quando os saberes sobre inf˜ncia subjetividade … · triade, l’enfance, ... signo da igualdade...

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Educ. foco, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 125-138, set 2008/fev 2009 QUANDO OS SABERES SOBRE INF˜NCIA, SUBJETIVIDADE E ESPAÇO SENTAM-SE ¤ MESA Núbia Schaper Santos 1* Resumo Este artigo tem como foco principal o diálogo entre a construção da subjetividade da criança na tríade infância, subjetividade e espaço. A perspectiva é trazer para a cena as vozes da pesquisa que investiga a horizontalização e a verticalização do espaço nas salas de atividades da Educação Infantil. Neste texto, dizemos do espaço que para ser concreto precisa antes ser simbólico, imaginado, pensado. A escola é o palco para estas elucubrações, porque é inerentemente compreendida como tempo-lugar de construção da subjetividade contemporânea. Palavras-chave: Infância. Subjetividade. Espaço. Abstract Thisarticlehasasmainpointthediscussionaboutchildren’s construction of subjectivity from childhood, subjectivity and space. The perspective here is to bring out the voices of the research which investigate the horizontal and the vertical ways of children activities into classrooms. For us this space must be symbolic, imagined, and thought before be concrete. The school is stage of these thoughts because it is comprehended as the time-space of the construction of the contemporary subjectivity. Keywords: Childhood. Subjectivity. Space. * Psicóloga. Doutoranda em Educação – UERJ. E-mail: [email protected]

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Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 125-138, set 2008/fev 2009

QUANDO OS SABERES SOBRE INF˜NCIA, SUBJETIVIDADE E ESPAÇO SENTAM-SE ¤ MESA

Núbia Schaper Santos1*

ResumoEste artigo tem como foco principal o diálogo entre a construção da subjetividade da criança na tríade infância, subjetividade e espaço. A perspectiva é trazer para a cena as vozes da pesquisa que investiga a horizontalização e a verticalização do espaço nas salas de atividades da Educação Infantil. Neste texto, dizemos do espaço que para ser concreto precisa antes ser simbólico, imaginado, pensado. A escola é o palco para estas elucubrações, porque é inerentemente compreendida como tempo-lugar de construção da subjetividade contemporânea.Palavras-chave: Infância. Subjetividade. Espaço.

AbstractThis article has as main point the discussion about children’s construction of subjectivity from childhood, subjectivity and space. The perspective here is to bring out the voices of the research which investigate the horizontal and the vertical ways of children activities into classrooms. For us this space must be symbolic, imagined, and thought before be concrete. The school is stage of these thoughts because it is comprehended as the time-space of the construction of the contemporary subjectivity.Keywords: Childhood. Subjectivity. Space.

* Psicóloga. Doutoranda em Educação – UERJ. E-mail: [email protected]

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ResuméCet article a comme objectif principale, la discussion sur la construction de la subjectivité de l’enfant dans la triade, l’enfance, subjectivité et l’espace. La perspective est d’apporter en scène les voix de la recherche que fait l’enquête horizontalement et verticalement de l’espace dans les classes d’activités enfantiles. Dans ce texte,nous parlons de l’espace que pour être concret a besoin d’être d’abord symbolique, imaginé et pensé. L’école est la scène pour ces réflexions parce que est inhérentement comprise comme temps-lieu de construction de la subjectivité contemporaine.Mots-clés: Enfance. Subjectivité. Espace.

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas.(Manoel de Barros)

Clarice Lispector revelou certa vez que escrever é apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Procurar reproduzir o irre-produzível. Pretendemos, neste texto, lutar com as palavras e de-linear as ideias produzidas pelas vozes do grupo de pesquisa1 que se constituiu pelo desejo de saber o que dizem os limites da sala de atividades da Educação Infantil, tanto do ponto de vista vertical – as paredes – quanto do ponto de vista horizontal – o chão.

Infância, subjetividade e espaço. Diante das possibili-dades de caminhos, optamos por entrelaçar estes temas sem a expectativa de esgotá-los, mas na perspectiva de discuti-los e de dividi-los com o leitor. A escola é o palco para estas elucubra-ções, porque é inerentemente compreendida como tempo-lugar de construção da subjetividade contemporânea. Partilharemos da companhia de alguns autores que sustentam o nosso modo de pensar e imprescindivelmente o nosso modo de reparar as coisas, o mundo. Assim, buscaremos tecer um diálogo entre a construção da subjetividade da criança na tríade infância, subje-tividade e espaço. Retomando a luta com a palavra, se ela é uma arena, então, a palavra nossa é agora palavra sua.

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Notas de um diálogo sobre infância e subjetividade

A arte, como a ciência, diz sobre a condição humana. O documentário Crianças Invisíveis é uma maneira de pensar a infân-cia, pois nos provoca e nos convoca a questionar nossas verdades. As imagens captadas por alguns cineastas, em sete países com realidades diferentes, retratam o cotidiano e a infância de algumas crianças. A negligência, a opressão, a exclusão, a violência, a misé-ria, a privação e a vulnerabilidade estão entre os temas tratados no mencionado documentário com um único denominador comum: a invisibilidade destas crianças.

Frequentemente, ouvimos a expressão: as crianças de hoje não têm mais infância. De que infância falamos? O que é ter in-fância? De que crianças falamos? O que é ser criança na atualida-de? O discurso construído sobre a infância até aqui nos fez crer que havia uma infância ideal e universal. Por acreditarmos nisso é que vivemos comumente a sensação de que a infância não existe ou está acabando? Por certo, este modelo de idealidade/univer-salidade já não consegue explicar a relação entre adulto e criança na contemporaneidade. A criança vem perdendo a sua infância ou é uma questão de redimensionar o olhar? Pode-se dizer que é necessário desnaturalizar a infância, os conceitos e os termos utilizados para a sua compreensão. Foucault (1978) auxilia nesta tarefa, quando propõe que é preciso rejeitar as obviedades, o que também se traduz em certa rejeição dos modelos idealizados de instituições e de infância. É preciso estranhar o familiar.

Tratamos a infância como algo que previsivelmente com-preendemos. Sabemos antecipadamente o que é, o que quer ou o que necessita ser. A infância foi aprisionada por diferentes saberes disciplinares (psicológicos, pedagógicos, pediátricos, sociológicos, etc), cabendo a estes a tarefa de caracterizar a criança e suas ne-cessidades, estabelecendo metas para sua educação e para seu de-senvolvimento, produzindo suas “verdades absolutas”. A infância não é outra coisa que o objeto de estudo de um conjunto de sabe-res mais ou menos científico. Larrosa (1998, p. 69) sugere que:

(...) a infância é o outro: o que, sempre muito além do que qualquer tentativa de captura inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio no qual se abisma o edifício bem constru-

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ído de nossas instituições de acolhida. Pensar a infância como algo outro é, justamente, pensar essa inquietude, esse questionamento e esse vazio. É insistir mais uma vez: as crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem nossa língua.

A infância e a criança são temas que, a partir dos últimos

tempos, passaram a representar um dos grandes eixos de preo-cupação do debate acadêmico, da escola e também das políticas públicas. Se somos o produto de um tempo, que imagem estamos produzindo com relação à infância e à criança? O que dizem as crianças sobre elas mesmas? Os livros sobre desenvolvimento in-fantil tentam ensinar tudo sobre essas duas realidades. Descrevem como a criança reage, quais os seus medos, as suas necessidades, o seu modo de ser, de pensar e de agir. A mídia sabe sobre a infân-cia, sobre a criança que consome e que é consumida.

Em que cenário se constrói a ideia de infância e a experi-ência de ser criança hoje? O tempo, o lugar, os valores, as suposi-ções sobre a vida e o comportamento humano são decisivos para a construção de uma concepção sobre infância. Todas as con-cepções surgem em momentos históricos específicos e carregam tanto as descobertas quanto os preconceitos desses momentos. Partindo dessas reflexões, é possível pensar sobre os significados que nós adultos atribuímos às crianças e as suas culturas. Hoje, inegavelmente, a lógica de subjetivação tem sido instaurada e in-fluenciada pelo consumo. Tanto crianças quanto adultos estão

submetidos a esta nova ordem. A esse respeito, Castro2 diz que:

Em seguida às mudanças operadas no bojo do sistema capitalista, que introduziram uma diacronicidade cres-cente entre produção e consumo, e uma preponderância dos valores de troca sobre os valores de uso, alavanca-se a dimensão do consumo nas sociedades capitalistas moder-nas, e com isso, o papel do consumidor. A infância passa, então, a se situar numa nova efetividade social, enquanto consumidor. A lógica do consumo traz visibilidade para a infância na dinâmica social como um parceiro ativo não somente no tocante ao direcionamento do que se produz, como também no re-ordenamento de questões sobre a infância. Como exemplo, colocaria que é justamente no âmbito das transformações da cultura de consumo que se

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articulam as indagações sobre a morte da infância, já que num processo aparentemente de ‘adultização’ as crianças competem com os adultos na reivindicação do lazer, do consumo de bens simbólicos e materiais.

Assim, há um deslocamento da posição da infância a partir da lógica do consumo. Se antes (na Modernidade), a infância era ter-ritório da família e da escola, hoje ocupa outros lugares na teia social. A criança aparece não apenas como consumidora, ou potencial traba-lhador, mas como quem também exercita sua aparência e sua presen-ça no tecido social, reforçando a noção de que a criança não somente é produzida pela cultura, mas produz cultura (Castro).

O desenvolvimento do capitalismo trouxe a marca da in-dividualidade. Ao mesmo tempo em que homogeneíza – sob o signo da igualdade –, individualiza sob o signo da singularidade. A coca-cola é para o gordo, o magro, o baixo, o alto, o negro, o branco, o amarelo, fabricando identidades por meio da marcação da dife-rença. Somos um ser social singularizado.

Isso tudo representa a ambiguidade e a complexidade do tempo presente, um tempo de transição, de descompasso em relação a tudo que o habita. Um tempo em que se instaurou o caos, abriu-se a ferida, um tempo em que “a semântica transforma-se em retórica, a igualdade em diferença, a transcendência em imanência, o permanen-te em transitório, a totalidade em fragmentação, a homogeneidade em heterogeneidade” e do qual não podemos nos esquivar, mas enfren-tar (Vieira, 1999, p. 38). Complementando esta linha de raciocínio, “vivemos um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já ser-mos, ora pensamos nunca virmos a ser” (Ferraço, 2002, p. 116).

Diante desse caldo cultural povoado de tradições e contra-dições é que devemos refletir sobre os modos de subjetivação da criança. E como se dá este processo? Novamente, o documentário Crianças Invisíveis nos convida a ruminar estas questões. Na chamada sociedade do espetáculo, onde as relações parecem apenas objetais, onde impera o amor pela imagem de si mesmo, onde há predomi-nância da padronização do desejo, é imperativo que desloquemos sentidos. A subjetividade contemporânea não deve emergir do assu-jeitamento e da massificação sob pena de continuarmos tamponando outras formas de subjetividade na cultura (Jobim e Souza, 2000).

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Assim, a subjetividade – como a linguagem – é polifônica. Guatarri e Rolnik, apud Miranda (2000, p. 40), assinalam que:

Seria conveniente definir de outro modo a noção de sub-jetividade renunciando totalmente à ideia de que a socie-dade, os fenômenos de expressão social são a resultante de um simples aglomerado, de uma simples somatória de subjetividades individuais. Penso, ao contrário, que é a subjetividade individual que resulta de um entrecruzamen-to de determinações coletivas de várias espécies, não só as sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia, etc.

Mas a criança consegue transcender e subverter a ordem im-posta. Na imaginação, na reinvenção do brincar, na criação de espa-ços onde já não há. No jogo de subjetivação e subjetividade, a criança constrói suas linhas de fuga e imprime um olhar seu para além da disciplina e da ordem, porque ainda é capaz de denunciar que o rei está nu, de fugir ao sempre-igual, o que Deleuze nomeia de desvio. A linguagem metafórica de Lewis Carrol traduz um pouco esta ideia. Em Alice no país das maravilhas, o diálogo entre Alice e seu gato acontece assim: se esse mundo fosse só meu, tudo nele era diferente. Nada será o que é porque tudo era o que não é. E também tudo o que é, por sua vez, não seria. O que não fosse seria. Precisamos aprender com Alice.

A articulação entre infância e cultura – e não fora dela – sustenta-se também pela crença de que se não (re)direcionarmos o olhar sobre a infância, estaremos (re)produzindo os elementos de uma cultura que acredita demasiadamente em sua própria razão. “Morre, então, esta infância para dar lugar a outra ou outras, que, também por nós inventadas, poderão nos guiar na construção das nossas possibilidades individuais e coletivas” (Castro).

Pereira e Jobim e Souza (1998, p. 26), inspiradas na obra de Benjamin, falam-nos da alegoria do tapete:

No tapete os fios se entrecruzam com perfeição, permitin-do ao olho acompanhar o correto percurso das configura-ções. Tudo bem definido até que escapa um fio, rompe-se a precisão do fluxo e, naquele exato momento, o olhar pára atentamente e põe-se a observar com mais afinco. O fio solto provoca o olhar, desafia o observador a construir uma nova configuração. O segredo que esse desvio oculta é a promessa de um conhecimento que se preocupe em

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equacionar o sensível e a razão para problematizar com maior fecundidade a geometria da vida.

É justamente nesse universo de poucas certezas e muitos paradoxos que se imprime o desafio de construção de um campo de práticas e de saberes capazes de abarcar a pluralidade de determi-nações que incidem sobre a infância e a criança, procurando linhas de fuga que não permitam cristalizá-la em formulações essencialis-tas. Já não cabe pensarmos na criança ingênua, mas na criança que transgride, infringe, subverte, reinventa, reproduz, recria.

Diálogo e experiência: conversando sobre as práticas na escola

Até agora, anunciamos algumas notas sobre a infância e os modos de subjetivação na contemporaneidade. Para delinear-mos o estudo da pesquisa que, conforme dissemos, preocupa-se com as salas de atividades de Educação Infantil e com o trânsito da professora e das crianças nesses ambientes, precisamos situar a questão do espaço. Isso se faz necessário porque, conforme as-sinalamos anteriormente, no intento de tecer um diálogo sobre a construção da subjetividade da criança, estabelecemos uma rela-ção entre infância, subjetividade e espaço.

A questão do espaço foi palco de inúmeros debates, prin-cipalmente a partir da década de 90, adquirindo diversos signifi-cados na Educação Infantil. De que espaço falamos? Do espaço da sala de aula? Das relações e interações no espaço? Do espaço vivido? Do espaço construído? Neste texto, dizemos do espaço que – para ser concreto – precisa antes ser simbólico, imaginado, pensado. O espaço é imaginado, é uma representação mental. So-mente é projetado em função da característica que nos diferencia dos outros animais, qual seja, a de planejar.

Antônio Viñao Frago dialoga incessantemente conosco. Além de sua palavra, trazemos à cena, como pressuposto do que pensamos, “a noção de homem histórico e social, que se constitui a partir das interações sociais estabelecidas no meio do qual ele faz parte e paulatinamente vai constituindo-se enquanto sujeito”, a qual é fundamental para esta empreitada (Finocchio, 2000, p. 54). Ou seja, o homem tem história, o espaço tem história. E de que forma

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o espaço da, na e pela escola possibilita a construção de subjetivida-de? Será que há produção de subjetividades coletivizadas?

A escola ocupa um lugar, em um espaço e em um tempo determinados. Que lugar, que espaço, que tempo? Frago (1998, p. 62) ajuda a pensar, desvelando que:

Acreditamos, às vezes, que nos conhecemos no tempo, quan-do na realidade só se conhece uma série de fixações em es-paços da estabilidade do ser, de um ser que não quer acabar, que no próprio passado vai em busca do tempo perdido (...) a memória não registra a duração concreta... É pelo espaço, é no espaço que encontramos esses belos fósseis de duração concretados por longos tempos... Localizar uma recordação no tempo é só uma preocupação do biógrafo e corresponde unicamente a uma espécie de história externa, uma história para uso externo, para comunicar aos outros... para o conhe-cimento da intimidade é mais premente a localização de nos-sa intimidade nos espaços do que a determinação das datas.

O lugar é o espaço construído. É espaço quando possibili-ta o terreno do pensado, é lugar quando elabora a maquete do que será construído. O espaço é imaginado, projetado, é também me-mória daquilo que ficou no lugar. O lugar é ocupado, construído, é a ação. O espaço é o imaginário da ação. O lugar só se constrói mediante a possibilidade de vários espaços, que são os espaços imaginários de cada um. A escola é espaço-lugar. A questão é: como o espaço imaginário se torna lugar de ação?

Para Frago (1998, p. 78), “todo espaço é um lugar percebido. A percepção é um processo cultural. Por isso, não percebemos es-paços, senão lugares. Espaços com significados e representações de espaços”. E continua. Estas representações são carregadas de inter-pretação do que se viu, viveu e internalizou e se manifesta como me-mória, resultado das disposições materiais e da dimensão simbólica.

O espaço como produto de inter-relações, como esfera da possibilidade da existência da multiplicidade e como um processo de devir, são proposições discutidas no texto Filosofi a e política da espacialidade: algumas considerações. Os autores propõem a não opo-sição entre espaço-tempo. Aqui, há uma ideia essencial para a nossa conversa. O espaço está sempre sendo feito, nunca está finalizado, nunca se encontra fechado, porque tanto o espaço quanto a história são abertos. Nesta perspectiva, Massey e Keynes (2004) afirmam:

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O espaço não é mais domínio do que está morto (Bérgson, os estruturalistas), nem simplesmente um corte horizontal através do tempo, nem uma dimensão cuja especificidade fica persistentemente oclusa ao ser lida em termos de tempo-ralidade (muitas das versões correntes sobre “globalização”). Mais apropriadamente, o espaço se expressa agora como parte (e uma parte necessária) da geração e da produção do novo. Em outras palavras, a questão aqui não é a ênfase so-mente na produção do espaço, mas o próprio espaço como integrante na produção da sociedade. Indubitavelmente, o argumento é que se nós queremos que o tempo (o futuro) seja aberto (como Bérgson fez e como muitos agora estão afirmando) então precisamos conceitualizar o espaço desta forma, isto é, como um espaço inteiramente aberto e vivo.

Se assim é, a escola pensa o futuro fossilizado, prepara a criança para ele, na expectativa de que a criança seja o que se foi, seja o que se sabe e não o que poderá vir a ser. Como se as coisas mais importantes estivessem por vir (o vir previsível). Acredita que por conhecer o passado e o presente, na lógica da causalidade linear, o futuro pode ser predito (Morin, 1986). Então, mais uma vez, devemos viver o luto. O luto pela perda do que nunca se teve. O luto pela perda da escola ideal, daquela que projetamos a partir das memórias, do vivido, do passado, do futuro, aquela que por existir na imaginação e de tão perfeita não se concretiza nunca.

A criança vem para a escola com um espaço imaginado do que seria essa escola e não encontra o seu lugar. Ou melhor, encon-tra a marca do seu não-lugar. Quantos não-lugares para a criança existem na escola? Nas paredes e seus desenhos que, de tão perfei-tos, afrontam o nosso olhar e que, de tão prontos, não convidam a imaginar; nos desenhos das próprias crianças que, de tão direcio-nados, já não as identificamos a não ser no desejo do adulto que os propuseram; no excesso de informação; na autoridade dos nos-sos discursos; no movimento dos corpos dóceis enfileirados. Arroyo (1999, p. 15) traduz essa idéia da seguinte maneira:

O que orienta os projetos pedagógicos é construir na in-fância o adulto desejado, ordeiro, trabalhador, civilizado, integrado na ordem moderna. A pedagogia termina por não olhar para a infância. As teorias pedagógicas não re-fletem nem teorizam sobre a especificidade desse ciclo da vida, mas sobre o ciclo da vida adulta. Sobre um protótipo

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de adulto projetado na infância. (...) No rosto das trinta ou quarenta crianças e adolescentes de cada turma vemos o adulto que a sociedade, o trabalho, o concurso, o vestibu-lar espera. Não vemos nem conseguimos ver a infância, mas o adulto que nela sonhamos.

O arranjo do espaço determina a aprendizagem. Será que ao dimensionarmos o espaço na escola (pensamos aqui no espaço material propriamente dito), não dimensionamos também o tama-nho do desejo e das expectativas que temos sobre a criança? Será que a criança expressa o que nós sugerimos que ela deva expres-sar, esculpindo seu desejo?

Mayumi Lima (1989, p. 14) enfatiza que “é preciso, pois, deixar o espaço suficientemente pensado para estimular a curiosi-dade e imaginação da criança, mas incompleto o bastante para que ela se aproprie e transforme esse espaço através da sua própria ação”. Pelo tempo que não dispomos na atualidade tendemos a nos adiantar à própria imaginação da criança. Se o tempo presente tem pressa, o espaço para criá-lo se restringe. Se a técnica incide sobre a maneira de pensar, na dimensão subjetiva da percepção do tempo-espaço, para onde vai a imaginação humana?

Pergunta interessante. E deve nos remeter ao tempo-presente. O espaço do saber não é privilégio somente da escola ou da família, porque as transformações operadas pelas novas tecnologias (que possivelmente estarão literalmente velhas ama-nhã) e pela educação midiática produzem também novas formas de relação com o saber. É legítimo pensar que a dimensão do espaço cerceia ou não a imaginação e incide na construção da identidade e da subjetividade humana.

E o espaço do saber na escola é atravessado por estas ques-tões. A criança da Idade Mídia, parafraseando Jobim e Souza (2000), não legitima mais o professor como sujeito da verdade e nem a es-cola como lugar de conhecimento, porque há outras verdades e ou-tras fontes que o produzem. Há um paradoxo vivido nesta relação com o conhecimento. A mesma autora (p. 149) sinaliza que:

A escola, ao longo de sua existência, vem se transforman-do no lugar por excelência, onde a criança arrisca-se a perder, talvez para sempre, a possibilidade de uma relação digna e verdadeira com o conhecimento e suas infinitas possibilidades de transformação do sujeito e da cultura. A

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relação estritamente técnica e instrumental com o conhe-cimento e a vivência de atividades escolares desprovidas de significado, tanto para o aluno como para o professor, preenchem, cotidianamente, o vazio monumental em que muitas escolas se transformaram. Se estas cenas continua-rem a se repetir nas inúmeras salas de aula pelo país afora, que outras opções poderão intervir e vivificar o encontro entre professor e aluno? Como transformar as relações com o saber no espaço escolar?

Se o espaço representa a dimensão do próprio homem, no caso da escola, ele traduz a compreensão do processo de ensinar e de aprender de quem o organiza. Assim, podemos ar-ranjar e rearranjar o espaço com base nas crenças que temos sobre desenvolvimento, interação, concepção de infância, etc. A contaminação do nosso olhar, a interferência do modo de ver o mundo, extingue a noção de neutralidade.

Cada sujeito é, ao mesmo tempo, expressão de sua indivi-dualidade (a ilha) e de sua coletividade (as redes). “Assim, de nada adianta agir no indivíduo isolado. De nada adianta agir sem uma perspectiva de intervenção nas relações que ele estabelece com os outros, o eu só se produz, só se constitui, nas relações, nos enre-damentos com os demais” (Ferraço, 2002, p. 131). Dito de outra forma, os cotidianos escolares tornam visíveis suas forças não nas ações pontuais sobre os sujeitos que os habitam, nas práticas so-litárias, mas nas emaranhadas e complexas redes de saberes que neles são produzidas e compartilhadas.

Retomando os pontos de partida

Precisamos retomar o caminho. Infância, subjetividade e espaço foram questões ponderadas neste texto a partir das vozes que circulam no interior da pesquisa citada anteriormente. E o que revelaram estas vozes? Revelaram a necessária e urgente tare-fa de enxergarmos o outro na sua incompletude, na sua constru-ção-desconstrução ininterrupta.

Quem é a criança hoje, ou, como a infância tem se cons-truído em meio à sociedade da informação, do consumo, da virtu-alidade das relações, do incremento da tecnologia? Da sociedade que produz babynautas, que produz sentidos operados na lógica

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do consumo? Estas foram questões debatidas muito menos no sentido de argumentar que a mídia, a tecnologia ou o consumo são os vilões para o estado de coisas em que vivemos e muito mais para sinalizar as condições de produção do conceito de infância e a experiência de ser criança na atualidade. Criança que, para, além disso, reorganiza o mundo pelo seu olhar. Criança que transpassa da ingenuidade à transgressão.

Quando as crianças dizem: agora chega. Este é o livro de Francesco Tonucci, que denuncia urgente a necessidade de ouvir as crianças. E ouvi-las significa dar condições para se expressarem, precisar daquilo que dizem. As crianças sabem. Tanto sabem que às vezes se esgotam de nos explicar. E o fazem de maneira simples como na voz dessas crianças: não é justo que as crianças tenham que pagar para brincar; para brincar, as crianças deveriam ter o mesmo espaço que os adultos têm para estacionar os automóveis; não importa se as praças são pequenas, basta que sejam muitas; mas se brincar é um direito, então deve ser também um dever. Além da fala das crianças, o autor (p. 199) também nos provoca, revelando que:

Hoje a cidade não pode ser mais considerada de todos. (...) nesta cidade profundamente mudada, pensou-se em dedi-car às crianças espaços especializados e reservados, uma es-pécie de reservas indígenas nas quais possam ser garantidas suas necessidades de lazer, desenvolvimento e aprendiza-gem. Nascem assim os quartos das crianças nas casas, as creches, as escolas infantis, as ludotecas, as pracinhas para crianças, os supermercados de brinquedos e até os grandes parques de diversão. Por outro lado, desaparecem as crian-ças das escadas, dos pátios, das calçadas, das ruas, das pra-ças, dos parques, todos os lugares considerados perigosos.

A subjetividade, nomeada hoje de polifônica (para aludir ao conceito de Guatarri e parafrasear Bakthin), constrói-se a partir do movimento das várias dimensões humanas: a individual, a social, a institucional. Diante do exposto, acreditamos na interdependên-cia entre infância-subjetividade-espaço, na determinação do espaço como forma de produção da subjetividade da criança, que se desvela a partir da multiplicidade de saberes e de práticas vividas pelos sujei-tos em diferentes espaços-tempos, nas suas tradições e contradições.

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Notas

1 Este texto é o resultado dos diálogos produzidos pelo grupo de pesquisa da Fa-culdade de Educação da UFJF, que investiga A horizontalização e a verticalização do espaço nas salas de aula de Educação Infantil, coordenado pela Professora Doutora Léa S. Pinto Silva.

2 O artigo: Re-visitando a infância contemporânea: passagens, possibilidades e des-tinos, de Lúcia Rabello de Castro, está disponível em: <www.scielo.br>.

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Educ. foco, Juiz de Fora,

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