quando o eucalipto chega na marÉ · “o homem coletivo sente a necessidade de lutar” ... que me...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
CAROLINA SILVA SAPUCAIA
QUANDO O EUCALIPTO CHEGA NA MARÉ: estudos sobre os impactos territoriais da monocultura de eucalipto nas
comunidades quilombolas do Guaí – Maragojipe (BA)
Salvador 2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
CAROLINA SILVA SAPUCAIA
QUANDO O EUCALIPTO CHEGA NA MARÉ:
estudos sobre os impactos territoriais da monocultura de eucalipto nas comunidades quilombolas do Guaí – Maragojipe (BA)
Monografia de Conclusão de Curso, sob orientação da Prof. Dra. Catherine Prost, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Geografia pela Universidade Federal da Bahia
Salvador 2016
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geociências - UFBA
S241
Sapucaia, Carolina Silva Quando o eucalipto chega na maré: estudos sobre os impactos
territoriais da monocultura de eucalipto nas comunidades quilombolas do Guaí – Maragojipe (BA) / Carolina Silva Sapucaia.- Salvador, 2016.
122 f. : il. Color.
Orientador: Prof. Catherine Prost Monografia (Conclusão de Curso) – Universidade Federal da
Bahia. Instituto de Geociências, 2016.
1. Conflito social - Quilombos - Bahia. 2. Geografia agrícola. 3. Territorialidade humana - Posse da terra. I. Prost, Catherine. II. Universidade Federal da Bahia. III. Título.
CDU: 316.48(813.8)
“O homem coletivo sente a necessidade de lutar”
(Chico Science)
A todos pescadores, marisqueiras, aos trabalhadores do mar.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Ada e Flávio que nunca ingressaram a universidade,
mas sempre dedicaram esforços para educação familiar, humana e escolar
minha e de meus irmãos. Meus velhos, obrigada por todo amor, carinho,
atenção e dedicação. Aos meus irmãos Bia, Binho, Dada e aos meus tios, tias,
primos e familiares.
Agradeço aos meus queridos amigos e companheiros de lutas do
POSSAS, que sem dúvida, trouxeram a fagulha, mesmo sem intenção e sem
saber, da chama que ascendeu e inflama a minha vontade de construir lutas
conjuntas às populações extrativistas, especialmente às das marés, com quem
tanto me sinto próxima. Foi na minha primeira semana de aulas, num trote de
calouros, que eu pude conhecer a comunidade de Santiago do Iguape, me
deparar com a luta quilombola e suas guerreiras e guerreiros. Desde então, o
caminho foi de aprendizados não só acadêmicos, mas de valores que levo a
risca em minha vida.
A minha trajetória na universidade é também responsável pela
conclusão deste trabalho. O movimento estudantil da UFBA e da geografia tem
um forte peso na minha formação humana e política, bem como a luta
organizada, através do “Coletivo Contra Corrente”, que já não faço mais parte,
mas me trouxe a dimensão da responsabilidade e seriedade que a luta contra a
exploração do homem pelo homem na sociedade capitalista exige. Ratifico que
toda esta luta, entre aperreios e conflitos, veio acompanhada de laços fortes de
companheirismo e muitos sorrisos. Tive muitos exemplos inspiradores nesta
minha passagem pela UFBA, obrigada a todos, que, como afirma o Bertold
Brecht, são indispensáveis porque lutam todos os dias.
Não podia deixar de registrar o meu agradecimento a Lili, que como uma
mãe minha e de muitos, sempre esteve ao meu lado me incentivando e me
alimentando com afeto e deliciosos pratos de comida ao longo destes anos de
universidade. Obrigada minha preta!
Meu agradecimento ao grupo de pesquisa Espaços Costeiros que me
acolheu ainda imatura academicamente e me fez crescer como geógrafa e
pessoa. Cursar geografia ficou mais fácil, prazeroso e enriquecedor desde que
passei a fazer parte do grupo. Meu agradecimento especial a Cathy,
orientadora e amiga, uma das “indispensáveis” que cruzou o meu caminho para
além das correções de trabalho, organização de seminários e demais
atividades acadêmicas. Obrigada pelo exemplo na academia e fora dela como
uma mulher de garra, pela confiança e carinho que sempre me depositou.
Aos que lutam todos os dias nas marés, em especial, aos queridos
companheiros da Resex Canavieiras e da Resex Baía do Iguape, meu super
obrigada! Em especial a Janete, Edielso, Dona Maria, Dona Pina, bravos
quilombolas do Iguape que me acolheram durante o processo de pesquisa.
Quando, por dentro funcionalismo do Estado, é possível identificar
brechas (ainda que limitadíssimas) é o momento de agir para a sua destruição.
Este é o meu agradecimento ao camarada Bruno M. que mesmo por vias
anarquistas (rs) tanto colaborou para fazer deste trabalho uma conclusão.
Aos meus amores, Ramon Góes e Rosita Brasil por me mostrarem como
nasce, se cultiva e fortalece a relação entre amigos, por estarem sempre me
incentivando e se colocando ombro a ombro comigo. Esta mensagem vale para
todas amigas e amigos, as “KGX”, que navegam nesta vida junto comigo, ainda
que em mares diferentes. Gratidão!
RESUMO
O eucalipto, espécie arbórea nativa da Austrália, foi introduzido no Brasil durante as primeiras décadas do século XX e teve seu plantio em larga escala impulsionado partir de 1960. A monocultura do eucalipto se intensificou durante a ditadura militar, devido, principalmente, a incentivos e isenções fiscais do governo. O financiamento público às empresas de grande porte do setor de papel e celulose resultou, dentre outras questões, na concentração de renda e terras, visto que as empresas passaram a deter extensas áreas produtivas. Desde então, as plantações de eucalipto cresceram em ritmo acelerado; atualmente o Brasil é 4º maior produtor de celulose no mundo. Instaladas em diversos estados do território brasileiro empresas e monoculturas de eucalipto tem deixado um rastro de grilagem, danos ambientais e descumprimento de leis ambientais. As monoculturas de eucalipto são responsáveis por profundas mudanças na estrutura fundiária, uma vez que se baseia na manutenção da aliança de classes entre proprietários fundiários e capitalistas. Desta aliança decorre uma complexidade de conflitos entre o agronegócio e produtores rurais e populações tradicionais da Resex Baía do Iguape. A pluralidade de atividades tradicionais é antagônica ao interesse desenvolvimentista do Estado que busca homogeneizar os usos do espaço local através do desenvolvimento de atividades estranhas à lógica tradicional, tal como evidencia o conflito levantado neste estudo referente ao crescente desenvolvimento de monoculturas de eucalipto em terras historicamente ocupadas por quilombolas no Guaí, distrito de Maragojipe. Palavras-chave: Conflitos territoriais; Resex Baía do Iguape; monocultura de eucalipto.
ABSTRACT
Eucalyptus, a native flowering tree from Autralia, was introduced in Brazil during the early 20th century and had its large scale production boosted from 1960's on. The eucalyptus monoculture was intensified during the Brazilian military dictatorship, thanks to tax incentives and exemptions offered by the government. The public funding to the large-sized companies that produced paper and cellulose resulted, among other points, in income and land concentration, since the companies have gotten ways to possess broad productive areas. Ever since, the eucalyptus plantations increased rapidly leading Brazil into the 4th position of the biggest cellulose producers nowadays. Settled in many Brazilian states, monocultures and companies in this area have left behind a trace of environmental damages, land frauds and law infringements. Thanks to the eucalyptus monocultures, many changes happened in the land ownership, once it's based on the maintenance of the classes alliance between land owners and capitalists. From this alliance occurs a complex conflicts between agribusiness, rural producers and traditional populations in the extractive reserve Baía do Iguape. The large number of traditional activities come upon the national developmentalist interest that tries to homogenize the use of the local area through the development of activities different from the going on regime, such as evidencing the conflict presented in this stud relative to the growing development of eucalyptus monocultures in historically occupied lands by quilombolas in Guaí, Maragojipe district. Keywords: Land conflicts; agribusiness; Resex; eucalyptus monoculture
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Gráfico 1 – Estrutura fundiária – Maragogipe (2006) 35
Mapa 1 – Reserva Extrativista Baía do Iguape 53
Figura 1 – Croqui da Baía do Iguape com localização aproximada de
trinta comunidades adjacentes à RESEX
54
Gráfico 2 – Extrativistas da Resex Baía do Iguape por comunidade 55
Figura 2 – Apetrechos de pesca e pescadora 57
Figura 3 – Marisqueiras cantando pescados 57
Gráfico 3 – Principais fontes de renda dos beneficiários da Resex Baía
do Iguape
58
Figura 4 – Croqui das antigas fazendas do distrito do Guaí 62
Figura 5 – Monocultura de eucalipto da Fazenda Mutamba e roças
comunidade quilombola Mutamba
64
Figura 6 – Croqui do Território Quilombola do Guaí 65
Mapa 2 – Delimitação das monoculturas de eucalipto no Distrito de
Guaí – Maragojipe (BA)
70
Figura 7 – Embalagens de bioquímicos utilizados nas plantações do
Guaí
74
Figura 8 – Monocultura de eucalipto margeando manguezal no Guaí 75
Figura 9 – Mapa da COPENER identificando quatro propriedades
arrendadas para a produção de eucalipto
82
LISTA DE QUADROS E TABELAS
Tabela 1 – Concentração fundiária no Brasil anos 1967 e 1978 33
Tabela 2 – Número de estabelecimentos agropecuários por área, anos de 1995/96 e 2006.
34
Tabela 3 – Produção de celulose no Brasil (1950-1988) 40 Quadro 1 – Lista de impactos ambientais e socioeconômicos apontados
em entrevistas de campo
76
Tabela 4 – Nome das propriedades e seus donos, área total das fazendas, área destinada ao plantio de eucalipto sob operação da BSB/COPENER e área plantada de acordo com dados de campo
83
Tabela 5 – Classificação da silvicultura de acordo com a resolução do CEPRAM nº 4.327/2013.
84
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
APA Área de Proteção Ambiental
ABRAF Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas
BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BSC Bahia Specialty Cellulose
CEPEDES
Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do
Extremo Sul
CERB Companhia de Engenharia Rural da Bahia
CETA Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e
Quilombolas
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNS Conselho Nacional dos Seringueiros
CPT Comissão Pastoral da Terra
CPP Conselho Pastoral dos Pescadores
EIA Estudo de Impactos Ambientais
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INEMA Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia
MDS Ministério do Desenvolvimento Social
MMA Ministério do Meio Ambiente
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PAE Projeto Assentamento Extrativista
Resex Reserva Extrativista
RIMA Relatório de Impactos Ambientais
RPPN Reserva Particular do Patrimônio Natural
RTID Relatório Técnico de Identificação e Delimitação Territorial
SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
UC Unidade de Conservação
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFRB Universidade do Recôncavo Baiano (UFRB)
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 13
2. MÉTODO E METODOLOGIA 18
3. ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS 22
3.1 Aspectos da propriedade privada e da renda da terra sob o
capitalismo
27
4. A MONOCULTURA DO EUCALIPTO NO BRASIL 31
4.1 Breves considerações sobre questão agrária no país 31
4.2 Origem do setor florestal no Brasil 35
5. UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O USO TRADICIONAL DO
ESPAÇO LITORÂNEO
44
5.1 Histórico do movimento extrativista 44
5.2 Surgimento das Reservas Extrativistas 47
5.3 Resex Baía do Iguape 51
6. MONOCULTURA DO EUCALIPTO: REFLEXÕES E IMPLICAÇÕES
SOCIAL, FUNDIÁRIA E AMBIENTAL NAS COMUNIDADES
QUILOMBOLAS DO DISTRITO GUAÍ
60
6.1 Resgatando a memória quilombola: um pouco da história
contada
60
6.2 A ocupação atual da Comunidade Quilombola Guerém-Baixão
do Guaí, Guaruçu, Jirau Grande, Porta da Pedra e Tabatinga
63
6.3 Questões sociais, fundiárias e ambientais decorrentes da
monocultura de eucalipto nas comunidades quilombolas do distrito
Guaí
66
6.4 A resistência dos atingidos 87
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS 92
REFERÊNCIAS 96
ANEXO 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTA 102
APÊNDICE A - RESOLUÇÃO DO CONAMA Nº01/1986
APÊNDICE B - RESOLUÇÃO DO CONAMA Nº428/2010
APÊNDICE C – ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº17/2010/PFE/IBAMA
13
“Chegou a hora de defender nosso pedaço de chão
A terra é nossa isso por direito respeite nossa tradição
A nossa luta é por terra e agua do litoral ao sertão
Lutamos por igualdade com liberdade garantir o pão”
(Trecho do hino da campanha em defesa dos territórios pesqueiros)
1. INTRODUÇÃO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) representa o
encerramento de um ciclo de formação, a sistematização de estudos,
pesquisas e vivências realizadas durante a minha graduação e dos
conhecimentos adquiridos neste processo. As pesquisas realizadas junto ao
Grupo de Pesquisa Costeiros do Departamento de Geografia da UFBA sobre
as Reservas Extrativistas (Resex) têm aqui um peso importante; somadas aos
estudos da militância no movimento estudantil acerca da realidade me deram
bases para os referenciais teórico-conceituais adotados, como também para os
caminhos metodológicos trabalhados para o desenvolvimento deste trabalho.
A relação estabelecida com os sujeitos pesquisados e suas formas de
organização social e articulações políticas permeia todo o processo da
pesquisa, seja na obtenção de dados em entrevistas, viagens de campo,
reuniões do conselho deliberativo da Resex, oficinas nas comunidades, enfim,
na troca de saberes, bem como com o contato com o trabalho e estudos do
Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), do Comissão Pastoral da Terra
(CPT) e de outras organizações e movimentos sociais do campo.
Meu objeto de estudo é o caráter conflituoso entre a reserva extrativista
marinha Baía do Iguape e o agronegócio do eucalipto. Foi sendo delimitado ao
longo dos anos de pesquisa de iniciação científica do programa PIBIC-CNPq.
Entre 2014-2015, pude desenvolver o trabalho na Resex Canavieiras, intitulada
“Aspectos da dinâmica fundiária de Canavieiras: estudo sobre a silvicultura no
município e conflitos com a reserva extrativista”. Apesar de se tratar de outra
Unidade de Conservação (UC), os estudos deste trabalho possibilitaram a
compreensão da responsabilidade da monocultura do eucalipto por profundas
mudanças na estrutura fundiária, uma vez que baseia-se na manutenção da
14
aliança de classes entre proprietários fundiários e capitalistas. Desta aliança
decorre uma complexidade de conflitos territoriais entre o agronegócio e
produtores rurais e populações tradicionais.
A problematização dos conflitos decorrentes das diferentes ocupações e
usos do solo na zona costeira se faz necessária dada à diversidade de usos a
que estão submetidas, muitos destes exclusivos dos espaços litorâneos.
A beira do mar, tal como salienta Moraes (1999), apresenta vantagens
locacionais na instalação de certos equipamentos, como os da indústria naval e
portuária. As áreas costeiras aufere trunfo na esfera da circulação e
escoamento da produção, visto a prioridade dos transportes marinhos em
detrimento dos aéreos e terrestres, correspondendo assim a “áreas de trânsito
entre todas as produções da hiterlândia” (MORAES, 1999, p.21). São ainda
espaços de lazer por excelência, com belezas cênicas que variam de mares
gelados às ilhas tropicais. As atividades turísticas dominantes baseiam-se na
exploração dos recursos naturais1, da força de trabalho e de aspectos da
cultura e vida das populações que tradicionalmente habitam o litoral, alterando
a paisagem, modificando relações de trabalho nas localidades que se instalam
– com frequentes fraudes nos processos de licenciamento ambiental e
expulsão de moradores “nativos”. O turismo é um dos setores produtivos que
mais arrecada no país, um dos vetores responsáveis pela intensificação de
usos da zona costeira.
Assim sendo, os litorais constituem espaços densos e concentrados de
atividades e de pessoas. Estima-se que 2/3 da população mundial encontram-
se na borda dos continentes - a menos de 50 km do mar (UNESCO2). No
Brasil, dados do Atlas geográfico das zonas costeiras e oceânicas do Brasil do
IBGE (2011) afirmam que 26% da população brasileira residem nestas áreas,
correspondendo a 50,7 milhões de brasileiros distribuídos em 463 municípios.
Pode-se dizer que áreas litorâneas ou próximas ao extenso litoral brasileiro
concentram a tal ponto a população em consequência de uma formação
territorial histórica na qual a implantação dos primeiros e mais estáveis pontos
de povoamento se deram nestes espaços (IBGE, 2000).
1 Exploração de recursos como terra e água para a instalação de empreendimentos e
desenvolvimentos de atividades. É comum a exploração de recursos animais, a exemplo dos campeonatos de pesca esportiva. 2 Fonte: http://ioc.unesco.org/iocweb/index.php
15
O fato do mar se portar como uma “feira a céu aberto” influenciou na
fixação dos grupos próximos a mares e estuários. No mar é possível retirar os
alimentos sem empreender nenhum ou pouco custo ou equipamento além da
força humana, como por exemplo, o ato de mariscar. Diegues (1983, p.13)
argumenta em cima de estudos arqueológicos e etnológicos que a pesca
representou uma “importante fonte de alimentos em períodos anteriores ao
surgimento da agricultura”. A coleta de moluscos é compreendida como de
suma importância na alimentação humana antes do período Neolítico. Com o
desenvolvimento da humanidade e das forças produtivas foi possível elaborar
diferentes apetrechos e prover o alimento dos grupos, com redes, arpões,
lanças, barcos etc. Enfim, o mar como uma fonte aberta de alimentos estimulou
ao longo dos anos a fixação de diferentes populações em suas bordas. Ainda
hoje representa a principal fonte de reprodução de diferentes grupos
tradicionais, pesqueiros, quilombolas, indígenas nos espaços costeiros.
A pesca artesanal, responsável por cerca de 70% do que é pescado
nacionalmente (CPP, 2015), vai além de uma atividade econômica produtiva,
constitui um dos pilares da segurança alimentar no país. Trata-se de um modo
particular de reprodução social da vida, atrelado a conhecimentos passados
por gerações, no qual há uma íntima relação com as marés, rios e a totalidade
da natureza. Kunh (2009) em sua dissertação aponta que “os pescadores
artesanais constituem-se como um grupo social que no ato de produzir agem,
concomitantemente, na produção do espaço”. Complementa a autora dizendo:
Os pescadores artesanais são entendidos nesta pesquisa como formadores de um modo de vida particular, ou seja, como um grupo diferenciado no Modo de Produção Capitalista, que embora esteja inserido nesse sistema, possui outra lógica de relação/produção/apropriação do espaço. Para esse grupo social, o espaço possui valor de uso. A lógica que se contrapõe a esta é a lógica dos grandes agentes do capital, que veem o espaço como valor de troca. E esse é o pano de fundo no qual é promovido o embate entre as distintas lógicas de relação/produção/apropriação do espaço geográfico (KUNH, 2009,p.29).
Ao longo do vasto litoral brasileiro de cerca nove mil quilômetros de
extensão, do Oiapoque ao Chuí, há diversas comunidades pesqueiras que
vivem de modo tradicional, da pesca artesanal. Contudo, este modo de viver se
depara com diversos usos do espaço, em sua maioria conflitantes e nocivos à
natureza e aos modos de vida das comunidades locais.
16
Se por um lado o espaço litorâneo aqui estudado revela uma
configuração espacial verticalizada, estruturada conforme as necessidades do
modo de produção capitalista através de empreendimentos de grande porte,
por outro, evidencia o uso por povos e comunidades tradicionais como forma
harmônica e alternativa de relação com a natureza - apreendida em suas
múltiplas dimensões: recurso, abrigo, moradia, local de solidariedade orgânica
que contém valores simbólicos e identitários, etc.
As populações tradicionais da Resex Baía do Iguape vivem e
sobrevivem econômica, social e culturalmente da agricultura, do extrativismo
vegetal e da pesca. A pluralidade de atividades tradicionais é antagônica ao
interesse desenvolvimentista do Estado que busca homogeneizar os usos do
espaço local através do desenvolvimento de atividades estranhas à lógica
tradicional tal como a Usina Hidrelétrica Pedra do Cavalo, a Mastrotto (polo
curtumeiro), o polo naval, iniciado nos anos 1980 com a construção do canteiro
naval em São Roque do Paraguaçu e ampliado com a construção em
andamento do estaleiro Enseada, entre outras atividades que impactam
negativamente as populações locais.
A presente pesquisa, dentre seus objetivos, pretende analisar quais os
impactos territoriais do processo de produção e valorização capitalista do
espaço das comunidades tradicionais no espaço costeiro, tendo aas
comunidades quilombolas do Guaí, na Resex Baía do Iguape, como recorte
escalar.
Neste sentido, o conflito territorial identificado e investigado refere-se à
crescente destinação de terras agricultáveis, historicamente ocupadas por
comunidades quilombolas no Guaí, distrito de Maragojipe, para o monocultivo
do eucalipto. Tal monocultura tem se espacializado pelo país, majoritariamente
presente no extremo sul e sul do estado da Bahia, dando ao Brasil o título de 4º
maior produtor de celulose no mundo, com 14.164 mil toneladas produzidas no
ano de 2010 (SDE, s/ ano). Instaladas em diversos estados do território
brasileiro, empresas e monocultivos de eucalipto têm deixado um rastro de
grilagem, danos ambientais, descumprimento de leis ambientais, além do
fortalecimento do latifúndio em detrimento de políticas de distribuição de terras
com fins de reforma agrária e demarcação de terras quilombolas.
17
A valorização capitalista do espaço impõe uma lógica violenta aos povos
e comunidades tradicionais, expulsas das áreas litorâneas, tendo o seu modo
de (re)produção da vida comprometido e até mesmo impedido de acontecer.
Kunh (2009, p.10) aponta que “o acesso à água está fortemente relacionado
com o acesso à terra, onde este é possibilidade de garantia daquele”. Apesar
da ligação intrínseca com as marés, os extrativistas moram, cultivam,
desenvolvem seus laços de solidariedade e cultura em terra firme e é nesta
que os conflitos se colocam de forma mais acirrada.
O caráter estratégico do litoral e a pluralidade de usos são geradores
potenciais de conflito. Outra caracterização das zonas litorâneas decorre do
fato de serem espaços potencialmente geradores de renda diferencial. “Tal
renda fundiária advém de qualidades relativamente raras dos recursos naturais
e ambientais presentes em uma dada localidade” (MORAES, 1999, p.19). Este
ponto será mais bem desenvolvido nos capítulos a frente. Por enquanto,
aponto que a gênese do valor e a essência deste no capitalismo, partindo da
compreensão das categorias valor e trabalho em Marx, nortearão os caminhos
da pesquisa a fim de trazer uma reflexão que relacione os processos sociais ao
estudo geográfico.
18
2. MÉTODO E METODOLOGIA
Na busca de um caminho que fundamentasse o conhecimento para a
interpretação da realidade histórica e social que busco estudar na pesquisa,
bem como da realidade como um todo, o método materialista histórico dialético
(MHD) desponta como o método mais apropriado para tal, por compreendê-lo
enquanto uma teoria de interpretação capaz de servir de instrumento para
alcançar os objetivos desta monografia. Neste sentido, creio ser fundamental
distinguir método de metodologia, uma vez que não são sinônimos e se
diferenciam qualitativamente, ainda que dialeticamente se entrelacem no
percurso do desenvolvimento das ideias.
Moraes e Costa (1987, p.32) nos ajudam a compreender o método
enquanto ponte de “reflexão de uma ciência particular e a produção
historicamente acumulada, deixando claro o caráter social da atividade
científica.” Desta forma o método diz respeito à visão de mundo do autor, seu
posicionamento político, filosófico, ideológico.
O método, sendo expressão de sistemas filosóficos, possui uma abrangência maior que cada campo da ciência, isoladamente. Por isso, traz para a discussão específica, orientações genéricas, experiências acumuladas, conceitos e categorias já lapidados que atuam como balizamentos gerais para uma reflexão em curso . A opção metodológica fornece ao pesquisador uma adesão a uma lógica (formal, dialética, matemática etc) (MORAES; COSTA, 1987, p.32).
A presente pesquisa parte do materialismo histórico dialético (MHD)
como forma sistematizada de ver o movimento da realidade impulsionando a
práxis humana para o enfrentamento das questões sociais, visto que a práxis3
é, antes de tudo, a validação do real.
Para o pensamento marxista importa descobrir as leis dos fenômenos
cuja investigação se destina trabalhar. Assim, é importante captar, de maneira
detalhada as articulações dos problemas em estudo, analisar seu movimento
(evolução), buscar as conexões sobre os fenômenos que os envolvem. Isto,
para Marx, só foi possível a partir da reinterpretação do pensamento dialético
de Hegel. A separação entre sujeito e objeto, presente na lógica formal, não
3 O conceito de práxis de Marx pode ser entendido como prática articulada à teoria, prática
desenvolvida com e através de abstrações do pensamento, como busca de compreensão mais consistente e consequente da atividade prática – é prática embebida de teoria (PIRES,1997).
19
satisfaz o processo de compreensão da realidade. Partindo disto, Marx e
Engels, buscando a superação desta separação, partiram de observações
acerca do movimento e da contraditoriedade do mundo, dos homens e de suas
relações.
É com esta preocupação que Marx deu o caráter material (os homens se organizam na sociedade para a produção e a reprodução da vida) e o caráter histórico (como eles vêm se organizando através de sua história). A partir destas preocupações, Marx desenvolve o Método que, no entanto, não foi sistematicamente organizado para publicação. Podemos encontrar elementos para a compreensão do Método nos primeiros escritos de Marx como na Ideologia Alemã e nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, por exemplo, mas é em O Capital, sua mais importante obra, que encontraremos, não uma exposição do Método, mas sua aplicação nas análises econômicas ali empreendidas. A Contribuição à Critica da Economia Política, texto introdutório de O Capital, talvez seja o texto de Marx que mais se aproxima de uma sistematização do Método. (PIRES, 1997, p.86)
A dialética possibilita, bem como exige, o movimento do pensamento
como processo, enquanto a materialidade histórica diz respeito à forma de
organização dos homens em sociedade através do tempo, ou seja, abarca as
relações sociais construídas no processo histórico de desenvolvimento da
humanidade. Para o materialismo-dialético, a história é
[...] produto social, criado ao mesmo tempo que outros produtos da atividade humana pela cooperação dos homens no marco da divisão do trabalho, nas condições naturais e sociais de produção de uma época determinada da história da natureza e da história humana (KORSCH, 2008, p. 137).
O método é visto aqui como um “legado metodológico” deixado para a
humanidade, ainda que não sistematizado por seus autores, Marx e Engels. É
uma concepção de história que “consiste, portanto, em desenvolver do
processo real de produção e a partir da produção material da vida imediata”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 42).
Para o pensamento marxista, esta materialidade histórica e dialética é
compreendida a partir do estudo de uma categoria central: o trabalho. O
trabalho é central por se tratar da forma primeira e mais objetiva de
organização em sociedade, por ser responsável pela mediação entre o homem
e a natureza que resulta numa permanente e dialética transformação de
ambos. É central também, pelo fato das relações sociais terem como base as
relações de produção e as formas organizativas do trabalho. A categoria
20
trabalho será desenvolvida no capítulo seguinte, aqui, é trazida como mais um
aspecto relevante para a compreensão do método MHD.
A metodologia, por sua vez, consiste na orientação para o
equacionamento dos problemas da pesquisa, estabelecendo instrumentos que
serão utilizados ao longo de todo processo. Refere-se também,
ao conjunto de técnicas utilizadas em determinado estudo [...] aos problemas operacionais da pesquisa [...] pode-se dizer que a utilização de um método de pesquisa não implica diretamente posicionamentos políticos ou concepções existenciais o pesquisador, resultando muito mais das demandas do objeto tratado e dos recursos técnicos de que dispõe (MORAES; COSTA, 1987, p.32).
Desta feita, a pesquisa-ação orienta metodologicamente a pesquisa
servindo de escopo para o desvelamento dos mecanismos de exploração e o
reconhecimento da luta travada pelas comunidades estudadas. O levantamento
bibliográfico do escopo teórico, bem como das comunidades e
empreendimentos estudados, foram articulados com documentos de
instituições/organizações como o Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho
Pastoral dos Pescadores (CPP), atuantes na área da reserva extrativista Baía
do Iguape.
Referente aos dados secundários, estes foram obtidos a partir do censo
realizado pelo Projeto Envolver4 (2013), dados dos censos demográficos do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), censos agropecuários e
dos dados cadastrais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA). Destaco também a participação na audiência pública na forma de
seminário da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal,
em maio de 2014, intitulada “Monocultivo do eucalipto: conflitos
socioeconômico e ambiental”, na qual pude obter dados importantes.
A pesquisa contou ainda com dados obtidos nas viagens de campo
realizadas entre janeiro 2015 e abril de 2016, através da participação em
reuniões do conselho deliberativo, oficinas e assembleias da Resex. Contou
também com trabalhos de campo nas comunidades quilombolas do Guaí em
março e abril de 2016 onde quais foi possível realizar entrevistas estruturadas
4 Trata-se do Diagnóstico Socioeconômico em caráter censitário das comunidades extrativistas
tradicionais da Resex Baía do Iguape, realizado como parte do cumprimento da condicionante ambiental do Estaleiro Enseada a fim de subsidiar a elaboração do Plano de Manejo da UC.
21
com moradores e lideranças pesqueiras e obter pontos georrefenciados com
GPS. Estes últimos subsidiaram a confecção de mapas contidos neste estudo,
elaborados nos programas Google Earth e o Arcgis 10.1.
22
3. ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS
Partindo da compreensão de que os conceitos são importantes
instrumentos de análise e interpretação da realidade e que é a própria
realidade que forja e constrói estes conceitos, discorro neste capítulo sobre
questões de ordem teórica, fundamentais para o desenvolvimento deste
trabalho. Antes de trazer compreensões sobre o território, parto da análise da
categoria trabalho como base para a reflexão sobre os processos sociais que
se desenrolam no espaço, chegando às reflexões sobre o espaço transformado
pelo trabalho nele contido – o território.
A história da humanidade é a história da transformação da natureza e
dos homens enquanto sujeitos históricos. Trata-se, partindo da ontologia do ser
social em Marx, da “capacidade do homem de transformar suas relações com a
natureza ao passo que transforma a própria natureza”. O trabalho é assim,
para Marx (2013), um processo de interação dialética entre o homem e a
natureza, é ontológico à condição humana. A trajetória da humanidade carrega
consigo as mudanças que esta relação perpetrou. A dialética desta relação
está na capacidade teleológica do homem de um lado e a causalidade do
mundo natural de outro.
Na história, o trabalho se realiza de diversas formas e em diversas
condições uma vez que para produzir e reproduzir a sua existência, o ser
humano precisa de condições necessárias para a sobrevivência e estas são
garantidas através do trabalho humano (MARX, 2013).
A humanidade trilhou patamares diferenciados se relacionando com a
natureza e o espaço de formas distintas. Formas particulares de realização do
trabalho (e produção) conformam distintas organizações espaciais. O trabalho
primitivo, realizado pelas sociedades coletoras e nômades que antecederam a
Revolução Neolítica, funda o comunismo primitivo - uma fase na história da
humanidade na qual “o espaço é, nesse momento, riqueza natural em meios de
subsistência” (MORAES; COSTA,1987, p. 76). Com os progressos obtidos na
produção dos meios de subsistência fruto de experiências cotidianas e
observação da natureza, os grupos passam a se fixar. A sedentarização resulta
numa substancial alteração no intercâmbio material entre o homem e a
natureza.
23
Mudanças qualitativas ao nível das relações de trabalho, das
necessidades sociais de consumo e, mais importante, nas formas de
organização social. A natureza não mais é apenas objeto de trabalho,
como também é meio de trabalho” (MORAES; COSTA, 1987, p.77).
Marx adotou o conceito de interação metabólica (metabolismo) visando à
compreensão de que há uma mediação da sociedade com a natureza, e que a
força que motiva essa interação é o processo de trabalho, pois tanto o
trabalhador (sujeito), como a matéria-prima a ser transformada (objeto) são
fornecidos pela natureza ao trabalho.
Com o desenvolvimento histórico, as relações intra comunitárias passam
a se complexificar. O cultivo de alimentos e, posteriormente, a domesticação de
animais possibilitaram o surgimento de povoados, o aumento da população e,
consequentemente, da força de trabalho - que resultou no aumento da
produção para além das necessidades da comunidade. O surgimento do
excedente marca uma nova divisão do trabalho que vai dissolvendo as antigas
relações igualitárias dos estágios anteriores. Este novo momento é marcado
pela estratificação social entre aqueles que trabalham e aqueles que firmam
relações de dominação baseadas no domínio da terra e no controle da
produção.
Estão dadas as bases para o surgimento do Estado, que se origina da
contradição entre interesses particulares e os da comunidade e vai se
moldando com o desenvolvimento da luta de classes.
Assim, o Estado não é, de modo algum, um poder, de fora, imposto
sobre a sociedade; assim como não é “a realidade da ideia moral”, “a
imagem e a realidade da razão”, como sustenta Hegel. Em vez disso,
o Estado é o produto da sociedade num estágio específico do seu
desenvolvimento; é o reconhecimento de que essa sociedade se
envolveu numa autocontradição insolúvel, e está rachada em
antagonismos irreconciliáveis, incapazes de ser exorcizados. No
entanto, para que estes antagonismos não destruam as classes com
interesses econômicos conflitantes e a sociedade, um poder,
aparentemente situado em cima da sociedade, tornou-se necessário
para moderar o conflito e mantê-lo nos limites da “ordem”; e esse
poder, nascido da sociedade, mas se colocando acima dela e,
progressivamente, alienando-se dela, é o Estado (ENGELS, 2012, p.
147).
Este instrumento de dominação de classes legitima a “a separação
entre o homem e a natureza, entendida como a desnaturalização do trabalho
social e da sociedade em geral” (MORAES; COSTA, 1987, p. 88).
24
A privatização de um bem, em princípio patrimônio de todos, orientada
por uma lógica de classes, corrobora com a propriedade privada do território e
de seus recursos, resultando em uma série de conflitos. Pensar o território a
partir da projeção espacial das relações de poder (RAFFESTIN, 1993) nos
permite admitir a configuração de múltiplas territorialidades (relações sociais)
no mesmo território (espaço apropriado). Cabe ressaltar que o é processo
desigual e combinado permitindo em um mesmo plano a propriedade privada e
a existência de relações tipicamente não capitalistas. Esta ultima possibilita um
relacionamento distinto do primeiro com o território, no qual há o
reconhecimento do uso coletivo da natureza.
Todas as atividades produtivas combinam formas materiais e simbólicas
com as quais os grupos sociais agem sobre o território. O trabalho é
responsável pela criação e recriação destas relações que reúnem aspectos
visíveis e invisíveis, daí deriva o fato de não se tratar de uma realidade apenas
econômica. Nas comunidades tradicionais, por exemplo, o trabalho abarca
múltiplas dimensões reunindo aspectos sociais, técnicos, simbólicos, culturais,
naturais, etc. Nestas, a produção da vida através do trabalho faz parte de uma
cadeia de sociabilidade e dela é indissociável. O pescador, a marisqueira, o
artesão de apetrechos de pesca, só o é pela relação de trabalho que realizam
enquanto população tradicional. Trata-se assim, da perspectiva de totalidade
do espaço vivido, em suas objetividades e subjetividades.
Considerando o fato de que toda reprodução social se faz a partir do
espaço e o tem como resultado é possível afirmar que o “espaço é história”
(MOREIRA, 2007, p. 62), é por isso dinâmico e comporta diferentes variáveis
(objetos e relações) em sua constituição. Ao passo que o espaço condiciona é
também condicionado pelo movimento da realidade, resultando em um “arranjo
espacial” que nada mais é do que formas e conteúdos propriamente
geográficos instituídos pelos sujeitos sociais, segundo Moreira (2007).
As relações entre sociedade, espaço e poder, dão a base para o estudo
da territorialidade, uma vez que as relações dos homens no e com o espaço
resultam de relações de poder tal como ocorre nas “territorialidades”, uma
expressão de determinada forma de poder sobre o espaço. Para Raffestin
(1993, p.143) “a territorialidade reflete a multidimensionalidade do „vivido‟
territorial pelos membros de uma coletividade, pela sociedade em geral”. Para
25
o autor, “o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do
espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator
que realiza um programa) em qualquer nível” (RAFFESTIN, 1993, p. 143).
O território não é o espaço. É, segundo Moreira (2007), o recorte de
domínio, é a apropriação do espaço numa perspectiva na qual o território é um
espaço transformado pelo trabalho ali contido. Logo, essa apropriação não é
uma ocorrência natural e sim resultado concreto da luta dos homens e
mulheres pela sua sobrevivência; trata-se do território enquanto um campo de
poder.
Se o território, assim como o espaço, reproduz a própria lógica do
modo de produção a que pertencem, no capitalismo ele não é
homogêneo, podendo conter frações com relações não-capitalistas.
No campo, essas frações são os territórios camponeses. O que os
define é uma combinação de singularidades: terra, trabalho e família,
que se manifesta em “arranjo espacial”: as comunidades e as
propriedades camponesas (NASCIMENTO, 2014, p.16).
Deste modo, o território se dá imbricado com a produção da
humanidade, historicamente determinada, a partir da apropriação de uma dada
fração do espaço. A relação da sociedade-natureza mediada pelo trabalho
sempre resulta numa apropriação, logo, o território aparece como a
materialização espacial, portanto geográfica, desse processo de apropriação
(NASCIMENTO, 2014).
Território e identidade estão intimamente relacionados enquanto modo
de viver e agir. O território usado pelas comunidades negras quilombolas no
Brasil é o território da resistência, forjado nos tempos de escravidão, mas não
só: é a resistência até os dias atuais ao racismo estrutural mantido pelo Estado.
Trata-se, assim, do território tradicional que resiste frente às investidas do
capital e ao avanço do agronegócio.
A condição de ser comunidade quilombola no Brasil contemporâneo é
definida pela necessidade de assumir a história de resistência à
escravidão e de atualizar a luta contra o racismo, inscrito na negação
de se constituir enquanto território quilombola desde: as práticas de
controle do aquilombamento no período escravista; a lei de terras de
1850 e o projeto político-racial de “autonegação” da condição do ser
negro (negritude). Com a constituição de 1988 os quilombolas
passaram a ser detentores de uma promessa territorial de direitos,
que garantisse a posse, o uso e a propriedade deste – a partir do
Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –, além
do “auto-reconhecimento”. A identidade quilombola se constitui da
reivindicação do direito instituído de permanecer neste território, da
26
memória do grupo social e das formas cotidianas de organização
tradicional da vida em comunidade (SANTOS; SILVA; GERMANI;
2011, p.03).
As terras de preto, mucambos ou quilombos, como são chamadas as
comunidades negras quilombolas, são territórios predominantemente rurais
ocupados por negras e negros, a partir de relações simbólicas e materiais
desenvolvidas no espaço. Tratam-se de laços consanguíneos e de
familiaridade que permitem a utilização de áreas de forma individual e coletiva
(AMORIM; GERMANI; 2005). Essa resistência negra nos seus espaços de uso
se realiza através de práticas de proteção aos recursos naturais disponíveis
numa relação de apropriação diferenciada dos moldes tradicionais de
apropriação capitalista.
A posse do território quilombola foi garantida pela Constituição Federal
de 1988. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
determina a regularização territorial das comunidades quilombolas e protege
suas culturas, dispõe que:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.
Outros marcos importantes despontam no cenário político como
conquistas do movimento social organizado, como a convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989 que reconhece o direito
territorial às comunidades quilombolas; o Decreto Presidencial nº4.887/2003
que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias Além do Decreto Estadual nº12.910 de 2013 que
dispõe sobre a regularização fundiária de terras públicas estaduais, rurais e
devolutas, ocupadas tradicionalmente por Comunidades Remanescentes de
Quilombos e Fundos e Fechos de Pasto.
A propriedade definitiva do território passa a ser garantida
constitucionalmente às comunidades negras quilombolas, assegurando a
manutenção de seus costumes e tradições, de forma a permitir a reprodução
física, social, econômica e cultural dos grupos sociais em questão. Ainda que
27
esta tenha sido garantida pela legislação vigente, são muitos os desafios
enfrentados pelos quilombolas na luta pelos seus territórios.
Na prática, mesmo com a autodefinição e com a garantia constitucional,
a maioria dos mucambos está sobreposta a áreas de fazendas. A propriedade
destas fazendas são reclamadas como herança pelos fazendeiros locais,
enquanto diversas famílias quiolombolas resistem secularmente no território,
evidenciando que a posse privada da terra, nos marcos da propriedade
fundiária, não pertence às famílias quilombolas. O cenário é de grande
vulnerabilidade das populações quilombolas que, em sua maioria, ocupam
rincões de pobreza no país, têm dificuldade de acessar políticas públicas e
estão submetidos à violência perpetrada pelos proprietários de terras.
A homologação da terra pelo governo, contudo, não garante a melhoria
da qualidade de vida dentro dos quilombos. Segundo o levantamento do
Ministério de Desenvolvimento Social (2014) mais de 60% das lideranças
quilombolas afirmam que não ocorreram melhorias em relação à saúde,
educação e infraestrutura sanitária como o acesso a água tratada e esgoto,
após a titulação do território.
3.1 Aspectos da propriedade privada e da renda da terra sob o
capitalismo
A renda da terra é anterior ao capitalismo, foi chamada por Marx (1986)
de renda feudal que consistia na forma de exploração realizada pelo senhor
feudal sobre o servo. Irei me ater aos aspectos da renda da terra sob o modo
de produção capitalista e como esta firma o caráter rentista da produção do
agronegócio brasileiro.
Segundo leis da propriedade privada, os proprietários de terras se
apropriam de parte da mais-valia gerada mesmo sem a terra produzir, pelo
simples fato de serem proprietários (detentores das terras) e por isso
exploradores da renda da terra absoluta. Malina (2013) partindo de Marx
discorre sobre a renda da terra, afirmando que:
[..] no capitalismo, pode virar mercadoria – e assim, ter preço – tudo o
que puder ser apropriado privadamente, mesmo sem ter valor. Marx
(1986, p. 137) aponta, na Seção da Renda da Terra, que “Para
vender uma coisa, é preciso apenas que seja monopolizável e
alienável.” E a terra o é, mesmo nua e sem nenhum trabalho posto
ali. Assim, a classe dos proprietários privados se constitui e reproduz
28
cobrando um tributo de toda a sociedade por deter um meio
fundamental para a reprodução desta última: a terra. Esse tributo é a
renda da terra absoluta (MALINA, 2013, p. 41).
A renda da terra é obtida pela elevação dos preços dos produtos
agrícolas acima do preço real geral de produção, tendo como referência o
preço do solo menos fértil. Assim, o lucro obtido, “ao contrário da renda da terra
diferencial I e II5, não é fração do trabalho excedente dos trabalhadores
daquela terra em particular, mas sim, fração da massa de mais-valia global dos
trabalhadores em geral da sociedade” pagos aos proprietários de terra. Este
lucro extraordinário é chamado renda da terra absoluta (OLIVEIRA, 2007, p.
55). É o valor do espaço que se manifesta em todas as formas de renda
fundiária (MORAES; COSTA, 1987).
Oliveira (2007) destaca a importância do conceito renda da terra para a
compreensão da realidade agrária e urbana, pois em ambas a terra entra como
componente importante. Assim,
a renda da terra sob o modo capitalista de produção é, na medida em
que resulta da concorrência, renda da terra diferencial; e é, na
medida em que resulta do monopólio, renda da terra absoluta. [...]
A renda da terra diferencial resulta do caráter capitalista da produção
e não da propriedade privada do solo, ou seja, ela continuaria a existir
se o solo fosse nacionalizado. Já a renda da terra absoluta resulta da
posse privada do solo e da oposição existente entre o interesse do
proprietário fundiário e o interesse da coletividade. Resulta do fato de
que a propriedade da terra é monopólio de uma classe que cobra um
tributo da sociedade inteira para colocá-la para produzir. Inclusive, ela
desapareceria caso as terras fossem nacionalizadas (OLIVEIRA,
2007, p.43-44).
A renda da terra, no modo capitalista de produção, é sempre saldo
acima do valor das mercadorias, ou seja, um “lucro extraordinário permanente”,
superior ao lucro médio, que todo capitalista embolsa ao explorar a terra
através de relações de trabalho assalariado. Esta fração excedente do valor
tem origens distintas, resulta tanto da concorrência entre produtores agrícolas
5 De acordo com Oliveira (2007), “a renda da terra diferencial apresenta-se sob duas formas: a
renda diferencial I e a renda diferencial II. A renda diferencial I é aquela que independe do capital aplicado na produção específica [...] São duas as causas da renda diferencial I: a diferença da fertilidade natural dos solos e a localização das terras. Já a renda diferencial II decorre diretamente do investimento em capitais para melhorar a fertilidade natural da terra.[...] Trata-se, pois, de uma terceira causa da renda da terra diferencial, mas ao contrário das outras, é uma causa eminentemente capitalista, pois se trata do efeito do investimento de capital.
29
capitalistas (renda da terra diferencial I e II), quanto do monopólio (renda da
terra da terra absoluta) (OLIVEIRA, 2007).
A renda capitalista da terra “tem sua origem na distribuição da mais-
valia, onde a condição de proprietário da terra lhe garante o direito de receber a
renda, assim como o capitalista recebe o lucro médio” (OLIVEIRA, 2007, p. 55).
Os juros pelo capital incorporado à terra e as melhorias que ela assim
recebe como instrumento de produção podem constituir parte da
renda que é paga pelo arrendatário ao dono da terra, mas não
constituem a renda fundiária propriamente dita, que é paga pelo uso
do solo enquanto tal, quer ele se encontre em estado natural, quer
seja cultivado (MARX, 1986, p.126).
A renda da terra também pode ser adquirida pela venda da terra, uma
vez seu preço é dado pela quantidade de renda que poderia se embolsada do
solo, em relação à taxa de juros em vigor.
Para a reprodução do capitalismo os produtos e bens naturais precisam
ser apropriados privadamente, fazendo acontecer o processo de troca de
mercadorias como bens escassos, ou seja, não universais. Isso porque se o
acesso a estes bens fosse amplo e gratuito pelo fato de não serem apropriados
privadamente, a troca não poderia se constituir como um momento
fundamental de sociabilidade neste modo de produção.
Compreendendo estes aspectos elementares da renda da terra, é
possível avaliar o caráter rentista da exploração no Brasil. Aqui, as elites
agrárias se firmaram pela instituição da centralidade da acumulação da renda
da terra, ao contrário do que aconteceu em outros países como a Inglaterra
que adotou formas de limitar o poder dos proprietários de terras “com a criação
de formas de abrandar a possibilidade da extração da renda, a partir de
políticas distributivas e/ou reformas agrárias” (PAULINO, 2006, p. 52, apud
Malina, 2013, p. 56).
A soberania da elite brasileira, fruto da aliança de classes entre
proprietários e capitalistas, permite que a propriedade fundiária, especialmente
a de grandes dimensões, sirva como reserva de patrimônio, voltada para a
garantia de empréstimos e como reserva de valor, produzindo renda na venda
da terra.
Se o desenvolvimento do capitalismo no Brasil tem como aspecto
fundante seu caráter rentista, com a concentração da propriedade
fundiária atuando como concentração de riqueza e de capital, unindo
30
numa mesma pessoa o capitalista e o proprietário de terras, e esse
processo foi originado na escravidão e perpetuado na passagem para
o trabalho livre, essa fusão se ampliou expressivamente na segunda
metade do século XX, a partir da modernização da agricultura
(OLIVEIRA, 2009b, p. 27 apud Malina, 2013, p.51).
A crise de acumulação do capital que teve seu apogeu na década de
1970, resultante da queda na taxa de lucros e do esgotamento da acumulação
com o fordismo e o taylorismo, permitiu o surgimento de uma nova forma de
acumulação no mundo e no Brasil, o neoliberalismo a partir da década de 1980
(ANTUNES, 2013).
Rapidamente o neoliberalismo é colocado pela elite política como uma
alternativa à reestruturação do capitalismo, reduzindo o papel do Estado, em
especial às questões sociais. Contudo, as políticas neoliberais adotadas não
resolveram a concentração das terras e a condição de pobreza no campo e nas
cidades brasileiras, pelo contrário, agudizou as contradições sociais,
reforçando a desigualdade estrutural existente na sociedade e o domínio das
chamadas leis de mercado, da competitividade e de consumo.
A liberalização da economia como condição de suposta modernização
do Brasil, a partir neoliberalização de forma dependente e subordinada,
manteve e fortaleceu no país, um modelo econômico no qual predomina a
produção agrária voltada para exportação e sob o comando de agroindústrias
de capital multinacional. As consequências desta política são das mais
variadas, se destacando no campo o aumento da violência e a desorganização
da agricultura familiar, com sérias implicações sociais para a realidade do país.
31
4. A MONOCULTURA DO EUCALIPTO NO BRASIL
4.1 Breves considerações sobre questão agrária no país
Ao longo do processo histórico de ocupação das terras brasileiras,
diversos foram os povos e as formas de uso da terra. Inicialmente ocupada por
centenas de etnias indígenas, a terra era produto coletivo, um bem natural que
tudo provia a seus povos. Os “índios”, como foram chamados pelos
colonizadores, “estavam organizados em comunidades autônomas cuja
identidade se definia por falar determinada língua e partilhar os mesmos
costumes” (GERMANI, 2006, p116). Viviam da caça, pesca e coleta, produziam
seus instrumentos, conheciam a cerâmica e confeccionavam suas vestes. Em
1530, se inicia a ocupação colonial, caracterizada pelo regime de sesmarias e
o sistema de capitanias hereditárias. A economia se baseou na monocultura e
na força de trabalho escrava; a conjunção desses fatores apontam a origem
das grandes propriedades monocultoras sobre a qual se centrou a ocupação
do espaço agrário brasileiro: o latifúndio.
A historiografia aponta que, durante este processo secular, ocorreram
ciclos econômicos com preponderância em um setor produtivo, passando pela
extração de pau-brasil, a produção de cana-de-açúcar, o surgimento da
pecuária e a consequente interiorização das terras brasileiras, o
desenvolvimento de cultivos importantes como o cacau, o tabaco, etc. Todos
estes momentos estiveram associados a uma forma particular de latifúndio,
mantendo sua lógica de acumulação de capital.
A grande propriedade fundiária manteve, durante todos os períodos, centralidade na acumulação e reprodução do capitalismo no Brasil. Isso porque a apropriação – ocupação do solo sob grandes domínios conservou-se como prática fundamental para a reprodução das elites agrárias, de tal maneira que essa forma dominante de ordenamento assume novas feições e qualidades – de acordo com a inserção do país na DIT e o desenvolvimento das forças produtivas internas – mas nunca deixando de ser base de acumulação, ainda que articulada à corporação capitalista de matriz industrial (MAGALDI,1991, p. 8 apud MALINA, 2013, p.75-76).
Desta feita, a questão agrária no Brasil é complexa e tem na forma de
acesso a terra, na função social que desempenha, no seu uso, no seu domínio
e na sua estrutura indicadores que nos apontam caminhos a serem percorridos
no processo de análise. A propriedade privada da terra, ganha novas nuances
32
no modo capitalista de produção, promotor de arranjos diferenciados da
configuração do território brasileiro, tanto no seu controle como no seu uso.
[...] o desenvolvimento desigual, contraditório e combinado do capitalismo, explicita mudanças e permanências na organização territorial gestada pelo capital em seu atual momento, de mundialização - relacionando-as com o desenvolvimento histórico que a gestou. (MALINA, 2013, p.38)
O Brasil apresenta uma estrutura fundiária extremamente concentrada,
decorrente em parte, da ocupação colonial, bem como, da sua forma de
ocupação recente, baseada na expansão de fronteiras agrícolas através da
transferência de capital e de tecnologia. Apesar dessa configuração desigual
abranger todo o país, a estrutura fundiária é geograficamente muito
diferenciada nas distintas regiões, tanto no uso, como no acesso a terra.
A modernização da agricultura no Brasil em meados do século XX teve
como principal objetivo o aumento da produção e da produtividade de cultivos
para a exportação, mediante a inserção de tecnologias agrícolas. Este
processo foi conduzido pelo Estado através de programas e políticas de
créditos agrícolas, investimentos em pesquisas e a criação de instituições
como a EMBRAPA.
O avanço capitalista no campo, a partir da década de 1960 se
caracterizou pela transformação da grande propriedade improdutiva em grande
empresa capitalista, associado à exclusão da maioria dos trabalhadores rurais
detentores de pequenas e médias propriedades. “O cerne deste modelo é a
modernização conservadora, que tem como pilar modernizar a grande
propriedade, com a consequente manutenção de uma estrutura fundiária
concentrada” (CARDIM; VIEIRA; VIÉGAS, 2005, p.02). Neste processo, para a
garantia da qualidade e produtividade exigida, os incrementos técnicos como a
adubação química e a mecanização passaram a determinar a forma de
produção, bem como o perfil da agricultura brasileira hegemonizada pelo
agronegócio.
Essa intensa modernização da agricultura e pecuária foi também
responsável pela mudança na configuração de parte da burguesia nacional já
bem desenvolvida. Capitalistas industriais e urbanos passaram a ser
latifundiários, fundindo numa mesma pessoa: o capitalista e proprietário de
terras. O professor Ariovaldo Umbelino ressalta que,
33
embora este processo tenha sua origem na escravidão, e em particular na passagem do trabalho escravo para o trabalho livre, foi a partir da segunda metade do século XX que esta fusão ampliou-se significativamente (OLIVEIRA, 2009).
A modernização da agricultura promoveu uma crescente concentração
da propriedade privada da terra, de riqueza e capital, firmada no caráter
rentista de exploração. Entre 1967 e 1978, as grandes propriedades (Tabela 1)
tiveram suas áreas ampliadas em 8,2% enquanto as pequenas propriedades
perderam 3,9% de suas áreas, ao contrário do que pregava a defesa do Estado
à modernização agudizou os conflitos por terra no campo.
Tabela 1 – Concentração fundiária no Brasil anos 1967 e 1978.
Imóveis
Nº de imóveis: grande propriedade (superior a 1.000 ha)
% da área total (ha)
Nº de imóveis: pequena propriedade (inferior a 100 ha)
% da área total (ha)
1967 3.638.931 50.945 (1,4%) 176.091.002 (48,8%)
3.144.036 (86,4%) 67.339.504 (18,7%)
1978 3.071.085 56.546 (1,8%) 246.023.591 (57%)
3.581.838 (83,8%) 59.939.504 (14,8%)
Fonte: INCRA (2003) adaptado de Oliveira (2009).
Nas décadas de 1980 e 1990, cresce a luta pela terra e a defesa da
reforma agrária, ainda que os dados estatísticos do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) continuassem a revelar o caráter
concentrador de terras no Brasil. Como forma de resposta às pressões
populares, o Estado lança políticas públicas fundiárias voltadas para o
assentamento rural. A ação dos movimentos sociais do campo imprime uma
pequena alteração na estrutura fundiária do país, perceptível no inicio dos anos
2000, mas sem rupturas com o modelo agroexportador produtor de
commodities.
As grandes propriedades representavam 1,6% dos imóveis (69.123) de um total de 4.238.421 imóveis rurais, ocupando 43,7% (183.463.319 ha) de uma área total de 420.345.382 ha. Enquanto isso, as pequenas propriedades representavam 85,2% dos imóveis (3.611.429) ocupando 20,1% da área (84.373.860 ha). Comparando-se os dados de 1992 e 2003, verifica-se que ocorreu um crescimento da área total do cadastro de 88,9 milhões de hectares distribuídos de forma desigual, pois neste período a média propriedade ficou com mais da metade (52%) da área que aumentou, e a grande propriedade ficou com 20%, enquanto que a pequena propriedade ficou com 28%. Tratou-se, pois, da ação dos movimentos sociais de luta pela terra que se desenvolveram no país (OLIVEIRA, 2009).
34
Tomando como base diferentes fontes de dados secundários, cabe uma
breve nota. Os dados cadastrais do INCRA identificam a distribuição do espaço
agrário segundo seus detentores (proprietários e posseiros), ou seja, abarca as
propriedades, já os dados censitários do IBGE retratam a ocupação do espaço
agrário pelos produtores rurais (proprietários, ocupantes, arrendatários e
parceiros). Apesar de ambas as fontes serem capazes de evidenciar o elevado
grau de concentração da terra no país, os dados censitários do IBGE foram
adotados por serem mais próximos da realidade, uma vez que
Um aspecto a observar refere-se à natureza dos dados cadastrais que, em função de serem declaratórios, podem retratar um panorama distorcido da realidade fundiária brasileira. Assim, a qualidade das estatísticas cadastrais, dada sua origem, é particularmente vulnerável à qualidade da informação prestada pelo proprietário (CARDIM; VIEIRA; VIÉGAS, 2005, p.5).
Ainda que pese o fato das declarações estarem sujeitas à veracidade ou
não, declarada pelos detentores de terras, a essência concentradora e desigual
da estrutura fundiária brasileira se mostra inalterada quando verificamos os
dados do Censo Agropecuário de 2006. A concentração fundiária no Brasil
entre os anos 1995 e 2006 fica evidente ao observar a tabela 2. Os
estabelecimentos de até 100 hectares compreendem a grande maioria dos
estabelecimentos agropecuários do campo brasileiro, contudo detém a menor
parte das terras. Enquanto isso, os estabelecimentos com mais de 100
hectares são a minoria, entretanto concentram a maior parte das terras das
terras agricultáveis. Tomando o ano de 2006 como referência, nota-se que os
estabelecimentos agropecuários de até 100 hectares representavam 90,4% do
total em apenas 21,4% das terras; enquanto os estabelecimentos com área
acima de 100 hectares representavam apenas 9,6% do total de
estabelecimentos, ocupando 78,6% da área.
Tabela 2 – Número de estabelecimentos agropecuários por área, anos de 1995/96 e 2006.
Número de estabelecimentos agropecuários por área (hectares)
1995/1996 2006 Quantidade % Quantidade %
Até 10 2.402.374 48,9 2.477.151 50,3 De 10 a 100 1.916.487 39,9 1.971.600 40,1
De 100 a 1.000 469.964 9,9 424.288 8,6
Mais de 1.000 49.358 1,3 47.578 1,0 Total 4.859.865 100 4.920.617 100
Fonte: Censo Agropecuário do IBGE (2006) segunda apuração (2007)
35
Na Bahia, a análise não destoa da realidade nacional, de acordo com
dados do Grupo de Pesquisa GeografAR – A Geografia dos Assentamentos na
Área Rural, em mais de 60% do estado há um elevado grau de concentração
fundiária calculado a partir do Índice de Gini, que permite mensurar o grau de
concentração ou desigualdade da distribuição de terras (SANTOS; GERMANI;
2002). O município de Maragojipe acompanha a realidade nacional de elevada
concentração de terras, uma vez que, as áreas agricultáveis do município estão
distribuídas entre poucos estabelecimentos, conforme o gráfico abaixo.
Gráfico 1 – Estrutura fundiária – Maragogipe (2006)
Fonte: Projeto Geografar, 2013.
Os dados acima apontam que mais de 45% dos estabelecimentos rurais
possuem uma área que varia entre 0,2 a 2 módulos fiscais, destinados à
subsistência familiar, enquanto que cerca de 5% dos estabelecimentos
possuem área variando entre 50 a 2500 módulos fiscais, de acordo com o
INCRA, o modulo fiscal do município equivale a 30 hectares.
Nota-se que, a condição histórica social que regulou a ocupação do
espaço agrário brasileiro “gerou e consolidou uma estrutura de propriedade das
mais concentradas do mundo e, pior, uma imensidão de terras sem uso algum.
Como consequência, uma legião de agricultores sem trabalho e sem terras”
(GERMANI, 2006, p. 142).
4.2 Origem do setor florestal no Brasil
Feitas as considerações iniciais sobre a questão agrária no Brasil, cabe
agora contextualizar o setor florestal no país a fim de apreender a dimensão e
36
a potência do agronegócio no que tange as questões sociais, ambientais e
econômicas. O setor florestal - compreendido como um ramo produtivo - tem
no Brasil uma trajetória marcada por diferentes momentos, nos quais as formas
de organização do setor, a dinâmica territorial da atividade e a relação entre
empresas e comunidades afetadas precisam ser compreendidas como parte
das análises referentes à questão agrária no país.
As grandes áreas destinadas ao cultivo e as condições de solo e clima
são, de fato, uma vantagem para o desenvolvimento de atividades agrícolas e
florestais no Brasil. Contudo, estes fatores estão longe de responder à
complexidade da estrutura agrária brasileira, extremamente desigual,
concentradora de terras e renda e geradora de conflitos sociais, envolvendo
camponeses, indígenas, quilombolas e outros grupos sociais.
Sobre o setor florestal, tem-se, num primeiro momento, a produção de
papel no Brasil caracterizada pela dependência de celulose. Era necessário,
até idos dos anos 1940, importar matéria-prima para o beneficiamento no
Brasil, o que resultava numa baixa produção voltada ao mercado interno com
altos custos produtivos. No que tange à dinâmica territorial, a produção
encontrava-se concentrada no Sudeste, dada a abundância de força de
trabalho e capitais nesta região. Esteve também dependente das florestas
nativas para a retirada de madeira, sendo o fator locacional de extrema
relevância para o processo produtivo. A inexistência de integração entre a
indústria papeleira e a produção primária evidenciava o baixo desenvolvimento
do setor, visto que as empresas exportavam madeira e importavam celulose.
Já no segundo momento, nos anos 1980, a restruturação produtiva do
sistema capitalista passa a impor um novo processo de acumulação e
reprodução, no qual a forma industrial de produzir passou a determinar alguns
setores da agricultura. A modernização da agricultura, atrelada à conjuntura
mundial, consolida o caráter agroindustrial da produção de papel e celulose no
Brasil.
Como nos lembra Engels (2012), a função histórica do Estado é mediar
conflitos entre capital e trabalho e, deste modo, o Estado brasileiro foi provedor
da espacialização do setor florestal durante todas as fases do desenvolvimento
deste, aqui representado por grandes empresas privadas. Em ambos os
37
momentos, a dinâmica territorializadora desta atividade produtiva esteve
associada às alianças de classes firmadas entre o Estado e o latifúndio.
Os primeiros plantios homogêneos de árvores no país datam da
segunda metade do século XIX quando foi realizada a recuperação de parte da
mata da Floresta da Tijuca (RJ) que havia sido degradada pela agricultura
cafeeira (MALINA, 2014). Houve outros reflorestamentos com fins ornamentais
e de pesquisa no decorrer do período e em 1911, em meio às discussões sobre
a necessidade de uma legislação florestal, surge a perspectiva da monocultura
de eucalipto.
... em 1911, o engenheiro agrônomo Edmundo Navarro de Andrade assumiu a direção do Serviço Florestal e Botânico do estado de São Paulo e mudou radicalmente os rumos do órgão. De órgão dedicado à realização de pesquisas com florestas nativas, o serviço se transformou, sob sua direção, em uma sementeira de eucaliptos (BARCELOS, 2010; DIAS, 2007 apud MALINA, 2013, p. 37).
O estimulo ao monocultivo do eucalipto partiu do atrelamento da
produção as necessidades de se obter carvão e ligas para o setor férreo, em
especial para a Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Junto à expansão
das áreas plantadas, a elite fundiária do país começava a propagar o discurso
das "florestas plantadas”. É também nesse período que a imprensa brasileira
se desenvolveu e demandou cada vez mais celulose, produto que o Brasil
ainda importava.
Durante o governo de Getúlio Vargas, o cenário nacional passou por
mudanças profundas. Em “meados da década de 1940 [...] se iniciou a
produção no país de celulose de mercado, ou seja, de pasta para fins de
comercialização” (MALINA, 2013, p.70). Em 1946, é instalada no Paraná a
primeira fábrica de celulose do Brasil. O governo Vargas disponibilizou
fomentos, incentivos e isenções de impostos a fim de tornar o país
autossustentado em celulose. De acordo com Malina (2013), foi a partir dessa
integração do Brasil no setor celulístico que as empresas produtoras de papel e
celulose passaram também a adquirir a posse de imensas áreas agricultáveis.
Entre as décadas de 1950 e 1970, o cultivo extensivo de eucalipto é
ampliado. De “1950 e 1956 a produção de celulose no Brasil aumentou de
1.590 para 51.900 t/ano” (MALINA, 2013, p.70). Em 1956, com o Plano de
Metas, Juscelino Kubitschek promoveu a abertura do setor para o mercado
38
externo, retomando os incentivos estatais e investimentos através do BNDS
(atual BNDES). Contudo, foi no período da ditadura militar que o setor passou
por sua maior expansão, contando com incentivos públicos; a expansão do
setor era justificada em nome do desenvolvimento nacional.
Através do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979) e do I
Programa Nacional de Papel e Celulose (1974), o Brasil foi integrado em
grandes projetos internacionais voltados a atender a demanda do mercado
externo (NASCIMENTO; DOMINGUEZ, 2009). Neste período há uma relevante
expansão das áreas de monoculturas, as quais foram denominadas “áreas
reflorestadas”, principalmente nos estados de Rio Grande do Sul, Paraná, São
Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pará. Os estados
também encontraram formas de estimular a monocultura de eucalipto através
de isenções fiscais.
Cabe contextualizar que, neste período, o Brasil passava por
transformações na sua base produtiva, passando a exportar não só matérias-
primas como também produtos semielaborados e acabados. Este contexto se
insere numa nova Divisão Internacional do Trabalho (DIT) baseada na
“expansão das multinacionais através de subsidiárias no terceiro mundo”
(MALINA, 2013, p.72), estimulada também pela necessidade dos países
centrais do capitalismo de obter produtos elaborados no cenário pós II Guerra
Mundial.
Léa Malina faz referência a Léa Goldenstein (1975) em sua tese de
doutorado, apontando o processo de redistribuição geográfica das áreas
produtoras de madeira no mundo. Segundo as autoras, uma série de fatores
levou à progressiva implantação de maciços florestais nos países tropicais do
“terceiro mundo”.
“[...] até a década de 1970, celulose e papel eram um negócio entre países ricos; os países de economia planificada centralizada apareciam como exportadores de madeira para pasta; e o terceiro mundo tinha participação muito pequena no comércio, como exportador de madeira e importador de celulose e papel (GOLDENSTEIN, 1975 apud Malina, 2013, p.77).
A escassez da matéria-prima nos países tradicionalmente produtores –
principalmente na Europa, Estados Unidos e Canadá, por volta de 1970
39
resultou em consequências como a alta dos preços e o desenvolvimento de
pesquisas para uso de madeiras variadas.
Ao passo que se mudavam as áreas destinadas ao plantio de árvores
em larga escala, mudava também, paralelamente, a tendência mundial de
consumo de madeira: “até a década de 1970, 50% do uso de madeira eram de
lenha para consumo doméstico, situação que começou a se modificar com o
estacionamento desse consumo e o crescimento de outros” (MALINA, 2013, p.
77), como o de papel e celulose. Vale ressaltar que mudanças em nível de
mercado também aceleraram o ritmo da produção dos derivados de celulose,
como as embalagens - “mercadorias estas que tomam uma proporção
gigantesca nesse novo momento de reprodução do modo capitalista de
produção (MALINA, 2013, p.78)”.
Outro fator de fundamental importância foi o desenvolvimento técnico
que proporcionou a utilização de árvores de fibras finas e folhosas,
características dos países tropicais, que ainda têm a vantagem de crescerem
rapidamente, se comparado às árvores dos países do hemisfério Norte
(Carneiro, 1994 apud Nascimento, 2007, p.2): “o corte do eucalipto em países
de clima temperado requer 20 a 40 anos, podendo chegar a 70 anos, a
exemplo da Suécia, enquanto as condições dessa região [Litoral Sul da Bahia]
permitem o corte após 6 a 7 anos”. As condições do litoral sul da Bahia
assemelham-se, genericamente, em nível produtivo, às demais áreas do país
nas quais a monocultura do eucalipto vem sendo implantada.
Considerando esses fatores, é possível compreender porque foi durante
a ditadura militar no Brasil que o “setor florestal” mais cresceu. O governo
militar no país esteve atrelado ao capital estrangeiro e proveu incentivos a este
setor. Além disso, marcos legais possibilitaram o aprofundamento do capital
privado na obtenção de terras para o monocultivo além da produção de
celulose. O Código Florestal de 1965 (Lei nº 4.771 de 15/07/1965) se mostrou
um forte aliado da indústria celulística ao passo que deu isenção e dedução
fiscal para pessoas físicas e jurídicas.
Art. 38. As florestas plantadas ou naturais são declaradas imunes a qualquer tributação e não podem determinar, para efeito tributário, aumento do valor das terras em que se encontram. § 1° Não se considerará renda tributável o valor de produtos florestais obtidos em florestas plantadas, por quem as houver formado.
40
§ 2º As importâncias empregadas em florestamento e reflorestamento serão deduzidas integralmente do imposto de renda e das taxas específicas ligadas ao reflorestamento (BRASIL, 1965).
No ano seguinte, a Lei nº 5.106 regulamentou os artigos presentes no
Código Florestal de 1965, dispondo sobre os incentivos fiscais concedidos a
empreendimentos florestais.
Art 1º As importâncias empregadas em florestamento e reflorestamento poderão ser abatidas ou descontadas nas declarações de rendimento das pessoas físicas e jurídicas, residentes ou domiciliados no Brasil, atendidas as condições estabelecidas na presente lei (BRASIL, 1966).
Malina aponta que “o Estado tornou-se agente central para o
desenvolvimento do setor, em uma perspectiva nacional-desenvolvimentista:
planejamento para gerar o progresso do país.” O progresso a qualquer custo,
característico das políticas desenvolvimentistas nacionais, resultou no aumento
da violência no campo e nas grilagens de terra. As políticas implantadas não
descentralizaram as terras agricultáveis, pelo contrário, as concentraram na
posse de quem historicamente detém o latifúndio no Brasil.
Ao fim dos anos 1970, o Brasil era um grande exportador de celulose,
detentor de uma estrutura “altamente oligopolizada e detendo alta tecnologia”
(MALINA,2013, p.). Na década de 1980, houve uma diminuição dos incentivos
com a diminuição da produção, como pode ser visualizado na tabela 3.
Tabela 3 – Produção de celulose no Brasil (1950-1988).
Anos Celulose
fibra curta (mil t) Celulose
fibra longa (mil t) Total (mil t)
1950 1,6 38,4 40,0
1955 23,0 50,2 73,2
1960 119,9 80,3 200,2
1965 203,9 166,2 370,1
1970 385,9 278,2 664,1
1975 830,8 358,8 1.189,6
1980 2.117,0 755,6 2.872,7
1985 2.345,0 1.058,0 3.403,0
1988 2.560,0 1.232,0 3.792,0
Fonte: Magaldi (1991, p. 114) apud Malina (2013, p. 94).
O novo cenário mundial, decorrente da neoliberalização da economia,
trouxe outras mudanças para o setor. Segundo o professor Roberto Martins de
Souza da UFPR6, o período foi caracterizado pela estagnação do setor de
papel e celulose. O neoliberalismo anunciou a nova divisão internacional do
6 Audiência pública em formato de seminário sobre os impactos socioeconômicos gerados pelo
monocultivo do eucalipto, ministrado na Universidade Federal da Bahia (maio de 2013).
41
trabalho, aprofundando a transferência das monoculturas para América Latina,
África e sul da Ásia. Isso foi possível através da liberalização do comércio e de
novos subsídios e incentivos para a exportação de papel. A partir da “Lei
Kandir” - Lei Complementar nº 87 de 1996, que dispõe sobre operações
relativas à circulação de mercadorias - os produtos e serviços destinados à
exportação passaram a ser isentos do tributo ICMS7.
A indústria de papel e celulose, na virada do século XX para o século
XXI já se configurava como uma
[...] indústria basicamente produtora de commodities voltada ao mercado internacional. Por ser movida por altos investimentos de longo período de maturação, a indústria papeleira é considerada, hoje, a maior em intensidade de capital do mundo, superando, até mesmo, a indústria petroquímica, farmacêutica e automobilística. Seus projetos com grande integração vertical incluem imobilização de terras, plantio em larga escala, equipamentos de alta tecnologia para celulose, máquinas de papel, geração de energia, recuperação de utilidades, logística inteligente [...]. A alta capacidade de produção e o porte dos projetos exigem ganhos de escala com um nível de padronização elevado obrigando um rigoroso controle de qualidade. A competitividade e as exigências do mercado têm forçado as grandes corporações a investir de ponta a ponta, desde biotecnologia florestal, genética, manejo e planejamento florestal até em capacitação e logística operacional, tecnologia industrial, controle ambiental, operações financeiras e outras. (BARCELOS, 2010, p. 81-82 apud MALINA, 2013, p.95)
O processo de tecnificação da agricultura, iniciado no pós II Guerra
Mundial e aprofundado entre os anos 1960 e 1970, promoveu mudanças na
produção, a partir da consolidação de ações do agronegócio no Brasil. Este
setor, detentor de terras, capital e tecnologia produtiva, mantém a base rentista
de acumulação que durante todo o processo usou a violência, a exploração do
trabalho no campo e beneficiamento do fundo público.
As políticas liberais iniciadas nos anos 1970 se consolidam na década
de 1990 reafirmando a hegemonia do sistema capitalista de produção, agora
mundializado e tendo as corporações multinacionais como expressão mais
avançada do capitalismo contemporâneo. Acompanhando o movimento
internacional, as multinacionais de papel e celulose se consagram pela sua
verticalização, concentração de capitais, apropriação de grandes extensões de
terras, alta tecnologia, características marcantes da reestruturação produtiva
dos anos 90.
7 Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços.
42
De forma geral, ocorreu no setor a terceirização dos serviços de manutenção e fornecimento de insumos; a modernização das fábricas para aumentar sua capacidade produtiva; investimentos para redução de custos de transporte e armazenamento; além da mecanização e automação de todas as partes do processo produtivo em que isso fosse possível (KALACHE FILHO, 2006, p. 85; JOLY, 2007, p. 36, apud MALINA, 2013, p.100)
O Brasil ocupa o 6º lugar na produção de celulose e papel de fibra curta
e longa de acordo com Malina (2013) e 4º lugar de acordo com a Abraf. Tem a
Veracel como a maior proprietária de terras do Estado da Bahia, dominando
toda a cadeia produtiva (MALINA, 2013). Suas operações vão desde a
produção e o plantio de mudas de eucalipto, passando pela fabricação da
celulose, até o escoamento desse produto final.
A Bahia possui um dos maiores parques industriais de celulose do mundo. Dois municípios presentes no sul do estado, Caravelas e Mucuri, ocupam o primeiro e o terceiro lugar, respectivamente, dentre as três primeiras cidades brasileiras que mais produzem madeira para celulose. O estado ocupa a 2ª posição na produção da matéria no Brasil, com 14,7 milhões de m³ produzidos, em 2010. Além disso, a Bahia possui uma produtividade média de celulose, pelo menos, 20% superior a do País - 4º maior produtor mundial - segundo a Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas (Abraf). Em 2010, a produção baiana alcançou 2,32 milhões de toneladas (BAHIA, Secretaria de Desenvolvimento Economico – SDE, s/ ano).
Não só a Veracel (composta pela Fibria e Stora Enzo) desenvolve suas
atividades na Bahia, a Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S/A, a Fibria -
Aracruz Celulose (composta pelo Grupo Votorantim, BNDES e com ações no
mercado), a Arcelor Mittal Florestas (antiga CAF Santa Bárbara Ltda.) possuem
vastas áreas plantadas ou arrendadas para o plantio, algumas com unidade
fabril no estado como a Veracel no município de Belmonte e a Suzano no
município de Mucuri, no total, a Bahia possui nove indústrias de papel e
celulose (SDE, s/ano). Dentre as diversas empresas, destaca-se a Bahia
Specialty Cellulose/Copener (BSC/Copener) por estar instalada no território
extrativista. Trata-se da “única produtora de celulose solúvel especial com alto
teor de pureza obtida a partir da madeira de eucalipto da América Latina”
(Bahia Specialty Cellulose, 2016).
Através do arrendamento de terras de médios e grandes proprietários
rurais, a Copener realiza o cultivo de eucalipto em áreas do entorno da reserx
Baía do Iguape. A empresa é componente da Bracell (Brazil Cellulose)
companhia com operações globais, de grande capital, alta integração vertical e
44
5. UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O USO TRADICIONAL DO ESPAÇO
LITORÂNEO
5.1 Histórico do movimento extrativista
Historicamente os povos e comunidades tradicionais buscam se
organizar para garantir seus direitos territoriais como cidadãos e para manter
vivos seus costumes e modo de vida, que conferem um sentido próprio a estes
grupos sociais. Numa sociedade cada vez mais orientada pela dinâmica do
capital globalizado, das grandes corporações, as populações tradicionais
encontram muitas barreiras a serem superadas, principalmente pelo fato de
suas vidas estarem diretamente ligadas a terra e água – meio de produção e
reprodução de suas vidas -, terra e água que são alvos de especulações e de
grandes empreendimentos que ameaçam não só a possibilidade de existência
dessas famílias como também afetam a natureza em proporções muitas vezes
irreversíveis.
Tanto pelas medidas desenvolvimentistas do governo quanto pela
especulação fundiária e imobiliária, a situação das populações tradicionais no
Brasil sempre esteve no alvo de grandes projetos, condicionados a uma
realidade exterior à sua. Seus costumes e tradições foram (e ainda são)
massacrados no processo de colonização e em nome do “progresso” do país,
tendo sua relação com a natureza e território negada enquanto componente
fundamental para os seus modos de vida. Suas terras são alvos de conflitos
com o grande capital e os bens naturais dos quais retiram sua sobrevivência
são gradativamente degradados.
A Constituição Federal de 1988 demarca uma conquista territorial para
alguns segmentos tradicionais. Ainda que pese o fato das leis definirem
direitos, na prática não são aplicadas universalmente como se propõem.
Enquanto
indígenas e quilombolas tiveram seus direitos de propriedade sobre territórios ocupados historicamente reconhecidos [...] outras parcelas como comunidades litorâneas de caiçaras, ribeirinhos, jangadeiros e demais grupos de pescadores artesanais, embora mantivessem uma relação histórica com seus espaços de uso comum, foram preteridos da tutela constitucional. (CHAMY, 2004, p. 1)
As populações tradicionais, definidas conforme o seu reconhecimento
étnico e modos de vida, são contempladas por políticas territoriais que lhe
45
conferem maior poder de produção do e no território, de forma distinta do modo
de produção hegemônico. Algumas populações tradicionais são contempladas
dentro dos marcos institucionais e, dentro da legislação ambiental, ainda que
muitas vezes como letra morta.
Sobre os povos e comunidades tradicionais cabe ressaltar que
[...] o conceito surgiu para englobar um conjunto de grupos sociais que defendem seus respectivos territórios frente à usurpação por parte do Estado-nação e outros grupos sociais vinculados a este [...] Noutro contexto ambientalista, o conceito dos povos tradicionais serviu como forma de aproximação entre socioambientalistas e os distintos grupos que historicamente mostraram ter formas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, assim gerando formas de co-gestão de território. Finalmente, o conceito surgiu no contexto dos debates sobre autonomia territorial, exemplificado pela Convenção 169 da OIT, onde cumpriu uma função central nos debates nacionais em torno do respeito aos direitos dos povos. [...] Assim, o conceito de povos tradicionais contém tanto uma dimensão empírica quanto uma dimensão política, de tal modo que as duas dimensões são quase inseparáveis (LITTLE, 2005, p. 23).
A busca pelo reconhecimento dos povos e comunidades tradicionais é
antiga e a do movimento extrativista, segundo Cunha (2010), é marcada pelos
ciclos da borracha na Amazônia. Em seu trabalho, a autora apresenta
elementos importantes para a compreensão do processo histórico de ocupação
da Amazônia e como este processo configura, com o passar dos anos, o
Movimento Seringueiro.
A exploração dos seringais se deu após intensas migrações,
principalmente de Nordestinos, atraídos pela esperança de melhores condições
de vida, visto que a seca no Nordeste destruíra a possibilidade de inúmeras
famílias viverem em seus locais de origem. Além das condições naturais, as
relações agrárias se configuravam como mais um obstáculo a ser enfrentado
pelo Nordestino8. As condições de trabalho nos seringais eram precárias e em
muitos casos estabeleciam-se relações análogas ao trabalho escravo, visto que
o sistema de crédito e outras medidas aprisionavam os seringueiros através de
dividas com os seus patrões. 8 Cunha (2010) alega que Porto-Gonçalves (2001) destaca que essa grande migração ocorre
não apenas por conta da forte seca que atingiu o Nordeste, mas por fatores econômicos, uma vez que a principal economia do sertão nordestino (o algodão) sofria forte impacto pelo retorno da produção norte americana no mercado internacional, após o fim da guerra civil naquele país. Outro fator destacado pelo autor trata da “busca” pela liberdade, o que fazia com que os Nordestinos optassem ir para a Amazônia e não para São Paulo onde, apesar do período favorável de expansão da cultura cafeeira, o trabalho era escravo, além do forte papel do Estado que, por meio de propaganda e facilidades no deslocamento, prometiam salários, melhores condições de vida e trabalho.
46
Durante o governo ditatorial militar no Brasil, a Amazônia é reafirmada
como uma região atrasada onde o progresso se fazia necessário. O governo
federal, juntamente com recursos internacionais, ampliou as políticas de
ocupação das terras amazônicas por latifundiários e pecuaristas, deixando um
rastro de desmatamento, expropriação de terras e uso direto da violência
contra as populações ribeirinhas, indígenas, seringueiras e demais habitantes
do Norte do país, principalmente da porção ocidental da Amazônia.
A partir de 1970, quando se dá de forma mais intensa a ocupação dos seringais do Acre por empresas capitalistas de agropecuária, os conflitos fundiários também se intensificam, uma vez que os “paulistas” que lá chegaram precisavam “limpar a área” dos posseiros que lá estavam, para valorizar a terra no caso de venda, ou para implantação de seus interesses em agricultura e especialmente pecuária. (CUNHA, 2010, p.44)
Se um dos objetivos do Estado brasileiro era a exploração do território
amazônico para o beneficiamento da burguesia nacional, por outro lado, os
extrativistas, desamparados de qualquer política pública ou órgão estatal,
buscavam a proteção da floresta, o reconhecimento do seu modo de vida e
lutavam pelo acesso a terra como única possibilidade de existência.
No começo da década de 1980, após lutas e resistências, o Movimento
Serigueiro elabora sua primeira experiência de articulação e autonomia através
do Projeto Seringueiro que visava “libertar o seringueiro do domínio do patrão,
proporcionando-lhe a comercialização do seu produto [...] O Projeto Seringueiro
é um belo exemplo de como se começava a fazer alianças e obter apoios para
projetos que tinham como objetivo a melhoria das condições de vida dos
seringueiros” (CUNHA, 2010, p.64).
O projeto tinha como principais objetivos:
a) Possibilitar a independência econômica dos seringueiros libertando-os dos intermediários na comercialização da borracha e da castanha, através da organização de uma cooperativa de produção e consumo. b) Possibilitar o acesso dos seringueiros às informações relativas à legislação trabalhista que definem os seus direitos enquanto trabalhadores rurais, assim como o controle dos termos em que se dá a comercialização da borracha e da castanha, através da organização de uma escola onde será desenvolvido um curso de alfabetização e de iniciação à matemática. c) Possibilitar melhores condições de saúde através da implantação de um pequeno posto de atendimento e do treinamento de agentes locais (ALLEGRETTI, 2002,p. 359).
47
Esta iniciativa impulsionou outros avanços como a criação de
cooperativas para o gerenciamento dos negócios dos extrativistas visando
favorecer a autogestão do movimento. A realidade apontava também a
necessidade de alfabetizar as populações extrativistas, uma vez identificado o
analfabetismo como um obstáculo à autogestão e articulação; foram criadas
parcerias com escolas no intuito de preparar lideranças para assumir o papel
de alfabetizadores, além da criação de escolas com administração e
planejamento escolar horizontal - “as decisões eram tomadas pelos
seringueiros, na comunidade, respeitando-se o contexto cultural e trazendo
consigo uma experiência de participação política até então desconhecida pelo
grupo (CUNHA, 2010).
Estava gestado coletivamente o projeto de organização e luta dos
trabalhadores da floresta amazônica. Os desafios que seguiram possibilitaram
o amadurecer organizativo e culminaram na criação da primeira reserva
extrativista brasileira.
5.2 Surgimento das Reservas Extrativistas
A ideia de Reserva Extrativista (Resex) surge enquanto produto do
Projeto Seringueiro, no fim dos anos 1980, em plena floresta amazônica. O
modelo de desenvolvimento adotado pelo governo federal implicou em um
cenário de intensos conflitos fundiários. As terras historicamente habitadas por
populações tradicionais e povos da floresta (indígenas e seringueiros) foram
expropriadas, o agronegócio e a pecuária extensiva alastravam-se rapidamente
sob a tutela do Estado. Apesar da luta do movimento dos seringueiros, as
inúmeras denúncias e manifestações, o isolamento que os povos do Norte
viviam ocultava a realidade sofrida das populações tradicionais.
As Resex são síntese de um longo processo de lutas e articulações do
Movimento Seringueiro da Amazônia que via na delimitação de espaços
considerados de interesse ecológico e social um importante instrumento para a
garantia do território para os extrativistas e um consequente avanço no
processo de regularização fundiária. Como dizia Chico Mendes: “a reserva
extrativista é a reforma agrária do seringueiro” 9. A resistência dos povos da
9 Fonte: http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/25-anos-sem-chico-mendes-1140.html
48
floresta era defendida pela liderança dos seringueiros através de lutas sociais
em defesa dos modos sustentáveis de vida das populações tradicionais. A luta
do movimento pôs em evidência a realidade das populações diretamente
afetadas por projetos de desenvolvimento.
Articulações do movimento com o INCRA resultaram na publicação da
Portaria INCRA/P/ nº 627, de 30 de julho de 1987, na qual se criou a
modalidade conhecida como Projeto de Assentamento Extrativista (PAE),
“destinado à exploração de áreas dotadas de riquezas extrativas, através de
atividades economicamente viáveis e ecologicamente sustentáveis, a serem
executadas pelas populações que ocupem ou venham a ocupar as
mencionadas áreas” (INCRA, 1987 apud Cunha, 2010, p.87).
Cunha (2010) alega que a conjuntura neoliberal vivida pelo Brasil
coincidiu com o processo de criação das primeiras Resex.
A proposta dos seringueiros foi materializada no arcabouço legal brasileiro na forma de Projetos de Assentamentos Extrativistas (1987), e posteriormente, no âmbito da política ambiental, na figura jurídica de Reservas Extrativistas (1990). Entretanto, a criação das primeiras Reservas Extrativistas (Resex) coincidiu com o início do ajuste neoliberal no Brasil, com reflexos diretos na reforma do Estado, desregulamentação de direitos trabalhistas, cortes de gastos públicos e privatizações [...] Ao mesmo tempo em que as Resex se impõem como um modelo advindo da tradição, do reconhecimento do saber consuetudinário, autogoverno, formas de organização e de propriedade coletiva, tendo o Estado como garantidor de direitos, o país onde se inserem ingressa efetivamente no neoliberalismo com todos os seus aspectos: preponderância do saber técnico na definição de disputas políticas, reforço da propriedade individual, Estado como mecanismo de coerção na garantia dos direitos desta propriedade e a participação popular fundamentada em uma democracia formal. (CUNHA, 2010, pp. 22-23).
O neoliberalismo ratificava um Estado mínimo para as questões sociais
e máximo para os interesses do capital internacional. Cabe ressaltar que o
Estado representa os interesses das classes dominantes, independente do
nível de precarização vivida pelas classes dominadas. Contudo, a história é
feita de movimento e a contradição existente na luta de classes possibilitou, ao
largo do processo histórico, a conquista de reivindicações de parcelas da
sociedade, como a dos seringueiros.
Outro marco que cabe destacar foi o surgimento um importante
instrumento de luta para o segmento, o Conselho Nacional dos Seringueiros
(CNS), idealizado no Iº Encontro Nacional dos Seringueiros em 1985. O
Conselho em pouco tempo foi capaz de dar visibilidade à luta dos seringueiros
49
nacionalmente e internacionalmente. O CNS reivindicava direitos aos povos da
floresta e atuava em defesa da Amazônia. Ao longo dos anos, os interesses
dos extrativistas das florestas e das marés foram pautados pelo CNS, apesar
do Conselho voltar-se centralmente para os extrativistas das florestas.
Em janeiro 1990, é criada a primeira reserva extrativista, a Resex do Alto
Juruá. Dias depois são estabelecidos espaços compreendidos como de
interesse ecológico e social através da instituição da figura jurídica “reserva
extrativista” via Decreto nº 98.897, considerando-as “espaços territoriais
destinados à exploração auto-sustentável e conservação dos recursos naturais
renováveis, por populações extrativistas” (BRASIL, 1990)
No que tange à posse da área, o artigo 4º definia que “a exploração
auto-sustentável e a conservação dos recursos naturais será regulada por
contrato de concessão real de uso “concedido pela unidade federativa,
cabendo a elaboração pela comunidade de um plano de uso da UC a ser
aprovado pelo Ibama10”. Este plano “consistiu no primeiro instrumento de
gestão das Reservas Extrativistas [...] Ao Ibama, coube “supervisionar as áreas
extrativistas e acompanhar o cumprimento das condições estipuladas no
contrato [de concessão de uso]” (CUNHA, 2010, p.96).
Somente em julho 2000, após a criação da primeira Resex, o escopo
jurídico das UCs é sistematizado no Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza (SNUC), sancionado pela lei nº 9.985.
As Unidades de Conservação (UC), espaços territoriais que contemplam
recursos ambientais com características naturais relevantes, têm a função de
“assegurar a representatividade de amostras significativas e ecologicamente
viáveis das diferentes populações, habitats e ecossistemas do território
nacional e das águas jurisdicionais, preservando o patrimônio biológico
existente” (BRASIL, 2000). Cabe também às UC assegurar às populações
tradicionais a possibilidade de uso sustentável dos recursos de forma racional e
possibilitar o desenvolvimento de modos de vida e atividades tradicionais.
Estas unidades estão sujeitas a normas e regras específicas, contidas no
SNUC (MMA, s/ano).
10
Atualmente cabe ao ICMBio.
50
As UC dividem-se em dois grupos. As unidades de proteção integral
abrangem as modalidades seguintes: estação ecológica, reserva biológica,
parque, monumento natural e refúgio de vida silvestre, etc. Possuem regas e
normas mais restritivas, sendo permitido apenas o uso indireto dos recursos
naturais como ocorrem em atividades recreativas de contato com a natureza,
turismo ecológico ou de base comunitária, pesquisa científica, educação
ambiental, excluindo a possibilidade de consumo, coleta ou dano aos recursos
naturais. Por sua vez, as unidades de uso sustentável “visam conciliar a
conservação da natureza com o uso sustentável dos recursos naturais” (MMA,
s/ano) sendo permitida a coleta e uso dos recursos desde que haja o respeito
aos ciclos naturais sem comprometer a perenidade dos recursos ambientais
renováveis e dos processos ecológicos. As reservas extrativistas, assim como
as florestas nacionais, reserva de fauna, reserva de desenvolvimento
sustentável, Área de Proteção Ambiental (APA) e Reserva Particular do
Patrimônio Natural (RPPN) são exemplos de UC de uso sustentável.
O SNUC enquadra as Resex como unidades de uso sustentável,
conforme o art. 7º, capítulo III do SNUC,
§ 2o O objetivo básico das Unidades de Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de
parcela dos seus recursos naturais.
Neste contexto se inserem as reservas extrativistas. São consideradas,
conforme o art. 18, como
uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.
Trata-se uma unidade voltada para as populações tradicionais
beneficiárias da reserva, sendo assim as demais atividades vinculadas ao uso
do solo estão passíveis de desapropriação a partir do momento que não se
enquadrem no contexto extrativista.
§ 1o A Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais conforme o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei (BRASIL, 2000).
51
As Resex passaram a ser reconhecidas no âmbito institucional, geridas
por um Conselho Deliberativo, composto pelo órgão responsável por sua
administração, representantes de órgãos públicos, de entidades da sociedade
civil e, principalmente, pelas populações tradicionais residentes na área,
“conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade”
(BRASIL, 2000).
As UC de uso sustentável refletiram uma transformação no caráter
preservacionista até então adotado pela legislação ambiental no Brasil que
considerava a presença humana uma ameaça à “proteção da natureza” e a
partir disso, justificava a proibição do uso e moradia de pessoas no perímetro
da UC.
A partir de meados dos anos 80, começou a surgir outro tipo de ambientalismo, mais ligado às questões sociais. Esse novo movimento surge no bojo da redemocratização, após décadas de ditadura militar, e, conseqüentemente, caracteriza-se pela crítica ao modelo de desenvolvimento econômico altamente concentrador de renda e destruidor da natureza que teve seu apogeu durante aquele período (DIEGUES, 2001 p.125).
A instituição das Resex é considerada como um primeiro sinal de
mudança de uma perspectiva preservacionista para a conservacionista. Isso se
deu através da compreensão de que os saberes tradicionais devem ser
apreendidos enquanto parte dos projetos de criação e manejo de áreas
protegidas, legitimando as populações tradicionais enquanto sujeitos de direito.
Este reconhecimento - ainda que limitado - do Estado e órgãos ambientais
permitiu avanços importantes como a afirmação de que as populações
tradicionais fazem parte da totalidade do território e possuem modelos de
socialização reconhecidos como práticas ecologicamente sustentáveis.
.
5.3 Resex Baía do Iguape
A Baía do Iguape, situada acerca de 100 km de Salvador (BA), na região
do Recôncavo Sul é belamente descrita por Merleau- Ponty:
Quando as águas do rio Paraguaçu e as águas do rio Guaí encontram as águas da baía de Todos os Santos, temos um lindo lagamar chamado de “Baía do Iguape”. Belos e extensos manguezais cercam a não menos bela baía do Iguape, abrigando a diversidade de vida na fauna e flora locais. Nessa fauna abundante está a espécie humana, coexistindo com as outras espécies que compõem a diversidade da área. Essa é a relação essencial entre parte e todo na baía do Iguape. Pescadores, marisqueiras e todos os seres que
52
compõem os ecossistemas da área são as partes que nos revelam o todo, ou seja, a “baía do Iguape”. As coisas do espaço não podem se distinguir do próprio espaço... (MERLEAU-PONTY, 2004).
Seu elevado potencial ecológico foi legalmente reconhecido em 2000,
com a criação da Resex Marinha Baía do Iguape através do Decreto de
Criação da Resex s/nº de 11 de agosto de 2000. Uma UC de uso sustentável,
que se estende por 8.117,53 ha, sendo 2.831,24 ha de manguezal e 5.286,29
ha de águas internas brasileiras, distribuídos nas áreas de 10 distritos11.
Segundo dados da Comissão Pró-Iguape (2010), consiste na “área mais
conservada da Baía de Todos os Santos”, com uma extensa faixa de
manguezal, vegetação do tipo floresta ombrófila densa (Mata Atlântica) e matas
mistas com piaçava, dendê e diversas frutíferas; é um santuário de mamíferos
aquáticos como o boto (Sotalia fluviatilis) e demais fauna e flora estuarina.
11
Município de Maragogipe (6): Sede, Guaí, Guapirá, Nagé, Coqueiros e São Roque; Município de Cachoeiras (3): Sede, Belém de Cachoeiras e Santiago do Iguape; Município de São Félix (1): Sede.
53
Mapa 1 - Reserva Extrativista Baía do Iguape.
Fonte: ICMBIO/MMA, 2009.
Apesar da poligonal da Resex não compreender áreas de terra – apenas
lâmina d‟água e manguezais, é território de uso de aproximadamente 5 mil
famílias distribuídas em 92 comunidades tradicionais pesqueiras e quilombolas
que vivem principalmente da pesca artesanal, agricultura familiar e artesanato.
54
Figura 1 - Croqui da Baía do Iguape com localização aproximada de trinta comunidades adjacentes à RESEX.
Fonte: ICMBIo/MMA – 2009. Elaborado por Viviane Martins.
Pelo fato das áreas terrestres não estarem inseridas na poligonal da
Resex, fica mais fácil a instalação de empreendimentos e a realização de
atividades impactantes que resultam numa serie de conflitos territoriais
vivenciados no cotidiano social das famílias beneficiarias da unidade.
55
Através de oficinas comunitárias e reuniões na Resex foi definido o perfil
da família beneficiária como sendo:
Família marisqueira, pescadora, artesã, saveirista, agricultora ou extrativista vegetal que usa recursos da Resex de forma artesanal e familiar e que mora e tem ancestralidade nas comunidades do entorno da Resex (Reunião do conselho 17/12/2015).
Ao passo que se resguarda a natureza, as condições de vida das
populações precisam também ser garantidas, vide a missão da Resex de
promover a gestão participativa do território pesqueiro para a conservação da
sociobiodiversidade da Resex marinha Baía do Iguape, como espaço de
aprendizagem politico, de luta e cidadania, com o fortalecimento das
identidades das comunidades tradicionais e das culturas populares.
Os dados levantados pelo Projeto Envolver permitem uma aproximação
da realidade das comunidades da Resex. Conforme o gráfico abaixo, tomando
como universo 12.794 extrativistas entrevistados tem-se a seguinte divisão da
população por comunidade:
Gráfico 2 – Extrativistas da Resex Baía do Iguape por comunidade.
Fonte: Projeto Envolver, RESEX Baía do Iguape, 2013.
A pesca artesanal corresponde a mais de 70% da produção pesqueira
no país. Na Bahia, representa a totalidade da pesca extrativa e corresponde a
85% da atividade de pesca, restando os outros 15% para a aquicultura (CPP,
2015). Estes dados mostram a importância dessa modalidade de pesca para a
soberania alimentar, bem como a expressiva ocupação laboral. Como atividade
56
produtiva e em termos de relações de trabalho, entende-se a pesca artesanal
como sendo aquela
[...] realizada dentro dos moldes da pequena produção mercantil, que comporta ainda a produção de pescadores-agricultores. (...) Trata-se de uma pesca realizada com tecnologias de baixo poder predatório, levada a cabo por produtores autônomos, empregando força de trabalho familiar ou do grupo de vizinhança (CARDOSO, 2003, p. 81).
A pesca tradicional artesanal é mais que uma atividade produtiva,
implica uma profunda relação com o território. Na reserva, a pesca é
caracterizada pela captura de peixes e crustáceos diversos, tanto do rio quanto
da maré12, correspondendo a principal atividade econômica dos extrativistas,
bem como parte da sua dieta diária. Apesar de estarem inseridas no modo
capitalista de produção e de terem o produto do seu trabalho transformado em
mercadoria, logo inserido na lógica de mercado, as comunidades tradicionais
não reproduzem relações tipicamente capitalistas, sua práticas se caracterizam
pelo
[...],excedente reduzido e irregular, a baixa capacidade de acumulação, a dependência total vis-à-vis ao intermediário, a propriedade dos meios de produção, o domínio de um saber baseado na experiência (e que constitui sua profissão), são elementos que caracterizam ainda a pequena produção mercantil (DIEGUES, 1983, p. 155)
O caráter artesanal da pesca é dado ao baixo grau de tecnologia
incorporada na captura e nos seus instrumentos, os apetrechos variam
conforme a espécie alvo, entre eles estão o jereré, a linha de espera, o munzuá
para a captura do siri; o facão, o farracho e o ferro para retirada de ostras; o
ferro, o facão e a própria mão para a coleta do sururu; etc. Os principais
pescados extraídos da Resex são a ostra, o camarão e o sururu (Projeto
Envolver, 2013).
12
Por maré, adotamos a concepção de Santos (2007), baseada em estudos realizados com a população tradicional da Resex marinha baía do Iguape. “Maré não é somente o movimento de sobe e desce das águas; a maré é também lugar: lugar de buscar alimento, renda, lugar de convívio, lugar de mistérios”.
57
Figura 2 – Apetrechos de pesca e pescadora.
Fonte: Projeto Envolver, Resex Baía do Iguape, 2013. Figura 3 – Marisqueiras cantando pescados.
Fonte: Projeto Envolver, Resex Baía do Iguape, 2013.
58
Homens e mulheres participam da lida no roçado para complementar a
renda e dieta da família. Na pesca, as mulheres se concentram na mariscagem
e no beneficiamento.
Gráfico 3 – Principais fontes de renda dos beneficiários da Resex Baía do Iguape.
Fonte: Projeto Envolver, Resex Baía do Iguape, 2013. Adaptado por SAPUCAIA.
Apesar de ser a principal fonte de renda (76%), a atividade pesqueira
ainda proporciona rendas baixas, especialmente na Baía do Iguape na qual as
artes são praticadas com meios de produção com baixa tecnologia e oscila
conforme oferta dos pescados. Segundo dados da pesquisa, a renda familiar
varia com baixas remunerações: 79% dos entrevistados alegaram receber
cerca de ½ salário mínimo, 17% entre ½ a 1 salário, 4% mais que um salário,
ou seja, quase a totalidade dos extrativistas contemplados na pesquisa (96%)
vivem com até um salário mínimo (PROJETO ENVOLVER, 2013). Estes
números são indicadores do nível de pobreza da grande maioria dos
extrativistas. “A modéstia renda deve ser ainda avaliada a luz do tamanho das
famílias, que embora, não apresentem padrões elevados, até nas áreas rurais,
se traduzem por níveis de vida economicamente baixos” (PROST, 2010, p. 57).
Dados do Projeto Envolver, apontam também que as casas dos
extrativistas são modestas: das 3.344 casas visitadas, apenas 28% delas tem
esgoto sanitário e 44% estão submetidas a esgotamento a céu aberto.
As UC de uso sustentável preveem a conservação da natureza, e
considera que as práticas sociais de populações tradicionais e seus saberes
ambientais contribuem com a sustentabilidade do uso social dos recursos
naturais. Ao garantir a conservação do meio ambiente, consequentemente
59
possibilita a manutenção dos extrativistas em seus territórios, reconhecendo
seu valor cultural, ecológico e simbólico.
Partindo da concepção de valoração e valorização13 de Moraes, Prost
(2010) aponta que a consolidação da UC na Baía do Iguape expressa,
[...] uma valoração de tipo econômico-ecológico, mas igualmente a valorização consagrada pelas populações locais para as quais o manguezal representa o lócus do seu habitat, de seu trabalho, assim como um lugar repleto de significados simbólicos. (PROST, 2010, p.5)
As Resex Baía do Iguape teve seu conselho implantado cinco anos após
a criação da reserva, “revelando a falta de prioridade do IBAMA nos assuntos
costeiros” (PROST, 2010). A consolidação do conselho deliberativo é de
fundamental importância para a participação ativa dos extrativistas na gestão
do seu território, dando-lhes o direito de opinar e escolher os projetos e
políticas a serem desenvolvidos na reserva. À frente discutirei os limites e
fragilidades que acredito estarem postas na realidade da Resex. Por enquanto,
me limito a apontar a relevância que os espaços de decisão ocupam num
contexto de cogestão.
13
Segundo Moraes (1999), valoração consiste em atribuir valor a bens ou conjunto de bens; enquanto valorização remete a apropriação material, transformando recursos da natureza em valores de uso.
60
6. MONOCULTURA DO EUCALIPTO NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS
DO DISTRITO GUAÍ: REFLEXÕES E IMPLICAÇÕES SOCIAL, FUNDIÁRIA E
AMBIENTAL
O município de Maragojipe está situado na região do Recôncavo baiano
a 133 Km da capital Salvador. O munícipio margeia a Baía do Iguape, faz limite
com a Baía de Todos os Santos (BTS) e com Saubara e Salinas das
Margaridas a leste, São Felipe a oeste, São Félix e Cachoeira a norte e
Jaguaripe e Nazaré a sul. De acordo com dados do IBGE (2006), tem uma
população estimada de 41.410 habitantes distribuídos nos seis distritos que o
compõe, a saber: Sede, Coqueiros, Guaí, Guapira, Nagé e São Roque. No
Guaí, distrito onde foi realizado o presente estudo, estão espacializadas as
comunidades quilombolas Baixão do Guaí, Guérem, Guaruçu, Jirau Grande,
Porto da Pedra e Tabatinga, que fazem parte da população beneficiária da
Resex Baía do Iguape.
6.1 Resgatando a memória quilombola: um pouco da história contada
Os tempos do engenho foram relatados na oficina de histórico das
comunidades realizada pelo INCRA em 2014 durante a elaboração do RTID.
Relatos e lendas passadas por gerações remontam à história dos engenhos
entre o século XVII e os anos 30 do século XIX. Relatos de ataques,
principalmente indígenas, aos engenhos contam como foi possível a fuga de
negros escravizados que se afugentavam nas matas e manguezais. Estes
relatos são confirmados pelo historiador Stuart Schwartz, especialista em
historiografia do Recôncavo Baiano.
Com as fugas, aos poucos iam se formando os quilombos, organizados
através da agricultura de subsistência e coleta nas matas; resistiam em áreas
próximas das vilas e engenhos.
Muitos trechos litorâneos eram de mangue, um problema para os senhores de engenho ansiosos para ocupar com canaviais cada centímetro de terra, mas uma salvação para os escravos que se alimentavam de siris, guaiamuns, e outros crustáceos (SCHWARTZ, 1988 apup RTID/INCRA, 2014)
Na oficina, relatos da pesca e mariscagem remontam à história dos
escravizados; mesmo trabalhando nas lavouras, a pesca e a mariscagem
61
apareciam como atividades complementares à subsistência destes e daqueles
que conseguiam de alguma forma fugir para os quilombos.
Com uma economia rural mista, o município de Maragojipe exibia em
fins do século XVIII, florestas, manguezais e vastas áreas com cultivo de
mandioca. A norte, as lavouras de cana-de-açúcar de Cachoeiras adentravam
parte do território maragojipano.
Apesar da existência de seis propriedades açucareiras em Maragojipe, na qual se destacavam dois engenhos de tamanho médio [...] a grande maioria dos “plantéis” era pequena. Dois terços dos proprietários mantinham apenas cinco escravos, embora apenas 29% de todos os escravos vivessem em “plantéis” como estes. Isso significa que 71% dos escravos se distribuíam entre alguns pequenos engenhos, sítios de fumo, pequenos sítios de agricultura de subsistência de negros alforriados e quilombos (RTID/INCRA, 2014, p.44).
É nas primeiras décadas do século XIX que a origem dos primeiros
quilombos do Guaí é relatada pelos quilombolas. Este período marca a crise
açucareira na região quando inúmeras fazendas foram abondanadas após a
falência dos senhores de engenho. Essa situação facilitou a formação de
comunidades negras rurais com aqueles que resistiram à crise e se
mantiveram nas terras ou nos arredores das propriedades.
As menções locais do território e dos antepassados das comunidades começam a surgir na tradição oral das comunidades somente quando os quilombolas fazem referência ao tempo da liberdade (RTID/INCRA, 2014, p.48).
O “tempo da liberdade” é o tempo dos quilombos, da alforria, isto pois a
liberdade é apresentada pelos quilombolas do Guaí como um elemento
fundamental para a sua formação como um grupo social. Essa liberdade
encontra na história outro obstáculo, quando em meados do século XX, quatro
famílias passam a ser proprietárias de grandes terras na região.
Os primeiros “novos proprietários” que apareceram no início do século XX eram a segunda ou terceira geração das famílias Sá e Pereira Guedes, que continuavam a ser proprietários de alguns engenhos e fazendas da região. Após anos sem a posse efetiva das fazendas, os herdeiros voltaram a ter interesse nas terras, que estavam parcialmente ocupadas pelas famílias quilombolas (RTID/INCRA, 2014, p.62). .
Com retorno dos herdeiros, a propriedade da terra é reclamada,
incluindo a posse de terras devolutas e pequenos sítios que foram anexados
aos limites das fazendas. Como os documentos de posse não precisavam as
dimensões das propriedades, se tornava fácil a grilagem das mesmas. As
62
cercas das fazendas foram aos poucos ocupando as áreas ocupadas pelos
quilombolas. “Essa pode ser uma forma de compreender como os diversos
sítios e fazendas da região se agruparam em apenas quatro grandes fazendas
confinantes entre si, em todo o Guaí, abrangendo áreas cuja ocupação
quilombola era centenária” (RTID/INCRA, 2014, p.63).
Figura 4 - Croqui das antigas fazendas do distrito do Guaí. Em verde: terras da família Sá; em azul turquesa: terras da família Pereira Guedes; em amarelo: terras da família Guerreiro (incluindo a vila Capanema em laranja); em rosa: terras da família Sanches; em bege: terras da família Pimentel; pontos em vermelho: ruínas dos engenhos; pontos verdes-escuros: antigos portos.
Fonte: RTID/INCRA (2014)
Cabe lembrar que a Lei de Terras de 1850 excluía a posse mansa e
pacífica de terras por escravos e ex-escravos. As comunidades negras, antes
da Lei Aurea, eram consideradas ilegais, logo, a escravidão não representava
uma ameaça à propriedade privada. Contudo, a conjuntura global apontava
que o fim do regime escravocrata estava por vir. A Lei de Terras cumpriu,
portanto, o importante papel de excluir socialmente os negros futuramente
63
libertos da posse de terras e, com isso, da possibilidade digna de existência.
No regime escravocrata, no entanto, não tinha-se o pagamento do “salário”
como equivalente geral do valor da força de trabalho, deste modo a Lei de
Terras consistiu num marco, visto que, juridicamente a terra passa a ser
considerada mercadoria, logo, passível de compra e venda.
Com o fim da escravidão em 1888, a ocupação de terras no Recôncavo
passa a contar com um significativo número de negros firmados em terras
devolutas e espalhados pelas matas. A retomada das propriedades pelas
famílias herdeiras não tinha como objetivo a expulsão dos quilombolas, desde
que estes prestassem serviço e/ou pagassem a renda da terra aos fazendeiros.
O trabalho compulsório nas fazendas é caracterizado pelos quilombolas como
um “retorno à escravidão”, o fim da liberdade. “No Guaí, fazendeiros e
quilombolas mantêm relações complexas, pautadas na dominação, exploração,
opressão e exploração do trabalho” (RTID/INCRA, 2014, p.37). Isto não é algo
atual; é uma relação que se reproduz ao longo das gerações, filhos, pais, avós
e bisavós de quilombolas também estiveram submetidos a este regime.
6.2 A ocupação atual da Comunidade Quilombola Guerém-Baixão do
Guaí, Guaruçu, Jirau Grande, Porta da Pedra e Tabatinga
A ocupação atual é um reflexo do passado distante e das memórias
recentes. Numa área 5.966,76 hectares14, a economia do território quilombola é
baseada na agricultura familiar no cultivo em roças, na produção de farinha, na
pesca e mariscagem e no extrativismo vegetal. A produção é voltada para o
autossustento e o excedente é vendido na feira ou para atravessadores. Há
uma elevada preocupação por parte dos pais e dos jovens no que se refere a
emprego, visto que a produção voltada para a subsistência não possibilita a
dinamização da economia local com geração de renda e de oportunidade para
os mais jovens.
...hoje os jovens que querem ter alguma renda são obrigados a deixar o território e prestar serviços como pedreiro, empregada doméstica, segurança etc, muitas vezes sub-empregados (sem direitos trabalhistas ou ganhando menos de um salário mínimo) (RTID, 2014, p.33).
14
Dado do documento de levantamento fundiário do INCRA apresentados por quilombolas em campo.
64
O território quilombola conta com 350 famílias espalhadas em todo
território; não há vilas ou conglomerados com mais de 10 casas próximas.
Apesar da publicação do Relatório Técnico de Identificação e Demarcação
(RTID), os quilombolas seguem sem a posse reconhecida de suas terras,
restando-os viver nas propriedades particulares, trabalhando nas lavouras em
regime de “terça” (renda fundiária - um terço da produção é entregue ao
fazendeiro como forma de pagamento pelo uso e moradia na terra). O RTID,
aponta exceção deste regime no Sítio Irmã Dulce, na Fazenda Guerém e nas
terras Nair Guedes, mas porque se encontram abandonadas.
Do início do século XX aos dias atuais, foram poucas mudanças no
caráter ocupacional do território quilombola do Guaí; a exceção fica por conta
da década de 1960 quando se intensifica o processo de expropriação dos
posseiros. Ainda assim, muitas famílias quilombolas conseguiram resistir
espalhadas pelo território, mas sem ocupar as fazendas, a maioria foi relegada
a poucas tarefas de terra. São poucas as famílias que permaneceram dentro
das fazendas, a exemplo do que ocorre na Fazenda Porto da Pedra. Há pouco
de uma década, após serem expulsos das terras da Fazenda Mutambo, os
quilombolas passaram a residir às margens da estrada que circunda a
monocultura de eucalipto da fazenda, vivendo de roças cultivadas pela família,
do extrativismo vegetal e de mariscos.
Os quilombolas se queixam que os proprietários dessas terras não permitem a construção de novas casas, e as novas gerações são obrigadas a migrar ou dividir casa com os pais (RTID/INCRA, 2014).
Figura 5 – Monocultura de eucalipto da Fazenda Mutamba e roças comunidade quilombola Mutamba.
Fonte: Sapucaia, abril de 2016.
As famílias estão predominantemente espalhadas pelo território, em
sítios pequenos de 3 a 15 hectares, onde vivem em média quatro famílias
65
nucleares. Normalmente são sítios sem cercas entre eles, a não ser quando
fazem divisa com fazendas não quilombola. A cerca se estabelece como marco
da propriedade privada na paisagem do Guaí.
De acordo com o levantamento fundiário INCRA, existem nove fazendas
com área superior a 100 hectares que juntas somam um total de 2.309,77
hectares. Estas fazendas ocupam o espaço de forma diferente, normalmente
com gado bovino em pastagens e eucalipto. Este último bastante recente em
relação ao gado; as primeiras monoculturas de eucalipto datam de fins de
2012.
Ainda que boa parte dos quilombolas tenham conseguido adquirir um sítio, as terras agricultáveis são escassas. A falta de terra e a luta pela posse já dura muitas décadas, desde aproximadamente 1920. Recentemente se verificou um agravamento gerado [...] pelas mudanças de ordem ecológico-ambiental. Mesmo sem terras agricultáveis, os quilombolas do Guaí tinham como principal instrumento de garantia de subsistência os recursos naturais do território, hoje disponíveis numa escala muito menor (RTID/INCRA, 2014, p.93).
Figura 6 – Croqui do Território Quilombola do Guaí.
Fonte: Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTID)
66
A infraestrutura básica é deficiente e com pouca ou nenhuma diferença
entre as comunidades. Nota-se a ausência de equipamentos e espaços
públicos capazes de atender as 350 famílias do distrito (RTID/INCRA, 2014).
A instalação da energia elétrica nas comunidades também é recente
(RTID/INCRA, 2014). Em 2007 apenas a comunidade quilombola Baixão do
Guaí tinha rede elétrica instalada, as demais comunidades foram contempladas
pelo Programa Luz Para Todos entre 2008 e 2009, mas atualmente, algumas
dezenas de casas ainda continuam sem rede elétrica. O saneamento básico é
o ponto mais deficitário do distrito. Nenhuma comunidade possui esgotamento
sanitário nem abastecimento de água tratada, restando às famílias a utilização
de bicas, fontes e coleta de água nas nascentes. No Baixão do Guaí, a
comunidade faz o uso da canalização de fontes e nascentes construídas pela
Companhia de Engenharia Rural da Bahia (CERB), porém sem tratamento. Os
dejetos são dispensados na grande maioria dos casos em fossas fechadas e
abertas. Outro ponto preocupante é a poluição das águas usadas para
alimentação, banho e limpeza de roupas e casa.
Em análises realizadas repetidamente pelos órgãos responsáveis verificou-se que a água utilizada pela população encontra-se poluída e é impropria para o consumo [...] a falta de abastecimento de água tratada é apontada como uma das principais causas de doenças nas comunidades (RTID/INCRA, 2014, p. 29)
Ainda sobre questões sanitárias, a coleta de lixo é apontada como
insuficiente pela população. Apenas a comunidade Jirau Grande possui coleta
de lixo da prefeitura, ainda assim, apenas as casas que se localizam à margem
da estrada têm seus lixos coletados pelo caminhão que passa na comunidade
vizinha, Capanema. A destinação do lixo fica por conta das famílias: restos
orgânicos são usados para alimentação de animais (patos, galinhas, cachorros,
porcos) ou adubo, o lixo inorgânico é queimado e algumas vezes destinado de
forma incorreta nas matas dos quintais.
O baixo nível de acesso ao saneamento implica em doenças. No
entanto, nenhuma comunidade dispõe de posto de saúde, nem é contemplada
pelo Programa de Saúde da Família. As famílias precisam se deslocar até o
posto mais próximo na comunidade de Capanema, que mal suporta a demanda
da comunidade local, com apenas um médico e um dentista. Em casos mais
graves, a comunidade precisa se deslocar até o hospital de Maragojipe ou de
67
São Félix, ainda assim sem garantia de pronto-atendimento. De acordo com
relatos a perda de sabedorias tradicionais como o uso de ervas medicinais e
ofício de parteiras intensifica a precarização da prevenção e cuidados com a
saúde. As doenças ocupacionais, principalmente adquiridas pelas
marisqueiras, não têm a atenção necessária dos órgãos responsáveis,
evidenciando o descaso com as comunidades pesqueiras.
Os problemas mais comuns enfrentados são o câncer de colo do útero, o aborto inseguro, as doenças sexualmente transmissíveis e a hemorragia, em função de não haver atendimento nem exames ginecológicos para a maioria das quilombolas [...] Já as principais causas de mortalidade infantil, citadas por lideranças comunitárias e informantes-chaves foram: doença do coração e doença de pele (RTID, 2014, p. 31).
Ainda sobre serviços básicos como transporte e educação a situação
também deixa a desejar. Todo transporte da comunidade é realizado através
do ônibus da prefeitura que circula na BA 024. Para os estudantes, é
disponibilizado um ônibus escolar que passa pela estrada do Baixão do Guaí,
com frequentes reclamações sobre as condições do serviço. De resto, a
principal forma de locomoção é a pé, visto que quase não há carros e
motocicletas particulares, dado o baixo poder aquisitivo das famílias. No distrito
existem quatro escolas de ensino fundamental, quase todas funcionando sem
material escolar e merenda. Cabe destacar que é comum nas comunidades as
crianças e jovens ajudarem na roça e no trabalho da maré. Sem as condições
mínimas e estimulo para os estudos a superação do elevado grau de
analfabetismo nas comunidades fica difícil de acontecer (RTID/INCRA, 2014).
Os estudantes do ensino médio precisam se deslocar para a sede, contudo, a
dificuldade de transporte é colocada como um empecilho para a continuidade
dos estudos na rede pública de ensino.
6.3 Questões sociais, fundiárias e ambientais decorrentes da monocultura
de eucalipto nas Comunidades Quilombolas do Distrito Guaí
As vantagens no Brasil não são apenas edafoclimáticas - que resultam
no crescimento do eucalipto em tempo reduzido. As facilidades na obtenção de
terras no país, pela compra, arrendamento ou grilagem, elevam os lucros da
produção a partir da exploração da terra e obtenção da renda da terra. Na falta
68
de fiscalização, estudo e acompanhamento sobre a questão fundiária
(discriminação das terras) o Estado permite que transações irregulares
promovam a apropriação privada sobre as terras devolutas e,
consequentemente, intensificação da concentração fundiária.
No seminário organizado pela CPP, em dezembro de 2015, na
Universidade do Recôncavo Baiano (UFRB), em Cachoeira, marisqueiras e
pescadores do Guaí denunciaram os impactos ambientais e conflitos com
fazendeiros donos das propriedades onde as monoculturas de eucalipto estão
sendo desenvolvidas. Estas problemáticas foram também levantadas nas
visitas a campo feitas em março e abril de 2016, a partir de entrevistas com
quilombolas do Guerém, Baixão do Guaí, Jirau Grande, Quizinga e Porto da
Pedra.
Conforme o Mapa 2, as monoculturas de eucalipto dentro do territ.[orio
quilombola estão concentradas em cinco fazendas de quatro proprietários,
destes, nenhum é nativo ou filho da terra como dito nas entrevistas. Os
problemas ambientais, sociais e econômicos relatados configuram as
dificuldades e elucidam a resistência e luta dos quilombolas do Guaí para a
titulação das terras, o que passa necessariamente pela indenização dos
fazendeiros.
O mapa 2 evidencia como as monoculturas de eucalipto do Guaí estão
concentradas, em sua maioria, na porção oriental do limite da Resex, com
aproximadamente 169,65 hectares distribuídos nas comunidades Porto da
Pedra e Mutamba, entre as propriedades “W”, “X”, “Y” e “Z”. Os monocultivos
mapeados na área de estudo apresentam espécimes em diferentes estágios de
maturação variando em tamanhos: eucaliptos jovens (1-5 metros), os
eucaliptos maduros (5-10 metros); não foram encontrados eucaliptos recém-
plantados (espécimes menores que um metro), nem eucaliptos adultos
(maiores que 10 metros). Como pode ser observada no mapa, parte dos
cultivos alcançam os manguezais, estando a menos de 100 metros da
poligonal da unidade. Já na porção ocidental foi identificado cerca de 35
hectares de eucalipto concentrados na propriedade “U”, localizada na
comunidade do Guaruçu. Foram também identificadas nas bordas das
monoculturas da propriedade “U” áreas de pasto com manchas de vegetação
de Mata Atlântica em estágio inicial de regeneração classificadas como pasto
69
sujo e, pasto sem presença de vegetação arbustiva ou arbórea, somente com
herbáceas, identificadas como pasto limpo; destacadas como possíveis áreas
destinadas à monocultura.
500500
500500
502000
502000
503500
503500
505000
505000
506500
506500
508000
508000
509500
509500
511000
511000
8576
500
8576
500
8578
000
8578
000
8579
500
8579
500
8581
000
8581
000
Cachoeira
Maragogipe
São Félix
-38°40'
-38°40'
-39°
-39°-12
°40'
-12°40
'
-13°
-13°
Delimitação das monoculturas de eucalipto no Distrito de Guaí - 2016
±
Datum: SIRGAS 2000Fonte: Acervo ICMBIOElaborado por: SAPUCAIA (2016)
0 21 Km
LegendaUso do solo
Baía de Todos os Santos
Limites do mapa de localização
Limite MunicipalÁrea de Estudo
Limite da Resex Baía do Iguape
Agricultura/PecuáriaFloresta SecundáriaManguezal
Brejo
Pasto limpoPasto sujo
Estágio de maturação do eucaliptoEucalipto jovem (1-5 m)Eucalipto maduro (5-10 m)
71
O direito individual dos fazendeiros de plantar eucalipto se sobrepõe à
permanência de centenas de famílias que vivem da roça e da “maré”. A
situação conflituosa evidencia diversos abusos, coação e ameaças por parte de
proprietários, que se intensificaram após a publicação do RTID em novembro
de 2015. De acordo com relatos de campo, fazendeiros buscaram reverter o
processo de demarcação do quilombo, iludindo a população quilombola através
de estratagemas a fim de desmobilizar a luta da comunidade. Ainda segundo
entrevistas, o proprietário da fazenda Mutamba e outro fazendeiro que não
produz eucalipto difundiram histórias entre os quilombolas afirmando que com
a publicação do RTID as famílias perderiam suas terras, suas casas; elas
seriam tomadas pelo INCRA e destinadas ao MST. Outra versão alegava que
eles não eram quilombolas, logo, o INCRA tomaria as terras e as destinaria aos
verdadeiros quilombolas. Em uma última versão, as terras seriam destinadas
aos trabalhadores do estaleiro e aos funcionários da Petrobrás, transformando
tudo em uma grande cidade. Independente da versão dada o resultado foi uma
enorme preocupação entre os moradores. Em um segundo momento, os
mesmos fazendeiros passaram cobrando valores diferenciados entre as
famílias para que um advogado fosse contratado a fim de reverter o RTID.
Relatos contam que diversas famílias deram suas economias, outras venderam
animais temendo perder suas terras e assinaram um documento no qual
negavam ser quilombolas.
“Com a publicação do RTID os conflitos ficaram mais fortes. Os fazendeiros passaram nas casas dizendo que eles não eram quilombolas, que a gente não era quilombola, que a gente perderia as casas, o bolsa verde, as terras com tudo. O território é grande ai fica fácil enganar o povo. Teve gente assinando com o polegar, entregando os documentos, dando as economias porque os fazendeiros falaram que iam contratar um advogado para revogar o RTID. Em janeiro e fevereiro desse ano tinha reunião dos fazendeiros nas comunidades toda segunda e quarta para falar pro povo que o governo ia tomar a terra deles. Em Porto da Pedra mesmo o fazendeiro ficou na reunião dos quilombolas pra intimidar, o povo dizendo que ele não foi convidado e botou ele pra fora [...]Esse cara faz terrorismo, faz com que o quilombola negue sua identidade. O quilombola fica com medo, se sente melhor se juntando com o fazendeiro para cultivar as terras” (Liderança do Guaí 1, em entrevista concedida em março de 2016). “Desde que o atual dono da Fazenda Mutamba chegou as coisas ficaram muito ruins, há mais ou menos dez anos ele chegou, cercou o caminho que a gente usava para mariscar, que a gente usava para pegar ônibus na estrada pra estudar. Ele expulsou mais ou menos 20 famílias dizendo que as terras eram dele. Deu um pedaço de terra do outro lado da estrada pras famílias. É um grande tensionamento porque as pessoas foram coagidas e ficaram temerosas. Depois da
72
publicação do RTID mentiu dizendo que o INCRA ia tirar as terras do povo, ele articulou até com um advogado, engando as famílias. Difundiu um discurso que aqui não tinha quilombola. Muita gente assinou a procuração sem nem saber ler, sem saber o que era”. (Liderança do Guaí 3, em entrevista concedida em abril de 2016)
As modestas condições de vida e a baixa escolaridade da maioria da
população do Guaí são fatores que, na luta de classes, favorecem a opressão
e a dominação. O discurso enganador dos fazendeiros desponta como
importante estratégia de persuasão para melhor “cooptar” a cooperação dos
moradores. Cabe também a reflexão da atuação de órgãos como o INCRA que
muito tem a colaborar com o processo de esclarecimento e reconhecimento
dos direitos dos quilombolas, visto que, estão acontecendo rodadas de oficinas
do INCRA nas comunidades a fim de dar continuidade com o processo de
reconhecimento e titulação do território quilombola, ao mesmo tempo em que
estas ações coercitivas dos fazendeiros acontecem. Uma jovem liderança da
comunidade aponta que a falta de informação é inimiga dos quilombolas “os
tempos eram outros, não tinha informação e os quilombolas tinham muito medo
de perder o pouco que tinha. Hoje o tempo é outro e a gente precisa informar
que somos os verdadeiros donos dessas terras e só com muita luta a gente vai
conseguir isso” (Liderança do Guaí 1, entrevista concedida em março de 2016).
Vê-se a violência se expressar tanto pela indiferença dos gestores e
órgãos governamentais, cientes da situação, porém omissos, como pela
intimidação e pela limitação territorial imposta pelos fazendeiros no que tange a
reprodução física e social dos quilombolas.
A gente morava do outro lado da pista, tinha muita fruta na mata, tinha caju, tinha lima, limão, manga, mangaba, até cacau tinha, tinha muito dendê. Esse fazendeiro desmatou tudo quando chegou, a gente usava o caminho dentro da mata para chegar na maré, depois disso ele tirou a gente da nossa terra, a gente tinha casa levantada, roça, casa de farinha, jogou a gente tudo do lado de cá da pista, nem passar pra pescar a gente podia. [O fazendeiro] queria negociar quatro casas com nos moradores dizendo que a gente não tem direito a nada, e que ele ainda tava fazendo o favor de dar terra pra nós. Dez tarefas de terra é muita vantagem para quem achava que não tinha nada. (Liderança do Guaí 4, em entrevista concedida em março de 2016). “O povo não se sentia dono, os quilombolas não sabiam que as terras eram deles e aceitou achando que era melhor do que ficar sem terra” (Liderança do Guaí 5, em entrevista concedida em março de 2016)
73
Ainda que a Constituição Federal1 garanta o direito à cultura e à
manifestação cultural, por constituir patrimônio material e imaterial, na prática
se mostra letra morta para as formas de expressão, os modos de fazer, criar e
viver dos diferentes grupos sociais brasileiros. Outras leis como o Decreto
7.037/2009 (Programa Nacional de Direitos Humanos) e o Decreto 6.040/2007
(Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais) destinadas ao amparo destes grupos, apontam princípios e
diretrizes para a efetivação de um modelo de desenvolvimento sustentável,
com inclusão social, cultural, econômica, participativa e não discriminatória.
Contudo, o desafio está em fazer valer este amparo legal em favor das
comunidades, viabilizando o desenvolvimento de um projeto alternativo de
sociedade colocado na práxis destes povos. Colocado na prática garante não
apenas a sobrevivência dos modos de vida das populações tradicionais como a
conservação dos ecossistemas associados às suas práticas sociais e
economia locais.
As relações de poder entre fazendeiros e o Estado ficam marcadas pela
hierarquização da estrutura agrária brasileira, tendo na base da produção o
trabalhador rural pauperizado e no topo os latifundiários. Muitos, além de donos
de terra, são também figuras políticas. O Estado, instituição que representa a
classe dominante é antes de tudo, um aparelho do qual se utilizam os
exploradores para perpetuar sua dominação e a faz de maneiras distintas,
partindo de justificativas diversas como a de gestão da sociedade e mediação
de conflitos.
A abundância de força de trabalho a baixo custo eleva os lucros
provenientes da produção de papel e celulose no país, vantagem comprovada
pela transferência de capitais dos países tradicionalmente produtores para as
periferias do capital. O trabalho nas fazendas de eucalipto é para poucos; a
insalubridade nas condições de trabalho, e o não atendimento das condições
de segurança vêm acompanhados de uma remuneração abaixo do mínimo da
categoria. Segundo relatos, não há trabalho nas fazendas depois que foram
arrendadas para o cultivo de eucalipto, os homens que faziam serviços nas
propriedades foram dispensados, restando apenas um hoje nesta função. O
trabalho nos monocultivos fica por conta da empresa que arrenda as terras.
1 Artigos 215 e 216.
74
A desarticulação comunitária e o desmatamento de matas nativas são
também apontados como formas de minar a resistência na terra, visto que a
falta de alternativas intensifica a preocupação com o desemprego. Com as
terras de roça limitadas, o medo constante de contaminação das águas por
venenos pulverizados no monocultivos e a escassez hídrica se faz presente no
discurso dos quilombolas relatam que vem faltando alternativa de renda.
Questionados sobre as perspectivas que têm diante da situação atual, alguns
entrevistados apontam:
Eu não vejo muita coisa boa no futuro se as plantações de eucalipto continuarem e aumentarem. A tendência é o povo sair da comunidade para procurar trabalho, o eucalipto não emprega, quando é tempo de colocar veneno chega um ônibus da empresa com gente de fora, até o povo daqui que cuidava das terras do fazendeiro não trabalha mais lá. O eucalipto não desenvolve a comunidade. E sabe o que é pior? Quando chove a água leva o veneno todo da plantação pra maré. Tá ruim para os homens que trabalham mais na roça e nas fazendas e pras mulheres que mariscam. Na fazenda Mutamba mesmo, elas não vão mais mariscar, não tem mais nada lá, não tem mais mapé, marisco nenhum. A água do açude do Sinunga ninguém usa mais pra beber. Outra coisa é que vai faltar água, a gente vê quando chove que a água da estrada seca muito rápido, seca porque do outro lado da cerca tem os eucaliptos (Extrativista 1, em entrevista concedida em abril de 2016). É triste ver o quanto de marisco morreu depois dos eucaliptos, porque o veneno desce todo pra maré, é só a chuva vim que leva. A qualidade da água mudou, isso tudo é um problema ambiental, mas é social e econômico também, porque a maioria das mulheres aqui vivem da maré (Liderança do Guaí 3, em entrevista concedida em abril de 2016).
Solos, rios, ar, animais, comunidades do entorno e os trabalhadores
estão em contato direto com os químicos usados nos cultivos. Não raro as
embalagens dos agrotóxicos são descartadas irregularmente nos rios ou no
próprio plantio, muitas vezes utilizados sem a posse de um receituário
agronômico para o seu uso.
Figura 7 – Embalagens de bioquímicos utilizados nas plantações do Guaí.
75
Fonte: Acervo da Resex Baía do Iguape (2016)
A proximidade dos plantios que beiram a maré é algo que preocupa a
comunidade, afinal de contas, tratam-se de áreas de pesca e mariscagem ou
acesso para a atividade. Segundo uma liderança marisqueira “agora vira e
mexe a gente sente uma coceira e um cheiro forte vindo da água. A gente
chama por Deus com esse veneno todo indo pra maré e para os nossos
mariscos, é o que a gente come minha filha, é o que a gente cata pra vender e
sobreviver” (Liderança 3, em entrevista concedida em março de 2016).
A lista de impactos de natureza ambiental é grande, os extrativistas
relatam que com o desmatamento da mata nativa, muitos animais silvestres
passaram a se afugentar em casas, roçados e até mesmo no manguezal. Foi
comum em reuniões do conselho deliberativo da Resex e nas entrevistas,
relatos de serpentes e outros animais nas matas.
Essa semana mesmo meu menino tirou um tatu do mangue, o policial ambiental chamou a atenção dele por estar com o bicho, mas impedir a destruição que é bom o ICMBio não fez (Liderança 6, reunião do conselho deliberativo da Resex, dezembro de 2015) Agora vira e mexe a gente vê cobra no manguezal. No porto da Mutamba eu e um monte de gente já viu. As cobras vivia tudo nas matas, agora não tem mais nada. Eucalipto mata tudo, você só vê uns matos pequenos e cobra procura a mata pra ficar (Extrativista 1, entrevista concedida em abril de 2016).
Diante do avançar do monocultivo sobre as roças, manguezal e apicum
(habitat de caranguejos e guaiamuns), as denuncias feitas ao ICMBio foram
recorrentes. Segundo os analistas ambientais, as fiscalizações já foram
iniciadas e as autuações necessárias serão feitas visando mitigar ou mesmo
impedir que empreendimentos nocivos desenvolvam suas atividades.
Figura 8 – Monocultura de eucalipto margeando manguezal do Distrito do Guaí.
Fonte: Paula Regina, 2016.
Em todas as entrevistas marisqueiras e pescadores demonstram
preocupação com o fato das chuvas levarem até as marés os bioquímicos
76
usados nas monoculturas. Alguns sinalizaram o quanto era perceptível, tanto
por manchas pretas e roxas que surgiam particuladas na maré, quanto pelo
odor forte e principalmente pela coceira que sentiam durante a mariscagem em
contato com a água e que permanecia após a saída do mar. O quadro abaixo
traz a listagem de problemas ambientais e socioeconômicos apontados nas
entrevistas.
Quadro 1 – Lista de impactos ambientais e socioeconômicos apontados em entrevistas de campo.
IMPACTOS
AMBIENTAL SOCIOECONÔMICO
- Desmatamento de mata nativa e manguezal - Animas silvestres nas casas e manguezal - Morte de passarinhos - Cultivo na cabeceira do rio - Morte de mariscos por causa dos venenos usados na monocultura - Possível contaminação do solo por causa dos venenos - Contaminação da água do açude do Rio Sinunga - Diminuição de água na cisterna
- Conflitos com fazendeiros e desarticulação de parte da comunidade - Impedimento do acesso às áreas de monocultura e consequente impedimento de acesso a caminhos antes usados para chegar à maré. - Impedimento do acesso ao cemitério dos pretos; - Aumento da distância para o labor - Diminuição das opções de renda pelo não emprego nas fazendas e pela diminuição dos pescados nas áreas que circundam as fazendas
Fonte: Trabalho de campo, março e abril de 2016.
Em paralelo ao crescimento do lucro proveniente da expansão do setor
celulístico, cresce também o ônus econômico, social e cultural em relação às
comunidades atingidas. A violação de direitos humanos fundamentais
provocada pelas plantações industriais de eucaliptos e pinus não ocorre sem
resistência. A mobilização social busca frear o aprofundamento cada vez maior
de desigualdades sociais, degradação ambiental e esfacelamento de culturas e
tradições, como a diminuição das casas de farinhas. O cenário dos municípios
onde as unidades fabris e monocultivos estão instaladas é de constante
transformação, com potencial desaparecimento e enfraquecimento das
comunidades locais e a homogeneização da paisagem, tal como ocorre em
regiões mais impactadas pelo monocultivo no país.
embora seja um dos pilares de sustentação da moderna agricultura capitalista a monocultura revela, desde o início, que é uma prática que não visa satisfazer as necessidades das regiões e dos povos que produzem. A monocultura é uma técnica que em si mesma traz uma dimensão política, na medida em que só tem sentido se é uma produção que não é feita para satisfazer quem produz. Só um raciocínio logicamente absurdo de um ponto de vista ambiental, mas que se tornou natural, admite fazer a cultura de uma só coisa (PORTO-GONÇALVES, 2006, p.28).
77
Do poder público jorram recursos para o agronegócio, só em 2015, em
meio ao ajuste fiscal, o governo elevou em 20%, (R$ 188 bilhões)2 os recursos
destinados ao agronegócio para a safra 2015/2016. Enquanto isso, milhares de
famílias são expulsas de suas terras pela violência, a contaminação e a
degradação ambiental promovidas pelo agronegócio e demais
empreendimentos do grande capital.
Uma diferença fundamental entre agronegócio e agricultura está presente nos nomes: no agronegócio não há cultura, pois não há povo, a relação homem-natureza é mediada pelos valores do mercado, do negócio. A sociodiversidade cultural presente no campo e na floresta do Brasil se expressa nos povos que produzem alimento, vivem na terra e da terra, das águas e da floresta (CARNEIRO, 2015)
É comum nas monoculturas o uso de quantidades elevadas de
bioquímicos. Um destes produtos químicos, largamente utilizado pela Veracel
Celulose, por exemplo, consta da lista de produtos proibidos pelo FSC3. De
acordo com Ivonete Gonçalves (CEPEDES) o relatório de inspeção da ASI
sobre a certificação da Veracel, “A empresa pulveriza as plantações que estão
sendo atacadas por infestações de formigas com Sulfuramida. Para essa
aplicação, a empresa pediu uma exceção do FSC, e conseguiu essa
autorização em 2008”. E continua:
O sulfuramida é considerado Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs). Os POPs são substâncias consideradas perigosas para a saúde pública e o meio ambiente em função de elevada persistência no meio ambiente, a capacidade de serem transportadas por longas distâncias através do ar e da água, além de serem substâncias bioacumulativas. Os POPs, incluídos na Convenção de Estocolmo, passam a ter sua produção e uso proibidos no nível global, tendo sido selecionadas inicialmente 12 destas substâncias químicas perigosas para serem banidas, dentre elas o mirex (GONÇALVES,s/ano).
Além da contaminação por agrotóxicos, organizações como o Centro de
Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul (CEPEDES), o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Via Campesina, o
Movimento dos Trabalhadores(as) Assentados(as) e Acampados(as) (CETA),
pesquisadores de diversas universidades estaduais e federais no país e outros
grupos, se posicionam sobre os amplos impactos ambientais causados pelas
2 Fonte: http://economia.ig.com.br/empresas/agronegocio/2015-06-02/dilma-anuncia-r-188-bilhoes-
para-o-agronegocio-20-a-mais-que-na-ultima-safra.html 3 FSC é a sigla de Forest Stewardship Council, uma expressão inglesa que, em Português, significa
"Conselho de Manejo Florestal". Fonte: info.fsc.org/
78
plantações industriais de madeira. Para melhor elucidar a questão, foi realizado
um levantamento bibliográfico que retrata alguns destes danos ambientais
gerados por monocultivos deste gênero.
O gênero Eucalyptus envolve mais de 600 espécies que estão
adaptadas a diferentes climas e solos, em amplas variações latitudinais, indo
do clima temperado até o semiárido e com posicionamentos altimétricos muito
variáveis, podendo ser utilizadas para diferentes finalidades.
Originária das regiões quentes e úmidas da Austrália, sua grande
capacidade de fazer fotossíntese, ou seja, retirar energia do sol e transformar
em biomassa, explica o fácil e acelerado desenvolvido deste gênero no Brasil,
enquanto nas regiões secas e frias o seu crescimento é mais lento.
Para alcançar este crescimento rápido o eucalipto precisa de muita água. Em média, ao longo de suas fases de crescimento, um pé de eucalipto consome 30 litros de água por dia. [...] Portanto, no Brasil, plantar eucalipto em grande escala numa mesma região, pode provocar grandes desequilíbrios nas águas existentes nesta região. Isto provoca o que os técnicos chamam de déficit hídrico, isto é, falta de água. O eucalipto precisa de muita água para crescer, tem raízes profundas e ele vai buscar esta água onde ela está. Como conseqüência, vai faltar na região para outras plantas, para consumo humano, para animais. Vão secar várzeas, vertentes, poços artesianos, sangas. Vai também ressecar a terra de superfície na região toda e vai alterar o regime de chuvas. A falta de umidade torna mais difícil a entrada de frentes frias e acontecem mais estiagens nas regiões onde se planta eucalipto demais. (VIA CAMPESINA, 2006).
Oliveira, Menegasse e Duarte (2002), em seu artigo apresentado no XII
Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas, fazem referências a estudos de
Jayal (1985) e Reynolds & Wood (1977) sobre os impactos da monocultura de
eucalipto e a susceptibilidade dos ecossistemas atingidos à desertificação. Os
autores destacam os seguintes impactos:
Alta demanda de água, esgotando a umidade do solo, diminuindo a recarga, de modo que desestabiliza o ciclo hidrológico;
Elevada demanda de nutrientes, criando um elevado déficit anual, descontrolando esse ciclo;
Liberação de substâncias químicas alelopáticas4 que afetam o
crescimento de plantas e de microrganismos do solo, reduzindo, entre outros efeitos, a fertilidade do solo e adversidade de espécies tanto da flora e fauna local;
Plantação na forma de monoculturas extensas, as quais são caracterizadas por apresentar baixa diversidade ecológica, podendo causar instabilidade ou vulnerabilidade a mudanças
4 A alelopatia é definida como o efeito inibitório ou benéfico, direto ou indireto, de uma planta
sobre outra, via produção de compostos químicos que são liberados no ambiente. Esse fenômeno ocorre em comunidades naturais de plantas (Gressel & Holm, 1964) e pode, também, interferir no crescimento das culturas agrícolas (Bell & Koeppe, 1972; Muller, 1966). Disponível em dicionário botânico online.
79
climáticas, assim como ao ataque de pragas e doenças (OLIVEIRA; MENEGASSE; DUARTE, 2002, p.13).
A preocupação com a escassez hídrica é presente em falas de
quilombolas do Guaí; a preocupação também se dá pelas suspeitas de
alteração da qualidade da água após a aplicação dos agrotóxicos. As fazendas
W e X tem parte das monoculturas situada a beira mar, conforme a localização
na figura 9.
A proximidade da maré evidencia uma infração ambiental/fundiária por
não considerar os 33 metros da preamar média estabelecidos como áreas de
Marinha do Brasil, logo, sem destino ao uso privado. A infração ambiental se dá
pela destruição do manguezal e do apicum, ecossistemas sensíveis e de
fundamental importância para a reprodução de espécies múltiplas. Evidencia
também o descaso com as comunidades tradicionais, que tiveram o seu
espaço de (re)produção suprimido pelo empreendimento.
O plantio de culturas anuais em consórcio com o eucalipto explicita outra
inverdade do discurso empresarial. A realidade mostra que isto só é possível
nos dois primeiros anos, visto que a competição por luz, água e nutrientes nos
anos seguintes inviabiliza o consórcio.
A tendência após o esgotamento dos solos e do fim do processo
rentável aos empreendedores do eucalipto não é a recuperação das áreas
degradadas e o desenvolvimento de uma atividade menos nociva ao meio. A
atualidade tem mostrado que a tendência é transformar tudo em grandes
pastos, outra atividade que promove elevada degradação ao solo. Trata-se,
deste modo, de um,
modelo de desenvolvimento contraditório promotor da exclusão social e concentração de riqueza, que deixa em seu caminho um rastro de violações aos direitos humanos fundamentais, registrados nas seguintes situações: confinamento humano de comunidades camponesas; desestruturação das alternativas locais tradicionais; degradação e privatização dos recursos naturais; enfraquecimento dos saberes tradicionais; drástica redução da produção alimentar; constatação do aumento do êxodo rural; centralização do poder e fortalecimento do processo de monopolização do território pelas empresas do setor de papel e celulose, em detrimento de outras formas de sociais historicamente constituídas e formadoras da sociedade local, tratadas com menosprezo e indiferença em seus projetos alternativos de desenvolvimento sustentável (BOLETIM INFORMATIVO N.1, 2013)
O agronegócio se sustenta no tripé estrutural da grande produção
agropecuária no país – latifúndio, monocultura, exportação - e se mantem
impune quanto às irregularidades legais no que tange às infrações trabalhistas,
80
sociais e ambientais. Tudo isto é fortalecido pela aliança de classes entre
proprietários fundiários e capitalistas no Brasil.
Como dito, o capital industrial adentrou ao campo de forma acelerada,
transformou o espaço agrícola em celeiro industrial priorizando a produção de
commodities em detrimento da produção de alimentos desenvolvida pela
agricultura familiar. A posse das terras pela compra, arrendamento ou grilagem
assegura a produção das empresas. No que tange à indústria de papel e
celulose, a maioria das empresas possui mais terras do que declara em seus
anuários, porque o arrendamento tem se mostrado uma alternativa muito
lucrativa. Cabe relembrar que “a renda da terra absoluta resulta da posse
privada do solo e da oposição existente entre o interesse do proprietário
fundiário e o interesse da coletividade” (OLIVEIRA, 2007).
Ao arrendar terras, a empresa diminui suas reponsabilidades ambientais
de médio e longo prazo como a recuperação do solo, por exemplo. No Guaí os
monocultivos de eucalipto das fazendas Z e Y estão arrendados à COPENER.
De acordo como o contrato, cabe à empresa recuperar as áreas degradadas
que venham impactar o curso de sua atividade de plantio e aquelas que forem
impactadas pelo monocultivo. Contudo, ao fim de dois ou mais ciclos, os
impactos químicos e físicos no solo já são sentidos. A empresa, desta forma, é
promotora de impacto, ainda que as terras não sejam suas.
Outra estratégia adotada para diluir as responsabilidades entre
proprietário e empresa se dá a partir do “instrumento particular de contrato de
parceria agrícola”. Trata-se de um contrato agrário por meio do qual uma
pessoa cede à outra o direito de uso de uma área rural para exercício da
exploração agrícola, segundo Decreto nº 59.566/66. Pela Lei nº 4.504/64 -
Estatuto da Terra deverá haver partilha dos riscos e frutos advindos dessa
atividade.
A diferença existente entre o arrendamento e a parceria está na divisão
ou não dos riscos exercidos pela atividade rural (agrícola ou pastoril). Nos
contratos de arrendamento o proprietário recebe retribuição predeterminada na
forma de aluguel, sem participar dos riscos do negócio; já nos contratos de
parceria, o proprietário divide com parceiro o resultado e os riscos do
empreendimento. A contrapartida deste último está nos frutos da colheita, caso
ocorra.
81
A fragmentação de médias e grandes propriedades em glebas menores
– normalmente registradas em nome de terceiros – tem sido uma estratégia
usada por produtores rurais (proprietários e arrendatários) e empreendimentos
agroindustriais para burlar o licenciamento ambiental. Um dos princípios que
norteiam o Direito Ambiental é o do poluidor-pagador, que imputa
responsabilidades ao empreendimento utilizador de recurso natural em
medidas equivalentes à magnitude dos impactos gerados. Estas
responsabilidades podem ocorrer na forma de sujeição às regulamentações
ambientais impostas pelo Estado, limitações na localização, na instalação ou
operação do empreendimento, pagamento de compensações, execução de
medidas mitigatórias ou a recuperação dos danos ambientais causados.
Destarte, a fragmentação de um empreendimento maior em diversos sub-
empreendimentos menores reduziria as responsabilidades ambientais impostas
ou até mesmo, a depender do grau de fragmentação, geraria a dispensa de
licenciamento ambiental por considerar desprezíveis os impactos causados
pelas frações da totalidade do empreendimento.
No caso de atividades agrossilvipastoris, como são enquadradas as
monoculturas de eucalipto, esta prática é recorrente, como acontece no
quilombo do Guaí. Os proprietários criam verdadeiras colchas de retalhos em
suas fazendas reduzindo-as a glebas menores de dimensões suficientes para
receber dispensa de licenciamento ambiental para a realização do monocultivo.
No caso do Guaí, quatro das cinco fazendas produtoras mapeadas receberam
a dispensa de licenciamento ambiental do Instituto do Meio Ambiente e
Recursos Hídricos (INEMA), sujeitas à administração e operação de uma única
empresa, a BSB/COPENER (Figura 9), a exceção está na fazenda “U” que não
apresenta sequer licença ou dispensa ambiental e alega não arrendar a
produção para terceiros.
82
Figura 9. Mapa da COPENER identificando quatro propriedades arrendadas para a produção de eucalipto.
Fonte: Acervo do ICMBIO, 2016.
83
A figura acima retrata claramente como estão dispostas as quatro
propriedades fragmentadas às margens do estuário. As áreas na cor bege
correspondem ao cultivo de eucalipto realizado pela COPENER/BSB. As linhas
secas que dividem as propriedades evidencia a fragmentação perante o
Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (CEFIR), mascarando a
realidade, uma vez que trata-se de duas propriedades contíguas.
Tabela 4: Nome das propriedades e seus donos, área total das fazendas, área destinada ao plantio de eucalipto sob operação da BSB/COPENER e área plantada de acordo com dados de campo.
Propriedade Proprietário Área total (ha)
Área de eucalipto plantado (ha)
(Dados do CEFIR1)
Fazenda U (Três Marias) A --- 35,76*
Fazenda W (Porto da Ilha) B 188,51 63,00
Fazenda X (Oceania) C (marido de B) 134,73 50, 84
Fazenda Y (Escócia) D 171,10 18,54
Fazenda Z (Pitangui) D 175,00 59,31
Total
*Dado de campo. 669,34 227,45
Fonte: Dados de campo, INEMA e CEFIR. Elaborado por: SAPUCAIA (2016).
O dado referente a área de eucalipto plantada na Fazenda U foi obtido a
partir de coleta em campo e a realização do calculo de área a partir da imagem
do Google Earth (2016) convertida para shapefile. A Fazenda U é a única
propriedade que não arrenda a produção para a COPENER. As fazendas W e
X são de um mesmo grupo familiar, pois um imóvel está registrado em nome
de um proprietário e o outro em nome de sua esposa. Nas Fazendas Y e Z o
fracionamento do licenciamento ambiental é ainda mais explícito, pois ambos
os imóveis estão registrados em nome de um mesmo proprietário. Na tabela
acima, os dados de campo da área de eucalipto plantado não estão
discriminadas por propriedade, visto que a produção se apresenta de forma
contígua, separadas por cortes rasos. Destaco que a fazenda Y e a fazenda Z
juntas somam 39,1ha de eucalipto plantado de acordo com os dados acervo
cartográfico da Resex Marinha Baía do Iguape (ICMBio, 2016). Contudo, o
registro de área cultivada no CEFIR é outro, conforme exposto na tabela.
Ocorre que assim há 38,75ha a mais de eucalipto plantado do que o declarado
pelos registros da empresa responsável pelos cultivos, a BSB/COPENER. 1 Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (CEFIR).
84
Tomando como base resoluções, normativas e decretos referentes ao
impacto ambiental provido pelas monoculturas de eucalipto e buscando a
legislação que compete ser aplicada é possível compreender, ainda que
brevemente, a situação de dolo a que estão submetidas às Resex e demais
territórios de populações tradicionais diante de grandes empreendimentos.
A resolução do CEPRAM nº 4.327, de 31 de outubro de 2013, dispõe
sobre regras gerais de atividades sujeitas a licenciamento ambiental. O artigo
1º aponta como impacto ambiental de âmbito local,
Art. 1º - Fica definido, para fins desta Resolução, como impacto ambiental de âmbito local qualquer alteração direta das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, que afetem a saúde, a segurança e o bem-estar da população, as atividades sociais e econômicas, a biota; as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; e a qualidade dos recursos ambientais, dentro dos limites territoriais do Município.
Conforme as entrevistas e os registros de reuniões de associações das
comunidades e reuniões do conselho deliberativo da Resex, tais impactos de
ordem ambiental e socioeconômica já acontecem. As monoculturas já
adentraram o município de Maragojipe e no contexto da pesquisa, dentro do
Território Quilombola do Guaí, até as adjacências da Resex Baía do Iguape.
A fim de impedir ou mitigar os impactos de uma série de atividades a
resolução do CEPRAM, no artigo 2º, descreve o procedimento do
licenciamento divido em ―03 (três) níveis correspondentes, em ordem crescente
à complexidade ambiental, considerados os critérios de porte, potencial
poluidor e natureza da atividade, as características do ecossistema e a
capacidade de suporte dos recursos ambientais envolvidos‖.
Tomando como base o anexo único da resolução supracitada, as
monoculturas de eucalipto presentes no quilombo do Guaí são enquadradas da
seguinte maneira:
Tabela 5 – Classificação da silvicultura de acordo com a resolução do CEPRAM nº 4.327/2013.
Tipologia Unidade de
medida Porte (módulos fiscais) Potencial poluidor
Silvicultura (grupo A3)
Módulo fiscal pequeno = >4 <30 médio = >30<200
grande = >200 Médio
Com o fracionamento, as propriedades passam a não ser enquadradas
pela resolução, devido o fato de serem inferiores a 4 módulos fiscais,
justificando a dispensa de licenciamento concedida pelo INEMA a algumas
85
destas propriedades, conforme explica Bruno Marchena, analista ambiental do
ICMBio.
Tomando como referência o Decreto Estadual nº 15.682, de 19 de
novembro de 2014, a situação se repete. No anexo A, que dispõe da
tipologia e porte dos empreendimentos e atividades sujeitos ao
licenciamento ambiental têm-se a seguinte classificação: tipologia -
silvicultura (vinculada a processos industriais); unidade: área (ha); porte -
pequeno > = 200 < 500; Médio > = 500 < 1.500; Grande > = 1.500; potencial
poluidor: médio.
Outras legislações ajudam a sustentar a necessidade do licenciamento
para atividades agrossilvipastoris. Por exemplo, a resolução do Conama nº237
de 1997 enquadra as monoculturas de eucalipto como uma atividade sujeita ao
licenciamento ambiental devido ao uso que faz dos recursos naturais, adotando
a tipologia ―silvicultura‖.
Já o Decreto Estadual nº 15.180 de 02 de junho 2014 – ―regulamenta a
gestão das florestas e das demais formas de vegetação do Estado da Bahia, a
conservação da vegetação nativa, o CEFIR, e dispõe acerca do Programa de
Regularização Ambiental dos Imóveis Rurais do Estado da Bahia e dá outras
providências‖. No capítulo V, discorre sobre a exploração de florestas
plantadas, adverte:
Parágrafo único - O plantio e condução de populações florestais exóticas, próprios ou de terceiros, diretamente vinculados a processos industriais, dependerão de prévio licenciamento ambiental (Decreto nº 15.180/2014).
Por fim, resgato a resolução CONAMA 428/2010 e a resolução
CONAMA 01/1986, a fim de sustentar legalmente as críticas à monocultura de
eucalipto no território quilombola Guaí apresentadas no decorrer da pesquisa.
A resolução 428 exige o licenciamento ambiental para empreendimentos
de significativo impacto ambiental, localizados numa faixa de três quilômetros a
partir do limite da UC, ainda que esta não apresente zona de amortecimento
definida, conforme o artigo 1º, parágrafo 2º. A resolução nos permite reclamar
ao ICMBio validação legal da missão da Resex Baía do Iguape de conservação
dos ecossistemas e do modo de vida das populações tradicionais. Mesmo para
as atividades que não estão sujeitas a EIA/RIMA. O artigo 1º traz ainda a
informação que, cabe ao órgão licenciador (INEMA ou IBAMA) apontar o grau
significativo ou não do impacto ambiental, o que na prática diminui a
86
competência do ICMBio perante reivindicação de análise para autorização ou
não do licenciamento.
[...] o órgão ambiental licenciador deverá dar ciência ao órgão responsável pela administração da UC, quando o empreendimento: I– puder causar impacto direto em UC; II– estiver localizado na sua ZA; III – estiver localizado no limite de até 2 mil metros da UC, cuja ZA não tenha sido estabelecida no prazo de até 5 anos a partir da data da publicação da Resolução nº 473, de 11 de dezembro de 2015.(redação dada pela Resolução nº 473/2015).
A reserva extrativista, enquanto modalidade de UC, não tem o poder de
vetar estas atividades, mas quando ciente sobre a realização das mesmas
passa a ter o direito de se manifestar em caso de nexo causal com impactos
sociais e ambientais.
A orientação normativa nº 17/2010/PFE/IBAMA dispõe de orientações
jurídicas da fiscalização para a proteção de unidades de conservação federais.
Aponta:
Entende-se que a competência material atribuída ao ICMBio é ampla no que tange à proteção das Unidades de Conservação. O Instituto não pode se omitir diante de fato ocorrido fora da UC, mas que vá atingi-la direta ou indiretamente, pois que a Lei n.º 11.516/2007 [...] incumbiu-lhe de defender, proteger, fiscalizar e monitorar as Unidades de Conservação, seja em face de atividades nocivas internas, seja externas (Normativa nº 17/2010/PFE/IBAMA).
O nexo causal se configura como um principio jurídico, desta forma o
ICMBio, enquanto órgão responsável pela conservação da Resex, deve impedir
a realização de atividades impactantes às populações e ecossistemas ou exigir
procedimentos que mitigue ou compensem-nos o impacto que incidir sobre a
UC ou seus beneficiários, mesmo que não esteja dentro ou na área de entorno,
é responsabilidade do órgão competente.
O vínculo existente entre as monoculturas de eucalipto e os impactos
por ela produzidos deve ser relevado, tornando-se substância suficiente para
uma ação do órgão, dotado de poder de polícia, a fim de se fazer cumprir a
missão da Resex.
Por fim, a resolução do CONAMA nº01 de 1986, no artigo 1º, considera
impacto ambiental,
[...] qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população; II - as atividades sociais e econômicas; III - a biota;
87
IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; V - a qualidade dos recursos ambientais.
A legislação ambiental é questionada no âmbito da sua aplicação, já que
decorrem das monoculturas de eucalipto diversos ônus sobre a natureza e
população, cabendo estudos de impacto ambiental (EIA) uma vez que as
propriedades cumulativas e sinérgicas precisam ser avaliadas. Segundo a
Resolução CONAMA que fundamenta toda a análise técnica para o
licenciamento ambiental, qualquer estudo de impacto ambiental deve conter,
II - Análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais (CONAMA nº01, artigo 6º; grifo nosso).
Conclui-se, portanto, que o complexo de monoculturas de eucalipto na
região do Guaí deve ser analisado de forma integrada, considerando
conjuntamente os efeitos cumulativos e sinérgicos da operação dos
empreendimentos, contrariando assim os processos individualizados de
dispensa de licenciamento exarado pelo órgão ambiental licenciador, o
INEMA, que ocorreram sem a devida observância do Artigo supracitado,
apresentando peculiaridades que revelam vícios. Os problemas relatados dão
materialidade para uma análise real dos efetivos impactos ambientais do
empreendimento sobre o Quilombo do Guaí e a Resex Marinha Baía do
Iguape, ferindo o princípio da precaução que rege a normatização do
licenciamento ambiental brasileiro.
6.4 A resistência dos atingidos
A luta simbólica passa pela ressignificação dessas paisagens de
plantações homogêneas. Monocultura não é floresta, é bandeira de luta das
populações atingidas por estes empreendimentos. O discurso ecológico como
―florestas plantadas‖ e ―madeira de reflorestamento‖ apregoado pelas
empresas é endossado pelo Estado e invisibiliza as desigualdades através do
discurso da sustentabilidade. Contudo, é preciso deixar claro que o espaço
apropriado pelos fazendeiros é o espaço expropriado das populações
tradicionais, modificando seu território e os ambientes naturais utilizados por
este grupo social. A realidade cotidiana das populações tradicionais comprova
88
a farsa do discurso sustentável perpetrado por empreendimentos poluidores e
de grande impacto social.
A monocultura de eucalipto é uma cultura de agronegócio como outra
qualquer: realiza a produção pautada no plantio e no lucro e não em uma
preocupação socioambiental. Os termos ―reflorestamento‖ e ―florestas
plantadas‖ podem sugerir uma preocupação ambiental que não existe no
monocultivo. Esses termos são utilizados tanto na legislação brasileira como
pelas associações que representam os setores de papel e celulose, moveleiro,
de carvão vegetal, entre outros que têm como matéria-prima a madeira. Além
destas denominações, há ainda os que chamam estas atividades de
silvicultura. Porém este termo refere-se a povoamento heterogêneo (―silvi‖),
logo, também não é adequado à monocultura de árvores; embora seja uma
terminologia amplamente adota pela legislação brasileira.
No boletim informativo confeccionado pela Comissão Regional de
Atingidos pelo Deserto Verde e o Instituto Federal do Paraná, o Professor
Paulo Brack do Departamento de Botânica da UFRGS declara que:
As monoculturas arbóreas atuais não podem ser consideradas florestas. Os cultivos arbóreos comerciais, nos padrões atuais, têm ciclos curtos (sete a dez anos), funcionando como grandes lavouras de árvores. Nesses sistemas de produção ditos ―modernos‖, temos somente uma espécie arbórea, geralmente exótica e geneticamente idêntica, pois é propagada por clonagem de tecidos. A diversidade é praticamente ausente. A estratificação é ausente. Os biocidas e os insumos químicos são instrumentos inerentes deste sistema de homogeneidade arbórea produtivista. Incidir nessa equiparação como se fossem sinônimos não deixa de ser uma incongruência, por não dizer uma aberração (BOLETIM INFORMATIVO N.1, 2013).
A resistência dos atingidos permite o desocultamento da realidade social
do território e expõe a forma tradicional de vida e produção do espaço como
antagônica ao modelo do agronegócio. De um lado tem-se o território valorado
como mero recurso a ser explorado pelas empresas, de outro, o lugar da
existência social de grupos, que se valem de outras formas organizativas,
produtivas e econômicas para sua reprodução em harmonia com o meio.
Ao abordar o conceito de atingido, é necessário deixar claro o contexto e o sentido do debate, de modo a explicar o que é que está em jogo. Na verdade, embora o termo apareça em documentos técnicos e remeta a dimensões econômico-financeiras, a noção não é nem meramente técnica, nem estritamente econômica. Conceito em disputa, a noção de atingido diz respeito, ao fato, ao reconhecimento leia-se legitimação, de direitos e de seus detentores. Em outras palavras, estabelecer que foi determinado grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido por certo empreendimento significa reconhecer como legítimo – e, em alguns casos, como legal – seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou
89
reparação não pecuniária. Isto explica que a abrangência do conceito seja, ela mesma, objeto de uma disputa (VAINER, 2003, p. 2).
Uma característica marcante na atualidade do capitalismo é a
expropriação de terra, dos bens naturais e dos bens imateriais de populações
tradicionais - que partilham relações sociais não tipicamente capitalistas - como
condição de territorialização do capital. Isso decorre do discurso
desenvolvimentista que trata as relações sociais destas populações como
atrasadas. Logo, para se alcançar o desenvolvimento, o moderno, se faz
necessário retirar os atrasados, seja usando a violência ou os meios legais que
asseguram a posse da propriedade privada aos expropriadores, latifundiários,
capitalistas (NASCIMENTO, 2014, P.41). A contestação deste discurso é um
importante instrumento de luta para classe da trabalhadora e camponesa, que
na sua práxis cotidiana questiona a manutenção da sociedade de classes
baseada na exploração, na opressão e na destruição da natureza. É preciso
compreender que, a monocultura de eucalipto é responsável tanto pela
alteração da paisagem quanto pela alteração da lógica de (re)produção das
famílias e do espaço.
A análise das transformações territoriais e os impactos na reprodução
dos atingidos do ponto de vista apenas técnico é insuficiente. As populações
atingidas, por empreendimentos diversos, como grandes obras tal como a
transposição do Rio São Francisco, a Ferrovia de Integração Oeste-Leste
(FIOL), ou pelo deserto verde ―passam por mudanças bruscas em suas vidas,
na sua organização social, na sua base territorial ou nas formas de trabalho e
sobrevivência‖ (SILVA, 2011, p.66). Ampliar o olhar e o debate sobre o conceito
de atingidos é considerar outros ―processos que vêm se desenvolvendo no
campo e têm expropriado um considerável número de
camponeses/trabalhadores que são atingidos também pelo agronegócio, pelos
parques ecológicos, pelas ferrovias, por projetos de transposição‖ (SILVA,
2011, p.66).
Partindo da compreensão da lógica capitalista, responsável por operar
esses processos, fica evidente que, independente do agente causador, recaem
sobre os atingidos perdas e danos territoriais, seja na terra seja na água. Silva
(2011, p.71) ressalta que ―o agente expropriador, que é comum a todos, nesse
caso, é o Estado, seja por meio de suas obras, seja através das legislações‖.
90
A situação fundiária conflitosa e desigual no país revela a condição das
populações tradicionais e camponesas agravada pelas ações destes grandes
empreendimentos. A regularização fundiária, de responsabilidade do Estado,
continua sendo negada ao passo que promove e legitima a expropriação de
famílias sem dar alternativas para estas.
A pesca artesanal realizada por pescadores e marisqueiras, que são
também, em sua maioria, lavradores, configura uma atividade tradicional que
convive diretamente com as relações capitalista de produção e, cada vez mais,
vem se deparando com desafios diante da modernidade e do projeto
desenvolvimentista do Estado. Um deles é fato de que os pequenos produtores
não encontram condições de se reproduzirem a não ser subordinados ao
capital. Embora não tipicamente capitalista, as relações sociais dos pescadores
artesanais têm seus limites determinados pelo espaço do acúmulo capitalista,
pois estão subordinados a lógica de mercado, sendo o produto do seu trabalho,
nesta lógica, uma mercadoria e como tal está submetida à esfera da circulação
e reprodução do capital. As populações pesqueiras não têm como se
desenvolver economicamente sem manter uma relação estreita com a
dinâmica sociometabólica do capital, pelo fato dos seus projetos alternativos de
sociedade serem historicamente destruídos.
A degradação da natureza e a imposição de uma lógica exógena a do
lugar impõe ao pescador uma crise de ―autoestima‖ e acima de tudo um
empecilho à existência – a natureza é acima de tudo uma condição concreta de
trabalho destes homens e mulheres e está sendo intensamente transformada
pelas ações do grande capital.
Por isso, ao ver o ambiente modificado, a poluição impregnada, a desconstrução espacial, instaura-se no sentimento do pescador a sensação de perda do norte, do lastro e do leme, ou seja, a crise de autoestima se instala e se fortalece com os espaços luminosos, que, por meio dos órgãos ambientais, criminalizam o pescador, e que lhes desvalorizam e julgam negativamente o trabalho. Além disso, agentes modernizadores apresentam em vitrines outras formas de trabalho, sobretudo no contexto urbano – a diversidade e a complexidade de trabalho, atividades e possibilidades de estratégias do fazer – que confronta expressivamente com o ser pescador. Aqueles que resistem são geralmente adultos e idosos, os mais jovens vivem a crise societal de forma mais profunda, que se anuncia como crise de trabalho, crise de sentido, crise do fazer, crise do ser pescador (SILVA, 2014, p.20).
As populações rurais e ribeirinhas são massacradas e sua situação
invisibilizada perante a sociedade em geral; têm sua (re)produção da vida
91
violentada pelo Estado e o Capital que, de mãos dadas, seguem tocando seu
projeto histórico. A violência do processo é tal que, sem condições materiais
mínimas de vida, não há articulação, organização e luta que se consolide.
Desta forma, a resistência é posta como a única alternativa para fazer
enfrentamento a esta realidade.
Mesmo com a publicação do RTID do Território Quilombola Tabatinga,
Jirau Grande, Guaruçu, Guerém, Baixão do Guaí e Porto da Pedra, os conflitos
não cessaram, pelo contrário. Os extrativistas alegam que os fazendeiros
insistem no discurso de que eles não são quilombolas. O enfraquecimento
cultural, que se reafirma no posicionamento dos fazendeiros, se dá também na
prática omissa do Estado perante este grupo social, que os relega a precárias
condições de vida. Saídos da condição de escravizados, se veem agora
pauperizados, portando apenas a sua força de trabalho e o que lhes resta de
saberes e culturas. Contudo, no fazer da resistência buscam se articular em
rede com as demais comunidades da Resex, além de organizações com a
CPP, somando forças para o enfrentamento dos conflitos territoriais postos.
A luta não é só das populações afetadas, é de toda sociedade, da
universidade, das organizações sociais que em solidariedade de classe
precisam fortalecer esta resistência. Não há expectativa de que o Estado, como
já dito, pilar de sustentação de toda desigualdade social e exploração, seja o
responsável pela superação deste quadro de miséria que assola as
comunidades quilombolas. Porém, fazer valer as garantias já conquistadas
pelos movimentos sociais através do reconhecimento destes grupos e da
posse de suas terras é fundamental, pois se trata da garantia das condições
materiais de vida e de luta.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tendência da homogeneização da paisagem e na dinâmica do uso da
terra é uma das características dos chamados ―desertos verdes‖ - extensas
áreas onde predomina a monocultura de eucalipto. Nestas áreas as práticas
lesivas deste tipo de empreendimento culminam em secagem e poluição dos
recursos hídricos, expulsão dos pequenos proprietários e impedimento de
alternativas de vida próprias aos modos de produção das populações que
tradicionalmente vivem no lugar.
92
O caráter conflituoso entre a Reserva Extrativista Marinha Baía do
Iguape e o agronegócio do eucalipto desenvolvido em terras quilombolas é
fruto das ações perpetradas pela aliança de classes entre proprietários
fundiários e capitalistas, juntamente com o Estado. A complexidade dos
conflitos entre o agronegócio, os proprietários fundiários e as populações
tradicionais é tamanha, visto que incorporam dimensões materiais mensuráveis
como impactos simbólicos e sociais que não podem ser contabilizados a fim de
exigir medidas compensatórias.
A pressão dos empreendimentos de papel e celulose nos locais é
tamanha que fragiliza organização comunitária e resistência nas terras,
forçando os moradores a migrar, vender ou alugar suas propriedades. Cabe
lembrar que as monoculturas de eucalipto em larga escala não exigem um
contingente de força de trabalho dado à elevada mecanização do setor; os
poucos trabalhadores incorporados comumente recebem uma baixa
remuneração para desempenhar atividades que os expõe a condições de
trabalho ruins e a produtos tóxicos usados no cultivo.
Nota-se a prevalência dos interesses das grandes empresas que
dominam o setor. Lucram cada vez mais ao extrair a renda da terra devido ao
grande valor que a madeira de eucalipto têm alcançado nos últimos anos em
função da escassez de matéria-prima. Lucro para os capitalistas e ônus para o
meio ambiente e comunidades.
O valor dos relatos dos quilombolas do Guaí reside não apenas no
registro e na visibilidade dada aos conflitos, como também nas preocupações
com o futuro da comunidade e das gerações mais novas, devido à violência
praticada contra os direitos fundamentais de reprodução física e cultural da
população extrativista.
O fotografo Sebastião Salgado certa vez alertou em uma de suas
entrevistas que ―os mais violentos bolsões de miséria do Brasil estão
exatamente onde há grandes monocullturas, especialmente de eucalipto‖
(SALGADO, apud GONÇALVES, s/ ano). A expansão destes bolsões de
miséria deve ser combatida. Alternativas de produção da vida são
cotidianamente praticadas pelas comunidades quilombolas do Guaí, através da
pesca, mariscagem e agricultura e devem ser priorizadas na gestão da unidade
de conservação.
93
A chegada do eucalipto até a maré configura um crime socioambiental e
precisa ser interpretado enquanto tal pelas autoridades. No Guaí, os solos de
bom potencial agrícola e a proximidade da foz do Rio Paraguaçu são fatores
que contestam a destinação destas áreas para uma finalidade tão degradante
em detrimento de práticas tradicionais que contribuem para a soberania
alimentar.
O agronegócio do monocultivo do eucalipto segue a mesma lógica do
agronegócio que tem exportado nos últimos anos produtos como soja, carnes,
açúcar, algodão, entre outros, fazendo com que continue sendo necessária – e
até em maior quantidade – a importação de alimentos básicos como arroz,
feijão, milho e trigo.
A abertura de crédito para a expansão dos monocultivos, dentre eles o
do eucalipto, e as facilidades para o arrendamento e compra de terras não vêm
acompanhadas de políticas públicas voltadas para os trabalhadores rurais e
para as populações tracionais produtoras de alimento, visto que estas medidas,
sob a ótica desenvolvimentista, são contraproducentes para a acumulação de
capital.
A pluralidade de atividades tradicionais desenvolvidas pelos extrativistas,
antagônica ao interesse desenvolvimentista do Estado, deve ser resguardada.
As Resex correspondem a uma conquista do movimento social e como toda
conquista mediada pelo Estado na sociedade capitalista comporta
contradições. A situação fundiária das comunidades quilombolas beneficiária
da Resex decorre também do fato da UC contemplar apenas águas interiores e
manguezais, de modo que as localidades adjacentes onde vivem as
comunidades não compõem de fato a unidade.
Disto decorre uma série de questões fundiárias urgentes que precisam
ser colocadas na pauta dos órgãos competentes para que o direito de acesso
aos recursos extrativistas (pesqueiros e vegetais) seja garantido às
comunidades da reserva. O uso ilegal de áreas de propriedade da União e a
instalação de empreendimentos impactantes no entorno da UC têm dificultado
ou mesmo impedido o acesso a recursos fundamentais para a população
tradicional da área.
Há consciência de que às legislações no país, principalmente voltadas
às populações tradicionais e a natureza, são letra morta. Apesar de definirem
direitos não os garante. O aparato estatal reflete o quanto órgãos e leis tentam
94
minimizar os conflitos sem o compromisso de mudar a realidade a qual se
destinam. A regularização fundiária que não é feita e a punição que não é dada
são exemplos disto.
A ―fragilidade‖ das áreas protegidas (modalidade Resex) diante de
grandes empreendimentos do capital e as consequências para as populações
tradicionais revelam a tática do Estado de garantir reservas territoriais de valor
com todos os recursos nelas contidos, estratégicas para a valorização futura.
São verdadeiras reservas naturais sob a tutela do Estado que se mostra
omisso com questões de relevância social como a situação pauperizada que se
encontra grande parte dos extrativistas da unidade. Perante os órgãos
ambientais, a natureza é vista como ―sujeito de direito‖ e as populações
tradicionais, na prática, não são consideradas da mesma forma.
Esta fragilidade pode ser analisada também sob a ótica da autonomia
dos extrativistas que têm o direito de deliberar sobre os rumos, políticas e
projetos para a unidade. Apesar do poder deliberativo, empreendimentos
impactantes têm se instalado nos arredores da unidade, nas comunidades
onde residem os beneficiários da Resex como o polo naval Enseada e outros.
Garantir o direito ao território dos quilombolas é questionar o livre
funcionamento do mercado de terras no Brasil instituído desde a Lei de Terras
em 1850, que tanto mantém a exploração do capital nas áreas rurais como
urbanas do país. A propriedade do território quilombola é concedida mediante
com o titulo coletivo, logo inalienável, rompendo com a estrutura monopolizável
e alienável da propriedade privada compreendida enquanto mercadoria.
A desapropriação dos fazendeiros, através da perda a titularidade do
bem, mediante o pagamento da indenização, proporciona maior segurança
jurídica aos quilombolas em relação a real validade dos títulos emitidos para as
comunidades, pelo fato de possibilitar a atenuação dos conflitos possessórios
existentes.
Sem proporcionar geração de emprego, renda e qualidade de vida para
amplos setores da população brasileira, o modelo desenvolvimentista
aprofunda da dicotomia entre um setor tecnificado e altamente produtivo da
economia e outro que não consegue superar a economia de subsistência, por
consequência pauperizado.
Só a luta é capaz de transformar a sociedade e é este o caminho
adotado pelos quilombolas do Guaí, na resistência cotidiana frente aos
95
impactos do setor celulístico em suas terras. A resistência dos atingidos
deflagra que outra forma de organização social é possível e necessária;
baseada na ajuda mútua, na solidariedade de classe e no uso sustentável dos
recursos naturais. A permanência na luta é a forma de resistência dos
quilombolas, assim como de todos os povos tradicionais. Esta luta deve ser
encarada como bandeira de todas as pessoas comprometidas com a justiça
social, a conservação da natureza, de seus povos e de suas formas de vidas,
compreendidas como um modo sustentável de se relacionar com a natureza.
Por fim, aponto que este TCC não é neutro como o véu que cobre as
produções científicas da universidade pode aparentar. Este estudo não se
encerra aqui, terá continuidade a fim de servir de instrumento de luta e
reivindicação das populações afetadas. As irregularidades são muitas e o
descaso do poder público é massacrante para as populações rurais e
tradicionais. O mínimo a ser feito é lutar no mesmo lado da trincheira daqueles
que almejam colaborar para o ruir da sociedade de classes.
96
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ANEXO 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTA Identificação: Nome:______________________________________________________________ Idade:_________________ Localidade:(a)moradia______________________b)nascimento:________________ Profissão:__________________________ Membro de alguma(s) associação? ( )Não ( )Sim. Qual? _______________________________ Dados de moradia: - Material da casa: ( )alvenaria ( )madeira ( ) outro ______________________ Proprietário ( ) Aluguel ( ) - Abastecimento de água: ( )rede geral ( )poço ( )fonte natural ( )rio (__)outra - Esgotamento: ( )esgoto sanitário ( )fossa aberta ( )fossa fechada ( ) encanamento direto no rio ( ) outra___________________ - Destino do lixo: ( )queimado ( )enterrado ( )jogado em terreno baldio () )coletado pela prefeitura ( ) colocado em depósito para posterior coleta da empresa/prefeitura EUCALIPTO 1. Quando começou a plantação da monocultura de eucalipto na comunidade? 2. Você, algum familiar ou conhecido, trabalham ou trabalharam no cultivo? Se sim, onde, quanto tempo, qual a função? 3. Percebe alguma mudança positiva ou negativa depois da chegada das monoculturas de eucalipto? a) ambiental b) econômica c) social 4. Já viu alguma embalagem de agrotóxico descartada a toa na estrada ou no manguezal que possa ter sido das fazendas? 5. Sente algum impacto na saúde? 6. Já teve algum conflito com os fazendeiros que plantam eucalipto? Qual, quando, motivo? 7. Mora perto de alguma plantação de eucalipto? 8. Pesca/marisca perto de alguma plantação de eucalipto? 9. Tem que passar perto de alguma para mariscar/pesar?
636 RESOLUÇÕES DO CONAMA
RESOLUÇÃO CONAMA nº 1, de 23 de janeiro de 1986Publicada no DOU, de 17 de fevereiro de 1986, Seção 1, páginas 2548-2549
Correlações:· Alterada pela Resolução nº 11/86 (alterado o art. 2o)· Alterada pela Resolução no 5/87 (acrescentado o inciso XVIII)· Alterada pela Resolução nº 237/97 (revogados os art. 3o e 7o)
Dispõe sobre critérios básicos e diretrizes gerais para a avaliação de impacto ambiental
O CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE - CONAMA, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 48 do Decreto nº 88.351, de 1º de junho de 1983, 156para efetivo exercício das responsabilidades que lhe são atribuídas pelo artigo 18 do mesmo decreto, e
Considerando a necessidade de se estabelecerem as defi nições, as responsabilidades, os critérios básicos e as diretrizes gerais para uso e implementação da Avaliação de Impacto Ambiental como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, resolve:
Art. 1o Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indireta-mente, afetam:
I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população; II - as atividades sociais e econômicas; III - a biota; IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; V - a qualidade dos recursos ambientais.
Art. 2o Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo rela-tório de impacto ambiental - RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e da Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA157 em caráter supletivo, o licenciamento de atividades modifi cadoras do meio ambiente, tais como:
I - Estradas de rodagem com duas ou mais faixas de rolamento; II - Ferrovias; III - Portos e terminais de minério, petróleo e produtos químicos; IV - Aeroportos, conforme defi nidos pelo inciso 1, artigo 48, do Decreto-Lei nº 32, de
18 de setembro de 1966158; V - Oleodutos, gasodutos, minerodutos, troncos coletores e emissários de esgotos
sanitários; VI - Linhas de transmissão de energia elétrica, acima de 230KV; VII - Obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos, tais como: barragem159
para fi ns hidrelétricos, acima de 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação, drenagem e irrigação, retifi cação de cursos d’água, abertura de barras e embocaduras, transposição de bacias, diques;
VIII - Extração de combustível fóssil (petróleo , xisto, carvão); IX - Extração de minério, inclusive os da classe II, defi nidas no Código de Minera-
ção; X - Aterros sanitários, processamento e destino fi nal de resíduos tóxicos ou perigosos;
156 Decreto revogado pelo Decreto no 99.274, de 6 de junho de 1990.157 A Secretaria Especial do Meio Ambiente – SEMA, vinculada ao Ministério do Interior, foi extinta pela
Lei nº 7.735, de 22 de fevereiro de 1989, que criou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recur-sos Naturais Renováveis – IBAMA. As atribuições em matéria ambiental são atualmente do Ministério do Meio Ambiente.
158 Decreto-Lei revogado pela Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986.159 Retifi cado no Boletim de Serviço do MIN, de 7 de março de 1986
LICENCIAMENTO AMBIENTAL – Normas e procedimentos RESOLUÇÃO CONAMA nº 1 de 1986
637RESOLUÇÕES DO CONAMA
Xl - Usinas de geração de eletricidade, qualquer que seja a fonte de energia primária, acima de 10MW;
XII - Complexo e unidades industriais e agro-industriais (petroquímicos, siderúrgi-cos, cloroquímicos, destilarias de álcool, hulha, extração e cultivo de recursos hídricos hidróbios?)160;
XIII - Distritos industriais e zonas estritamente industriais - ZEI; XIV - Exploração econômica de madeira ou de lenha, em áreas acima de 100 hectares
ou menores, quando atingir áreas signifi cativas em termos percentuais ou de importância do ponto de vista ambiental;
XV - Projetos urbanísticos, acima de 100 ha ou em áreas consideradas de relevante interesse ambiental a critério da SEMA e dos órgãos municipais e estaduais competentes estaduais ou municipais1;
XVI - Qualquer atividade que utilizar carvão vegetal, em quantidade superior a dez toneladas por dia.
XVI - Qualquer atividade que utilizar carvão vegetal, derivados ou produtos similares, em quantidade superior a dez toneladas por dia. (nova redação dada pela Resolução n° 11/86)
XVII - Projetos Agropecuários que contemplem áreas acima de 1.000 ha. ou menores, neste caso, quando se tratar de áreas signifi cativas em termos percentuais ou de impor-tância do ponto de vista ambiental, inclusive nas áreas de proteção ambiental. (inciso acrescentado pela Resolução n° 11/86)
XVIII - Empreendimentso potencialmente lesivos ao patrimônio espeleológico nacio-nal. (inciso acrescentado pela Resolução n° 5/87)
Art. 3o Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo RIMA, a serem submetidos à aprovação da SEMA, o licenciamento de atividades que, por lei, seja de competência federal. (Revogado pela Resolução n° 237/97)
Art. 4o Os órgãos ambientais competentes e os órgãos setoriais do SISNAMA deverão compatibilizar os processos de licenciamento com as etapas de planejamento e implan-tação das atividades modifi cadoras do meio ambiente, respeitados os critérios e diretrizes estabelecidos por esta Resolução e tendo por base a natureza o porte e as peculiaridades de cada atividade.
Art. 5o O estudo de impacto ambiental, além de atender à legislação, em especial os princípios e objetivos expressos na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, obedecerá às seguintes diretrizes gerais:
I - Contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confron-tando-as com a hipótese de não execução do projeto;
II - Identifi car e avaliar sistematicamente os impactos ambientais gerados nas fases de implantação e operação da atividade;
III - Defi nir os limites da área geográfi ca a ser direta ou indiretamente afetada pelos impactos, denominada área de infl uência do projeto, considerando, em todos os casos, a bacia hidrográfi ca na qual se localiza;
lV - Considerar os planos e programas governamentais, propostos e em implantação na área de infl uência do projeto, e sua compatibilidade.
Parágrafo único. Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental o órgão estadual competente, ou a SEMA ou, no que couber ao Município 161, fi xará as diretrizes adicionais que, pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas necessárias, inclusive os prazos para conclusão e análise dos estudos.
Art. 6o O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes ativi-dades técnicas:
160 Retifi cado no Boletim de Serviço do MIN, de 7 de março de 1986161 Retifi cado no Boletim de Serviço do MIN, de 7 de março de 1986
RESOLUÇÃO CONAMA nº 1 de 1986LICENCIAMENTO AMBIENTAL – Normas e procedimentos
638 RESOLUÇÕES DO CONAMA
I - Diagnóstico ambiental da área de infl uência do projeto completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto, considerando:
a) o meio físico - o subsolo, as águas, o ar e o clima, destacando os recursos minerais, a topografi a, os tipos e aptidões do solo, os corpos d’água, o regime hidrológico, as cor-rentes marinhas, as correntes atmosféricas;
b) o meio biológico e os ecossistemas naturais - a fauna e a fl ora, destacando as espécies indicadoras da qualidade ambiental, de valor científi co e econômico, raras e ameaçadas de extinção e as áreas de preservação permanente;
c) o meio sócio-econômico - o uso e ocupação do solo, os usos da água e a sócio-economia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos.
II - Análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de iden-tifi cação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéfi cos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais.
III - Defi nição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, entre elas os equi-pamentos de controle e sistemas de tratamento de despejos, avaliando a efi ciência de cada uma delas.
IV - Elaboração do programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos positivos e negativos, indicando os fatores e parâmetros a serem considerados.
Parágrafo único. Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental, o órgão estadual competente; ou a SEMA ou quando couber, o Município fornecerá as instruções adicionais que se fi zerem necessárias, pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área.
Art. 7o O estudo de impacto ambiental será realizado por equipe multidisciplinar habilitada, não dependente direta ou indiretamente do proponente do projeto e que será responsável tecnicamente pelo resultados apresentados. (Revogado pela Resolução n° 237/97)
Art. 8o Correrão por conta do proponente do projeto todas as despesas e custos re-ferentes à realização do estudo de impacto ambiental, tais como: coleta e aquisição dos dados e informações, trabalhos e inspeções de campo, análises de laboratório, estudos técnicos e científi cos e acompanhamento e monitoramento dos impactos, elaboração do RIMA e fornecimento de pelo menos 5 (cinco) cópias.
Art. 9o O relatório de impacto ambiental - RIMA refl etirá as conclusões do estudo de impacto ambiental e conterá, no mínimo:
I - Os objetivos e justifi cativas do projeto, sua relação e compatibilidade com as polí-ticas setoriais, planos e programas governamentais;
II - A descrição do projeto e suas alternativas tecnológicas e locacionais, especifi cando para cada um deles, nas fases de construção e operação a área de infl uência, as matérias primas, e mão-de-obra, as fontes de energia, os processos e técnicas operacionais, os prováveis efl uentes, emissões, resíduos e perdas de energia, os empregos diretos e indiretos a serem gerados;
III - A síntese dos resultados dos estudos de diagnósticos ambiental da área de infl u-ência do projeto;
IV - A descrição dos prováveis impactos ambientais da implantação e operação da atividade, considerando o projeto, suas alternativas, os horizontes de tempo de incidência dos impactos e indicando os métodos, técnicas e critérios adotados para sua identifi cação, quantifi cação e interpretação;
V - A caracterização da qualidade ambiental futura da área de infl uência, comparando
LICENCIAMENTO AMBIENTAL – Normas e procedimentos RESOLUÇÃO CONAMA nº 1 de 1986
639RESOLUÇÕES DO CONAMA
as diferentes situações da adoção do projeto e suas alternativas, bem como com a hipótese de sua não realização;
VI - A descrição do efeito esperado das medidas mitigadoras previstas em relação aos impactos negativos, mencionando aqueles que não puderem ser evitados, e o grau de alteração esperado;
VII - O programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos; VIII - Recomendação quanto à alternativa mais favorável (conclusões e comentários
de ordem geral).Parágrafo único. O RIMA deve ser apresentado de forma objetiva e adequada a sua
compreensão. As informações devem ser traduzidas em linguagem acessível, ilustradas por mapas, cartas, quadros, gráfi cos e demais técnicas de comunicação visual, de modo que se possam entender as vantagens e desvantagens do projeto, bem como todas as conseqüências ambientais de sua implementação.
Art. 10. O órgão estadual competente, ou a SEMA ou, quando couber, o Município terá um prazo para se manifestar de forma conclusiva sobre o RIMA apresentado.
Parágrafo único. O prazo a que se refere o caput deste artigo terá o seu termo inicial na data do recebimento pelo órgão estadual competente ou pela SEMA do estudo do impacto ambiental e seu respectivo RIMA.
Art. 11. Respeitado o sigilo industrial, assim solicitando e demonstrando pelo inte-ressado o RIMA será acessível ao público. Suas cópias permanecerão à disposição dos interessados, nos centros de documentação ou bibliotecas da SEMA e do órgão estadual de controle ambiental correspondente, inclusive durante o período de análise técnica.
§ 1o Os órgãos públicos que manifestarem interesse, ou tiverem relação direta com o projeto, receberão cópia do RIMA, para conhecimento e manifestação.
§ 2o Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental e apresentação do RIMA, o órgão estadual competente ou a SEMA ou, quando couber o Município, determinará o prazo para recebimento dos comentários a serem feitos pelos órgãos públicos e demais interessados e, sempre que julgar necessário, promoverá a realização de audiência pública para informação sobre o projeto e seus impactos ambientais e discussão do RIMA.
Art. 12. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
FLÁVIO PEIXOTO DA SILVEIRA - Presidente do Conselho
Este texto não substitui o publicado no DOU, de 17 de fevereiro de 1986.
RESOLUÇÃO CONAMA nº 1 de 1986LICENCIAMENTO AMBIENTAL – Normas e procedimentos
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTECONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE-CONAMA
RESOLUÇÃO N° 428, DE 17 DE DEZEMBRO DE 2010
Correlações:• Revoga as Resoluções n° 10/1988, nº 11/1987, nº 12/1988, nº 13/1990; • Altera as Resoluções nº 347/2004, e nº 378/2006.
Dispõe, no âmbito do licenciamento ambiental sobre a autorização do órgão responsável pela administração da Unidade de Conservação (UC), de que trata o § 3º do artigo 36 da Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, bem como sobre a ciência do órgão responsável pela administração da UC no caso de licenciamento ambiental de empreendimentos não sujeitos a EIA-RIMA e dá outras providências.
O CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE-CONAMA, no uso das atribuições e competências que lhe são conferidas pelo art. 8º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentado pelo Decreto nº 99.274, de 06 de julho de 1990 e tendo em vista o disposto em seu Regimento Interno, Anexo à Portaria MMA nº 168, de 13 de junho de 2005, e:
Considerando a necessidade de regulamentar os procedimentos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental que afetem as Unidades de Conservação específicas ou suas zonas de amortecimento, resolve:
Art. 1º O licenciamento de empreendimentos de significativo impacto ambiental que possam afetar Unidade de Conservação (UC) específica ou sua Zona de Amortecimento (ZA), assim considerados pelo órgão ambiental licenciador, com fundamento em Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), só poderá ser concedido após autorização do órgão responsável pela administração da UC ou, no caso das Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPN), pelo órgão responsável pela sua criação.
§1º Para efeitos desta Resolução, entende-se por órgão responsável pela administração da UC, os órgãos executores do Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC), conforme definido no inciso III, art. 6º da Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000.
§2º Durante o prazo de 5 anos, contados a partir da publicação desta Resolução, o licenciamento de empreendimento de significativo impacto ambiental, localizados numa faixa de 3 mil metros a partir do limite da UC, cuja ZA não esteja estabelecida, sujeitar-se-á ao procedimento previsto no caput, com exceção de RPPNs, Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e Áreas Urbanas Consolidadas.
Art. 2° A autorização de que trata esta Resolução deverá ser solicitada pelo órgão ambiental licenciador, antes da emissão da primeira licença prevista, ao órgão responsável pela
administração da UC que se manifestará conclusivamente após avaliação dos estudos ambientais exigidos dentro do procedimento de licenciamento ambiental, no prazo de até 60 dias, a partir do recebimento da solicitação.
§1º A autorização deverá ser solicitada pelo órgão ambiental licenciador, no prazo máximo de 15 dias, contados a partir do aceite do EIA/RIMA.
§2º O órgão ambiental licenciador deverá, antes de emitir os termos de referência do EIA/RIMA, consultar formalmente o órgão responsável pela administração da UC quanto à necessidade e ao conteúdo exigido de estudos específicos relativos a impactos do empreendimento na UC e na respectiva ZA, o qual se manifestará no prazo máximo de 15 dias úteis, contados do recebimento da consulta.
§3º Os estudos específicos a serem solicitados deverão ser restritos à avaliação dos impactos do empreendimento na UC ou sua ZA e aos objetivos de sua criação.
§ 4º O órgão responsável pela administração da UC facilitará o acesso às informações pelo interessado.
§ 5º Na existência de Plano de Manejo da UC, devidamente publicado, este deverá ser observado para orientar a avaliação dos impactos na UC específica ou sua ZA.
§ 6º Na hipótese de inobservância do prazo previsto no caput, o órgão responsável pela administração da UC deverá encaminhar, ao órgão licenciador e ao órgão central do SNUC, a justificativa para o descumprimento.
Art. 3º O órgão responsável pela administração da UC decidirá, de forma motivada:
I – pela emissão da autorização;
II – pela exigência de estudos complementares, desde que previstos no termo de referência;
III – pela incompatibilidade da alternativa apresentada para o empreendimento com a UC;
IV – pelo indeferimento da solicitação.
§ 1º A autorização integra o processo de licenciamento ambiental e especificará, caso necessário, as condições técnicas que deverão ser consideradas nas licenças.
§ 2º Os estudos complementares deverão ter todo seu escopo definido uma única vez, sendo vedada, após essa oportunidade, a solicitação de novas demandas, salvo quando decorrerem das complementações solicitadas.
§ 3º A não apresentação dos estudos complementares específicos, no prazo acordado com o empreendedor para resposta, desde que não justificada, ensejará o arquivamento da solicitação de autorização.
§ 4º A contagem do prazo para manifestação do órgão responsável pela administração da UC será interrompida durante a elaboração dos estudos complementares específicos ou preparação de esclarecimentos, sendo retomada, acrescido de mais 30 dias, em relação ao prazo original, se necessário.
§ 5º Em caso de indeferimento da autorização, o empreendedor será comunicado pelo órgão ambiental licenciador e poderá requerer a revisão da decisão.
§ 6º Na hipótese do inciso III poderão ser apresentadas, pelo empreendedor, alternativas ao projeto em análise que busquem compatibilizar o empreendimento com a UC e sua ZA.
Art. 4º Caso o empreendimento de significativo impacto ambiental afete duas ou mais UCs de domínios distintos, caberá ao órgão licenciador consolidar as manifestações dos órgãos responsáveis pela administração das respectivas UCs.
Art. 5º Nos processos de licenciamento ambiental de empreendimentos não sujeitos a EIA/RIMA o órgão ambiental licenciador deverá dar ciência ao órgão responsável pela administração da UC, quando o empreendimento:
I – puder causar impacto direto em UC;
II – estiver localizado na sua ZA;
III – estiver localizado no limite de até 2 mil metros da UC, cuja ZA não tenha sido estabelecida no prazo de até 5 anos a partir da data da publicação desta Resolução. § 1º Os órgãos licenciadores deverão disponibilizar na rede mundial de computadores as informações sobre os processos de licenciamento em curso.
§ 2º Nos casos das Áreas Urbanas Consolidadas, das APAs e RPPNs, não se aplicará o disposto no inciso III.
§ 3º Nos casos de RPPN, o órgão licenciador deverá dar ciência ao órgão responsável pela sua criação e ao proprietário.
Art. 6º Os órgãos ambientais licenciadores estaduais e municipais poderão adotar normas complementares, observadas as regras gerais desta Resolução.
Art. 7º Esta Resolução se aplica às UCs criadas até a data de requerimento da licença ambiental.
Art. 8º Ficam revogadas as Resoluções Conama n° 10, de 14 de dezembro de 1988, Conama nº 11, de 3 de dezembro de 1987, Conama nº 12, de 14 de dezembro de 1988, Conama nº 13, de 6 de dezembro de 1990; bem como o inciso II, do art. 2º e §1º do art. 4º da Resolução Conama nº 347, de 10 de setembro de 2004, e o parágrafo único do art. 3º da Resolução Conama nº 378, de 19 de outubro de 2006.
Art. 9º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
IZABELLA TEIXEIRA Presidente do Conselho
ORIENTAÇÃO JURÍDICA NORMATIVA Nº 17/2010/PFE/IBAMA
TEMA: FISCALIZAÇÃO PARA A PROTEÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO FEDERAIS
Parecer nº 1751/2009/COEP, expedido no processo 02026.001450/2009-01, de lavra da Procuradora Federal MARIANA WOLFENSON COUTINHO BRANDÃO e Despacho nº 2755/2009-PFE/COEP, aprovados pela Sra. Procuradora Chefe Nacional, Dra. ANDREA VULCANIS, em 23/03/2010.
EMENTA
1. Poder de Polícia do IBAMA e do ICMBio no que tange às Unidades de Conservação instituídas pela União. Competência primária do ICMBio e supletiva do IBAMA;2. A supletividade deverá ser analisada caso a caso e sopesada quando em confronto com os princípios da prevenção e precaução;3. A competência fiscalizatória do IBAMA para a proteção das Unidades de Conservação Federais e respectivas Zonas de Amortecimento está condicionada a que a autarquia federal primariamente competente (ICMBio), por qualquer razão injustificada, deixe de atuar quando deveria. É possível ainda que o IBAMA atue em regime de cooperação com o ICMBio, desde que lhe seja solicitada tal colaboração;4. As autarquias IBAMA e ICMBio deverão exercer suas atribuições legais em estreita cooperação, sendo que toda e qualquer fiscalização a ser efetivada em favor de unidade de conservação federal deverá ocorrer, sempre que possível, mediante o conhecimento do ICMBio;5. Ocorrendo dupla autuação em face do mesmo infrator e sobre os mesmos fatos, prevalecerá o auto de infração lavrado em primeiro lugar.6. Visando evitar conflito de competência entre IBAMA e ICMBio, quando esta autarquia pretender realizar fiscalização fora das unidades de conservação e zonas de amortecimento deverá motivar seu ato baseado em circunstâncias que justifiquem a adoção da medida como forma de proteção de uma UC. A ausência de motivação poderá acarretar vício de competência por parte do ICMBio.
FUNDAMENTAÇÃO
Tratam os presentes autos de consulta formulada a esta Procuradoria, através do MEMO n.° 194/2009 – DICOF/DITEC/SC, pela Superintendência do IBAMA em Florianópolis.
À fl. 01 faz-se o seguinte questionamento: “... a fiscalização no entorno das Unidades de Conservação Federais é atribuição do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e qual o papel do IBAMA neste contexto?”.
É o relatório.
As unidades de conservação são espaços territoriais e seus respectivos recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção (art. 2°, I, da Lei 9.985/2000).
O Sistema Nacional de Unidade de Conservação é, conforme determina a Lei do SNUC, gerido pelos seguintes órgãos (art. 6°, L. 9.985/2000):
“I – Órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama, com as atribuições de acompanhar a implementação do Sistema;
II - Órgão central: o Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de coordenar o Sistema; e
III - órgãos executores: o Instituto Chico Mendes e o Ibama, em caráter supletivo, os órgãos estaduais e municipais, com a função de implementar o SNUC, subsidiar as propostas de criação e administrar as unidades de conservação federais, estaduais e municipais, nas respectivas esferas de atuação. (Redação dada pela Lei nº 11.516, 2007)” (g.n.).
Na área federal, os órgãos executores do SNUC são o Instituto Chico Mendes e, supletivamente, o IBAMA. Cabe a eles fiscalizar as unidades de conservação, na medida de suas competências.
O grande espaço de atuação do Instituto Chico Mendes é o complexo das Unidades de Conservação da Natureza criadas e mantidas pela União.
Em 2007, o Governo Federal interveio no IBAMA e retirou algumas de suas principais atribuições, repassando-as ao ICMBio, que “recebeu a missão de cuidar do patrimônio ambiental natural, especialmente das florestas (com ênfase na Floresta Amazônica), tendo como alvo principal a biodiversidade e o patrimônio genético.” (MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente, 2009).
A Lei que criou o ICMBio direcionou sua atuação para a execução das políticas traçadas para o SNUC, restringindo sua função normativa aos aspectos técnicos que o interessam (Lei 11.516/2007, art. 1°, I, II e III). O IBAMA centrou-se no licenciamento ambiental, inclusive em Unidades de Conservação, e na normatização relativa aos recursos naturais que ficaram fora da competência do ICMBio.
Poder de Polícia do IBAMA e do ICMBio no que tange às Unidades de Conservação instituídas pela União;
Poder de polícia ambiental é a atividade da Administração Pública que limita ou disciplina direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato em razão de interesse público concernente à saúde da população, à conservação dos ecossistemas, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas ou de outras atividades potencialmente poluidoras dependentes de concessão, autorização/permissão ou licença do Poder Público.
Conforme ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, o “poder de polícia age através de ordens e proibições, mas, sobretudo, por meio de normas limitadoras e sancionadoras”, “pela ordem de polícia, pelo consentimento de polícia, pela fiscalização de polícia e pela sanção de polícia.” (MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 34ªed, p. 141).
O Poder de Polícia do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade está descrito e delimitado pela Lei n.º 11.516/2007, nos seguintes termos:
“Art. 1o Fica criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de:
I - executar ações da política nacional de unidades de conservação da natureza, referentes às atribuições federais relativas à proposição, implantação, gestão, proteção, fiscalização e monitoramento das unidades de conservação instituídas pela União;
II - executar as políticas relativas ao uso sustentável dos recursos naturais renováveis e ao apoio ao extrativismo e às
populações tradicionais nas unidades de conservação de uso sustentável instituídas pela União;
III - fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e de educação ambiental;
IV - exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das unidades de conservação instituídas pela União; e
V - promover e executar, em articulação com os demais órgãos e entidades envolvidos, programas recreacionais, de uso público e de ecoturismo nas unidades de conservação, onde estas atividades sejam permitidas.
Parágrafo único. O disposto no inciso IV do caput deste artigo não exclui o exercício supletivo do poder de polícia ambiental pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA. (g.n)
(...)
Art. 5o O art. 2 o da Lei n o 7.735, de 22 de fevereiro de 1989 , passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 2o É criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de:
I - exercer o poder de polícia ambiental;
II - executar ações das políticas nacionais de meio ambiente, referentes às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental, observadas as diretrizes emanadas do Ministério do Meio Ambiente; e
III - executar as ações supletivas de competência da União, de conformidade com a legislação ambiental vigente.” (g.n.).
É possível se extrair da citada legislação que o poder de polícia ambiental será exercido primariamente pelo ICMBio e apenas supletivamente pelo IBAMA.
Ressalte-se que o ICMBio já vem exercendo seu Poder de Polícia Ambiental nas Unidades de Conservação e respectivas zonas de amortecimento. Nesse aspecto, transcrevo trecho de documento oriundo da Divisão de Fiscalização do ICMBio (fl. 50 do processo administrativo n.° 02001.004753/2007-94): “(...) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade possui, hoje, 374 (trezentos e setenta e quatro) agentes de fiscalização devidamente designados e operando nas diversas unidades de conservação e respectivas zonas de amortecimento e entorno, assim como, veículos e demais equipamentos necessários para a atividade fiscalizatória. Estão em andamento processos de capacitação de mais 120 (cento e vinte) agentes de fiscalização para esta ano de 2007 (...).” (g.n.).
Ponto de extrema relevância é a delimitação da competência do ICMBio para a proteção das Unidades de Conservação, uma vez que determinadas condutas, a despeito de não praticadas dentro de Unidades de Proteção Integral ou de Unidades de Uso Sustentável, podem afetá-las diretamente. É o caso, por exemplo, de uma indústria que emite efluentes num rio situado fora da Unidade de Conservação, mas que a jusante ingressa na área protegida.
Entende-se que a competência material atribuída ao ICMBio é ampla no que tange à proteção das Unidades de Conservação. O Instituto não pode se omitir diante de fato ocorrido fora da UC, mas que vá atingi-la direta ou indiretamente, pois que a Lei n.º 11.516/2007 não restringiu a competência deste órgão executor ao exercício da fiscalização de atos praticados dentro da Unidade, mas, ao revés, incumbiu-lhe de defender, proteger, fiscalizar e monitorar as Unidades de Conservação, seja em face de atividades nocivas internas, seja externas.
Importante ainda salientar que a competência material é comum a todos os entes federados, que devem proteger o meio ambiente independentemente da verificação da predominância do interesse. Cabe aos órgãos executores do SNUC, diante de situações de perigo concreto ou abstrato, decidir o momento de atuar.
O conceito de atuação supletiva deve ser analisado com parcimônia, uma vez que o dano não aguarda a chegada do órgão ambiental competente. Supletivo, segundo o novo Dicionário Aurélio, é o “que supre ou se destina a suprir”. Se há perigo iminente de dano a uma Unidade de Conservação, está autorizada a atuação supletiva do IBAMA, podendo-se concluir que as medidas de precaução não foram aplicadas a contento.
Diante da iminência do dano, o IBAMA não pode aguardar que o ICMBio seja chamado a atuar para, só então, diante da inércia deste, vir a agir. Raciocínio assim vai de encontro aos Princípios Constitucionais do Meio Ambiente e pode ensejar a responsabilidade civil do ente omisso. É que, ressalte-se, a responsabilidade civil por danos ambientais é objetiva e pode decorrer de atos
ilícitos e lícitos, bastando apenas que sejam comprovados os seguintes elementos: ação/omissão, nexo causal e dano.
A Constituição Federal garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, portanto, se malferido, deve ser reparado integralmente. E como se repara a extinção de uma espécie? O corte de uma árvore centenária? A secagem de um rio?
Entende-se, assim, que se estiver ao alcance do IBAMA evitar ou minimizar a degradação ambiental, mormente em se tratando de danos irreversíveis, cumpre-lhe atuar de pronto, independentemente de caracterizada a desídia do órgão ambiental originalmente competente.
Em suma, embora a omissão do ICMBio não possa ser identificada em abstrato, mas apenas no caso concreto, é possível concluir que os Princípios Constitucionais da Prevenção, em casos de danos concretos, e da Precaução, na hipótese de perigos eventuais, impõem o dever de agir para evitar qualquer lesão ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O interesse é que haja a proteção ambiental e a mitigação de danos.
Com a aplicação do princípio da prevenção é possível prever as conseqüências de se iniciar determinado ato, prosseguir com ele ou suprimi-lo. O princípio da precaução determina que o ato potencialmente poluidor não seja praticado quando não se possam mensurar as suas conseqüências, no espaço ou no tempo, para o meio ambiente. Há incerteza científica não dirimida.
Como as duas autarquias estão autorizadas a fiscalizar e reprimir condutas lesivas ao meio ambiente, na eventualidade de haver dupla autuação contra o mesmo infrator e em função da mesma conduta ilícita, prevalece o auto de infração lavrado em primeiro lugar. Se a atuação supletiva do IBAMA teve por fundamento a iminência de dano e a inércia do ICMBio, futura autuação por parte desta autarquia caracterizará a sobreposição de competências e de sanções.
A fiscalização exercida pelo ICMbio abrange o entorno das Unidades de Conservação;
Todas as Unidades de Conservação devem dispor de um Plano de Manejo (art. 27, L 9985/2000)1, elaborado no prazo de 05 anos a partir da criação da UC, cujo conteúdo deve abranger não apenas a área da Unidade de Conservação, mas também sua zona de amortecimento e seus corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas (art. 27, §1°, L 9985).
1 Plano de Manejo é o “documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade” (art. 2°, XVII da Lei 9.985/2000).
“Art. 27. As unidades de conservação devem dispor de um Plano de Manejo.
§ 1° O Plano de Manejo deve abranger a área da unidade de conservação, sua zona de amortecimento e os corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas.”
Zona de amortecimento é o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade (art. 2°, inciso XVIII).
Esclareça-se que é atribuição do ICMBio a regulamentação das referidas áreas.
“Art. 25. As unidades de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, devem possuir uma zona de amortecimento e, quando conveniente, corredores ecológicos.(Regulamento)
§ 1o O órgão responsável pela administração da unidade estabelecerá normas específicas regulamentando a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos de uma unidade de conservação.
§ 2o Os limites da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos e as respectivas normas de que trata o § 1o
poderão ser definidas no ato de criação da unidade ou posteriormente.”
A fiscalização de uma área protegida não pode estar dissociada daquela exercida no respectivo entorno, sob pena de deixar desprotegida a própria Unidade de Conservação. “É perfeitamente compreensível que as dez unidades de conservação mencionadas não possam realizar plenamente seus objetivos, se não houver uma separação gradativa entre o meio ambiente antropicamente trabalhado e o meio natural. A expressão “zona de amortecimento” é um espaço destinado a diminuir ou enfraquecer os efeitos das atividades existentes na área circundante de uma unidade de conservação” (MACHADO, Paulo Affonso Leme, Direito Ambiental Brasileiro, 2009, p. 840).
A zona de amortecimento e a respectiva unidade de conservação devem ter atividades que coexistam harmonicamente, pois o meio ambiente não se administra contra os vizinhos ou contrariamente as suas necessidades. Neste sentido, a própria Lei n.° 9.985/2000 prevê que as normas sobre a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos serão estabelecidas pelo órgão responsável pela administração da unidade (art. 49, §1°).
Também não podem ser esquecidas as Zonas Circundantes, conceito trazido pela Resolução CONAMA n° 13/90.
“Art. 2° Nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota, deverá ser obrigatoriamente licenciada pelo órgão ambiental competente.
Parágrafo único. O licenciamento a que se refere o caput deste artigo só será concedido mediante autorização do responsável pela administração da Unidade de Conservação.” (g.n.).
Então, ao impor regras a serem obedecidas no entorno de uma Unidade de Conservação, o ICMbio, autarquia federal responsável pela administração dessas áreas legalmente protegidas, deve fiscalizar-lhe o cumprimento, aplicando, quando for o caso, a sanção correspondente.
Para a proteção das unidades de conservação, cabe ao Instituto Chico Mendes o exercício do Poder de Polícia não apenas na área inserida na UC, mas também em sua zona circundante e de amortecimento, as quais figuram como imprescindíveis à consecução das finalidades das áreas protegidas.
A fim de dissipar quaisquer dúvidas, o art. 36 da Lei do SNUC impõe à entidade administradora da UC a obrigação de “autorizar” o licenciamento quando o empreendimento afetar unidade de conservação ou sua zona de amortecimento. Assim, malgrado não deter competência para conceder licença, o ICMBio também exercerá seu poder de polícia no procedimento de licenciamento ambiental, tanto sobre a Unidade de Conservação quanto em face da respectiva Zona de Amortecimento e Circundante.
“Art. 36. Nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente, com fundamento em estudo de impacto ambiental e respectivo relatório - EIA/RIMA, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral, de acordo com o disposto neste artigo e no regulamento desta Lei. (...). “§ 3o Quando o empreendimento afetar unidade de conservação específica ou sua zona de amortecimento, o licenciamento a que se refere o caput deste artigo só poderá ser concedido mediante autorização do órgão responsável por sua administração, e a unidade afetada, mesmo que não pertencente ao Grupo de Proteção Integral, deverá ser uma das beneficiárias da compensação definida neste artigo.” (g.n.).
Face às razões expostas, concluímos que a competência do IBAMA para fiscalizar Unidades de Conservação Federais e respectivas Zonas de Amortecimento e Circundante é supletiva, ou seja, está condicionada a que a autarquia federal competente (ICMBio), por qualquer razão injustificada, deixe de atuar quando deveria. A supletividade, todavia, há que ser analisada caso a caso e sopesada quando em confronto com os princípios da prevenção e da precaução.
Na dúvida, o IBAMA deve agir e posteriormente solucionar, no caso concreto, o conflito positivo de competência.