final acontecer na alternncia constante entre a prtica da escrita e a anlise consciente dos resultados. Soltando a franga: uma forma para incorporar todas as idias boas Quando entrei no roteiro de Quanto Vale ou por Quilo? ele j tinha um primeiro tratamento. Bastante centrado no conto Pai Contra Me, de Machado, esse tratamento j tinha um esqueleto dramtico bsico. O ncleo dramtico de Candinho estava bem avanado, faltava desenvolver o ncleo dramtico da Arminda. O objetivo inicial desse segundo tratamento era soltar mais

17

a franga, ser criativo, construir novos personagens e ampliar as cenas de impacto. E tambm, ampliar o tema do assistencialismo, assunto que comeou a orientar cada vez mais o filme. Nada disso, no entanto, deveria ser, necessariamente, vinculado ao plot central (linha dramtica da narrativa). Ao contrrio do modelo clssico, que exige coerncia dramtica e exige que boas idias sejam jogadas fora para manter a coeso da obra, ns preferimos deixar a continuidade dramtica para segundo plano e manter as boas idias que surgiam, mesmo se elas no contribussem para a evoluo da histria. A aposta era na cena autnoma, no no plot.18

O modelo do drama tambm parte do princpio da necessria unidade e coerncia do personagem. O personagem o principal, ele deve ser exposto com cuidado e verossimilhana e deve, idealmente, ter uma grande transformao ou sofrer algum aprendizado ao final. Surge da o mtodo de fazer fichas dos personagens (listado na maioria dos manuais de roteiros), voltando a caractersticas do passado, profissionais, familiares e outras. Na prtica desse roteiro, ns no fazamos fichas dos personagens. Despreocupados com a continuidade psicolgica e com o jeito de falar de cada pessoa, ns deixvamos que as boas falas criadas circulassem por vrios personagens at escolher qual daria o melhor conflito dramtico cena criada. Mais uma

vez nossa aposta era nas situaes, no nos personagens e na continuidade dramtica. Os personagens eram, na verdade, quase funes dramticas. Apenas ao final de cada tratamento dvamos uma revisada para ver se no havia grandes disparates. Mas novamente tentamos dosar e deixamos alguns errinhos para garantir os momentos bons das situaes. O processo criativo: a fuso entre criao, crtica e anlise Mas soltar a franga era apenas a primeira etapa do trabalho. Depois ficvamos torrando a cabea, pensando, analisando. O dia-a-dia da criao era composto de dois ingredientes: escrita e anlise crtica. Percebi que o trabalho do roteirista , antes de tudo, ser um crtico da prpria obra. Ningum bom roteirista se no souber analisar o prprio roteiro, perceber seus erros e limitaes. Afinal o roteiro a nica etapa de um filme onde mudar de idia e fazer tudo de novo, no custa muita grana. Para essa anlise, no entanto, ns, em nenhum momento, seguimos nenhuma das regras clssicas. No nos perguntamos onde estavam os trs pontos do filme, se as cenas se interligam por ordem causal, se os personagens so mostrados por meio da ao. Percebemos que essa anlise crtica padro, baseada nos manuais e no modelo clssico, seria totalmente intil ao filme

19

que redigamos. A vocao do filme era ser um multiplot unificado por conceitos, um filme mais pico do que dramtico, com nfase nas cenas e nos personagens, no na estrutura linear. Tentar analis-lo pelas regras dos manuais, seria o mesmo que criticar a laranja por no ter gosto de morango. Por tudo isso, no transcorrer do processo, tivemos que inventar nossos prprios mtodos de anlise. Em vez de nos preocuparmos com os trs pontos do Field, nossa questo era tentar entender o ritmo do filme. Para isso fazamos duas anlises em paralelo: a anlise da escaleta e da cena.20

A primeira coisa que percebemos que quando a estrutura dramtica no causal, torna-se fundamental que as cenas sejam elas prprias significativas. como acontece em qualquer filme de progresso no linear: ao abrir mo da estrutura, o filme deve conseguir manter o interesse do pblico aceso pela cena em si mesma. o que acontece, por exemplo, com Pulp Fiction, de Tarantino. Roteiristas iniciantes se fascinam com a anlise da escaleta, cheia de inverses de ordem cronolgica. Mas isso ainda papo de crtico de cinema. O difcil para o roteirista pensar que isso deve ser feito sem perder o interesse do pblico pelo filme. Se o pblico no acompanha mais a historinha linear ele deve ter algo em troca: todas as seqncias ou cenas devem ser interessantes de forma autnoma. Num

filme com estrutura linear, causal e progressiva possvel ter cenas apenas informativas, que levam a historinha adiante. Num filme sem plot ou de plot no linear, isso no pode ocorrer. Percebemos, portanto, que era necessrio pensar cada cena autonomamente. Para cada uma delas fazamos a pergunta: para que serve essa cena? Se servia apenas para passar uma informao essencial para o desenvolvimento da histria, ns considervamos pouco. Procurvamos ter algum conflito interno prpria cena (nem que fosse um conflito secundrio) e algum interesse visual (lgica de atraes de Eisenstein, mas no necessariamente com primeiros planos de objetos, atraes mais prximas do conceito de atrao para o primeiro cinema). A informao deveria estar no meio desses dois ingredientes. Outras cenas no precisavam ter nenhuma informao que avanasse o plot, mas eram mantidas por serem interessantes em si mesmas. A escaleta tambm era avaliada em funo do ritmo. Nosso medo era o filme ficar muito lento ou muito rpido. Ambas as coisas podem tornar o filme tedioso. O princpio era procurar alternar seqncias fortes (geis, com muitos personagens, muita gritaria, muito movimento, msica, etc) com seqncias mais fracas e calmas. Nesse debate nosso esforo era imaginar o filme na tela, tentando sacar como ele ficaria em termos de ritmo. Uma cena que requeira cmera na mo usada fartamen-

21

te, por exemplo, uma cena tensa. Pode no ficar bom ter vrias cenas desse tipo uma aps a outra. At mesmo a alternncia entre cenas escuras e claras e entre cenas internas e externas foi discutida na tentativa de imprimir ritmo ao filme. Outra percepo que desenvolvi durante o roteiro foi a quase oposio entre ritmo e passagem de informao. Todo roteiro tem que passar algumas informaes para que o pblico acompanhe a histria: informaes sobre o passado do personagem, sobre fatos que aconteceram e explicam o fato atual, sobre como est se desenvolvendo a histria, etc. A passagem de informao nem sempre pode ser feita em ao ou o filme ficaria uma infinidade de flashbacks. Alm disso, filmes com histrias e personagens complexos tm, obviamente, mais informaes a passar ao pblico. Por isso que os chamados filmes de ao tm personagens to simples em situaes conhecidas: desse modo no necessrio explicar nada ao pblico e chega-se pureza da ao dramtica. Na redao do roteiro, percebi, no entanto, que h um terceiro caminho. Nem sempre necessrio dar as informaes para que o pblico entenda o filme. Quem se preocupa tanto com isso costuma ser o roteirista, que est lendo o mesmo roteiro h meses e fica sempre se perguntando: mas qual a motivao desse personagem para fazer isso? O pblico, ao contrrio, vai ver o filme durante 2 horas e

22

ponto. H filmes em que ele no entende tudo, mas se diverte mais, pois o filme mais gil e/ou mais surpreendente. Se o roteirista passar muita informao, pode perder o ritmo ou parecer muito didtico e careta. Alm disso, pela escassez de tempo, essas explicaes que o roteirista insiste em dar costumam ser fracas e simplistas. Corre o risco de ficar ridculo. Pode ser melhor deixar uma informao em aberto, manter o ritmo e despertar a surpresa e inquietao do pblico. Tentamos seguir esse princpio no roteiro e, em muitos casos, simplesmente tiramos explicaes que conclumos ser desnecessrias, deixando para o pblico debater sobre as motivaes dos personagens ou causas dos acontecimentos mostrados na histria. Roteiro e direo: o roteirista incorporando o estilo do diretor Roteiro, como o nome diz, um guia para um percurso a ser realizado. Escrever um roteiro no o mesmo que escrever um romance. Um roteiro no ainda uma obra, mas um plano para uma obra. Deve-se ter sempre em vista que o objetivo do roteiro ser filmado. Um bom roteirista deve conhecer bem linguagem cinematogrfica, e pensar no que ele deve ou no antecipar para o filme. Muitos defendem que o roteirista no deve interferir na direo. Eu acho essa discusso

23

24

simplesmente absurda. H uma ligao bvia e necessria entre as duas etapas. Eu poderia citar milhares de exemplos, mas vou citar o mais simples: se o roteirista no antecipar recursos visuais de decupagem, ele ter que passar todas as informaes do filme por meio do dilogo, imprimindo-lhe uma esttica que ficar prxima da telenovela, estilo que veio do rdio e prescinde da imagem. Mesmo se ele no quiser intervir, ele intervm, pois no estilo de escrita do roteiro est antecipado o estilo de direo do filme. H, no entanto, limites para o roteirista decupar o seu roteiro. Ele no vem de regras claras, varia a cada caso. O jeito de escrever do roteirista e a decupagem que ele realiza literariamente devem estar em funo do estilo do diretor para quem ele trabalha. Ao ler as primeiras cenas que escrevi, Sergio Bianchi exclamava sem hesitar: Isso eu no quero filmar! No discutia se a idia era boa, se a cena estava bem escrita. Esse no era o ponto. Sergio apenas afirmava com a convico de quem sabe o que quer: Isso eu no quero filmar! Na poca, eu estava analisando os filmes de Billy Wilder e, meio que intuitivamente, construa cenas dramticas, com complexa marcao de atores e construo literria da decupagem de objetos. Eu tambm estava influenciado pela leitura do roteiro do Cidade de Deus (que na poca estava em filmagem) e adorei a maneira

como Brulio Mantovani colocava o roteiro efetivamente a servio da direo, indicando objetos que tm efetivo uso dramtico, construindo sumrios e fazendo um roteiro efetivamente audiovisual. Em palestra promovida pela Educine, Brulio no hesitou em citar Sergei Eisenstein, o diretor que melhor realizou esse projeto de atrair o pblico pelas imagens. Mas, diante da resistncia de Bianchi s minhas cenas, percebi que nada disso tinha a ver com o filme dele. O cinema de Bianchi , em muitos casos, o contrrio da decupagem de primeiros planos. Bianchi fez da ausncia de decupagem clssica uma priso formal que d unidade a seus filmes. O que poderia ser uma limitao, transformou-se num estilo. Foi fazendo o roteiro de Bianchi que percebi que aproximar o roteiro da direo no significa necessariamente antecipar a decupagem por recursos literrios. Isso importante no roteiro feito para um filme cuja direo usar fartamente da fragmentao do espao. Um roteirista deve aproximar o roteiro da direo, mas para isso deve escrever a partir do estilo do diretor ou do filme que vai ser filmado. No caso de um roteiro para Sergio Bianchi, tratase de construir cenas pouco decupadas, filmadas preponderantemente em planos mdios. Ao invs da nfase em detalhes, o diretor prefere fazer uma espcie de tableaux, planos onde apaream maioria dos personagens. esse procedimento

25

repetido, e tornado quase uma regra, que d a unidade estilstica do filme. As cenas devem ser construdas assim, com vrios personagens em quadro, pouca mudana de espao, e com a ao se desenvolvendo dentro desses tableaux. O bom roteiro , portanto, aquele que est a servio do estilo do filme e do diretor. Muitas vezes um roteiro ruim de ler, mas o que melhor ajudar o diretor e o restante da equipe a fazer seu trabalho. Ao contrrio, roteiros literrios e baseados em dilogos podem ser bons de ler, mas ruins para filmar. Como roteiro serve para orientar a filmagem e no para ser publicado, a concluso bvia: um roteiro ruim de se ler pode ser melhor para se filmar do que um roteiro bom. Colocar-se a servio do estilo do diretor deve ser um princpio orientador do trabalho do roteirista. Em conversa com Eduardo Benaim, o outro roteirista, ns definimos que nossa funo era usar as tcnicas de roteiro para traduzir os pensamentos e viso de mundo do diretor em formas dramticas. claro que sabamos desde o incio que nesse processo daramos centenas de idias e entraramos com nossas prprias vises de mundo. Mas sempre tendo como norte o respeito esttica desejada pelo diretor. Por isso, para escrever o roteiro, o seguinte passo foi abandonar Billy Wilder e estudar o cinema de Bianchi. Eu j conhecia e admirava a obra do

26

Sergio, mas decidi rev-la por completo e analisar profundamente seus filmes. O objetivo era imergir no universo de pensamento do diretor, tentando entender os mecanismos da obra do cineasta com quem eu trabalhava. Era como desmontar vrios relgios para entender sua lgica e, assim, orientar as questes que surgem quando se quer fazer um novo. Era, mais uma vez, a anlise de filmes, ajudando na prtica do roteirista. Alm da anlise de filme, achei importante entrar no universo intelectual do diretor. Compreender Machado de Assis era fundamental e para isso muito me ajudou a leitura de Roberto Schwarz. Tambm entender melhor a escravido brasileira e a continuidade do apartheid no Brasil de hoje era fundamental. esse o tema que unifica nosso filme: ver como a escravido permanece at hoje e imposta pela lgica da mercadoria e da reificao do homem. Para entender isso, a leitura de clssicos da historiografia brasileira e de toda a obra de Cristvo Buarque foram fundamentais. Deram o debate conceitual necessrio para a prtica da escrita. Relao com o pblico Apenas para concluir, acho que vale a pena refletir rapidamente sobre o trabalho do cineasta contemporneo. H, hoje, duas posturas bsicas no cineasta: ou ele quer se vender ao mercado, ou ele quer contest-lo.

27

Essas duas formas, aparentemente opostas de abordar o ato criativo, tm algo muito forte em comum: a fetichizao do mercado e uma absolutizao do pblico. Para ambas as teorias o mercado uma fora viva, definida e onipotente. O pblico (o consumidor) tambm algo coeso e absoluto, composto por uma massa homognea de andrides imbecilizados. Sinceramente, nunca entendi de onde vm essas teorias. Deve ser algo de artista e intelectual alienado, que se esquece de que o pblico ele mesmo, sua me, seu porteiro, um monte de gente que ele conhece. Que o pblico no homogneo. Ao contrrio: dividido em milhes de pessoas, com gostos individuais que podem, quando muito, ser estudados por socilogos e especialistas em marketing numa tentativa de agrup-los por alguns hbitos comuns de consumo. Diante disso, o mercado apenas uma abstrao indefinida. O fato que essas teorias, apesar de simplrias, contaminaram a classe artstica. Diante dessa grande fora, dessa verdadeira Estrela Negra, os artistas definiram duas posturas: ou voc tem que se vender ao mercado, fazendo algo bem palatvel, meio imbecil e fcil; ou voc tem que romper radicalmente com tudo isso, no seguir nenhuma regra, ficar agredindo o pblico com todo tipo de recurso que voc tiver mo. O resultado em termos de cinema brasileiro foi uma leva de filmes simplrios que, na nsia de

28

A equipe de filmagens de Quanto Vale..., com o diretor Sergio Bianchi ao centro

conquistar o pblico, deixaram de ser inovadores; e mais alguns poucos filmes muito loucos que tentaram quebrar tudo. Os filmes de sucesso esto sempre entre esses dois extremos, foram filmes que criaram suas prprias regras, inovaram e conquistaram o pblico. Filmes de estticas bem diversas, como Cronicamente Invivel e Cidade de Deus, tm em comum o alcance do sucesso pelo total desprezo s regras do sucesso. Eles nos lembraram que ainda existem caminhos alternativos e que o melhor para se chegar ao sucesso ser sincero consigo mesmo e no seguir as bulas dos manuais das supostas regras para atingi-lo comercialmente.30

Trabalhar como roteirista em Quanto Vale ou por Quilo? foi uma busca desse caminho intermedirio. Ningum na equipe tentava se vender ao mercado imaginrio. Mas ningum tambm se preocupava em agredir o tambm imaginrio pblico imbecilizado. Nossa nica certeza era a de que no somos totalmente malucos, que os assuntos e realidades que nos interessavam deveriam interessar a mais algum. Ns queramos sim nos comunicar com algum pblico, mas no precisvamos ficar o tempo inteiro tentando nos vender a ele. Newton Cannito(um dos roteiristas de Quanto Vale ou por Quilo?, autor do Manual de Roteiro, roteirista, professor e consultor de roteiro)

Quanto Vale ou por Quilo?Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi 1 TRILHA SC.18 / EXTERIOR / NOITE Um escravo levado com violncia. Algumas pessoas tentam impedi-lo. Joana, a proprietria, grita exigindo seus direitos. [Ainda no vemos seu rosto] JOANA (OFF) Larga ele, larga ele. Larga. O que vocs esto fazendo? Esse escravo meu, vocs no podem fazer isso... Vocs no podem entrar na minha propriedade e levar o que meu. Vocs vo comigo, eu vou pegar os documentos. CORTE PARA Instantes depois. Trilha de terra. Comitiva em movimento. Capites do mato levam um escravo acorrentado para seu lder. Seguindo-o est um grupo de mulheres. Sobre a imagem entra a locuo. LOCUO Madrugada de treze de outubro de mil setecentos e noventa e nove, nos arredores da capital do vice-reinado uma expedio encomendada de capites do mato, capturam escravos em residncias da rea

33

rural, dentre as presas est Antonio, retirado de uma pequena chcara de propriedade de Joana Maria da Conceio. Ao presenciar o confisco de seu escravo, Joana rene documentos, forma uma pequena comitiva e parte atrs dos capites mata a dentro. Joana uma mulher forte, alforriada e agindo conforme o sistema, acumulou recursos para comprar escravos para que a auxiliassem em sua pequena propriedade. Agora Joana fora roubada e, acreditando na justia e na fora coletiva, junta seus vizinhos para cobrar e enfrentar o mandante da expedio. 2 CASA DE MANOEL FERNANDES CENTRO DE CIDADE SC. 18 / EXTERIOR / NOITE / DIA. O grupo chega casa de Manoel Fernandes. Os capites do Mato entregam o escravo. [Pela primeira vez vemos Joana.] Ela negra. E grita: JOANA Ah! O senhor que o responsvel por essa injustia?! Tenho tudo para comprovar! O escravo meu e o senhor est me roubando!... Isso! Podem ficar calados! Depois quem vai reclamar atrs das grades no vai ser eu! Joana tenta avanar sobre Manoel Fernandes, mas empurrada. Ela cai no cho, mas continua falando.35

JOANA Isso! Usem de violncia! A minha violncia a lei dos direitos, dos papis!... E quem rouba ladro, no importa se rico, pobre, preto ou branco... Vo me pagar! Vo para a cadeia! Manoel Fernandes paga o capito do mato pelo servio, entregando o dinheiro sem dizer palavra alguma. D um forte puxo na corda e coloca o escravo dentro de sua propriedade. Joana no arreda p e assim que a porta se fecha, volta a gritar. JOANA Branco ladro! Observao: Essa seqncia de abertura sintetiza vrias coisas no filme. Uma negra alforriada que tem escravos e acredita na fora coletiva para exigir os chamados direitos de cidado. Ela luta por sua propriedade, outro negro. Alforriada ela j sente que tem o direito de protestar. Mas acaba presa. Ela descobre que, apesar de formalmente livre, ainda no um cidado de plenos direitos. Falta algo na democracia brasileira. O fato de terem muitos negros alforriados que tinham escravos foi uma de nossas surpresas ao fazer a pesquisa. Sintetiza muito bem uma de nossas preocupaes, que era desvincular uma suposta ligao automtica entre a questo

36

da explorao social e a questo da opresso racial. Queremos mostrar, que ambas existem, mas nem sempre a ligao imediata. Existem formas variadas de elas se relacionarem, como a opresso social para brancos, o racismo entre negros, entre outras formas. Essa histria mostra tambm a vontade dos pobres alforriados de seguirem o modelo comportamental da elite. Antecipa assim situaes semelhantes no filme, como a de Mnica, tentando se firmar como proprietria e fracassando. 03 FOTO DE FAMLIA DE JOANA EM FRENTE SUA CASA SC.XVIII / EXTERIOR / DIA Joana e seu marido ajeitam-se e arrumam suas roupas, como se posassem para uma foto. Eles vestem roupas europias e domingueiras e esto ao lado de seus escravos aninhados. Escuta-se o som da batida de um martelo e a sentena, proferida pelo juiz e extrada do Arquivo Nacional, lida por uma locuo. LOCUO A lei vigente no cdigo penal do vice-reinado condena qualquer tipo de comportamento que perturbe a paz social, isto posto e por tudo o mais que no processo consta, julgo a r Joana Maria Conceio, negra alforriada, dona de casa, casada, residente estrada da Lagoa, sem nmero, condenada por perturbao da ordem em rea residencial e ofensas morais ao

37

Senhor Manoel Fernandes, fabricante de pedras, branco, casado, residente Rua do Ferreiro, nmero 15... Ser recolhida priso, ou poder pagar fiana de 15.000 ris, se dispuser de tais recursos. Legenda: Extrado do Arquivo Nacional 1799 Rio de Janeiro Vice Reinado Caixa 490 Observao: Apesar de no existirem fotos naquela poca tomamos a liberdade de inserir esse recurso em vrios momentos do filme. Em nossa pesquisa encontramos muitos retratos pintados de negros em poses tpicas da burguesia que eram muito parecidos com as fotos que construmos. Esse tipo de retrato, frontal e posado, expressa muito bem os valores da classe burguesa. Usaremos a fotografia desse tipo em vrios momentos, sempre com esse objetivo. Alm disso, essa cena mostra o contraste entre a imagem e a locuo. A imagem da construo da foto simboliza a vontade da negra alforriada de se inserir na sociedade. J a voz anuncia que ela no conseguiu e foi presa. 04 SENZALA / SC.18 - INTERIOR / NOITE Uma senzala em que escravos so punidos. Cmera retrata com suavidade como se estivesse em uma feira de utilidades, onde so demonstrados os aparelhos de tortura e de conteno de escravos. Percorre os escravos aprisionados por

38

ferros, um por um, com detalhamento didtico. Imagens de um escravo sofrendo na Mscara de Folha de Flandres. LOCUO A mscara de folha de flandres um instrumento feito de metal. Fechado atrs da cabea por um cadeado, tem apenas trs buracos. Dois para ver e um para respirar... Por tapar a boca, a mscara faz com que os escravos percam o vcio pelo lcool. Sem o vcio de beber, os escravos no tm tambm a tentao para furtar, j que do seu Senhor... do seu dono, que eles tiram o dinheiro para se embriagar. Dessa forma ficam extintos dois pecados... A sobriedade e a honestidade... Esto assim garantidas. Novo escravo, agora com uma corrente de ferro, o limbando. LOCUO O Limbambo, nome oriundo do Quimbundo, que, traduzido para o portugus quer dizer corrente... Genericamente, toda espcie de corrente que prende o escravo. Mas no Brasil, porm, o limbambo tem uma significao restrita: serve apenas para designar o instrumento que prende o pescoo do escravo a uma argola de ferro, de onde sai uma haste longa,

40

tambm de ferro, dirigindo-se para cima e ultrapassando o nvel da cabea. Esta haste, ora termina por um chocalho, ora por uma trifurcao de pontas retorcidas... O castigo do limbambo visa os negros que fogem, os rebeldes. O chocalho, que d o sinal quando o fugitivo caminha, indica que se trata de um escravo fujo... D-se a mesma finalidade s pontas retorcidas... Essas pontas prendem-se aos galhos das rvores do mato, dificultando a fuga. Nova escrava. Ela est no tronco [ a mesma atriz que interpretar o personagem de Arminda].42

LOCUO O Tronco tem tambm como finalidade impedir a fuga de escravos reincidentes. um grande pedao de madeira retangular, aberto em metades, com buracos maiores para a cabea e menores para os ps e mos... Para colocar o escravo no tronco, abre-se suas metades, colocando nos buracos o pescoo, os tornozelos e os pulsos. Recomendado aos escravos mais truculentos ou com distrbios comportamentais... Alguns senhores consideram mais algumas utilidades ao aparelho. Segundo estes, o tronco pode ser visto tambm como um instrumento de suplcio, forando a imobilidade e gerando a impossibilidade do

escravo defender-se de moscas ou qualquer outro inseto... ou mesmo de satisfazer suas necessidades fisiolgicas. Observao: No filme caiu a cena do Limbando. Ficou apenas uma imagem curta, sem a descrio feita pela locuo. Observe tambm o corte dessa seqncia, que feito atravs de Arminda, que acorda de um sonho. 05 LAJE DE CASA DE SUBRBIO / EXT / DIA Arminda acorda numa cadeira de praia. Ela tem porte atltico e gestual decidido Dia de vero. Calor trrido. Festa em uma favela, onde est sendo realizado o aniversrio de uma velha senhora negra que completa 80 anos, a me de Lurdes. O quintal est cheio de moradores de casas adjuntas, que se divertem. H uma roda de trs ou quatro homens que tocam um samba tradicional. Ao lado deles est a aniversariante, sentada numa cadeira. Lurdes, mulher negra de 45 anos, mais bem vestida que os outros, chega para falar com Arminda. LURDES Arminda, Arminda acorda, vamos logo cantar parabns. Arminda se levanta e vai atrs de Lurdes. Arminda chega a uma espcie de cozinha improvisada. H uma pia (tipo pia de churrasqueira) e uma pequena mesa. Irene e Maria (ambas entre 35

44

e 45 anos) esto sentadas mesa, comendo batatas no vinagre. Irene, branca com cabelo escuro, exibe um sorriso banguela. Maria tem pele branca e cabelos amarelos oxigenados. Judite, tia de Arminda, branca, aparentando mais de 60 anos, est lavando os pratos, sozinha e com dificuldades. Um de seus braos duro e travado. Arminda se aproxima. ARMINDA Deixa eu te ajudar tia, se no a voc no acaba isso nunca. Tem de se divertir um pouco, tia. JUDITE Algum tem que se mexer, n. Essas duas no tiram a bunda da cadeira. Lurdes interrompe e puxa a todos. LURDES Pra tudo! Vocs duas sentadas, me ajudem a pegar o bolo. Vamos cantar parabns para minha me. Hora do bolo! Vamos, ela j deve estar cansada dessa cantoria. Vamos l. Irene e Maria se levantam prontamente e, com nsia de ajudar a dona da festa, pegam o bolo e outras coisas que esto a mesa, levando tudo. Lurdes sai atrs, de mos vazias, dando ordens e interrompendo a festa. Todos comeam a cantar.

45

Imagem da favela. 6 PRAA DE CIDADE GRANDE / EXTERIOR / DIA. Nas imediaes de uma praa so realizadas representaes teatrais que complementam uma manifestao popular. Um grupo mambembe e circense ocupa o local, encenando uma pea com alegria, onde uma famlia (uma matriarca e suas trs filhas) vestida com figurino colorido e roto do sculo 18, ordena que dois escravos (atores com maquiagem preta na face) carregarem caixas de madeira, trouxa de roupas velhas, paraleleppedos e outros objetos de um canto ao outro do espao delimitado na praa. Ao lado est Arminda que uma das atrizes da trupe. Ela est vestida com roupa de escrava e tambm tem a cara pintada com maquiagem preta. Est presa a um tronco, (como o da Seqncia 7) e chicoteada por um ator vestido de capito do mato. As jovens filhas da matriarca, de perucas loiras e sensuais, ordenam ofensivamente os escravos, tornando o clima da pea progressivamente pesado. A menina de rua Lcia (branca), de 13 anos, est em meio ao pblico. Ela observa e se diverte. FILHA DA MATRIARCA I Vamos, carreguem mais rpido! FILHA DA MATRIARCA II Como esse negro desajeitado...

46

FILHA DA MATRIARCA III ...Cuidado com essas pedras, so importadas... Quando os escravos terminam de levar as caixas e os paraleleppedos, a matriarca enftica. MATRIARCA Mudei de idia, quero tudo de volta para o mesmo lugar. E, chicoteando-os, ordena os escravos a trazerem os objetos para o lugar original. Essa ao repetida at a exausto. O vai e vem dos escravos carregando os paraleleppedos, suados e cansados, transformam propositadamente o clima da representao em angstia generalizada. At que um jovem negro, contagiado pelo clima tenso, toma-se de ira e invade a cena, dizendo frases cheias de revolta e chutando os objetos de cena. JOVEM NEGRO Que palhaada essa!?... esse teatrinho de merda para qu,? ... vocs no percebem, no? Pensam que esto sendo crticos? Esto s divertindo a brancaiada racista. Discriminao, falou (enfrentando os dois escravos) E vocs? Qual ?! Vo peitar?... vo ficar a, obedecendo ordem de loira aguada? S por ser preto, precisa ser capacho? Otrios...

47

H uma mudana na atitude da trupe. Imediatamente muda a sonoplastia, pandeiros e chocalhos aparecem na mo dos atores. Arminda sai do tronco. O jovem envolvido pelas filhas da matriarca e pelo resto do elenco, que cercam o homem com abraos, sensualidade, danas e bom astral. Alguns tiram fotos com ele e o abraam. Isso segue por algum tempo, at que o sujeito se acalma e abre um sorriso. Quando a Matriarca percebe que a situao se normalizou e o manifestante foi conquistado, interrompe tudo, volta-se para a trupe, enrgica, batendo palmas:50

MATRIARCA Pronto! Muito bem, agora voltemos ao trabalho... Vamos... Voltem s suas posies!... Vamos... As filhas da matriarca deixam de lado o rapaz negro, que volta para o meio do pblico, meio tonto, com cara de desentendimento. Rapidamente, o capito do mato coloca Arminda novamente ao tronco e a chicoteia. As filhas da Matriarca do ordens e chicoteiam os dois escravos que voltam a deslocar as pedras e os objetos. FILHA DA MATRIARCA I Vamos... Agora eu quero ver mais rpido!

FILHA DA MATRIARCA II Assim no d me, a senhora tem que comprar escravos novos... .Esses a so mais lentos que burro de carga! Aps instantes da continuao da performance teatral, Lurdes interrompe, segurando uma pasta com blocos de papis, com listas de assinaturas e inicia um discurso. Lurdes tem fala firme, incisiva e fala diretamente ao pblico. LURDES Ateno! Por favor, ateno!... Ns estamos aqui para mostrar a situao do negro na sociedade atual... As estatsticas no mentem... setenta por cento da populao desta cidade negra. Vocs sabem quantos por cento de negros trabalham no funcionalismo pblico? Dez por cento! E quantos dentistas, advogados, profissionais liberais?... muito menos. E aqueles negros jovens, que acabaram de sair da faculdade? Desempregados por causa da cor da sua pele. Que igualdade essa?... (comea a elevar mais a voz)...O Brasil tem uma dvida histrica com a populao negra. E est na hora de pagar essa dvida... O Estado tem que intervir para corrigir essas distores. E se ns no nos manifestarmos o governo no age. Por isso, nosso dever como cidados conscientes, tapar os buracos da incompetncia do poder.

51

A voz de Lurdes vai-se diluindo enquanto a cmera enquadra na multido, Judite (senhora negra da Seq. 8), tia de Arminda que fala a uma mulher branca, Adlia, 50 anos. Ambas vestem roupas muito semelhantes, quase iguais. JUDITE (PROCURANDO AMIZADE) Moa valente essa a, no ?... Adlia olha meio de lado, com um pouco de ar superior e no responde. Judite continua. JUDITE Sabe... Eu nunca falei assim com nenhum patro... Adlia responde de sbito. ADLIA E nem deveria... quem trata patro assim se d mal, minha filha... Aps alguns instantes de silncio, com as duas sem olhar uma para a outra, Judite continua. JUDITE Sabe... minha sobrinha me arrumou um emprego. O ruim que vou ter que fazer servio de faxina... (orgulhosa) mas em compensao uma empresa. E pela primeira vez, vou ser registrada...

52

ADLIA Isso no quer dizer nada, eu por exemplo, sou registrada. E sabe o quanto eu t trabalhando? Dez horas por dia!... Inteiras. Sem parar! Em vrios servios, fazendo tudo que precisar. E ainda por cima, quatro horas de nibus... JUDITE Minha ex-patroa era uma falsa. Achei... assinar carteira nem nada... mesmo assim eu trabalhava, muito mais que essas suas dez horas. ADLIA E eu? Todo ms tenho que enfrentar as filas do INPS. E ainda por cima tudo contado. Com dona Nomia tudo preto no branco. Ela sabe direitinho quais os meus direitos e quais os dela...Uma canseira! JUDITE Pior eu que fui demitida quando mais precisava, meu Dido na cadeia, marido doente... ADLIA E ela te mandou embora porqu? JUDITE Disse que foi por causa da crise... falta de dinheiro. Mas no dia seguinte tinha outra

53

trabalhando no meu lugar... foi por causa do meu brao. D uma olhada v se d para trabalhar assim... ficou assim depois do derrame. ADLIA Nossa, ela te mandou embora, assim? (pra e pega no brao de Judite, olhando com e ateno cirrgica) Tambm, quem mandou? Deus me livre ser amiga de patroa... quem escraviza, minha filha, no amigo, carrasco... Representar... o que a gente tem que fazer nessa vida... JUDITE S espero que Deus continue me dando foras para trabalhar. ADLIA Tomara. Mas no confia apenas nele, no. Garanta a aposentadoria, guarde um dinheiro mulher! Logo, logo ns acaba, perde a fora e sem dinheiro, vamos morrer de fome. JUDITE , acho que voc tem razo. Aos poucos a gente vai aprendendo, n... ADLIA Espero que sim... J vi muita empregada morrer sem aprender...

54

No meio da competio solidria das reclamaes, elas se afastam, uma pegando no brao da outra, como amigas. [Som vai ficando mais baixo] JUDITE verdade... Eu tive uma colega, a Josilene... Ela morreu sem ter um centavo de direito... Ficava reclamando pra patroa que tinha que comprar uma mquina nova... teve um ataque do corao de tanto lavar roupa no tanque... ADLIA Isso falta de experincia minha filha... A gente no tem que ficar exigindo... A gente tem que mostrar para a patroa, como quem no quer nada, que ela quem vai se dar mal se no comprar uma mquina nova. Cmera acompanha enquanto seus dilogos se diluem, permanecendo apenas as duas andando. Velhas e trpegas. Observao: Essa cena caiu, no est na verso final do filme. Ela pode ser dividida em duas partes. A primeira a do teatro de rua e o debate sobre racismo foi filmada e est nos extras do DVD do filme. A segunda parte, da competio solidria de reclamaes (dilogo entre Adlia e Judite) caiu pouco antes das filmagens. Era a

55

apresentao de ambas, em especial Judite, que tinha acabado de ser demitida e seria contratada na cena seguinte. 07 RUA EXTERIOR / DIA Planos realistas de crianas, miserveis e abandonadas nas ruas, tomando banho nas fontes, cheirando cola. Meninas pr-adolescentes, grvidas carregando bebs enrolados em panos sujos, perambulando entre automveis nos sinais, lavando pra-brisas dos carros, etc. So cenas que retratam um grande abandono, com msica impactante. LOCUO: So milhares de crianas abandonadas. Ajude a Sorriso de Criana a ajudar quem necessita. No d esmolas nas ruas! Faa as suas doaes em dinheiro a entidades idneas. Sorriso de Criana: Teledoao: 0800-143276. Letreiro: SORRISO DE CRIANA TELEDOAES 0800-143276 8 ESCRITRIO DA STINER / INTERIOR / DIA Numa sala de reunies esto: Marco Aurlio, Ricardo, Lurdes e Elisio, um padre, diretor da Sorriso de Criana. No vdeo, congelada, a imagem de um logotipo e do nmero da teledoao. Estamos na Stiner Empreendimentos

56

Assistenciais, empresa especializada em Marketing Social que presta consultoria, elabora e executa projetos assistenciais para melhorar a imagem de grandes empresas. Comea a assessorar tambm entidades assistenciais em projetos de comunicao e captao de recursos junto a empresas e rgos pblicos. Marco Aurlio jovem (em torno de 35 anos) dinmico, pragmtico e autoritrio. Sentado numa poltrona est, um pouco mais ao fundo Ricardo, fumando um cigarro. Ricardo um jovem (tambm em torno de 35 anos), advogado, lobbista e brao direito de Marco Aurlio, tem sutil humor negro. MARCO AURLIO Pois , a Sorriso de Criana est com sua estratgia... um pouco ultrapassada. Neste vdeo, por exemplo, s tem criana sofrendo. A nossa postura tem que ser outra, diante do investidor. Ns temos que ter uma postura muito mais... positiva. Quem financia a solidariedade, hoje... est preocupado com o retorno. Por isso, a imagem do seu produto deve estar vinculada... ao xito. Mas fique tranqilo, Dom Elsio. Ns vamos refazer seu vdeo. Vamos sair s ruas e vamos colher depoimentos... otimistas, depoimentos emocionados. Ricardo passa um contrato para Elsio assinar.57

MARCO AURLIO (CONCLUI) O senhor pode confiar no nosso trabalho. DOM ELSIO Eu imagino que vocs estejam bem atualizados nisso. Elsio assina o contrato. Comentrio: Aqui o primeiro momento no qual comea o discurso de marketing social no filme, discurso que ser repetido em vrios outros momentos. H vrios livros que usamos como referncia na construo desse discurso, com nfase nos livros Marketing Social, de Marjorie Thompson e Hamish Pringle; Marketing Social, de Philip Kotler e Marketing para Associaes que no visam lucro, de Philip Kotler. O nome Stiner, alm de ser nome da empresa de um dos roteiristas do filme, uma referncia a um filsofo anarquista do sculo 19, Max Stirner, autor do livro O Ego e o Que a Ele pertence. Esse filsofo prega que a soluo admitir o egosmo intrnseco da espcie humana e criar associaes de egostas. 9 ESPAO ABERTO / EXTERIOR / DIA Marta Figueiredo, socialite, em torno de 50 anos, organiza crianas para tirar uma foto.

58

MARTA FIGUEIREDO Os brinquedos. Me d os brinquedos, por favor. Pra voc. A boneca pra voc. Preciso de mais um. Voc no... voc! Vem. Segura. O bon. Lindo! As crianas se congelam. A foto retirada. Marta est no meio, cercada de inmeras crianas. Locuo comenta: LOCUO Doar um instrumento de poder. A superexposio de seres humanos em degradantes condies de vida... faz extravasar sentimentos e emoes. Sente-se nojo, espanto, piedade, carinho, felicidade... e, por fim, alvio. E ainda faz uma boa dieta na conscincia. Comentrio: Essa mais uma foto-retrato que reproduz o ideal burgus de felicidade. No caso a felicidade uma burguesa cercada de excludos que ela cuida, ordena e controla. Essa foto foi escolhida para ser o cartaz do filme com o slogan: Mais vale pobres na mo do que pobres roubando. tambm uma cena de apresentao de Marta. 10 ESCRITRIO DA STINER / INTERIOR / DIA Marco Aurlio encontra com Marta Figueiredo no escritrio da Stiner.

59

MARCO AURLIO Marta Figueiredo! Que prazer receb-la na empresa. Como vai? Dr. Joo Paulo est bem? MARTA FIGUEIREDO Sim, sim. MARCO AURLIO No repare na baguna, ns estamos de mudana. Veja, a arrecadao de mantimentos e donativos est sendo um sucesso. No param de chegar. MARTA FIGUEIREDO Eu trouxe artigos variados. Esto em timo estado. MARCO AURLIO Voc est bastante empenhada, no ? MARTA FIGUEIREDO Modestamente. Uma vez por semana, eu acordo s 5 horas da manh... pego meu motorista e recolho donativos para as crianas pobres. Sim, porque se os que tm fizessem um pouco pelos que no tem... No verdade? MARCO AURLIO verdade.

60

11 CEMITRIO POPULAR / EXTERIOR / DIA Num grande cemitrio de periferia, vrias valas abertas e corpos estendidos, enfileirados em sacos plsticos. Um velho arrasta um corpo, para jog-lo na cova e enterr-lo. Candinho, mulato, 22 anos, bonito e forte, observa, encostado a uma rvore. COVEIRO VELHO Vai Candinho. D uma checada a. Candinho caminha at os corpos, se agacha e arrasta um saco plstico com o cadver, vagarosamente. CANDINHO Acho que esse t inteirinho... COVEIRO VELHO V direito... Universitrio s paga corpo inteiro... Voc acha que d? Candinho, com nojo e incomodado, abre o zper e coloca a mo dentro do saco dizendo irnico: CANDINHO Acho que d. Tem olho... Tem tudo... COVEIRO VELHO Ento separa!61

Candinho fecha o zper e comea, lentamente, a pux-lo para mais longe das covas, separandoo dos outros mortos. O velho inicia as mesmas aes com outro cadver, porm faz muito mais rpido, rejeitando o corpo e jogando-o na cova. Ao terminar, o velho volta-se para ele com insatisfao: COVEIRO VELHO Ih... E essa moleza, hein, rapaz!?... simples, t bom fecha o zper e separa... No t, fecha o zper e joga na cova. O velho continua a carregar os cadveres de um canto a outro. COVEIRO VELHO trabalho Candinho,... Trabalho,... duro pensar em descansar numa hora dessas. Com a minha idade, eu que sempre fui trabalhador, estou aqui, 77 anos nas costas. Fodido, tendo que botar a mo em cadver todos os dias... Voc Candinho, com essa moleza, no vai ter sossego nunca meu filho... (melanclico) s vezes eu fico olhando pra toda essa gente a, morta, ser que vo fazer esse monte de coisa com o meu corpo?... trabalho assim mesmo, Candinho. Caipora que fica assim, encostado com palha na boca...

62

CANDINHO Pode ficar tranqilo Z. No vou ser eu quem vai fazer isso, no vou vender seus restos. Candinho fica em frente ao coveiro e lhe d uns tapinhas no peito enquanto fala: CANDINHO Mesmo porque, no vou trabalhar nesse negcio muito tempo... Mas pensa numa coisa, voc vai valer grana, vio. No um velho saudvel? Ento, vai valer uma boa grana!... J pensou: Jos, um cara de valor. O coveiro fica constrangido e tenta escapar de Candinho. Se vira de costas e comea a pegar um outro corpo. COVEIRO VELHO Vai tirando sarro dos meus aborrecimentos, vai, Caipora... CANDINHO Que Caipora o qu!... (Candinho se dirige at a frente do Coveiro novamente)... Esse trabalho no para mim no. Patro, defunto, mixaria no bolso. Eu estou noutra! Vou cair fora. Candinho sorri e vai embora63

Observao: Essa cena foi cortada antes da filmagem. Era uma apresentao de Candinho que julgvamos boa em si, enquanto cena independente. Mas depois entendemos que era desnecessria no conjunto do roteiro. 12 RUA DE PERIFERIA / EXTERIOR / NOITE O grupo do Movimento de Amparo, liderado por Nomia, 45 anos, proprietria e coordenadora, composto por ela, seus dois filhos Hctor 16-17 anos, dinmico e entusiasmado e Andr 19 anos, preguioso; suas funcionrias Mnica e Adlia (entre 45 a 55 anos) e mais trs jovens. Todos vestindo camisetas estampadas com os dizeres Sou voluntrio. Eles fazem entrega de alimentos e cobertores para moradores de rua. NOMIA D a comida primeiro. Primeiro a comida, t? melhor dar primeiro os cobertores praquele pessoal do lado de l. Vai.. Uma outra dona de associao se aproxima do local e tenta estacionar sua van. Mas Nomia no permite e expulsa o veculo. NOMIA Ei, ei, ei... Pode ir embora, eu cheguei aqui primeiro e esse lugar aqui meu.. Pode ir embora. Embora. Elas voltam a dar comida aos mendigos.

66

Um caminho de lixo passa ao lado deles. Candinho um dos catadores. Ele corre num cooper lento, atrs do caminho. Encontra Mnica por acaso na rua. Ele apenas acena, nem pra. MNICA Olha l! o Candinho, meu futuro genro! Candinho! CANDINHO Oi, tia Mnica! Mnica retribui o aceno. Ao fundo, enquanto as duas conversam embaando o servio, os trs jovens e os dois filhos de Nomia, enrolam os indigentes, um a um em cobertores. Nomia coordena o servio. ADLIA Como ele vai pagar a festa do casrio?... No vai ter festa Mnica? MNICA Que isso Adlia! Que preconceito, pelo menos Candinho trabalha. ADLIA Mas trabalha em algo sem futuro, no ? MNICA Olha quem fala... Voc se esqueceu da sua profisso... Voc no domstica?

67

ADLIA Eu no esqueci, no! Sei muito bem o que sou hoje. Mas tambm eu sei o que eu quero pra minha vida. MNICA Pois saiba que o Candinho um cara muito do legal, viu? E vai ter festa, sim. E vai ser uma festa alegre e bonita. Ns vamos ser uma famlia alegre. Voc vai ser convidada. E Dona Nomia com os filhos. Nomia, seus filhos e os outros jovens da equipe, distribuem as marmitas e os talheres de plstico aos mendigos deitados no cho, em um movimento quase industrial. Insistem repetidamente para que um deles coma de uma marmita. O mendigo, babando e bbado, reclama, diz que no quer, mas Nomia e os garotos continuam insistindo. Andr o filho mais velho, querendo terminar logo o servio, enche uma colher com comida e tenta faz-lo comer... como uma me tentando forar o filho. Um mendigo, sentado ao fundo e comendo seu marmitex fala alto. MENDIGO Come a meu, no t vendo que ele est precisando. Observao (duas nessa cena) A) Dilogo e ao dos personagens: Um dos erros de muitos roteiros sempre criar o dilogo a partir da ao dos personagens. Isso pode ser

68

uma opo, mas muitas vezes leva o dilogo a ser redundante com a ao. Em vrias cenas desse roteiro ns optamos por pensar a ao e o dilogo como bandas complementares e autnomas. Muitas vezes o dilogo tem um conflito prprio e ao dos personagens vai em outro sentido. como se fosse a fuso de duas cenas diferentes. O objetivo criar contraste entre o dilogo e as aes. No caso dessa cena, Mnica e Adlia esto atendendo mendigos. Mas j acostumaram com esse trabalho e no conversam sobre isso. O dilogo sobre o casamento de Candinho, que expressa os ideais de afirmao de ambos dentro de valores da classe mdia. O contraste entre a ao e o dilogo visa despertar estranhamento no espectador. B) O trecho final da cena na qual os jovens tentam forar um mendigo a comer foi retirada na montagem. Est nos extras do DVD. Julgamos que antecipava de forma muito explcita cenas semelhantes de opresso a excludos que teremos mais a frente no filme, como a da Sabedoria Vegetal e a do asilo. Com isso, na montagem final, o corte foi direto do dilogo sobre ascenso social de Mnica e Adlia para a ONG imaginada de Mnica. LETREIRO: Vencendo com o social 13 VIDEO INSTITUCIONAL / VRIOS ESPAOS Mnica desce do nibus e entra em um prdio. Ela est em um vdeo institucional do tipo Gente que Faz.

69

LOCUO Mnica Silveira, paulista, 47 anos... Vivia angustiada. Trabalhava em dois empregos e mesmo assim, ganhava pouco. Mas o drama de Mnica no era apenas o bolso vazio. Era a dignidade esvaziada. O estalo de conscincia ocorreu... Quando a misria gritante a encarou frente a frente. Mnica percebe moradores de rua que esto do outro lado da calada LOCUO Nesse momento, percebeu a misso que teria de cumprir. E ela seguiu, patrocinada apenas por sua prpria vontade.70

Mnica fala olhando diretamente para a cmera com um institucional e sorri. MNICA Vontade de vencer. Eu resolvi largar tudo... E me dedicar 100% quilo que me dava prazer. Eu descobri a minha vocao, que ajudar as pessoas. Mostra Mnica no meio da Associao. Mnica est bem vestida. Uma de suas empregadas Nomia. Mostra pessoas que Mnica ajuda. LOCUO Mnica no desistiu. Tanto batalhou... Que conseguiu fundar sua prpria associao. Hoje, graas ao seu trabalho...

Muita gente que antes era desocupada... Agora tem razo para viver. Os desempregados abandonam o cio em prol da comunidade. Entre os carentes atendidos est Adlia. Ela treme enquanto come e baba muito. Mnica a ajuda. LOCUO Mnica sempre ouviu dizer que a vingana... um prato que se come frio. Mas com o trabalho na associao... Descobriu que o altrusmo um prato muito mais saboroso. Nomia na cozinha e vestida como empregado comenta direto para a cmera. NOMIA Ns temos muito orgulho dela porque ela conseguiu. Ela encontrou aqui na comunidade uma nova famlia. Mnica sendo preparada para dar uma entrevista. LOCUO Enfim, Mnica conseguiu provar que com energia e coragem... Tudo possvel.

71

Mnica fala direto para a cmera. MNICA Eu tenho uma misso, e acho que est comprovado... que um sucesso, mas eu no vou dormir nessa glria. Eu tenho muitos desafios pela frente... e quero ampliar a associao e no vou descansar enquanto houver... do meu lado pessoas que passam fome... e gente que no tem o que comer. Foto congela em Mnica.72

LOCUO Para Mnica, viver de solidariedade... o maior aprendizado que a vida pode dar. Observao: A apresentao do personagem de Mnica reforada atravs de seu sonho de futuro, seu imaginrio de ascenso social. um dos trechos do filme que incorpora outras linguagens para, atravs da pardia, criar distanciamento e despertar reflexo. No caso a linguagem de um institucional na linha Gente que Faz. 14 SACOLO DE ALIMENTOS / INTERIOR / DIA Mnica acorda do sonho, interrompida por Nomia. Nomia e Mnica fazem compras em sacolo.

NOMIA Mnica, voc t passando bem? MNICA Desculpe, Dona Nomia. Eu estava sonhando com o casamento da Clarinha. NOMIA Ento eles vo se casar. Que bom! muito bom quando a gente realiza os nossos sonhos. E a festa, vai ser quando? MNICA Eu no sei. Porque o outro patro est dificultando um pouco o 13. Enquanto conversam, Mnica mexe em carnes. Percebe que a carne no est fresca. AOUGUEIRO No se preocupe. A carne no nova, mas est boa pra sopa. NOMIA Pode me ver uns 40 kg. Mnica, eu tive uma idia. Sua sobrinha no pode ficar sem casamento. Voc podia trabalhar comigo em tempo integral. Larga o outro emprego, eu pago a festa. Em um ano, d pra pagar. O que voc acha?

73

MNICA A senhora to boa! Um dia desses... Vai jantar l em casa! Tudo o que vai, volta. A senhora vai receber por toda a sua generosidade. Elas se abraam. NOMIA Ah, Mnica. Mnica, Mnica. Observao: Mais uma vez a ao independente do dilogo. Pensamos um cenrio que d novas aes do cotidiano de Mnica e Nomia na Associao. No caso, elas compram comida e carne para os moradores de rua. A ironia que elas compram carne velha e tratam isso com extrema naturalidade. LETREIRO: Histria da grande amizade entre Maria Antnia e Lucrcia 15 RUA SEC. 18 / EXTERIOR / DIA Em uma rua de terra tem um pequeno comrcio. Um menino apregoa galinha. MENINO Galinha! Galinha! Galinha! Galinha! Maria Antnia leva trs escravos para vender ao Sr. Jorge. Ela chega at a porta da casa do senhor. Entrega os escravos enquanto pega o dinheiro.

74

MARIA ANTONIA Eu venho trazer os escravos. O nosso Jorge est jovem, est forte. Trabalha na lavoura, cuida dos animais como ningum. A Das Dores t comigo h muito tempo. Lava, cozinha, cuida da casa como s ela, n, Das Dores? Ela tem pacincia de santa. Est certo. Ento, vamos.Vo com Deus. Vamos embora, vamos. Imagem ou foto posada de Maria Antonia. LOCUO Maria Antnia do Rosrio era viva, morava na Rua dos Ferradores. Sbia administradora de seus negcios... gostava de comprar a preos baixos e revender sua mercadoria com bons lucros. Seu capital de investimento no era grande. Por isso, o que fazia era apenas pequenos negcios. Maria Antonia selecionando escravos numa loja. Ela pergunta: MARIA ANTONIA Quanto quer pelos dois? COMERCIANTE 50 mil ris por ela, 70 por ele. MARIA ANTONIA No, no quero.

76

77

Maria Antonia sai. 16 CASA DO SC. 18 / INTERIOR / DIA Cenas de Lucrcia fazendo servios de casa, como limpar o cho e servir a mesa. LOCUO Outra viva, a escrava Lucrcia j passara dos 50 anos, e mesmo assim... trabalhava arduamente para a famlia Pereira Cardoso. Seu senhor, Caetano Pereira Cardoso... estabelecera o valor de sua liberdade: 34 mil ris. 17 RIO SC. 18 / EXTERIOR / DIA Maria Antnia e Lucrcia sentadas na beira do rio. Conversam enquanto a escrava lava as roupas. LUCRCIA O Sr. Caetano t judiando de mim. Eu lavo, esfrego, limpo, fao de tudo... e no consigo juntar os 34 mil ris... pra comprar minha alforria. Eu no sei o que fao. Eu j t velha, cansada cheia de dor pelo corpo, mas eu vou conseguir. Eu vou conseguir juntar esse dinheiro. Ah vou! 18- CASA DE MARIA ANTNIA SC. 18 / INTERIOR / DIA Maria Antnia sentada na mesa de sua casa faz as contas do investimento que est prestes a fazer.

78

80

LOCUO Confiante na relao... Lucrcia props sua nova amiga, que lhe comprasse do Sr. Caetano. Em troca, Lucrcia trabalharia durante um ano para Maria Antnia... E a terceiros, em horas extras. Assim, poderia saldar com ela a quantia emprestada. Props juros de 7,5% ao ano. Como boa mulher de negcios, a amiga fez as contas. O investimento, 34 mil ris. Perodo: 1 ano. Juro: 7,5% ao ano. Lucro: 2.550 ris. No entanto, havia um risco. E se no primeiro ano a amiga no conseguisse trabalhar para juntar a quantia necessria? Maria Antnia ponderou. Mesmo se a escrava pagasse apenas ao final de dois anos o negcio ainda seria vantajoso. Interttulos sobre a imagem colocam os nmeros expostos pela locuo. 19 CARTRIO SC. 18 / INTERIOR / DIA Num cartrio, Maria Antnia acerta com o outro proprietrio a papelada para comprar a escrava Lucrcia. LOCUO Maria Antnia decidiu, ento, acreditar no investimento. Levou ao cartrio os 34 mil ris e comprou junto ao Sr. Caetano Pereira Cardoso a to sonhada alforria da amiga Lucrcia.

20- RIO SC. 18 / INTERIOR / DIA Lucrcia trabalha para pagar sua dvida com Maria Antnia, ela lava roupas no rio, lustra botas e finalmente conta seu dinheiro. LOCUO Passaram-se 3 anos. Lucrcia trabalhou arduamente, horas extras para Maria Antnia e trabalhos para terceiros. Finalmente, conseguiu juntar a quantia para pagar sua amiga incluindo os juros estipulados e as correes. 21- CARTRIO SC. 18 / INTERIOR / DIA Maria Antnia e Lucrcia sentadas em um mesa do cartrio. As duas com cara de satisfao e muito contentes pagam a alforria da escrava e assinam os papis. LOCUO Maria Antnia deu uma cartada certa. Pois em 16 de setembro de 1786, as duas foram novamente ao cartrio do tabelio Jos Vandek e, diante dele, contaram as moedas trazidas por Lucrcia que, para alegria das duas, somavam 42.238 ris. O lucro e a liberdade, enfim se tornam realidade. Elas se levantam e saem do cartrio.

81

MARIA ANTNIA Passar bem. Passar bem. Elas chegam em frente ao cartrio. Sorriem para uma cmera que bate a foto. LOCUO Lucro para M. Antnia: 8.238 ris. Amizade, liberdade, solidariedade. Aparece uma legenda em tela preta: Extrado do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro... 4 Ofcio de Notas, livro 104, 16 de setembro de 1786. A locuo acompanha a legenda: LOCUO Extrado do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro... 4 Ofcio de Notas, livro 104, 16 de setembro de 1786. 22- ELEVADOR DO ESCRITRIO STINER / INTERIOR / DIA Marco Aurlio e Ricardo esto esperando o elevador. Judite, uma senhora em torno de 60 anos, chega. Ela tem um dos braos duros, por algum derrame. JUDITE O senhor que o Sr. Marco Aurlio? Eu sou a Judite, que cuida de limpeza. Mui83

to agradecida, viu? Pela oportunidade... porque eu preciso muito desse emprego. Ainda mais agora que meu menino foi preso... e eu preciso juntar dinheiro pra visitar ele. O senhor meu primeiro patro, depois do derrame. Eu prometo pro senhor que vou cuidar muito bem da limpeza. Lurdes a interrompe: LURDES Ol, dona Judite. Que bom que a senhora j chegou. Agora, por favor, me acompanhe. Vou lhe ensinar a outra entrada. JUDITE Ah. Tchau. LURDES Com licena, Dr. Marco Aurlio. Lourdes e Judite saem. Ricardo e Marco Aurlio continuam esperando o elevador: RICARDO Incomodou? MARCO AURLIO Incomodou, o qu?

84

RICARDO A misria estampada na porta da empresa. MARCO AURLIO Ela no tem a menor condio de trabalhar. Voc viu o brao dela? A que ponto chega o ser humano. RICARDO , explcito demais... MARCO AURLIO Porra, eu tenho valores. RICARDO Valores... MARCO AURLIO No posso permitir que ela trabalhe nessas condies. RICARDO Deixa eu ver se eu entendi: adulto, tudo bem, porque... criana tambm, porque fotognica... mas velhinho... duro de ver, n? MARCO AURLIO No enche o saco.85

23 CARRO / EXTERIOR / DIA Dentro do carro, Figueiras no banco de trs, Ricardo na frente com passageiro e Marco Aurlio dirige, esto conversando sobre a inaugurao do centro de informtica. Figueiras tem uns 40 anos e um jeito mais popular. FIGUEIRAS O vereador j confirmou a presena. Ele quer estar l com vocs, pra cortar a fita. T gostando muito do trabalho da Stiner, e da rpida aprovao da licitao. No precisam ter receio, no. O lugar pobre, mas vocs vo ser muito bem tratados. RICARDO Esse centro de informtica vai ser muito produtivo. Incluso digital. (e irnico). Eles vo adorar jogar joguinho, ficar na Internet. Entretenimento tambm cultura. Eleva o nvel do povo brasileiro. 24 RUA DE PERIFERIA / INTERIOR / DIA O carro chega numa rua de terra na periferia onde tem um corpo no cho, a me da vtima chora ao lado do corpo. Marco Aurlio se assusta e tenta voltar, mas o carro atola. Todos muitos nervosos no sabem o que fazer. O carro entra na rua de terra onde tem um corpo no cho.

86

RICARDO Que isso?! TRAFICANTE Movimenta a, p! Vamo tirar esse porco daqui. RICARDO Olha a arma na mo do cara. Vamos embora, Marcos!Tira o carro daqui, d r! Vai! O carro atola. Todos nervosos. at que Figueiras decide sair do carro e pedir ajuda aos traficantes que esto perto do corpo. FIGUEIRAS Fiquem aqui, eu vou dar uma olhada. RICARDO Vamos embora! TRAFICANTE Vai, Baro, ligeiro. A, Caveirinha. Marco Aurlio toma a iniciativa e comea a tirar terno e gravata. Ricardo tenso. RICARDO O que voc est fazendo? O que est fazendo? MARCO AURLIO Eu vou sair.87

RICARDO Puta que pariu, eu no acredito. Marco Aurlio sai do carro disposto a empurrar. Ao fundo Figueiras conversa com os bandidos armados. FIGUEIRAS O pessoal veio fazer melhoria aqui e de repente o carro entrou num buraco. TRAFICANTE T precisando do qu? FIGUEIRA De uma fora l pra empurrar. TRAFICANTE T em casa. Vamos l? FIGUEIRAS Aquele ali. Traficante se aproxima. TRAFICANTE Carro, hein, doutor? Atolou? FIGUEIRA No se preocupe que a rapaziada vai ajudar.

88

TRAFICANTE A rapaziada... Vamos pegar uma pedra, um tijolo. Vamos tirar o carro daqui. Voc a, tira o barato de l. O carro precisa passar. Empurra! Em paralelo o corpo retirado do caminho. Os traficantes comeam a empurrar o carro. TRAFICANTE Vamos tirar essa porra da. Sai ou no sai o bagulho. Vamos empurrar esse carro, meu irmo. JOVEM 1 Pesado. Carro de boy, mano.89

JOVEM 2 Pesado, mas vou ganhar uma caixinha. Motor importado pesa. A gente vai ganhar um trocado aqui. JOVEM 1 Vamos ganhar uma caixinha. O carro desatola. Bandidos cumprimentam Marco Aurlio e Ricardo. O carro sai. MARCO AURLIO Obrigado, hein. FIGUEIRAS Valeu, obrigado.

TRAFICANTE Isso mesmo, demorou. 25 CENTRO DE INFORMTICA / EXTERIOR / DIA Ricardo e Marco Aurlio esto presentes na inaugurao de um centro de informtica na periferia. O mestre de cerimnias tenta fazer a apresentao, mas quase no consegue terminar seu discurso, pois as crianas presentes fazem muita baguna. MESTRE DE CERIMNIAS Eu gostaria de agradecer a parceria empreendedora da Stiner, mas principalmente,

eu gostaria de agradecer a receptividade da comunidade que nos acolheu de braos abertos para abrigar o primeiro centro desse projeto que muito contribuir para a menor desigualdade na distribuio de informao na nossa sociedade, com informtica na periferia! Todos batem palmas. Marco Aurlio corta a fita. As crianas invadem o centro correndo e tumultuam o local. Ricardo comenta com Marco Aurlio de forma irnica: RICARDO Que sucesso, hein!

Arminda no consegue conter as crianas, que acabam derrubando alguns computadores. ARMINDA Vocs esto loucos? 26 RESTAURANTE / INTERIOR / DIA Restaurante chique. Chegam vrias famlias. Uma das crianas um menino careca de cncer. Eles preparam a mesa. Sobre a imagem ouvimos a voz de Maria Amlia. MARIA AMLIA (OFF) Daqui a pouco, uma das famlias j deve estar chegando. So 14 em 7 hotis 5

estrelas. Elas ficam uma semana com todos os servios do hotel includos e todas as manhs, um nibus leva as crianas pros shoppings, zoolgicos, vrios passeios e atividades. Pela primeira vez na cena vemos Maria Amlia. Ela est numa mesa e conversa com Marta Figueiredo. MARIA AMLIA Mas no so s as crianas com incio de cncer, as terminais tambm. Se voc visse as crianas to magrinhas, tadinhas! Voc faz idia do que representa uma semana, com 3 refeies fartas, banho quente. maravilhoso! MARTA FIGUEIREDO. Claro que . Claro. Mas eu no consigo convencer meu marido a participar. Eu no sei o que acontece, mas eu no consigo. Eu ainda no consegui mostrar ao Joo Paulo quanto fundamental a gente ser solidrio, se preocupar com o prximo. Reparar nossas dvidas desta vida e de outras, no sei. necessrio. E depois, eleva o esprito! No verdade? Em outra mesa do mesmo restaurante Arminda conversa com um amigo.

94

AMIGO o seguinte. um equipamento que custa x e foi comprado por 3 vezes x. Isso superfaturamento, isso primrio. Claro que oficialmente, quem est faturando a empresa de computadores. Mas tem jeito de ser fantasma. Agora, com esses papis, a gente consegue provar fcil que quem t ganhando a Stirner. Ou s o Ricardo. Claro que o Exmo. vereador Soares tambm est levando o seu, n? Arminda, so as oligarquias. Elas se encontram elas fazem novas alianas, combinam velhos esquemas. Esse pessoal deita e rola. E depois ainda ganha eleio. Fica tudo sempre nas mesmas mos. E pra gente sobre o qu? Esse papel chato de ficar fazendo denncia. Mulher chega mesa de Marta MULHER Com licena, Marta. Com licena, Maria Amlia. Elas conversam. Na outra mesa o amigo de Arminda comenta: AMIGO Olha s. Esse projeto a um absurdo. Essa senhora, ela usa do social pra lavar dinheiro da empresa do marido. E depois

97

ainda desconta do imposto de renda, sabe como ? a direita faturando em cima da permanncia da misria. Mas o nosso projeto diferente. ARMINDA Desculpa, mas eu tenho que ir. AMIGO Que isso? Calma, no tive inteno. Calma. ARMINDA Esse lugar constrangedor.

27 PRAA / EXTERIOR / DIA Arminda e Lurdes chegam em uma Kombi na praa onde ser gravado o comercial. Elas abrem a porta lateral e vrias crianas pobres descem do veculo correndo. Arminda, preocupada, conversa com Lurdes. ARMINDA Como eu fao pra conseguir os computadores novos? (para as crianas) Vamos l, gente. Naquele cantinho ali. Cuidado. LURDES No sei, no. complicado. Acho melhor esquecer essa histria. ARMINDA Esquecer como Lurdes? Teu chefe um sacana, superfaturou e entregou umas porcarias que no valem nada. LURDES Mas voc no pode calcular o oramento desse jeito. E depois, d logo o veredito final. Tem taxa administrativa, gasto na infra-estrutura do projeto e uma srie de custos extras. ARMINDA Eu vi a coisa no papel.

99

LURDES Viu onde, Arminda? No se mete nisso. Vai criar um desgaste com o Ricardo? Ele vai bloquear projetos futuros e muita coisa se perde. No se mete nisso. ARMINDA Eu quero os computadores prometidos. E novos. Lurdes se irrita e sai. Diretor e seu assistente (Mendona e Bira) selecionam e separam as crianas conforme a cor de pele. Eles pegam garotos um a um e vo analisando. Analisam numa menina. BIRA Quantos anos? MENINA Dez. BIRA Fica aqui. MENDONA (APONTANDO A UM GAROTO) Isso o qu? Negro 60%? BIRA mais, Luciano. Acho que uns 80%.

101

MENDONA Bota 75%. BIRA Seu nome como? Garotinho, tmido no responde. Mendona ao fundo est inconformado. MENDONA Ningum pediu pra essas crianas tomarem banho? Bira est focado em outro garoto.102

BIRA Luciano, isso aqui resolve com maquiagem, cara? MENDONA Sei l, pergunta pra Cntia. BIRA Que aconteceu aqui? Mendona olha um dos garotos bem de perto. MENDONA Bira... Vem c, garoto. Olha isso aqui. Negro com um pouco de japons e coreano.

Bira chega e olha com olhar cientfico. BIRA T achando que ndio. MENDONA Que ndio? BIRA Voc ndio? Hein? Cabelo lisinho, olho puxado. ndio. MENDONA Bota ndio (para outro menino, indiscutivelmente negro). Como voc chama? Voc, teu nome? MENINO Peter. Bira ainda anotando em sua prancheta. BIRA ndio outros. MENDONA Bira, olha. O Peter aqui negro, n? BIRA Ele? 100% negro, n, rapaz? Tem at pedigree um cara desses.

103

Lurdes entra interrompendo. Ela est irritada com os comentrios e vai tirar satisfaes com os dois. Ela e Mendona comeam a discutir: LURDES O que est acontecendo? Eu ouvi pedigree? Por que essa grosseria? MENDONA Grosseria? T a no papel. Vocs no querem 75% de crianas negras, 10% de brancos e 15% outros. Os garotos que vocs trouxeram, de negro mesmo no chegou quase nada. Mas no sei o que vocs consideram negro. Sei l, serve mulatos?106

LURDES Mulato? Olha esse filme representa a verdade do pas, por isso o nmero prestipulado de negros. Quantos negros voc tem sua na equipe? MENDONA Eu sei l! Eu no estou preocupado com isso. No se faa de vtima s porque negra. V me entende: eu no persigo negros. LURDES S que no uma questo de perseguir ou no. A defesa da nossa raa um instrumento para agregar valor as pessoas

que tm uma mdia muito menor de oportunidades. Isso histria, reparar injustias! Nunca ouviu disso, no? Nunca estudou? T louco? MENDONA Eu vou te explicar uma coisa, v se voc me entende. Eu contrato gente competente. No me importa cor, raa ou idade. LURDES Ento, enquanto no sair a lei voc vai continuar resistindo e no vai contratar negros? MENDONA Que resistindo, minha senhora? Que resistindo? Me paga, que eu contrato quantos voc quiser! Voc no est aqui trabalhando hoje? Eu no estou escolhendo os moleques mais pretos pra botar no filme? Ento... voc pagou e venceu! Hoje, aqui neste set, negro lindo. (se vira para Bira). Bira, manda pintar toda a molecada. Quero todo mundo preto! Vamos filmar! BIRA Vem com o tio. 28 PRAA / EXTERIOR / DIA Um menino gravando o filme, com uma expresso triste.

108

MENINO Meu nome Jos Aparecido Nogueira. Tenho 12 anos e sou negro. Medona grita em off. Ouvimos sua voz sobre a imagem do garoto. MENDONA (OFF) No! T muito pra baixo. Quero mais orgulho. De novo! MENINO Meu nome Jos Aparecido Nogueira. Tenho 12 anos e sou negro. Arminda olha chocada. (Em alucinao) olha vrias outras crianas perfiladas e amarradas umas nas outras, como escravos. MENDONA (OFF) T muito pra baixo, garoto. Mais orgulho. De novo! MENINO Meu nome Jos Aparecido Nogueira. Sou negro. MENDONA (OFF) Bira, troca esse moleque. Coloca outro. Ainda Arminda chocada. Observao: a voz em off um recurso no qual escutamos a voz do personagem sem ver seu rosto.

109

110

diferente da voz em over, pois a voz over vem de fora do mundo ficcional do filme, seja por um narrador em terceira pessoa, seja por um narrador em primeira pessoa contando a sua histria de um tempo futuro. A voz em off est dentro da cena, a cmera poderia registr-la, mas o roteiro opta por registrar a imagem da pessoa que ouve a voz, que serve como contraponto visual ao som. Muitas vezes legal prever no roteiro que a voz ser utilizada em off. Nesse caso, o contraste entre a voz em off sobre a imagem do garoto e de Arminda oprimida que d a dramaticidade cena. Outro momento em que utilizamos voz off foi na cena de abertura, quando os primeiros gritos da personagem de Joana estavam em off. Naquele caso foi para segurar a informao de que Joana, a proprietria do escravo, tambm era negra, contradio interessante ao roteiro. ** A cena acima foi totalmente inspirada em uma discusso entre estudantes que se analisavam e discutiam cotas para negros em universidades e concursos pblicos. Foi feita uma espcie de pardia do discurso real (transpondo-o para uma filmagem) para tentar jogar luz sobre a inviabilidade da sociedade querer regredir e recolocar etiquetas raciais em cidados de um pas j totalmente miscigenado. 28 FACHADA ASSOCIAO EXTERIOR RUA Carro importado estaciona na porta da Associao de Nomia.

Motorista / segurana abre a porta do carro para a patroa, Marta Figueiredo. Adlia vem atend-la. Um motorista abre a porta. Marta diz para Adlia MARTA FIGUEIREDO Por favor, voc trabalha aqui? Me ajude com as doaes? (sorridente). E tome cuidado, so 50 pares de meus melhores sapatos. E diga a coordenadora que eu mesma, Marta Figueiredo, vim pessoalmente. No esquea! Eu mesma, pessoalmente. 29 SEDE DA ASSOCIAO INTERIOR / DIA. Adlia, Ftima (a menina negra) e vrios outros funcionrios organizam a doao. Toca a campainha. Homens encapuzados abrem a porta. BANDIDO 1 um assalto! Os bandidos entram com tudo. Cenas de violncia. Um deles coloca uma arma na cabea de Nomia e obriga-a a abrir o cofre.Ela desesperada se esfora para abrir. BANDIDO 2 Vai, abre.. Abre, Vaca!! CORTE PARA

111

Ainda na sede da Associao. Instantes aps o assalto, Mnica mexe novamente nos sapatos de salto alto doados por Marta Figueiredo, enquanto comenta: MNICA Ainda bem que no era tnis, seno eles levavam tudo. NOMIA Ai que saco. No quero ouvir mais nada, mais nada. Ftima e Mnica vo para a cozinha. Chega o delegado Batista.

NOMIA Delegado Batista ainda bem que voc chegou logo. Veja s... A gente combina tudo e mesmo assim... DELEGADO BATISTA As ocorrncias tem praticamente dobrado. A turma do Damio est se organizando, est difcil at de conversar. NOMIA Damio. Ento voc sabe quem foi? (O delegado confirma). E no d para dizer para ele roubar outra Associao? Delegado Batista, ns temos um trato. Eu te pago todo ms. No d para pegar esse bandidinho e dizer, essa Associao, no? DELEGADO BATISTA Eu tenho lhe dito h um tempo. Se a senhora quiser segurana tem que intensificar as aes. Tem que praticamente dobrar tudo. No tem jeito, a senhora tem que cooperar. Nomia se convence e comea a assinar um cheque. 30 SEDE DA ASSOCIAO / INTERIOR / NOITE No mesmo dia do assalto, mais tarde, Nomia conversa com Ricardo, da Stiner, que tambm lhe presta consultoria.

114

NOMIA No basta roubarem tudo, ainda tem esse delegado que abriu um novo filo no mercado: proteo a entidades assistenciais. Proteo? Pois sim. Mas a ltima vez que eu pago. RICARDO Que absurdo. Ainda mais com vocs que fazem esse trabalho to importante. NOMIA Justo quando eu consegui o patrocnio da World Foundantion. Agora vai ficar mais difcil. Como que eu vou explicar para os americanos que eu preciso gastar com um delegado para no ser roubada pelos prprios parentes das pessoas que eu ajudo... Ah... Eu tenho que me dedicar a projetos menores. RICARDO Que coincidncia. A vida muito maluca mesmo. Eu vim aqui com uma idia que vai ser perfeita para voc. Voc quer trabalhar com ecologia? Ficar mais tempo l no seu stio? Um mestre espiritual me procurou. Ele quer fazer um trabalho assistencial l na irmandade para ter um diferencial com os clientes. A minha idia unir o seu trabalho com a sabedoria vegetal. Ns vamos fazer os mendigos

115

viciados passarem por um processo de purificao, fsica e mental. E com isso a gente consegue o patrocnio da Philantropic Partners. Aquela empresa da Filadlfia. O aumento da capacidade espiritual. A volta da auto-estima. NOMIA Parece uma idia interessante. Observao: As seqncias 28, 29 e 30 foram filmadas e excludas na montagem final. O filme estava grande e ficou evidente que no eram cenas essenciais. Alm disso, em termos de escaleta, elas paravam um pouco o filme e ficavam muito tempo na histria de Mnica e Nomia, esquecendo das outras histrias, o que era um problema. A cena de Marta tem o interesse antropolgico de brincar com o fato dela doar sapatos chiques, fato que descobrimos em uma de nossas pesquisas. Mas no era fundamental. A cena do assalto tem certa ao em si e era importante em termos de ritmo. Servia tambm para apresentar o Delegado Batista, que voltar mais tarde no filme, intermedirio da contratao de Candinho para matar Arminda. Mas conclumos que ele no era necessrio. A cena 30 era basicamente uma cena de passagem de informao. Passvamos a informao de que Nomia decidiu abrir um novo negcio e levar os mendigos para fazer experincias espirituais no stio. A informao

116

era importante para justificar a nova atividade e tinha um texto em si interessante. A soluo encontrada foi fundir as cenas. Na montagem, o montador e o diretor encontraram uma tima soluo e o trecho da voz em que Ricardo passa a informao foi colocado sobre a imagem dos mendigos chegando no stio da seqncia 34. Poderamos ter previsto isso antes, no roteiro. A dica sempre questionar para que serve a cena. Se a cena servir apenas para passar uma informao era uma cena fraca, pois no tem atrativos de ao e atrativos visuais. Nesses casos, costuma ser possvel fundir duas cenas e agilizar o ritmo, passando as informaes necessrias ao desenvolvimento da histria j no meio da ao. 31- COZINHA DA CASA DE MNICA / INTERIOR / DIA Mnica est dentro de sua cozinha preparando as comidas da festa. Ela est muito feliz. O tom idlico, a mesa toda enfeitada. At que num canto da cozinha aparece a Ftima, a negra e orf que Mnica utiliza de ajudante. Ela est trabalhando, limpando talheres. MNICA Voc muito prendada, viu? Acho que vou te pegar pra criar. Voc gostaria de ter uma me assim como eu? Comida boa, todo dia. Voc teve sorte de encontrar uma famlia que te trata como filha.

117

Candinho entra muito alegre com a uma cmera fotogrfica na mo e tira uma foto das duas. CANDINHO Minha tia-sogra Mnica! Que banqueto, hein? Trouxe uma mquina pra gente tirar fotos dos preparativos. A arrumao desse banquete vai entrar pra histria. Mnica vai com Ftima para prximo ao bolo e Cadinho tira a foto. 32- QUINTAL DA CASA DE MNICA / EXTERIOR / DIA Nomia chega na casa de Mnica para o casamento. Candinho a recebe com alegria. CANDINHO Voc a dona Nomia, no ? Eu sou Candinho, o noivo. Nomia entrega os presentes. NOMIA Isso pra vocs. CANDINHO Obrigado. Que honra, fica vontade. Tia Mnica est arrumando as coisas. Tia Mnica! Mnica vem ao fundo.

118

MNICA Minha amiga! Voc veio! No repara a baguna, estamos ainda nos preparativos. NOMIA Imagine! CANDINHO Clarinha! dona Nomia trouxe presente pra gente. Clara aparece, j vestida de noiva e com a grande barriga de grvida. CLARA Oi, dona Nomia, que legal. Nossa, que lindo.Que lindo! Isso, sim, que saber dar presente, dona Nomia! Obrigada. Mnica apresenta a mesa de comida para Dona Nomia. MNICA Tem risole, tem coxinha, tem quibezinho, os doces vieram de uma doceira muito boa, l do centro. Olha que beleza de bolo. Tudo no capricho. Tem pernil, frango, macarro, pav. (volta-se para dona Nomia) Muito agradecida, viu, Nomia. Voc vai receber tudo, tudo antes do que imagina.

119

NOMIA Voc nem pense nisso agora. Mas quero te avisar uma coisa: a Associao vai ser transferida pra uma chcara no interior e eu vou precisar muito da sua mo, na nova sede. MNICA Mas como vou largar minha sobrinha nesse estado? Porque a criana logo, logo est nascendo. Eu posso fazer tudo aqui da cidade. NOMIA Mnica. Eu te ajudei quando voc precisou e agora voc vai me ajudar. No uma questo de servio, a sua presena. Na nova sede eu quero gente de confiana. Mnica preocupada. Ao lado, est Ftima trabalhando. Mnica lembra dela. MNICA E se eu te apresentar uma menina prendada, limpinha, faz tudo. No d trabalho nenhum. Faz tudo da casa, de confiana. Limpinha, no come quase nada. Voc ia ficar satisfeita, no , Nomia? 33 CRNICA PRESENTE DE CASAMENTO SC. 18 / INTERIOR / DIA Seqncia de fotos posadas, produzidas e envelhecidas, retratando situaes no sc. 18.

122

Foto 1 Frente de uma casa simples de uma rea pobre (sculo 18). Fotos de uma famlia de negros alforriados, o pai, a me e a filha de 18 anos, abraando-se felizes em trajes para ocasies especiais. LOC. 1 A moa donzela Ana Luza Peixoto era muito bonita e era tratada com todo cuidado e requinte... Seus pais, Ana do Prado e Luiz Peixoto, eram negros alforriados, e assim podiam dedicar todo seu trabalho como lavadeira e carregador, a um s grande objetivo: um valioso dote menina Ana. Foto 2 A me Ana do Prado orgulhosa, vestida como lavadeira, penteia a filha, que est bem arrumada. Foto 3 Numa rua qualquer, um rapaz mulato reverencia e cumprimenta, erguendo o chapu a Luiz Peixoto, que est de roupas simples ao lado de sua carroa. LOC. 1 Sabiam que os pretendentes a noivo muito reverenciavam os futuros sogros que tivessem um dote de valor. Foto 4 Ana Luza caminhando, faceira, arrumada e de sombrinha, pela rua. Foto 5 Ana do Prado, a me, lava roupas beira de um rio. Foto 6 Luiz Peixoto, o pai, descarrega mercadorias pesadas de sua carroa. Foto 7 Manoel da Rosa, o futuro noivo, 25 anos, oficial de marceneiro, posa com seus instrumentos de trabalho na mo.

123

Foto 8 Ana Luza, admirada, olha de uma janela, o operrio e futuro noivo, Manoel da Rosa, trabalhando em uma obra. LOC. 1 Ana, apesar de bonita, recatada e bem educada, ainda no tinha conseguido um noivo. Isto at o incio de uma obra no sobrado ao lado. Poucos dias de servio foram suficientes para que o bem afeioado oficial de marcenaria, Manoel da Rosa, se encantasse pela menina moa... E ela, por ele. Antes que o servio terminasse, Manoel criou coragem e foi pedir, respeitosamente, a mo da donzela a seus pais. Foto 9 Luiz Peixoto, o pai, sentado a uma cadeira, reverenciado por Manoel da Rosa, o noivo, de p. Foto 10 Ana Luza medida por costureiras. LOC. 1 Como Manoel trazia consigo boas referncias, seu pedido resultou em felicidade aos pais da menina moa. A agitao tomou conta da casa com a correria das costureiras na feitura do enxoval da noiva. Luiz Peixoto e Ana do Prado passaram a trabalhar dobrado para oferecer um belo dote. Em agosto de 1790, casaram-se na Igreja de Santa Rita. Foto 11 Ana e Manoel posam em trajes de noivo e noiva, na frente