quando o sofrimento bater à sua porta - pe. fábio de melo

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Page 3: Quando o sofrimento bater à sua porta - Pe. Fábio de Melo

EDITORA: Cristiana Negrão

CAPA: Tiago Muelas Filú

PROJETO GRÁFICOE DIAGRAMAÇÃO:Claudio Braghini lunior

PREPARAÇÃO:Lilian Miyoko Kumai

REVISÃO: Patrícia de Fátima Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Meio, Fábio deQuando o sofrimento bater à sua porta / Fábio de Meio

São Paulo, SP : Editora Canção Nova, 2008.

1. Auto-ajuda 2. Conduta de vida 3. Sofrimento - Aspectospsicológicos I. Título.

Índices para catálogo sistemático:

1. Sofrimento: Aceitação: Psicologia aplicada158.1

EDITORA CANÇÃO NOVARua São Bento, 43 - Centro01011-000 São Paulo SPTelefax [55] (11) 3106-9080e-mail: [email protected]

[email protected] page: http://editora.cancaonova.com

Todos os direitos reservados.Quando o sofrimento bater à sua porta ...

é melhor abrir.ISBN: 978-85-7677-122-7

© EDITORA CANÇÃO NOVA, São Paulo, SP, Brasil, 2008

Page 4: Quando o sofrimento bater à sua porta - Pe. Fábio de Melo

Tristes ainda seremospor muito tempo,

embora de uma nobre tristeza,

nós, os que o sol e a lua todos os dias encontram

no espelho do silêncio refletidos,

neste longo exercício de alma.

Cecília Meireles

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Para Maria das Dores Lasmar, mulher que temdores no nome, mas esperança na alma.

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Sumário

Essência de vidro 15

Primeiras palavras 17

Capítulo O I - As múltiplas faces do sofrimento 21

Capítulo 02 - A natureza do sofrimento 27

Capítulo 03 - O sofrimento como experiência de limite 33

Capítulo 04 - Aprofundando o conceito de limite 39

Capítulo 05 - Respeitar os limites. mas nunca temê-Ios 49

Capítulo 06 - O limite como possibilidade 55

Capítulo 07 - O amor que nasce do limite 61

Capítulo OS - Por que sofrer? 69

Capítulo 09 - Como sofrer? 73

Capítulo IO - O sofrimento de não ter resposta 79

Capítulo I1 -A serenidade de saber conviver com a pergunta. S7

Capítulo 12 - O pai. o menino e o rio 93

Capítulo 13 - Os frutos que podemos colher 97

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Capítulo 14 - O sofrimento que buscamos 103

Capítulo 15 - Deus e o sofrimento humano 109

Capítulo 16 - Deus e os absurdos do mundo 119

Capítulo 17 - E agora,José? 129

Capítulo 18 - A velhice e as perdas naturais 141

Capítulo 19 - O sofrimento da travessia 155

Capítulo 20 - O sofrimento de saber-se inútil 161

Capítulo 21 - Sofrimentos que nascem de defeitos cristalizados 173

Capítulo 22 - Quebrando o cristal 181

Capítulo 23 - Lidando com os sofrimentos 191

Capítulo 24 - Racionalizar para viver melhor 20 I

Capítulo 25 - Administrando os sofrimentos 21 I

Capítulo 26 - Quando o sofrimento merece ser sofrido 219

Capítulo 27 - Sofrimento - do absurdo ao sentido 225

Capítulo 28 - Acolhendo alegrias possíveis 231

Capítulo 29 - Transformados pelo sofrimento : 237

Essência de vidro

Quando os nossos pés descalços se colocam diantedas duras pedras do sofrimento ...

quando a fragilidade de nossa condição nos leva a tri-lhar o inevitável caminho das sombras ...

quando a vida nos revelar que somos portadores deuma essência de vidro ...

é importante que a gente se livre da pressa e da facili-dade das respostas prontas ...

porque diante da dor sofrida, mais vale um silêncio,uma pausa, que uma palavra inoportuna.

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Primeiras palavras ...

Sofrer é como experimentar as inadequações davida. Elas estão por toda parte. São geradas pelas nossasescolhas, mas também pelos condicionamentos dos quaissomos vítimas.

Sofrimento é destino inevitável, porque é fruto doprocesso que nos torna humanos. O grande desafio é saberidentificar o sofrimento que vale a pena ser sofrido.

Perdemos boa parte da vida com sofrimentos desne-cessários, resultados de nossos desajustes, precariedades efalta de sabedoria. São os sofrimentos que nascem de nossaacomodação, quando por força do hábito nos acostuma-mos com o que temos de pior em nós mesmos.

Perdemos a oportunidade de saborear a vida só por-que não aprendemos a ciência de administrar os proble-mas que nos afetam. Invertemos a ordem e a importânciadas coisas. Sofremos demais por aquilo que é de menos.

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E sofremos de menos por aquilo que seria realmente im-portante sofrer um pouco mais.

Sofrer é o mesmo que purificar. Só conhecemos ver-dadeiramente a essência das coisas à medida que as purifi-camos. a mesmo acontece na nossa vida. Nossos valoresmais essenciais só serão conhecidos por nós mesmos se ossubmetermos ao processo da purificação.

Talvez assim descubramos um jeito de reconhecer asrealidades que são essenciais em nossa vida. É só desvendar-mos e elencarmos os maiores sofrimentos que já enfrentamos,e quais foram os frutos que deles nasceram. Nossos maioresvalores costumam florescer a partir de nossos maiores sof~i-mentos, os mais agudos. Por isso se transformam em valores.

a sofrimento parece conferir um selo de qualidadeà vida, porque tem o dom de revesti-Ia de sacralidade, deretirá-Ia do comum e elevá-Ia à condição de sacrifício.

Sacrifício e sofrimentos são faces de uma mesma rea-lidade. a sofrimento pode ser também reconhecido comosacrifício, e sacrificar é ato de retirar do lugar comum, tor-nar sagrado, fazer santo.

Esta é a mística cristã a respeito do sofrimento hu-mano. Não há nada nessa vida, por mais trágico que possa nosparecer, que não esteja prenhe de motivos e ensinamentosque nos tornarão melhores. Tudo depende da lente queusamos para enxergar o que nos acontece. Tudo dependedo que deixaremos demorar em nós.

Spinoza escreveu: "Percebique todas as coisasque temiae receava só continham algo de bom ou de mau na medida emque o ânimo se deixava afetar por elas. "

a filósofo tem razão. A alegria ou a tristeza só poderãocontinuar dentro de nós à medida que nos deixamos afetarpor suas causas. É questão de escolha. Dura, eu sei. Difícil,reconheço. Mas ninguém nos prometeu que seria fácil.

Se hoje a vida lhe apresenta motivos para sofrer, ouseolhá-Ios de uma forma diferente. Não aceite todo este con-texto de vida como causa já determinada para o seu fracasso.Não, não precisa ser assim.

Deixe-se afetar de um jeito novo por tudo isso que jáparece tão velho. Sofrimentos não precisam ser estados de-finitivos. Eles podem ser apenas pontes, locais de travessia.Daqui a pouco você já estará do outro lado; modificado,amadurecido.

Certa vez, um velho sábio disse ao seu aluno que, aolongo de sua vida, ele descobriu ter dentro de si dois cães- um bravo e violento, e o outro manso, muito dócil.

Diante daquela pequena história o aluno resolveuperguntar - E qual é o mais forte? a sábio respondeu - oque eu alimentar.

a mesmo se dará conosco na lida com os sofrimentosda vida. Dentro de nós haverá sempre um embate estabe-lecido entre problema e solução. Vencerá aquele que nósdecidirmos alimentar ...

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Capítulo

01

As múltiplas faces do sofrimento

Nas estradas da vida, o sofrimento é uma passagemobrigatória.

Causa de muitos dizeres, motivo de muitos motivos,o sofrimento humano figura nas mais diversas culturascomo um dos assuntos mais recorrentes. Muitos ramos deconhecimento já se ocuparam dele. Ramos diferenciados,evidenciando suas inúmeras faces.

o sofrimento é naturalmente interessante. Ele nosinstiga a uma aproximação respeitosa, pois parece conden-sar boa parte do significado da vida. Compreender o sofri-mento parece nos oferecer uma chave de leitura para todasas questões humanas, afinal ele perpassa toda a problemática

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da existência. Ele é o "lugar" onde reconhecemos nossa huma-nidade em sua crueza mais venturosa.

A filosofia, desde sua matriz grega até os dias de hoje, em-penhou-se profundamente em suas tentativas de compreendero sofrimento e suas causas mais profundas. A teologia semprese esmerou em articular a problemática da Revelação de Deus,centro de suas investigações, com sua busca incansável por res-postas a respeito do sofrimento da condição humana.

A psicologia sempre se mostrou desejosa de fornecer ca-minhos que aliviassem o peso de nossas mazelas. O objetivo desua pesquisa é favorecer ao humano uma estrutura psíquica umpouco mais harmoniosa, livrando-o das neuroses e o ajudandoa conviver melhor com os limites que lhes são próprios.

A medicina, enquanto capacitada para dissecar a mor-fologia do sofrimento, isto é, o corpo que padece, avançouterritórios interessantíssimos na luta contra a dor. Ela traba-lha com o corpo e sua condição de "matéria temporárià'.

O corpo é matéria limitada, isto é, ele é propenso aoslimites e regras do meio em que está localizado: O corpo,quando exposto ao calor, sofrerá as conseqüências do aque-cimento. Quando exposto ao frio, sofrerá as conseqüênciasdo resfriamento. Somos vulneráveis, e esta vulnerabilidadeé a porta de muitos sofrimentos.

O corpo é o território da dor. É nele que o sofrimentoe todas as suas faces se concretizam. Quando violentadopor alguma causa, o corpo responde com a dor.

A dor é uma resposta natural do corpo. Ela sinalizapara o limite que possuímos. É por isso que desde mui-to cedo aprendemos a driblar os nossos limites. É simples.Minimizar os limites é uma tentativa de evitar a dor. Esteaprendizado nós o fizemos a partir de regras práticas donosso dia-a-dia. Desde criança ouvimos a frase: "Não põe amão nofogo porque queima!"

O imperativo da expressão era uma forma de apontaros limites que nos são próprios. Não temos uma pele resis-tente ao calor das chamas. Possuímos este limite, e com eleteremos que viver.

A medicina, ao ocupar-se das fragilidades do corpo,busca encontrar caminhos para superar, ainda que tempora-rianlente, os poderes de sua finitude. O corpo, por estar su-jeito à regra que postula que "tudo o que é vivo um dia mor-rerá", experimenta constantemente o perigo da interrupçãode sua duração. Este é o objeto da medicina. O corpo é amatéria da pesquisa, dos avanços e também dos fracassos.

A medicina não pára de buscar caminhos. Nas úl-timas décadas, temos acompanhado uma forte campanhadermatológica, solicitando à população que implante narotina de suas vidas o uso do protetor solar. Com o proble-ma das fendas na camada de ozônio, o aquecimento globalnos legou, além dos muitos que já temos, um novo limite.Nossa pele não suporta a incidência dos raios que chegamdiretamente até nós. Sem a camada de proteção natural,

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que foi destruída pelas constantes agressões de nossas socie-dades industrializadas, somos agora obrigados a buscar umrecurso que nos proteja dos raios nocivos do sol.

É a medicina tentando driblar o limite do corpo. Éa tecnologia aplicada à preservação da saúde. É a tenta-tiva de minimizar os sofrimentos físicos, aqueles que asradiografias detectam e que os exames revelam. É o cor-po e suas possibilidades de dor. É a carne humana e suafragilidade exposta; é o ser vivente e sua luta desesperadacontra a morte.

Mas não temos o desejo de nos ater a estas ques-tões. O nosso querer é menos pretensioso. Queremos, comsimplicidade, buscar tecer uma reflexão que nos favoreçaum jeito de acolher os sofrimentos que nos afligem, sempermitir que eles nos destruam ou nos retirem a vontadede viver.

Para favorecer este nosso desejo e torná-Io possível,consideraremos o sofrimento a partir da díade: corpo -alma. Dessa forma, ficará mais seguro continuar o Caminhoque desejamos.

Os sofrimentos do corpo são os diretamente ligadosao contexto da dor localizada, da dor material, física. Ocorpo que envelhece, o corpo que padece com os limitesdo tempo.

Já os sofrimentos da alma são os que se referem aosdesatinos dos afetos, aos conflitos espirituais, emocionais,

morais, enfim, tudo o que dói na vida humana e que nãotem uma materialidade, isto é, não pode ser radiografado,nem tampouco identificado em exames laboratoriais.

Quando o nosso sofrimento é localizado e pode sercurado mediante prescrições de remédios, estamos dian-te de problemas para os quais a medicina já encontroua solução. Se temos uma enfermidade psíquica, fruto dedesordens químicas que geram tristezas, ou de distúrbiosemocionais, provenientes de nossos distúrbios cerebrais, amedicina oferece inúmeros caminhos e possibilidades parasararmos estas questões.

Mas o que podemos fazer quando estamos diante doslimites que são próprios da vida e para os quais não existemremédios? Como reagir diante dos acontecimentos trágicosa que toda pessoa está sujeita? Como é que podemos nosposicionar diante de tudo o que nos infelicita nestes tem-pos tão marcados por inseguranças e violências?

Há algum jeito, alguma forma de fortalecer nossa es-trutura humana para que o sofrimento seja enfrentado semque ele se torne a causa de nossa ruína?

É possível administrar os sofrimentos e minimizarsuas ações sobre nós? A dor pode nos ensinar alguma coi-sa? Podemos aprender alguma lição com os limites que sãopróprios da vida?

É sobre estas questões que queremos refletir.

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Capítulo

02

A natureza do sofrimento

Quando o sofrimento bater à sua porta é melhorabrir. Resistir ou negá-Io é apenas um jeito de fugir do quemais cedo ou mais tarde você terá que enfrentar.

Sofrimentos são naturais na vida humana. Eles se dãono percurso dos acontecimentos que nos envolvem.

Quando dizemos que algo é "natural", nós o faze-mos para demonstrar que não foi acrescentado, mas fazparte da vida. É natural porque pertence ou refere-se àsleis que nos regem e configuram a nossa condição hu-mana. É natural porque pertence à ordem das coisas quenascem espontaneamente.

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Um dos grandes nomes da filosofiacontemporânea, o filó-sofo Schopenhauer, num ensaio intitulado "Dos Fundamentosda Moralidade", faz a seguinte pergunta: "Como épossível que osofrimento que nem é meu e nem me interessa me aftte de imediatocomo sefOsse meu e com fOrça tal a ponto de impelir-me à ação?"

A pergunta do filósofo é instigante. Para ele, o conta-to com o sofrimento do outro nos recorda quem somos. Osofrimento é uma espécie de espelho onde nos enxergamosa partir do outro. No outro que sofre o meu eu está refleti-do em sua totalidade. Ao encontrar o outro e sua precarie-dade, nele descubro a minha verdade fundamental, minhacondição expressa e viva em toda criatura.

O filósofo teoriza aquilo que todos experimentamosna prática. O sofrimento é uma das molduras que dão sus-tento à nossa existência. É o tecido que envolve a vida.

Nós o experimentamos desde o momento de nossaconcepção. Pesquisas comprovam que muitas crianças, noprocesso de gestação, já sofrem com a ansiedade e com al-guma forma de sofrimento da mãe. Muitos medos e inse-guranças manifestados ao longo da vida parecem ter raízesem rejeições acontecidas ainda na vida intra-uterina. Nemmesmo na proteção de nossa primeira morada estamos li-vres do sofrimento.

Nascemos a partir de movimentos de contrações, istoé, em movimentos de estreitamentos, compressões, enco-lhimentos. As contrações proporcionam o movimento doato de nascer. É por meio delas que a criança se encaminhapara o mundo. A mãe sofre o processo de expulsar o filhode seu ventre. Toda a musculatura trabalha num mesmoobjetivo - encaminhar a criança para o nascimento.

Ao perceber o movimento que a retira do ventre, acriança também inicia um processo de dor. Terá que sairda tranqüilidade do útero, do lugar da segurança, parapassar pelo estreito caminho materno que a conduzirá aonovo mundo.

Nascer já é uma forma de sofrer. Sofrimento físicoe psicológico. Físico porque envolve o movimento de es-forço muscular, rompimentos, sangramentos. Psicológicoporque representa mudanças de fases para a mãe e paraa criança.

O caminho estreito por onde chegamos ao mundojá parece ser uma metáfora do que será a nossa vida. Nemsempre as passagens são amplas, facilitadas.

Outra questão que já nos coloca diante de sofrimen-tos inevitáveis é a nossa condição de seres inacabados. Osespecialistas nos ensinam que o ser humano é o ser vivo quenasce mais incompleto. Nossa incompletude nos expõe amuitos sofrimentos naturais, próprios de quem precisa decuidados para sobreviver.

O nascimento também é uma experiência de sofri-mento. O parto não é doloroso somente para a mãe, mastambém para o filho.

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Nascemos incapazes de ficar eretos por nós mesmos,diferente de tantos outros animais que já se equilibram so-zinhos logo após o nascimento.

Sofremos cólicas terríveis nos primeiros meses denossa vida. São os movimentos de ajuste que a natureza fazaos poucos, conduzindo-nos às adaptações necessárias paracada fase.

Sofremos quando vivemos as distâncias dos queamamos. Sofremos com os afastamentos temporários, asprimeiras experiências de solidão, quando por necessida-des comuns à vida de todos nós temos que ser cuidadospor estranhos.

Sofremos e assim nos firmamos como humanos.Homens e mulheres que recolhem diariamente o sentido deser o que são ê de sentir o que sentem.

O inegável é: o sofrimento é humano, o sofrimentoé natural.

Os limites do mundo os meus pésnão ultrapassam

mas o que de mais alto existe,minha alma

alcança.

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Capítulo

03

o sofrimento como

experiência de limite

Sofrimentos nascem de limites. Toda vez que preci-samos lidar com tudo o que não podemos é natural quesejamos acometidos por sofrimentos.

Gosto de compreender o conceito de limite comofronteira. Fronteiras podem representar o fim, como tam-bém o início. Tudo depende de como a fronteira é vistapor nós.

Dizem que no interior do Amapá, no limite extremodo país, havia um homem pescando em uma pequena ca-noa, quando foi avistado por alguns homens que estavam

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em outro barco, que lhe perguntaram: "É aqui que o Brasiltermina?". E ele respondeu: "Não, é aqui que ele começa!".

As perspectivas eram diferentes. O lugar apontadopor alguns como fim, para outros era apenas o início. Issoé fronteira.

Somos frágeis, vulneráveis, e sabemos disso. Temosum limite que nos marca, mas este limite não pode nosdeterminar. Não é esse o seu papel. Ele pode servir comosinal para as mudanças que deles nascem.

Uma vez apreendido como impulso positivo para avida, o limite perde o seu caráter definitivo e tão destrui-dor. É dessa forma que poderemos minimizar os efeitos dossofrimentos que nascem de nossos limites.

Primeiramente, precisamos ter esta consciência - so-frer é o mesmo que estar vivo. Sofremos por diversas causase motivos; sofremos de diversas formas. Há sofrimentosfísicos, sofrimentos psíquicos, mentais. Por vezes doemseparados. Em alguns momentos, nós os experimentamosjuntos, concatenados num mesmo movimento.

Sofremos porque somos limitados. Não temos comonegar esta realidade. O que precisamos é assumi-Ia, mas deum jeito certo.

O que não podemos é transformar o fato de termoslimites numa limitação ainda maior. Saber-nos limitados éapenas um jeito de acolher a condição. Ao reconhecer-nosassim, isso não nos coloca na condição de um limite abso-luto, cerceador. Não, muito pelo contrário. O conceito delimite é positivo, pois nos dá a capacidade de reconhecer oque podemos e o que não podemos.

É neste primeiro acolhimento da condição que pas-samos a lidar bem com os sofrimentos que nascem dos

Pode ser que, em alguns momentos da nossa vida, te-nhamos experimentado a mesma coisa. Estivemos diante defatos que poderiam ter representado o fim, mas que se trans-formaram em início. Dependerá de como os interpretamos.

É a experiência do limite como fronteira. Momentosem que teríamos tudo para desistir, mas que se transforma-ram em impulsos para novas iniciativas somente porque osenxergamos de uma nova forma.

A vida é constante experiência de limites, isto é, defronteiras. Estamos em êxodos intermináveis, passagensque realizamos todos os dias.

São portas que se fecham, outras que se abrem. Pessoasque se vão, pessoas que chegam. Oportunidades que termi-nam, outras novas que começam.

O importante é não transformarmos as passagens emrealidades definitivas, mas perceber que a vida segue ummovimento natural que nos encaminha sempre. É nestesentido que precisamos aprender a lidar com as fronteiras,com os limites.

Olhar para o que não podemos e nisso permanecer é,de alguma forma, prender-nos ao maior de todos os limites.

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nossos limites. Limites, quando assumidos, podem nos di-recionar a um processo de constante aperfeiçoamento; mas,se negados, podem nos fazer regredir e até mesmo inviabi-lizar a nossa realização humana.

A psicologia nos ensina que negar uma realidade, cujamatéria são o limite e o sofrimento que dele decorre, tendea torná-Ia ainda mais torturante e opressiva. A negação éum recurso que não minimiza o limite, ao contrário, ela ofortalece, potencializa-o.

O exemplo é simples, mas pode ajudar. Um atletanão deve negar os limites que possui. Não pode, porém,enxergar neles o fim de suas possibilidades. Ele sabe que suacondição é marcada pelo limite, mas só poderá saber ondeé que está o limite do seu limite, se investir em superaçõesconstantes, mediante os treinamentos.

nós o temos enquanto condição. Énossa marca, faz parte denosso estatuto. Num segundo momento, este limite pri-meiro se manifesta em outros que fazem parte do cotidianode nossa vida.

Somos limitados e não podemos mudar isso.Funcionamos a partir desta regra. O limite é humano. Masos desdobramentos dele, estes sim podem ser superados.

É o caso do atleta. Ele tem como limitação um corpoque se cansa, que sofre dores, que precisa de repouso e quenão pode ser desconsiderado em sua fragilidade. Mesmo as-sim, nunca deixa de vencer o que pode, dentro dos limitesque possui. Ele se respeita e, ao se respeitar, se supera.

Ele cria o seu paraíso, isto é, o lugar de suas possibili-dades, e dentro deste paraíso, busca a superação constantede tudo o que pode fazê-Io fracassar.

Os obstáculos não podem ser causa para sua desistên-cia, porém devem figurar em sua vida como um sinal detudo aquilo que ainda será melhor.

Ao respeitar as limitações que lhe são próprias e aodeixar de temê-Ias, ele se colocará no caminho para sua su-peração. Mas, ao superar aquele limite, um outro se colo-cará em seu caminho. E novamente o processo se sucederá,de maneira que o atleta nunca se sentirá pronto.

Esta forma de lidar com as limitações é sempre po-sitiva. Reparem que, nesta perspectiva, a interpretação dolimite é feita a partir de dois aspectos. Em primeiro lugar,

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Capítulo

04

Aprofundando o conceito de limite

Há uma reflexão interessante sobre a questão do li-mite e a origem dos sofrimentos que podemos fazer a partirda Antropologia Teológica.

Todos nós sabemos que a SagradaEscritura, mais preci-samente em Gn 3, postula a entrada do sofrimento no mundoa partir do que hoje compreendemos como pecado originaL

O contexto do pecado original é a desobediência dosprimeiros humanos. Adão e Eva, dentro do relato da pri-meira queda, são os protagonistas do acontecimento quemudou a história da humanidade. Um erro que ainda re-percute em nós, uma vez que não estamos mais livres dacondição de pecadores.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

Dessa forma, o pecado original ficou diretamente as-sociado à entrada do sofrimento no mundo. A expulsão doparaíso é a metáfora desta nova condição. Antes, a vida erasem sofrimentos, sem dores.

Depois da queda, a vida se torna fardo; os filhos nas-cerão entre dores, e o suor do rosto será a condição paraque o alimento seja conquistado.

Vejabem, não queremos fazer uma exegesedeste texto.O que queremos é buscar o significado do pecado original ecolocá-Io ao lado do conceito de limite. Este paralelo podenos favorecer uma abordagem bastante sugestiva para nossacompreensão a respeito do sofrimento.

O termo pecado é muito bem compreendido portodos nós. Somos pecadores e temos conhecimento decausa do que ele representa em nossa vida. Pecado é todoato falho cometido de forma consciente, que tem o po-der de reperc'utir em Deus, em nós, e na sociedade emque vivemos.

O pecado entrou no mundo e nos deix~u uma heran-ça. Sou pecador naquele que pecou primeiro. Temos umaherança adâmica, isto é, entramos no testamento de Adão.Queiramos ou não.

Tudo bem. Somos pecadores, por condição. Mas nemsempre empregamos os termos pecador e pecado de modocorreto. Talvez seja por isso que existam tantos equívocos arespeito do assunto.

Ao olhar uma criança recém-nascida, é possível dizerque aquela criança é pecadora? Que teologia estranha é estaque atribui culpa a alguém que ainda desfruta a bonita faseda inocência?

Pois bem, aqui está a grande questão. Ao dizer queuma criança é pecadora, a teologia cristã pretende dizerque ela participa da herança do primeiro pecado e que, por-tanto, ela já possui as marcas do primeiro erro. Tais marcasfazem-na predisposta ao pecado, sem ainda ter cometidoalgum ato pecaminoso. Ou é pecado ser gente?

Note. Esta questão é muito sutil e precisa ser bemexplicada. Um recém-nascido não cometeu absolutamentenada que o fizesseser considerado como pecador. Ele aindanão cometeu o pecado, mas é possuidor do limite que po-derá lhe fazer pecar.

Não sabemos quando esta criança verdadeiramentecometerá o primeiro pecado na vida, afinal a teologia nosdiz que para ser pecado é preciso ter consciência do errocometido. Uma criança ainda não pode ter consciência doque é certo ou errado. Tudo isso ela aprenderá a partir dodesenvolvimento do seu juízo moral.

Agora, e se modificarmos o termo pecador por limita-do? Não ficaria mais fácil de compreender? Olhamos parauma criança e dizemos que ela possui o limite original. Elatem uma condição da qual não poderá se libertar. Ela é finita.Serávulnerávd ao tempo, ao envdhecimento, à dor e ao erro.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

~ão existe aquele ditado popular que errar é h ~Ed' umano.

ISSOque estamos falando .

.~á uma cançãol interessante que traduz bem estac.ondIçao do ser humano. Aparentemente ela parece ofen-sI~a.aos que pregam os valores do céu, mas não. Ela apenasreI~mdica o direito de se alegrar com o fato de ser precário.Vejamos...

A alegria do pecado toma COntade mim

e é tão bom não ser divina.

Me cobrir de humanidade me fascina

Atent~ que. os autores utilizam o termo pecado,mas, s~voce analIsar a partir do que já refletimos, poderácondUl.r que o termo pecado quer referir-se ao concei-to de ltmite. A letra recorda a alegria que ,o limite pode

AProv~car,caso seja compreendido de maneira positivao dIzer '" b .~ ~que e om não ser divina", a personagem da

cançao nao desvaloriza a condição divina mas apena .. d' d ' s reI-

vm Ica o ireito de ser humana. Reivindica o d' . dser d uelto e

o qu~ po e e naturalmente de se livrar do peso de serquem nao é.

1 Ca~ ~ Osso- Zélia Duncan / Paulinho Moska.

É tão lindo identificar nestes versos aparentementeagressivos,dedicados ao Sagrado, o desejo de colocar a vidaem ordem. Sejamossinceros.O discurso religiosodesconside-rou muitas vezesa nossa humanidade. Uma vez que queriamque nos transformássemos em anjos. Mas não nascemos paraisso. Os versos solicitam que o mundo seja mais humano. Oformato angelicalnão funcionou. Deus não conseguiu entrarno mundo porque asasasde nossapretensa santidade não per-mitiram que Elepisasseo nosso chão.A experiênciareligiosa,apartir de uma mística desencarnada, expulsou Deus da histó-ria. Deixamos de viver o bonito processo da continuidade daencarnação de Jesus, o Cristo, na encarnação de nossavida.

A confissão continua ...

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Mergulhe nestes versos finais. Quantas vezes reco-nhecemos em nós esta fuga dos defeitos a partir de másca-ras perfeitas?

Por que temos tanta dificuldade em lidar com nossasprecariedades? Por que negamos tanto nossa condição hu-mana e os limites que nascem dela?

É pecado ser humano? Não. É apenas ser limitado.Mas este limite não precisará ser causa de infelicidade. Olimite original se desdobrará em outros limites, pois a vidado limitado é assim, mas isso não o prenderá, nem tam-pouco precisará destruir suas possibilidades.

É na carne, é nos ossos que a vida é possível. Toda apromessa escatológica, esta que nos promete o céu comoherança, tem na história o seu começo. O céu começa é naspedras, na dura experiência de ser humano ..Ele nasce dosofrimento, da luta diária estabelecida para ~uperarmos oque nos ameaça e que não pode ter trégua.

Do limite da condição humana nascem os sofrimen-tos, mas este limite, ao se desdobrar no dia a dia de nossavida, pode funcionar como impulso para nossas superaçõesconstantes. Tudo depende da forma como nos posiciona-mos diante dos desdobramentos. A personagem da músicapode nos sugerir algo interessante? Creio que sim.

Primeiramente, permitindo que a alegria do limitetome conta de nós. É preciso deixar de ver a fragilidade comoum defeito. Não somos defeituosos porque somos frágeis.Tudo o que é frágil merece maior atenção. Um cristal é frágil.Quem o possui sabe muito bem que precisa cuidar dele.A fragilidade nos indica o cuidado, e não outra coisa.

Acolha o cristal que há em você. Alegre-se por serfrágil. Quem sabe assim você se abra a bonitas experiências

de cuidados.Revista-se de humanidade. Descubra nas pequenas

coisas o quanto é precioso ser humano. Não queira seranjo. Cuidado com os pesados fardos que você pres~meser caminhos de santidade. Não se esqueça que Deus nao oquer perfeito. Deus o quer santo. Só isso.

Ser perfeito é coisa muito sem graça! Tudo o que éperfeito não pode ser alterado, e por isso vira pe?a de ~u-seu. Não creio que este seja o projeto para sua VIda.DeIXede sofrer pelas metas absurdas a que você se propôs. Busquea santidade por meio de caminhos possíveis, simples.

Nós complicamos demais a vida, e por esse motivosofremos tanto. Deus é simples. Prefere os caminhos inusi-tados. Olhe ao seu redor. Veja o que é pequeno, humano etorto. Ele costuma se esconder nestes lugares.

Por vezes encontramos as pessoas buscando a Deusem realidades sobrenaturais e esperam que Ele realize acon-tecimentos maravilhosos para que possam nele crer. Nãocreio que este seja o caminho.

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As questões humanas, as mais naturais, sáo os lugarespreferidos da revelação de Deus. Um corte no dedo, umaferida que sangra, uma dor que nos atinge, em tudo issoDeus pode ser encontrado. A dor humana é lugar de reve-lação divina.

Náo é preciso que milagresgrandiosos sejam realizados.Basta que vejamos quem somos e teremos razões de sobrapara professarmos a fé na grandeza de Deus. Grandeza que semostra em detalhes miúdos e aparentemente insignificantes.

Há um jeito bonito de descobrir a Deus a partir dosnossos limites, porque quando o sofrimento nos atinge, énatural que a alma grite pela sua origem. É natural que elase desprenda de seus subterfúgios e volte ao lugar de suaprimeira morada, sua primeira segurança.

Ao· experimentar-se limitado, o ser humano vive abonita possibilidade de descobrir a Deus como respostae complemento para tudo o que lhe é ausente. Ele pro-va de Deus. Experimenta sua força a lhe sustentar, porqueao olhar nos olhos de seus limites, surpreendentemente eleconsegue descobrir os olhos de Criador.

Estar diante dos limites é como estar diante da neces-sidade de Deus. É como o filho, que diante do perigo gritapela presença do pai.

Não tenho nada que me prove a existência de Deus,

mas mesmo assim Ele continua sendo

o absoluto dos meus dias.

Nunca choveu maná no quintal de minha casa

e a imagem que tenho da Virgem Maria

nunca derramou uma lágrima.

O que tenho aqui é esta mão machucada,

este dedo sangrando,

este nó na garganta,

este humano desconsolo,

esta dor,

esta cor

e este olhar desconcertante de Deus,

deixando-me sem jeito,

ao dizer que me ama.

Fábio de Meio

Page 25: Quando o sofrimento bater à sua porta - Pe. Fábio de Melo

Capítulo

05

Respeitar os limites,

mas nunca temê-Ios

Respeito e medo são duas realidades distintas. Diantedos limites que possuímos, costumamos reagir a partir destes.dois impulsos. Ou movidos pelo respeito, ou pelo medo.

É interessante, mas a experiência religiosa passa pelosmesmos caminhos. Ou respeitamos a Deus, ou o tememos.Isto porque nós descobrimos o respeito e o medo a partirdas realidades que são superiores a nós. Por exemplo, os pais,os professores que já tivemos, as autoridades exercidas sobrenós. Todas estas situaçóes nos educaram para o respeito oupara o medo. Tudo depende de como fomos expostos a elas.

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Nem sempre a religião consegue nos ensinar o respei-to a Deus. É mais fácil ensinar o medo, e por isso o discursoreligioso deixou de atingir a muitos, ou atingiu de umaforma danosa.

Olhar nos olhos de Deus no momento da fragilidaderequer maturidade. Crer que Deus nos reconhece frágeis,pecadores, e mesmo assim continua nos amando, é desafiode considerável grandeza.

Mas uma coisa é certa. Conhecer a Deus a partir doamor é garantia de experiência frutuosa. A religião que sepauta no discurso da misericórdia tem grandes possibilida-des de formar um ser humano preparado para compreenderos limites de forma positiva e interpretá-Ios a partir da lógi-ca do respeito.

Quando descobrimos nos olhos de Deus o amor e oacolhimento, reconhecemos naquele que nos olha o respeitopor quem somos. Deus não nos sucumbe, não nos nega comohumanos, nem nos quer anjos, mas, ao contrário, Ele nospromove. Por isso Ele não é capaz de despreZar-nos em nossafraqueza. Ao reconhecer-nos amados por Ele, cresce dentrode nós, como resposta a este amor, o respeito por Ele.

Esta experiência de amor a Deus pode nos encami-nhar para o verdadeiro aprendizado do respeito aos limites.

Respeitar os limites é considerá-l os, isto é, consisteem agir de acordo com eles. Temer os limites é o mesmoque se curvar a eles.

Respeito é totalmente diferente de medo. Exemp~od d' "Naosimples é a vida social e suas regras. Quan o lzemos:

.ogo lixo na rua porque sei que a cidade não é um be~AP~-'. u1 mas coletivo", é possível perceber uma consclenCla~ ~ 6 A • destabelecida a partir de um valor. A r~gra é re .er~ncla e u~comportamento que considero saudavel. O limite qu~ a regra me recorda é positivo. A cidade não é somente mmha.

Mas se, por acaso, diante da regra, eu nã~ ti~es~edes-coberto o valor do limite, pode ser que eu ate nao.Jogasse

, c· alor mas SIm peloo lixo na rua, mas nao o rana por um v, .medo de ser descoberto e conseqüentemente repreendIdo

por minha atitude.

Neste caso não haveria um valor orientando ~in~aconduta, mas sim a força imperativa do medo. O limItenão seria compreendido como algo positivo.

Um outro exemplo.

Mariana era uma menina que tinha dificuldades de

aprender matemática. Ela temia os números e s~~ equ~-, d· m que descobriu que a matematlca naoções, ate o Ia e .

merecia o seu medo, mas sim o seu respeIto.

Como assim? - Estudando um pouco mais.

Até aquele dia sua vida escolar estava pautada pelomedo. Quanto menos sabia matemática, menos ~la estu-dava. Quanto menor era o seu conhecimento, ~alOr era o

. b medo a condUZIa por ummedo que sentla. Perce a que ocaminho vicioso e sem saída.

Page 27: Quando o sofrimento bater à sua porta - Pe. Fábio de Melo

Mariana tinha medo dos livros, por isso não os abria.Tinha medo de ter contato com o limite de não aprender.

Mas de repente a visão de Mariana foi modificada. Elasabia que aquela áreado conhecimento não precisavaser temi-da, mas sim respeitada.Fla precisavamodificar a lógicade suaação. Se não sabia, precisavase empenhar para saber mais.

Ao descobrir que precisava amenizar o medo que sen-tia, Mariana percebeu a necessidadede levarum pouco mais asério sua relação com os números. Precisavase empenhar emdobro. Em outras palavras,precisava respeitar o inimigo.

Este respeito se desdobrou em sofrimentos. Mariananão gostava de estudar aquela disciplina. Mas ela não seprendeu ao medo de sofrer. Enfrentou o desafio de apren-der, e assim começou a ver os resultados do seu sofrimento.

Ao respeitar seu limite e investir em sua superação,Mariana compreendeu que a Matemática não era o mons-tro que ela sempre imaginou que fosse.

Apenas assim ela pôde perder o medó e aprender me-lhor a lógica dos números. Mariana adentrou o lado positivodo limite que possuía. Perdeu o medo e assumiu o respeito.

O mesmo precisa acontecer conosco. Sei que vocêtambém sente medo de muitas coisas! O medo não podemudar a realidade, mas o respeito sim, pois ele sugere ati-tude. Medos nos paralisam. Respeito nos impulsiona deforma responsável.

Da mesma forma que precisamos respeitar a Deus,mediante a experiência do amor, também precisamos res-peitar os nossoSlimites, mediante a experiência do cuidado

com eles.O respeito nos autoriza a luta. O medo nos paralisa

frente ao inimigo. O respeito nos mostra o limite como eleverdadeiramente é. Enquanto que o medo dilata-o porquefunciona como lente de aumento. Por isso, o menor dos me-dos pode transformar a vida num obstáculo intransponível.

Tudo depende do modo como encaramos os nossoslimites. Se o nosso olhar for respeitoso, certamente obtere-mos um melhor resultado na lida com ele, mas, se o nossoolhar for marcado pelo medo, ele certamente se tornará

maior do que nós.

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Capítulo

061

o limite como possibilidade

,E interessante descobrirmos os caminhos sugeridos

pelos limites. Na fraqueza que experimentamos, há sem-pre uma força sendo gestada. Esta regra está nos jardins.No silêncio da terra, as sementes precisam se entregar aoduro movimento da morte para que possam se transfor-mar em frutos.

A teologia do pecado original não pode ser lida semo paralelo com a cristologia. O limite humano só temsentido se costurado no manto redentor de Cristo. É neleque descobrimos o significado de nossa fraqueza, é nele ea partir Dele que nos encorajamos a olhar nos olhos dosnossos limites.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

Cristo é o novo Adão. É nele que a humanidadeé reconstruída. A história encontra em sua pessoa umnovo começo.

a que antes era fardo - limite original - torna-seagora causa de vida nova. Em Cristo, o nosso limite setransforma em possibilidade, pois Ele nos ensina um jeitodiferente de compreender as nossas fragilidades.

Ao lançar os olhos naquele que nosfortalece, o limitese transforma em motivo de aproximação.

A condição de necessitado não precisa ser vergonhosa.Ao descobrir nossas inadequações, o nosso olhar se lançasobre aquele que é fonte de toda harmonia, e nele descobrea parte que nos falta.

A experiência humana ensina que as nossas carênciaspodem nos impulsionar para a admirável relação do cui-dado. Carecer é o mesmo que necessitar. Não me refiro àscarências desordenadas, fruto de nossas desordens afetivas,mas sim à carência que nos coloca como seres de uma asasó, que, para voar, precisam abraçar-se.

Cristo está para o ser humano assim como a asa estápara o pássaro. ÉEleque nos eleva.Ele é que nos retira da mi-séria de nossos limites para nos oferecer possibilidades. Estaretirada não é mágica. Ela se dá pela força do aperfeiçoamen-to humano, tão expresso no cuidado. Cuidar do que somosé o mesmo que cultivar o que o Cristo nos fàz ser. Por isso, aexperiência do cuidado é tão presente na mística cristã.

A vida fraterna é marcada pela superação dos sofri-mentos que nascem dos limites, mediante os cuidados quenos dispensamos. Cuidar é socorrer o mundo de suas in-completudes. a gesto humano, por mais imperfeito queseja, sempre tem o poder de completar no mundo o gestocriativo de Deus.

a amor humano tem sua raiz no amor divino, masele se desdobra e passa a ter movimento próprio. a amorde Deus não nos condiciona, não nos obriga, apenas nosmotiva. Trataremos melhor disso mais adiante.

Viver a dinâmica da cristificação, isto é, viver o desa-fio de deixar Cristo viver em nós, é uma bonita forma desuperar os limites que geram os sofrimentos. Ao assumir olimite como possibilidade, os condicionamentos do passadose transformam em ferramentas para o nosso crescimento.

É simples. Descubra o seu maior defeito. Comece atrabalhar nele. Não permita que ele sufoque as suas possi-bilidades. Faça com que ele seja seu, e não o contrário. Hápessoas que não possuem defeitos, porque, na verdade, sãoeles que as possuem; não administram-os, pois são eles queo fazem.

Não seja assim. Trabalhe incansavelmente no seuprincipal defeito. Não o perca de vista. Seja bastante sin-cero com você mesmo. Faça o que for necessário para queele fique sob controle. Se é raiva, pense duas vezes antesde se deixar irritar. Se é ciúme, relativize um pouco mais

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a situação antes de criar o conflito. É inveja? Pare de olharpara o que é conquista dos outros e busque conquistar oque pode ser seu.

Enfim, faça algo que neutralize o poder que o defeitotem sobre você.

Aos poucos, perceberá que ele está cedendo espaço,perdendo a força, e então você assumirá o controle.

Deste defeito sob controle é bem provável que nasçauma virtude. Defeitos podem ser sementes de virtudes, sebem cuidados. A beleza de um jardim depende da qua-lidade do solo. Estercos são realidades precárias, mas sãoeles que potencializam as plantações. O precário que nãovemos é que impulsiona o crescimento da rosa que admi-ramos. Neste caso, o que era precário virou possibilidade.Compreendemos, dessa forma, que podemos sofrer menoscom os nossos limites. Acredite. Muitas situações que nosfazem sofrer perderiam o seu poder sobre nós, caso trans-formássemos o limite em possibilidade. Simples? Sei quenão é. Se fosse simples, o mundo estaria r(!pleto de pessoasfelizes e equilibradas.

Antes de chorar sobre os limites que possui,antes de reclamar de suas inadequações,

e fadar o seu destino ao fim,aceita o desafio de pousar os olhos

sobre este aparente estado de fraqueza,e ouse acreditar,

que mesmo em estradas de

pavimentaçõesprecárias,

há sempre um destino que poderá nos levarao local onde o sol se põe

tão cheio de beleza.

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Capítulo

07

o amor que nasce do limite

Amar é como emprestar sentido. É o mesmo quesocorrer o outro de suas necessidades mais profundas.Quando bem interpretada, a experiência do limite nos im-pulsiona para a experiência do cuidado. E cuidar é o mes-mo que amar.

Em Jesus, todas as nossas fragilidades encontram re-pouso. Nele o amor é fonte e impera. O olhar de Cristosobre nossas fraquezas não é um olhar que nos envergonha,ao contrário, nos encoraja.

A mística cristã nos coloca na responsabilidade defilzero mesmo. Diante da fragilidade do outro, o primeiroato precisa ser de acolhimento. Transformações não podem

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Quando o sofrimento bater à sua porta

nascer somente de exigências. É preciso que a exigênciaseja amorosa.

Do limite pode nascer o amor. Diante da fraqueza'que nos envolve, o amor nasce como solução. É o princípio

. da compaixão, que consiste em sentir junto. Corações em-penhados em uma mesma causa. A dor que não é nossa nosatinge e nos envolve. Não somos indiferentes.

Por isso, não podemos dissociar o amor do sofrimen-to. Quanto ma!s amamos, muito mais sofremos por aquelesque amamos. E natural, inevitável. É o princípio da alteri-dade. O outro que sofre nos provoca. Algo que é dele nosatinge. E diante do seu sofrimento reagimos.

O poeta lusitano Luís de Camões descreve de manei-ra belíssima os efeitos do amor: "O amor éfogo que arde semse ver. É ferida que dói e náo se sente. É um contentamentodescontente. É dor que desatina sem doer. "

Não é raro encontrar na literatura universal a direta as-sociação do amor com o sofrimento. Grandes clássicos foramescritos sob este prisma. O amor como processo alquímico.

Nossa literatura também está repleta destas associa-ções. A poetisa mineira Adélia Prado intuiu de maneirareligiosa e acertada, ao dizer: ';4mar é sofrimento de decan-taçáo '>2. Decantar é purificar. A autora, em seu processo

2 Trecho do poema "Do amor" que faz pane da obra Ordculos de Maio.

criativo, coloca o amor como realidade que decanta a almados sedimentos viciosos. O amor figura como elemento queforja, isto é, fabrica uma nova condição.

Este movimento do amor só pode ser compreendidoa partir da convicção de que novas condições serão sem-pre fruto de lutas e esforços. Sabemos, por experiência, quetudo o que se configura na vida como luta é naturalmentesofrido. A expressão lutar é carregada de sentido, pois evocaum contexto de esforços e movimentos. Ninguém luta semdor. Sempre que precisamos estabelecer lutas é natural quesofrimentos aconteçam.

É justamente diante do sofrimento dos que ama-mos que descobrimos o amor como desdobramento dador, e esta como desdobramento do amor. Quem quiseramar terá que saber que não há amor sem sofrimento.E nisso há uma sabedoria interessante. Ao experimentaro amor como sofrimento, não estamos estabelecendo odolorismo do amor. Não se trata disso. O que queremossalientar é que o amor é uma força capaz de nos levar asacrifícios concretos a ponto de tocarmos a nossa huma-nidade mais profunda.

Sempre que amamos de verdade extraímos o que te-mos de mais puro em nós. O amor nos faz chegar a lugaresnunca antes imaginados.

É o que expressa de maneira tão pura e verdadeirao poeta: "Se eu náo te amasse tanto assim, talvez perdesse os

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sonhos dentro de mim, e vivesse na escuridão. Se eu náo teamasse tanto assim, talvez não visseflores por onde eu vi, den-tro do meu coração"3.

Veja que o amor exerce o poder de socorrer, resgatar,redimir. A confissão é sincera. Não fosse o amor sentido,a personagem correria o risco de morrer sem conhecer ossonhos que estavam adormecidos em sua vida. Não fosseo amor sentido, as estradas não teriam revelado os jardinsfloridos no mais profundo do coração.

O poeta tem razão. Aliás, os poetas costumam tersempre razão. O amor humano parece figurar na vida comoum recurso que nos socorre de nossas incompletudes. Oque enxergamos no outro como encanto é o que de algumaforma experimentamos em nós como ausência. O que nosfascina no outro é o que nos falta.

O amor nos salva de nossas carências, de nossas ne-cessidades. É uma forma de suprir nossas limitações de ma-neira honesta e responsável. Não se trata de uma projeção.Não se trata de jogar sobre os outros a responsabilidade denos suprir de todas as nossas lacunas. Não, o amor não éisso. Mas se trata de emprestar a asa que nos é ausente.

Ao reconhecer no outro o que me falta, descubrodentro de mim, a partir dele, o recurso para encontrara saída. Este é o papel de Cristo em nós. Ele não vive

por nós, mas sustenta o nosso viver. Ele nos impulsionapara as transformações necessárias que nos aprimorarão

como pessoas.Este aprimoramento só é possível mediante a experiên-

cia da luta e dos conseqüentes sofrimentos que dela bro-tam. É o sofrimento por amor. Por amor a nós mesmos,

por amor aos outros.

Um pai que ama os filhos, por eles é capaz de sacri-

ficar-se. Esta é a prova mais concreta do amor que sente.Por eles será capaz de mudar os hábitos, a conduta, porqueencontra neles um motivo para ser melhor. Tudo o que so-frerá neste processo estará belamente justificado no amorque sente. Só quem ama é capaz de sacrifícios. É a regra.

É a partir deste princípio que estabelecemos a ar-quitetura do amor. E qualquer sacrifício que nascer destaarquitetura será considerado como detalhe que enriquece

a construção.

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Só o amor pode nos socorrer de nossas misérias.Só ele pode nos alcançar no fosso de nossas vergonhas

O que me redime é o amor que amo

porque nele Deus me encontra com seu poder decomplementos.

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Capítulo

08

Por que sofrer?

Esta é uma pergunta-chave que a humanidade se fazconstantemente. Já foi até formulada de forma incisiva emtítulo de livro - Por que pessoas boas sofrem? Ou então - Porque coisas ruins acontecem com pessoas boas?

Diria que são perguntas que não servem para nada. Afinal,quem foi que disse que a bondade pode livrar alguém da con-dição de ser limitada? A bondade não é uma bolha de proteçãoque tem o poder de livrar as pessoas das fatalidades da vida.

Em suma, pessoas más sofrem, coisas ruins tambémacontecem a elas. Todo mundo sofre. Pode ser que o sofri-lIlento da pessoa boa fique mais evidente porque as más nãoCOstumam contar o que lhes acontece. É o jogo.

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o fato é que a pergunta nasce espontaneamen-te, cada vez que o sofrimento esbarra o nosso caminho.Perguntamos por que somos seres capazes de investigar osentido das coisas.

. Nossa capacidade cognitiva, elemento que nos dife-renCia d~ todas as outras criaturas, é que nos dá condiçõesde refletIr sobre o que nos aflige.

Refletir sobre o sofrimento é essencialmente refletirsobre os limites, isto porque tudo o que nos limita, de al-guma forma, nos expõe a um contexto de angústias, ansie-dades e questionamentos.

É o nosso específico humano querendo descobrir osentido do que se passa em nossa vida. Ao tocar a durareal~dade ~os sofrimentos, ao formular esta pergunta-chave,ao InVestIgar o porquê, a gente acaba encontrando umamultiplicidade de respostas, ou não.

Sofremos porque não podemos tudo o que queremos.Sofremos porque temos um corpo que está condicionadoaos limites de sua estrutura e possibÜidades. Sofremosporque .somos afetados constantemente por situações quenos desI~stalam e nos entristecem. Sofremos porque nãoconsegUImos abarcar a totalidade dos fatos, ou porquenem sempre podemos compreendê-Ios.

~ofremos porque não encontramos as respostas quenecessItamos ou por d, que nos eparamos com respostasque nos assustam.

Sofremos porque não somos capazes de fazer tudo so-zinhos; somos dependentes dos outros e, por m;ys que quei-ramos, não teremos como dar conta de tudo sem que os outroSinterfiram. Sofremos porque carecemos, porque somos in-

completos, porque somos inacabados.

Sofremos porque nem sempre podemos mudar a or-dem das coisas, a seqüência dos acontecimentos. Sofremosporque não sabemos dizer não. Sofremos porque não sabe-mos dizer sim. Sofremos porque dissemos sim em ocasiõesem que deveríamos ter dito não. Sofremos porque dissemosnão em ocasiões em que deveríamos ter dito sim.

Sofremos porque nos apegamos aos outros, e por ve-zes os afastamentos são inevitáveis. Sofremos porque nostraímos, nos abandonamos. Sofremos porque somos injus-tamente julgados, ofendidos, caluniados. Sofremos porqueexperimentamos a morte em sua porção diária. Sofremosporque vemos a violência ao nosso lado e em nós. Enfim,sofremos por uma infinidade de coisas e não temos comomudar o fato de sermos naturalmente afetados pelos desa-

justes da vida.Tudo bem, mas se não podemos evitar o sofrimento, o

que poderemos fazer para aprendermos a lidar com ele?

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Capítulo

09

Como sofrer?

,E diante desta pergunta que procuramos buscar um

novo caminho. Se não temos como mudar a vida, entãoprecisamos descobrir um jeito de sermos transformados

por ela.

Se eu não posso mudar o fato de ter que sofrer, entãoposso encontrar um modo de como sofrer. É mais uma vezuma proposta de mudança de foco.

Muitos sofrimentos que nos atingem são otimizadospor nossa maneira de lidar com eles. A matéria que nos fazsofrer nem sempre é tão grave. O problema é a forma delidarmos com ela. O revestimento que damos aos nossosproblemas torna-se maior do que o próprio problema.

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Muito facilmente fazemos tempestades em coposde água,porque nos falta sabedoria na lida com os acontecimentosque estimulam os nossos limites. Mesmo que seja natural, osofrimento ainda é enfrentado como se fosse um inimigo.

É claro que não queremos sofrer. A resposta humanadiante dos desafios da vida é sempre de proteção. O serhumano vive para proteger-se dos limites que tem, mas nãopodemos fugir desta verdade - eles são parte integrante denossa condição e não podemos mudar isso.

Mas, diante de tudo o que não podemos mudar, hásempre o que podemos aprender e compreender. Talvez sejaeste o movimento possível diante da dor. Encontrar nelaalguma resposta, ainda que silenciosa, que nos sugira e pro-porcione um aprendizado.

A sabedoria nos ensina que diante de uma vida quesofre, as perguntas podem parecer inoportunas. Uma ati-tude vale muito mais. Apressamo-nos muito em fazer per-guntas no momento da dor. Por que isso nos aconteceu?Por que estamos passando por isso? Por que pessoas boassofrem tanto?

O grande risco é que nossa multiplicidade de per-gu~tMo permita o nascimento de sabedorias, afinal, asabedorIa costuma acontecer somente a partir da experiênciada contemplação.

Temos aprendido; a duras penas, que o bom da vidanão está em chegar às respostas, mas sim em aprender a

. com as perguntas Nem sempre nos tornamosconVIver .aliados desta forma de sabedoria.

com issoInsistimos muito em querer respostas, eperdemos a mística das boas perguntas'.t:Iá perguntas quepodem nos alimentar de maneira posltlva durante uma

vida inteira.Nem sempre as respostas possuem este poder, pois

no esquecimento com muita facilidade. As perguntascaem ~

~ Elas duram o tempo da busca. E há buscas que naonao. alocabem no tempo. Elas possuem o dom de nos lmentar

durante toda a nossa história.d' A 'ca da vidaSão perguntas que nos seguram na lllanu .

Não são perguntas que se alimentam de respostas, mas per-guntas que se alimentam de esperanças. Elas se transfor-mam em motivos, que podem ser sempre novos, porque

um motivo vai alimentando outro.

Os sábios sabem disso. Às vezes encontramos. ~i~tó-. d homens e mulheres refugiados em seus eremltenOS,

rIas e d 'A' dalugares reservados à solidão, distantes as eXlgenclasvida contemporânea. Pessoas que abandonaram o mundo

d .,. ara see sua fabricação de respostas rápi as, transltonas, prefugiarem com suas perguntas silenciosas.

, .das oduzidas em série.Eles não querem respostas rapl , pr .

Eles querem as perguntas que se transformam em mO:I-vos. Eles querem as perguntas artesanais, aquelas qu~ sao

cal a que nutre a sabedona.construídas aos poucos, na m

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Elesnão temem o que ainda não sabem, mas descobremneste lugar da vida a beleza da contemplação. O não sabernão é uma prisão, ao contrário, é uma fonte de liberdade.

A diferença está na forma como olham para o queainda não sabem. Ao invés de se alimentarem de desejos deresponder, eles mergulham na pergunta que merece calma enelas permanecem. Eles descobrem a mística do questiona-mento e com isso se livram do sofrimento infértil que nasceda ansiedade de chegar à resposta. Descobrem no processodo não saber um jeito bonito de permanecerem.

Muitos sofrimentos nascem de nossa incapacidadede permanecermos na pergunta. O grande problema équando a insistência da pergunta nos incapacita para des-cobrir a resposta. É neste momento que corremos o riscode mergulhar numa modalidade de sofrimento que é ab-solutamente infértil.

Para alguns a vida sepulta mais que a morte

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Capítulo

10

o sofrimento de não ter resposta

Já encontrei muitas pessoas que se perderam emseus mares de sofrimentos, justamente porque queriamrespostas. Com isso, a vida passou a sepultar mais do quea própria morte. Foi o caso de Maria Clara ...

O acontecimento foi terrível. Sua filha brinca-

va na quadra de esportes, na casa do avô. Uma criançamuito amada. Com apenas cinco anos de idade, aquelapequena criatura representava boa parte do mundo deseus pais. Laura era a filha mais velha de Maria Clarae Roberto. Eles passavam o domingo na casa do pai deMaria Clara.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

Laura brincava com os primos na quadra, enquantoa família se encontrava nas proximidades da piscina, espe-rando pela hora do almoço.

De repente, um barulho estranho foi ouvido. Vinhade onde estavam as crianças. Maria Clara correu até o locale quando chegou não pôde acreditar no que havia aconte-cido. Um carro desgovernado havia batido no muro da casae parte dele caiu sobre a quadra, nas proximidades da trave.As crianças gritavam assustadas. Maria Clara, então, come-çou a procurar por Laura e não a encontrava no meio dasoutras crianças. Neste momento, um dos garotos anunciouapavorado: "O muro caiu em cima da Laurinha, tia!". Umsilêncio sepulcral se estabeleceu dentro de Maria Clara.

Laura estava morta. A criança tão cheia de vida, tãocheia de futuro, tivera sua vida interrompida por uma fata-lidade terrível.

Tive a oportunidade de me encontrar com esta fa-mília dois anos depois do acontecido. Maria Clara ficoumais de um ano muda. O trauma lhe retirou a fala. Mudasomente por fora, pois por dentro aquela mulher gritavaconstantemente para descobrir as razões daquele aconteci-mento tão trágico.

Clara precisou de muito tratamento para que a voz pu-desse voltar. Os problemas eram muitos. O filho mais novoestava sofrendo de uma doença estranha que lhe cobria apele de manchas freqüentemente. O pai estava mergulhado

\l, numa espécie de apatia, como se tivesse perdido o sentido daJ vida. Parecia não reagir para o sofrimento, nem para a possi-

bilidade de alguma alegria. Estava indiferente.

O grande silêncio de Maria Clara foi uma experiên-cia pavorosa para ela. Confessara-me que o seu desejo eragritar, gritar muito, mas nenhuma palavra ela era capaz depronunciar. Durante aquele duro tempo de silêncio, MariaClara se ocupara de uma única pergunta: Por que aquelatragédia acontecera com sua filha? Confessou-me, enver-gonhada, que muitas vezes se pegou alimentando um pen-samento mesquinho: Com tantas crianças na quadra, porque justamente a minha filha?

Maria Clara se fazia uma pergunta muito comum a to-dos nós. Toda vez que experimentamos uma tragédia desta na-tureza é comum que queiramos saber o porquê. É a primeiracoisa que nos ocorre, a primeira dúvida que nos atormenta.

Mas uma coisa é necessário reconhecer. Trata-se deuma pergunta infértil, uma vez que ela não muda absolu-tamente em nada diante do ocorrido. Não acredito que osofrimento de alguém seja minimizado no momento emque se descobre a causa da tragédia. Mesmo porque, geral-mente, os fatores técnicos são as causas que desencadearamos fatos: falha no sistema de freio do veículo, negligência docondutor por estar embriagado, e tantas outras possibilida-des. Portanto, decifrar o enigma do acidente não resolve onosso sofrimento.

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A causa que insistimos em descobrir não pertence àordem das coisas que nossos olhos encontram ou que nossaperícia possa apurar. Estamos falando de razões que nossalinguagem não consegue acessar com muita facilidade.

A origem da indignação e da pergunta é a sensação determos sido injustiçados. O golpe da vida é recebido comoabsurdo. Por isso nasce a primeira pergunta tão cheia deânsia e pressa.

Diante da necessidade de suportar os sofrimentosdeste primeiro impacto, é bem provável que a gente des-cubra um jeito simplista de resolver a questão, e, com isso,perder a oportunidade do crescimento que a pergunta po-deria nos favorecer.

Maria Clara estava convivendo com o amargo de umaresposta estranha. A resposta que encontrara para aquelatragédia foi muito simples - Deus é injusto. Matou a suafilha. Não a poupou daquela morte terrível! Só que haviaum problema. Aquela resposta não estimulou nenhum mo-vimento que lhe favorecesse a superação daquela tragédia,ao contrário, paralisou de forma cruel a organização do seuluto. Diante de sua ndo reação, a família sofreu em dobro.As conseqüências estavam ali. O marido apático e o filhocom uma doença psicossomática, fruto do esquecimentoem que a mãe o colocou.

Mas o grande problema de Maria Clara não estava naresposta encontrada, e sim na pergunta formulada. Ela quis

saber o porquê de sua filha ter morrido daquela forma. Talpergunta é impossível de ser respondida.

Culpar Deus pela tragédia foi o modo mais fácil deresolver a questão. Diante do sofrimento agudo, sobretudoos que são involuntários - porque não nascem de ~ossas de-cisões_, é muito comum responsabilizarmos alguem. Acharum culpado para nossa desgraça é apenas uma tentati~~ desolucionar o que nos aflige. Mas é em vão. ResponsabIlIzarculpados pode até nos aliviar em algumas cois~, ~as defi-nitivamente não pode nos curar de nossas ausencIas.

Ao fazer-seuma pergunta infértil, Maria Clara perdeua oportunidade de superar aquele momento terrível e evitarque pequenas tragédias continuassem acontecendo em suavida, como conseqüência daquela que havia vitimado a sua

pequena Laura.É estranho, mas muitas vezes ficamos sofrendo com o

amargo de respostas erradas só porque ainda não tivemos asabedoria de fazer a pergunta certa.

Diante da morte da filha, Maria Clara poderia ter as-sumido outra postura. Primeiramente era preciso sofrer aperda. Todos nós temos o direito de sofrer por quem .ama-mos. Sofrer é o mesmo que purgar; o mesmo que pUrIficar.Sofrer é expulsar a indignação. As lágrimas possuem o domde jogar para fora o acontecimento que intoxicou a n~ssaalma. Mas juntamente com o choro é preciso que haja o

d - As as só podem superar asmovimento a superaçao. pesso

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tragédias se elas se empenharem na busca de um sentidopara continuarem vivas. Foi o que Clara não fez.

Ao invés de se perguntar - Por que isto aconteceu comminha filha?- Clara deveria ter seperguntado - O que possofazer para superar a sua mone? - Duas perguntas diferentes.Uma infértil, incapaz de mudar qualquer detalhe do fato; eoutra fecunda, também incapacitada de mudar o fato, mascheia de possibilidades de lhe atribuir algum sentido.

Perguntas inféneis fazem pane da vida. Elas aparecemcom freqüência nos momentos trágicos e penencem ao im-pacto das primeiras horas e dos primeiros dias. É uma reaçãonatural de quem sofre. O grande problema é quando elas seestendem no tempo, pois impedem o processo de superação.

Clara continuou se fazendo a pergunta das primeirashoras por longos dois anos. O que vimos foi a extensão desua tragédia. Durante dois longos anos amargurou a si e osque estavam a sua volta. Perdeu a oponunidade de mudara pergunta. Preferiu a infértil. Não permitiu que Laura res-suscitasse. Estendeu o seu velório. Impediú o sepultamentoe sua conseqüente ressurreição.

Mas nem sempre as coisas se dão dessa forma. Pudeacompanhar uma história que marcou profundamente aminha compreensão de tudo isso que agora panilho.

Muitas pessoas tropeçam pela vida até a beirado abismo

sem saber aonde estão indo.Às vezes, isso acontece porque aqueles cuja vocação

é dar expressão cultural aos seus pensamentos'1deixaramde examinar a verdade, preferindo a respostaK. rápida ao esforço da indagação paciente sobre o que

torna a vida digna de ser vivida.

João Paulo 11

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ICapítulo I

II I I

A serenidade de saber conviver

com a pergunta

W ânia é uma mulher que precisou enfrentar o cal-vário de seu filho, assim como Maria Clara.

Gustavo, o mais velho de seus três filhos, ao sair deférias no mês de dezembro, sofreu um acidente trágico emorreu no auge de seus quatorze anos.

A história abalou profundamente a pequena cidadede Terra Boa, no interior do Paraná. A morte de uma pes-soa jovem é sempre traumática. Parece ferir as regras davida, uma vez que a morte está ligada a idades avançadas.

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o desespero se abateu sobre aquela família, mas osdesdobramentos dos fatos não foram como os da primei-ra história. Wânia reagiu diferente. Ao perder o seu filhoGustavo, aquela mulher resolveu fazer justiça à morte tãoprematura de seu filho.

Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski, diz queà morte de uma criança lhe dá ganas de devolver ao universoo seu bilhete de entrada. Mas ele náo o faz. Ele continua alutar e a amar. Ele continua a continuar".

Wânia, mesmo sem saber, atualizou em sua vida aforça das palavras do personagem do grande autor russo.Ela optou por continuar lutando e amando.

Sofreu. Sofreu muito, mas não se prendeu à perguntainfértil que nasceu logo após à tragédia. Em vez de pensarna causa de tudo aquilo ter acontecido, Wânia reorganizoutudo o que lhe sobrara. Fez artesanato da dor. Reuniu os re-talhos da vida e, assim como as mulheres que tecem colchascom restos de tecidos, colocou-se a costurar os significadosque ainda tinha nas mãos. '

Olhou para os olhos dos filhos, lhaís e Alécio, e des-cobriu neles a continuidade de sua maternidade ameaçada.Perder um filho é um parro às avessas, como se a mortepossuísse a força de arrancar do ventre a memória do amorum dia fecundado.

Segurou firme as mãos do marido Antônio Carlos,descobriu nele as porções de Gustavo que ainda eram vivas

e decidiu prosseguir. Era o início da ressurreição, o anúnciode que o túmulo estava vazio.

Em nada ela escondia o sofrimento. Não criou per-sonagens, nem simulou uma coragem que não tinha.Apenas confiou na certeza de que a morte de Gustavonão poderia significar a morte da família. O sofrimentovivido não poderia se transformar em inferno de uma vidainteira. Não permitiu que a vida sepultasse mais que aprópria morte.

O único jeito de prosseguir era se ater às pergun-tas alimentadas por esperanças. O que Wânia precisava seperguntar não era sobre as razões de seu filho ter partidotão cedo. O que ela precisava fazer, e o fez, era olhar-seno espelho do tempo e perguntar-se: "E agora, o que te-nho do Gustavo em mim? O que desse menino me restoupara que eu possa recomeçar? O que eu poderia escutar doGustavo nessa hora? - 'Mãe, pare a vida e viva para chorara minha morte', ou, 'Mãe, cuida dos meus irmãos e domeu pai por mim'?".

Wânia escutou a segunda. Encarou a sua dor comomotivo, e não como pergunta. Projetou o seu processo dereconstrução e se colocou na luta.

Alguns anos depois do acontecimento, tive a oportu-nidade de estar com eles, numa boa madrugada de conversa,e disse:- Foi muito duro perder o Gusravo, não foi?E ela merespondeu: - Sem dúvida, foi muito duro, mas foi também

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muito especial! Olhei-a assustado. E ela continuou: - Aoexperimentar a dor de perder meu filho, pude chegar a al-guns lugares da minha alma a que nenhuma alegria haviame levado! Ao ter que sepultar o meu filho, tive que des-cobrir coisas que estavam escondidas dentro de mim, queeu jamais sabia possuir. Descobri uma força que estava res-guardada, e que só aquela dor poderia ter revelado.

Wania me surpreendeu com aquela resposta. Eu ain-da não tinha escutado que perder um filho, além de trági-co, poderia ser também especial. Tudo depende de comoenfrentamos o fato, de como interpretamos o acontecido ede como damos continuidade aos fatos decorrentes.

Wânia poderia ter se prostado diante do ca1vário eali permanecido pelo tempo que quisesse. A dor que sentiaera fone o suficiente para garantir o direito de justificar suaatitude, mas ela não quis.

Preferiu o desafio de prosseguir, de repetir no tempo acoragem que está impressa na expressão de Pietá, a ,Virgemque segura o filho morto nos braços. Segura com expressãode dor, mas ao mesmo tempo de serenidade, pois está presana certeza da ressurreição.

Não, não me refiro à ressurreição dos últimos dias,marcada pela esperança futura, mas a esta que podemospromover no momento em que assumimos a dor com es-pírito resignado e nos colocamos a costurar os retalhos davida que ainda nos restou.

Refiro-me à ressurreição que podemos promover nocotidiano, quando assumimos a vida como forma de fazerjustiça àqueles que partiram de forma tão inesperada.

Mia Couto, grande autor moçambicano, coloca naboca de um personagem a seguinte expressão: "Injustiça é omundo prosseguir assim mesmo quando desaparece quem

mais amamos"4.

Foi justamente isso que pude identificar nas palavrasde um pai que perdera o filho afogado nas águas de um rio,no Mato Grosso, e que foram endereçadas a uma revista em

que eu escrevia.

4 Trecho do livro Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra.

Editora Companhia das Letras.

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Capítulo

12

o pai, o menino e o rio ...

Achei interessante. O homem reivindicava a notíciada morte de seu filho. Ele experimentava a injustiça de vero mundo prosseguir, enquanto ele chorava a morte de seufilho. As palavras eram poucas. Quase nada diante da dorde saber que o rio havia engolido a vida e os sonhos de seumenino, já crescido.

O nome do homem é João. O do menino morto,Lucas. Dois nomes pertencentes ao contexto evangélico.João significa agraciado por Deus.

Curioso que na pesquisa realizada por mim o nomeJoão também está associado à impulsividade. Geralmenteos impulsivos correm o risco de serem mal interpretados.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

Lucas significa aquele que veio da Lucânia. Mas tam-bém diz respeito àqueles que fazem da vida uma grandeaventura, justamente porque não suportam a rotina.

Significados à parte, a vida é o que vale nesta hora.A vida que existe e a vida que não existe mais. A vida dosdois evangelistas. A do senhor João, o homem que choraà margem do rio, e a de Lucas, que se despediu dela porcausa da imprudência de ter entrado no barco sem o coletesalva-vidas.

o que o senhor João nos solicitava era algo bonito de-mais para que passasse em branco, despercebido. Ele tinharazão de nos pedir o que pedia. O seu filho era estudante dacongregação mantenedora da revista e ele se via no direitode ver noticiada a partida de seu filho.

Foi por isso que quis, por iniciativa própria, não como desejo de defender a revista, e sim movido pelo senti-mento bonito despertado pelas palavras de senhor João emmim, falar alguma coisa sobre o menino que o rio levou.

Toda vez que alguém vai embora de nossa vid~, de al-guma forma precisamos descobrir um jeito de iniciar o seuprocesso de ressurreição. Os evangelhos foram escritos comesta intenção. A vida de Jesus não poderia cair no esqueci-mento. Por isso seus amigos escreveram sobre Ele.

João foi um deles. Ele viu de perto o coração de Jesuse fez questão de deixar-nos palavras que nos ajudassem avê-Io também.

A palavra tem o poder de renascer o que está morto.Recurso interessante que nos coloca no embate constantecom o tempo e sua sina de nos roubar aos poucos. Diantedo roubo, resta-nos a busca da palavra que tem o poderda devolução.

Não conheci o Lucas, filho do senhor João. O que seisobre ele é o que posso intuir. Foi um rapaz de coragem,companheiro de toda hora, disponível, prestativo, decidido.

Quem presta serviço à congregação na região do MatoGrosso, lugar onde morreu, é gente diferenciada por umardor missionário bonito. Lucas devia saber pouco sobre operigo daquelas águas, ou, se sabia, desconsiderou a possi-bilidade de riscos, caso contrário teria ele mesmo buscadoo colete para a aventura da pesca.

Lucas certamente não queria morrer. Tinha uma vidainteira pela frente. Estava construindo aos poucos o seusacerdócio, vivendo o passo-a-passo do processo formativo,mas infelizmente a tragédia aconteceu.

Tragédias são realidades absurdas. E absurdo é tudoaquilo que parece não ter coerência, porque fere radical-mente o sentido das coisas. O senhor João não trouxe Lucasao mundo para morrer jovem. Mas infelizmente foi assim.É natural que, diante do absurdo, queiramos encontrar res-postas para nossas perguntas. Tenho certeza que o senhorJoão tem muitas delas. Todos nós teríamos também, se es-tivéssemos na mesma situação que ele.

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Gostaria de ter o dom de ressuscitar o Lucas, mas nãotenho. O que tenho é o recurso das palavras, então fiz o quepude. Escrevi um pouquinho só. Um nada, diante de tudoo que o seu filho merecia que fosse escrito sobre ele.

Minhas poucas palavras foram estas:

"Senhor João, seja o evangelista da vida de seu filho,assim como João foi da vida de Jesus. Descubra as palavrasque poderão retirar o acontecimento da condição de ab-surdo, e assim, quem sabe; o senhor reencontre o sentidoda vida. Não deixe que seu filho morra em vão. Torne-semelhor por ele. Ame o que ele amava. Cuide do que elegostaria de ter cuidado. Conheça os lugares que ele gostariade ter conhecido. Ajude a colocar coletes nos meninos queestão desprotegidos [...)".

Éavida. Éo tempo. Éa agoniade cada rosto.Éo rio.Éomenino. É o pai. É o pedido. É a respostaque não responde.

Capítulo

13

Os frutos que podemos colher

Sei que minhas poucas palavras não resolvem a dordo coração deste pai, mas preciso reconhecer que acreditomesmo no poder de verdade que há nelas. A dinâmica daressurreição só acontecerá na vida do senhor João no mo-mento em que ele se dispor a conviver com a tragédia deforma criativa. O sofrimento só será suportável à medidaque as perguntas inférteis deixarem de ser feitas.

Não há nada, absolutamente nada, que poderá trazero Lucas de volta. O que resta para esta família é encontrarum caminho para o recomeço.

Sei que não é fácil. Reassumir a vida depois de umatragédia é sempre um desafio sofrido. O interessante é

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percebermos que grandes iniciativas sociais nascem de expe-riências traumáticas e dolorosas.

É o caso de tantas instituições que são criadas a partirde dores particulares. Nascem como reações de pessoas quenão se entregam ao sofrimento aniquilador. Encaram-nocomo redenção, purificação e se colocam no movimento detransformação de tudo o que causou a tragédia dos seus.

Tive a oportunidade de conhecer Maria Helena eMaria José, duas mães que perderam suas filhas de maneiramuito cruel.

Mirela e Daniela saíam de uma festa quando foramvítimas de um atropelamento. Segundo a perícia, o condu-tor que atropelou as meninas estava sob efeito de álcool.Ele não parou para prestar socorro.

O sofrimento daquelas mulheres se transformou emmovimento social. Lutam até hoje para que sejam criadasmedidas severas de punição aos que dirigem embriagados.Elas não estão revestidas de ódio, apenas querem que amorte das filhas não seja em vão."

Elas são incapazes de ressuscitar as filhas que se foram,mas podem acordar os vivos, para que estes se mobilizem,para que outras pessoas não continuem sendo vitimadaspela irresponsabilidade tão comum nos dias de hoje.

Elas não se prendem àquilo que não podem. Não trans-formaram as suasvidasnum calvárioeterno, nem serevestiramde um espírito de vítima. A perda maior já tinha acontecido.

Elas não poderiam continuar vivendo a morte dasfilhas. O tempo era de ressurreição. E esta nova vida sópoderia chegar mediante a defesa de mudanças que neutra-lizassem o poder da força que provocou a morte de Mirelae Daniela. Elas se agarraram nos motivos que restaram.

A justiça precisa ser feita. Mas não se trata de umajustiça que se ocupe somente de seu caso particular, motivode suas dores. Trata-se de uma justiça com força solidária,capaz de esbarrar as mulheres que já sofreram pelas mesmascausas que elas e de evitar o sofrimento de outras que pos-sam sofrer o mesmo golpe.

Essas mulheres nos ensinam. Corações machucadospodem ser sementeiras de um mundo novo. Sempre quesomos machucados pela vida, temos diante de nós uma se-menteira. Crescerá o que a gente semear.

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A pedra está posta.

O destino de ir e de vir

já terminou.

Silenciem as portas

e seus umbrais

que esperam por chegadas.

Sirvam-me neste momento

de algumas porções de

saudades.

E depois, a coragem.

Quero ficar aqui.

Não há lugar nenhum

a que eu possa chegar,

senão a mim.

Que meu ficar seja

para preparar o futuro.

Um ficar cheio de silêncio,

sem as dispersões das falas,

sem os absurdos das respostas prontas.

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Que o meu sofrer se transmude

em atos de esperanças,

assim como a noite dá lugar ao dia.

O meu querer é pouco,

cabe em minha mão.

Eu só quero é ser real.

I*r

Capítulo I14 I

o sofrimento que buscamos

Diante dos sofrimentos, cada um reage como pode.Nossa atitude em relação ao que a vida nos traz é o quenos difere como pessoas. Frente ao inevitável e de tudo oque é imutável, é sempre desafiador reencontrar o equilí-brio para prosseguir.

Por vezes a vida nos surpreende com suas realidadesimpactantes. São os acidentes, as tragédias que fogem aonosso controle. São os fatos que não podem ser altera-dos. Muitos sofrimentos são oriundos destas realidadesque não passam por nossas escolhas. Fomos vítimas dasescolhas de outros, de descuidos que não foram cometi-dos por nós.

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Mas precisamos ser honestos. Há sofrimentos que bus-camos com as mãos. São as escolhas conscientes que fazemose que, mais cedo ou mais tarde, teremos que enfrentar.

William James, grande psicólogo e filósofo america-no, afirmou com muita propriedade: '54maior descoberta deminha geração é que os seres humanos podem alterar sua vidaalterando suas atitudes':

É interessante esta premissa. A vida é um tecido cujamatéria é composta de atitudes. São elas que delineiamo contexto de nossas escolhas. Atitude refere-se ao modocomo nos posicionamos frente aos acontecimentos, às pes-soas, às situações.

Alterar uma atitude não é tarefa fácil, pois exige disci-plina, observância de como nos comportamos, e tudo issodesperta naturalmente o sofrimento. Ninguém muda deatitude sem a experiência do esforço. As religiões chamamisso de conversão, que não é nada mais, nada menos que oprocesso de modificação da atitude.

O cristianismo trabalha a partir da configuraÇão dasatitudes humanas nas atitudes de Jesus. Temos os olhos fi-xos no jeito de ser e de viver de Jesus, isto é, no conjuntode suas atitudes.

Se conseguimos alterar as nossas atitudes, natural-mente conseguimos também alterar a vida. É interessanterefletir sobre tal aspecto, pois não é comum identificarmosisso em nós. Se estamos sofrendo com a vida que vivemos,

é justamente porque ainda não nos dispomos a mudar asnossas atitudes.

A vida não poderá ser mudada enquanto permane-cermos do mesmo modo. Só poderemos interferir na raizdo sofrimento que se manifesta na vida prática, se tivermosa coragem de modificar as atitudes que estão gerando a prá-

tica da vida.O grande problema é quando não há mais tempo

para salvar a vida. Ou quando já não é mais possível mudar,porque a vida já chegou ao fim.

Recordo-me de um paciente terminal que encontreinum hospital no interior de Minas Gerais. Ele tinha câncerno pulmão. A sinceridade dele foi desconcertante. Ele meolhou e disse: Vou morrer antes da hora! Estou muito arre-

h I, I"pendido, mas não ten o como vo tar atraso

Marcelo tinha apenas 38 anos. Começou a fumar aostreze. Os longos anos em contato com as toxinas cancerí-genas do cigarro desenvolveram um câncer que tomou seucorpo por inteiro, começando pelo pulmão.

O que mais doía em Marcelo não era o fato de mor-rer tão cedo. O que ele mais lamentava era o fato de suaopção pelo tabaco ter conseqüências na vida dos seus fi-lhos. Se fosse solteiro, teria que enfrentar apenas a dor dedeixar a vida, ainda jovem. Mas Marcelo tinha uma famí-lia bonita que ainda precisava muito dele. Era pai de trêsfilhos: Diego, um garoto de dezesseis; Letícia, uma menina

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Quando o sofrimento bater à sua porta

de oito; e Anderson, o mais novo, com seis anos. Aquelesfilhos perderam a oportunidade de ter o pai por mais tem-po em suas vidas. Marcelo estava se culpando por deixá-Iosórfãos tão precocemente.

Ao final de sua vida, Marcelo estava diante de um so-frimento que foi construído aos poucos. Desde jovem eleera consciente dos malefícios do cigarro, mas não adiantousaber. Não mudou a atitude, não se esforçou para se libertardo vício. Ouviu tantas vezeso alerta do pai, da mãe, dos fi-lhos, da esposa e dos amigos, mas de nada adiantou. Marcelocontinuou escolhendo a morte em pequenas porções.

Deitado naquele leito de hospital, o seu sofrimentoera físico e mental. Além de ter de suportar as dores terrí-veis do câncer, Marcelo tinha que conviver com a consciên-cia de ter feito a escolha errada.

O sofrimento de Marcelo tinha seus desdobramen-tos. Sua esposa e seus filhos estavam terrivelmente abatidospela realidade cruel: a morte em breve. Seus pais estavaminconformados. Marcelo era filho único. '

Aquele homem estava enfrentando o sofrimento quenasceu de es~olhasinfelizes.O câncer é uma doença que podeser evitada. E claro que há sempre o espaço para a fatalidade.Nem sempre somos culpados pelas doenças que desenvolve-mos, mas não podemos negar que boa parte das enfermida-des que nos acometem são provocadas por nossos hábitos devida. Nós buscamos tudo isso com as próprias mãos.

Marcelo estava emparedado pelas conseqüências desuas escolhas. Ele estava diante de um desfecho inevitável,e não tinha para onde fugir.

Antes de eu ir embora, ele me olhou e disse: "Filhoprecisa de pai, não é padre?". Eu concordei. Disse que elesficariam bem cuidados, mas ele completou: "Mas não é amesma coisa!"

E não foi mesmo. Após a morte de Marcelo, a famíliase desestruturou totalmente. As crianças ficaram traumatiza-das com a forma como o pai partira da vida. Sua ausência foimuito sentida. Ele era o centro da casa. Pai atuante, maridodedicado, tudo fezcom que sua ausênciadoessedobrado. MiaCouto, no mesmo romance que já citei, escrevede maneiratão sensível:"Morto amado nunca mais pára de morrer!"

E assim foi com Marcelo. A cada dia ele morria no-vamente na vida daquela família. O câncer é uma doençacruel. E aquela crueldade não terminou no corpo que sefoi, mas continuou nas vidas que restaram, como metásta-ses invisíveis com o poder de adoecer de outras formas.

A enfermidade de Marcelo continuou doendo naque-les corações tão jovens e tão cheios de insegurança. Matounão somente o corpo que sofreu na carne, mas despejoupoderes de morte nos filhos, que não sabiam não ter pai, ena esposa, que não sabia não ter marido.

O sofrimento desta família precisa nos ensinar. É pre-ciso que a gente também estenda os olhos na direção deste

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ca1várioe se pergunte, com sinceridade, se nossas atitudesde hoje não estão construindo ca1váriosfuturos.

Será que as conseqüências de nossas escolhas de ago-ra, num futuro próximo, poderão doer no coração dosque amamos?

Chegará o momento em que não nos restará muitacoisa. Mais cedo ou mais tarde a vida nos cobrará. As esco-lhas de hoje repercutirão em breve neste tempo que costu-mamos chamar de futuro.

Viver é como gritar no abismo. Há um retorno. Éimpossível não sofrer com as conseqüências de tudo o queescolhemos. O eco é uma resposta natural do abismo.

Escolhas são como sementes. O que plantamos hojeserá fruto amanhã. A qualidade do fruto depende do quesemeamos. Não há milagre que possa reverter o que foi se-meado. Se as sementes plantadas eram de limão, não esperecolher laranjas. É a regra da vida. É dura, eu sei, mas ,é a lei!

Capítulo

15

Deus e o

sofrimento humano

Já encontrei muita gente que semeou limão, pedindoa Deus a graça de colher laranjas. Fico pensando se há ho-

nestidade neste pedido.Sei que o amor de Deus está acima de tudo, e que

Ele nos dá, mesmo quando não merecemos. Mas não po-demos compreender o amor de Deus como mão que nosretira da conseqüência das escolhas que fizemos. Deusé amor, mas é também justiça. E o pai que é justo nãopriva o filho do aprendizado que virá do pagamento do

que se deve.

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Recordo-me que nas oportunidades que tive de estarcom o padre Lé05 em sua enfermidade, ele sempre me di-zia: "Nunca pedi a Deus que me curasse. Só peço que Eleme ensine a viver este momento de dor!"

Já o admirava por tantas causas, mas esta o tornouainda maior diante dos meus olhos. Léo sabia que estavadoente devido às escolhas que fez. Ele mesmo o reconhecia.O seu câncer começou da mesma forma que o do Marcelo.Antes do Léo adoecer, muitas vezesouvia de sua boca: "Vou

d " E "n Lé "E Imorrer ce o. eu perguntava: ror que, o? e e res-pondia: "Já fumei muito na vida!"

Acompanhei sua mudança. Léo deixou o cigar-ro e empenhou-se em uma vida regrada e com muitadisciplina alimentar, mas infelizmente não deu tempo.Os anos em contato com as toxinas da nicotina falarammais alto.

Diante de Deus ele resolveu ser inteiro e honesto.Não pediu que Ele revertesse o destino de suas escolhas,mas apenas solicitou ajuda para saber viver bem o 'tempoda enfermidade. E ele o fez. Escreveu muito, e fez de seutempo no hospital um tempo de profundo aprendizadoe ensinamento.

5 Léo Tarcísio Pereira, membro da Congregação dos Padres do SagradoCoração de Jesus, foi um dos maiores comunicadores da Igreja Católica noBrasil. Morreu de câD.cerem 4 de janeiro de 2006.

A última vez em que apareceu em público, ele nosagraciou com uma pregação que nunca sairá do nosso co-ração. Ele disse: "Não sei por que estou doente. Mas seipara o que fiquei doente. Fiquei doente para ser mais pa-dre, mais amigo, mais filho".

Naquele momento, padre Léo nos ensinou, mais umavez, um jeito bonito e responsável de crer em Deus. Umacrença que nos coloca na busca das coisas do alto. Umabusca que se desdobra em atitudes concretas de conver-são diária. Mudança que começa no que comemos, no quefalamos, no que ouvimos, enfim, mudança que abarca atotalidade da vida humana.

Nossa conversãonão é mostrada somente no momentoem que dobramos os joelhos no chão para rezar,mas tambémno momento em que apagamos o cigarro de forma definitiva.

Nossa conversão não acontece somente no momentoem que confessamos os nossos pecados e deles nos dizemosarrependidos, mas também no momento em que retiramosde nossa casa os litros e litros de álcool que costumamosingerir socialmente.

Conversão também passa pela cozinha, nos alimen-tos que preparamos para os nossos filhos, naquilo que osensinamos a comer, naquilo que lhes damos para beber.Refeição saudável é um jeito honesto que temos de pedira Deus que nos conserve com saúde. É a parte do milagreque só nós podemos realizar.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

Conversão também precisa atingir nosso cuidado como corpo. Gorduras acumuladas podem ser sinônimo de fal-ta de disciplina. Respiração ofegante, após subir uma esca-da, pode ser também sinal de que precisamos nos convertera Jesus e ao seu projeto tão audacioso de mundo novo.

Não tenho notícias da existência de uma novena paraemagrecer, a não ser que seja rezada correndo. Crer na in-tervenção de Deus só é honesto mediante a experiência daatitude comprometida.

Não podemos ser infantis a ponto de acreditar queDeus nos emagrecerá e nos livrará dos perigos do infarto,mediante orações e exercícios de piedade. Orações não po-dem nos livrar das responsabilidades que se desdobram ematos concretos, nem tampouco podem estar a serviço denossa preguiça. Não podemos justificar nossa falta de inicia-tiva com esta história absurda de que Deus fará por nós.

A crença na providência divina consiste em conside-rar que do Dom que vem de Deus sempre nasce uma res-ponsabilidade humana. O Dom nos exige uma resposta. Épreciso reagir diante do que recebemos. Deus nos deu saú-de, mas agora somos nós quem precisamos cuidar dela paraque continuemos saudáveis.

Muitas vezes, a gênese do ateísmo está no jeito comorezamos. Se pedimos a Deus que cuide dos pobres do nossobairro e não fazemos nada para que os pobres sejam cuida-dos, expomos Deus ao ridículo.

Aos olhos dos que não crêem, tudo o que pedimosnão acontece. Mas é claro que não acontecerá. Cuidadohumano é responsabilidade humana. Os pobres só serãocuidados por Deus se nós, movidos pelo amor concedidopor Ele - que nos move para o cuidado -, cuidarmos.

Deus não descerá do céu para fazer o que é respon-sabilidade humana. Da mesma forma como não subire-mos ao céu para realizar o que é divino. O nosso lugar é ahistória, é o concreto do chão. É a vida, a carne, o sangue,a terra.

Se a nossa prece não se transformar em atitude, Deusfica desmoralizado, e o mal continuará prevalecendo sobreo bem.

Este é o grande ensinamento da parábola do samari-tano, que está em Lc 10,29-37. Nesta parábola, o protago-nista é o próprio Deus.

Diante de seus olhos está um de seus filhos, em con-dições de abandono. I;erido, ele espera por ajuda, carece demisericórdia, de cuidados que lhe curem as dores.

Deus já está nesta história, sofrendo no que está fe-rido. Sua presença na interioridade do ferido o anima e oapóia para que viva da melhor forma possível aquele mo-mento doloroso.

Deus está com o caído em sua total integridade. Édaexperiência do sofrimento da carne que Deus precisa liber-tá-Io. Há um risco de vida, um sangramento que precisa

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ser estancado, mas este gesto redentor só poderá acontecerna vida do sofredor se uma atitude humana for tomada.

O desejo de Deus para a vida do sofredor está nasmãos dos humanos que passam por ali, na cena do acon-tecimento. Deus e o ser humano são complementares nasolução deste problema.

A parábola nos fala justamente deste embate entredesejo de Deus e atitude humana. É nesta perspectiva queo texto é construído. O desejo de Deus é que o homem sejasocorrido, mas para isso Ele precisará de braços humanos.

O primeiro a passar pela cena é um sacerdote.Apressado com seus afazeres, vê o necessitado, mas não oajuda. Naquele momento, Deus experimenta a impotênciado amor ferido. O sacerdote não sente como Deus, e Elenão pode forçá-Io,ao amor. O corpo caído era o apelo, masele não quis responder.

O mesmo se dá com o escriba, e mais uma vez não háresposta humana diante do sofrimento ali exposto. O feri-do continua sangrando, e Deus perde mais uma vez. Quemo derrotou? A indiferença do escriba.

Finalmente passa um samaritano que resolve tomara iniciativa. Deixa-se guiar pelo impulso salvífico de Deus,experimenta a liberdade que o potencializa para o amor econcretiza o desejo de Deus na vida do homem ferido.

Por meio do samaritano e do dono da pensão onde ohomem ferido foi acolhido, Deus finalmente pôde agir.

O samaritano e o proprietário do estabelecimento se pres-taram a ser a mão de Deus. Mão que foi estendida mediantea solicitação divina, porque o amor com que amaram o ho-mem ferido nasceu do impulso que veio do próprio Deus.

A intervenção compreendida desta forma retira deDeus a responsabilidade pelo náo amor. Se aquele homemcontinuasse ali e não recebesse os cuidados necessários, cer-

tamente morreria.

Depois de morto, uma pergunta desconcertante pode-ria ser feita pelos que não crêem: "Onde estava Deus no mo-mento em que aquele homem necessitava de ajuda? Ondeestava a misericórdia que vocês costumam anunciar?"

Teríamos que responder: "Deus estava sufocado nocoração indiferente do sacerdote. Estava gritando, mas nãofoi ouvido. Ele estava amarrado na indiferença do escriba.Ele insistiu para que parasse, mas não conseguiu. Deus es-tava de mãos atadas diante do desamor humano. Ele estavaperdendo, porque não pode nos forçar ao amor. Ele estavaindignado, abatido, do mesmo jeito como certamente fi-cou no dia em que mataram o Filho Dele!".

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Muitas vezes, na tentativa de responder aos absurdos

do mundo

nós nos equivocamos em absurdos ainda maiores.

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Capítulo

16

Deus e os absurdos do mundo

Não temos o direito de pedir a Deus que faça umcírculo ser quadrado. Como vimos, as regras da vida pre-cisam ser consideradas. Se compreendermos estas regras,certamente vamos alcançar uma fé madura e crescer como

pessoas responsáveis.

A psicologia nos ensina que um dos elementos queacenam para a maturidade da pessoa é justamente suacapacidade de assumir as responsabilidades e responderpelos erros.

O nosso jeito de praticar a religião nem sempre é madu-ro, isso porque muito facilmente acreditamos que Deus resol-verá todos os nossos problemas. Insistimos em acreditar que

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Ele nos livrará de todas as conseqüências de nossas escolhaserradas, e que uma vida em Deus é uma vida sem problemas.

Engano. Quanto mais crescemos em Deus, maior é anecessidade que temos de purificar os nossos excessos.Estesexcessosse dão em todos os detalhes de nossa personalida-de, desde as nossas compreensões mais simples até mesmoàs compreensões mais elaboradas.

O jeito como reagimos diante de uma determina-da situação depõe contra ou a favor do que consideramoscomo maduro em nós. A maneira como interpretamos ascoisas ruins que nos acontecem é um modo interessante demedir o nosso grau de maturidade.

Um exemplo simples. Um rapaz embriagado atrope-lou uma menina de seis anos no centro de uma cidade,no interior da Bahia. Para livrar-se da responsabilidade doacontecido, o rapaz recorreu ao absurdo de dizer que estavapossuído pelo diabo, e que por isso matou a menina.

Ao utilizar-se de um argumento como este, o rapazdemonstrou ser realmente vítima de uma única possessão,a ignorância.

Responsabilizar o diabo por sua irresponsabilidade? Ésimples demais. Não é problema algum reconhecer que oálcool é um instrumento diabólico no mundo, mas culparo diabo por nossas escolhas, isto não podemos fazer.

As estatísticas comprovam que muitos acidentes sãoprovocados pelo uso abusivo de bebidas alcoólicas, mas a

escolha por tudo o que desencadeia o mal no mundo ésempre humana. Assim como somos capazes de escolher obem, também escolhemos as coisas ruins.

Ao culpar o demônio pelo absurdo de sua displicên-cia, o rapaz tenta se eximir de forma imatura e vergonhosada responsabilidade de pagar pelo crime cometido.

A maturidade também se expressa no que pedimos.Outro exemplo simples. Uma pessoa fumou a vida inteira,nunca se esmerou por lutar para deixar o vício, e, num de-terminado momento, descobre que tem câncer. Então secoloca a pedir a Deus um milagre.

É justo? A doença não nasceu das escolhasque fez?Seráque Deus tem como mudar os destinos de nossas sementes?Ele não estaria desrespeitando a nossa liberdade? Tenho odireito de querer colher o que na verdade não plantei?

Acho pouco provável. Há um jeito mais interessantede pedir a Deus um milagre: mudar de atitude, antes que

nasçam as doenças.O milagre é realizado a quatro mãos. Mãos de Deus e

mãos humanas. Aquilo do qual cuido hoje, mediante a ex-periência de minha disciplina, é o milagre que Deus já mereservou. O que deixo de fazer, ou o que negligencio agora,poderá comprometer o bem a que Deus já me destinou.

Deus não quer as tragédias do mundo. Sejamos since-ros. As tragédias humanas são construídas aos poucos, pornós mesmos. É preciso maturidade para assumir. Jogar a

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Quando o sofrimento bater à sua porta

culpa de nossas desgraças nas costas de Deus é muito sim-ples. Assim ficamos eximidos de qualquer responsabilidadeou comprometimento.

Grandes acidentes começam com pequenos descui-dos. Minha irmã morreu de maneira absurda, porque umaregra simples foi desconsiderada. Um detalhe pequeno, quefoi definitivo para que ela não sobrevivesse ao acidente.

A regra que deveria ter sido obedecida muitos de nósjá a conhecemos. Em bagageiros de ônibus, desses que fi-cam logo acima das poltronas, não é permitido que sejamtransportadas bagagens que excedam cinco quilos.

Quando o ônibus em que minha irmã viajava tom-bou, uma barra de ferro, que estava sendo transportadanum destes bagageiros, caiu sobre ela e perfurou seu peito.

Uma fatalidade, eu sei, mas fruto de uma negligênciahumana. O responsável pelo ônibus não deveria ter permi-tido que aquele objeto estivesse ali. Se a regra tivesse sidoobedecida, a história poderia ter sido outra, e que!Jl sabeminha irmã poderia estar aqui, cuidando do filho dela, afi-nal, só ela morreu naquele acidente. Morreu porque umairresponsabilidade foi cometida.

Recordo-me que durante o velório as pessoas tenta-vam nos consolar com frases feitas: "Deus sabe o que faz!","Chegou a hora dela!".

Deus sabe mesmo. Quem não sabe somos nós! Chegoua hora coisa nenhuma. A vida e a morte estão em nossas mãos.

Ao dizer que nem mesmo um fio de cabelo cai de nossa ca-beça sem que o Pai do Céu o permita, Jesus não se refere aacidentes absurdos como estes.

A permissão de Deus está sempre conectada à nature-za de sua bondade. Deus é bom. Não há variações em suavontade. O seu querer para a vida humana é sempre a vida,e a vida em abundância. De Deus não nascem tragédias. Osacontecimentos trágicos do mundo não são frutos de per-missões divinas, e sim de deliberações de nossa vontade.

Explicações equivocadas como estas que foram decla-radas durante o velório fortalecem ainda mais o ateísmo nomundo. Não posso conceber que Deus tenha criado minhairmã para que morresse naquele acontecimento tão fatídico.Não posso crer que Deus possuísse um plano que consistisseem vitimá-Ia no auge de sua vida, no momento em que luta-va para educar o seu filho, em conduzi-Io bem como mãe.

Sei que quem o faz não tem a intenção, mas estas tentati-vas de consolar os que sofrem atentam profundamente contraa bondade de Deus. Dizer que uma tragédia nasceu da vonta-de divina é o mesmo que dizer que Deus não é Deus, afinal,com este discurso nós o reduzimos a um carrasco cruel.

Se nós, que somos humanos, marcados pelos limitesdo pecado, não somos capazes de destinar à morte trágicaos que amamos, muito menos Deus o faria. Ele, que é na-turalmente amor, jamais entregaria ao risco a vida de umamulher que trabalhava para sustentar o filho.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

Por isso, é inaceitável concordar com a opinião deque Deus permitiu que minha irmã morresse de manei-ra tão trágica. Ainda prefiro acreditar que sua morte foifruto de negligência humana. O Deus a quem conhecidesde criança é Amor. Ele não é um monstro que co-manda o mundo com sua predileção por paixões trágicase sangrentas.

No momento em que chorávamos aquela fatalidade,Ele chorava conosco. Ele também sentia muito, porquemais uma vez a irresponsabilidade humana prevaleceu.Deus perdeu, do mesmo jeito que nós.

Mas você poderia me perguntar: "Mas por que Elenão evitou o acidente?" E eu lhe responderia: "Porque Ele nãodesrespeita as ordens que damos ao mundo!"

Ao permitir que aquele objeto fosse transportadoem um local inadequado para aquele tipo de bagagem,o responsável pelo ônibus deu uma ordem ao mundo so-bre a qual Deus não poderia interferir. A continuidadeda criação depende dos gestos humanos. Ou construímoso que Deus quer para a vida, ou destruímos. Os gestoshumanos estão diretamente ligados à dinâmica da conti-nuidade do universo.

O que faço, por menor que seja, sempre repercute,mais cedo ou mais tarde, na seqüência do mundo. A negli-gência prevaleceu sobre a vida de minha irmã, e por isso suamorte aconteceu~

Mas você poderia, mais uma vez, perguntar: "Ele nãopoderia ter evitado o acidente?" E eu responderia de outraforma: "Poderia sim, se alguém tivesse agido por Ele; al-guém que tivesse percebido aquela bagagem sendo colocadaem local indevido e chamasse a atenção do responsável pelo

. .. "pengo Immente .

Quem sabe assim Ele teria evitado a fatalidade, nãopor meio de uma intervenção sobrenatural, e sim pormeio de um cuidado humano: alguém que tivesse per-cebido o perigo e, movido por um desejo de reorganizaro mundo, se levantado de seu cômodo lugar, a fim depedir ao responsável que guardasse aquele objeto no lu-gar apropriado.

Naquele mesmo momento em que minha irmã mor-ria, milhares e milhares de pessoas no mundo também mor-riam por causa de outras negligências humanas. E comoficaria a situação destas pessoas? Deus teria que mudar odestino de todas elas? E a liberdade humana? Deus viveria

S ,. ~ ;la nossa vida por nós? enamos mariOnetes em suas maos.Seria essa uma atitude madura da parte Dele?

Pais que querem ver os filhos maduros não assumemas responsabilidades que são próprias deles. O máximo quefazem é orientar as decisões, aclarar os caminhos, mas nun-ca viver por eles.

Deus nos orienta pela sua palavra, pelos ritos religio-sos que praticamos, pela força de sua presença e por meio

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do que chamamos bom senso. O resto é responsabilidadeque precisamos assumir.

Todavia é muito mais fácil tentar resolver o resultadodas tragédias a partir de nossas respostas prontas. Ao dizerfrases simplistas como Deus quis assim! Épreciso que a gentese conforme!, retiramos do acontecimento a sua sacralidadee o transformamos em algo banal.

Éuma tentativa de evitar o conflito. É uma forma quetemos de calar o choro que nos incomoda, a dor que nossufoca, pois não queremos ninguém triste ao nosso lado.

A tristeza do outro nos chama atenção para nossastristezas, e nem sempre temos coragem de enfrentar as de-sarmonias de nosso mundo pessoal.

Muito mais interessante seria se a gente tivesse a sa-bedoria e a coragem de reconhecer as falhas humanas, mes-mo que para isso tivéssemos que permanecer sem respostaspara as nossas questões.

A morte de minha irmã nos abateu muito, mas es-tamos todos curados. Ninguém de nossa casa quis se en-torpecer com as respostas mágicas oferecidas a nós. Aindaacreditamos que ela morreu antes da.hora. Deus não evitouo acidente, mas nos deu forças para que permanecéssemosde pé.

Não acreditamos na hipótese absurda de que o aci-dente foi uma permissão de Deus. Não precisamos culpar

Deus para aprender a conviver com nossas tristezas e com aausência deixada por ela.

Não perdemos a fé, nem a esperança. Continuamosa nossa caminhada tão cheia de lutas e desafios. Por vezes asaudade é maior do que nós. Então a gente se rende como sefossemos crianças pequenas necessitadas de colo, e Deus nosconsola. Não escondemos o choro, pois ele nos purifica.

De uma coisa nos orgulhamos. Nunca colocamos aculpa sobre os ombros de Deus. Seria injusto demais. Damesma forma que sofremos quando nos caluniamos, creioque o mesmo acontece com Ele. Não gosto que acuseminjustamente os que amo. Defendo-os sempre, porque umabonita face do amor é a defesa.

Além disso, o ateísmo cresce no mundo, sobretu-do no momento em que as pessoas percebem que o Deusanunciado por nós é pior do que nós mesmos. Não mata-ria a minha irmã, e tenho certeza que ninguém colocariacomo destino inevitável a morte trágica de alguém que ama.Muito menos, Deus!

A experiência da morte de minha irmã continua nosensinando. Não buscamos o sofrimento pelo qual aindapassamos até o dia de hoje, quando pela força da saudade,sentimos o desejo de ver chegar na porta, a nossa irmã tãocheia de sorrisos. O que não podemos negar é que alguém,mesmo inconsciente, buscou este sofrimento por nós.Poderia ter sido evitado, mas não foi.

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Assim como o sofrimento de Marcelo e sua família.As escolhas da vida se transformaram em morte anunciada.Também poderia ter sido diferente, caso Marcelo tivesselevado a sério as inúmeras advertências a respeito dos riscosdo cigarro. Mas não foi.

Não culpamos a ninguém. Culpas não resolvemos nossos problemas. Apenas nos tornam mais pesados.Não importa encontrar e olhar nos olhos os responsáveispela tragédia. O que importa é aquilo que recolhemoscomo aprendizado.

Depois da morte, sempre vem a ressurreição. Nãoqueremos culpas. O que queremos é que o acontecimentocontinue nos ensinando. Sempre fico de olho nos bagagei-ros dos ônibus. É um jeito próprio de fazer justiça à mortede minha irmã.· Grandes milagres costumam nascer de pe-quenos cuidados.

Não posso mudar o fato, então decido permitir queele me modifique. Quem sabe assim fique mais preparadopara enfrentar a pergunta dramática que a vida 'costumanos fazer: E agora?

17

E agora,José?

Existem algumas formas de sofrimento que parecemnos colocar diante de um beco sem saída. Não há para ondefugir. É como se estivéssemos diante da própria vida a nos

perguntar - e agora?O poeta mineiro, Carlos Drummond de An~a~e,

escreveu um poema muito simples, mas de beleza e slgmfi-cados muito profundos.

O poema gira em torno de inúmeras perguntas, to-das endereçadas a um tal José. A universalidade do nomenos proporciona pensar que Drummond qu.eria colocartoda a condição humana diante daqueles questlonamentos.

Ele diz:

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Ao colocar este tal José diante da dureza do "agorà', opoeta parece querer forjar uma reação positiva, como se de-sejasse acordar José de uma espécie de letargia paralisante.a agora está aí, e é preciso reagir. Não há para onde fugir.

a agora parece condensar toda a dureza da vida, demaneira que José não tem para onde ir, senão para dentrode si mesmo. José não tem a quem procurar, senão porele mesmo.

a poeta e sua sensibilidade tão aguçada par~m forne-cer, neste poema, uma interessante chave para a interpretaçãodo sofrimento.

Já experimentei na carne, e creio que você tambémjá tenha experimentado. Por vezes, a dor nos coloca emcaminhos estreitos. Ela nos retira das ilusões, porque é cruacomo a carne que nos prende aos ossos. Por isso que podenos fazer crescer, quando administrada de um jeito certo.

Nas histórias das mães que perderam os filhos, Wâniaquis a redenção e Maria Clara quis a pergunta infértil.Diante de agoras semelhantes, as reações se diferem. A vidalhes emparedou da mesma forma que Drummond a José.Minha mãe também sofreu o mesmo golpe. Viveu o infer-no de ter que sepultar uma filha, alterando assim a ordemnatural da vida, cuja regra deveria ser a de que os pais ja-mais sepultassem os filhos.

Diante do fato tão cruel, a pergunta da vida foi fei-ta: E agora, Ana? E agora, Wânia? E agora, Maria Clara?E agora, você?

a poeta continua a mostrar a realidade ao José.

já não pode beber,

já não pode fumar,

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A dinâmica das palavras parece construir um labirinto,como se jogasse José para o lugar onde ele verdadeiramentedeveria estar naquele momento. As palavras se encaminhampara uma única possibilidade, como se o poeta oferecessea José uma única estrada e que se mostra sempre na últimapergunta - e agora?

O poeta realiza o mesmo caminho que o sofrimentorealiza na vida humana. Encaminha para a pergunta fim-damental- e agora?

Asestradasque eram tantas foram reduzidas.É precisoes-colher o que faremos.Já não temos mais tudo o que ~os.O filho está morto. O desastre aconteceu. O rio prevaleceu.O muro está no chão. E mais·uma vez a pergunta - E agora,W'ania?E agora, Maria Clara?E agora,João?E agora, você?

E agora José?

Sua doce palavra,

quer ir para Minas,

Minas náo há mais.

A insistência da pergunta do poeta é para acordarJosé. Diante do sofrimento, não temos o direito de dormir.Épreciso velar, buscar o caminho, mas não o caminho fácildas fugas, e sim o mais exigente, o mais tenebroso, o maiscruel- o que nos leva a nós mesmos.

Recordo-me que desde o momento em que minhamãe recebeu a notícia de sua filha, Heloísa, da não quis

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tomar nenhum medicamento que a deixasse mais calma.Ela me dizia olhando nos olhos: "A gente tem que vivertudo, não tem meu filho? Não podemos fugir de nada, nãoé mesmo? Deus está comigo. Ele vai Jile dar força!"

E assim aconteceu. Em nenhum momento ouvi umablasfêmia saindo da bo~ daquela mulher. O choro silen-cioso, calmo, profundo, em nenhum momento cedeu lugaraos gritos de desespero.

É justamente esta dureza que precisa cair por terra.Sofrimento é experiência de humanização. José precisa se hu-manizar. Ao perder todo o contexto de suas possibilidades,não lhe restamuita coisa senão o destino de sua humanidade.

José era duro. Não sabia cantar, não sabia gritar, não sabiagemer. O poeta lhe demonstra o quanto sua insensibilidadelhe impede de vencer as forças do agora. Nem para morrerJosé está pronto. A dureza lhe priva até mesmo da soluçãomais fácil, a mais covarde.

Minha mãe já estava totalmente imersa na realidade.Desde criança aprendera a sofrer com as perdas. Nasceumuito pobre. Sorveu a vida a partir dos sopros das restri-çóes. Nunca teve seus próprios vestidos, sapatos. Herdavadas filhas das patroas de minha avó.

Minha mãe nunca foi poupada de sofrimento, porisso aprendeu a sofrer. Mas José, o personagem, e tantos denós ainda não sabemos.

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a poeta encerra as perguntas a José entregando-lhe amesma exigência com que começara. E agora, aonde é quevocê vai, José?

a pano de fundo da interrogação poética são o agorae o onde. A questão está colocada e José precisa se encami-nhar para dentro de si mesmo.

a personagem de Drummond não pode continuarfugindo. Diante do "agorà' tão doloroso, José precisa reagir.a mesmo se dá no horizonte de nossa história pessoal.Às vezes nos deparamos com a vida e sua pergunta tão in-cisiva - E agora?

Naquele dia 9 de abril de 1996, no agora daquele so-frimento tão agudo, vi a mulher que me trouxe ao mundoviver um dos mais dolorosos ca1váriosjá enfrentados porela, até os dias de hoje.

Mas, diante da pergunta, ela respondeu com muitasabedoria. Ergueu os olhos e não quis fugir de nada, nemde ninguém. Firmou os seus pés na certeza de que o sofri-mento não era o fim e encontrou o seu aonde ir. .

E é na direção deste ir sem fim que ela continua indo.Ela vai envelhecendo, perdendo a vitalidade, mas sem per-der a ternura e o sorriso tão cheio de simplicidade. Umsorriso leve, tímido, mas encorajado por uma autoridadede quem soube chorar do jeito certo. É o sorriso de Ana, omesmo que lhe faz ganhar mesmo quando tudo parece serperda, tristeza e desolação.

o menino e sua mãe ao colo

Descansa no meu colo

tua cabeça de mulher.

Deixa que eu seja o teu pai,

ainda que por um instante.

Vivamos o parto às avessas.

Eu, que sou teu filho,

por ora quero ser teu pai.

Só para ter o prazer de

te ver menina tão cheia de sonhos.

Só para puxar os teus cabelos

e nele colocar laços bordados de alegrias.

Cores de tempos antigos, distantes,

quando nem imaginavas

que um dia eu seria o teu filho.

Fica quietinha por aqui.

Permita que eu cuide de tuas coisas,

teu guarda-roupas tão cheio de desordens,

não importa.

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o remédio eu te trarei,teu alimento eu plantarei, e ajeitarei

o teu travesseiro de um jeito que gostes.Só para descobrir a alegria

de reverter os poderes do tempo,inverter a ordem dos fatos.

Só pra ter a graça de te chamar deminha filha,

minha menina,minha Aninha.

Só para ter a graça de evitar teuschoros futuros,

tuas dores constantes,teus medos tão delicados.

Medo de me perder,de que eu morra antes da hora,

e de que não estejas por perto nomomento em que eu precisar de

tua mão, como no passado,quando me conduzias contigo,

como se fossemos um só,

um nó de gente,amarrado e costurado

no amor que sobrava do teu peito.Amor que Deus esqueceu no mundo

e que eu vi de perto,quando o sofrimento entrou pela janela

de tua casa,e mesmo vendo partir as carnes que

nasceram do teu ventre,o teu olhar me encorajavaa não desanimar da vida.

E juntos, seguimos atados pela estrada,que é feita de sonhos,de tristezas e de risos.

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Capítulo18

A velhice e as perdas naturais

A juventude é um período que favorece muitas fu-gas. A vitalidade do corpo, a vida agitada, os muitos com-promissos, as múltiplas possibilidades, tudo faz com queeste tempo da vida seja naturalmente dinâmico. A impulsi-vidade é a marca desta fase.

Com o passar do tempo, esta dinâmica vai se trans-formando. Vamos ficando mais lentos, mais criteriosos, e oleque que antes era formado de inúmeras possibilidades vaise tornando mais estreito.

São as estações da vida e suas mudanças constantes.São os encaminhamentos naturais do tempo a nos conduzirao lugar da pergunta - E agora? O tempo passou e a velhicechegou. E agora?

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A escritora mineira Adélia Prado fala, de forma muito in-teressante, dos impactos da velhice na vida humana. No poema"Pedido de adoção", a escritora identifica na personagem a sau-dade de ter mãe. Esta orfandade é.reconhecida no auge da ve-lhice, momento da vida em que os limites lhe aprisionam e lhefaz querer os mesmos cuidados que as crianças. Veja com quebeleza e simplicidade a autora faz a leitura deste sentimento.

cabelos para trás,

os dedos cheios de nós,

Ó meu Deus, pensava

que só de crianças se falava:

o sentimento de orfandade lhe confere a coragem dequerer o retorno no tempo, de driblar a crueza de sua idadee reivindicar o direito de ter um colo onde deitar a cabeçae receber os cuidados maternos.

A personagem manifesta o desejo de voltar a se en-rolar no tecido da descendência, como se quisesse suturarsua carne já envelhecida à carne jovem de sua mãe, que sóexiste em suas saudades, e assim rejuvenescer.

É a personagem diante do fato inevitável de que otempo passou e que agora, velha, como um dia estivera suamãe, reconhece em sua alma a mesma condição em quecostumamos classificar as crianças órfãs.

A personagem e a velhice. Destino inevitável que ospés humanos encontrarão ao longo da existência.

Não há outro jeito. É regra da vida. Envelhecer é umprocesso natural. O corpo que antes possuía uma vitalidadeextraordinária, aos poucos, bem aos poucos, vai se curvan-do aos ditames do tempo. Estamos expostos aos efeitos dochronos, o tempo que passa.

Desde o nascimento, o corpo se encaminha para o seuprocesso final. Nasce direcionado para o fim, uma vez queo seu percurso terá como meta a sua desmaterialização.

Durante este percurso viverá as diversas fases davida, extraindo de cada uma delas suas possibilidades eseus limites.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

o corpo é território da realização humana. Nele asubjetividade está encarnada. Gostaríamos de salientar.mais uma vez. que esta distinção corpo e alma é meramen-te didática. e que se por vezes parecer haver a dicotomia.ela terá como único objetivo facilitar a reflexão. Cremos naunidade do ser. Somos corpo e alma.

O corpo é a casa das possibilidades. mas tambémé a casa dos limites. O sofrimento físico é experimen-tado desde as nossas primeiras horas de vida. Como vi-mos anteriormente. nascemos em processo de dores. Orecém-nascido é exposto à violência do mundo externo.Deixa o lugar aconchegante de sua primeira morada paraenfrentar as variações de temperatura que são próprias donosso ambiente.

Ao longo da infância. adolescência e parte da juventu-de. sofremos o processo do crescimento. Ossos e músculosse avolumam. Formas vão sendo modificadas. vida que vaiencaminhando o corpo para as diferentes etapas. Quedas.joelhos esfolados. braços e pernas quebradas fazem parte dohistórico feliz de muitas infâncias.

Por ser constituído de matéria frágil. durante toda avida o corpo experimenta o sofrimento da dor física. Comojá mencionado. a dor é uma resposta do corpo. cujo obje-tivo é anunciar que algo não vai bem. A dor parece fazerparte do instinto de preservação da vida. Ela presta o ofíciode denunciar que algo está errado. É o corpo dizendo a ele

Fábio de MeioImesmo que há uma desordem a ser considerada. Algum de- Italhe do seu funcionamento está em desarmonia e algumaatitude precisa ser tomada.

A dor é uma forma de anúncio. É uma reação na-tural do corpo que não quer sofrer. do corpo que careceser socorrido. Ao demonstrar a ameaça do limite. o corporeivindica tratamento. atenção.

Interessante. mas a dor parece ser uma fala do corpoque não quer morrer. É como se ela se tornasse represen-tante do medo que sentimos do destino final.

Dessa forma. a dor se configura como denúncia deuma fragilidade inegável. mas ao mesmo tempo como de-sejo de que esta fragilidade seja suplantada pela força de.alguma forma de tratamento. A antropologia do cuidadotem aqui uma força surpreendente.

Sofrer é sempre processo penoso. Toda vez que somosexpostos a situações dolorosas. acentua-se dentro de nós acondição de fragilidade. A dor fragiliza ainda mais o quejá é frágil. É como se acendêssemos uma luz bem potenteem um canto da casa que não gostamos de ver. A dor nosexpõe à dura verdade de que somos finitos. de que somospassageiros e que em algum momento a aventura da vidadeixará de ser possível para nós.

Ao sentirmos os limites de nossa fragilidade física. écomo se a consciência de nossa morte se estabelecesse. mais

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uma vez, com todo o seu poder de verdade. Morreremos, e avelhice é comumente associada com a ante-sala da morte.

Talvez seja por isso que este tempo da vida causetanto medo e sofrimento em tanta gente. Não é fácilpara ninguém pensar na idéia de destino final. Não éfácil ter que articular dentro de nós a certeza de que onosso tempo de partida está chegando. A velhice nossinaliza para a proximidade deste porto final. Será o fimdesta viagem humana. Esta finalização consiste em acen-tuar ainda mais as perdas que chamamos de necessárias,porque são inevitáveis.

Envelhecer consiste em sofrer um universo de perdas,e nisto está a causa do que nos inquieta. Volto a citar AdéliaPrado, que fala de forma bonita destas perdas em um versodo poema "Salve Rainha".

Ela diz: ''A vida é assim, Senhor? Desabam mesmopele do rosto e sonhos?" A autora, em sua sensibilidadepoética, percebe que no cair da pele do rosto héÍ;tambéma queda de inúmeras realidades que não são materiais.Desabam pele e sonhos. Na pele que desaba está a metáforade uma vida que é modificada por inteiro.

As perdas se configuram como uma espécie de disso-lução do mundo. É a desagregação de estruturas que antesnos davam sustento, que nos concediam alegrias. É a de-composição de uma série de significados que só se adequa-vam às estruturas vitais do corpo.

L

Somos um organismo vivo que se encaminha no tem-po. Sofre os seus efeitos, pois a ele está exposto e condicio-nado. O que antes nos era possível deixa de ser. É a novafase que surgiu; é o novo que se configurou diante dos nos-sos olhos com toda a sua gama de limites e restrições.

Sofrer de velhice é destino inevitável. Os velhos desetenta anos sofrem com os malefícios das sete décadas,mas os não tão velhos de quarenta também já sofrem comas mazelas que são próprias das três décadas a menos. Istoporque a velhice é acontecimento processual, cresce aospoucos, de maneira que não é possível saber o quanto delajá está nos atingindo.

O tempo todo estamos perdendo. O tempo não pára,não dá tréguas. É claro que estas perdas vão se acentuandocom o acúmulo de anos, mas cada fase da vida possui per-das e danos. O inegável é que a velhice começará em nossavida quando nos prendermos nas perdas.

Epicteto, filósofo grego, dizia de maneira muito sá-bia que <áspessoas não são perturbadas pelas coisas, mas pelavisão que têm das coisas". A visão que temos da velhice, istoé, a forma como olhamos para os limites deste tempo, édeterminante para que saibamos, ou não, viver bem estafase final da vida.

A vida não é só perda. Há sempre uma forma de lucrarcom o que perdemos. Discurso simplista e ingênuo? Nãocreio. Olhe para a regra dos vegetais. Uma árvore, quando

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Quando o sofrimento bater à sua porta

submetida ao rigor do inverno, desprende-se totalmente davaidade de tudo o que nela é aparente. As agruras, própriasdo inverno, não lhe permitem perder tempo com folhas,flores e frutos.

A sabedoria vegetal lhe conduz para uma ação muitosugestiva. Diante do sofrimento a que foi submetida, a ár-vore lança todas as suas forças para as raízes. Prende-se aoque é essencial naquele instante. Se insistir em manter suaseiva, para que não perca a vitalidade das folhas, das flores edos frutos, certamente terá que morrer, pois faltará o essen-cial que lhe faça ficar de pé: as raízes. Inverno é um tempoem que a árvore vive para dentro. Interessante.

A planta ultrapassa as pontes das estações, justamenteporque se adapta às diferentes fases para viver. Para cadatempo, um jeito de ser, uma forma de ganhar, uma formade perder, um jeito de permanecer de pé.

Gosto da mística dos construtores de pontes. Eles es-tão sempre prontos para estabelecer instrumentos de liga-mentos. Pontes são mecanismos que favorecem travessias.Os que estão do outro lado poderão chegar ao POnto emque estamos e vice-versa.

Talvezpossamos encontrar na mística dos construtoresde pontes alguma intuição, alguma sabedoria que possa seraplicada nos últimos anos de nossa experiência humana.

Creio que uma forma interessante de minimizarmosos sofrimentos da velhice seja construir pontes entre as fases

L

da vida, assim como as árvores constroem pontes entre asestações do ano.

Há pessoas que não conseguem ultrapassar a fase dosquarenta. Ficam fixadas naquilo que já não \o~em e ~si~constroem uma estrutura de sofrimento infernl. Ao mvesde buscarem o outro lado que a ponte da idade lhe pro-porciona, preferem fixar-se no que já não podem mais. Olamento torna-se sua expressão. Em vez de concentraremsua essência nos benefícios e possibilidades da nova estação,preferem lamentar a estação que se despediu, que já termi-nou, que não existe mais.

Saber finalizar uma fase da vida requer tanta sabedo-ria quanto para iniciar. Exemplo disso é o artista que sabesair de cena no momento certo. Não permite o desgaste da

. mas constrói uma carreira sólida, insistindosua imagem,constantemente no aperfeiçoamento de sua arte. Chegadoo tempo de deixar de exercer o ofício, ele o faz com a tran-qüilidade de quem compreende ter cumprido bem a res-ponsabilidade que lhe coube.

A exposição excessiva é sempre desgastante para aimagem de qualquer artista. Há que se cumprir bem as fa-ses da construção de sua imagem. Ser visto para ser lem-brado, mas nunca ser massificado, a ponto de saturar a suaimagem e torná-Ia indesejada e cansativa.

O mesmo ocorre com os profissionais do esporte.Eles passam pelos momentos iluminados dos pódios e das

149

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conquistas, mas já se preparam para a fase em que os holo-fotes serão apagados. Eles perdem a vitalidade que os colo-cou como destaque no mundo dos esportes, mas passam ainvestir em outras formas de vitalidade que são próprias daexperiência adquirida.

É o caso de tantos bons atletas que se transforma-ram em excelentes empresários do mundo dos esportes.Descobriram que tão importante quanto saber ganhar ésaber perder, pois só assim poderão ganhar de outro jeito,de outras modalidades.

O pódio muda de lugar. Já não serão os olímpicosou dos grandes campeonatos esportivos, e sim os pódiosda realização pessoal, cujas medalhas não brilham no pei-to, mas podem ser percebidas no brilho dos olhos - frutoda satisfação de ter se construído como profissional, massobretudo como pessoa que soube lidar com as pontesdo tempo. .

.Essa sabedoria precisa ser incorporada. Muitos sofri-mentos são causados na nossa vida porque não sabemos per-der, não sabemos atravessar a ponte, não sabemos mudar deestação. Não seremos eternamente jovens, mas nem por issoestaremos fadados a viver a condenação da infelicidade.

A realização humana é possível em todas as etapas davida. O importante é saber viver bem o específico de cadatempo, pois esta é uma forma interessante de construir osalicerces da próxima etapa.

Perder, nós perderemos sempre, mas as perdas são tãonecessárias quanto os ganhos. É só olhar diferente para elas.Se assim o quisermos, elas se configurarão como portas para

muitas outras possibilidades.

É tão comum encontrar idosos de bem com a vida,felizes. Que riem dos próprios limites. Não ficaram paradosnos limites trazidos pelo tempo, mas fizeram deles motivopara encontrar novas formas de ser e viver. Não colocaramidade nas suas vidas, e sim vida nas suas idades. Cruzaram

as pontes, quiseram pisar o outro lado.

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Quem foi que assim nos fascinoupara que tivéssemos um olharde despedida em tudo o que

fazemos?

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Capítulo

19

o sofrimento da travessia

Uma história interessante que pode ilustrar bem estanecessidade de travessia é a história de Áurea, uma mulhermuito bem-sucedida profissionalmente que não soube en-carar o tempo de deixar o trabalho.

Áurea sempre foi competente. Desde os primeirosanos de escola já demonstrava sua inegável aptidão paraos números. Aluna brilhante em todas as fases da vida aca-dêmica, Áurea cursou faculdade de contabilidade e nestaárea se tornou doutora. Trabalhou, desde o tempo do colé-gio, em setores administrativos de pequenas empresas, atéconseguir uma oportunidade numa grande multinacionalonde fez carreira brilhante. Só nesta empresa foram vinte eoito anos de serviços altamente bem desempenhados.

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o tempo de aposentar-se chegou. Áurea pensou queviveria o sossego que sempre sonhou, mas estava enganada.Já no primeiro mês, sem a obrigação do trabalho diário, elaapresentou sintomas evidentes de ansiedade e depressão.

Conheci-a casualmente. Ela ajudava sua irmã, que ge-renciava o hotel, numa questão administrativa. Estava hospe-dado por lá. Muito educadamente ela chegou, apresentou-se,e juntos tomamos o café da manhã. Em rápidas palavras, elaresumiu um pouco de sua vida e do sofrimento que enfrenta-va naquele momento. Disse-me que não sabia não trabalhar.

Aprendera desde muito cedo que o trabalho é a cha-ve da realização humana, e que agora, já aposentada, nãoconseguia mais enxergar alguma possibilidade de realizaçãopara sua vida.

Áurea era muito sincera em sua confissão. Os olhosdemonstravam uma verdade envolvente, aptidão de quemjá fez pacto com a verdade, e que agora não consegue maisdescobrir motivos para evitar a transparência.

Áurea não se casou. TInha uma excelente condiÇão finan-ceira, fruto de uma vida inteira de intensa dedicação, mas nãosabia nem mesmo o que fazer com o dinheiro que acumulara.

Ela administrou muito bem a empresa em que tra-balhara durante boa parte de sua vida. Uma administraçãomarcada pela excelência e pela postura naturalmente coor-porativa. Era competente no que fazia, e disso eu não tinhadúvida. O seu rosto demonstrava tudo isso.

Áurea estava diante de um impasse cruel. Ela precisaadministrar a própria vida, mas lhe faltava competênciapara isso. Ela não tinha diante de si o desafio de articu-lações financeiras complexas. Não estava lidando com osriscos da bolsa de valores, nem tampouco com um clienteque precisava de segurança para investir em sua proposta.

Áurea estava diante da miudeza dos seus dias, da ne-cessidade simples de descobrir um motivo para continuar apercorrer as pequenas distâncias de seu novo mundo.

O impasse estava estabelecido. A contradição tam-bém. A mulher forte e segura do mundo dos negócios es-tava absolutamente fragilizada diante do desafio de ser feliz

nesta nova fase de sua vida.

Áurea estava diante de seu fim de história, dos últi-mos anos de sua vida, e corria o risco de finalizá-Ia de formaabsolutamente contrária à forma como levara a sua vidainteira. Não estava sendo capaz de qualificar o novo tempoque surgia. Ela, que sempre fora uma mulher de qualidade,

estava entregando os pontos na reta final.

Ao terminar a fase de trabalho intenso, aquela mu-lher tão dotada de competência administrativa não sabiacomo atravessar a ponte que estava estendida em seus pés.Em seu sofrimento concreto, Áurea experimentava dia-riamente uma desolação profunda, logo pela manhã, aoperceber-se inapta para a vida, sem muitas exigências, que

agora experimentava.

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Ela não sabia programar o seu tempo. Não sabia nãoter que ir para a empresa. Ela se sentia inútil, como se suaaposentadoria fosse uma declaração pública de que o seutempo estava findando.

Áurea precisa inaugurar um novo tempo em sua his-tória. Precisava redescobrir um novo jeito de aplicar a vi-talidade que era tão própria de sua atuação profissional.Precisava abrir o leque de suas novas possibilidades.

É interessante, mas não é raro encontrar pessoas quese prendem ao passado por esta mesma causa. Gente quetrabalhou uma vida inteira e que ao final da vida não sabedescobrir os benefícios de uma rotina mais leve, sem agen-da pesada a ser cumprida.

O grande problema é que, diante da necessidade demudar a rotina, a pessoa não descubra o novo e amplo ho-rizonte de possibilidades oferecido pela nova fase. É nesteinstante que a pessoa necessita mergulhar nos seus sonhos.

Conversando com Áurea, perguntei-lhe soqre os so-nhos da juventude. Ela me contou alguns. Insisti se haviaalgum que ainda não tinha sido realizado. Ela sorriu e con-fessou-me que sempre quis aprender piano. Foi então quea desafiei a começar a estudar. Ela disse que estava muitovelha para isso.

Naquele momento, recordei-me de uma canção mi-neira, uma das tantas nascidas do frutuoso movimentoque conhecemos como Clube da Esquina, que diz assim:

"Porque se chamavam homens também se chamavam sonhos,e sonhos não envelhecem'{j. - O verso se tornou a pauta de

nossa conversa.

Áurea era jovem demais para ser deixada no sosse-go. Ainda que não tivesse mais a vitalidade para comandaruma grande empresa, como no passado, ela poderia muitobem viver para administrar os seus pequenos sonhos.

Vi naquela ponta de corda o sonho de aprender pia-no, alguma coisa que me favorecesse puxar para fora agrande mulher que ainda existia por trás daquela aparência

tão desanimada.

Homens e sonhos se confundem e se completam emfusões constantes. Somos a mistura de sonhos e realidades.Há uma inegável conexão entre os dois pontos, e o queÁurea precisava· descobrir era um jeito de fazer com queos sonhos da juventude cumprissem, agora, o papel de lhedevolverem a vitalidade aparentemente perdida.

Sonhos não envelhecem. Eles sobrevivem, mesmocom o acúmulo dos anos, e por isso eles podem funcionarcomo fórmula para rejuvenescer a alma, enchendo-a de no-

vas e surpreendentes perspectivas.

Áurea aceitou a proposta. Comprou um piano econtratou uma professora. Foi uma descoberta fantásti-ca. Conseguiu descobrir no novo aprendizado um jeito de

6 Clube da Esquina 2 - Milton Nascimento/ Lô Borges.

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ocupar o tempo. Naturalmente afeita aos desafios, tornou-se aluna de extrema dedicação.

Em poucos meses, Áurea já estava bastante inteiradada linguagem musical e com uma excelente habilidade nasmãos. Condicionou que o mesmo tempo que dedicava àempresa, agora seria dedicado ao estudo do piano. A ini-ciativa lhe fez muito bem. As aulas de piano lhe trouxeramnovos amigos. Com eles vieram também os novos interes-ses. Conheceu outros mundos e outras humanidades. Saiudo círculo empresarial em que estava mergulhada e agoraexperimentava outros valores da vida.

Áurea tem consciência de que nunca será uma pia-nista profissional. Não é este o seu objetivo, mas o sonhode juventude - aquele que parecia velho e que não forarealizado - estava agora emprestando sentido à sua novafase de vida.

Um sonho que parecia envelhecido, mas que com omovimento criativo - fruto de uma necessidade de supera-ção - veio a se tornar chave para que ela pudesse enfrentaros limites que a idade lhe trouxera.

A música lhe segurou pelas mãos no momento emque se sentia só. O sonho envelhecido foi acordado. A artelhe redimiu, e o tempo não se tornou empecilho para asua superação.

Capítulo

20 I

o sofrimento de saber-se inútil

Assim como Áurea, muitas pessoas sofrem na carneo desafio de viver as formatações que a velhice faz nascer.Estamos naturalmente condicionados a estabelecer umpacto com a vida a partir de nossa utilidade.

Nossas relações humanas são fortemente marcadaspelas regras da utilidade. Somos o que fazemos. Boa partedo nosso tempo é investido em nosso aprimoramento téc-nico, profissional. Coisas que estão ligadas ao nosso desem-penho como profissionais.

Não há nenhum problema em buscar a excelênciapro-fissional, pelo contrário, é muito importante que estejamospreparados para as exigênciasdo novo mercado de trabalho.

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o grande problema não é investir no aprimoramen-to técnico, mas sim em não saber viver as transições natu-rais do processo da vida. Não seremos eternamente jovens,competentes e úteis. Haverá um momento em que alguémnos substituirá, porque cumprirá melhor as exigências doque fazemos.

~ Chegará o momento em que teremos que sair de cena.E nesta hora que precisamos assumir uma outra forma decompetência. Teremos que lidar com nossa inutilidade eesbarrar em nossa humanidade, sem os atrativos de tudo oque foi útil em nós.

Será o tempo de redescobrir os significados antigos,as coisas para as quais não tivemos muito tempo, mas quecondensam possibilidades bonitas que precisamos explorar.

Quando pautamos nossa vida a partir de nossa utili-dade, corremos o risco de nos desprender de nossos verda-deiros significados. É muito comum as pessoas se ocupa-rem de constantes aperfeiçoamentos técnicos. Mas é raroencontrar pessoas cuidando do futuro a partir; de outraspreocupações, como o cultivo de laços fecundos.

Precisamos, ao longo da vida, fazer-nos a perguntacruel: Depois que perdermos a utilidade, quem vai querer con-tinuar ao nosso lado? Será que estamos bem posicionados entreos horizontes da utilidade e os horizontes dos significados?

Muitos sofrimentos nascem deste desequilíbrio. Foi ocaso de Augusto.

Mineiro, nascido na wna rural da cidade de Lavras,Augusto foi o caçula dos nove filhos de Manoel e Ana.

Quando terminou o ensino fundamental e chegou otempo de deixar os estudos para ajudar o pai e os irmãos nas li-das da roça, Augusto recebeu da tia o convite para morar comela na cidade. O objetivo era que ele continuasse a estudar.

Perto de completar quinze anos, Augusto deixou afamília e foi morar em Lavras. Ao contrário de seus oitoirmãos, Augusto recebia de sua tia a oportunidade de um

futuro diferente.Com o tempo, o pequeno e tímido garoto foi mos-

trando sua grande aptidão para o mundo acadêmico. Seusresultados eram surpreendentes. Terminado o segundograu, Augusto foi morar em Belo Horizonte e, para a sur-presa de todos, conseguiu ser aprovado para o curso de di-reito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Assim que concluiu o curso, Augusto se mudou paraSão Paulo e fez sólida carreira como advogado. A partir dosdesdobramentos de sua profissão, pôde viajar o mundo.Estudou no exterior, especializou-se em direito internacio-

nal e construiu um currículo invejável.

Depois de toda uma vida dedicada ao direito, Augustose viu na necessidade de desacelerar o passo. Já não tinha maisa mesma disposição, nem os velhos anseios da juventude.

Augusto quase não tinha contato com a família. Osmundos eram muito diferentes. Os pais já estavam falecidos

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e dos irmãos restaram cinco. Todos moravam no interior,como no passado.

O mundo de Augusto começou a ruir com a morteda esposa. Vítima de um câncer, a mulher lhe deixara doisfilhos. Um dos rapazes morava na Inglaterra; o outro faziacarreira como executivo de uma grande montadora de car-ros e dividia o seu tempo entre a Alemanha e o Brasil.

Augusto não tinha ninguém ao seu lado. Restara-lheapenas o prestígio que conquistou ao longo de sua vida, masprestígio não é capaz de preencher um coração solitário.

Conheci Augusto por meio de amigos em comum. Oassunto que nos uniu foi o fato de eu também ter estudado emLavras.Seusolhos brilharam quando soube que eu conhecia asua terra. Falou-me com eloqüência do seu tempo de estudan-te, do antigo colégio,de seusvelhos professorese da tia que oacolhera há tanto tempo atrás e o tratara como um filho.

Augusto parecia mergulhado numa espéciede nostalgiae arrependimento. Sua voz parecia embargada pelo desejo dereencontrar o que, pela força da vida, ele deixou de possuir.Contou-nos sem receios que os seus filhos nunca foram aLavras.Não chegaram a conhecer a sua terra, suas raízes.

Quando seus pais morreram, ele não pôde ir a ne-nhum dos velórios. Os dois morreram na época em quemorava na Espanha. Augusto falava publicamente tudoisso como se quisesse conviver melhor com suas escolhas eao mesmo tempo ser punido por elas.

Recordo-me da reação de todos. O seu tom era dediscurso. O sUêncioera absoluto. Apenas ele falava. Sua falaparecia imersa numa atmosfera de coragem e ao mesmotempo de medo e de vergonha. Era como se ele tentasse re-conciliar o seu coração ao tempo passado e solicitasse umaoportunidade de refazer suas escolhas.

Augusto rompeu com o seu mundo. Sua competêncialhe fezgalgaroportunidades importantíssimas. Experimentourealidades que não cabem nos sonhos de um menino nascidona roça. Ele se tornou um diplomata. Falava várias línguase conhecera boa parte do mundo. Mas tudo isso teve umpreço. Ele ficou órfão. Ele perdeu a sua família.

Perdeu porque permitiu que os vínculos ficassemcada vez mais fragilizados, menores. À medida que surgiamas oportunidades, Augusto se desprendia de sua antiga re-alidade, até o momento em que perdeu toda e qualquerforma de identificação com ela.

Depois de tantos anos sem reencontrar seus irmãos,ele não sabia mais voltar. Desaprendeu os caminhos.Esmerara-se em aprender os relacionamentos que requeremdiplomacia, mas desaprendeu dos encontros que requeremapenas um pouco de simplicidade.

Disse num tom de desabafo e justificativa: "Eu nãoI '"tenho o que fazer lá. Não vou ter nem assunto com e es.

Na frase de Augusto havia uma tristeza imensa. Naquelemomento da vida em que perdera a esposa, Augusto estava

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sem raízes. Os filhos estavam distantes e o que lhe restaraeram alguns poucos amigos.

Seus familiares continuavam lá no interior, masele não sabia encontrar no seu interior as forças necessá-rias para ir revê-Ios. Talvez tivesse receio de receber delesa mesma indiferença com que lhes tratou a vida inteira.Talvez tivesse medo de descobrir que foi injusto, ingrato,ao não encontrar em sua agenda cheia de compromissosimportantes um tempo para ir tocar de perto suas raízes,suas origens.

Augusto tinha tudo, mas não tinha ninguém. O seusofrimento era concreto, duro, mordaz.

Depois de seu discurso, ele se levantou e disse queprecisava ir embora. Disse que já estava alterado com o vi-nho e tinha medo de falar muita bobagem.

Augusto não dissera nenhuma bobagem. Apenas dei-xou vazar uma dor muito comum entre nós. Todos nós po-demos ser vítimas deste mal. É muito comum nós dias dehoje perdermos os vínculos. Neste mundo de tantas opor-tunidades, nem sempre conseguimos estabelecer a ponteentre a novidade e o que é velho.

Cuidar das raízes que temos é um jeito interessantede preparar a velhice. As raízes pertencem ao início, massão imprescindíveis para o fim, pois estão diretamente li-gadas ao que verdadeiramente nos dá sustento. Nas raízesestão condensadas todas as verdades da planta.

Nelas estão os nossos significados primeiros. E signi-ficados são realidades que dão sustento ao nosso mundo.Eles é que parecem costurar de sentido tudo o qu~ ~omos,por isso eles são para a vida toda. Diferente das utilidades,que são tão passageiras.

Augusto certamente tivera a oportunidade d: pautarsua vida a partir das utilidades. Ele foi útil e servIU-sedemuita gente útil para abrir os seus caminhos. Ao ocupar-sede pessoas úteis, deixou de ter tempo para as pess~as que

d . ·ficado em sua vida. nuando precisou re-con ensavam Sigm ~verter o quadro, ele já não sabia mais como fazer.

Isso me faz recordar os versos de Cecília Meireles,

diante da certeza de ter colocado suas esperanças em~~ . ,uma pessoa passageira, fugaz, torna-se conSCienteate mes-mo da obrigação de não chorar diante da queda.

Augusto sabia que todo o seu mundo era fugaz e p~-. mas em nenhum momento ele pensou que sofreriasageuo,

amargamente com as conseqüências destas passagens.

Valem para ele os versos tão cheios de beleza e de tris-

teza que a poetisa escreveu:

Encostei-me a ti, sabendo que eras somente onda.

Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.. . fe' UComo sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino ag,

d . 7Fiquei sem poder chorar quan o cal.

7 "Epigrama D. 8" de Cecília Meireles.

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Quando o sofrimento bater à sua pona

Por vezes, encostamo-nos em alguns moldes de vidaque são semelhantes às ondas. São oponunidades cheias deencanto, mas sem nenhum sustento futuro. São fogos deanifício, fugazes e de rápida passagem.

Grandes sofrimentos experimentados no tempo davelhice costumam estar ligados à contabilidade de nossasescolhas. Quanto maior for o número de realidades fuga-zes escolhidas e incorporadas, maior será a possibilidade defrustrações futuras.

A vida é como uma equação matemática. Salvaguar-dando o espaço para o mistério, ela é possível de ser ad-ministrada. O cálculo é possível. O que somamos e sub-traímos, o que multiplicamos e dividimos, serão resultadofinal, um dia, em nossas mãos.

As escolhas da juventude costumam repercutir nomodo como envelhecemos. O que construímos no dia dehoje será fundamental para as realidades futuras.

Augusto desconsiderou o futuro. Não previu que per-deria a esposa para o câncer e os seus filhos para os mesmosinteresses que o afastaram de seus familiares. Naquele mo-mento da vida, Augusto experimentava uma solidão queele mesmo construíra. Ele não tinha para onde voltar. Osamigos que fizera ao longo de sua vida eram poucos, muitopoucos. Os dedos de uma mão eram suficientes para nume-rá-Ios. Sua atividade profissional polarizou totalmente osseus interesses. Seu núcleo de relacionamentos estava esta-belecido pelas regras da utilidade, e não dos significados.

Seus filhos eram indiferentes ao seu sofrimento.Augusto experimentava na carne o fruto da educaçãoque dera aos seus meninos. Eles não aprenderam a valo-rizar laços familiares. O pai nunca os levara para conhe-cer o contexto em que havia nascido. Os meninos nãoconheciam os irmãos de Augusto. Seus pais morreramsem conhecer os netos.

A vida em sua casa devia ser marcada pela frieza.Homens de negócios. Sua mulher também era uma em-presária bem-sucedida. O núcleo familiar não preparou osfilhos para o cultivo de laços fecundos e duradouros.

A história desta família tem muito o que nos ensinar.Diante do sofrimento de Augusto, concluímos que laçossanguíneos não são garantia de nada. Não bast~ ser irmão,pai, filho, mãe. Há que se ter um algo a mais. E no cultivodo dia a dia que fortalecemos os papéis atribuídos pelasfunções biológicas.

Ter um filho nascido das entranhas não é garantiade nada. Pode ser que a experiência do dia a dia distan-cie aquele que se desprendeu de suas carnes e, com otempo, torne-se um estranho que mora na mesma casaque você.

Ser parente não significa muita coisa. O vínculo nãosobrevive apenas do destino sanguíneo que nos une. Vocêjá deve ter experimentado isso de maneira muito concretaem sua vida. Há outras pessoas que são mais importantesem nossa vida que muitos de nossos parentes.

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a que houve para que isso acontecesse? a distan-ciamento. Não há outra resposta. A estranheza que crescesilenciosamente em nossas casas tão cheias de distânciase indiferenças.

Não há nenhum crime em elegermos ao longo da vidaamigos que são mais que irmãos. É bonito identificar naspessoas a capacidade de cultivar laços fecundos. a triste équando identificamos nestas mesmas pessoas a incapacida-de de manterem vivas as raízes de seus significados.

É por isso que diante desta história cremos que sejaválido fazermo-nos algumas questões.

Não sei o quanto de Augusto existe em você. Tambémme pergunto o quanto de Augusto está em mim. Talveznossas histórias não estejam no extremo experimentado porAugusto, mas é inegável que nem sempre somos conscientesdo poder definitivo que há nas escolhas do nosso agora.

Viver é escolher.A matéria-prima do futuro está dian-te de nossos olhos nos dias de hoje. a que é de aplanhã, noagora da vida está se dando, assim como a mãe dá ao filhoa vida em potencial. A vida cresce, amadurece e se transfor-ma no impulso de nossas escolhas. a contrário também éverdadeiro. A vida atrofia, apodrece e fenece no impulso doque escolhemos cultivar.

a que hoje ensinamos ou motivamos pode, maiscedo ou mais tarde, se voltar contra nós.

o futuro da vida está preso nesta plataforma em

Que hoje nossos pés se firmam.É dela que partimos.

O sabores de amanhã estão sendopreparados na terra de nossas escolhas.

Ações humanas seguem as mesmas regras das causase dos efeitos.

O que escolhemos hoje é matéria-prima que serátransmudada em vida futura.

Se escolhermos amar, restarão boas saudades.Se escolhermos a indiferença, restarão remorsos.

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II

Capítulo I21 II

Sofrimentos que nascem de

defeitos cristalizados

Escolhas conscientes e bem feitas hoje podem evitarsofrimentos futuros. A vida é experiência de preparos cons-tantes. A regra é clara. Se quisermos frutos saborosos ama-nhã, não poderemos abrir mão do cultivo e do empenhoque são exigências do dia de hoje.

Envelhecer bem consiste em não perder de vista tudoisso. A psicologia nos ensina que os defeitos da juventudeestarão ainda mais acentuados na velhice. Ésimples. O tem-po tem o poder de agravar ainda mais os limites. Podemosexperimentar isso no momento em que somos honestos

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com nosso processo humano e reconhecemos o que, pelaforça do tempo, tornou-se mais doloroso e pesado em nós.A este processo a psicologia chama de cristalização.

Cristalizar, por derivação de metáfora, é o mesmo quetornar-se fixo, imóvel. Portanto, cristalizar defeitos consisteem sair da possibilidade de movê-Ios, superá-Ios.

Veja bem. Defeitos geram sofrimentos. Cada vez quenos experimentamos defeituosos, de alguma forma toca-mos e identificamos nossa condição de homens e mulhereslimitados. Defeitos são experiências concretas do limite.

O limite, quando não assumido como impulso paraa mudança, será sempre uma porta para a dor. Se no tem-po da juventude não atentamos aos nossos defeitos, e comele trabalhamos desejosos de minimizar a sua atuação so-bre nossa personalidade, na velhice isso se tornará aindamais penoso.

Isto não significa que velhos não podem ser transfor-mados. Não se trata disso. Acredita-se na possibilidade dohumano viver e sofrer constantes transformações. O quequero salientar é que os defeitos da juventude podem setransformar em pesos extremamente torturantes ao final davida, justamente porque, depois de cristalizados, os defei-tos são mais duros de serem transformados.

Foi o que aconteceu com Ermelinda, uma senhoraque certa vez me escreveu uma carta para desabafar seusdescontentamentos.

Ermelinda nasceu numa família bastante abastada.Filha de fazendeiros, nunca precisou de muito esforço pararealizar os seus sonhos. Menina dotada de muitas capacida-des, Ermelinda sempre se destacou na pequena cidade emque nascera, no interior do estado do Paraná.

Em sua carta, Ermelinda confessou-me sofrer muitocom o seu ciúme. Ela tinha ciúmes de tudo: de sua casa, deseus filhos, de seus netos e até mesmo de sua funcionária,uma senhora muito simples que há mais de trinta anos de-sempenha a função de cozinheira de sua família.

O ciúme de Ermelinda não era normal. Tinha sinto-mas de patologia, isto é, de doença. Certa vez, por ocasiãode uma viagem de um de seus netos aos Estados Unidos,Ermelinda passou exatos dez dias sem conseguir dormir,enciumada com o fato de a viagem ter sido um presente daoutra avó e não dela. O seu sofrimento era real e tinha opoder de adoecê-Ia.

Aquele fato era apenas um detalhe de seu quadrogeral. Com muita honestidade em suas palavras, aquelasenhora assumia que nunca conseguira ser amiga de suasnoras. Estava brigada com todas, devido às suas inúmerastentativas de interferir na vida dos filhos.

Ermelinda não sabia perder. Ela não queria que os fi-lhos se casassem;não queria que os netos namorassem, poiscompreendia tudo issocomo experiênciade perda. Ela queriaque todos estivessem,o tempo todo, agarrados em sua saia.

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A mesma resistência que ela demonstrava nos relacio-namentos afetivos dos seus filhos, ela agora também mani-festava com os netos.

Seu sofrimento era muito concreto. Ela estava mer-gulhada em seu ciúme doentio e não sabia mais o que fazer.O interessante é que ela resolveu assumir diante de si mes-ma o problema que enfrentava. Deixou de negar a situação,assim como sempre fizera ao longo de sua vida.

O quadro não era nada animador. Aos setenta e qua-tro anos, Ermelinda parecia uma adolescente mimada e ne-cessitada de atenções constantes. O grande problema é quequanto mais ela manifestava o seu ciúme, mais ela afastavaas pessoas. Quanto mais ela se esforçava para manter as pes-soas presas em sua teia de ciúme, mais ela as perdia.

O que vemos aqui é um caso clássico de personalida-de cristalizada. O sofrimento que esta senhora enfrenta nãoé apenas detectar o ciúme que sente, mas sim a sua incapa-cidade de mudar os seus sentimentos.

Ela não estava feliz em perder noites e noit~s de sonoalimentando um sentimento tão mesquinho. O motivo desua amargura era justamente não organizar, no seu cora-ção, o fato de que o neto continuava lhe querendo bem,mesmo ao receber da outra avó um presente interessante.Ermelinda sofria de insegurança crônica.

A raiz do seu sofrimento estava ali. A insegurança lheprovocava atitudes estranhas. Perceba. O ciúme nasce da

insegurança e do desejo de posse. Possuir o outro é umjeito de neutralizar a insegurança afetiva. Este era o desejode Ermelinda: possuir a tudo e a todos com o objetivo depreencher suas lacunas afetivas.

Esse seu jeito de ser não é por acaso. Ermelinda deveter tido esta dificuldade desde os mais tenros anos de suavida. Por ter nascido numa família muito rica, deve ter de-senvolvido uma consciência de que o seu mundo não tinhalimites. Ela podia tudo. Cresceu sem a necessidade de di-vidir nada. Aprendeu desde muito cedo a colher os lourossozinha, sem ninguém para repartir.

Ao ser poupada da experiência do limite, Ermelindaperdeu a oportunidade de amadurecer. Ao possuir tudo e atodos, polarizando sempre a atenção dos que a rodeavam,ela perdeu a oportunidade de possuir-se a si mesma.

Interessante, mas essetipo de educação que ela recebeutem um forte poder de fragilizar.Quem muito recebe, correo risco de não aprender a estabelecer limites para as suas ne-cessidades.É como um poço sem fundo. Mesmo que jogue-mos nele porções imensas de terra nunca o preencheremos.

Ermelinda era assim. Ela não era desprezada pelos fi-lhos, pelas noras ou pelos netos. O grande problema é quetudo o que elespodiam oferecer não lhe bastava. Embora elesse esforçassem para que ela se sentisse feliz, o esforço nuncaera suficiente aos seusolhos. Ermelinda continuava uma me-nina mimada, mas agora com o agravante de ser velha.

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Quando o sofrimento bater à sua porta

Os defeitos da juventude não foram cuidados. Se osse~ pais tivessem se atentado para este detalhe da perso-nalIdade de Ermelinda e de forma adequada tivessem tra-balhado para a reorientação da conduta, Ermelinda nãosofreria tanto na velhice.

Se ao longo de sua vida ela tivesse sido desafiada amelhorar o seu jeito de ser, certamente estaria mais levepara enfrentar o fim de sua vida. As pequenas doses de mo-dificações ao longo da juventude evitam as violentas inter-ferências da própria vida, quando a pessoa estiver na retafinal da existência.

Por isso o que desconsideramos no início da vida isto, ,e, o peso de defeitos leves, pode se tornar extremamentepenoso com o passar dos anos.

Nosso tempo de ser útil terminará.

Já não teremos mais a destreza da juventude.

Nossos passos lentos já não nos permitirão chegar

tão longe.

Nossos braços se despedirão das agilidades de antes.

Experimentaremos a vida a partir de uma outra vertente.

O tempo de utilidades se despedirá de nós

E o que vai nos restar será o tempo dos signiftcados.

O que vamos alcançar já não dependerá mais de

nossas destrezas

Nem tampouco de nossos atributos técnicos

Será o tempo da simplicidade

E nele será preciso sobrevivermos.

Nesta contabilidade ftnal já não haverá espaço para

supérfluos

A vida nos encaminhará para o estreito caminho ftnal

e o que teremos nas mãos será o resultado do

que amamos.

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Capítulo

22

Quebrando o cristal

A superação é o destino de quem se empenha.Mesmo na velhice, quando a vitória se torna mais difícil,a superação será sempre possível. O ser humano, quandoestimulado, é capaz de reações surpreendentes.

Não sei o que Ermelinda fez com seu ciúme. Fiz o quepude. Orientei, aconselhei, mas não posso viver por ela. Oque sei é que aquela mulher tinha diante de si uma lição decasa muito exigente. Ou ela reorientaria o seu comporta-mento, ou ela ficaria cada vez mais solitária em seu egoísmotão desumano.

Quebrar o cristal é possível, mas requer esforço. Éarte de lapidação. Tudo depende da disposição daquele que

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Quando o sofrimento bater à sua porta

precisa enfrentar o desafio. Quanto mais duro e resistenteestiver o cristal, maior terá que ser o empenho.

Há pessoas que não se intimidam com os desafios.Foi o caso de Hélio, um senhor que conheci por acaso.Esperava minha mala na esteira de um aeroporto, quandoele se aproximou. Disse-me que sempre assistia ao progra-ma apresentado por mim e que, mesmo sem saber, eu tinhalhe ajudado a superar um defeito da juventude.

Hélio era um senhor que já aparentava uma idadeavançada. Disse-me de maneira muito bem humoradaque ao longo de sua vida sofreu muito com sua incapacidadede finalizar os projetos que iniciava.

Muitos foram os projetos iniciados, mas o único queele conseguira levar adiante foi o casamento de cinqüentae seis anos.

Iniciou três faculdades e não concluiu nenhuma. Perdeuas contas do número de vezes em que se matriculou em umcurso de inglês e saiu logo depois dos primeiros dias.

Certa vez, ele me ouviu falar de pessoas que erammestras em "iniciativas", mas péssimas em "acabativas".Perdoem-me o neologismo, mas esta foi a expressão queusei para me referir às pessoas que não sabem concluir osprojetos iniciados.

O senhor Hélio disse que o discurso lhe caiu comouma luva. Segundo ele, dei uma pequena receita para tra-balhar o exercicio da vontade no dia a dia.

Disse que eu sugeri a iniciativa de pequenos proje-tOS e suas conseqüentes finalizações. Ele seguiu a fio umasimples sugestão minha. Começou arrumando as gavetas.Disciplinou-se a arrumar uma por uma. Depois, passoupara o sótão, lugar onde guardava suas ferramentas. Algunsmeses depois, ousou entrar num curso de inglês e logo emseguida em uma aula de hidroginástica. Desde a primeirainiciativa ele já somava um ano de projetos iniciados e de-vidamente mantidos em andamento.

O senhor Hélio me parecia muito feliz. Sua falafoi pouca, mas foi capaz de despertar em mim uma sa-tisfação muito intensa. Ele me agradeceu pela mudançae se foi.

Aquele homem me fez pensar. Umas poucas palavrasforam o suficiente para fazê-Io refletir sobre uma vida intei-ra. Diante da provocação de minhas palavras, ele assumiuum compromisso de mudar a conduta.

Não tive muito tempo de ouvir quais foram as conse-qüências de sua falta de determinação na vida, mas de umacoisa eu não tenho dúvida - elas o privaram muito. E sehouve privação, então houve sofrimento.

Há muitos sofrimentos que nascem de nossa indisci-plina. Indisciplina é uma forma de negligência que atingediretamente a nós mesmos. O que hoje deixo de fazer eque seria importante para o meu crescimento, de algumaforma, repercutirá como conseqüência desagradável.

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Um exemplo simples é o cuidado com o corpo. Quemnão tem uma disciplina com a atividade física diária sofre-rá muito mais na velhice do que aquele que teve. As es-tatísticas comprovam que meia hora de exercício aeróbicopor dia evita problemas cardíacos. Mas não adianta saber.O grande desafio é transformar a informação em atitudeconcreta. Estar consciente do valor do exercício não livraninguém do infarto.

Outra informação preciosa que desconsideramos éa importância de cultivar a nossa massa magra, isto é, amassa muscular. Estudos comprovam que o indivíduo queconseguiu construir uma boa estrutura muscular na juven-tude sofrerá menos com as dores, próprias da velhice.

É simples. Massa muscular bem fortalecida ajuda amanter a coluna no lugar. Conseqüentemente sofreremosmenos de dores nas costas.

O fortalecimento do corpo não é só uma questão es-tética, como tantas vezes pensamos com nossa reflexão su-perficial. É questão de inteligência. Ter uma musculaturaexercitada e fortalecida nos ajuda a enfrentar os limites davelhice. O corpo é sábio, mas se a mente não comandá-Iode forma inteligente, ele sofrerá dobrado no futuro.

Porém há um detalhe. Músculos não caem do céu.Eles só crescem e se fortalecem mediante a experiência doestímulo e do esforço. Se não os exercitamos, a musculaturafica flácida e conseqüentemente é substituída por tecido

adiposo, isto é, gordura. Índices altos de gordura corporalsão sinônimos de doenças e envelhecimentos.

A gordura visceral, por exemplo, a conhecida barrigaacoplada de pneus laterais, é um sinal de diabetes futuras. Épossível perder a gordura, mudar o quadro? Claro que sim.Mas esta mudança não será simples. Sabemos, na prática,que mudar hábitos requer muita disciplina. Converter umcomportamento ruim em um comportamento bom e sau-dável exige uma observância constante.

É o desafio da continuidade. Iniciar é sempre maissimples. Difícil mesmo é levar adiante o empreendimento

que foi começado.

Quantas vezesvocê já começou um programa de ati-vidades físicase não levou o propósito adiante? Certamenteuma infinidade de vezes. Muitas pessoas se matriculam nasacademias, pagam planos semestrais e deles usufruem um

máximo de quinze dias.

Começam com todo vigor. Compram tênis, roupasadequadas e em pouco tempo tudo está abandonado. O pro-blema é que não temos como comprar disciplina no mesmoestabelecimento comercial em que compramos os tênis.

Há um elemento-chave que terá que mover tudo isso-a motivação. Os motivos funcionam como mola propulsora.Uma vezbem internalizados, elessão capazesde despertar emnós a dose diária de disciplina requerida pelo projeto.

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Seique não é fácilabandonar o sofá, o balde de pipocas,a sessãoda tarde e ir trocar de roupa para exercitar o corpo.Sei que é muito mais fácil ficar no computador, conectado àinternet, e participar de bate-papos intermináveis.

Também sei que não é fácil encontrar um tempo naagenda do dia, tantas vezes lotada. Também enfrento osdesafios de encontrar a chave da minha disciplina, masuma coisa é certa: quanto mais me entregar ao caminho fá-cil de minhas desculpas, mais difícil será iniciar o processode transformação.

Nossas desculpas funcionam como um mecanismode defesa. Nelas a gente se esconde para evitar a mudançae o esforço que ela exigirá. Mudar requer esforço, por issodisciplina é sinônimo de dor.

Mas esta dor tem caráter redentor. Esta dor é positiva.É a dor de forçar o corpo a um esforço que o fará sentir-semelhor. É um sofrimento que nos renderá benencios futuros.

O senhor Hélio descobriu este valor. Aplic~u-se deforma disciplinada em duas atividades que ele certamentedeve ter tido problema durante toda a vida - o inglês e aatividade física. Mas ele quebrou o cristal. Desafiou-se a nãopermitir que o defeito, expressoem sua falta de perseverança,viesse a vencê-Io definitivamente.

Diferente de Ermelinda, Hélio conseguiu revertero quadro. O defeito da juventude não o acorrentou. Ele

descobriu,. por meio das palavras que o incomodaram, ummotivo para se desafiar.

Apesar de já ter sofr.ido tanto com sua falta de persis-tência nos projetos iniciados, aquele senhor redescobriu aforça de sua juventude. E através da disciplina sua de cadadia, conseguiu livrar-se de algo que o fazia sofrer.

Interessante, mas acontecimentos como estes cos-tumam servir como um elixir para nos manter jovens. Osenhor Hélio experimentou isso na carne. Redescobriu-se como pessoa, embora estando em idade já avançada.Encontrou nele um motivo para mudar. Mudar para me-lhor. Experimentou, ainda que tardiamente, o valor de es-

tabelecer regras.

Conseguiu descobrir dentro de si um valor que atéentão ele desconhecia possuir. Já estava acostumado amorrer nas iniciativas. Foi além. Venceu e sentiu-se maisfeliz por ter descoberto que ainda poderia ser disciplinado

e persistente.

O destino do corpo é inevitável. Ele envelhecerá e per-derá a vitalidade. Conseqüentemente, ficaremos privados demuitas possibilidades. Mas uma coisa é certa. A alma nãoprecisa envelhecer. Sempre será tempo de superar os limitesde nossa personalidade e assumir um comportamento maisharmônico e sereno. Este é o propósito dos sábios.

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o tempo não é um detalhe.

O pequeno descuido de hoje

pode se transformar em sofrimentos

futuros.

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Capítulo II

23 I

Lidando/com os sofrimentos

Quebrar o cristal não é simples. Requer disciplina.Quando falávamosdo sofrimento do corpo, apontávamospara uma realidade interessante.A dor é um sinal do corpo.de que algo não vai bem.

É interessante perceber que as inadequações relata-das por Hélio e Ermelinda, de alguma forma, cumprem omesmo papel que a dor cumpre no corpo, ao anunciar anecessidadede alguma intervenção.

Ermelinda sofria com o ciúme doentio. Hélio sofriacom a incapacidade de terminar o que começava. Amboseram vítimas de uma espécie de doença da alma, umsofrimento que não tem causa material, mas, nem por

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isso, menos verdadeiro. Sofrimento diretamente ligadoao mecanismo mental, isto é, ao modo como eles inter-pretavam e conseqüentemente viviam a vida.

A mente nos faz sofrer. A mente é um sistema orga-nizado que se refere ao conjunto dos processos cognitivos.Nela está toda a nossa atividade psicológica e é onde se pro-cessam os nossos sentimentos e entendimentos. A mente étambém o território do sofrimento. Boa parte da dor quedói no mundo tem na mente o seu local de origem.

A origem do sofrimento de Ermelinda, por exemplo,deve-seao fato de não saber lidar com os seussentimentos. Aosentir-se insegura, Ermelinda assume uma postura ciumenta.Mas qual é a causa da insegurança que a desinstala tanto, aponto de afastá-Iadas pessoasque Ihes são especiais?

Não temos como aprofundar aqui as questões gerado-ras dos problemas de Ermelinda, mas podemos adiantar queboa parte dos problemas desta senhora seriam resolvidos seela se empenhasse em reorientar o sçu-~ito de lidar comsuas inseguranças. Quando a doença é na)mente, à cura sópode vir mediante a reorganização do pensamento.

Temos uma convicção simples, mas que se mostramuito eficaz na prática. Muitos sofrimentos provenientesda mente podem ser resolvidos no momento em que subs-tituímos um pensamento ruim por um bom.

Ao sentir-se insegura, Ermelinda precisa mentalizar:Eu não tenho razão para me sentir assim! Tenho uma família

que me ama! Pronto. Esta já é uma pequena tentativa paraconter a insegurança que desencadeará o ciúme.

Ao ocupar a mente com um pensamento positivo,Ermelinda afastará um pensamento que poderá deprimi-Ia.

No caso concreto do neto que ganhou a viagem, oque deprimiu Ermelinda foi o pensamento: Meu neto nãogosta mais de mim, afinal a outra avó estd em vantagem. Elalhe deu uma viagem dos sonhos!Ao pensar assim, Ermelindase fecha em seu mundo mesquinho e perverso. Passa a so-frer por uma realidade que não existe, afinal o neto não dei-xará de amá-Ia só porque e~á feliz com o presente recebido.Mas por causa do ciúme que sente, este é o único raciocíniodo qual Ermelinda é capaz.

Mas ela poderia pensar diferente: Que bom que meuneto ganhou esta viagem. Quando ele voltar quero que ele meconte tudo como foi.

Ao retirar da cabeça a idéia de que está perdendo, llt

ela passa a nutrir pensamentos positivos em relação ao queestá acontecendo.

Ela não pode mudar o fato, pois a viagem já está acon-tecendo. Mas pode mudar o jeito como olha para a viagem.Ao invés de pensar de maneira egoísta no que ela está per-dendo no momento em que o neto a ganha, ela passa a focarsomente no ganho do neto.

Ela se distancia do que considera uma perda e apren-de, pela força do pensamento modificado, a se alegrar com

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o acontecimento que antes a deprimia. A viagem lhe traráoportunidades bonitas de estar ao lado do neto. Partilharãoas alegrias vividas, verão as fotos tiradas, e o que antes eraperda torna-se um ganho.

Mas agora vamos falar de você. Quantas vezes vocêenfrenta sofrimentos terríveis justamente porque não con-segue mudar o jeito como olha para as coisas!

Quantas vezes você perdeu noites e noites de sonosó porque se deixou levar por sentimentos mesquinhoscomo o de Ermelinda! Muitos sofrimentos nascem dosnossos pensamentos.

Como citamos anteriormente, a mente gera os nossosentendimentos. Entender é ato de perceber, compreender,captar pela força da inteligência. Entender é também per-ceber a razão, isto é, ir mais a fundo.

Mudar o jeito de pensar sobre determinada realidadeou situação requer que a gente vá mais fundo. É como ten-tar ver uma realidade do avesso. Não posso enxe~gar ape-nas o ciúme que sinto. Preciso descobrir no ciúme que meatormenta a chave para a minha superação. Foi justamenteo que Ermelinda não fez, e é também o que muitos de nósnão fazemos.

Somos muito facilmente tentados a ficar no lugar co-mum. É mais simples. Não dá muito trabalho. Sentimosciúme e não fazemos nada para mudar isso. Os outros quesofram com nossa forma desordenada de querê-Ios bem.

É geralmente assim que resolvemos os conflitos, por-que nem sempre estamos dispostos a esbarrar nos sofrimen-toS que eles poderão desencadear.

Mas se honestamente tratarmos a questão, identifica-remos neste comportamento uma forma de aniquilamentode nossas possibilidades. Quando me recuso a mudar, dealguma forma estou me privando do crescimento necessá-

rio e merecido.

Estabelecer e'te embate é uma forma de minimizar-mos os sofrimentos desta vida. Sofremos muito, eu sei, mastambém não podemos negar que sofremos por questões in-significantes. Com todo respeito, sofremos por falta de in-teligência. Sofremos por não termos capacidade de analisarcom profundidade os problemas que nos afligem. Sofremospor falta de entendimento. Sofremos por falta de iniciati-vas. Sofremos por falta de perseverança. Sofremos por inér-

cia, por comodismo. ,.

Queremos que a vida nos caia pronta do céu. Quere-mos fugir da necessidade do esforço e da disciplina. Queremosque os outros se adequem ao nosso jeito mesquinho deser só porque não queremos ter o trabalho de pensar nasnossas atitudes com um pouco mais de responsabilidade

e comprometimento.

Muitos sofrimentos serão extirpados de nossa vida ape-nas se lançarmos um olhar diferente sobre eles. Pensamentospositivos podem aliviar a alma de sofrimentos tortuosoS.

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A psicologia nos ensina que o processo terapêuticotem o poder de reorientar uma pessoa. Mas no que consisteum processo terapêutico? Não é ele um retorno no tempo,pela força da palavra e da lembrança, com o objetivo deresignificar, isto é, atribuir um novo significado a uma rea-lidade antes incompreendida?

Pois bem. Um novo significado, ou uma nova inter-pretação de um fato, só poderá acontecer mediante o exer-cício do pensamento.

O bom terapeuta é aquele que consegue nos encami-nhar para uma nova interpretação de tudo aquilo que nosoprime. Uma realidade passada não pode ser modificada.Ninguém pode fazer voltar os acontecimentos e transformá-los em outros. O acontecido já é definitivo em nós. Mas oque não precisa ser definitivo é o jeito como olhamos parao acontecimento. Nisso consiste a terapia. Reorganizar osefeitos do passado.

Muitos sofrimentos nascem da nossa interpretação dosacontecimentos passados. A matéria vivida se transforma emopressão para a mente. É uma peça que não se encaixa notodo, dando-nos a sensação de que algo está fora do lugar.

Foi justamente isso que aconteceu com Lia. Nascidanuma pequena cidade no interior de São Paulo, Lia viveuum inferno terrível por dois longos anos.

Tudo aconteceu quando ela voltava acompanhada demais três amigas de uma festa acontecida num sítio próximo

à sua cidade. Lia dirigia o veículo quando uma caminhoneteem alta velocidade veio em sua direção. Não houve tempopara nada. Ao ser atingido pela caminhonete, o carro foiviolentamente arremessado para fora da estrada e bateu con-

tra uma árvore.

O resultado daquele acidente foi muito trágico. Astrês amigas de Lia morreram na hora. Após mais de seismeses no hospital, Lia voltou para casa portadora de umadeficiência que lhe paralisou as pernas. Não havia um mo-tivo físico para não andar. Lia não conseguia se colocarde pé porque estava sob efeito de um trauma terrível. Asrazões de sua paralisia não estavam nos músculos ou nasarticulações de suas pernas, e sim na culpa que sua mente

lhe aplicava.

Presa em uma cadeira de rodas, Lia perdeu totalmenteo sentido da vida. Ela se tornou inapta para conviver comaquela verdade. Suas amigas perderam a vida enquanto ela .•conduzia o veículo que as transportava. Lia não era capaz

de suportar aquele peso.

Conheci-a no momento em que o trauma já estavasolucionado, mas tive oportunidade de ouvir todo o admi-rável processo pelo qual ela precisou passar para recobrar o

movimento das pernas.

O primeiro grande desafio de Lia foi encarar a durarealidade de que ela não poderia mudar aquele aconteci-mento. A pedra do tempo já estava posta. A matéria da

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vida não podia ser mudada. O acidente já havia acontecidoe suas amigas já estavam sepultadas.

Lia precisava aprender a repetir aquela verdade, poisno ímpeto de resolver a culpa que ela se aplicava, Lia ten-tou se livrar da realidade por meio da negação. Passou lon-gos meses apática e dormia boa parte do tempo, como sequisesse apagar os dolorosos efeitos da realidade.

Não comentava absolutamente nada sobre o acon-tecido. Vivia como se nada tivesse ocorrido. Reduziu suaexperiência humana a uma espécie de vida vegetativa. Nãofalava, não chorava, não sorria. Apenas recebia os cuidadosque necessitava, mas sem dizer absolutamente nada sobre ofato que a deixara naquela condição.

Mas ela não poderia fugir de sua própria vida. Haviaum gigante que precisava ser enfrentado. Com o tempo, aterapeuta conseguiu ter acesso à dor de Lia.

Ao interromper a medicação para dormir e assim ficarmais tempo consciente, ela se permitiu chorar e falar sobrea morte das amigas. O tempo de negação estava cliegandoao fim.

O processo terapêutico de Lia lhe ajudou a recolocaro acontecimento na seqüência de sua vida. A grande neces-sidade era retirar de Lia o sentimento de culpa. Na culpaestava a origem de sua paralisia física e mental.

Foi o que aconteceu.~om muito esforço, a tera-peuta conseguiu que Lia cogÍeçasse a olhar para aquele

acontecimento como uma fatalidade da qual ela não teveculpa. Ela estava fazendo tudo certo. Estava dirigindo comcautela, na velocidade permitida, e não estava alcooliza-da. O condutor da caminhonete é que fora o responsávelpela tragédia. Foi ele quem avançou na direção do carroem que Lia estava com suas amigas. Ela não teve o quefazer. Não havia acostamento para desviar o carro. E, porestar em alta velocidade numa estrada estreita e de chão,o rapaz perdeu totalmente o controle da caminhonete quedirigia. Lia foi passiva no acontecimento. Não lhe sobrounenhuma possibilidade.

Esta era a reflexão que Lia precisava fazer. Somenteesta racionalização poderia libertar a sua mente do durofardo da culpa. Ela tinha todo o direito de lamentar a fa-talidade, mas jamais poderia alimentar qualquer espécie deculpa pelo acontecido.

E assim o foi. Ao conseguir substituir a culpa pelareflexão, Lia se permitiu trilhar um novo caminho, um ca:rninho de reconstrução da própria vida. É claro que estasubstituição de perspectivas não lhe retirou a dor de terperdido as amigas de maneira tão trágica. A substituiçãolhe proporcionou a continuidade da vida, mediante umaforma menos penosa de lidar com a tragédia.

Ao ser capaz de olhar para o acontecimento sem aculpa dos primeiros meses, Lia foi aos poucos retomandoos movimentos das pernas. Era como se a reconciliação

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com a mente lhe proporcionasse uma reconciliação com ocorpo. O avanço da mente favoreceu o avanço das pernas.Lia voltou a andar. Aos poucos, bem aos poucos, ela foiretomando a sua vida e suas atividades.

O interessante,neste caso,é que Lia precisou reinterpre-tar o seu passado.Ela não tinha como mudar os acontecimen-tos, mas podia mudar o jeito como olhavapara eles.Ao retiraropesoda culpa, elapôde organizaro luto de suasamigas. Sofreu,como é próprio de quem precisaorganizar uma tragédia desteporte, mas seguiu. Encontrou forçase desafiousua paralisia.

O fascinante é que os familiares das amigas falecidasestavam todos muito empenhados na recuperação de Lia.Cuidar da única sobrevivente era um jeito de manter viva amemória daquelas que se foram.

Ao encontrar Lia, fui impactado pela força que haviaem seus olhos. Mesmo antes de conhecer sua história, tinhaa certeza de que estava diante de uma grande sobrevivente,uma grande mulher. Os olhos estavam revestidos da sabe-doria adquirida pelo sofrimento. Ela não era uma inulhercomum. Estava sacramentada nos sinais que a dor criativapode gerar. Lia se transformou numa mulher espetaculardepois daquela tragédia.

A transformação só foi possível porque aceitou o de-safio de olhar diferente para a tragédia que não podia sermudada. Ela não transformou o fato, mas permitiu que elea transformasse para melhor.

1

ICapítulo I~.

!24

Racionalizar para viver melhor

«A vida que não é examinada não vale a pena servivida". Este pensamento é de Sócrates. Ele tinha razão.Examinar a vida é revesti-Ia de qualidade.

Boa parte de nossos sofrimentos são frutos de poucareflexão. Muitos de nossos conflitos sobrevivem de nossaignorância. Isso nos identifica como a causa primeira denossas mazelas, pois somos os primeiros a processar as in-formações recebidas, que se transformarão em fontes dedor e desencanto.

A reflexãoé um atributo humano. Nossa capacidade depensar a realidade nos diferencia dos demais seres. Emborapossamosidentificar uma forma de inteligêncianas realidades

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criadas, somente a condição humana está capacitada paraatribuir sentido aos acontecimentos.

Essa cap~cidade cognoscitiva é desenvolvida ao longode nossa vida. A medida que crescemos, aperfeiçoamos nos-sa capacidade de refletir e interpretar a vida que vivemos.

Uma criança, por exemplo, tem menos condições decompreender e atribuir sentido a uma realidade que umadulto. Apesar de sabermos que existem adultos mais infan-tis que as próprias crianças. O inegável é que a vida adultadeveria ser o auge de nossa compreensão das coisas. A issochamamos de maturidade. Uma pessoa é madura à medidaque consegue estabelecer o sentido das coisas.

A primeira fasedeste processo cognoscitivo é a dos "porquês". Vocêjá deve ter experimentado a descobena do mun-do feito por uma criança. É uma época marcada por umainfinidade de perguntas. Ela quer saber a causa de tudo.

Aprendi na universidade, com um professor de filo-sofia antiga, que este é o início de nossa vocação filosófica.Vocação esta que pode ser sufocada, caso não tenhamosadultos que estimulem ainda mais os nossos "por quês". Senão somos estimulados pelos "por quês" da vida, corremoso risco de viver sem perguntar e conseqüentemente de viversem aprender.

No início da vida, somos naturalmente filosóficos.Acriança tem um interesse natural em desvendar o mundo emque vive, conhecer suas regras e desvelaro sentido das coisas.

Essa fase pode ser continuada ou não. Tudo dependedos estímulos e escolhasque cada um faz ao longo do cresci-mento. Uma pessoa será sempre dotada de capacidade refle-xiva,mas o desenvolvimento desta capacidade dependerá dosestímulos que ela necessita para crescer e ser aprimorada.

Refletir é um atributo humano. Somente nós pode-mos descobrir o oculto que está por trás de tudo. A arte,por exemplo, é um jeito interessantíssimo que o ser huma-no tem de desvelar o sempre oculto, o sentido mais profun-do. Talvez seja por isso que as pessoas dotadas de naturezamística são tão afeitas ao contexto das reflexões. Muitosmistas mudaram os destinos do mundo.

No entanto, a reflexãoé possível em qualquer ocasião.Se não refletimos, é porque não queremos ou perdemos ohábito, mas uma coisa é certa: a reflexão é necessária emtodas as nossas decisões, afinal ela qualifica o nosso jeito deser e estar no mundo.

Quanto mais uma pessoa é capaz de pensar a vida,"suas escolhas e o jeito de encaminhar suas decisões, maiorserá a possibilidade de uma experiência harmônica e equi-librada de si mesma e dos outros.

Por isso corroboramos o pensamento do grande escri-tor none-americano Lou MarinofPl, que diz que um pouco

8 Filósofo norte-americano que publicou duas importantes obras sobre aimportância da reflexão filosófica como instrumento terapêutico para asneuroses humanas. São elas: Mais Platão, Menos Prozac e P"K"nte à Platão,ambas publicadas no Brasil pela editora Record.

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de filosofia não faz mal a ninguém e que boa parte dos nos-sos sofrimentos podem ser resolvidos com o simples ato depensar um pouco mais sobre eles.

Há uma proposta interessante, nos dias de hoje,de estabelecer um processo terapêutico através da filo-sofia. É a filosofia clínica. De acordo com os estudiososdesta área, o sofrimento será sempre mais suportável àmedida que somos capazes de racionalizar as causas queo move. É simples. É como cortar o mal pela raiz. Sedescobrirmos o pensamento que nos faz sofrer e o rein-terpretarmos, de alguma forma já estamos iniciando asuperação. A reflexão pode minimizar os efeitos dos so-frimentos que enfrentamos.

A vida continua penosa mesmo quando refletimos,mas é inegável que a reflexão consegue dar um sustentomuito interessante ao nosso processo humano, afinal elaabre portas que até então estavam fechadas. Ao vislumbrarnovas possibilidades de interpretar o fato, o ser humanodescobre um jeito interessante de neutralizar o perisamentoque antes o oprimia. E nisso há um poder curador.

Marco Aurélio, grande imperador e pensador, diziaque "afelicidade da vida depende da qualidade de nossospen-samentos". A serenidade é fruto da mente bem esclarecida ebem norteada por um pensamento saudável.

Em muitas situações, o sofrimento nasce da irrefle-xão. Nós é que o alimentamos. Nós decidimos por ele.

Mas se mudarmos o jeito de pensar por meio de umareflexão, naturalmente poderemos extirpar o que antesnos atormentava.

Citaremos um exemplo que nos ajude a entender.

Magno sempre foi um funcionário brilhante no bancoem que trabalhava. Desde os primeiros meses de trabalhoele se esmerou para aprender bem o ofício que exercia. Como tempo foi conquistando a confiança de seus superiores enum prazo de dois anos alcançou excelentes promoções.

Magno despertou a inveja de muitos que já trabalha-vam no banco há mais tempo que ele. O inevitável acon-teceu. Por ter se destacado num curto espaço de tempo,ele começou a sofrer perseguições mesquinhas de alguns deseus colegas de trabalho.

Ele me procurou justamente no momento em queestava recebendo cartas anônimas. O conteúdo das cartasera muito estranho. O anônimo o acusava de roubos. Dizfíaconhecer tudo o que ele fazia de errado no cargo que ocu-pava. Nas cartas havia a ameaça de que, mais cedo ou maistarde, ele seria denunciado, para que pagasse pelos crimesque estava cometendo.

Magno estava desesperado. Temia perder o empre-go e a confiança dos seus superiores, caso o conteúdo dasacusações viessem a público. Estava mergulhado num so-frimento terrível. Aquelas cartas retiraram a sua qualidadede vida. Ele já não conseguia ser mais o mesmo. Perdera a

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vitalidade, estava apático e visivelmente abatido pela faltade segurança.

Aquele jovem rapaz era de uma honestidade admirável.O conteúdo das cartas era um absurdo. Magno jamais fariao que o anônimo o acusava. Era um homem de caráter,honesto, e nunca foi capaz de enganar alguém. Tudo o quealcançou foi fruto do seu esforço e trabalho.

Depois de ouvir todo o sofrimento de Magno, per-guntei a razão dele estar tão abatido com as cartas. Se eletinha consciência de que nada do que estava escrito era ver-dade, por que estava se deixando abater tanto?

Magno temia a vergonha das acusações. Disse que tinhamedo de ter sua imagem denegrida no seu local de trabalho.

O sofrimento dele era concreto. Apesar da certeza desua inocência, Magno permitiu que o conteúdo daquelascartas comandasse os seus dias. Ele não conseguia se desli-gar das acusações. Vivia em torno delas.

O que faltava a Magno naquele momento da. vida eraum pouco de reflexão. O que lhe faltava era a dinâmica dos"por quês" da primeira infância.

Magno precisava analisar a sua situação por um outroprisma. Primeiramente precisava reconhecer que a causa deseu sofrimento era uma calúnia. A matéria-prima de seu so-frimento era uma mentira. Ele não estava diante de uma ver-dade. Ele não estava sendo acusado de um erro que realmentehavia cometido. Naturalmente ele não tinha o que temer.

Quando somos ameaçados por algo que realmente fi-zemos, então temos um motivo para a preocupação. Erramose alguém ameaça revelar nosso erro. Neste caso, temos entãouma realidade que verdadeiramente merece nossa ocupação.É natural que diante deste fato a gente sofra. Se erramos,temos que pagar pelo erro. Sofrimentos nascem destes paga-mentos. Não teremos outra opção senão enfrentar as conse-qüências dos nossos erros. Adiar costuma ser a pior escolha.

Mas Magno era ameaçado por uma calúnia. O queele realmente precisava fazer era racionalizar o seu sofri-mento. Vale aqui a premissa popular que diz: Quem nãodeve, não teme!

Por que continuar sofrendo por algo sem fundamen-to? Cartas anônimas só nascem de pessoas covardes, quenão têm coragem de assumir o que pensam ou o que de-nunciam. Se as acusações partiam de uma pessoa covardee eram infundadas, por que dar a elas alguma atenção? Por•que perder a paz por algo tão mesquinho?

Foi justamente o que propus ao rapaz. Não havia ab-solutamente nada naquela situação que verdadeiramentemerecesse a sua atenção.

Magno não poderia continuar dando autoridadeàquele discurso mesquinho e mentiroso. Ao permitir quesua mente se ocupasse de todas aquelas acusações, Magnoconferia autoridade e poder ao desconhecido e mentirosoque o atormentava.

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o que Magno fazia consigo mesmo era cruel. Tudo oque ele sabia de sivalia menos que o conteúdo das cartas. Erapreciso mudar o jogo. Ele estava permitindo que os adver-sários minassem o seu campo de atuação. Ao sofrer daquelejeito, ele entregava a vitória nas mãos dos adversários.

Depois de nossa conversa, Magno se comprometeua não abrir mais as cartas, além de destruir todas as outrasjá lidas. Sempre que sua mente quisesse se preocupar como conteúdo das acusações, ele se esforçaria para substituira acusação pela certeza de que não deve nada a ninguém.Assim ele poderia voltar a dominar o seu pensamento.

Com a mente mais organizada, o sofrimento perde oseu poder opressivo. Ao substituir uma idéia ruim por umaboa, ele reconquistaria a tranqüilidade e a competência,marcas de sua atividade profissional.

E assim o fez. Quando percebia que ficavaacabrunha-do com as lembranças das acusações, Magno se esforçavapara colocar ainda mais vigor em suas atividades. Além disso,encorajou-se e resolveu se abrir com o seu superior. Contou-lhe tudo o que estavasofrendo e colocou-se à disposição paraque todo seu trabalho fossecriteriosamente avaliado.

Mais uma vez o rapaz cresceu no conceito de seussuperiores. Ao substituir a idéia opressiva por uma idéiaboa, Magno não só se livrou dos sofrimentos das acusaçõescomo também alcançou uma nova promoção.

Os grandes espíritos sempre sofreram oposição violentadas mentes medíocres.

Estas últimas não conseguem entenderquando um homem não se submete

sem pensar aos preconceitos hereditáriose usa a inteligência com honestidade

e coragem.

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Capítulo

25

Administrando os sofrimentos

Um dos grandes problemas que o sofrimentoacarreta é justamente a nossa falta de capacidade de lidarcom ele. O primeiro desafio que temos diante de uma •dor que acabou de chegar é continuarmos no comandoda vida.

Magno perdeu o controle da vida. As cartas anônimascomandavam os seus dias. Ao invés de administrar o pro-blema, acontecia o contrário.

Diante dos problemas da vida e dos sofrimentosoriginados deles, temos duas possibilidades: ou os admi-nistramos ou seremos administrados por eles.

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No mundo dos negócios, os bons administradoressão geralmente pessoas reflexivas. Uma boa administraçáosó pode ser realizada à medida que a realidade administradapassa constantemente por processos de análises. É por meioda análise de uma situação que poderemos encontrar o me-lhor caminho a seguir.

A gênese dos sofrimentos de Magno era justamentesua incapacidade de analisar as ameaças. Por vezes os medossão capazes de nos roubar a reflexão. Somente quando eleneutralizar o poder das ameaças sobre sua mente é queele retomará a serenidade.

Analisar é purificar. É retirar os excessos. Muitos so-frimentos nascem de nossas confusões mentais. A análise

tem o poder de reordenar as idéias. É como se acendêsse-mos luzes em um quarto escuro.

Ninguém consegue se localizar em um ambiente semluz. Por isso que as saídas de emergências dos aviões sãotodas sinalizadas com caminhos de luz. Caso haj~ um aci-dente, os passageiros poderão se orientar pelos caminhosindicados pelas luzes. A saída de emergência é o destinofinal da luz.

Interessante isso. Muitas vezes também necessitamosde saídas de emergência em nossa vida. São aquelas situa-ções que fogem ao nosso controle. Nestes momentos, a cal-ma da reflexão é que facilitará encontrarmos a melhor saída.

A calma é essencial para que sejamos capazes de encontrar

o caminho.

Muitos sofrimentos nascem das nossas confusõesmentais. Por isso é tão importante desenvolvermos o hábi-to de refletir sobre a vida e sobre os problemas que enfren-tamos. No momento de nossa fragilidade, a reaçáo maiscomum é o desespero. Mas o desespero não nos ajuda emnada. Pessoas desesperadas são pessoas em profundo estadode confusão mental.

O desespero é uma resposta espontânea do ser hu-mano quando diante de um grande limite. Mas ele nãoprecisa ser definitivo. Pode ser apenas um primeiro mo-mento do sofrimento. Estender no tempo o estágio dodesespero é adiar a solução dos problemas. Pessoas deses-peradas não costumam lidar bem com os problemas queenfrentam. A razão é simples. O desespero é o oposto daanálise. A análise requer calma, paciência e lucidez. Tcúsatitudes geralmente não são encontradas em pessoas to-

madas pelo desespero.

Administrar os sofrimentos no momento do desespe-ro é tarefa árdua. É nesta hora que precisamos de alguémque nos ajude a contornar a força do pensamento opres-sivo. Desesperos nascem e são nutridos a partir de fatos eidéias que nos oprimem. Voltamos à questão que já trata-mos anteriormente. Fatos não podem ser modificados, masas conseqüências deles em nós sim.

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Quando estamos desesperados, necessitamos fazer atriagem das causas. Se não temos mais como alterar o fato,teremos então que investir nas conseqüências.

É neste momento que deveremos nos fazer a per-gunta fundamental a partir de várias perspectivas: Porque estou desesperado? Qual é a raiz do que me faz sofrer?É possível alterar a realidade que me envolve? Por que es-tou sofrendo?

A formulação destas perguntas favorecerá o processode análise. Perguntar o porquê se sofre é tão importantequanto sorver o ar para se manter vivo. É a partir desta

pergunta que descobriremos se temos ou não r~~ es para osofrimento. Digo isso porque não é raro encontrar ssoasem profundo estado de sofrimento sem razão.

Sofrimento sem razão é sofrimento infértil. Sofri-mentos sem razão são sofrimentos que poderiam serevitados, caso a pessoa se dispusesse a fazer uso de suareflexão. Exemplo disso são os sofrimentos que nascemdos medos.

É possível encontrar diversas pessoas pelo mundoafora que sofrem terrivelmente com seus medos. Medosmuitas vezes infundados, medos nascidos de bobagens queresolvemos acreditar.

Recordo-me que quando eu era criança, meu piormedo era o medo de pessoas mortas. Fui criado num

contexto cultural em que os rituais de morte eram pavo-rosos, como velórios prolongados dentro das casas.

Não existiam os locais especializados em rituais fúne-bres. O morto era velado no mesmo lugar em que depois

teríamos que continuar a nossa vida.

É natural que depois de um velório as lembrançasfiquem muito vivas na mente dos que conviverão no localonde ele fora realizado. A sala onde o corpo ficou estendi-do por quase vinte e quatro horas era a mesma que atra-vessaríamos, caso tivéssemos que ir ao banheiro durante

a noite.

Nada mais pavoroso e tortuoso. Por causa de tudoisso, alimentei durante boa parte da vida o medo de quem

já estava morto.

Ainda hoje sou tentado a sentir medo dos mortos,mas sempre que me ocorre este pensamento busco substi-.tuir a visão ingênua - esta que reza, que mortos podem nosfazer mal- por uma visão mais real, madura - a que nos dizque aqueles que já morreram não podem nos causar malalgum. Medo dos vivos é até justificável, mas dos mortos

não tem fundamento.

Assim que racionaliw o medo, naturalmente ele perdeo poder sobre mim. Mais uma vez a regra da substituição.Uma idéia ruim por uma boa. Quantos desesperos seriamevitados se usássemos esta regra. Quanta idéia opressora

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deixaria de ser determinante sobre nós caso aplicássemoseste princípio tão cheio de sabedoria.

Nesta perspectiva, a filosofia exerce o mesmo poderque a medicina. A reflexão reconfigura a experiência e pro-porciona a cura da mente pelo pensamento.

Vã é a palavra do filósofo

que não cura o sofrimento do homem.

Pois assim como nada se ganha

na medicina quando ela não expulsa

as doenças do corpo,

nada se ganha na filosofia

quando ela não expulsa

o sofrimento da mente.

Epicuro

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Capítulo

26

Quando o sofrimento

merece ser sofrido

Um sofrimento só valerá a pena se ele for verdadeiro .•.Sofrer por mentiras é um absurdo. Já chega o que temosque enfrentar na vida. Não é necessário criar outros desa-fios além dos que já são próprios de nossa caminhada.

Quando identificamos um sofrimento verdadeiro,precisamos nos render a ele. Não se trata de assumir umapassividade, sorvendo-o em estado de vítima. Não, nadadisso. Render-se ao sofrimento é reverenciar sua sacrali-dade, reconhecendo nele todo o crescimento que se des-prenderá dele. É como adentrar em um território sagrado,

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sabendo que pisar aquele lugar é oportunidade única quemerece ser vivida e experimentada com seriedade.

O sofrimento é verdadeiro quando ele está costuradona crueza da vida, isto é, não é fruto de projeções imaginá-rias, nem tampouco resultado de medos infundados.

Reconhecer o sofrimento verdadeiro, aquele capaz denos fazer crescer, é reconhecer diamantes em meio aos cas-calhos. Requer arte de garimpo.

O tempo todo fazemos a experiência dos limites quenos fazem sofrer, mas nem sempre conseguimos distinguir osofrimento cascalho do sofrimento diamante. Cascalhos nemsempre nos amadurecem, mas os diamantes sim. Identificaro sofrimento diamante requer sabedoria e calma. O grandeproblema é quando invertemos os valores.

Certa vezfui surpreendido por uma moça em um chorocompulsivo que expressavaprofundo desespero. Deixei queela chorasse tudo o que queria. Durante aquele choro, fiqueipen10 na possívelcausa daquele desespero tão lancinante.

pós acalmar-se um pouco, ela me contou a causadaque e desespero todo. O namorado havia terminado orelacionamento de pouco mais de dois meses.

Quando terminou o relato, ela me pediu um conse-lho a respeito do acontecido. Olhei-a e sem nenhum receiolhe disse: "Querida, ao sair daqui, aproveite a oportunidadepara passar no hospital que trata as crianças com câncer!"Sem dizer mais nada, deixei-a.

Posso não ter agido da melhor forma, confesso, masnão poderia deixar de lhe dar aquele tratamento de choque.Esbarro em sofrimentos muito concretos o tempo todo esei o quanto a dor é aguda nos subterrâneos do mundo.Não tinha o que dizer a ela. Falaria o quê sobre o namoradoque não lhe queria mais? Pensei que a melhor forma de lheacordar fosse lhe indicando uma dor concreta, cujo choromerecia ser derramado.

Aquela menina elegeu um cascalho como diamante.Ela precisava tocar verdadeiramente as dores do mundo.Quem sabe assim ela reavaliaria o seu desespero e até senti-ria vergonha dele.

Certa vez tive a oportunidade de entrar em contatocom as crianças do Instituto Pró-queimados, uma insti-tuição que cuida de pessoas com os corpos deformadospor queimaduras.

Eram crianças com histórias diferentes, mas comproblemas muito semelhantes. Eram meninos que apren-deram a conviver diariamente com os limites terríveis oca-sionados pelas queimaduras. Crianças praticamente cres-cidas em hospitais e que aos cinco, seis anos de idade, játinham sofrido mais de vinte intervenções cirúrgicas. Sereshumanos mutilados.

O contato com aquelas crianças mudou muito o meuconceito de sofrimento. Não se trata de relativizar o so-frimento de ninguém, mas confesso que depois de tê-Ias

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conhecido, sequeladas por dentro e por fora, comecei a en-xergar com outros olhos os desesperos do mundo.

Foi a partir daquele encontro que comecei a pensarnos sofrimentos a partir da metáfora do garimpo. Aquelessim eram sofrimentos diamantes, pois cumpriam no mundoa mesma função que os diamantes lapidados - nos enrique-cem. Seja aquele que sofre ou o que sofre ao lado. É impos-sível não crescer como pessoa diante de uma criança comoaquela. É impossível ficar indiferente àquela modalidade dedor tão crua e real.

o mesmo acontece conosco quando nos deparamoscom questões que verdadeiramente merecem nossas lágri-mas. São fatos que nos deixam atônitos, tamanho o seupoder de nos desinstalar.

Lucimara aprendeu isso na prática. Presenciou suafamília ser vitimada num acidente trágico. O marido e asduas filhas. Todos de uma única vez. Sobrou-lhe apenas afilha mais nova. Um mês após esta terrível tragédia mor-reu também o seu pai, a pessoa que lhe ajudava à. suportaraquele momento tão trágico.

Quando a conheci, fiz uma experiência que compa-ro à minha ida à terra santa. Para mim, Lucimara é comoJerusalém. Nela o ca1vário foi atualizado e o mesmo Cristo quehoje anuncio ressuscitado, nela Ele também foi crucificado.

As dores que enfrento no meu dia a dia em nada podemser comparadas às dores e sofrimentos de Lucimara. Sempre

que me vejo reclamando do que não tem fundamento, dasmesquinharias que interpreto como sofrimento, recordo-medessa mulher. Ao olhar para os cascalhos que me fazem chorar,recordo-me do brilho do diamante que um dia ela me ofere-ceu. Sua partilha modificou o meu jeito de olhar para a vida.

Sofrer com Lucimara é justo, é verdadeiro. Quandoposso, mesmo à distância, recordo-me de seu calvário ecom ela sofro. É um jeito meu de humanizar o que emmim ainda teima em não ser humano.

É a minha maneira de compreender o mistério quese esconde na dor. É um jeito interessante de estabelecercomunhão, permitindo que sua dor não seja em vão. Aopermitir que seu sofrimento me afete e modifique, de algu-ma forma ele se transforma em instrumento de purificaçãopara o mundo.

A dor de Lucimara me purifica também, uma vez queela me atinge com seu poder redentor. •

Ao aconselhar a moça que sofria com o abandono donamorado para que fosse visitar as crianças no Hospital doCâncer, apenas quis lhe oferecer um motivo para verdadei-ramente sofrer.

Talvez no sofrimento de uma dor real ela consiga abriros olhos para o sentimento mesquinho que lhe provocava de-sespero. Quem sabe assim, ela jogaria fora os seus cascalhostão miseráveis e se ocuparia daqueles diamantes tão cheios debrilho, resguardados nos quartos daquele hospital.

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É preciso sair dos estreitos labirintos de nossas do-res mesquinhas para que possamos contemplar os amplos elargos espaços das dores transformadoras.

O namorado não lhe quer mais? Continue a vida.Não faça da curva o final da estrada. Não perca tempo la-mentando o desprew de quem não lhe ama! Descubra queisso é cascalho, e que por questões tão miseráveis não éjusto sofrer tanto.

Nos garimpos da vida, os diamantes ainda perma-necem preservados. É preciso buscl-Ios incessantemente.Carecemos dessa riqueza. Somente ela poderá nos ajudara organizar os nossos sofrimentos, que nos farão sofrer deum jeito certo.

Capítulo

27

Sofrimento - do absurdo

ao sentido

Garimpar diamantes é arte que exige clencia. O ,grande desafio do garimpeiro é encontrar a pedra preciosano barro. É surpreendente, mas saber sofrer é uma arte queexige a mesma ciência.

Assim como a pedra preciosa necessita de lapidaçãopara chegar ao seu formato mais bonito, também o sofri-mento carece ser trabalhado. A este trabalho podemos cha-mar de construção de sentido.

Sentido é o alicerce de uma realidade. As ações huma-nas estão sempre cheias de sentido. O sentido é a coerência

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da realidade. Tudo o que realizamos, por menor que seja,sempre está amparado por um sentido oculto.

Descobrir o sentido das coisas é um jeito interessantede investigar a vida, deixar a superfície e atingir o lugarmenos comum, mais profundo.

O sentido é o motivo de nossas ações. O que faço temsempre sua raiz no por que faço.

Sempre que me disponho a saber as causas de minhasações e dos acontecimentos, de alguma forma estou entran-do no território do sentido.

No contraponto do sentido está o absurdo. Realidadesabsurdas são aquelas que, aos nossos olhos, parecem incoe-rentes. Não há lógica no que vemos e por causa dessa inca-pacidade de decifrar a realidade estabelecida a classificamoscomo absurda. Desses absurdos nascem muitos sofrimen-tos, e deles as perguntas.

Toda pergunta é, de alguma forma, a busca por umsentido. No momento em que sofremos, perguntamos.Queremos saber os motivos que nos infelicitam e compreen-der as causas que nos desesperam. Nossas perguntas estãosempre a serviço do sentido que buscamos.

A vida humana é cheia de absurdos, mas tambémcheia de sentidos. Absurdos e sentidos andam lado a ladoporque são realidades complementares. O absurdo é o im-pulso que nos faz querer o sentido.

Sempre que estamos diante de um fato que nãotem sentido, isto é, um absurdo, somos desafiados adescobrir o caminho para a construção do sentido. É apartir desta construção que nos recuperamos. Só assimpodemos sarar as conseqüências que o sofrimento pro-voca em nós. A construção do sentido favorece a conti-

nuidade da vida.

As perguntas mais fundamentais nascem de nossa in-compreensão da vida e seus absurdos. Diante do desastreque vitimou sua família, Lucimara precisou redescobrir o

sentido da vida.

O absurdo da tragédia ela não foi capaz de compre-ender. Ele ainda continua ameaçando com seu poder desombra. Mas ela não quis ficar presa em suas ramagens. Elapreferiu ir além. Descobriu que não poderia ficar paralisa-da nos braços da tragédia e decididamente se agarrou nas

mãos de Deus para recomeçar a vida.

Recomeços são sempre dolorosos, pOIS esbarramo tempo todo nas lembranças daqueles que se foram.Lucimara precisava voltar à sua casa, adentrar os quartos,desarrumar os locais que pertenciam à sua antiga estruturafamiliar. Seu mundo estava modificado. O que antes era tãoplural agora estava marcado por uma singularidade descon-certante. Da antiga família só lhe restara uma única filha.

Lucimara precisava abrir as portas, desmontar osguarda-roupas e dar direção ao que não seria mais usado.

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o absurdo precisava dar lugar ao sentido, mas um longocaminho de sofrimento estava estabelecido.

Trilhando o sofrimento de cada dia que aquela mu-lher resolveu seguir. Ela é um testemunho vivo de que afé nos coloca de pé, apesar dos mais trágicos aconteci-mentos, e que o sentido é possível, mesmo diante do maiscruel dos absurdos. O mesmo aconteceu com Álvaro ePatrícia, um dos sofrimentos que mais afetou meu cora-ção. Diante da morte de Gabriela, a filha tão jovem, essecasal reencontrou o caminho da vida quando conheceua Comunidade Bethânia, obra assistencial que se esme-ra em recuperar pessoas que se perderam no vício. Olharpara o sofrimento dos outros foi um modo de promovera ressurreição da filha. Diante do absurdo da tragédia, osentido pôde florescer.

Descansa de tua dor por um instante.Permita que o sofrer encontre pausa, ainda

que por breves motivos de esperança.Debaixo da fria laje do absurdo que te envolve

o sentido se prepara para nascer.

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Capítulo28

Acolhendo alegrias possíveis

A mulher me surpreendeu com sua capacidade de ale-grar-se. O sorriso iluminado parecia segredar motivos grandio-sos. Urna alegria natural, capaz de mover o sorriso na direção c4tintenção que reza, embora as palavras não sejam pronunciadas.

Quis saber a razão de tanta alegria. Queria tambémreceber, ainda que em pequena parte, os motivos que a to-cavam com profundidade. Ela me contou. Era uma razãomiúda, quase nada diante dos motivos que costumam mo-ver nossas alegrias. O filho conseguira comer pela manhãuma fatia de mamão.

Um acontecimento simples demais para ser comemo-rado, não fosse o fato de o filho ser vítima de um câncer

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que lhe retirou as vitalidades e até mesmo a capacidade dese alimentar.

o que antes era comum, trivial, tornou-se aconte-cimento raro, digno de ser comemorado. Sua fala estavaimpregnada de gratidão. Seu olhar feliz parecia extrair dia-mantes de pedra.

Diante de tão agudo sofrimento, ela olhou para omundo naquele momento e nele quis descobrir uma únicaflor no meio de um deserto imenso. E conseguiu.

Corpo e alma mergulhados num motivo umco.Comemoração que tem o poder de reunir o que antes esta-va em pedaços, como se o fato possuísse o poder de suturaras partes, devolvendo a inteireza, a harmonia.

Acolhi a alegria daquela hora num silêncio demorado.Abracei aquela mulher e pedi a Deus que me transformassenaquele momento. Pedi a Ele que reacendesse em mim acapacidade perdida de alegrar-me com as pequenas coisas.Pedi que me concedesse a sabedoria que reside nos ,que so-frem, nos que olham a vida debruçados nas janelas da dor.

Aquela mulher vivia um processo constante de per-das. Seu filho ia embora aos poucos. Ele, que um dia vieraao mundo pela força dos movimentos lentos, sendo tecidodemoradamente em seu seio, agora parecia viver o processocontrário. Aquele que artesanalmente fora construído, ago-ra, aos poucos, bem aos poucos, experimentava o duro golpede ser desconstruído pela força de uma doença silenciosa.

A mulher acompanhava o seu filho. Via de perto, viadevagar aquela partida anunciada. Mas enquanto a partidanão se cumpria de forma definitiva, enquanto ainda exis-tia florescimento de razões, mesmo que menores, a mulherquis comemorar o aparente insignificante motivo de o filhoter comido uma fatia de mamão, e isso lhe provocar alegria.Diante de tantas perdas, ela quis deixar de perder e, aindaque por um instante, resolveu descobrir um ganho, umarosa no meio do deserto.

Por meio dos sofrimentos é necessário redescobrir ovalor das pequenas alegrias. Redescobrir a graça de celebraro nascimento de uma única flor no deserto da existência.

o movimento natural é prender os olhos no deserto.A secura imensa, o desconforto do calor e o cansaço trazidopelo sol é infinitamente superior à pequenez de uma florteimosa. Lamentavelmente, tudo o que é grandioso podenos cegar para a percepção de coisas menores, ainda que~mais belas.

No absurdo do deserto, a flor é um sentido a ser en-contrado. A mulher se ateve ao sentido que descobriu. Nãopermitiu que o sofrimento e seus braços imensos lhe vedas-sem os olhos para a descoberta de uma beleza miúda.

Ela quis comemorar o pouco que possuía. Era umjeito de distrair os poderes da morte com aqueles pou-cos detalhes de vida. Ela conseguiu. Só por uma tarde.Mas conseguiu.

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Há dores que parecem reunir todos os motivos hu-manos num só lugar. A dor de perder um filho é assim.

O acontecimento daquela tarde ainda não terminoudentro de mim. Às vezes me recordo dos efeitos daquelaalegria miúda. Sempre que posso recolho no altar de mi-nhas celebrações as intenções daquele sorriso.

O contexto da celebração eucarística é muito signi-ficativo. É a celebração de um sacrifício, mas revestido dealegria. A matéria a ser celebrada é a vida representada novinho e no pão. As duas espécies expressam a totalidade davida humana. Dores e alegrias condensadas em duas ofe-rendas que abarcam a vida inteira.

As oferendas são frutos do sacrifício humano, poissão forjadas pelo suor do nosso trabalho. Porém, pela forçada ação do Espírito Santo, a oferenda humana é santificadae transforma-se em corpo e sangue de Cristo.

É o milagre da transubstancialização. Transubstan-cializar é mudar a substância. Uma mudança substancialconsiste em fazer uma realidade ser outra. Mudar substan-cialmente é mudar totalmente.

O que faz o pão se transformar em corpo e o vinhoem sangue é o sacrifício de Cristo. A eucaristia é a continui-dade histórica da vida de doação de Jesus. Ele ainda se doanos dias de hoje, atualizando no hoje da vida o sacrifíciodaquele tempo.

Mas a eucaristia não termina no rito que celebramos.Ela se estende e se derrama sobre a vida humana. Ela nãocabe no rito, mas se estende por onde deixamos.

Cada vez que somos tocados pelos braços do sofri-mento, de alguma forma podemos tocar o altar da celebra-ção, onde o Cristo é imolado.

O sorriso daquela mulher estava tocado pelas forçaseucarísticas. Nele estavam escondidos os segredos da tran-substancialização, quando pela força da ação divina umarealidade se transforma em outra.

O que nela era transformado, os olhos humanosnão conseguem ver. É algo que extrapola nossas com-preensões humanas, porque há dores que não cabem emnossas compreensões.

Com a alegria que sentia, com o pequeno detalhe defelicidade que ela elegeu como causa de realização, ela fez.omesmo que fazemos quando colocamos uma pequena gotade água no vinho que consagramos em sangue de Cristo.A gota se mistura no vinho. Ela se transforma. É o motivohumano sendo colocado no motivo divino, para que neleseja transformado.

Uma coisa é certa: ver um filho morrer é experiênciaeucarística. Disso não tenho dúvidas. Essa teologia foi aPatrícia quem me ensinou.

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Capítulo

29

Transformados pelo sofrimento

,E muito significativoaproximar o sofrimento huma-

no do significado eucarístico. A teologia nos ensina queo altar é o lugar privilegiado do encontro de Deus com ~humanidade. No altar, tudo o que é humano se diviniza.

Divinizar é recolher e reconhecer a sacralidade. É re-tirar do profano, isto é, retirar o que está fora do templo ecolocar sobre o local sagrado.

Cada vez que somos capazes de colocar o nossosofrimento diante da mística do altar, de alguma for-ma estamos aprendendo a superá-Ios da melhor forma.Sacralizar o sofrimento é reconhecê-Io como oportuni-dade de transformação.

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o que sofremos passa a nos transformar, pois noscoloca no altar da vida, para que Deus nos recolha comooferenda agradável aos seus olhos. Somos como o pão e ovinho, e em Cristo seremos transformados.

Dessa forma, o sofrimento nunca será em vão, por-que sempre haverá nele uma ocasião de transformação. Ésó descobrir.

É claro que se pudéssemos escolher, escolheríamosnão sofrer. Mas não há como mudar essa regra - o sofri-mento humano é natural, é inevitável. Em algum momen-to da vida, ele nos esbarrará.

O importante é não nos rendermos ao seu possível es-pírito destruidor. Para isso, é preciso manter viva a chama daesperança. Sofrer sim, mas sofrer apenas por causas que me-reçam o nosso sofrimento. Sofrer,mas buscar o sentido ocul-to que está por detrás das profusas ramagens dos absurdos.

Sofrer, mas nunca esquecer que depois da tempesta-de há sempre um sol preparado, pronto para bril1?are nosdourar com sua luz tão envolvente.

Porque tão importante quanto não fechar a porta paraos sofrimentos é não impedir, depois, a entrada das alegrias...

E é nisto que se resume o sofrimento:cai a flor - e deixa o perfume

no vento!

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to humano figura nassuntos mais recorrentes.ocuparam dele.

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