quadrohumano

O QUADRO HUMANO (1620-1807)1

Jos Vicente Serro

Sumrio: 1. Tendncias da evoluo secular

2. Padres demogrficos regionais

2.1. Distribuio da populao

2.2. Tendncias de evoluo

2.3. Sistemas familiares e padres de casamento

3. Urbanismo

4. Movimentos migratrios

Ao leitor deste captulo da Histria de Portugal interessaro certamente muito pouco os problemas com que os especialistas da demografia histrica se tm confrontado para reconstituir os movimentos da populao nos sculos XVII e XVIII, bem como as solues metodolgicas que tm ensaiado para os superar. H, no entanto, alguns aspectos que necessitam de ser previamente esclarecidos de modo a que se compreenda melhor a origem, a forma de apresentao e a prpria representatividade dos resultados que adiante se expem. Um deles diz respeito quantidade e qualidade das fontes disponveis. S em 1801, portanto no final do perodo aqui considerado, se produziu em Portugal, por iniciativa de Rodrigo de Sousa Coutinho e Jos Antnio de S, um recenseamento geral da populao que se pode considerar minimamente fivel. Um outro realizado pouco tempo antes, em 1798, por ordem do Intendente Pina Manique, tambm razoavelmente seguro. Para trs dessas datas conhecem-se vrias contagens ou estimativas globais da populao portuguesa, elaboradas em funo de preocupaes de ordem militar, eclesistica, poltica ou meramente corogrfica. No entanto, so em pequeno nmero, distribuem-se desigualmente pelo tempo (no h nenhuma para o sculo XVII, por exemplo) e, sobretudo, face impossibilidade de controlo rigoroso dos valores a apresentados, a sua fiabilidade duvidosa. Suscitam invariavelmente dvidas sobre a datao, sobre o grau de cobertura do pas e, principalmente, sobre o seu ajustamento em relao realidade que pretendiam descrever a populao do pas sendo inevitveis os casos de sub e de sobre-avaliao. Fontes de outro tipo (v.g. registos paroquiais, ris de confessados, livros de ordenanas), eventualmente mais seguras, tm tambm sido utilizadas em estudos de demografia histrica, mas, pelas suas caractersticas e pela sua incidncia geogrfica

1 Texto inicialmente publicado em O Antigo Regime (1620-1807), coord. de Antnio Manuel Hespanha,

vol. IV de Histria de Portugal, dir. de Jos Mattoso, Lisboa, Crculo de Leitores/Editorial Estampa, 1993, pp. 49-69.

J. V. Serro, Quadro Humano 2

local, ajustam-se mal aos objectivos, aqui procurados, de macro-reconstituio de-mogrfica. Nestas circunstncias, todo o intento de reconstituio do quadro demogrfico do Portugal Moderno tem que assentar num conjunto de operaes de manipulao, correco e ajustamento dos dados fornecidos pelas fontes, at se encontrarem os valores que, de forma minimamente verosmil, se considerem representativos do estado e da evoluo dos efectivos populacionais. Neste trabalho fundamos os clculos e as operaes sobre estimativas globais da populao atribudas aos anos de 1706, 1732, 1760, 1768, 1776, 1798 e 18012. importante sublinhar, por conseguinte, que se trata de valores reconstitudos e que as operaes a que foram previamente sujeitos lhes conferem, bem como s anlises sobre eles fundadas, um carcter virtualmente provisrio. Acresce que, como bvio, o grau de confiana dos valores e resultados obtidos por estes procedimentos de reconstituio diminui medida que se desce do geral para o particular, visto que, quanto mais se desagregam os dados originais das fontes, menor o potencial de auto-correco dos valores parcelares. Outro aspecto que importa esclarecer diz respeito forma de apresentao dos quantitativos populacionais. As fontes dos sculos XVII e XVIII referem-se geralmente a fogos, moradores ou vizinhos (expresses equivalentes, em princpio, a agregados domsticos), por vezes a almas (indivduos maiores de 7 ou de 11 anos), mas quase nunca a habitantes, o que tem suscitado o problema da determinao do coeficiente habitantes/fogo. Atendendo s incertezas quanto ao clculo desse coeficiente que se presta a uma discusso quase interminvel3 e maior insegurana dos dados relativos a habitantes, optou-se aqui por basear a maior parte dos clculos apenas nos dados respectivos a fogos. Mesmo admitindo, como sugerem Carvalho e Paiva (1989, p. 213), variaes temporais e espaciais dos coeficientes reais, consideramos esta opo mais

2 Para 1706 usamos um resumo manuscrito indito da Chorographia Portugueza do Padre Carvalho da

Costa, existente na Biblioteca Nacional (Reservados - PBA 136). Para 1732 aproveitamos a "Lista dos Fogos e Almas que ha nas terras de Portugal...", do Marqus de Abrantes, incorporada na Geografia Historica de todos os Estados Soberanos da Europa, de Luiz Caetano de Lima (Lisboa, 1734-36, vol II, pp. 475 ss.). 1760 a data que atribuimos aos valores do Portugal Sacro-Profano, de Paulo Dias de Niza, alis Pe. Lus Cardoso (Lisboa, 1767-68). Para 1768 e 1776 socorremo-nos de J.J. Soares de Barros que, na sua "Memria sobre as causas da diferente populao de Portugal em diversos tempos da Monarquia" (in Memrias Econmicas da Academia das Cincias de Lisboa, 1789, reed. de Lisboa, Banco de Portugal, 1990, t. I, pp. 109-111) se refere respectivamente "Lista das Freguesias e Fogos dos Bispados deste Reino, feita pouco tempo antes da diviso dos ditos Bispados..." (1768?) e s "Listas dos Povos de todas as Comarcas do reino, feitas em 1776" por ordem do Intendente Pina Manique. Para 1798 seguimos o Censo de Pina Manique (i.e. "Relao das Freguesias de Portugal, com a individuao dos seus Fogos, feita na Secretaria da Intendncia Geral da Polcia, por ordem do Intendente Pina Manique" (ANTT-Cons.Guerra, L 275), tambm j publicado por Verssimo Serro (1970). Para 1801 utilizamos as "Taboas topograficas e estatisticas de todas as Comarcas de Portugal... com a Povoao existente no anno de 1801", publ. in Subsdios para a histria da estatstica em Portugal, Lisboa, INE, 1948, vol. II. Pontualmente servimo-nos ainda do Numeramento de 1527, na reconstituio proposta por Hespanha (1986, pp. 88-97). No que respeita datao, crtica e reconstituio destas fontes tm sido propostas vrias solues. Seguem-se aqui Serro (1987 e 1994), trabalhos nos quais se podem tambm encontrar referncias restante bibliografia sobre o assunto. 3 Sobre este problema v. Rau (1965, pp. 14 ss.), Silbert (1978, pp. 113-5), Sousa (1979, pp. 238 ss.),

Serro (1982, t. III, p.220 ss., t.IV, p.269, n.85), Hespanha (1986, pp.95-6), Pinto (1988, p.310-11) e, mais recentemente, Carvalho (1989, pp.204-6 e 211-4).


pertinente enquanto no forem seguramente reconstitudos os valores sobre habitantes para cada uma das fontes4.

1. Tendncias da evoluo secular Dada a cronologia das fontes disponveis, apenas possvel proceder, com alguma segurana, a operaes de reconstituio da evoluo demogrfica no sculo XVIII. o que adiante se far. No que respeita ao sculo XVII, porm, o problema muito mais complicado, visto que entre a Corografia do Padre Carvalho da Costa, dos princpios de Setecentos, e o numeramento quinhentista de D. Joo III, de 1527-32, h um vazio informativo quase completo. Escapam apenas umas poucas fontes de carcter local ou regional, alis ainda insuficientemente trabalhadas, e os dados contidos na Poblacin General de Espaa, reportveis a c.16405. Esta situao tem suscitado atitudes histo-riogrficas bastante diversas, que vo desde a prudente omisso do perodo (v.g. Hespanha, 1986) at formulao das estimativas mais dspares. Frderic Mauro (1989, II, p. 269), por exemplo, estima a populao portuguesa da poca da Restaurao em cerca de 1,3 a 1,5 milhes, seguindo, alis, a perspectiva tradicional j expressa por Lcio de Azevedo (1933, p. 301) de que em 1640, aps um declnio durante o perodo filipino, os efectivos populacionais teriam voltado aos nveis de 1527. Vitorino Magalhes Godinho (1980, pp. 19-25), por seu turno, aponta para 1640 um valor na ordem de 1,9 milhes de habitantes, ou seja, cerca de 422 mil fogos (usa um coeficiente de 4,5). Da at ao princpio do sculo XVIII o aumento teria sido duns 10%. Oliveira Marques (1984, II, pp. 87-8) fala de "quase 2 milhes de pessoas roda de 1640" e de uma estagnao demogrfica desde essa data at ao final do sculo XVII. Verssimo Serro (1975 e 1982, IV), socorrendo-se da Poblacin... e de outras fontes coevas, admite crescimento populacional durante a poca filipina, embora ligeiro, situando-se a populao, em 1640, na casa dos 1,4 ou 1,5 milhes de habitantes (entre 300 mil e 430 mil fogos, consoante os coeficientes utilizados). Antnio de Oliveira (1975) prope para 1639, a partir de vrias fontes, um valor de 510 mil fogos, ou cerca de 2 milhes de habitantes. Mais recentemente, Romero de Magalhes (1987, pp. 23-28) props um cenrio de evoluo marcado pelo crescimento durante o sculo XVI e princpios do XVII, seguido de depresso aps 1620 (com o mnimo de 314 mil fogos em 1639), estagnao at 1665 e novo crescimento desde essa data at ao final do sculo. Apesar dos riscos que a operao envolve, decidimos tambm ensaiar aqui, embora com muitas reservas, um desenho possvel para as curvas populacionais do sculo XVII. O grfico 1 reflecte os resultados obtidos, inseridos entretanto, para uma melhor relativizao, num enquadramento temporal mais alargado. A estimativa proposta

4 O leitor interessado em proceder converso dos fogos em habitantes poder utilizar os factores de

multiplicao que se deduzem do Censo de 1801, o nico, para todo o perodo considerado, que oferece simultaneamente valores para ambas as unidades de contagem: factor 3,86 para o conjunto nacional, e factores que oscilam entre 3,47 (Aviz) e 4,19 (Viseu) para as diversas comarcas. 5 A Poblacin General de Espaa, de Rodrigo Mendes Silva, foi publicada em Madrid, 1645. Julga-se

que, na parte que se refere a Portugal, os dados sobre populao tenham sido obtidos pelo autor a partir das listas mandadas executar pela Duquesa de Mntua, entre 1636 e 1639, para apuramento dos efectivos militares do pas. Verssimo Serro (1975) publicou e analisou esses dados, tal como constam de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Paris.


resulta de uma conjugao de projeces prospectivas e retrospectivas feitas a partir dos dados de 1527 e 1706 e assenta: (i) no valor percentual (80%) do crescimento de boa parte do pas entre 1527 e 1625, tal como assinalado por Oliveira (1975, p. 503), (ii) no sentido das tendncias indicadas por vrios autores para perodos intermdios e (iii) na aplicao de taxas de crescimento minimamente verosmeis, partindo (iv) do pressuposto da segurana dos valores extremos de 1527 e 1706.

GRFICO 1 Evoluo da populao portuguesa (1520-1800): tentativa

de reconstituio

O padro de evoluo que ressalta da leitura do grfico surge, assim, marcado por um crescimento muito intenso (na ordem dos 0.8% ao ano) durante a maior parte do sculo XVI, seguido de uma desacelerao aps 1580. Cerca de 1620 ter-se- atingido um mximo terico de 475 mil fogos. Entre essa data e c.1660 a populao ter entrado numa fase de recesso ou de estagnao, com o ponto mais baixo em 1640 (466 mil fogos), ao que se seguiu um novo perodo de crescimento, mais modesto, com taxas anuais roda de 0.43. Algures entre o fim de Seiscentos e o princpio de Setecentos o crescimento foi novamente suspenso, para dar lugar ao quadro recessivo que marca as primeiras dcadas do sculo XVIII. Entramos, entretanto, no sculo XVIII, e, aqui, as fontes disponveis puderam ser objecto de um tratamento mais apurado. Os resultados obtidos podem-se tomar por razoavelmente seguros e representativos. No quadro 1 (e no correspondente grfico 2) apresentam-se, para cada um dos anos considerados, quer os valores originais, quer os valores estimados na sequncia das operaes de reconstituio efectuadas6.

QUADRO 1 A populao portuguesa no sculo XVIII (fogos)

O aspecto mais saliente do comportamento secular da populao setecentista reside na existncia de duas tendncias distintas e contraditrias: uma de recesso e outra de crescimento. A primeira corresponde sensivelmente ao primeiro tero do sculo, durante o qual a populao experimenta um lento declnio, razo de uns 0,20% ao ano. Na falta de fontes para anos anteriores prximos, impossvel precisar o momento a partir do qual se iniciou esse declnio, embora os cenrios que estimmos para o sculo XVII apontem para um comportamento regressivo que, em 1706, deveria ser ainda de muito fresca data. De qualquer modo, durante esta fase recessiva a populao ter perdido apenas uns 5% no seu conjunto, o que equivale a qualquer coisa como 3500 a 4000 indivduos a menos por ano. A correlao com o fenmeno emigratrio tentadora. Sabe-se como ele foi particularmente "violento" neste perodo, atrado pelo ouro brasileiro recm-descoberto. A tal ponto que, em 1720, a Coroa teve que intervir, limitando a passagem de gente ao Brasil, para estancar a "despovoao do Reino". Segundo as estimativas de Vitorino Magalhes Godinho (1978, p. 9), a emigrao rondaria ento as 8 a 10 mil sadas anuais.

6 Sobre os mtodos utilizados e sobre a representatividade dos valores obtidos v. Serro (1987 e 1994).

De notar que os chamados "valores originais" incorporam j algumas correces primrias realizadas sobre as fontes.


Entretanto, a partir dos anos 30 aquela tendncia regressiva inverteu-se e a populao portuguesa iniciou um crescimento duradouro que cobriu todo o resto do sculo. Crescimento que, no entanto, conheceu fases de intensidade desigual, bastante desigual mesmo.

QUADRO 2 Evoluo da populao portuguesa no sculo XVIII

Taxas de crescimento anual

Como se pode observar pelo quadro 2, a um aumento bastante rpido verificado at aos finais da dcada de 1770 com uma taxa de crescimento de 0,58% sucedeu uma desacelerao acentuada no ltimo vintnio do sculo, que se prolongaria, alis, pelo princpio de Oitocentos, com as taxas de progresso anual a baixarem para os 0,24%. Ainda assim, para o conjunto da fase de crescimento (1732-1801) a populao portuguesa aumentou cerca de 37%, o que corresponde a um aumento estatstico mdio de 0,46% por ano. Por outras palavras, quer isto dizer que no espao de aproximadamente trs geraes a populao aumentou em mais de um tero.

GRFICO 2 Evoluo da populao portuguesa (sculo XVIII)

Antes de prosseguirmos a nossa anlise, convir referir que alguns trabalhos de incidncia regional merecedores de confiana revelaram tendncias e ritmos de evoluo no coincidentes com os acima apontados. Assim, por exemplo, a populao da diocese de Coimbra (que representava cerca de um dcimo da populao total) comeou por registar um crescimento rpido entre 1710 e 1720 (0,71% ao ano), passando depois a um crescimento mais lento (0,22%) da at ao final do sculo (Carvalho, 1989). Quanto ao Algarve, estudado por Romero de Magalhes, a sua populao (cerca de 3,5% da populao portuguesa) teria conhecido um crescimento longo e sustentado desde 1672 at 1758, com um acrscimo anual de 0,53% antes de 1717, e de 0,65% depois dessa data, entrando de seguida (1758-1796) numa quase estagnao (Magalhes, 1988, p. 20). Regressando aos valores por ns estimados, eles reflectem, quando comparados com os de outros perodos da histria portuguesa, um sculo XVIII com uma notvel pujana demogrfica, nomeadamente no meio sculo posterior a 1730. verdade que no se alcanaram os ritmos de crescimento quinhentistas, mas tambm verdade que, posteriormente, toda a primeira metade do sculo XIX se pautaria por uma evoluo muito mais moderada (0,35% ao ano entre 1801 e 1850), s vindo a populao portuguesa a recuperar e a ultrapassar os ndices de crescimento setecentistas na segunda metade de Oitocentos (taxa anual mdia de 0,77% entre 1850 e 1911)7. escala europeia, as comparaes tornam-se mais difceis, quer pela franca variedade dos diversos comportamentos nacionais, quer pela prpria multiplicidade de estimativas existentes para cada pas ou para o conjunto da Europa. No obstante estes condicionalismos, procurmos reunir no quadro 3 alguns termos de comparao.

7 Taxas calculadas sobre os valores apresentados por Pereira (1973, p. 30). V. tambm Miranda (1990).


QUADRO 3 Evoluo da populao europeia no sculo XVIII

Taxas de crescimento anual

Fontes: Portugal: dados do quadro n 1; Espanha: Nadal (1984, p. 17); Itlia, Alemanha, Escandinvia e Europa Central (i.e. ustria, Checoslovquia e Hungria): Perez Moreda (1986, p. 468); Frana, Holanda e Inglaterra: Grigg (1980, pp. 191, 149 e 61); Irlanda, Sua e Blgica: de Vries (1987, pp. 56-7); Europa (3 estimativas diferentes): de Vries, Grigg e Moreda, j citados.

Como se observa, a evoluo demogrfica do Portugal de Setecentos conforma-se genericamente, quanto aos seus comportamentos tendenciais, com a da Europa. Quer isto dizer que tambm a Europa do sculo XVIII se caracterizou pela expanso demogrfica e pela existncia de duas fases distintas: crescimento mais lento durante a primeira metade do sculo e crescimento mais rpido aps 1750. No entanto, os ritmos de crescimento foram mais fracos em Portugal do que no conjunto europeu, mesmo tendo em conta as divergncias nas estimativas propostas por diferentes autores. Na comparao por pases, Portugal regista, na primeira metade do sculo, uma das taxas de crescimento mais baixas, embora prxima das da Holanda, Sua, Frana, Espanha ou Blgica. J quanto aos valores disponveis para o perodo 1750-1800, o ndice portugus ocupa uma posio intermdia: crescimento inferior ao da Irlanda, da Inglaterra, da Escandinvia, da Blgica, da Sua e da Europa Central, mas superior aos da Alemanha, da Espanha, da Itlia e da Holanda. De qualquer modo, estas comparaes so muito afectadas por uma uniformizao dos intervalos de clculo que no respeita a cronologia real das diversas fases de crescimento. Assim, por exemplo, a taxa de 0,06% para o Portugal da primeira metade do sculo equivalente a uma estagnao apaga a alternncia entre a fase de declnio ligeiro (-0,20%) anterior a 1732 e o ritmo elevado (0,58%) que marcou o meio sculo subsequente. Tal como o valor genrico de 0,46% apresentado para o perodo de 1750-1800 esconde a inflexo operada, em finais dos anos 1770, daquele crescimento rpido para taxas anuais muito inferiores (0,24%). Apesar das diferenas observveis no plano dos nmeros, as flutuaes tendenciais reveladas pela populao portuguesa apresentam semelhanas notveis com as de vrios outros pases. assim que, a exemplo do que aconteceu em Portugal na primeira metade do sculo, tambm na Inglaterra, em Frana e na Sucia se verificou no s um crescimento genericamente mais lento do que na segunda metade, como alguns movimentos de curta durao regressivos ou muito prximos da estagnao. Na Inglaterra, durante as trs primeiras dcadas, a populao evoluiu segundo taxas anuais respectivamente de 0,33%, 0,23% e -0,16%. A populao francesa tambm esteve, tal como a portuguesa, em declnio antes de 1717, a um ritmo anual mdio de -0,12% ou -0,25%. Depois progrediu lentamente, tornando a estacionar nos anos de 1740. Na


Sucia a dcada de 1730 que, com uma taxa inferior a 0,1%, se intercala entre dois perodos de crescimento mais intenso8. Idnticas similitudes se verificam a respeito do movimento de desacelerao experimentado pela progresso demogrfica portuguesa nos finais de Setecentos, fenmeno que detectado em vrios outros pases. Em Espanha passa-se, a partir de 1787, de uma taxa de crescimento de 0,59% para uma de 0,12%. Na Itlia, as trs ltimas dcadas do sculo conhecem taxas respectivamente de 0,57%, 0,30% e 0,22%. Em Frana, depois de um crescimento de 0,72-0,84% entre 1755-1776, o movimento da populao desacelera para os 0,29% no quarto de sculo seguinte9. Destas comparaes internacionais resulta, em suma, que os padres evolutivos da populao portuguesa, no que toca ao sculo XVIII, no apresentam dissemelhanas significativas no contexto europeu.

2. Padres demogrficos regionais Em termos de distribuio e de comportamento, a populao portuguesa apresenta sensveis diferenciaes regionais. Essa mesmo uma das suas caractersticas mais marcantes. Nos pontos seguintes pe-se em relevo essa diversidade regional em vrios dos aspectos em que ela se manifesta.

2.1. Distribuio da populao "Irregularidade", "desequilbrios", "contrastes" so as palavras mais utilizadas na caracterizao da ocupao populacional do territrio metropolitano. O quadro 4, estruturado na base da diviso provincial vigente na poca, d bem a imagem das disparidades existentes. A mais flagrante era, sem dvida, a que opunha a pequena provncia do Minho (cerca de um duodcimo do espao metropolitano) ao resto do pas. Verdadeiro alfobre de gente, como por vezes tem sido designado, a se encontrava cerca de 1/4 da populao portuguesa no sculo XVIII. Para se ter uma melhor percepo desta magnitude, repare-se que a vivia um nmero de habitantes equivalente ao de trs outras provncias juntas T. Montes, Alentejo e Algarve cuja rea, no entanto, era mais de 5 vezes superior. A Estremadura e a Beira eram, escala nacional, as provncias que revelavam um melhor equilbrio entre a sua populao e o espao que ocupavam. Mas j Trs-os-Montes, o Algarve e, sobretudo, o Alentejo apresentavam um claro desfasamento negativo.

QUADRO 4 Distribuio regional da populao (por provncias)

8 As taxas de crescimento relativas a estes pases foram calculadas com base nos dados publicados por

Wrigley (1981, pp. 577 e 213 ss.), Grigg (1980, p. 57) e Helleiner (1967, p. 67). 9 Ver, para estes casos, Nadal (1984, pp. 17 e 90), Lee (1979, p. 219), Grigg (1980, p. 191) e Wrigley

(1981, p. 213).


Estas disparidades demogrficas provinciais encontram a sua melhor expresso nos dados relativos densidade populacional (v. quadro).

QUADRO 5 Densidade populacional (Fogos/km2)

Um enorme fosso separava o superpovoamento do Noroeste e a extrema rarefaco do Alentejo, ou mesmo do Algarve. Enquanto aqui, em 1801, cada quilmetro quadrado era "tranquilamente" repartido (de um ponto de vista apenas estatstico, bem entendido...) por pouco mais de 3 ou de 5 fogos, respectivamente, no Minho ele era "ferozmente" disputado por mais de 26 agregados familiares. Num plano intermdio encontravam-se as restantes provncias, embora sejam notrias as diferenas entre as baixas densidades do Nordeste e da Estremadura (quando descartada da influncia da megalpole lisboeta que, sozinha, absorvia um tero da populao estremenha), e os valores j considerveis da Beira. Valores "considerveis" que, ainda assim, se quedavam aqum da metade da densidade minhota. Observemos agora um outro padro de contrastes regionais que, tradicionalmente, afeioam tambm as realidades nacionais: os contrastes norte/sul e litoral/interior. Para o efeito, o pas foi dividido em 6 unidades regionais, respeitando as divises "naturais"10, cuja matriz se pode observar no quadro 6.

QUADRO 6 Distribuio da populao por divises naturais

Considerando os grandes agregados, o maior contraste o que ope a metade do pas situada a norte do Tejo que se situa ao sul deste rio, o que se verifica no s quando considerados os pesos percentuais das duas regies (80 contra 20 em 1706, 83 contra 17 em 1801), como quando, utilizando um indicador mais adequado densidade populacional confrontamos os 12 Fg/Km2 do Norte com os 3,5 do Sul. O Litoral contrastava igualmente com o Interior, se bem que de modo menos flagrante. Em qualquer dos casos Litoral face ao Interior e Norte face ao Sul os primeiros acentuaram o seu peso proporcional ao longo do sculo XVIII, o que significa que tiveram um crescimento mais rpido. Quanto aos diversos graus de presso (estatstica...) da populao sobre os recursos regionais, avaliados em funo das densidades populacionais, esta matriz de arrumao do teritrio metropolitano continua a evidenciar os contrastes. "Altas presses" detectam-se no Litoral-norte e no Litoral-centro, este ltimo muito influenciado, no entanto, pela populao da capital. O Interior-norte e o Interior-centro so regies de "mdias presses", mas as suas posies relativas na hierarquia invertem-se de 1706 para 1801, como resultado do forte crescimento populacional do primeiro. Todo o Sul uma regio de "baixa presso" demogrfica (abaixo dos 4 Fg/Km2), mas de assinalar a inverso de posies entre o litoral e o interior no decurso deste sculo. Tentemos agora uma escala mais reduzida, para observarmos com mais algum detalhe os contrastes regionais da distribuio populacional e as diversas gradaes de concentrao e disperso. No que respeita a 1801 ficamos ao nvel da comarca e

10 A separao entre Norte, Centro e Sul feita pelos rios Douro e Tejo. Na determinao do que

"litoral" seguiu-se o critrio da agregao das comarcas com abertura para o mar.


apoiamos a anlise nos dados relativos ao peso percentual de cada uma no conjunto da populao nacional (ver figura P1). Para 1706 possvel, graas ao estudo de Antnio Hespanha (1986, pp. 105-11), fazer uma leitura das densidades populacionais escala do concelho (ver figura P2). Verifica-se assim que a populao portuguesa, na passagem do sculo XVIII para o sculo XIX, tendia a concentrar-se no Minho, nas comarcas durienses, especialmente naquelas associadas economia vitivincola, e nas amplas regies de Coimbra, de Viseu e da bacia do Vouga. Avanando para o interior, quer na provncia de Trs-os-Montes quer na da Beira, a populao rarefazia-se. E se, no mapa anexo, a encontramos algumas comarcas situadas em escales intermdios (v.g. Bragana, Miranda, Trancoso e Guarda), fundamentalmente devido sua grande dimenso. Descendo para Sul, pela faixa litoral, encontramos igualmente escassa populao, at depararmos com a enorme concentrao lisboeta. Aqui, na regio mais directamente envolvente da capital, regio rica e progressiva do ponto de vista agrcola, a populao volta a adensar-se. O sistema montanhoso Montejunto-Estrela parece entretanto marcar, para sul e para leste, a barreira separadora entre o Portugal "povoado" e o Portugal "despovoado". Deste ltimo lado h, de qualquer modo, algumas diferenas. As comarcas de Santarm, Tomar e Setbal apesar das suas grandes dimenses asseguram como que a transio entre as duas grandes regies, com contribuies para a populao total superiores s das comarcas da Beira Baixa, do Alentejo e do Algarve. Os padres de distribuio verificados 100 anos antes, tal como nos so apresentados por Hespanha com base numa rede mais fina, confirmam na generalidade os que acabmos de ver, embora ponham a descoberto algumas das 'nuances' micro-regionais e reflictam certas variaes ocorridas no decurso do sculo XVIII11.

2.2. Tendncias de evoluo A exemplo da desigualdade que caracteriza a distribuio da populao pelo territrio, tambm no tocante s flutuaes de mdia e longa durao as diversas regies revelam ritmos de progresso desiguais.

QUADRO 7 Comportamentos demogrficos provinciais

Analisando o quadro 7, relativo aos comportamentos provinciais, verifica-se que as disparidades foram maiores no primeiro tero do sculo. Num clima geral de declnio populacional, em que o pas perdeu 5% dos seus efectivos, o Alentejo e Trs-os-Montes experimentaram uma regresso ainda mais acentuada, com perdas de populao respectivamente de 28% e 18%. No lado oposto, o Minho e o Algarve, sobretudo este ltimo, escaparam mesmo tendncia recessiva dominante e continuaram a crescer. Entre 1732 e 1801 os diversos comportamentos regionais foram, apesar de tudo, menos dspares. Trs-os-Montes recuperou "furiosamente" das quebras anteriores e foi a provncia que mais cresceu: 62% em 69 anos. O mesmo no se pode dizer do Alentejo que, tendo sido a melhor a "cair" antes de 1732, foi a pior a recuperar no perodo

11 Para um comentrio de pormenor aos valores expressos no mapa [P2] v. Hespanha (pp. 106-111).


seguinte. A tendncia para o despovoamento relativo e absoluto da provncia acentuou-se ao longo do sculo XVIII, a tal ponto que, em 1801, no tinha ainda, sequer, reposto os efectivos de 1706. O Minho, porventura reagindo sobrepopulao, abrandou o seu crescimento, o que no obstou, todavia, a que tivesse, escala nacional, um peso proporcional mais elevado em 1801 do que em 1706 (25,1% contra 22,3%). O Algarve, por seu turno, foi uma das provncias cuja populao progrediu mais, e mais regularmente, ao longo de todo o sculo. A Estremadura regista dois tipos de comportamento diferentes. Considerada na sua globalidade, teve um franco crescimento, alis o maior de todos. Mas, se eliminarmos artificialmente Lisboa, h uma outra Estremadura que nos aparece: uma provncia no s esparsamente povoada, como de crescimento quase to lento como o do Alentejo. A Estremadura (Lisboa parte) viria mesmo a experimentar, no final do sculo, uma regresso populacional, perdendo quase um dcimo dos seus efectivos entre 1798 e 1801 fenmeno dificilmente explicvel, diga-se de passagem. Quanto Beira, cresceu de acordo com os padres mdios e manteve-se, ao longo do sculo, como a unidade regional mais equilibrada.

QUADRO 8 Crescimentos regionais 1706-1801

No que respeita s seis divises "naturais" do pas, os seus diferentes ritmos de crescimento a longo prazo ressaltam do quadro 8 (veja-se tambm o mapa anexo). O Litoral-sul foi a regio que mais cresceu entre 1706 e 1801 (61%), continuando, porm, a pesar pouco no conspecto nacional e a ser uma rea de povoamento escasso. Crescimento igualmente forte conheceu o Norte-interior, ainda que, na realidade, nos devssemos reportar apenas faixa central dessa regio. As duas regies litorais do Norte e do Centro que, em conjunto, albergavam cerca de dois quintos da populao portuguesa e incluam as duas principais cidades do pas registaram tambm aumentos populacionais superiores mdia nacional ponderada (30%). Mais lento foi o crescimento do Centro-interior (23,7%). O Sul-interior, esse, teve um comportamento secular regressivo, contrastando fortemente com as suas bordas litorais.

Mapa P3 (representao de ritmos de crescimento regionais)

2.3. Sistemas familiares e padres de casamento Sendo a nupcialidade a menos natural das variveis demogrficas, ela passou a ser tomada, desde h algum tempo, como a chave para a caracterizao e diferenciao dos diversos sistemas ou modelos demogrficos. Tanto mais que ela a que melhor permite estabelecer a articulao entre a demografia e os respectivos contextos econmicos, sociolgicos e culturais das sociedades consideradas. Desde Hajnal (1965) que se vem falando de um modelo de casamento especfico do Ocidente europeu, caracterizado por taxas de celibato definitivo superiores a 10% e por uma idade mdia ao casamento relativamente tardia (acima dos 24/25 anos). Este modelo, patente desde os finais da Idade Mdia, estaria mesmo no centro dos mecanismos auto-reguladores do crescimento populacional, principalmente devido sua aco sobre o controlo da fecundidade, e


seria, por conseguinte, a trave-mestra de todo o sistema demogrfico de Antigo Regime (europeu e ocidental)12 multifacetada problemtica dos comportamentos sociais perante o casamento encontra-se inevitavelmente associada a da famlia e, por extenso, a da organizao dos agregados domsticos, questionando-se at que ponto, e de que modo, os regimes de casamento esto correlacionados com as formas (diversas) de organizao das estruturas familiares. Graas sobretudo aos trabalhos desenvolvidos nos ltimos anos por R. Rowland (1984, 1986, 1989) comeamos a ter, no que respeita a Portugal, alguma luz sobre estas matrias que, ainda no h muito tempo, andavam quase completamente arredadas das preocupaes da demografia histrica portuguesa. Os estudos monogrficos relativos ao perodo que aqui nos ocupa so to escassos que no autorizam concluses seguras. No entanto, como foi constatado por Rowland a partir do confronto de dados de pocas muito diferenciadas, parece ter-se mantido durante bastante tempo, nalguns casos at meados do nosso sculo, uma notvel permanncia dos padres regionais diversificados, quer no que respeita estrutura dos agregados domsticos, quer no que se refere aos comportamentos matrimoniais. Ora, isso permite-nos, com as devidas reservas e cautelas, projectar retrospectivamente para a "poca pr-estatstica" alguns dos padres detectados para a poca contempornea. Pelo menos a ttulo de hipteses de trabalho.

QUADRO 9 Padres regionais de nupcialidade (segunda metade do

sculo XIX)

Relativamente nupcialidade, os dados do quadro 9 (1878), aparentemente no desmentidos pelas informaes esparsas disponveis para os perodos anteriores (quadro 10), revelam, como traos principais, os seguintes: (i) os homens casavam-se invariavelmente mais tarde do que as mulheres, mas sem divergncias significativas entre as diversas regies; (ii) as mulheres, pelo contrrio, acediam ao casamento bastante mais cedo no Sul do pas (Algarve, Alentejo, Ribatejo e mesmo Beira Baixa) do que no Norte; (iii) homens e mulheres casavam-se tambm mais no Sul, enquanto no Norte, especialmente no Minho, Beira Alta e Trs-os-Montes, uma percentagem elevada de cada gerao permanecia celibatria

QUADRO 10 Idade mdia ao casamento (sculos XVI-XVIII)

Por seu turno, a anlise da estrutura dos agregados domsticos em vrias (infelizmente poucas) localidades/regies de Portugal, tal como consta do quadro 11, parece evidenciar um contraste ntido entre o Sul e o Norte do pas. No primeiro predominaria a famlia nuclear e a regra de residncia neolocal (i.e. o casal recm-constitudo funda uma nova unidade de residncia). No segundo, detecta-se um grande peso da famlia troncal, nas suas variantes mltipla e alargada, associada a uma forte implantao da regra de residncia patrilocal (instalao do novo casal na casa paterna). Entretanto, os

12 Desenvolvimentos e reelaboraes posteriores destas hipteses em Chaunu (1974), Wrigley (1981),

Smith (1983) e outros.


dados sobre a estrutura dos agregados domsticos revelados, escala nacional, pelo Censo de 1960, parecem confirmar esta diversidade de padres regionais, nomeadamente a tendncia para o sistema familiar se tornar mais nuclear medida que se vai de Noroeste para Nordeste e de Norte para Sul (Rowland, 1984, pp. 17-18).

QUADRO 11 Estrutura dos agregados domsticos (sculos XVI-XIX)

Tm sido ensaiadas vrias interpretaes para esta diversidade de padres, bem como para a sua articulao com os padres de nupcialidade. Tem-se explorado e privilegiado nomeadamente a sua relao com variveis de tipo demogrfico e principalmente scio-econmico densidade populacional, propriedade, herana, enfiteuse, organizao do trabalho domstico (cf. Poinsard, Descamps, Willems, Bacci, Brando, Feij, Dures, Silva). Robert Rowland (1989, pp.119-128) colocou, no entanto, algumas dvidas ou objeces pertinentes a algumas das correlaes estabelecidas, advertindo principalmente contra a importao de modelos concebidos para outras regies europeias e contra a generalizao apressada de concluses cuja validade assenta apenas nas contextualizaes locais ou regionais em que foram verificadas. Sugeriu, entretanto, a hiptese de uma fundamentao mais cultural do que econmica ou demogrfica para os comportamentos e padres j detectados. A matria exige assim, ainda, novas investigaes at que se possa chegar a um quadro explicativo seguro.

3. Urbanismo Os critrios de identificao do que populao urbana so diversos, complexos e susceptveis de uma controvrsia quase interminvel, como tem sido patente nos estudos da especialidade. Aqui adoptamos o critrio quantitativo, i.e. aquele que considera urbana uma populao que resida num aglomerado superior a n habitantes ou fogos. o critrio de mais fcil manuseamento estatstico e mais adequado a estudos comparativos. Em contrapartida, tem a desvantagem de poder dar cobertura a populaes e a povoaes funcionalmente no urbanas. Alm disso, coloca sempre o problema da definio do limiar mnimo, o qual, compreensivelmente, dever variar em funo do tempo, do espao e da escala considerada. Neste trabalho adoptou-se o limite mnimo de 1000 fogos para considerar urbano um aglomerado populacional portugus do sculo XVIII. Pareceu-nos ser o mais adequado realidade nacional e prpria tradio historiogrfica portuguesa13. Numa perspectiva internacional, porm, porventura demasiado "severo", visto que nas anlises mais correntes se tm utilizado, para este perodo, valores na ordem dos 2 a 3 mil habitantes (cerca de 500 a 800 fogos). Antes de prosseguirmos, uma advertncia, ou melhor, uma insistncia: tal como j afirmmos no princpio deste captulo, o grau de segurana e de confiana das fontes utilizadas decresce significativamente medida que se desce para o plano dos

13 A fundamentao para o critrio utilizado pode encontrar-se em Serro (1987). Note-se, entretanto, que

todos os valores aqui considerados respeitam apenas a populaes "intra-muros", tendo sido excludos os chamados "termos".


pormenores. Isso torna-se particularmente sensvel no ponto agora em questo. Os dados e as interpretaes que se seguem, devem, pois, ser encarados luz desta advertncia e tomados como provisrios.

QUADRO 12 Populao urbana portuguesa no sculo XVIII

Dos dados disponveis (v. Quadro 12), ressaltam vrias possibilidades de leitura. A mais sugestiva e de certo modo surpreendente, atendendo a uma imagem ainda muito corrente que dele se faz (vd., por todos, Godinho, 1980) a de que Portugal era, no sculo XVIII, um pas fortemente urbanizado para os padres habituais das sociedades de Antigo Regime14. Fortemente urbanizado no duplo sentido de comportar uma elevada taxa global de populao estatisticamente urbana na casa dos 18% e de possuir um nmero aprecivel de aglomerados urbanos, tendo em conta a dimenso do territrio. escala europeia, essa taxa de urbanizao portuguesa mesmo bastante elevada. Em Frana, por exemplo, a populao urbana representaria 16,1% em 1700 e 19,5% em 1801, segundo as estimativas de Toutain (1963), ou volta de 14% segundo as estimativas de Dupeux (1974). Mas preciso notar que estes autores consideram aglomerados urbanos os de dimenso superior a 2000 ou a 3000 habitantes respectivamente, o que, em Portugal, equivaleria a incluir na classificao de urbana a populao residente em ncleos superiores a 500 ou a 800 Fg, ultrapassando assim substancialmente os 18% estimados. No caso da Inglaterra, um dos pases mais urbanizados da poca, Deane e Cole (baseados num limite mnimo de 5000 hab / 1300 Fg) avaliaram a sua populao urbana em 15-16% para 1750 e 25% para 1800. Law (limite mnimo de 2500 hab / 650 Fg) estimou-a, para as mesmas datas, respectivamente em 24,1% e 33,8%15. O Quadro 13 proporciona-nos, entretanto, uma perspectiva comparativa mais alargada, se bem que os limites mnimos usados pelas duas fontes de comparao exeram alguma distoro sobre os dados portugueses.

QUADRO 13 Taxas de urbanizao em alguns pases europeus

Considerando, para facilitar a leitura do quadro, apenas o ano de 1800, Portugal surge no contexto europeu, em qualquer dos escales, numa posio intermdia alta, com taxas de urbanizao inferiores dos pases do Noroeste e a dois pases do Sul as macrorregies europeias mais urbanizadas mas superiores s da Frana, dos Balcs, da Escandinvia e de toda a restante Europa do Norte, central e oriental. Uma outra leitura que se pode extrair do Quadro 12 a de que, apesar do nmero de centros urbanos ter aumentado quase 25% entre o princpio e o fim do sculo, a populao que neles vivia, proporcionalmente populao total do pas, era praticamente a mesma em 1800 do que em 1700.

14 Esta caracterstica j se verificara, alis, para os princpios do sculo XVI: em 1527 a taxa de

urbanizao rondaria igualmente os 18% (Serro, 1983). 15

Valores para Inglaterra colhidos em Abrams (1978, p. 248).


A estabilidade deste ndice de urbanizao o resultado do facto de a populao urbana apresentar, ao longo do sculo, uma taxa de crescimento ligeiramente inferior do conjunto da populao. Mas tambm, por outro lado, uma estabilidade apenas estatstica, afinal fictcia, que oculta duas tendncias distintas e contraditrias: (i) enorme crescimento de Lisboa e do Porto, (ii) reduo do peso relativo dos restantes aglomerados urbanos. No espao de um sculo, enquanto os segundos estagnaram ou regrediram, os primeiros viram a sua populao aumentada, respectivamente, em 56% e 148%. Pode assim dizer-se que a Provncia se desurbanizou em proveito de uma urbanizao intensiva das duas principais cidades. Com efeito, se eliminssemos artificialmente as populaes de Lisboa e do Porto, verificaramos que, entre 1706 e 1801, apenas em Trs-os-Montes e muito insensivelmente na Estremadura, a populao urbana aumentou o seu peso na populao total das respectivas provncias. Em todas as restantes regies a taxa de urbanizao desceu mesmo ao longo do sculo XVIII, de forma muito acentuada no Sul (Algarve e Alentejo), mas tambm na Beira e no Minho. Voltemos a Lisboa, a grande megalpole portuguesa, capital do Imprio e uma das maiores cidades europeias do seu tempo16. As informaes de que dispomos sobre a populao de Lisboa anteriores ao sculo XVIII apresentam uma fiabilidade mnima, correspondendo por vezes a estimativas bastante grosseiras, ou mesmo fantasiosas, produzidas por alguns autores coevos. costume citar-se Fr. Nicolau de Oliveira que apontou 165 mil habitantes para c.1620 (Livro das Grandezas de Lisboa), Mendes Silva que, na Poblacin General, 1645, deixou um cmputo de 67 mil vizinhos (entre 233 mil e 335 mil habitantes, segundo Verssimo Serro), Pedro Davity que, na Descripo geral da Europa, de 1660, lhe atribuu mais de 120 mil habitantes, entre outros. Mas, quanto a estes nmeros, nem mesmo sabemos se eles so aceitveis enquanto ordens de grandeza. Quanto ao sculo XVIII, perodo para o qual j possvel reconstituir com alguma segurana a evoluo demogrfica de Lisboa, verifica-se que o seu crescimento foi bastante rpido (v. Grfico 3)17. certo que durante os primeiros trinta anos a populao da capital esteve em recesso, acompanhando, de resto, a tendncia geral do pas. Mas, a partir de 1732, cresceu a um ritmo anual mdio de 1,25%, s interrompido em 1755 por um fenmeno acidental o Terramoto cujos efeitos tiveram uma incidncia drstica sobre o crescimento populacional. Lisboa ter perdido nessa altura cerca de 12% da sua populao. A recomposio dos efectivos anteriores ao Terramoto demorou uns 25 anos a realizar-se, mas, a partir de 1780, o ritmo anual de crescimento (cerca de 1,2% at 1801) voltou aos valores das dcadas de 1730 e 1740, o que torna legtimo consider-los como os valores tpicos da evoluo demogrfica lisboeta durante o sculo XVIII. No limiar do sculo XIX, a capital portuguesa contaria com cerca de 44000 Fogos e um nmero certamente superior a 250000 habitantes.

GRAFICO 3 Evoluo da populao de Lisboa (sculo XVIII)

16 Sobre a posio de Lisboa no contexto europeu v. Bairoch (1988, pp. 276 ss.).

17 Sobre a metodologia e as fontes utilizadas na reconstituio da evoluo demogrfica de Lisboa, v.

Serro (1987, p. 54). Para esta reconstituio foram usadas fontes relativas a 1706, 1732, 1747, 1755, 1758, 1779, 1790, 1792, 1798, 1800 e 1801.


A terceira leitura que o Quadro 12 nos autoriza e sugere a de que a estrutura urbana portuguesa era desequilibrada e os seus desequilbrios se acentuaram ao longo do sculo. Esses desequilbrios eram, por um lado, de tipo regional, integrando-se nos padres mais gerais das estruturas demogrficas portuguesas j abordados acima. Traduziam-se, por exemplo, por uma distribuio desigual das taxas de urbanizao, das densidades urbanas18 e do nmero de aglomerados urbanos atravs das diversas provncias ou regies. A este respeito, pode dizer-se que a chamada "rede urbana" era de malha desigual e apresentava mesmo vrios buracos, nomeadamente no Baixo Alentejo, na Beira interior e em Trs-os-Montes. Mas o grande desequilbrio da estrutura urbana portuguesa patenteia-se sobremaneira quando se observa que, de um lado, existia Lisboa, cidade desproporcionadamente grande que, em 1706, chamava a si 4,9% da populao total e 26,2% da populao urbana, valores que, um sculo mais tarde, ascendiam j a 5,8% e 32%. Do outro lado, isto , para alm de Lisboa, no existiam seno ncleos de dimenses muito mais reduzidas. Mesmo o Porto, que, durante o sculo XVIII, cresceu espectacularmente e se afirmou em definitivo como a segunda cidade do pas, quedava-se pelos 11 mil fogos, ou seja um quarto da populao da capital. Dos outros 51 aglomerados registados no princpio do sculo XIX, apenas cinco se situavam acima dos 2500 Fg (cerca de 10000 hab), tendo dois deles (Coimbra e Braga) pouco mais de 4000 e os restantes (Setbal, vora e Elvas) roda de 3500.

4. Movimentos migratrios Ainda est por fazer um estudo geral sobre a mobilidade dos portugueses mas, numa viso impressionista, esta parece constituir uma das suas mais importantes caractersticas, desde os tempos da prpria formao da nacionalidade. Adoptando e adaptando o sentido do ttulo de um artigo de Vitorino Magalhes Godinho (1978), poderamos mesmo falar de uma "constante estrutural" de longa durao. Os movimentos migratrios internos assumiram, desde sempre, duas caractersticas principais: sazonais e definitivas. Os movimentos sazonais estavam associados aos trabalhos agrcolas, fazendo deslocar massas de gente considerveis de Trs-os-Montes e do Minho para o Vale do Douro (depois da expanso vitivincola de finais do sculo XVII) e das Beiras para o Vale do Tejo, a Estremadura e o Alentejo, por ocasio das ceifas, das vindimas ou da apanha da azeitona. Estas movimentaes sazonais, conquanto no contabilizveis, so testemunhadas por variadssimas fontes coevas desde o princpio do sculo XVI, pelo menos. Quanto s migraes definitivas, elas tm sido evidenciadas atravs de vrios estudos demogrficos de carcter local. Mas precisaramos de muitos mais estudos desse tipo, centrados, nomeadamente, sobre os registos paroquiais de casamentos, para podermos determinar, com alguma segurana, os padres tpicos de mobilidade interna. Muitas

18 O clculo da densidade urbana (ratio Pop.Urb./Km2) til para uma melhor comparao da

intensidade relativa da urbanizao entre diversas regies. Medida aqui em Fogos Urbanos por Km2 apresentava, em 1801, um valor mdio de 1,5 para o conjunto nacional, com oscilaes provinciais acima e abaixo que iam dos 0,5 de Trs-os-Montes aos 3,2 do Minho. O Alentejo e a Beira registavam igualmente baixas densidades urbanas (0,8). O Algarve ajustava-se mdia e, no que respeita Estremadura, considerada sem Lisboa, o seu valor era baixo (1,1); incluindo a populao da capital, saltava para os 3,5.


seriam certamente o produto da fixao de trabalhadores migrantes, ajustando-se, por conseguinte, aos eixos de circulao j apontados. Outras corresponderiam porventura ao efeito de atraco exercida pelos centros urbanos. O grande crescimento populacional registado pelas duas maiores cidades, Lisboa e Porto, durante o sculo XVIII, a melhor prova de que a corrente migratria em direco s cidades funcionou nesta poca. Mas, aparentemente, apenas em relao s cidades maiores, pois que as restantes no registaram crescimento. Falar de uma corrente migratria campo-cidade tambm ainda prematuro, visto que no de excluir a hiptese de uma mobilidade realizada por populaes j urbanizadas ou semi-urbanizadas. No que se refere emigrao para o exterior, sabemos que ela se manteve elevada durante este perodo, embora com oscilaes de intensidade. De acordo com os dados apresentados por Godinho (1978, pp.8-10), o perodo aqui considerado abre em alta, com uma mdia anual superior a 5 mil emigrantes entre 1580 e 1640. Durante esses anos teriam sado do pas de 300 a 360 mil indivduos. Dirigiam-se para os vrios quadrantes do Imprio, j com o Brasil cabea, mas muitos tambm para Castela, aproveitando as oportunidades abertas pela unio dinstica. Durante este perodo ter sido tambm notvel a emigrao de judeus e cristos-novos para alguns pases europeus, em fuga Inquisio. Depois da Restaurao, o movimento ter abrandado para uma mdia de 2000 a 2500 sadas anuais at ao final do sculo XVII. Mas, logo depois, veio o "ciclo do ouro", o qual, ainda segundo Godinho, ter atrado para o Brasil mais de meio milho de portugueses (talvez 600 mil) s entre 1700 e 1760, o que corresponde a uma sangria anual de 8 a 10 mil indivduos. Para se ter uma ideia do significado destes nmeros, bastar dizer que eles representavam, por ano, mais do que a populao somada da terceira e da quarta cidades do pas. Seria interessante conhecermos a incidncia regional desta emigrao e dos movimentos migratrios em geral, mas, infelizmente, no dispomos de fontes quantificveis nem as referncias de tipo qualitativo que se conhecem so suficientemente esclarecedoras. H, todavia, uma forma indirecta de nos aproximarmos ao problema, ainda que grosseiramente, sublinhe-se. Trata-se da anlise dos dados relativos taxa de masculinidade em 1801 (ver mapa anexo), partindo do pressuposto, evidentemente discutvel, de que quanto menores forem as taxas de masculinidade, maiores so as probabilidades de elas traduzirem situaes de emigrao, quer para o exterior, quer para outras regies. Sabe-se que a taxa de masculinidade nos nascimentos, em Portugal, anda volta de 105 homens para cada 100 mulheres19. Os valores abaixo deste significaro, portanto, situaes anmalas. Ora, verifica-se que em 1801 a taxa de masculinidade mdia, para o conjunto das comarcas do pas, era de 97%. A confirmar a ideia de esse valor atribuvel emigrao est o facto de, nos dados relativos ao cruzamento idades/sexos, a feminilidade ser mais forte no perodo activo faixas etrias dos 25 aos 60 anos equilibrando-se os sexos acima e abaixo daqueles limites20. De uma maneira geral, era no Norte, no Centro e no Algarve que se verificavam as taxas de masculinidade mais baixas, traduzindo, certamente, situaes de forte presso demogrfica sobre os recursos disponveis. Mas tambm as populaes do Centro-

19 V. Nazareth (1979, pp. 62 ss.), Sousa (1979, p. 89), Correia (1946).

20 Cf. Joel Serro (1973, pp. 79-81) e Sousa (1979, pp. 295 ss.).


interior, de parte do Nordeste e do Baixo Alentejo conheciam desequilbrios locais. Significa isso que, mesmo em regies de baixa densidade demogrfica, as populaes no logravam a satisfao das suas necessidades, o que tanto se poder explicar por presses de ndole malthusiana, como pela pobreza intrnseca dos solos (ou, de uma forma mais geral, das estruturas econmicas regionais), ou como por desigualdades scio-econmicas acentuadas. Como se pode observar no mapa junto, as regies que tinham maior dificuldade em responder localmente ao seu prprio peso demogrfico eram o Minho interior e as comarcas de Leiria e de Lagos. Mas a emigrao era tambm muito forte nas comarcas de (por ordem decrescente) Penafiel, Crato, Barcelos, Pinhel, Viseu, Linhares, Tavira, Vila Real e Feira ampla "representatividade" geogrfica, como se v. Quanto s regies onde a taxa de masculinidade era mais elevada, ultrapassando os 100%, situavam-se predominantemente na Estremadura (Oeste), no Ribatejo e no Alto Alentejo. Vrias hipteses explicativas se podero propor. Nalguns casos, o elevado nmero de homens explica-se, por certo, por razes de ordem militar. Normalmente o Alto Alentejo era uma zona onde se concentravam muitas praas militares, as quais deveriam estar particularmente guarnecidas de soldados nesta poca de guerra21. Outras regies de forte masculinidade (v.g. o Oeste, o Ribatejo e Setbal) eram, por seu turno, regies de destino de correntes migratrias internas, sazonais ou definitivas, prenunciando j o amplo movimento de povoamento e colonizao que as viria a caracterizar sobretudo na segunda metade do sculo XIX e no sculo XX.

21 1801 o ano da chamada "Guerra das Laranjas", campanha militar em que Portugal se viu invadido

pelos exrcitos espanhis.


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