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W. J. Solha A MAGIA DOS Q/U/A/D/R/I/N/H/O/S Se você pensa nesta imagem... ... e digita esta série especial de letras - f/o/t/o/g/r/a/m/a/s - seu leitor verá algo bem semelhante:

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W. J. Solha

A MAGIA DOS

Q/U/A/D/R/I/N/H/O/S

Se você pensa nesta imagem...

... e digita esta série especial de letras - f/o/t/o/g/r/a/m/a/s - seu leitor verá algo bem

semelhante:

Se pensa em algo assim...

... e digita esta sequência - q/u/a/d/r/i/n/h/o/s - , seu leitor, do mesmo modo, verá algo

parecido:

Os gibis e o cinema funcionam com a mesma magia da escrita, como se vê neste trecho:

L/a/n/c/e/l/o/t ar/r/e/m/e/s/s/a o m/a/c/h/a/d/o, q/u/e s/a/i g/i/r/a/n/d/o n/u/m v/ó/r/t/i/c/e a/t/é

e/n/c/r/a/v/a/r-s/e n/o p/e/i/t/o d/e M/o/d/r/e/d/:

T-C-H-U-D!

- H-u-h!

Nosso cérebro, além de capaz de ler qualquer combinação de sinais que obedeça a uma

convenção...

... tem o dom de recriar tipos, sons, locais e acontecimentos a partir de poucos dados que lhe

sejam fornecidos. Jean Valjean, por exemplo, personagem principal de “Os Miseráveis” de

Victor Hugo, é preso por roubar um pão, foge da penitenciária, sofre várias transformações

para melhor e muda o nome para Madeleine, terminando prefeito de Montreuil-sur-Mer,

sempre perseguido pelo Inspetor Javert. Além dessa sinopse, a única descrição física desse

homem excepcional é esta, dita de passagem quando ele ainda está nas galés:

Um miserável doué d'une force herculéenne, dotado de uma força hercúlea.

Todo leitor do romance, no entanto, vê esse personagem durante a leitura. Cada um de um

modo diferente, mas o vê. Se você é Billie August e vai adaptar o livro para o cinema,

imaginará Jean Valjean como Liam Neeson.:

Se é Jean-Paul Le Chanois e vai fazer a mesma coisa, vê-lo-á como Jean Gabin:

Se é Josée Dayan, seu ator será Depardieu:

Às vezes essa imagem coincide em vários leitores. Ao ler o romance “O Poderoso Chefão”, do

Mário Puzzo, muito antes de sua transposição para as telas, por exemplo, foi assim que vi Don

Vito Corleone:

Do mesmo modo, Moacyr Góes e Luiz Fernando de Carvalho viram a mesma Maria Fernanda

Cândido em Capitu, quando leram “Dom Casmurro”, e assim ela apareceu no cinema em

2003, na televisão, em 2009:

Mas vamos a mais um prestidigitação mental:

A psicologia da Gestalt tem uma frase célebre: “O todo é mais do que

a soma das partes que o constituem”. Isso pode ser exemplificado

com a junção dos ítens “casinha”, “riacho”, “coqueiro” e “sol”

formando uma quinta coisa, que é a “p/a/i/s/a/g/e/m.

Foi assim que alguém da Mesopotâmia, há muitos milênios, olhou

para o céu numa de suas noites de vigília, viu um curioso grupo de

estrelas, ligou os pontos - como nos jogos das revistinhas de quebra-

cabeças - e anotou:

- E/s/c/o/r/p/i/ã/o.

Bem,

na infância eu já me encafifava com o fato de sentirmos as narrativas veiculadas através dos

quadrinhos com a mesma fluência obtida pelas letras nos livros e pelos fotogramas no

cinema.

Como que para confirmar a identificação, muitos cineastas se servem do storyboard - espécie

de quadrinização esquemática dos roteiros - para visualizar melhor as cenas que têm de

rodar. Veja os desenhos para uma sequência de Street Fighters:

Falta ao storyboard, evidentemente, a intenção de

alcançar um leitor não previamente envolvido na

história. Os desenhos, aí, são um meio, não um fim.

Nas histórias em quadrinhos, além de maior

acabamento, surgem acessórios vitais para a

sensação de realidade que nos quer passar, como os

balões para conter falas e pensamentos dos

personagens...

... além das onomatopéias, que funcionam como as trilhas sonoras no cinema, na produção de

ruídos.

Somos, assim, induzidos a “assistir” às narrativas quadrinizadas... como se fossem filmes,

como se fossem romances. Mas como seus autores conseguem isso?

Voltemos à psicologia da Gestalt. Ela descobriu que a mente, se colocada ante uma série de

imagens semelhantes estrategicamente combinadas, interpreta-a como sendo uma só e vê

movimento nessa “imagem única”.

Se você fizer um vai e vem com os olhos, de um para o outro pato, na foto abaixo, verá os dois

como se fossem um só, abrindo e fechando as asas.

Agora veja esta tira de Charles Schulz, em que Snoopy diz a Woodstock para aprender com o

passado, viver o presente e olhar para o futuro, numa frase vivida com um movimento em

três tempos:

Parodiando Galileu: Snoopy e o passarinho se movem!

Há sempre uma relação poderosa, nos gibis, entre causa e efeito, numa seqüência que nos

arrasta com ela. Veja na primeira história do Capitão Márvel, de 1940, como - também em

três lances - temos a transformação de pequeno Billy Batson no super-herói, que é

imediatamente submetido a um juramento sagrado:

Os recursos já criados e a criar, no gênero, são infinitos. Às vezes as duas partes da ação vêm

num quadrinho só, dividido em dois – causa e efeito - como neste, isolado, ampliado e

reproduzido em tela por Lichtenstein:

Veja, na breve sequência abaixo, como a identidade com o cinema é total. No primeiro

quadrinho, em cena aberta, “o garoto prodígio” diz (numa tradução livre) “Esse cara torra

dinheiro como se ele desse em árvore”, Batman responde: “Não em árvore, Robin...” e o close

nos leva à importância do que ele fala a seguir: “mas num pé de coca”:

Montagens como essas são conhecidas no cinema por “externas”. Um quadrinho raramente

existe sem um anterior e outro, posterior, a não ser o primeiro e o último de uma história.

Mas há, também, igualmente importantes, os quadrinhos com “montagens internas”. Na

pintura, essa força interior é o que mantêm vivos os grandes quadros. Vá ao Museo Reina

Sofia, em Madri, e veja as incessantes levas de turistas que entram para ver o “Guernica” de

Picasso. Japoneses, belgas, alemães, portugueses, italianos, americanos, brasileiros, todos

parando, afinal, ante a obra mais importante do século XX e se impressionando com ela.

Perguntei-me, no que também fiz isso: “O que há numa representação única, imóvel, como

essa, pra causar tanta impressão, num mundo em que a imagem em movimento se tornou

absolutamente soberana?” A resposta me veio de minhas aulas de pintura recebidas na

adolescência: no “caminho do olho”:

Que caminho é esse?

Eu lhe mostro. Eis que você chega, com vários outros visitantes, próximo ao “Guernica” -

imponente por trás de uma espessa placa de vidro a prova de balas - nos seus 3,50 X 7,82 m.

Aproximando-se dele, seus olhos, de imediato, são atraídos por uma série de detalhes:

pela lâmpada que explode em luz, no alto, simbolizando o

horror e o absurdo do bombardeio pesado da Lutfwaffe

sobre o lugarejo:

... pelo cavalo que relincha, enlouquecido, sob ela...

... pela cabeça do touro, mais à esquerda, acima da mulher que grita

prostrada, com o filho nos braços...

... pelo cadáver no chão, segurando a espada quebrada...

... pelo homem que brada aos céus, no lado direito...

...pela figura que acorre com um candeeiro, em

movimento para o centro da tela...

... pelo homem que cai de joelhos, no núcleo do

quadro, olhando para a lâmpada acesa...

... e voltamos a recuar para ver o conjunto, agora inteirados da força de todos os seus

detalhes:

O “Guernica”, na verdade, é um thriller em quadrinhos!:

Eisenstein, em “Reflexões de um Cineasta”, cita todo o trecho de um texto de Leonardo, em

que o mestre italiano descreve um minucioso... roteiro... para um quadro sobre o Dilúvio

(jamais realizado), onde são previstos flagrantes do céu terrível, da borrasca, do vento, das

árvores arrancadas pelo vendaval e pelas enxurradas, prevê flagrantes das inundações, dos

animais acuados pelas águas, dos homens e mulheres desesperados, dos gritos, das lutas

mortais por espaço, das embarcações naufragando, etc, etc. “Trata-se – diz o diretor do

“Couraçado Potemkin” - de uma extraordinária folha de montagem, com a finalidade de

determinar a trajetória do futuro movimento na superfície da tela”.

Repare como nossos olhos - do mesmo modo - vasculham tudo, a começar pela lâmpada

extraordinariamente acesa (como a do “Guernica”), neste quadrinho criado pelo genial Will

Eisner para seu personagem “Spirit”:

Dela, você passa para o detetive típico dos filmes classe B – chapéu e capa de gabardine -

reconhece o clima noir da narrativa que se inicia, enche os olhos com a grade do bueiro e com

a solidez geométrica das pedras da rua e da calçada, atenta para a lata vazia que vem na

enxurrada e está prestes a se despencar no esgoto, vê a assinatura “By Will Eisner” junto ao

hidrômetro, olha de novo para o fabuloso clarão emitido pela lâmpada do primeiro poste... e é

levado, pela belíssima perspectiva dos outros postes, para o coração das trevas... de onde

provém nosso herói.

Agora veja uma “montagem externa”, dessa mesma narrativa. Na página, abaixo, você se

aproxima da placa circular do POLICE H. Q. (Police Headquarters – Quartel-general ou

central de Polícia), depois seus passos vão chapinhando no corredor da chefatura, você

empurra a porta do gabinete do delegado - que está lá, receoso, no escuro -, ele lhe pergunta,

de seu birô, “Quem é você?”, mas é interrompido pela identidade revelada no clarão e

estrondo de um raio: CRASH!

Se se tratasse de um storyboard, teríamos um travelling até a placa, uma panorâmica do

corredor da polícia ( feita de um plano oblíquo superior), um plano de conjunto com a sala do

inspetor, que está junto da janela, a porta se abre, um plano americano – em contracampo -

mostra o velho policial de costas, sentado, tenso, depois um plano americano lateral dele,

enquadrando também o Espírito, e o raio estronda na janela, entre os dois.

Uma “montagem externa” junto de outra, “externa”, fizeram Milton Caniff famoso. Trata-se

da sequência abaixo, feita para a história “Terry e os Piratas”. Repare nos quadrinhos da tira

superior, em que se confirma a morte da personagem Burma, e – num corte no tempo - veja o

quadrinho maior, largamente panorâmico, bem no estilo western de John Ford, em que

damos com os dois homens abatidos ante o tosco túmulo que improvisaram para a

companheira, já sepultada, na extremidade direita do desenho. Usufrua isso, como um grand

finale:

OK?

Ah,

em tempo:

nós todos vivemos uma História em quadrinhos: