quando inovar É apelar À tradiÇÃo – a condição baiana ... · edson farias * doutor em...

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CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 54, p. 571-594, Set./Dez. 2008 571 Edson Farias * Doutor em Ciências Sociais. Professor de Sociologia do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília - UnB. Pesquisador do grupo Cultura, Memória e Desen- volvimento. Campus Universitário Darcy Ribeiro - ICC - Centro. Cep: 70.910-900 - Brasília - DF - Brasil. [email protected] Facções da ciência econômica têm enfatizado, nos últimos anos, o quanto o setor de serviços alterou – e ainda alterará – a feição das estruturas socioeconômicas contemporâneas. O seu peso es- taria no aumento da demanda e no valor agregado, com o fornecimento dos serviços no cômputo do sistema econômico. Por semelhante motivo, os ser- viços também impeliriam reorientações espaciais mais gerais no desenvolvimento de cidades e regiões (Marshall, 1995; Ughetto; Du Terre, 2000). Os comentadores destacam o quanto as metrópoles se redefinem como espaços de dinamização e consu- mo de tais serviços empresariais e profissionais, sobretudo aqueles relacionados às atividades vin- culadas a segmentos da imaterialidade, principal- mente os de tecnologias de informação e aqueles de aplicação da pesquisa científica ao conhecimen- to, além dos financeiros e do entretenimento e tu- rismo (Hall, 1997; Airoldi; Senn, 1998). QUANDO INOVAR É APELAR À TRADIÇÃO – a condição baiana frente à modernização turística Edson Farias * O objetivo deste artigo é enfocar a tônica depositada na tradição como componente de uma dinâmica sócio-histórica tramada entre distintos grupos em Salvador, mas cujo efeito definiu um modo de modernização concatenado com o cruzamento de identidades de grupos, patri- mônios imateriais e arquitetônicos, os trânsitos de imagens e o capitalismo informacional. Tal modo de modernização definiu uma experiência turística marcada pelos usos, da e na cidade, que se fazem do espaço, da memória e das expressões culturais, recursos que são decisivos e, ao mesmo tempo, revolvem um terreno de contradições sociosimbólicas que alimentam a econo- mia simbólica das cidades contemporâneas. PALAVRAS-CHAVE: inovação, tradição baiana, modernização turística, serviços. Embora concentrada no Centro-Sul, em es- pecial no eixo Rio – São Paulo, a estrutura urbano- industrial e de serviços igualmente adquire con- tornos mais nítidos em outros polos regionais do país. O estado da Bahia ocupa a primeira posição nos rastros da expansão continuada nas últimas décadas, seja dos segmentos técnico-profissionais inseridos nos business-services, seja no setor de alojamento, o qual se relaciona à expansão acentu- ada das atividades turísticas e afins (Mesquita; Cerqueira; Almeida, 2004, p. 27). Com 70% do seu produto interno oriundo do setor de serviços, a capital do estado, ainda que já ostente um razoá- vel aporte dos bussiness services, concentra a mais importante gama nos ramos culturais e turísticos (Almeida, 2004, p. 40-41). Assim, indagamos: até que ponto poderemos compreender como, ao lado do Rio de Janeiro, Salvador consagrou-se como inquestionável destino turístico e endereço brasi- leiro de cultura e de diversão? Ganhou fôlego, na última década, a evoca- ção da cultura miscigenada do povo baiano como decisivo componente da atração maior de visitan- tes nos folhetos de divulgação turística da cidade

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* Doutor em Ciências Sociais. Professor de Sociologia doPrograma de Pós-Graduação da Universidade de Brasília- UnB. Pesquisador do grupo Cultura, Memória e Desen-volvimento. Campus Universitário Darcy Ribeiro - ICC - Centro. Cep:70.910-900 - Brasília - DF - Brasil. [email protected]

Facções da ciência econômica têm enfatizado,nos últimos anos, o quanto o setor de serviçosalterou – e ainda alterará – a feição das estruturassocioeconômicas contemporâneas. O seu peso es-taria no aumento da demanda e no valor agregado,com o fornecimento dos serviços no cômputo dosistema econômico. Por semelhante motivo, os ser-viços também impeliriam reorientações espaciais maisgerais no desenvolvimento de cidades e regiões(Marshall, 1995; Ughetto; Du Terre, 2000). Oscomentadores destacam o quanto as metrópoles seredefinem como espaços de dinamização e consu-mo de tais serviços empresariais e profissionais,sobretudo aqueles relacionados às atividades vin-culadas a segmentos da imaterialidade, principal-mente os de tecnologias de informação e aquelesde aplicação da pesquisa científica ao conhecimen-to, além dos financeiros e do entretenimento e tu-rismo (Hall, 1997; Airoldi; Senn, 1998).

QUANDO INOVAR É APELAR À TRADIÇÃO –a condição baiana frente à modernização turística

Edson Farias*

O objetivo deste artigo é enfocar a tônica depositada na tradição como componente de umadinâmica sócio-histórica tramada entre distintos grupos em Salvador, mas cujo efeito definiuum modo de modernização concatenado com o cruzamento de identidades de grupos, patri-mônios imateriais e arquitetônicos, os trânsitos de imagens e o capitalismo informacional. Talmodo de modernização definiu uma experiência turística marcada pelos usos, da e na cidade,que se fazem do espaço, da memória e das expressões culturais, recursos que são decisivos e, aomesmo tempo, revolvem um terreno de contradições sociosimbólicas que alimentam a econo-mia simbólica das cidades contemporâneas.PALAVRAS-CHAVE: inovação, tradição baiana, modernização turística, serviços.

Embora concentrada no Centro-Sul, em es-pecial no eixo Rio – São Paulo, a estrutura urbano-industrial e de serviços igualmente adquire con-tornos mais nítidos em outros polos regionais dopaís. O estado da Bahia ocupa a primeira posiçãonos rastros da expansão continuada nas últimasdécadas, seja dos segmentos técnico-profissionaisinseridos nos business-services, seja no setor dealojamento, o qual se relaciona à expansão acentu-ada das atividades turísticas e afins (Mesquita;Cerqueira; Almeida, 2004, p. 27). Com 70% doseu produto interno oriundo do setor de serviços,a capital do estado, ainda que já ostente um razoá-vel aporte dos bussiness services, concentra a maisimportante gama nos ramos culturais e turísticos(Almeida, 2004, p. 40-41). Assim, indagamos: atéque ponto poderemos compreender como, ao ladodo Rio de Janeiro, Salvador consagrou-se comoinquestionável destino turístico e endereço brasi-leiro de cultura e de diversão?

Ganhou fôlego, na última década, a evoca-ção da cultura miscigenada do povo baiano comodecisivo componente da atração maior de visitan-tes nos folhetos de divulgação turística da cidade

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de Salvador. De um modo geral, as peças da publi-cidade turística assinalam a música e a religião comomanifestações da cultura regional, um patrimônioconcernente ao talento cultural e artístico local. Notrecho a seguir, recolhido de um panfleto de pu-blicidade turística, estão ressaltadas, justamente,a diversidade étnica, as decorrências dopertencimento regional e as propriedades históri-cas reunidas no sítio geopolítico baiano, comoenraizamentos capacitados a se reciclarem em meioàs injunções da vida moderna:

Na Bahia, mais do que em qualquer outro lugardo mundo, a cultura é o bem maior do seu povo,patrimônio comum a todos os cidadãos – da capi-tal, do litoral e do interior. Berço da cultura bra-sileira, aqui está um dos mais importantes polosde produção artística e cultural do país, que pre-serva, mas sabe agregar sem preconceito valoresproduzidos pelos movimentos da sociedade con-temporânea e suas inovações criativas.Mística e miscigenada, a cultura baiana é única,diferenciada de todo o contexto nacional, pelacombinação de três povos que deram origem àsua formação – o branco, o negro e o índio. Dessascontribuições, reunidas, fez sua marca e criou apersonalidade que retrata essa diversidade, tãorica quanto dialeticamente harmônica (GuiaCultural da Bahia, 1998, v. 5, t. 1).

Em razão da época em que foi elaborado eposto em circulação – a segunda metade dos anosnoventa, momento de aplicação de um plano te-naz de divulgação turística da Bahia –, o texto cha-ma a atenção porque deixa a inovação nacontrapartida do engajamento dos símbolos e prá-ticas lúdico-artísticas populares, adornados pelaaura da “cultura baiana”. Vale lembrar que publi-cidades dessa natureza evidenciam como, nas po-líticas públicas capitaneadas, em grande medida,pelo grupo carlista,1 foram executados projetos que

sintonizavam modos de vida e pautas de desen-volvimento socioeconômico pela tônica deposita-da no vínculo entre tradição e inovação. Desde adécada de 1970, em Salvador, na interface comramos da iniciativa privada, com vistas à explora-ção turística, são executados projetos para as áreasde diversão e turismo, num cenário social em quea gama de prestação de serviços atesta a importân-cia institucional do entretenimento. Isso ocorre nãoapenas na geração de lucros, mas igualmente naressignificação de memórias e mesmo do sentidode práticas nas quais se intersecionam traços degênero, classe, etnia-raça como teores étnico-histó-ricos que se tornam insumos decisivos para a eco-nomia, definida pelo comércio de informações.

Neste artigo, desenvolvemos o argumento deque a dinâmica histórica caracterizada pela mútuareferência entre tradição e inovação, na moderniza-ção turística em Salvador, entre as décadas de 1930e 1990, ocorreu na medida em que saberes e pode-res relativos, respectivamente, às elites políticas eintelectuais e também às lideranças religiosas elúdico-artísticas estiveram crescentemente eminterdependência sociofuncional. Enfocaremos amaneira como a tradição se torna um objeto nastramas sociodiscursivas que envolvem esses gru-pos e se constitui numa moldura ideológica. Por-tanto, não será abordado o plano empírico-analíti-co específico das práticas lúdico-artísticas, religio-sas, populares e negro-mestiças, mas tão-somentecomo elas são posicionadas no status de íconesbaianos. O percurso de exposição e análise estádividido em três seções. Na primeira, situamos odebate teórico a respeito da correlação entre tradi-ção e modernização nas teorizações sobre amodernidade, na teoria sociológica contemporânea,com a finalidade de especificar o problema damodernização turística. Em seguida, a atenção édirigida para os deslocamentos na concepção detradição baiana e, nela, a integração dos elementosda cultura popular local. Finalmente, atenta-se paraas condições de possibilidades sócio-históricas dorecurso discursivo voltado para a narrativa da tra-

1 Hegemônico no estado da Bahia, entre os anos de 1990e 2005, o grupo teve em Antônio Carlos Magalhães onúcleo de alianças que introduziram em novas condi-ções facções das elites oligárquicas do Nordeste no cernedos setores de comando político-institucional do Esta-do nacional, sobretudo após o advento da Nova Repúbli-ca, com a fundação do Partido da Frente Liberal, em meioao contexto da redemocratização do país. Desde a fasedos governos militares, adaptou-se o perfil tecnocráticoassumido pelas instâncias estatais de poder às soluçõesde pressões na nomeação para cargos estratégicos denomes integrados ao escopo dos seus escolhidos ou coma montagem de uma grande bancada legislativa dotadade amplas bases eleitorais municipais e estaduais, po-rém com repercussões decisivas nas esferas federais. Basecontrolada mediante instrumentos de represamento edistribuição de recursos capazes de tornar possível a elei-

ção ou não de candidatos ao executivo e ao legislativo(Dantas, 2006).

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dição baiana (com os apregoados dotes culturais eartísticos de sua gente), na implementação de pro-jetos de desenvolvimento do comércio cultural ede diversão, principalmente no tocante aos servi-ços turísticos. A ênfase recai no tipo de aliançaestabelecida entre poder público, facções de inte-lectuais e setores da cultura popular.

QUAL TRADIÇÃO? QUAL MODERNIZAÇÃO?

Se tomarmos a globalização à maneira de umagrande narrativa, cujo relato tem por objeto os mo-vimentos e situações que compõem o entrelaço dosfluxos de capitais com redes de produção e comu-nicação, os quais incluem também, em seus mean-dros, as tramas dos crimes e das instituições inter-nacionais, dos aparatos militares supranacionais edas organizações não-governamentais, além dasreligiões transnacionais e dos movimentos de opi-nião pública (Castells, 1999, p. 353), o que temsido recorrente, em alguns dos intérpretes domundo contemporâneo, é a ênfase na sintonia hojeestabelecida entre uma extraterritorial sincroniza-ção global e as cada vez mais evocadas aliançasfundadas no pertencimento e na auto-imagem debase local-afetiva. Para Zigmunt Bauman, a pujan-ça adquirida pelo paradigma da velocidade jogaum papel decisivo nessa cena atual, já que, diantedela, a dissolução e a flexibilidade se impõem comocritérios incontornáveis a pessoas, grupos e enti-dades. Em meio ao turbilhão do fremente trânsitode tecnologias, gente e idéias, teriam ido à ruína asreferências mais duradouras. Afinal, no “admirá-vel mundo novo das oportunidades fugazes e dasseguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo,rígidas e inegociáveis simplesmente não funcio-nam” (Bauman, 2005, p. 33). A diluição da tradi-ção seria uma das conseqüências imediatas do es-tágio líquido da modernidade,2 caso se comparti-

lhe ainda o argumento de Bauman. Na condiçãode um horizonte interpretativo, fundado naexemplaridade do passado, pelo qual se dá a tradu-ção daquilo que é contingente pelo estável, a tradi-ção soçobraria arrastada pelos fatores de desencai-xes espaciais e temporais, para os quais o apelo aoligeiro é o sinal de impaciência diante de toda equalquer estável profundidade social e existencial.

A nosso ver, tal conclusão parece igualmen-te apressada, na medida em que não considerajustamente como os conceitos, se os tivermos comofigurações, estão inseridos nas propriedades dasinterdependências nos seus contingenciamentoshistóricos. Argumentamos, então, estar o signifi-cado da tradição em consonância com o arranjo ea correlação de forças sócio-humanas que o reivin-diquem ou descartem. A esse respeito, mostram-sesugestivas as situações destacadas pela rubrica doturismo. Isso porque parece, ao estar sintonizadoaos trânsitos planetários, o complexo de atividadesturísticas é evocado como um dos ícones daglobalidade. Diz respeito a uma das faces decisivasda característica atual da economia-mundo capita-lista, a de priorizar a diversidade no implementoda sua expansão e remuneração, justamente por-que estreita vínculos com elementos inseridos noscatálogos de bens intangíveis, identificados comtradicionalidades regionais ou nacionais, muitosdos quais dotados de aportes étnicos, a exemplode sítios do patrimônio histórico. Atentos a talconluio, Urry e Lash postulam ser o turismorevelador de um outro padrão de cidadania nota-bilizado pelo “cosmopolitismo estético”. Ou seja,a experiência dos indivíduos ambientados nosnichos móveis do mundo moderno seria a de pes-soas dotadas de recursos culturais e sensoriais paraavaliar a diversidade dos seus atos e dos lugares

2 A concepção de “modernidade líquida” em Bauman(2001) se funda na premissa de um estágio do processomoderno erguido à sombra dos escombros resultantesdo prurido moderno de a tudo destilar, período em quese teria coletivizado o que fosse monitorado pelos dispo-sitivos de controle de pureza acionados pelo Estado emconjunto com a ciência. Viveríamos, ao contrário, em

uma época na qual teria ganhado vulto a desconfiançageneralizada para com a justificativa do código de éticamoderno do “impulso para adiante”, assentado na pro-messa da regulação sem contenção e no primado da trans-parência total. Nessa tocada, entende o autor, a lúbricaatmosfera do interesse pela diversidade se propagou,numa valoração ávida da “desordem” do mundo. A nos-talgia para com a segurança se fez crescentemente maisum estilo ao sabor das ondas sucessivas efêmeras dehomens e mulheres bem acomodados à “infixidez desua situação, suficientemente atrativa para prevalecersobre a aflição da incerteza.”

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nos quais se põem a circular e a conhecer (Lash;Urry, 1994, p. 266). Fica-nos a dúvida: de que tra-dição e de que cosmopolitismo estamos tratando?

Parece-nos incontornável estabelecer um qua-dro sumário acerca da discussão sobre a tradição nateorização sociológica atual e, com isso, precisar aqualificação teórico-analítica que faremos do materialempírico tratado na segunda parte deste artigo. Deli-mitarei o debate recorrendo à polarização tradicionalversus moderno e, a respeito, priorizo a formulaçãode Giddens sobre o contexto de uma sociedade pós-tradicional no estágio da modernização reflexiva. Aopção atende ao objetivo de verificar como tradição einovação são, a princípio, dispostas em terrenos se-mânticos e ideológicos opostos.

O implemento da modernidade introduz,para Giddens, uma substituição decisiva no temado controle do tempo. Para ele, a tradiçãocorresponderia a um controle do tempo mediantea combinação entre conteúdo moral e emocionalna organização da memória coletiva, isto é, no modoativo e interpretativo como, ritualmente, o contro-le coletivo pressiona os indivíduos no recolhimentoe reciclagem das lembranças. Os guardiões da tra-dição estariam investidos, portanto, da tarefa decontrole, ao estarem entronados na autoridade ga-rantida por normas enraizadas na repetição de umoriginário passado exemplar. Oposta a esse proce-dimento, afirma o autor, na modernidade, acompulsão se faz sem o respaldo de tal horizontefixo, assentado no domínio dos deuses, e a rotinatende a se esvaziar caso não intervenham fórmu-las institucionais de reflexividade. Enfim, susten-ta ele que, nos contextos pós-tradicionais, as ativi-dades cotidianas se encontram abertas às escolhase decisões humanas, que podem influenciar re-flexivamente aquilo que lhe diz respeito. Tambémo meio natural é transfigurado pela intervençãohumana no compasso da intensa socialização. Deacordo com o entendimento do autor, esse proces-so produz o deslocamento da segurança ontológica(tácita no contexto tradicional) para o centro doproblema existencial e histórico na modernidade.E isso decorre de um encadeamento que se mani-festaria no caráter descentralizado no trato com o

conhecimento, pela sua desincorporação e pelapossibilidade de sua correção, mas também emrazão da tradução do acúmulo do conhecimentoem especializações. O que, conclui, resultaria ins-tauração da confiança em sistemas abstratos nãogerados por meio de sabedoria esotérica, e sim pelainteração da especialização com a reflexividadeinstitucional.

Durante a hegemonia do Ocidente, lembraainda Giddens, a ciência se fixou como fontemonolítica de verdade, mas suas consequênciasnão programadas acirraram a especialização em dis-tintos domínios de experts, em concordância como aumento exponencial da reflexividade. E, se acompetência técnica do especialista está encerradano seu âmbito de atuação, força-se a promoção deestilos de vida e meios de confiança calcados emsistemas abstratos que relacionam “outros ausen-tes”, mediante a triagem de informações. Não restadúvida de que esse contexto surgiu sobre a esteiradas unificações implementadas tanto pelo Estado-nação quanto pelo capitalismo. Mas, segundo oautor, ela é marcada pelos processos concomitantesda globalização e da busca de contextos de açãomais tradicionais. A fase da “modernização refle-xiva” alteraria o equilíbrio entre tradição emodernidade. Impõe-se o predomínio da “ausên-cia” sobre a “presença”, e a “intimidade” se tornao palco das descentralizações e interrogaçõescruciais. A saber, a destradicionalização se propa-ga e introduz o lugar da tradição em um universocompetitivo de valores plurais. O problema posto,desde então, é aquele do desengate promovido pelaextensão planetária desse complexo. Alternativasà situação instaurada se apresentariam seja nosenraizamentos na tradição, seja no alheamentohostil do “outro”. Igualmente se poderia tenderpara o discurso ou o diálogo ou, em oposição si-métrica, voltar-se à coerção e à violência (Giddens,2001, p. 21-97).

A par desses argumentos, as consequênciasda difusão global das instituições da modernidadeseriam os cada vez maiores impactos dos proces-sos de mudança intencionada no cotidiano do pla-neta afora, em consonância com a extensão sem

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precedentes das interdependências. SegundoGiddens, algo assim altera por completo a tendên-cia, prevalecente até então na história damodernidade, de restituir a tradição no instantemesmo em que a esvaziava. Nesse sentido, o au-mento generalizado da condição moderna imporiaao juízo a vicissitude do aumento do conhecimen-to, isto é, o risco se tornaria fonte de incerteza e, aomesmo tempo, um meio para manter o futuro so-bre controle. Com isso, a reflexividade estender-se-ia pela experiência pessoal, mas também inva-diria as dinâmicas institucionais, armando-se umcenário em que a experimentalidade baniria de vezo “prometeismo” do progresso, contido nateleologia definida pela devolução da existênciahumana a um patamar pleno de segurança. Ao sera introdução do novo, como abertura do presentepara o futuro, o exercício de inovar se tornaria umfator básico na geração de saídas pessoais einstitucionais para a recriação existencial esistêmico-institucional nessas condições.

Para os objetivos deste artigo, é de todo inte-resse a proposição defendida por Giddens sobre ainserção do lugar da tradição nas disputas entre asdiversas possibilidades discursivo-interpretativas,em uma espécie de mercado do sentido global.Valiosos ingredientes explicativos e interpretativossão fornecidos para a observação de como os prin-cípios e meios de orientação das condutas se ajus-tam ou não ao tipo em vigência de seleção e sin-cronização dos elementos padronizados como pro-priedades de um sistema social. Ao mesmo tem-po, são deixadas importantes pistas para a refle-xão sobre como podem ser ajustadas inovação etradição. Contudo são negligenciados dois aspec-tos no argumento do autor, os quais ocupam pa-péis centrais na análise aqui desenvolvida. De umlado, do ponto de vista ontológico e estrutural,passa ao largo a indagação se é a polaridade tradi-cional versus moderno imanente à espinha dorsaldo discurso da modernidade, logo, constituindoum dos seus pilares de sustentação. Já, de outro,mas angulado a partir da possibilidade de averi-guação histórico-empírica das relações, processose estruturas sociais, desconsidera-se a possibili-

dade de a tradição compor o ritmo mesmo da ca-deia de inovação, própria à programaçãomodernizadora, tanto como categoria a priori doentendimento, quanto como modo interpessoal decomunicação, a depender das características emque essa última se desenrola. Com o intuito depavimentar o caminho da correlação entre turismoe espaço sócio-urbano em Salvador, façamos umasumária visita às duas alternativas.

Inicialmente, tomamos por base algumas daslinhas sobre o discurso filosófico da modernidade,em Habermas. Para esse autor, a atitude reflexivaperante o costume consistiria no caráter inovadorpor excelência da modernidade. Quer dizer, amodernidade corresponde ao procedimento peloqual a autoridade do passado, inscrita nas categori-as do entendimento, mobilizadas na avaliação daseqüência dos eventos e dos limites da experiência,é levada ao lugar do pensado e se torna alvo dasinterlocuções. Isso no instante mesmo das tomadasde decisão frente ao desenrolar incessante dos acon-tecimentos. Quer dizer, no momento em que osuniversos de significados são mobilizados nas prá-ticas dialógico-argumentativas, a partir dos domíni-os institucionais da memória, reguladores dos flu-xos das lembranças e dos esquecimentos. As situa-ções de crise informadas pela memória tornam-se,então, fatores não apenas de prosseguimento, maso seu aprendizado implica também a autocorreçãoou alteração drástica no curso das condutas.

Indo um pouco mais amiúde na trama dagenealogia do significado filosófico do moderno,realizada por Habermas, na atmosfera aspirada naEuropa Norte-Ocidental do século XVIII, o autornos mostra como prevalece, naquele contexto, a dis-tinção entre os “tempos modernos” e o conceito cris-tão de “novos tempos”. Se esse último descreve umtempo ainda por ser instaurado, a idéia de temposmodernos tem, na sua natureza secular profana, acerteza quanto ao já iniciado futuro. Ou seja, omoderno consistiria na abertura mesma para o novoe, portanto, corresponderia a uma cisão de épocacuja radicalidade rompe com a modelação (o passa-do, a tradição) e se reconhece como o novo tempoou o tempo do novo. Desse modo, incorporada à

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filosofia na obra de Hegel – A Fenomenologia doEspírito –, a noção de “espírito do tempo” (Zeigeist)retém uma tensão estrutural-ontológica no percur-so auto-configurativo do espírito. Assim, os “novostempos” são dotados, ou melhor, constituem-se naconsciência do aceleramento do ritmo do própriotempo e possuem a consciência da mudança em queo futuro não mais é reduzido à mera projeção dopassado, porque se trata de algo heterogêneo, atémesmo hostil a esse último. A tensão traduz oenfrentamento entre a plenitude do existente e a sus-peita oriunda da indeterminidade do desconhecido.

A julgar pelo sumário dessa descrição, emsua radical advertência de separação e oposiçãodiante dos parâmetros fornecidos pelo passado, oenunciado do moderno introduz, ao mesmo tem-po, a complementaridade e a contradição com oantigo, tanto como plataforma de sustentação dodiscurso acerca da primazia do novo, como tam-bém na condição de termo de mediação dispostona composição seja da idéia de moderno, seja nade tradição. Em síntese, a modernidade como prin-cípio procedimental orientado para a avaliaçãocontínua dos consensos cristalizados como fun-damentos das atitudes humanas, se implementana constância da apresentação de um passado aoqual deve se opor. O imperativo de tal critério in-sere, incontornavelmente, os eixos tradicional emoderno como pólos indissociáveis damodernidade, que se realiza na cumplicidadeontológica do ser com o devir, pois identidade emudança intencionada formam, respectivamente,as bases do concerto entre as lógicas culturalista edesenvolvimentistas (capitalismo e industrialismo),mesmo quando ambas se opõem entre si, na histó-ria da condição moderna. Por lógica culturalistadenominamos a coordenação da compreensão so-cial cujo ideário em pauta é o reconhecimento dadignidade da estima humana, sobretudo os valo-res que balizam a consciência dos indivíduos e,portanto, concorrem para a sedimentação de sig-nificados intersubjetivamente tecidos e transmiti-dos intergeracionalmente. Ao falar em lógicadesenvolvimentista, a princípio, faz-se referência àscoordenadas com efeitos sobre a compreensão soci-

al, comprometidas com o ideário do aperfeiçoamentotécnico-moral permanente, mediante a crença nafaculdade cognitivo-instrumental de mobilizar mei-os no implemento do acúmulo de conhecimentosque se convertem em transformações qualitativasnos ambientes e nas percepções humanas.

Desse ponto de vista, torna-se interessanteacompanhar o assinalado intercruzamento entre tra-dição e inovação – considerando o quanto um eoutro, respectivamente, são representativos de cadauma dessas lógicas. O nosso argumento é de que osprocessos sintetizados na categoria de moderniza-ção turística são particularmente exemplares a res-peito. Em linhas gerais, a noção de modernizaçãoconsiste no desenvolvimento da tendência da civi-lização moderna de acelerar intencionalmente o rit-mo dos acontecimentos; civilização na qual o eixode sucessão dos acontecimentos inscritos nas re-des de interações humanas e seu relacionamentocom o entorno tem por motor a crença tanto naotimização máxima dos recursos simbólicos e mate-riais quanto no aperfeiçoamento permanente comofórmulas para a edificação do tempo da prosperida-de. E tal incremento faz dueto com o relevo postono desvelamento da naturalidade das contingênci-as e, também, com a ascensão das reivindicaçõespor auto-realização como finalidade da elaboraçãode projetos individuais de mudança das condiçõese dos estilos de vida. Nesse sentido, parece ser ade-quado detectar como o ímpeto decorrente da neces-sidade de oferecer suporte material à sensibilidadedevotada à mutação permanente está nacontrapartida do vertiginoso implemento das redese dos meios de transportes e de comunicação e ex-pressão, considerando, ainda, que ambos se inse-rem como instrumentos para a dissolução do isola-mento como mecanismo de construção dos hori-zontes sociosimbólicos (Leed, 1989; Sack, 1992).

Podemos, assim, chamar a atenção para o fatode que, para a idéia de modernização turística con-corre o leque de fatores práticos e institucionais,acoplado a essa dinâmica sociocivilizatória damodernidade, em que se ajustam evocação da mu-dança e apelo ao bem-estar individual. Logo, é fun-damental qualificar a modernização. Parece-nos ra-

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zoável propor que a modernização turística sintetizainterdependências sociofuncionais alargadas (nasdimensões socioeconômica, política, simbólica e cul-tural, mesmo afetiva), nas quais vicejam hierarquiase controles concatenados simultaneamente ao movi-mento do capital e à racionalização sociocultural (San-tos, 1994, p. 31-34). Ao mesmo tempo, essa teia só-cio-humana também existe no teor multifacetado deagentes, fatores e realidades que marca o formato e ocompasso da processualidade modernizadora turís-tica. Desse modo, a polaridade composta pelas no-ções “próximo” e “distante” desliza para outro planoconceitual e torna pusilânime o postulado de ummovimento tão-somente homogeneizador ou, ao con-trário, de pura constatação quanto à proliferação dediferenças, num mosaico planetário. Embora digarespeito à sistematização institucional orientada peloprincípio da mudança intencionada dos móveis epatrimônios étnico-históricos e geográficos de umalocalidade, talvez o mais adequado seja considerar atrajetória de formatação dos lugares de entretenimen-to e turismo sob a ótica do entrecruzamento de mo-dalidades de aprendizado, educação dos afetos, de-pendências mútuas e interpenetrações funcionais,não restrita à ação de sistemas colonizadores sobre omundo-da-vida dos lugares balizadores, mediante osfundos coletivos de conhecimento das experiênciasprimeiras dos agentes, desterritorializando práticas esímbolos. Entende-se que tal processo modernizadoré convergente com os elos forjados nas negociaçõesentre as singularidades históricas e culturais dos es-paços locais e os critérios dos sistemas de peritos,num encaixe de dimensões territoriais indefinidas,proporcionando o incremento de esferasespecializadas na produção cultural do espaço doentretenimento-turismo, com suas paisagens e os ti-pos de uso possíveis em seu raio de alcance.

A “CULTURA DO POVO” E O DESENVOLVI-MENTO TURÍSTICO NA BAHIA

Se o problema teórico aqui enfocado com-preende a confluência entre as lógicas culturalistae desenvolvimentista da modernidade na ambiência

do entretenimento-turismo, a cidade de Salvadorfornece insumos decisivos à análise e à interpreta-ção, privilegiados em razão do lugar reservado aosmodos e meios de vida rubricados como tradicio-nais nas cadeias de produção e consumo de bensde diversão e lazer. Portanto, o tratamento analíti-co de alguns materiais empíricos relativos à expe-riência histórica da Bahia no século XX respondeà meta de observar em que medida a noção demodernização turística corresponde a um proces-so de reavaliação dos limites, em razão da acelera-ção dos trânsitos em escala planetária. Nesta se-ção, iremos nos voltar para o ajuste entre práticaslúdico-artísticas e religiosas e modernização turís-tica, mas dando atenção às tramas sociodiscursivasem que a idéia de tradição baiana se insere comocategoria de pensamento e representação coletiva,em especial por se tratar de um meio de comunica-ção interpessoal, no arranjo social em que, no an-damento histórico, o comércio de signos e espa-ços salta à frente na coordenação das relações soci-ais em determinadas condições sócio-históricas.

Para os interesses deste artigo, optou-se peloesquema de análise configuracional dasinterdependências sociofuncionais como dinâmi-cas de pressões mútuas entre as pessoas (Elias,2001, p. 111-112), na medida em que se priorizamos movimentos pelos quais o turismo é destacadocomo alternativa de desenvolvimento para a re-gião, nas propriedades negociadas e na próprianatureza dessas negociações. Sabe-se que essasúltimas envolvem produtores e intermediáriosculturais, administradores, elites políticas e seg-mentos empresariais em torno do enlace informa-ção e identidade, economia e cultura, dinheiro ereconhecimento. Sob esse ponto de vista analíti-co, retomamos um argumento desenvolvido emoutra oportunidade (Farias, 2007).3 Nele, propo-

3 Os materiais empíricos aqui mobilizados decorrem dasrespectivas pesquisas A Invenção da Bahia como Tradi-ção na Modernização Baiana (2001-2003) e a Monta-gem da Sistemática de Órgãos de Cultura no Estado daBahia (2004-2005). Agradeço, em especial, aos estudan-tes Fernando Rodrigues, Rosevel Silva e Tiago Lourenzo,bolsistas do Programa PIBIC/UFBa-CNPq, pela colabora-ção valiosa no levantamento das fontes. Ambos os es-tudos compuseram o escopo do programa de pesquisa“Ressignificações de Domínios de Memórias em Con-textos de Modernização”, implementado entre 2001 e

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mos que o avatar da narrativa sobre a tradiçãobaiana esteve em consonância com as vicissitudesexperimentadas pelo leque de grupos dominantesregionais, no momento em que o processo de cen-tralização estatal nacional os colocou em posiçãoinferiorizada nas linhas de comando concentradasno centro-sul do país, desde o terço final do sécu-lo XIX. Mas a tradição estará, na sua ascendênciacomo auto-imagem regional, na contrapartida doincremento da referência simbólica recíproca entrecamadas dominantes e subalternas. Isso por for-necer meio de expressão ao sentimento depertencimento coletivo que se introduz tambémcomo propriedade estrutural das práticas de ou-tros grupos, algo capaz de subsidiar novas táticasrealizadas por agentes com menor acúmulo de ca-pital social. Agentes que assim poderão se apro-priar dos resultados da estratégia de distinção decamadas dominantes em acentuar a transigênciacomo valor ancestral, mas circunstanciados porsuas posições e condições de classe. Daí seguem-se duas tendências. De um lado, as facções domi-nantes aplicam esforços – calcados no recurso dodiscurso sobre a antecedência da Bahia na forma-ção dos valores nacionais –, visando a integrarem-se nos pólos decisórios da República. De outro, aconsequência não programada de tal aplicação con-siste na exigência de estender suas bases de legiti-midade, o que transportou práticas, símbolos einstituições dos segmentos populares para as ins-tâncias conspícuas da representação regional. Cadavez mais, eles são referidos como elementos cons-tituintes da chamada “Bahia tradicional”, núcleoda “mística brasilidade lúdica”.

Ao mesmo tempo, impõe-se definir umaperiodicidade para realizar a sociogênese pela qualpretendemos descrever e qualificar asinterdependências sociofuncionais em que se rea-lizou tal convergência sócio-histórica.4 No levanta-

mento documental realizado, os achados de pes-quisa permitiram concluir, sobre a década de 1930,como aquela em que ocorreu a institucionalizaçãoda intervenção regulatória do Estado na economia,obedecendo a uma tendência de ampliação da pre-sença desse ordenamento no conjunto da socieda-de. Então, na contrapartida do desenrolar de alte-rações voltadas à “racionalização do serviço públi-co” estadual, em sintonia com processo afim naesfera federal, sob égide do governo Vargas(Lamounier, 1992, p. 41-42), ocorreram iniciativasgovernamentais cujo objeto era o desenvolvimen-to de estudos preliminares dos serviços adminis-trativos existentes nas secretarias de governo e naelaboração de um plano de reorganização geral dosserviços da Secretaria de Fazenda e Tesouro, alémdas demais secretarias. O que mais nos interessa éque, igualmente, essa foi a ocasião das primeirasindicações de incentivos à cultura artística e aoturismo. No que toca ao último aspecto, é oportu-no observar o Relatório das Atividades da Admi-nistração Pública no biênio 1938-1939, apresenta-do pelo Interventor Landulpho Alves, pois nelelemos o seguinte:

As condições que a Bahia oferece para o grandeturismo, já pelo seu clima excepcional, já pelavariedade sem par de suas paisagens, pela rique-za de suas antiguidades, desde as arquitetônicas,às ligadas aos usos, costumes tradicionais, estãoa indicar a alta importância que assumirá, emfuturo remoto, o turismo no Estado.Cumpre, para isto, aparelhar-se a Capital com ohotel e o restaurante modernos, com o “cassino”,com os centros de diversões, com os meios detransportes adequados.Na falta de recursos para atender a todos essesfatores simultaneamente tem, entretanto, o Go-verno encaminhado a solução de alguns deles,tais como o aparelhamento para restaurante, o“cassino”, o melhoramento das estações balneá-rios, o auxílio ao Touring Club do Brasil.5

Já nesse documento, fotos e textos-legendasdestacam os “aspectos turísticos da Bahia”, situa-dos em Salvador, à maneira do Claustro, do Cam-panário e da Sacristia da Igreja do Carmo; o interi-or da Catedral de São Francisco; o restaurante Lido.Ainda, outras fotos e textos ressaltam estaçõeshidrominerais (Itaparica e Cipó), sublinhando a5 Fonte: Imprensa Oficial, 1941.

2004, no grupo pesquisa sobre Cultura, Memória e De-senvolvimento, o qual estava, na ocasião, vinculado aoprograma de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Uni-versidade Federal da Bahia.

4 Realizado no Arquivo Público do Estado da Bahia – duran-te os anos de 2001 e 2006 –, o levantamento abrangeu operíodo de 1910 a 2006, concentrando-se nos os jornais demaior periodicidade nesse intervalo: Impressa Oficial, ATarde, Diário de Notícias, Correio da Bahia e o Imparcial.

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importância da estrada então sendo construída, queligava a cidade de Cipó à de Paulo Afonso, que,afinal, poria a capital estadual “em contato diretocom a grande cachoeira” e ela seria de “grande in-teresse para o turista nacional, como para o estran-geiro, que terão no percurso de 7 a 8 horas derodovia a vencer entre os dois extremos, a EstaçãoHidro-Mineral de Cipó, onde encontrarão condi-ção de repouso e conforto que, certo, não dispen-sarão”. O mesmo Interventor não deixa, porém,de enfatizar o quanto o apoio do governo federalse fazia necessário para sanar o problema de inten-sificação da obra, pois

certo como é que, resolvido, poder-se-á ter neleuma grande fonte de renda ao lado de apreciávelmeio de propaganda do Brasil no estrangeiro,sobre ser igualmente, um modo de fazer comque a Bahia seja mais conhecida dos filhos deoutros Estados no pensamento do Brasil conhe-cer a si mesmo.6

Não há qualquer dúvida a respeito daincipiência seja do interesse governamental emrelação ao turismo, seja dos seus esforços noordenamento em direção ao setor cultural. O quemais importa é notar, porém, o despontar datessitura discursiva interna ao Estado, a qual deli-neara ambos como objetos a merecerem atenção.No decorrer da década seguinte, novas iniciativasse sucederam nessa direção, a exemplo da criaçãoda Inspetoria de Museus e Monumentos, internaà proposta de montar um “sistema de órgãos cul-turais” (abrangendo bibliotecas públicas, teatros eoutros equipamentos), o qual naquela ocasião de-veria estar diretamente concatenado ao desenvol-vimento do sistema escolar público no Estado. Maisainda: na mensagem do então governador OctávioMangabeira, identificava-se as fragilidades a seremdebeladas no sentido de tornar Salvador capaz demaximizar seus dotes turísticos, e as alternativasestavam relacionadas à implantação de equipamen-tos e serviços artísticos, culturais e de lazer:

A cidade do Salvador, tão digna, por todos os títu-los, de que tenhamos por ela maiores extremos,é de fato uma cidade que, pelos seus encantos

naturais, e outros predicados que a distinguem,pode e deve tornar-se agradável para os que nelahabitam, e, com vantagem, adaptar-se ao turis-mo, nacional e internacional.Para tanto, porém, é indispensável que seja dota-da de elementos, por assim dizer, de instalação,sem os quais o desconforto exclui o bem-estar, eserá talvez impróprio, ou até contraproducente,que se desenvolva em seu favor a propagandaturística, de que muitos lugares do mundo tiramgrande partido.Uma cidade com serviços deficientes, para nãodizer lastimáveis, de iluminação, de abasteci-mento de água e em geral de saúde pública, eigualmente de assistência; uma cidade mal tra-tada, na limpeza, no calçamento das ruas, namanutenção dos jardins, e onde o acesso a pontospitorescos se apresente, não raro, difícil, quandonão mesmo impossível, ou pelo menos, incômo-do; desprovida de hotéis, restaurantes, bares oucafés, cinema, teatro – não basta que tenha bela anatureza, templos, antiguidades, tradições, paraque proporcione aos seus moradores, sobretudoaos seus visitantes, porventura habituados ao con-forto da vida moderna, o agrado, os atrativos, quea façam realmente sedutora, como convém, prin-cipalmente ao turismo.7

A aproximação entre a implantação de umsistema de órgãos culturais e a otimização da voca-ção turística da capital deixa entrever a aliança que,aos poucos, será estabelecida entre ambos, comoque definindo um eixo sobre o qual a execução deprojetos no setor cultural teria por contrapartidaindireta o incremento nas atividades turísticas. Nes-ses rastros, no governo de Octávio Mangabeira, sãodesapropriados terrenos em torno da célebre Praçado Campo Grande – cenário da reverência à luta daindependência estadual –, tanto para erguer o Tea-tro Castro Alves quanto para instalar o Hotel daBahia. Por outro lado, a conjugação de um e outroplano estão, naquele instante, inscritos nos esfor-ços de destacar a cidade “que se preza de ter sidoberço da nação”.8 Dava-se, desse modo, a paulatinatriangulação entre turismo, cultura e ordenamentopúblico estatal, sendo o último uma espécie deguardião e promotor dos recursos artísticos, cultu-rais, históricos e arquitetônicos do Estado, os quaispoderiam ser realçados como fatores de atratividadede visitantes nacionais e internacionais.

Apenas na década de sessenta, no entanto,

7 Fonte: Relatório de Atividades do Governo OctávioMangabeira, 07/11/1948.

8 Fonte: Fala do governador Octávio Mangabeira, 10/06/1949, p. 25.6 Fonte: Op.cit., p. 13.

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os enunciados inerentes ao ordenamento estatalqualificam de “baiana” a cultura tornada alvo dointeresse do poder público. Sobretudo, encontra-mos a primeira referência às “tradições” da culturada Bahia em 1963, no escopo do relato que sinteti-za o governo Juracy Magalhães. O trecho a seguiré notável pela tônica posta no que seria peculiar àsingularidade local-regional (ou seja, os ditos “va-lores baianos”), dispondo-se a última como fatorde classificação, acomodação e reconhecimento depeças e manifestações inerentes ao “ser da Bahia”:

Procurei ser fiel, de outra parte, às tradições decultura da Bahia. Desse modo, esteve presente oGoverno em todos os movimentos de finalidadecultural que se verificaram entre nós; prestigieios artistas bahianos, criei o Museu de Arte Mo-derna da Bahia, a quem doei, após a sua restau-ração, o Solar Garcia d´Ávila, na entrada da ave-nida de Contorno – hoje Lafayete Coutinho –Museu que se tornou instrumento precioso dointercâmbio cultural e artístico da Bahia; dina-mizei o Arquivo Público, como o Museu do Esta-do, onde têm sido realizados cursos e feitas pu-blicações merecedoras de destaque, entregues,um como o outro, a valores bahianos estranhos àvida partidária; foi criado o Conselho doPatrimônio Histórico e Artístico da Bahia (...).

No mesmo documento, à maneira da atitu-de dos seus antecessores imediatos, também o go-vernador Juracy Magalhães deixa o tema do turis-mo contíguo ao panorama cultural. Nessa ocasião,no entanto, ele lamenta as consequências nocivasda negligência por parte do poder legislativo aospropósitos de incrementar das atividades turísti-cas. Embora evidencie seu desapontamento, o en-tão chefe do executivo estadual faz questão demencionar o interesse alargado mundo a fora pela“vida baiana”, incluindo aí, pela primeira vez, a“sensibilidade da nossa gente”:

Pena é que a Assembléia não tenha aquiescidona criação do Serviço de Turismo do Estado, quelhe propus e que nos permitirá, à Bahia, a utili-zação do seu grande patrimônio cultural, artísti-co, folclórico, em termos de coisa organizada; ointeresse pela vida baiana foi tal, entretanto, querecebeu o Governo, nestes quatro anos, a visitade figuras as mais expressivas dos meios políti-cos, financeiros e culturais do País, bem comoestrangeiros ilustres, entre eles o Príncipe Phillipeda Inglaterra, o Rei Leopoldo da Bélgica e vinte eseis embaixadores. Tive a honra durante o meugoverno de ver realizados na Bahia os “ColóquiosLuso-Brasileiros” e a reunião do “Conselho Mun-

dial de Tensões”, conclaves que possibilitaram aexpressões culturais e políticas de outros conti-nentes o conhecimento de nossa terra e da sensi-bilidade da nossa gente.9

Num movimento mesmo que implica umaespécie de “descoberta do povo” por trás dos pa-trimônios culturais, a sentença a respeito da “sen-sibilidade da nossa gente” parece tornar cúmpli-ces as expressões populares do ideário acerca dos“valores baianos”, ideário que, por sua vez, seria onúcleo das “tradições da cultura da Bahia”. E elajá se situa como o bem raro elementar e decisivoem torno do qual deveria orbitar o sistema turísti-co local-regional. Arriscaríamos propor que, àque-la altura, a figura de uma auto-imagem coletiva daBahia já estava posta em suas linhas gerais, e osenunciados dispostos no discurso governamentalo atualizam, ao tempo que persevera a autoridadedo Estado em atuar sobre tal objeto. A figura dopovo (com sua sensibilidade lúdico-artística e reli-giosa) está escudada no a priori da tradição, comoforma de narrativa e compreensão social, delimi-tando uma moldura ideológica de integração decomponentes materiais e simbólicos e prescreven-do os critérios de inserção de cada uma das partesà totalidade, assim definida pelo imperativo do“berço da nação”.

Contudo se faz necessário observar a ma-neira como a figura do ente povo se insere comoconteúdo dessa moldura ideológica, a qual se tor-nará elemento decisivo bem potencializado nosprojetos de modernização turística na Bahia. Umavez mais retornamos à década de 1930, já que, emtal período, também a ressemantização da idéia detradição parece ter por anverso o acento maior notema do povo da Bahia, deslocando os aspectosarquitetônicos para a posição de cenário das mani-festações desse ente mítico étnico-político.10 Eviden-

9 Fonte: Fala do governador Juracy Magalhães, 20/11/1963,p. 24-25.

10 Tomamos aqui de empréstimo a idéia de Cassirer (2003)de perscrutar as conexões entre mito e estado-nação.Em particular nos interessa reter a concepção de “povo”como um ente etnico-político constituído por relatosartísticos e intelectuais, mas tendo a capacidade de su-perar, na sua própria natureza de fábula, as contradiçõesinerentes às heterogeneidades de várias ordens existen-tes nos conjuntos demográficos sobre qual se ergue comofator de unidade.

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temente, sabemos estarem os tantos planos da ex-periência societal e das instituições como os obje-tos entretidos, ou tecidos por feixes sociodiscursivos.No entanto, o alvo do interesse analítico deve ago-ra se deslocar do domínio dos enunciados propa-gados pelo ordenamento estatal para as mediaçõesdiscursivas exercidas por determinados círculosde sociabilidades intelectuais, na significação dealgumas práticas e símbolos como suportes danarrativa a respeito de uma Bahia compromissadacom a exemplaridade do passado. Entendemos asmediações à maneira de correias de transmissãode saberes em redes, com interdependênciassociofuncionais, nas quais as agências intermediá-rias, com seus dispositivos de expressão e comu-nicação, interferem tanto na compreensão quantona composição dos termos mediados, ao os dota-rem de sentidos de reciprocidades. Supomos queesteja, nas mediações exercidas por certas facçõesintelectuais situadas em Salvador, na primeirametade do século XX, a possibilidade de apreen-der os movimentos pelos quais enunciações pro-venientes de áreas diferentes estavam continua-mente veiculando insumos de sentido, e arecursividade dessas interações teve por conseqü-ência não programada um ajuste semântico e sin-tático, justamente tornando equivalentes tradiçãoe povo baiano. Propicia-se, assim, um objetodiscursivo posteriormente transportado para o in-terior dos enunciados do poder público local eregional. Portanto, ao longo da argumentação, rete-remos o tema da ideologia com referência à apre-ensão das performances discursivas, e essas sob oponto de vista de práticas capacitadas a significaroutras práticas. Entendemos que a opção permiteobservar como determinados saberes adquirem ostatus de falas autorizadas a delinear os lugares datradição e, ainda, classificar e qualificar os seusocupantes. Logo, de acordo com a perspectivafoucaultina, o saber se define como um espaço noqual está posicionado o sujeito para enunciar osobjetos (Foucault, 2000, p. 217). Entendemos queos discursos da e sobre a tradição delimitam tam-bém um campo de coordenação e de subordinaçãodos enunciados, em que os conceitos aparecem,

se definem, se aplicam e se transformam. Entre-tanto, a nosso ver, dizer que o sujeito estáestruturado não corresponde à eliminação daintencionalidade da agência humana nas tramasinteracionais e institucionais, tampouco equivalea desprezar os efeitos estruturantes da intençãosobre os desdobramentos dos sistemas sociais.

Nesse sentido, embora a proposta não sejaaqui a de observar uma “invenção de tradição”(Hobsbawn, 1997, p. 9-23), ou seja, a construçãointencionada de um relato pelo qual se define umarbitrário início de uma entidade sociopolítica re-verenciada nos protocolos de rituais nacionais,interessa-nos ver a maneira como, nos trânsitosdiscursivos interinstitucionais, a ênfase na idéiade tradição demarca posições socioculturais. E ain-da como, para algumas agências humanas e gru-pos, obter o consentimento e o reconhecimentocomo um dos pontos de visibilização da Bahia comotradição se reverberou em uma estratégia de extra-ção e acumulação de capital social raro e fonte dedistinção, capacitando-os, com isso, a sair do os-tracismo, ainda que retroalimentando hierarquiasvigentes. Desse ângulo, no trajeto da pesquisa,observamos que, já evocada desde o final do sécu-lo XIX, apenas na década de 1920 se deu o adven-to da tradição como problema nítido entre círculosintelectuais situados em Salvador, principalmentena Academia de Letras e no Instituto HistóricoGeográfico da Bahia. Naquele momento, a sociabi-lidade abrigada nesse último órgão se devotara for-temente à disjunção entre tradicionalidade e civi-lização. Assim, assinado J.G. Lemos Brito, vem apúblico, na revista do Instituto, o artigo intituladoO Valor das Tradições. Ao longo do texto, o autorparte da percepção do descrédito da tradição. Ouseja, a seu ver, feneceram os partidos de idéias ecostumes diretamente vinculados aos valores reli-giosos de uma igreja católica interna ao Impériobrasileiro, diante do “ódio ao passado” decretadopelos advogados republicanos do “progresso hu-mano”.11 Sua revolta é concentrada naqueles que

11 A reafirmação dos laços com o recente passado imperialé recorrente entre intelectuais baianos da época. Prova-velmente, o mais refinado esforço nesse sentido seja olivro Salões e Damas do Segundo Reinado, de Wanderley

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detratavam a memória de um passado construídona congregação de esforços que viabilizaram a ci-dade. Por isso, move-se de modo hostil aos defen-sores da derrubada do monumento ao “caboclo”,na Praça do Campo Grande, para substituí-lo poroutro, agora em reverência a José Bonifácio deAndrade. Mesmo rendendo homenagem ao nomemaior da independência nacional, o autor reafir-ma a sua lealdade à singularidade da luta e da con-quista baiana pela autonomia frente à metrópolelusitana. O “caboclo” é apresentado, no artigo,como símbolo de uma pátria que “despertou dapuberdade, e, sentido-se varonilizada, deu o bra-ço às armas, até expurgar o estrangeiro (...)” (Britto,1919, p. 304). O exulto do autor para o Estadopreservar as tradições se justificaria pelo ideáriode concórdia, de harmonia nela guardado. Enfim,o culto ao caboclo condensaria o espírito cívico deum povo cujo canto é o da “felicidade humana”,já que sua terra não conheceria...

... as revoltas das multidões, os ódios de classes,as lutas de partidos, as recriminações (....), por-que aqui é a terra do trabalho, da ordem e da lei.Tudo, neste ambiente, doirado pelas radiaçõesdo Sol, respira o hálito divino da justiça. O amorguia conduz as almas. A transparência do ambi-ente que nos cerca é menos luminoso do que a donosso ideal. (1919, p. 305).

Hospedados no mesmo Instituto HistóricoGeográfico, e também solidários no empenho depreservar as tradições, agora já denominadas de“baianas”, outros intérpretes, como João da SilvaCampos, dispôs-se a coletar crônicas da “Bahiavelha”, recolhendo narrativas orais e mesmo algu-mas escritas, as quais nem sempre estariam de acor-do com a “verdade histórica” (Campos, 1930, p.353-357). Embora a princípio atento a diferentestraços da tradicionalidade local, no decorrer desseperíodo, o foco cada vez mais se dirige ao que oromancista Xavier Marques12 batizou de “tradições

religiosas da Bahia” (Marques, 1929). Particular-mente, os festejos ao Senhor do Bonfim são desta-cados. O próprio Xavier Marques deles se ocu-pou, combinando interesse etnográfico e históricocom a finalidade de mostrar o vigor da comemora-ção em meio às transformações que sofreu, às dis-putas entre autoridades eclesiásticas ciosas da or-todoxia religiosa e as heterogêneas massas devo-tas, mais propensas a fazer transigir mutuamenteo sagrado e o profano. Tensões que desvelam doismundos aparentemente por princípios distantesentre si: o interior sacro da nave da igreja e o alari-do do ar livre. Aí, a gente de “todas as castas ematizes, com bateria, bacias, esfregões e vassou-ras” faria uma lavagem aliando água e álcool, com-binando paradoxos de “benditos e chulas, de re-zas e gargalhadas, de gestos contrictos e bamboleirosimpúdicos” (Marques, 1929, p. 380). Para o autor,a extraordinária opulência humana, com suas ex-pressões da festa, capaz de parar e atrair toda acidade, estava no fato de manifestar que o “baianoquer entrar no céu, mas com alardo e fanfarra”(1929, p. 381), já que a devoção ao Bonfim expõe otraço próprio ao povo da Bahia, em seus “instin-tos e sentimentos religiosos”, propriedade parti-cular na qual...

Orando e folgando, ele – o povo – nos dá, há umtempo, um espetáculo delicioso e piedoso, talvezparadoxal aos olhos daqueles que só encaram nareligião a austeridade das cerimônias e alto obje-to do culto, mas certamente um espetáculo hu-mano, ou pelo menos brasileiro, especialmentebaiano, em que há lugar para todos os júbilos eexteriores testemunhos de conciliação com avida, por intermédio do supremo mediado, sónão havendo lugar para a hipocrisia. (Marques,1929, p. 82).

Se o autor se indispõe com a severidade or-todoxa da autoridade eclesiástica, é porque reco-

Pinho. Ativista na defesa das “tradições”, o autor sevolta aos “elegantes” ambientes de reunião “alegre efrívola” das classes abastadas em busca de uma polidezemanada da presença feminina; um refinamento queteria se diluído nos tempos de modernidade (Pinho, 2004,p. 9-15).

12 A crítica literária costuma definir Francisco XavierFerreira Marques como pioneiro na “construção de uma

estética de baianidade na literatura nacional”. Teria for-mulado um repertório fundamental ao desenho de umaBahia pitoresca, incluindo nela a cultura afro-brasileirano apelo ao exótico-esteriotipado, quando descreve ocotidiano da população negro-mestiça e os rituais aosorixás. Dúbio em sua visão que, a um só tempo, repudiaas cores africanas em favor do ideário cortesão propaga-do desde o Rio de Janeiro, como em Uma Família Baiana.Mas foi o primeiro escritor branco a inserir personagensnegros em seus romances, dando-lhes posição de desta-que, como em O Feiticeiro. (Jesus, 2007).

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nhece no povo o protagonista da festa de devoçãoao santo maior da Bahia. E a imagem de povo queapresenta é aquela de um artista espontâneo,encenador de um espetáculo no qual a profanidade,a barbárie e o sagrado são entrecruzados em nomede uma concepção larga de participação, em favorda tolerância de credos e modos de expressão da fée de uma peculiar democracia lúdico-religiosa queacolhe cores e matizes humanos distintos. Seme-lhante ao que Moraes Filho propôs sobre a culturapopular brasileira, à luz da experiência carioca, nofinal do século XIX,13 Xavier de Brito exalta a tradi-ção religiosa baiana pelo seu potencial de miscige-nação racial, classista e simbólico-cultural. Escudadoem Cardoso de Oliveira (2006, p .117-200), quandoobserva a decisiva participação da elaboração e dasinterlocuções dos intelectuais na afinidadeestabelecida entre ideologia catalã e identidade catalã,podemos dizer que, em tal intervenção discursivo-literária, são realinhados os termos da idéia de tra-dição baiana, enfatizando-se sempre mais o compo-nente étnico-cultural, artístico e religioso como ine-rente à identidade dessa totalidade.14 Nesse senti-do, a mesma década de 1930 é emblemática do gra-

dual deslocamento do estatuto do tradicional naBahia. Ou seja, o conteúdo fornecido pelas práticase simbologias populares, aos poucos, parece ocu-par espaços antes reservados aos signos das elitesde formação ibero-católica.

Sem dúvida, o aspecto sociocultural da re-ligiosidade é bem ilustrativo a respeito. Voltando-nos aos jornais da época, diante do avanço da “ci-vilização”, isto é, do ritmo de mudança do cenáriourbano, que estaria mais afinado com a sociedadeindustrial capitalista, não é incomum encontrarvozes que se levantam contra o declínio do que erareconhecido como as verdadeiras tradições baianas,a saber, os ternos da Lapinha, durante a comemo-ração ao Dia de Reis. Enraizadas no passado colo-nial, aquelas manifestações seriam vestígios daherança luso-católica. Mas, como que fazendo corocom a percepção de Xavier Brito, também, nessemomento, é suscitada a atenção aos costumes e àspráticas profanas e religiosas das massas de des-cendentes negro-africanos na cidade. Em especial,o culto dos orixás (candomblé) angaria adeptos esimpatizantes entre membros das classes médias,sobretudo dos intelectuais (em geral, cientistassociais, historiadores e jornalistas). Exatamente pelamediação desses, aos poucos, o universo lúdico ereligioso negro-mestiço na cidade adquire espaçode divulgação nos jornais, já não restrito ao trata-mento policial. Assim, o sepultamento dababalorixá Mãe Aninha (Eugênia Ana dos Santos)do terreiro Ilê Opô Ofonjá é destacado na primeirapágina de O Imparcial. No texto, o jornalista man-tém o raciocínio dual, distinguindo a cidade quese “moderniza” no compasso da “civilização” doseu povo daquele “pedaço da África” nela “latentenas camadas da cobertura racial”, pleno de expres-sões do “velho Congo”, à espera da “primeira opor-tunidade para mostrar-se em toda sua pujança”. Eessa se deu por ocasião da reverência inter-classe(e inter-racial) ao prestígio e à autoridade da lide-rança religiosa morta: “Foi o caso, ontem, do en-terro de Aninha, a famosa ´mãe de santo`, tãoconhecida de todos e que tantos anos batia can-domblé na cidade. Foi um espetáculo fúnebre ex-cepcional, não só pelo pitoresco ritual, mas pela

13 Literato, memorialista e folclorista baiano, posterior-mente radicado no Rio de Janeiro, Alexandre José MoraesMello Filho se destaca como um dos primeiros intelec-tuais a não apenas propor, mas também a promover oreconhecimento da cultura brasileira como um porten-toso “caldeamento estético”, amalgamando uma polifoniade vozes amanhadas pela originária reciprocidade de ra-ças e culturas, tradições e ímpetos, desde agora manifes-tações do “espírito do povo”. De acordo com sua narra-tiva em Festas e Tradições Populares no Brasil, o grandeencontro racial e a miscigenação cultural promoveram ocaldeamento colonial de uma nacionalidade “musical efestiva”, sendo rememorada e expressa nas artes do povo-nação. Segundo a versão do intelectual, a Colônia é defi-nida como o palco originário de uma pátria mestiça, ondeas sincréticas soluções populares dariam o tom de umaoriginalidade brasileira.

14 A partir dessa década, sucedem-se obras literárias quefocalizam a cidade de Salvador pelo pitoresco das suasimagens coloniais e afro-brasileiras. Se as canções deDorival Caymi e os livros de Jorge Amado têm ascendên-cia na formação de um imaginário nacional e internaci-onal sobre uma sedutora Salvador, mística e preguiçosa,de cores e sabores negro-mulatos, Bahia: imagens daterra e do povo, de Odorico Tavares, abre uma vertente,ao retratar a capital baiana, correlacionando festas popu-lares e religiosas em um sítio onde o mar intervém nosdiferentes planos da vida urbana. Retrato que refletiria,segundo o relato do autor na nota à terceira edição dolivro, a “emoção nem sempre contida, pelo que me mos-tra, em permanente descobrimento, a face múltipla des-ta cidade conquistada com ternura e amor.” Nessa ter-ceira edição, as imagens literárias são vertidas nas figura-ções do artista plástico Caribé.

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multidão que reuniu presentes pessoas de todasas camadas sociais.”15

Contudo, o aparente espanto, a princípiogerado pelo vigor dos traços africanos na capital daBahia, era paralelo à aproximação de intelectuaisinscritos no espectro ideológico mais à esquerda acertas lideranças do candomblé. A própria babalorixade Mãe Aninha é bem representativa do acerto emcurso. Um dos nomes mais prestigiados da históriadas lideranças do Candomblé baiano, nos anos de1930, ao lado de outro importante sacerdote, EliseuMartiniano do Bomfim, ela encabeçou alianças commembros das oligarquias e dos setores médios; ne-gociações cujos efeitos se fizeram fundamentais paraa relativa tolerância da polícia às atividades religio-sas afro-brasileiras, naquele momento. Ao mesmotempo, ambos os sacerdotes tiveram destacada par-ticipação no II Congresso Afro-Brasileiro, realizadoem Salvador, em 1937. Iniciativa e organização dofolclorista Édison Carneiro e do psiquiatra e antro-pólogo Arthur Ramos (Lima, 1987, p. 39-73), o even-to lança as bases para o desenrolar dos estudos afro-baianos e, igualmente, para a fundação da Uniãodas Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, primeira fede-ração do gênero no Brasil. Por outro lado, o con-gresso deu visibilidade à imagem lúdico-pitorescade personagens populares do cotidianosoteropolitano, que estavam sendo incluídos entreos arcanos da “cultura do povo” e da tradição baiana,à maneira dos capoeiristas e das baianas vendedorasde acarajé. Assim, na passagem à década de 1940,os relatos jornalísticos que informavam a opiniãopública atenuam o que se considerava a natureza“arcaica” do candomblé e de outros aspectos dopatrimônio cultural negro-mestiço, agora cada vezmais ressaltado nos enunciados e imagens de Sal-vador, ao lado do Mercado Modelo e do ElevadorLacerda (Farias, 2001, p. 49-50).

UM CENÁRIO ÉTNICO-BAIANO PARA AMODERNIZAÇÃO TURÍSTICA

Mantendo o mesmo eixo teórico-analíticofundado na premissa dos envolvimentos de sabe-res e poderes para a elaboração de aparatosdiscursivos que definem objetos de intervençãoinstitucional tomada como legítima, e ainda consi-derando a mediação discursiva exercida pelos qua-dros artísticos e intelectuais, nesta última seçãonos interessa argumentar a respeito de como oencontro entre ordenamento estatal e as memóriasressignificadas dos sistemas de práticas lúdico-ar-tísticas e religiosas negro-mestiças de Salvador per-mitiu o engajamento entre modernização turísticae tradição na Bahia, aninhado no espaço do Cen-tro Histórico, o qual foi diferenciado na ecologiaurbana como cenário étnico-turístico reservado àdiversão, ao lazer e ao consumo cultural. Para isso,interessa pontuar a importância da ingerência datradição como uma categoria a priori de entendi-mento, mobilizada no domínio discursivo do po-der estatal, mas também da iniciativa privada em-presarial, em particular a partir dos anos de 1950.

Em se tratando do período focado, um pri-meiro aspecto a ser ressaltado é o quanto o domí-nio cultural passa a ter uma centralidade, na me-dida em que a universidade se antecipa como umespaço de reelaboração de significados e de lin-guagens. Vale lembrar que, somente na década de1930, com a criação da Universidade de São Pauloe da Universidade do Distrito Federal, o perfil aca-dêmico-universitário ganhará nitidez no Brasil, coma centralidade ocupada pelas faculdades (ou insti-tutos) de filosofia, na congregação das partes emfunção do todo, dentro de uma sistemática dis-posta de acordo com os critérios administrativos,pedagógicos e científicos de hierarquização do co-nhecimento, acoplando equipamentos para os cur-sos nas ciências físicas, naturais e humanas. Paraalém dessa dimensão propriamente pedagógico-acadêmica, os aportes renovadores nas artes e naliteratura vivificados, também, nos anos de 1920,se tornaram fundamentos de uma “tradição nacio-nal”. Para compreender tal tendência, cabe ressal-15 Fonte: O Imparcial, 04/01/1938.

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tar o quanto a criação ou reestruturação das uni-versidades brasileiras estiveram imersas em umprocesso de state building – o qual poderíamostraduzir de modo impreciso, como formação doEstado. Desse modo, a universidade surge, no Bra-sil, como dimensão modernizadora de uma razãode Estado nacionalista. De acordo com SimonSchwrtzman (1984), o resultado foi uma autono-mia refluída, para caber nos ditames exacerbadosde uma regulamentação que respondia ao empe-nho governamental em estabelecer a uniformidadeinstitucional, lançando mão, para isso, de um con-trole rígido, mesmo autoritário.

No que toca aos desdobramentos da implan-tação desse equipamento de ensino superior no con-texto baiano, em meados da década de 1940, emborasem um plano estratégico, mas reunindo as antigasfaculdades de direito e medicina já existentes, a vi-gência do modelo institucional centralizado permi-tiu aproximar a instituição, nos anos de 1960, doprojeto de desenvolvimento urbano-industrial. Esse,ao diagnosticar o “atraso” do estado da Bahia frenteaos do Centro-Sul do país, em especial ao êxito daindustrialização paulista, tinha por meta intensificara integração e unificação sociodemográfica. Engajadapelo mesmo objetivo à Comissão de PlanejamentoEconômico do Governo Estadual – composta du-rante a administração de Antônio Balbino, na déca-da de 1950 –, a direção da Universidade da Bahiase dispõe tanto a mapear a situação socioeconômicade um estado encerrado em uma estagnada econo-mia agrícola, quanto a implementar um amplo pro-grama de educação e de formação de quadros técni-co-profissionais para a montagem de um parqueindustrial nativo, valendo-se, sobretudo, dos vas-tos recursos minerais existentes, com destaque paraa prospecção de petróleo (Aragão, 1999, p. 42-45).O reitor na época, o professor Edgar Santos, abraça oprojeto nacional-desenvolvimentista, mas prioriza aformação de elites meritocráticas (ibidem p. 46-48).

Se os impasses que marcam a aposta nodesenvolvimento industrial reverberam no desem-penho aquém da Universidade da Bahia em for-mar quadros técnico-profissionais para o setor se-cundário da economia, a mesma instituição já vi-

nha obtendo destaque na área das artes – música,artes cênicas e dança. Assim, a despeito das orien-tações polítco-ideológicas e do seu propósito elitista,o reitor Edgar Santos selou compromisso com oprincípio de renovação artístico cultural e, comisso, deixou aberta a fresta para a inserção de gru-pos modernistas inscritos no espectro da esquer-da, em grande medida locados nas fileiras do Par-tido Comunista. Desse modo, a plataforma doideário nacional-popular favoreceu uma pauta depesquisas cujo objeto era o conhecimento dosmodos de vida e de expressão dos segmentos su-balternos da Bahia, com relevância posta na popu-lação negro-mestiça (Teixeira, 1999, p. 73-88). Parao que nos interessa argumentar, outro ramo dosaber adquire certo destaque, o das humanidades,justamente no caudal da institucionalização dosestudos afro-americanos, especialmente no com-passo das contribuições de Melville Herskovits,Roger Bastide, Arthur Ramos e Édson Carneiro(Yelvington, 2007), mas nos rastros do mesmoimperativo desenvolvimentista que vicejou, sejano convênio entre a Secretaria da Educação daBahia e a Universidade da Columbia, em 1949,seja no projeto Unesco, no início dos anoscinquenta (Azevedo, 1984, p. 72-77).16 As pesqui-sas etnográficas e antropológicas voltadas para acultura africana e os estudos de comunidades ne-gro-mestiças são estimuladas.

Um marco a respeito é a criação do Centrode Estudos Afro-Orientais (CEAO), sob inspira-ção intelectual do filólogo, literato e livre-pensa-dor português Agostinho Silva. Exilado em virtu-de da ditadura salazarista, ele porta um itineráriode formação nas humanidades realizada em Paris,tendo por interlocutores representantes de umpensamento romântico crítico da modernidadeburguesa e disposto a resgatar a vitalidade huma-na denegada pela epistemologia industrial-

16 O diálogo entre os dois últimos intelectuais deixa entre-ver tanto a maneira como se definiu o universo da po-pulação negro-mestiça como objeto de interesse intelec-tual no Brasil, especialmente na Bahia, deslocando-se daquestão médico-jurídica ao sociosimbólico, quanto si-naliza os caminhos institucionais que foram percorri-dos para que os estudos sobre o universo religioso afro-brasileiro adquirissem legitimidade acadêmica no país(Oliveira; Lima, 1987, p. 11-12).

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produtivista.17 Ocupado exatamente com o “devirhistórico-civilizacional da humanidade e do mun-do”, Silva sustentava a bandeira messiânica conti-da no ideário do “quinto império lusitano” (Silva,2002a, p. 249-259), de uma “civilização luso-tupi”,alternativa àquela efetivada pelos povos anglo-saxões, ao reconhecer naquela a ênfase na culturaem detrimento da centralidade gozada pelo dinhei-ro no capitalismo (Borges, 2002, p. 14-17). Infor-mado por tal ideário, aceitou o convite do reitorEdgar Santos para liderar a implantação do CEAO.O projeto se inseria no escopo mais amplo dasestratégias do governo brasileiro no sistema inter-nacional, naquele momento da geopolítica mundi-al bi-polarizada entre Estados Unidos e União So-viética. Seguiam-se as orientações diplomáticaspredominantes de opção pelo terceiro-mundismonos governos Juscelino Kubitschek, João Goulart eJânio Quadros e, ainda, da proposição da Unescode viabilizar maior intercâmbio cultural entre Oci-dente e Oriente. O liame estabelecido abrangeu asviagens de estudos linguísticos, históricos e antro-pológicos de pesquisadores brasileiros à África e àÁsia, a montagem de departamentos universitários ecentros de pesquisa em paises como Senegal, Bulgária,Ceilão, Índia e Japão (Silva, 2002b, p. 37-38).

O quadro de pesquisadores, composto porlinguistas, antropólogos, historiadores e mesmo doteatrólogo Nelson de Araújo, orbitava em torno dafigura de Agostinho Silva e seu claro propósito defomentar, na cultura brasileira, a possibilidade de

elaborar um modelo civilizatório próprio, não res-trito ao olhar litorâneo resignado em mimetizar oobjeto de sua saudade – a Europa – e (ou) a fazer acópia do modo de vida da América do Norte.Exultava uma educação apropriada a potencializaro artista e o cientista existentes em qualquer indi-víduo (Silva, 2002c, p. 245-246). À semelhançado modernismo brasileiro, abria-se caminho paraestudos que privilegiam o autóctone e, como nomesmo modernismo, deu-se total relevo às práti-cas e aos símbolos do que era reconhecido comocultura popular. Aspirando essa atmosfera, as com-ponentes linguísticas, religiosas e folclórico-cultu-rais da população negro-mestiça de Salvador eadjacências são efetivadas no status de objeto deconhecimento científico.

Primeiro nome incluído no elenco dessespesquisadores, o antropólogo e professor do cur-so de Ciências Sociais da UFBA, Vivaldo da CostaLima, obteve destaque pelos estudos sobre as “fa-mílias de santo” inter-geracionalmente geradas eque habitavam nos terreiros de candomblé (Lima,2003).18 Durante uma entrevista, concedida ao au-tor deste artigo e a seu – na época – assistente depesquisa, que visava a reconstruir a memória daformação dessa elite intelectual, perguntado se fo-ram motivações político-ideológicas que o intro-duziram no seio do candomblé, Costa Lima tra-duz o sentimento que o levou àquela sociabilida-de religiosa:

Não, não creio que houvesse, devia ter havidoapenas uma coisa existencial [...]. O Jornal A Tar-de me fez essa pergunta que você me fez agora.[...] Eu respondo que não fui eu que descobri oCandomblé, foi o Candomblé que me descobriu,foi através do Candomblé que eu voltei a ter inte-resses, comecei a ter interesses sistemáticos pela

17 Propondo um inusitado encontro entre Durkheim eNietzsche, o College de Sociologie consistiu numa cor-rente lietrário-filosófica que acolheu nomes como o deRoger Callois e George Bataille, em favor de um retornoàs forças recalcadas pelo projeto racional-epistemológicodo Ocidente. Ilustrativa, na sua leitura original das con-dições socioculturais do amplo conjunto da humanida-de contida no livro A Parte Maldita, Baitalle distingueentre “sociedades de consumo” e “sociedades de empre-endimento”. A classificação obedece ao parâmetro cen-tral oferecido no livro, a saber, a questão do dispêndio.No texto, é perseguido o entendimento de como as dife-rentes conformações étnico-societais lidaram com aquestão posta na oposição entre a aventura e a estabili-dade; envolvendo a última está a preocupação com osexcedentes. Enfim, na descrição do autor, a humanida-de teria se confrontado com o dilema de estar ou nainconstância criativa do ócio, ou na segurançadisciplinadora do negócio, na busca tenaz em satisfazerdeterminações, necessidades. Mesmo implícita, a refe-rência de Bataille é ao seu mundo de origem, o Ocidente,e sua obcecação é por produzir, crescer, ou simplesmen-te, progredir (1975, p. 82-83).

18 Vivaldo da Costa Lima se constituiu em espécie de pon-te intelectual entre o Projeto Unesco e a experiência doCEAO. Odontólogo de formação, ele iniciou seu percur-so acadêmico e de pesquisador em antropologia ao parti-cipar do Laboratório de Fonética da UFBa, a cargo doprofessor e linguísta Nelson Rossi, que se dedicava aoestudo dos falares baianos, na época. No laboratório, eleconheceu Agostinho Silva, em 1960. Sua ida para oCEAO está relacionada a um estudo pioneiro sobre afesta de xangô no terreiro de candomblé do Ilê Opô Afonjáapresentado no IV Colóquio Internacional de EstudosLuso-Brasileiros, em 1959, promovido conjuntamentepela UFBa e a Unesco. Nesse trabalho, o autor descreve oritual inserindo-o no “vasto complexo religioso” que seaninharia nas “casas de santo” (Costa Lima,1959).

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religiosidade e essas coisas, enfim, o Candombléque me descobriu mais do que eu a ele. Porqueeu não fui estudar o Candomblé para descreversobre o Candomblé; quando eu fui pra Universi-dade, eu já era um frequentador antigo do Can-domblé, e foi porque eu era um frequentador doCandomblé que eu pude organizar essas pesqui-sas com uma certa facilidade, um certo trânsito,eu era amigo de todas as grandes casas da Bahia,não é? Eu era, nessas casas pioneiras da minhapesquisa, antes das centenas que foram fichadasdepois [...], eu era amigo desses pais e mães-de-santo todos, que só tem um vivo hoje que é Olgado Alaketu. Desses primeiros, todos os outros euvi morrer, assisti morrerem durante a vigência;estão sendo substituídos durante a vivência [...].19

Se os laços afetivos antecederam os interes-ses científico-intelectuais, institucionais e acadê-micos na inserção do antropólogo no mundo docandomblé, sua ida aos terreiros é parte – vimos –de uma já longa sinergia entre acadêmicos e lide-ranças religiosas afro-baianas. Essa troca foi deci-siva para legitimar um campo temático científicono qual se abriga a identidade de um novo círculointelectual que, ao tomá-lo por objeto de conheci-mento, conferiu pontos preciosos ao reconheci-mento da identidade desse universo sócio-huma-no e cultural como aspecto da vida e da tradiçãobaiana, no momento em que o discurso intelectualfornece categorias de pensamentos incorporadas àreflexividade nativa, a saber, tradição e nação (Lima,1976, p. 65-90). Tais categorias são inerentes aoesquema analítico e interpretativo que apreende otraço de continuidade civilizatória da memóriaiorubá-nagô, matriz cultural que teria sido repostae atualizada pelas lideranças religiosas do candom-blé à frente das suas respectivas casas de santo.Sendo também portadora de uma tradicionalidade,a identidade desse último grupo contorna, assim, amácula da discriminação étnico-racial e assegura umaposição de prestígio. Incorporada tal categoria nodelineamento da sua honorabilidade, a linhagemdos babalorixas se insere diferenciadamente nomercado religioso, no qual oferece um serviço queatende a uma clientela inter-classes. Ao mesmotempo, a aura de nobreza fundada em uma tradi-ção estendida desde a África se traduz em um su-

porte de identificação para uma ampla populaçãorecém-saída da escravidão, despreparada para en-frentar a concorrência do mercado de trabalho emal amparada para atuar autonomamente na arenapolítica dos fóruns de representação no Estado.20

Mas é verdade também que a reciprocidadede ideários e interesses entre os dois polos encon-trou respaldo no cômputo das elites políticas, por-que veio a subsidiar, naquele momento, a ideologiaacerca da singularidade do senso de pertencimentoa uma mesma memória coletiva sincrética e tam-bém àquela sintética identidade baiana, sendoambas elementares à imagem de um ente étnico-político peculiar no seu modo de ser e agir, aomesmo tempo moderno e tradicional, cosmopolitamas comunitário (Capone, 2004, p. 217-326; San-tos, 2005, p. 56). Já tecida desde os anos de 1930,por outros intermediários culturais (literatos, jor-nalistas e historiadores), essa imagem logo terá re-percussões no encaminhamento dado à moderni-zação turística em Salvador. Com isso, a aliançatácita forjada repercute em planos mais amplos dacidade, desde a década de 1960. Sugere-se, então,que a trama das interdependências sociofuncionaistornava relacionados grupos, a princípio,posicionados em pontos distantes do espaçoestratificado e, logo, da hierarquia social. Ou seja,as diferentes estratégias de participação nesse es-paço, adotadas pelos respectivos agentes (intelec-tuais, elites políticas e lideranças lúdico-artísticase religiosas), compatibilizavam-se pelo a priori datradição baiana. Parece que ela os tornava, de al-gum modo, próximos, na proporção em que seritualizava nos espaços de um congraçamento po-pular ecumênico, viabilizado nas performanceslúdicas e religiosas dos anônimos comandadospelas lideranças musicais e do candomblé: na de-voção das festas de largo, a exemplo ao Senhor doBonfim; nos cultos aos orixás e, mais recentemen-te, nas multidões puxadas pelos trio-elétricos mo-

20 Embora saibamos que se trata de um tema bem maiscomplexo, que envolve outros planos analíticos, abarcá-los escapa aos objetivos deste artigo. Dois trabalhos re-centemente editados oferecem um quadro amplo eaprofundado da formação e desenvolvimento do can-domblé em Salvador (Parés, 2006; Silveira, 2006).

19 Entrevista concedida por Vivaldo da Costa Lima a Ed-son Farias e Fernando Rodrigues, em 10 e 15 de fevereirode 2004.

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vidos à base da percussão musical.21

No escopo desse feixe de interdependências,o convite do então prefeito Antônio Carlos Maga-lhães para Costa Lima dirigir a comissão encarre-gada de um levantamento socioeconômico, com afinalidade de elaborar um projeto de preservaçãodo Centro Histórico de Salvador (Pelourinho,1967), notadamente da área do Pelourinho, tantoevidencia outro patamar na constelação cultura eestado na Bahia quanto notabiliza o percurso queo torna possível. O relato do próprio antropólogodeixa entrever um e outro aspecto:

Na época em que ele – Antônio Carlos Maga-lhães – ainda era um jovem prefeito interessadoem criar algo de novo na administração públicae tal. Nessa época ele teve a idéia de criar umprojeto de renovação do centro histórico, não é?[...] Eu estava na Universidade, era professor daUniversidade, então aceitei [...]. Eu já conheciaAntônio Carlos da infância nossa comum, ali noCampo da Pólvora, fomos vizinhos [...]. Ele é maisnovo do que eu dois anos. Foi por isto que eu fuiconvidado pelo Diretor do Departamento de Tu-rismo naquela época da prefeitura, o jornalistaFlávio Costa, para coordenar essa pesquisa. Pri-meiro fazia um levantamento, não havia esse...Foi a partir desse levantamento que eu fiz, inclu-sive, com ajuda de Júlio Braga, que foi meu asses-sor de pesquisa, entendeu?

O decorrer do relato de Vivaldo da CostaLima expõe seu desacordo com o destino turísticodado à reforma do Centro Histórico, iniciada em1971 e prolongada em diversas etapas; resultadoque teria se distanciado da concepção original deocupação daquele espaço, quando esteve à frentedo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Cul-tura da Bahia:

O Pelourinho para mim era apenas uma partehistórica da cidade, não tinha interesse teórico-metodológico, tinha interesse por gente, porqueeu sou um antropólogo de gente, não sou antro-pólogo de arqueologia [...] Sempre me interesseimuito pelo Pelourinho, a prostituição, a droga, osveados, tudo aquilo que havia institucionalizado,

a veadagem da área, isso sempre me interessoumuito. [...] Quando ele me convidou, eu fiz umprojeto, esse projeto foi se desenvolvendo de umamaneira utópica, visando que se conservasse apopulação tanto quanto possível, que se restau-rasse para o povo, naturalmente não para amarginália, para os marginais, nem para... Masaquilo que o Agostinho da Silva chamava dosdespojados, os necessitados. Nós conseguimos emparte isso [...]. Mas, aí veio a loucura política, deapoio político, e começaram a distribuir os espa-ços por pessoas incompetentes para ocupá-los, aío mundo de lojinhas, de restaurantezinhos semuma certa formação profissional adequada e tal.E a música, a música axé! Tudo aquilo causouaquela invasão, tudo isso, fizeram do Pelourinhoentão um bairro turístico, que não era essa a nos-sa intenção inicial. Era um bairro em que hou-vesse vida, vida do povo, não é? Inclusive música,inclusive shows, e não mais uma predominân-cia, não é? Mas isso é outra coisa, eu falarei dissomelhor, de uma maneira mais crítica, depois.

Por escaparem ao raio de alcance dos agen-tes e do quadro de valores por eles esposados, asvicissitudes de um processo sócio-histórico po-dem lhes parecer como paradoxais, até incompatí-veis com as suas intenções. Por certo, a posiçãocircunstanciada do agente o teria impedido de an-tecipar os rumos da obra, na medida em que nãopoderia prever e nem mesmo controlar os efeitosdas interdependências sociofuncionais que se da-vam no movimento mesmo em que estavam inclu-ídas as suas tomadas de posição. As intervençõesde intelectuais como de Vivaldo da Costa Lima sefizeram cruciais para a efetivação de parcelas lúdico-religiosas do universo negro-mestiço no domínioda tradição da Bahia. Mas igualmente se observa,retrospectivamente, o paulatino concatenar da gamade práticas e símbolos inseridos nessa tradição coma sistemática turística. Então, se não foi gratuito ofato de o convite ao antropólogo, para realizar omapeamento socioeconômico do Centro Históri-co, ter partido do então diretor da Superintendên-cia de Turismo de Salvador – SUTURSA –, é porter selado o ajuste que plasma o termo comum àdinâmica histórica da modernização turística naexperiência baiana.

O acabamento do argumento requer a pers-pectiva da dinâmica histórica do processo aquiestudado, sempre tomando por corpus os jornaisem circulação em Salvador. Neles, encontramos, apartir da segunda metade da mesma década de

21 Em outra oportunidade, em razão de tematizar a correla-ção entre música popular e festa carnavalesca em Salva-dor, mas sob o mesmo prisma teórico-analítico, focamosas teias dessas interdependências compostas pelas estra-tégias dos agentes e grupos lúdico-artísticos popularesbaianos e o mercado de bens simbólicos (Farias, 2001, p.46-82). Também do eixo processual de longa duração his-tórica e configuracional, Rodrigues (2006) realiza umaabordagem da convergência entre religiosidade afro-baianae música popular percussiva em Salvador.

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1930, a regular presença de matérias que noticiamo “dilúvio de turistas” desembarcados no porto,provenientes da Europa e dos países mais ao Sulda América do Sul. Denominando Salvador de a“cidade do turismo”, uma das reportagens se refereà descoberta da capital da Bahia como um destinoaté então mantido secundário, apesar de possuir“valores artísticos, históricos e naturais”. A mudançade atitude por parte das companhias internacionaisseria efeito da atuação conjunta da Cia de ViagensConde, do Rotary Club e do Touring Club,22 con-tando, para isso, com os serviços do hotel-cassinoPalace. Alguns meses depois, o mesmo jornal noti-ciaria a instalação da Diretoria de Cultura e Divulga-ção, que absorvia, em seu esquema organizacional,a Sessão de Turismo, oriunda da antiga e pioneiraDiretoria de Arquivo e Divulgação, logo inserindo avisibilidade turística entre as suas funções de disci-plinar a propaganda no e do Estado.23

Não se trata aqui de fazer a reconstrução doitinerário da montagem institucional do turismo,em Salvador, até porque o estudo de Lúcia AquinoQueiroz já oferece um quadro bem completo a esserespeito (Queiroz, 2002). O mais importante é ano-tar que, se a instalação da Sessão de Arquivo eDivulgação foi o ponto inicial da escalada denormatização, com o ordenamento público das ati-vidades turísticas na Bahia, as situações noticia-das permitem atentar para a existência e o alinha-mento de forças internas à sociedade civil, interes-sadas nas atividades afins ao comércio de viagens,diversão e lazer. Foi a articulação composta portais facções da iniciativa privada e dos setores in-seridos no Estado que viabilizou, no final da déca-da de 1960, a reforma do Centro Histórico, e ela sefez o marco e o símbolo da alteração qualitativa namodernização turística em Salvador. A eleição des-se sítio se deu pela ingerência dos porta-vozes dosinteresses e ideários identificados com o turismo,como opção de desenvolvimento local e regional.É ilustrativa a interpelação de Albano FredericoMarinho de Oliveira, durante a década de 1950.

Entusiasta do desenvolvimento do turismo e estu-dioso do tema, tendo feito um mapeamento daspotencialidades de diferentes cidades brasileiras,esse agente será tanto um estrategista quanto umincentivador da criação de uma Diretoria de Turis-mo na Bahia. Autor de Roteiro Turístico da Cidadede Salvador, ele propõe a evolução “horizontal”do setor na cidade, com a finalidade de exploraras tantas faces existentes, tornando-as atrativosturísticos. No elenco de atrativos, Marinho de Oli-veira destaca necessariamente a combinação entreo sítio tropical, com sua costa marinha, opatrimônio arquitetônico colonial e as manifesta-ções populares lúdico-religiosas, praias extensas,fortes, igrejas, ruas seculares, as diversidadesgastronômicas, a cultura popular múltipla e as “fes-tas impregnadas de misticismos” (Oliveira, 1960,p. 34-35).

As percepções e teorizações de MarinhoOliveira irão ressoar no momento em que, na mes-ma década de cinquenta, o turismo se insere noâmbito do planejamento estatal como parte dasestratégias de desenvolvimento elaboradas pelaComissão de Planejamento Econômico, do gover-no de Antônio Balbino. Nessa ocasião, a Comis-são Mista, ocupada em estabelecer um acordo decooperação entre os Estados Unidos e o Brasil,propõe o auxílio financeiro ao desenvolvimentodo turismo brasileiro, gozando de total apoio daConfederação Nacional do Comércio. Entre os seusresultados estará a fundação da EMBRATUR e umaorientação do Plano de Desenvolvimento da Bahia(PLANDEB) para o turismo (1960, p. 53-55). Emgrande medida, o plano malogra, mas é tambémverdade a sua importância para sedimentar umamentalidade institucional voltada para o turismono Estado, e ela se realiza a partir de algumas cer-tezas, entre as quais a de que as “tradições popula-res” da Bahia, como a das baianas vendedoras deacarajé, deveriam constar com total relevância doproduto turístico de Salvador (p. 59-60).

O reforço desse quadro de raciocínio se dáà medida que a institucionalização do turismo seestende, sobretudo na segunda metade da décadade 1960, período em que, já sob a égide dos gover-

22 Fonte: O Imparcial, 19/09/1938.23 Fonte: O Imparcial, 05/11/1938.

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nos militares, instala-se o Sistema Nacional deTurismo, com o propósito de engajar essa ativida-de na modernização do país, incentivando a mon-tagem da infra-estrutura de hospedagem e o incre-mento das rotas rodoviárias e aéreas (Farias, 2006,p. 203-206). Entre os programas postos em execu-ção pela esfera federal de poder, na direção deincrementar o turismo no país, estava aquele de“reforma das cidades históricas”. Portanto, a inici-ativa do então prefeito Antônio Carlos Magalhãestanto estava informada pela mentalidade de reco-nhecer, nas tradições da Bahia, decisivo atrativoturístico, quanto se ancorava em uma tendêncianacional e internacional, ao se decidir pela refor-ma do Pelourinho.24 A ênfase na recuperação doPelourinho, de um lado, respondia ao leque deinteresses das elites políticas regionais na balançade poder nacional, ao se manter fiel ao alicerceideológico interno à tradição baiana de evocar acentralidade da Bahia, no tocante à cultura e à for-mação do Brasil. Algo posteriormente ressaltadopelo diretor da IPAC, durante uma fala comemora-tiva dos dez anos da instituição responsável pelacoordenação da reforma:

Uma metáfora sobremodo repetida nos diz que oBrasil foi batizado na pia da velha Sé de Salva-dor. Pode-se dizer com a mesma propriedade,que a Igreja do Colégio assistiu sua unção com osóleos da Confirmação! Em resumo, a cultura bra-sileira recebeu os seus primeiros sacramentosnas terras da Bahia.As contingências históricas que fizeram de Sal-vador a primeira capital determinaram que, nãosomente esta cidade como toda a província fun-cionassem como polo centrípeto de cultura quedeu ao nosso Estado uma posição destacada comodetentor de um acervo apreciável de monumen-tos e bens móveis que merecem, pela sua quali-dade, todo esforço possível de preservá-lo.25

Mas, de outro, a reforma do Centro Históri-co tornava evidente a tendência da balança de po-der entre aqueles diversos grupos inseridos nasinterdependências sociofuncionais na cidade e noEstado, de enxergar no turismo um horizonte deinserção diferenciada na divisão do trabalho e das

funções em escala nacional e planetária, no ins-tante em que ocorriam os primeiros sinais da cres-cente importância adquirida pela imaterialidade nadinâmica do capitalismo, em especial o consumode informações, de lazer e de diversão. Os enunci-ados, que partiam de elites empresariais que apoi-aram o projeto de “revitalização” do Pelourinhodesde o início, publicizavam a “convicção” de sero turismo a “principal atividade econômica a quese há de voltar a Cidade de Salvador”.26 Apoian-do-se no diagnóstico dos urbanistas franceses AlainPerkinc e Michel Parent, consultores do projeto dereforma exultavam que a “cidade mais espetaculardo mundo” deveria contar com uma infra-estrutu-ra necessária para explorar sua beleza. Belezas es-tas estendidas do Pelourinho a “todo conjunto deáreas que se contém das Portas do Carmo às Portasde São Bento, que desce à Conceição, atravessa oComércio, sobe o Taboão e chega ao Pelourinho,se constituindo no Centro Comercial Histórico dacidade”. Desse modo, conclamam a reunião deesforços diversos para fixar a capital baiana no mapaturístico, para isso considerando a matéria-primaconstituída pelas lembranças barrocas do apogeucolonial, que deveriam ser preservadas contra osatentados das alterações urbanas – similar ao que,como vimos, diziam os arautos da tradição contraa civilização nos anos trinta. Essas novas formula-ções dessas elites sobre o turismo apelam para umamodernização capaz de tornar cúmplices o passa-do das tradições e o presente das inovações:

Urge, pois uma mobilização das forças sociaisdesta cidade, berço da história e cultura da pá-tria, no sentido de preservar e realçar as suasorigens, não as sacrificando ao argumento daexpansão e desenvolvimento urbanístico, antesfazendo coexistir, em harmonia, o passado e opresente, sem negação àquelas origens tão pre-nhes de grandeza e virtuosidades proclamadaspor aí afora, que devem ser cultuadas como mo-numentos, prodigalizados a nós próprios equantos nos busquem visitar, o prazer e o lazer, aelevação histórica e cultural.27

No seu desfecho, esse enunciado sublinha

24 Reforma, aliás, concluída apenas no seu terceiro man-dato como governador, em 2004.

25 Oliveira (1979).

26 Revista da Federação do Comércio do Estado da Bahia,1971.

27 Idem, ibidem.

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o status de patrimônio da Bahia tradicional para,imediatamente, endereçar o mesmo bem histórico-cultural na direção dos usos do prazer e do lazer,enfim, do entretenimento-turismo. O anúncio estána contramão do princípio que teria informado aparticipação de nomes como o de Vivaldo da Cos-ta Lima no projeto de reforma do Centro Históri-co. Mas, composta também pelo antropólogo e pelaslideranças do candomblé, a aliança entre saberes epoderes – tanto das elites políticas, intelectuaisquanto das lideranças lúdicas e religiosas popula-res em favor da “revitalização” do Pelourinho –deu o suporte necessário para o ideário da moder-nização turística se intensificar na cidade, a partirde um cenário étnico-histórico em que se materi-alizaria a tradição baiana. Com a decepção provocadapelos impasses do setor industrial no Estado, napassagem para a década de 1990 (Druck, 1999), for-ma-se certo consenso em torno da modernização tu-rística, e ela adquire adeptos e defensores entre osmais diversos grupos. Aquele era o momento emque foi a público o trecho transcrito no início destetexto sobre a adesão dos dotes culturais e artísticos,vinculados aos valores da cultura baiana, às inova-ções próprias à sociedade contemporânea, entre asquais o lazer e a diversão promovidos pelo sistemainstitucional turístico. Poderíamos, a essa altura, nosreferir a uma intertextualidade, já que uma suposi-ção merecedora de aprofundamento empírico-analí-tico é a de que a publicidade turística encontra res-paldo em um concerto de sistemas de práticas lúdico-artísticas e religiosas dispostas a se tornarem infor-mações aptas a percorrer circuitos cosmopolitas e,desde aí, alvos do olhar turístico, mediante aintencionalidade das agências humanas que as reali-za como expressões da Bahia como tradição.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO

Perscrutando a tradição como elemento in-terno ao repertório da modernidade, neste artigoprocuramos verificar sob que condições sócio-his-tóricas tal concepção pode compartilhar do mesmohorizonte interpretativo em que se situa a ideia de

inovação. Isso nos levou ao recurso analítico deestudar a sintonia estabelecida entre tradição baianae sistemática turística em Salvador. Ao se perseguiro trajeto, percebeu-se o modo como a tradição infor-mou os destinos da modernização turística naquelesítio urbano e, por outro lado, deu-se na mesmamarcha sua ressignificação como objeto de lazer ediversão. Isso ao se observar como as aliançassociodiscursivas que envolvem elites políticas eintelectuais, ao lado de lideranças lúdico-artísticase religiosas, estabeleceram posições diferenciadaspara os portadores da tradição baiana como um ín-dice de prestígio e mecanismo de consagração.

Ao mesmo tempo, somos levados a concluirque os estudos voltados para processos deressignificação de memórias e narrativas, em con-textos de modernização, por tratarem das conflu-ências entre sistemas de práticas expressivas, téc-nicas, moralidades e afetos, requerem problematizaras dinâmicas históricas nas quais ocorrem tanto atransmissão dos saberes quanto as modalidadesde aprendizado e de reelaboração dos saberes. Issoporque se faz imperativo apreender e compreen-der melhor, a partir dos mapeamentos empíricos aserem realizados, o modus operandi da incorpora-ção individual dos saberes sociais, processualidadepela qual se capacita a agência humana a modular emodelar os impulsos, dando relevo à maneira comose podem deduzir modos de ser e de agir, lingua-gens e expressões. Certamente, pesquisas e refle-xões a respeito das feições várias da economia sim-bólica poderão acrescentar às ciências sociais com-ponentes importantes no conhecimento do socialcomo uma dimensão intersticialmente constitutivada polaridade entre natureza e cultura.

(Recebido para publicação em junho de 2008)(Aceito em outubro de 2008)

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Edson Farias - Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas. Professor do Departamento deSociologia da Universidade de Brasília, Integra o Núcleo de Pesquisa em Cultura, Memória e Desenvolvi-mento, desenvolvendo pesquisas na área de Sociologia da Cultura. Suas mais recentes publicações: Memó-ria, Linguagem e Saber Incorporado em Norbert Elias; Sociologia e a Crítica do Contemporâneo; Tensões emum Processo Civilizador Baiano e Culturas Populares na Economia Simbólica no Brasil.

WHEN INNOVATING IS APPEALING TO TRADITION.THE BAHIAN CONDITION FACING TOURIST

MODERNIZATION

Edson Farias

The objective of this paper is to focus the roleaccorded to tradition as a component of a social-historical dynamics schemed among different groupsin Salvador, but whose effect defined a way ofmodernization connected with the crossing of groupidentities, immaterial and architectural patrimonies,the transit of images and the informational capitalism.Such way of modernization defined a touristicexperience marked by the uses, by the city and in thecity, that are made of space, of memory and of culturalexpressions, resources that are decisive and, at the sametime, they revolve a land of social-symboliccontradictions that feed the symbolic economy.

KEYWORDS: innovation, bahian tradition, touristicmodernization, services.

QUAND INNOVER, C’EST FAIRE APPEL À LATRADITION. BAHIA ET SA CONDITION FACE À LA

MODERNISATION TOURISTIQUE

Edson Farias

L’objectif de cet article est de cibler l’accent mis sur latradition en tant que composante d’une dynamiquesocio-historique tissée entre des groupes distincts àSalvador, mais dont l’effet a été de définir un mode demodernisation lié au croisement d’identités de groupes,de patrimoines immatériels et architectoniques, auxtransits d’images et au capitalisme informationnel. Untel mode de modernisation a engendré une expériencetouristique marquée par les us et coutumes, de la villeet dans la ville, qui transforment l’espace, la mémoireet les expressions culturelles en ressources décisivesmais qui, en même temps, retournent un terrainparsemé de contradictions socio symboliques quisoutiennent l’économie symbolique.

MOTS-CLÉS: innovation, tradition bahianaise,modernisation touristique, services.