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Carlos Casturino Rodrigues

O Irmão Gêmeo do Falecido

Edição revisada

Curitiba – Paraná

2008

Prefácio

É na simplicidade e na modéstia que a arte se

esconde, não somente nas rodinhas de amigos, nos

intervalos de reuniões, mas também no conto “O Irmão

Gêmeo do Falecido”. Casturino mostra a forma de revelar

a nossa origem e a cultura dos rincões, de forma autentica

e simples, sem deixar escapar os fatos que fazem a

historia, a manobra política abusando da boa fé popular,

conduzindo a grande parte da população, por caminhos

traçados pela minoria que domina nosso país desde o

inicio dos tempos, até aos dias de hoje.

Casturino resgata em “O Irmão Gêmeo do Falecido”

o bom humor, a solidariedade e a união. São estas riquezas

que estamos perdendo na luta pela sobrevivência.

Onélia Passaroti

“O Irmão Gêmeo do Falecido” é um conto que retrata o

cotidiano da vida modesta do sertão, onde o que

prevaleceu são “os causos”.

“Causos” que vem sempre cheios de mistérios e fantasias

próprias da imaginação desse povo.

E dessa forma que Casturino busca contar essa estória, de

uma forma simples, mas envolvente.

Parabéns Casturino! E boa leitura a todos...

Angela Salvadori

04

Capitulo I

A sombra da velha árvore, pôr volta de meio-dia,

ovelhas começavam a se reunir para se abrigar do forte

calor que fazia. Era um grande Ipê amarelo com suas

lindas flores douradas, quanto mais alto, mais douradas.

Talvez pelo efeito solar, nos dias quentes de primavera

mais linda ela se tornava.

05

Ao lado tinha um Ipê menor talvez um pouco mais jovem.

Seus galhos eram tortuosos, parecia que o seu crescimento

fora impedido pôr causa da sombra imponente da outra

que praticamente a encobria, mesmo assim ali estava ela,

com seus galhos timidamente entrelaçados á grande árvore

linda e Maravilhosa.

Longe dali, podia se ver uma única árvore

maravilhosa-mente grande sobre uma vegetação agreste e

parcialmente seca. Somente ao chegar bem perto é que

podia se notar a presença da outra. É claro que próximo

dali havia muitas outras árvores, mas nenhuma se

comparava aquela.

Viajantes que pôr ali passavam com seus animais de

carga paravam para descansar, admiravam a grande árvore

com suas lindas flores amarelas, mas quando eles queriam

pernoitar e armar suas redes para descansar só era possível

fazer uso dos galhos da árvore menor, porque os seus

galhos estavam ao alcance, eram fortes e tortuosos

facilitando assim o armar de suas redes. Porem a árvore

grande era muito alta e seus galhos, estavam fora do

alcance das pessoas. Sendo assim podiam apenas fazer uso

de sua sombra e admirar a sua beleza.

Próximo dali, parcialmente oculta na vegetação havia

um casebre. Ali morava um homem simples e humilde.

Um velhinho que apesar de sua simplicidade era um bom

aluno da escola da vida. Seu nome era Pedro. Como tantos

outros. Pedro de Tal. „Nhô Pedro‟, como era conhecido

naquela região levava a vida conforme lhe era possível.

Sabia prever o tempo graças a uma dor nos joelhos.

06

Mas não se deixava vencer pôr pequenos infortúnios,

costumava dizer que tudo neste mundo tem seu valor,

tempo e espaço.

Nhô Pedro levantava todos os dias quando o galo

cantava, preparava sua marmita, amolava bem a enxada,

colocava o chapéu na cabeça e rumava para o trabalho

com a enxada na mão e a marmita na sacola. Chegava na

roça quando o sol acabava de nascer e para aproveitar

melhor manhã trabalhava sem parar.

Até ver o sol a pino. Só então parava para comer o

que trouxera na marmita. Após a precária refeição,

descansava um pouco á sombra da velha paineira, tomava

um pouco de água da moringa que conservava na sombra

da árvore e retornava ao trabalho. Vez pôr outra ele

retornava á moringa.

Às vezes o calor era tanto que acabava consumindo

toda a água da moringa. Só então quando o sol estava

quase no horizonte, ele retornava ao seu ranchinho. Após

tomar banho na bica, ainda sobrava um tempinho para

assistir o crepúsculo, enquanto as panelas fervilhavam

sobre o fogão feito de tijolo e argila.

Á noitinha após o jantar. Como um bom sertanejo

Nhô Pedro tocava viola e cantava ao luar e assim o tempo

passava.

Mas nos finais de semana o programa podia variar de

acordo com a necessidade e o clima. Aos sábados, quando

não ia pra roça, ele fazia todo o serviço de casa e a tarde ia

até ao vilarejo chamado “Rincão dos Feios” comprar

suprimentos, isso quando tinha dinheiro, que recebia após

terminar alguma empreitada.

07

Aos domingos gostava de passear pelos campos, pois era

um grande admirador da natureza. Ou então ia pescar no

riacho.

– Hoje vou lava a minhoca, - dizia ele, consigo

mesmo.

Às vezes planejava ir à missa, mas lembrava que não

tinha roupas adequadas, afinal o que ganhava como bóia-

fria mal dava para o seu sustento.

Nhô Pedro era bem conhecido na região, sempre

morou próximo do ao vilarejo. Costumava dizer que

nasceu junto com o vilarejo. Quase todos os moradores de

Rincão dos Feios o conheciam, mas raramente alguém lhe

visitava. Com a exceção de dois velhos amigos que

moravam no vilarejo e que habitualmente apareciam com

o pretexto de acompanhá-lo na pescaria ou simplesmente

tomar chimarrão e jogar conversa fora. Eram os irmãos

Sebastião e Aristides. Cujos apelidos eram “Tião e Tide”.

Certa vez o Nhô Tide em uma de suas visitas o encontrou

adoentado e não hesitou em lhe prestar socorro, colocou o

na carroça e o levou ao medico.

– Nunca esquecerei o bem que me fez o amigo. -

Dizia ele emocionado sempre que se lembrava do

ocorrido.

– Num carece de agradece não. Amigo é pra essas

coisas que serve mesmo uai!

Era muito solitário, apesar de ser bem conhecido

naquela região, não era muito popular, era um homem de

poucas palavras. Por esse motivo não compartilhava seus

problemas com ninguém, mesmo assim conservava

sempre um bom humor. Seus únicos parentes que ainda

eram vivos decidiram morar na capital do estado.

08

Apenas ele vivia no campo, isolado dos outros. Quando

lhe perguntavam sobre os seus parentes, ele simplesmente

respondia:

– Sumiram nesse mundo de meu Deus. Nunca mais vi

ninguém...

09

Capitulo II

Foi num final de semana, quando ele saia do

armazém regional de Rincão dos Feios, com um saco de

compras nas costas, andou alguns metros e caiu. Algumas

pessoas que passavam observaram e seguiram adiante.

Nem lhe deram atenção, pensaram que ele estava bêbado.

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Algumas crianças vieram contar para o Nhô Chico Fidelis,

dono do armazém, o que viram ali pertinho.

– Nhô Chico Fidelis, aquele homem do saco ta caído

lá no meio da rua. -Disse um menino entrando no

armazém.

– De que homem está falando, moleque? - Perguntou

Nhô Chico Fidelis, enquanto cortava uma volta de fumo

para um freguês.

– O Nhô Pedro. Deve ta bêbado. - Afirmou outro

garoto.

– Como pode estar bêbado? Ele acabou de sair daqui

com suas compras e estava sóbrio. - Disse o vendeiro com

certa preocupação.

– E, alem disso, é muito cedo para alguém estar

embriagado. - Complementou o freguês, o que, sem

querer, aumentou a preocupação do vendeiro.

Nhô Chico Fidélis era um homem bom. Conhecia

bem todos os seus fregueses. Muitas vezes era mal

entendido, pôr vezes se envolvia em questões emocionais

de seus fregueses. Era amigo de todo mundo e muito

respeitado, devido a sua posição. Na realidade ele era o

maior comerciante da redondeza. Pai de dois filhos.

Mariana e Marcos.

Os dois irmãos receberam uma boa educação.

Mariana ainda estava na faculdade e morando na capital. E

Marcos, o filho mais velho era medico. Tinha uma

pequena clinica que funcionava a uns 50 metros de seu

armazém.

Nhô Chico Fidélis gostava muito da profissão que

herdara de seu pai que foi um dos fundadores daquele

vilarejo.

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Era um homem bom caráter e muito bem equilibrado

emocionalmente. Conservava sempre um bom humor,

porem naquela manhã estava preocupado com um de seus

fregueses.

Aquele camponês que vinha fazer compras. Quase

todo sábado à tarde, e exatamente naquele dia veio de

manhã. Bom, talvez isso não signifique nada, pensou. Mas

espera aí. Ele estava muito quieto hoje e com um aspecto

meio esquisito... Seus pensamentos foram parcialmente

interrompidos pela voz do freguês.

– Seu Fidélis, eu vou levar uma daquelas lamparinas.

O vendeiro pega a lamparina da prateleira e entrega ao

freguês.

– Mais alguma coisa senhor?

O homem observa com atenção, verifica se não

esqueceu de algum item.

– Não Senhor! Acho que comprei tudo o que estava

precisando. Pode somar, por favor.

O vendeiro faz os cálculos com bastante atenção e

apresenta ao freguês. O homem faz um rápido exame das

contas e conclui por acertadas, efetua o pagamento.

O freguês guarda o troco, organiza tudo em dois

sacos preso um ao outro coloca nos ombros e saí.

– Até a semana que vem Seu Fidélis. E tenha um bom

dia.

– Um bom dia para o senhor também. - Responde

despachando o freguês e em seguida chama a esposa.

– Maria! Atende o balcão pra mim um pouco. Eu vou

verificar o que aconteceu com o Nhô Pedro.

12

A mulher toma o seu lugar enquanto ele sai porta

afora. A alguns metros do armazém, o homem está caído

no chão.

Até então ninguém teve a curiosidade de se

aproximar do suposto bêbado. A não ser as crianças que

foram até o armazém, Chico Fidélis se aproxima e vê o

homem inerte no solo, apalpa os seus pulsos. Os garotos se

aproximam do local. Nhô Chico Fidélis diz a um garoto:

– Vai chamar o meu filho, faça o favor, e diga para

trazer uma maca.

– Uma ma, o que. Nhô Fidélis?

– Uma padiola. Sabe o que é padiola?

– Sei sim. É aquele negócio que o Dr. Mario chama

de “macaca”.

– Ora garoto, não complique as coisas! Vai de uma

vez. - Diz alterando a voz.

O garoto sai correndo em direção à clínica do Dr.

Mario Fidélis. Nhô Chico Fidélis permanece ao lado do

homem tentando reanima-lo, mas seus esforços não parece

terem resultados positivos.

Momento depois o garoto retorna acompanhado do

médico, que traz consigo uma maca.

– O que aconteceu papai? - Indaga o médico

enquanto larga a maca ao lado do homem.

– Não sei Mario. A única coisa que posso dizer é que

este homem não está embriagado.

– O senhor o conhece papai?

– Conheço sim Mario. Seu nome é Pedro, eu não sei

o sobrenome. È conhecido como “Nhô Pedro”, é um

camponês que mora a alguns quilômetros daqui, ele vem

quase toda a semana para comprar suprimentos.

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O medico verifica os sinais vitais do candidato a

paciente, e tenta prestar os primeiros socorros ali mesmo

no meio da rua.

– Acho que já o mediquei uma em minha clinica, em

uma situação de emergência. Foi trazido por um amigo em

uma carroça velha. É um pobre diabo!

– Não fala assim, meu filho! É um sujeito simples.

Mas de bom coração.

Enquanto os dois colocam o homem na maca,

começam a aparecer os curiosos. Pai e filho saem

carregando o homem na maca, enquanto os curiosos ficam

a fazer perguntas uns aos outros sobre o que teria

acontecido.

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Capitulo III

Naquele mesmo dia o Doutor Mario Fidélis. Principal

e único sanitarista de Rincão dos Feios informou ao

inspetor de quarteirão sobre o falecimento de um

camponês. O qual morreu sem tempo de receber

assistência médica no trajeto entre o Armazém Regional e

a Clinica Medica Doutor Mario Fidélis. Causas da morte?

Parada cardíaca.

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O inspetor de quarteirão, ao receber o chamado veio

imediatamente até a clinica.

– Bom dia doutor! Onde está o cadáver?

Perguntou o inspetor.

– Bom dia inspetor! Está no necrotério da clinica. -

Informou o médico.

– Já identificaram o cadáver?

– Meu pai o conhecia. Era um de seus fregueses.

Trata-se de um camponês provavelmente morador das

cercanias de Rincão dos Feios, conhecido apenas como

“Nhô Pedro”. Responde enquanto dirigem-se até o

necrotério do pequeno hospital.

– Eu também o conhecia. -Afirma o inspetor após

olhar o cadáver.

– Morava a uns cinco quilômetros daqui.

– Tem parentes no povoado, inspetor?

– A ultima vez que falei com ele, disse-me que não

sabia o paradeiro de seus parentes.

– Não portava nenhum documento. Terá que ser

enterrado como indigente!

O medico deixava visível a sua preocupação, afinal

não gostaria de se responsabilizar por aquele enterro, ao

qual não receberia nem seus honorários médicos.

Sua pequena clinica não era lá o melhor negocio da

região e passava por sérios problemas financeiros. Aquela

pequena população nem sempre procura os seus serviços.

De acordo com os costumes do sertanejo que tem por

habito se automedicar com ervas e simpatias.

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Quanto ao inspetor demonstrava muita calma parecendo

ter tudo sob controle

– Mantenha-se calmo doutor! Vamos por partes,

primeiro vamos avaliar os fatos. Quanto aos documentos,

eu posso ir procurar em seu rancho, ou então no cartório

local. Pelo que o sei ele nunca saiu da região e deve ter

sido registrado aqui mesmo em Rincão dos Feios.

– Ótimo! Com a certidão de nascimento chegaremos

a uma certidão de óbito. E quanto ao enterro? O que

faremos? Precisamos localizar os seus parentes?

O inspetor transforma o questionamento do médico

em uma desilusão.

– Esqueça essa idéia doutor. Não será possível

encontrar os seus parentes!

– Então o que faremos? Esta é uma pergunta que

espera por uma resposta.

– Com um pouco de calma, toda a pergunta pode ter

uma resposta.

O inspetor complementa com um sorriso sarcástico.

– Não temos como localizar nenhum parente deste

homem? E você ainda acha motivos para rir? É um bom

começo. Estamos com um grande problema! Meu caro

xerife!

– Não meu caro doutor! Você está com grande

problema e não me chame de xerife. Sou um inspetor de

quarteirão e “Meu nome é Enéas”.

O inspetor de quarteirão é acostumado a resolver os

mais diversos problemas de sua jurisdição, mas esta a

ponto de chutar o balde.

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Não o faz, devido ao apelo do medico e ao seu senso de

responsabilidade.

– Ora Inspetor Enéas. Não vai querer tirar o corpo

fora. Você é a lei pôr aqui.

– Tudo bem! Então vamos parar com essa discussão e

tentar resolver isso de maneira sensata.

– Ótimo! Um pouco de sensatez não fará mal algum.

Os dois homens ficam em silencio pôr alguns

momentos, o médico vai até a sala ao lado e em seguida

vem com uma garrafa de vodca e oferece ao inspetor. Os

dois bebem devagar.

– Quer mais um trago?

– Não! Muito obrigado. Se você está querendo me

ver embriagado, pode tirar seu cavalinho da chuva.

– Ê então xerif... Quero dizer Inspetor Enéas? A que

conclusão chegou?

O inspetor ignora a provocação, preferindo acreditar

que não foi intencional.

– Tive uma idéia... Vou convocar o povo de Rincão

dos Feios e propor uma vaquinha para fazer um enterro

decente pro finado Pedro.

– Muito bem, inspetor! E uma atitude muito também.

O inspetor Enéas continua a expor os seus planos.

– E com isso vou elevar a minha popularidade.

– Muito inteligente... Mais a propósito, qual é o seu

interesse em elevar a sua popularidade? O inspetor sorri e

responde sem pensar duas vezes.

– Puramente político meu caro...

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O médico fica surpreso com a resposta do inspetor.

– Político? E eu que pensei essa palavra não tivesse

sentido algum nesse fim de mundo.

– Meu caro doutor Mario. Ainda não foi informado

que haverá um plebiscito no final do ano a fim de tornar

esse povoado uma comarca?

– Confesso que ouvi esse comentário. Mas pensei que

fosse apenas boato!

– Não meu caro! Não é um boato, é sim um fato. De

nós depende o futuro de Rincão dos Feios.

– Há então é isso? Agora estou entendendo o seu

ponto de vista. Uma boa ação em favor de um miserável

com certeza pode elevar a sua popularidade... A população

inábil saberia reconhecer um bom cidadão que se preocupa

em resolver problemas sociais e infortúnio dos mais

desvalidos.

– Que ironia é essa doutor? O que há de mal em

aproveitar as oportunidades e fazer planos para o futuro?

– Tudo bem inspetor! Posso entender a sua visão

futura... É o futuro político de nosso vilarejo... Ou será que

estamos falando do seu futuro político?

– E daí? O que há de errado nisso?

– Nada errado! Nada mais justo do que elevar sua

popularidade aproveitando a desgraça alheia em prol de

seus interesses políticos...

– A conversa se torna acalorada e transforma-se em

debate de idéias. As ironias do médico e as pretensões do

inspetor elevam o teor da conversa e se prolongam por

varias horas atrasando assim algo que poderia ser decidido

em um curto espaço de tempo.

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Capitulo IV

Enquanto o cadáver daquele pobre homem que não tinha

recursos financeiros. Nem para o seu próprio enterro jazia

na mesa do necrotério. As autoridades de saúde e de

segurança se enfrentam em longos debates políticos, para

tirar vantagem das situações mais degradantes que

acomete o cidadão sem direito a cidadania. O inspetor

depois de muito argumentar sobre a futura comarca e os

seus motivos. Tentando se passar por bom samaritano

convenceu o medico. Ou então este se deixou convencer e

voltaram aos planos para o funeral daquele pobre homem.

– Vamos falar do nosso defunto. - Disse o medico.

– Nosso defunto, uma pinóia. Não sei por que você

insiste em socializar o defunto comigo

– Seja lá como for, precisamos resolver esse

problema... Enquanto você convoca o povo e propõe a tal

vaquinha para o enterro, o que eu faço? Perguntou o

medico disposto a colaborar naquela empreitada. Não por

solidariedade, mas por que tinham que se livrar do cadáver

de uma maneira legal. E parecerem bons cidadãos aos

olhos da população.

– Você vai falar com o padre e pedir a ele permissão

para velar o defunto na Capela mortuária. - O médico ouve

com atenção.

– Ótimo inspetor. Muito bom mesmo. Gostei de

ouvir... Você é bom nisso meu caro amigo. - O Médico

tenta tornar a conversa mais agradável fazendo elogios em

tom de brincadeiras.

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O inspetor silencia em constrangimento, acende um

cigarro, oferece outro ao médico que lhe agradece, mas

não aceita.

– Estou parando com isso! Afinal não fica bem para

um médico dar maus exemplos e fazer apologia ao câncer.

Alias vou parar de beber também. Você sabia que o Brasil

está em segundo lugar no consumo de álcool?

– A culpa é dos crentes. – Comenta o inspetor.

– Como assim, os crentes não bebem!

– Por isso mesmo, se eles bebessem pelo menos um

pouquinho nós estaríamos em primeiro.

Os dois riem muito, a piadinha parece ter agradado, o

médico fica a observar os movimentos do inspetor

enquanto este fuma andando em círculos.

– A propósito, e os detalhes da reunião? Como vai

ser? - As perguntas do médico não encontram respostas

imediatas.

– Meu caro inspetor. Eu lhe fiz uma pergunta e estou

esperando uma resposta. Mas tudo bem se ela não vier.

– Doutor... Compreendo sua curiosidade em relação a

essa reunião, alias, diz respeito ao seu defunto.

– Meu defunto? Essa não teve graça nenhuma,

inspetor! Concordo com você, a curiosidade é um defeito

meu...

– A curiosidade pode ser um defeito, mas também

pode ser uma qualidade meu caro amigo. - Fuma

pausadamente olhando para o cigarro e observando a

fumaça enquanto fala, volta-se para o médico e diz:

– Enquanto você vai à igreja eu vou ao barbeiro.

– Então vai raspar a barba e se produzir para reunião?

Meu caro Inspetor?

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– Nada disso... Vou conversar com a filha do

barbeiro.

– A professora Marli? Sinto muito inspetor, mas

minha curiosidade exige respostas.

– Tudo bem doutor Mario. Satisfarei sua

curiosidade...

– Vou à casa do barbeiro falar com a professorinha

para pedir-lhe um empréstimo.

– Dinheiro?

– Claro que não! Eu vou lá apenas pedir a chave da

escola para a reunião.

O Dr. Marcos fica satisfeito com as respostas, mas

ainda está preocupado com a reunião.

– Não sei inspetor, mas não vai ser fácil tirar o

pessoal de casa para uma reunião sem uma programação

antecipada...

– Ora essa, doutor, não se esqueça que hoje é sábado

e esse pessoal não tem nada de interessante para fazer num

sábado à tarde.

Os dois são interrompidos pelo agente funerário que

aparece de repente.

– Onde está o corpo? Vim o mais rápido que pude

O inspetor se surpreende com a chegada repentina do

agente funerário e o interpela.

– Calma Sr. Zé do Caixão. O defunto não vai fugir.

– Pôr favor Senhor Inspetor, eu não gosto de ser

chamado assim.

– Mas o que há demais nisso, o seu nome é José e

você vende caixão.

– Meu nome é José e sou um Agente Funerário assim

como o seu nome é Enéas e é um Inspetor de Quarteirão.

22

Ao perceber que o recém chegado não gostou do

apelido o inspetor tenta contornar a situação encerrando a

conversa.

– É... Acho que você tem razão, eu vou tentar me

lembrar disso. Dizendo isso o inspetor volta-se para o

médico.

– Bem doutor, já sabe o que fazer. Agora só nos resta

entrar em ação.

– Então estamos entendidos meu Caro Inspetor, mãos

a obra.

O inspetor sai e o médico vira-se para o agente

funerário indicando o cadáver.

– O presunto é todo seu. Sr. Zé do Caixão. - Diz o

médico em tom debochador. O agente funerário

acostumado a engolir sapos, como o ditado popular.

Resolve não revidar encarando como ossos do oficio.

Alias em sua profissão já estava acostumado a receber

apelidos desagraveis como Papa-defuntos, Senhor Morte,

etc. Encarando assim, até que Zé do Caixão não era tão

ofensivo. Com esta análise o homem reage

silenciosamente apenas com um gesto, desaprovando o

apelido e dirige-se para o cadáver com uma fita métrica

em punho para tirar as medidas do falecido.

23

Capitulo V

Era quase uma hora da tarde quando o Inspetor Enéas

chegou à pracinha onde os garotos estavam reunidos para

uma partida de futebol. O paladino da lei se aproximou de

um garoto e falou-lhe alguma coisa. Aproximaram-se dele

mais alguns garotos.

24

O Inspetor deu a cada um algum dinheiro para comprarem

doces e ordenou-lhes a avisar a todos os moradores do

povoado sobre uma reunião muito importante que

aconteceria logo mais às três horas na escola local.

Os garotos não precisaram de outro motivo para adiar

aquele jogo. Que na realidade não passava de mais uma

rotina de quase todas as tardes

O inspetor seguiu pela rua principal caminhando a passos

largos. Cumprimentou algumas pessoas que encontrou

pela frente. Enquanto isso os garotos anunciavam a tal

reunião de casa em casa e a todos que encontravam pela

frente. Não escapou do convite nem o próprio doutor

Mario que se dirigia a igreja para falar com o padre e pedir

a ele permissão para velar o defunto na Capela mortuária.

– Tudo bem! Não gastem o seu tempo comigo e vão

em frente com seus anúncios. - Disse o medico ao garoto.

Em pouco tempo todos os habitantes daquele lugarejo

estavam sabendo da tal reunião. Não sabiam o real motivo

da reunião, mais isso pouco interessava. O mais

importante era ter um motivo para sair de suas casas. O

povo daquela região não tinha nenhum tipo lazer e

certamente não faltariam a aquela reunião.

O padre se preparava para tirar o cochilo após o

almoço quando o sacristão anunciou a visita do medico.

– A benção padre! - Disse o medico

– Deus o abençoe meu filho! Veio se confessar? -

Perguntou o padre.

– Não! Senhor padre. O motivo de minha visita é

outro. Vim pedir a extrema unção a um pobre que

desencarnou.

25

E permissão para velar o mesmo em sua capela mortuária.

– De quem você esta falando? Meu filho...

O medico relatou o acontecido com detalhes. Pelo

menos a parte que conhecia da triste história daquele

infeliz que jazia no necrotério da sua clinica. O padre não

hesitou em colaborar, lembrou que conhecia o pobre

homem. Apesar de quase não freqüentar a igreja tratava-se

de uma boa alma.

Enquanto isso o Inspetor Enéas. Já com a chave da

escola em mãos, se dirigia para lá. Estrategicamente

preparado para a tal reunião. Havia pensado em todos os

detalhes. E até preparado um discurso. Como era de se

esperar.

O povo compareceu em massa atendendo ao convite

do inspetor de quarteirão. As conversas paralelas são

interrompidas quando finalmente tem inicio a tão esperada

reunião.

– Senhoras e senhores. Muito boa tarde a todos e

obrigado por terem vindo. O motivo que me fez convocar

esta reunião foi o lamentável fato que ocorreu esta manhã.

Começa um zunzum, as pessoas se perguntam o que

de tão lamentável teria ocorrido e em seguida obtêm a

resposta.

– Esta manhã faleceu um de nossos conterrâneos.

Estou falando de alguém que quase todos nós

conhecíamos.

O inspetor relata com detalhes tudo o que aconteceu

justificando assim o motivo da reunião e sem mais

delongas propõe a arrecadação para o enterro do finado

dizendo que um ato de solidariedade igual esse.

26

É motivo de todas as pessoas se orgulharem por

terem a oportunidade de colaborarem. Em fim atinge seu

objetivo e consegue arrecadar um bom dinheiro, o

suficiente para um pomposo enterro e sobrar algum

dinheiro. E para terminar a reunião faz o discurso

oportuno.

– Povo de Rincão dos Feios! Em nome do falecido eu

agradeço a todos pelas vossas generosas colaborações...

Todos aqui devem se orgulhar porque fomos capazes de

realizar este ato tão humanitário... Senhoras e senhores...

Nesta tarde, todos nos podemos voltar para nossas casas

com a plena convicção de que realmente fizemos uma boa

ação... Isso é uma prova de que podemos fazer grandes

coisas neste povoado... A união faz a força, são atitudes

como essa que nos da à plena certeza de que se quisermos

podemos transformar este vilarejo em uma grande

comarca...

O povo aplaude, parecendo empolgados com o discurso do

inspetor.

– E podemos inclusive escolher um lindo nome para a

nossa futura cidade que, sem dúvida,

Será uma grande e progressiva cidade... O povo aplaude

novamente, algumas pessoas fazem piadinhas sobre o

possível nome que darão à cidadezinha. O inspetor se

empolga em seu discurso e age como se estivesse em

plena campanha eleitoral.

O povo simples daquele vilarejo não entende o real

motivo de tanta empolgação. Mas parece gostar do

discurso e aplaude em pé gritando vivas ao inspetor. Este

ao perceber o exagero e resolve finalizar a reunião,

fazendo as considerações finais e um agradecimento geral.

27

– Muito obrigado a todos. Podem voltar as suas casas e

reflitam um pouco sobre essa nossa reunião...

O povo começa a se levantar para sair, compadres e

comadres se cumprimentam em um zunzum de conversas

paralelas.

O Inspetor Enéas continua falando.

– E não se esqueçam de logo mais à noite irem ao

velório desse nosso conterrâneo que agora partiu para o

outro mundo. Boa tarde a todos e mais uma vez obrigado.

Finalizada a reunião, o povo vai se dispersando aos

poucos. O inspetor pega o dinheiro da arrecadação e sai

com a certeza de que aquela reunião muito contribuiu para

a elevação de sua popularidade.

28

Capitulo VI

Ao final de qualquer reunião, sempre tem aqueles que

ficam conversando com os amigos. Até lhe peçam licença

para poder fechar as portas. Em Rincão dos Feios não

podia ser diferente. O povo se dispersa aos poucos. Alguns

compadres e comadres só se retiram depois que a

professora Marli anuncia varias vezes que precisa fechar a

escola. O inspetor Enéas que foi um dos primeiros a se

retirar. Com a justificativa de ganhar tempo e preparar o

velório, com toda a certeza a estas horas já estava

negociando o caixão mais barato pelo melhor preço.

Apesar de não haver concorrência naquele vilarejo, não

hesitaria em ameaçar o agente funerário local de ir até a

cidade mais próxima comprar o tal caixão por um preço

menor. Os compadres Aristides e Sebastião. Foram os

últimos a saírem do local da reunião e caminham

conversando sobre as coisas da vida simples do interior.

Fumando o cigarro de palha.

– Eita fuminho bão esse! Né compadre Tide?

– Óia compadre Tião... Pra quem tá costumado com

fumo macaio, esse daqui tá especiar de bão, né...

Caminhando lentamente naquele trecho de rua. Os

dois se dirigem a uma velha casa que fica ali bem próximo

da escolinha. A única do povoado.

– Vamos chegar compadre... Prosear mais um

bocadinho, e tomar um chimarrão?

– Um chimarrão e um dedo de prosa eu aceito sim

compadre Tide.

29

Os dois irmãos e compadres andam mais alguns

metros e adentram o portão da casa de Aristides, entram

em casa e sem demora sai o chimarrão.

– Antônce compadre! O que ocê achou da tarda

runiâo? - Questionou Aristides.

– Apois! O que sei é que hoje tem um velório pra

nóis pernoita... Ademais não entendi quase nada... Aquela

história de com marca... Marca não sei de que... Mudá o

nome do nosso vilarejo... Não entendi nada não.

– Antão vam-mudá de assunto! - Propõe o compadre,

percebendo que nenhum dos does entenderam o discurso

do inspetor. A não ser a parte da arrecadação para o

funeral do conterrâneo falecido.

– Arguma novidades? Compadre Tide? - Pergunta ao

compadre tentando reiniciar a conversa.

– Vendi o “boca-negra” compadre Tião! Informou o

velho Aristides, passando a cuia de chimarrão.

– Outra vez compadre Tide

Era a vigésima vez que Aristides vendia seu fiel

mascote. Tratava-se de um cachorro muito esperto e

cobiçado que ostentava o nome de boca negra. Seu dono

tinha-o na conta de um animal de estimação, mas por não

duvidar da sua fidelidade. Sempre que aparecia uma

oportunidade vendia-o a quem lhe pagasse um bom preço.

Na certeza de que, o boca negra sempre voltava pra casa, o

mais rápido que pudesse.

– Vendi prum cabra lá das bandas de Serro Azur.

– Mais é bocado longe compadre! Ocê num tem dó

dele não?

30

O coitadinho vai ter que andá muito, se quisé vortá

pra casa.

– Bâo, isso é verdade compadre! Mais ele sempre

vórta... - Os dois velhos eram irmãos gêmeos Sebastião e

Aristides ou (Tião e Tide) como eram conhecidos. Irmãos

e compadres, isso porque Aristides havia batizado Julho

da Cruz, um protegido de seu irmão. Que estava sendo

criado pôr três irmãs solteironas Que moravam ali

próximo do vilarejo.

Tudo começou numa manhã ensolarada do mês de

julho de alguns anos anteriores. Seu Sebastião passava

pela grande cruz que havia ao lado da capela daquele

arraial. Quando então deparou com uma criança recém-

nascida, era um garotinho que estava ali, abandonado ao

pé da grande cruz. Pôr uma mãe desesperada, na certeza

que o mesmo seria adotado pôr alguma alma caridosa que

ali o encontrasse.

Era um domingo, e como domingo é dia de missa.

Naquele local certamente passariam muitas pessoas.

Portanto a tal mãe não poderia ter escolhido melhor dia

para abandonar o garoto. No interior um de missa é um dia

de confraternização, os habitantes daquela região se

reuniriam ali para receber a bênção do padre e pôr a fofoca

em dia. Naquele lugarejo nada, ou quase nada acontecia e

o assunto era sempre o mesmo.

– Pra quem será que o Velho Tide vendeu seu

cachorro desta vez. Dizem até que o vigarista já comprou

uma casa na cidade com o dinheiro que conseguiu

vendendo sempre o mesmo cachorro. Esse era o assunto

de todos os domingos.

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E se repetiria naquele dia se não fosse o achado de

Sebastião. Que comoveu toda a população de Rincão dos

Feios. Principalmente o padre, que decidiu dar proteção ao

menino uma vez que o senhor Sebastião era viúvo e

morava sozinho. O padre confiou o menino a três beatas

solteironas, que não faltavam às missas. Foram varias as

sugestões de nomes para o recém-nascido. Mas a que

agradou mesmo não se sabe ao certo quem sugeriu. Até

porque depois de aceita varias pessoas se intitularam

donos da mesma. Enfim o nome escolhido teve aprovação

unânime. Deram ao menino, um nome bem alusivo.

Devido ao fato dele ter sido encontrado ao pé da cruz e no

mês de julho. Chamaram-no de Julho da Cruz.

O tempo passou e o menino cresceu. Na ocasião do

falecimento do velho Pedro devia ter aproximadamente

quatorze anos de idade. Julho da Cruz ou Julinho como

ficou conhecido. Foi um dos garotos que o inspetor Enéas

escalou como agentes divulgadores daquela reunião que

antecedeu o velório.

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Capitulo VII

Era noite e os compadres aproveitaram o velório para

se reunirem ao redor da fogueira e contar causos de

lobisomem e estórias de mulas sem cabeças e outras

lendas sertanejas.

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A conversa estava animada afinal às poucas

oportunidades que o povo tinha para se confraternizar

eram nas festas religiosas, em mutirões ou em velórios.

Um velório não é bem uma confraternização, mas

ninguém é de ferro e nada como um quentãozinho para

combater o frio da noite, outros preferiam um bom

chimarrão.

Nhô Manéco adorava contar causos e atribuir atos

heróicos aos seus antepassados e aproveitou a ocasião para

contar as façanhas de seu finado pai.

– Meu pai contava causos do “arco-da-véia”. Coisas

que aconteceram aqui nessa região, nos tempos que ele era

moço. Meu finado pai era boiadeiro, num sabe? - Afirmou

Nhô Manéco enquanto enchia a cuia de chimarrão.

– Disso eu ainda me alembro bem. - Confirmou o

velho Jonas, que estava atento à conversa.

– Pois é... O compadre Jonas é um pouco mais velho

do que eu. Então deve lembrá bem do meu finado pai, dos

tempos que ele era boiadeiro e levava boiada daqui de

Rincão dos Feios pra capitar.

– Ora se me alembro... O pai dele era o maior

mintirô... Quero dizer, o home era bão de prosa.

Nhô Jonas tenta controlar a conversa. Nhô Manéco

faz de conta que não ouviu.

Mesmo assim deixa transparecer o seu humor, quase

esbravejando.

– Não desconverse compadre Jonas! Meu pai era ou

não boiadeiro? - Nhô Jonas fica desconsertado.

– Oxente compadre Manéco. Seu pai era boiadeiro

sim... E dos bão... Levava cabrito... Quero dizer ga-a-do

daqui de Rincão dos Feios pra capitar.

34

Antonio um rapaz que estava ali junto aos demais, tenta

pôr fim ao mal entendido.

– Mais daí seu Manéco? Estamos ansiosos para ouvir

as aventuras de seu pai.

– Então, como eu lhes dizia, meu pai levava cabri...

Nhô Manéco se engasga com o chimarrão, e faz um

esforço enorme para conter o nervosismo.

Antonio tenta contornar a conversa.

– A propósito o chimarrão está esfriando. - Diz

Antonio Enquanto coloca a chaleira no braseiro o velho

Jonas entra no embalo, tentando conquistar o compadre.

– Tempinho bão aquele... Parece que inté eu to vendo

o Nhô Créto lá no estradão conduzindo a boiada e tocando

o berrante... Passava a porteira e iam embora pôr esse

Rincão afora, deixando atrais só a poeira.

– Faz muito tempo isso, Nhô Jonas? Perguntou

Antonio.

– Claro... Eu ainda era menino...

– E era o senhor que abria a porteira? Pro gado

passar? Perguntou novamente Antonio.

– Claro que não... Eu num era besta. Eu tinha muito

medo dos bois me pisoteá. - Os compadres riem.

– O senhor deve ter estórias pra contar também, né

compadre Jonas? Perguntou Nhô Maneco.

– Que nada, compadre Maneco... Eu não levo jeito

pressas coisa. Gosto mêmo é de escuitá.

– Pra pode dize que é mentira. - Resmunga em voz

baixa

– O que o senhor falou compadre Maneco?

– Nada não compadre Jonas.

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– Como eu dizia, os antigos é que sabiam contar

causos.

– Os antigos sabiam das coisas. - Complemento

Antonio.

– Sabe duma coisa Antanho. Eu inté vou concordá

com você! Os antigos tinham muita sabedoria.

– É uma pena que a moçada de hoje não sabe conta

causo nenhum. Comentou Antonio enchendo a cuia de

chimarrão.

– Mais a vida ensina e vão contá pros de amanhã... –

Completou o Nho Maneco.

– É pessoar, num vai longe não. A moçada de hoje

em dia num acreditam que aqui em Rincão dos feios

houve um tempo que tinha inté sucuri.

– O senhor já viu uma, compadre Jonas?

– Eu não (se benzendo), mas o teu pai contava umas

estórias de sucuri.

– É, realmente, eu me lembro de meu finado pai

contar alguma coisa sobre sucuri.

– Então conta pra nóis seu Maneco. Disse um dos

homens ali presente.

– Uma vez contava meu pai, que numa de suas

viagens, armaram acampamento ao lado de um tronco de

pinheiro...

Já tava escurecendo... Meu pai e os amigos dele

acharam que aquele era o melhor lugar pra passar a noite...

Tinha uma arvore grande na beira do rio, tudo limpinho

em baixo da árvore e aquele tronco de pinheiro na beirinha

do mato... Dizia meu pai que dava a impressão de argúem

derrubou aquele pinheiro pra fazer uma ponte sobre o rio e

depois mudô de idéia e deixou o pinheiro ali mesmo,

36

na beirinha do mato. Daí meu pai tirou os arreios dos

cavalos. Coloco em cima do tronco do pinheiro enquanto

isso os outros foram preparando a fogueira e a janta.

Jantaram, tomaram chimarrão. Depois armaram suas redes

e puxaram o ronco. Dormiram a noite inteirinha. Também

não era pra menos, os coitados tavão estropiados de

canseira da viaje. Noutro dia cedo, meu pai foi encilhar o

cavalo. Os arreios tava tudo no chão. O tronco de pinheiro

tinha sumido.

– Quer dizer então que o tronco de pinheiro nada

mais era do que uma sucuri? - Perguntou Antonio.

– Oxente, e não era então, menino. - concorda Nhô

Jonas com um ar debochador.

– Por falá nisso. Põe mais uns gaio de sucuri na

fogueira.

– O que o senhor disse compadre Jonas?

– Eu quis dizê gaio de pinheiro, o fogo ta apagando. -

O velho Jonas disfarça, com um risinho sarcástico...

– É compadre o senhor quis dizer mais não disse né...

- Completa o Nhô Maneco irritado.

A conversa é interrompida pelo capelão que aparece

chamando todos para rezar em favor da alma do falecido.

Enfim o dia amanhece e começam os preparativos para o

enterro.

Aquela manhã de domingo foi bem movimentada

naquele povoado. Ê o inspetor Enéas aproveitou cada

momento para elevar sua popularidade, sem falar que o

dinheiro arrecadado para o enterro lhe sobrara mais da

metade.

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Capitulo VIII

Começa um nova semana após o velorio do nosso

personagem principal. Segunda feira para os adultos é dia

de trabalho, para as crianças e adolescentes é um dia de

aula. Mas o velório do ultimo final de semana e a reuniao

que o antecedeu ainda seria assunto pra discussao. Os

enfoques do discuso do inspetor na reuniao que antecedeu

o velorio. Nao passou despercebido para algumas mentes

mais aguçadas. Mesmo para alguns alunos que levaram o

assunto para sala de aula. As crianças faziam varias

perguntas para a professora.

– Professora. Tia maricotinha disse que vamos ter um

plebiscito em nosso vilarejo. Comentou julinho.

– O que é prebiscito? Perguntou outro aluno, o

Joãozinho, e Julinho nao hesitou em responder.

– Prebiscito é uma consulta popular. A Respota do

menino surpreedeu a professora. Mesmo levando em

consideraçâo que Julinho era um aluno muito dedicado aos

estudos.

– Muito bem Julinho. Como voce sabia? Perguntou a

professora.

– Tia maricotinha me ensinou. Julinho ou o Julho da

Cruz sempre recebeu atençao especial por parte da

professora que sabia reconhecer um talento. O garoto era o

mais aplicado da clsse e como se isso nâo bastasse. Suas

tias, as beatas souteironas lhe davam reforço escolar. Não

era atôa que ele era o melhor aluno da classe.

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A professora aproveitou o debate para transformar em

tema de aula.

– Muito bem crianças. Prestem atençao, que esse

assunto que o Julinho nos trouxe é muito importante.

Haverá um plebiscito no final do ano a fim de tornar esse

povoado uma comarca? Na verdade. o Inspetor Eneas

falou isso na reuniao que fez com seus pais no sabado aqui

na escola.

– O que é Comarca professora? Perguntou

Mariazinha.

– Calma crianças. Primeiro vamos entender melhor o

que é prebiscito. A professora amrli faz uma pequena

pausa pega o giz e começa escrever na louza.

– O plebiscito era considerado, na Roma antiga, voto

ou decreto passado em comício, originariamente

obrigatório apenas para os plebeus. Nao confundir com

referendo. Apesar de por vezes se considerar '''plebiscito'''

como sendo o mesmo que ''referendo''', a verdade é que os

dois conceitos podem significar ações muito diferentes e

que podem, por vezes, ter significados opostos.

– É pra copiar professora? Perguntou Mariazinha

– Claro Mariazinha! Não só copiar como prestar

atenção às explicações.

A professora continua escrevendo e falando.

– Plebiscito e referendo são, contudo sempre

referentes a assuntos de política geral ou local de extrema

importância para as pessoas visadas. Assim, de um modo

amplo, podemos considerar que são sinônimos.

Assim, podemos dizer que “plebiscito” é uma

consulta ao povo antes de uma lei ser constituída, de modo

a aprovar ou rejeitar as opções que lhe são propostas;

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O “referendo” é uma consulta ao povo após a lei ser

constituída, em que o povo ratifica ou sanciona a lei já

aprovada pelo Estado ou a ''rejeita''. De fato, podemos

definir plebiscito como a manifestação direta da vontade

do povo que delibera sobre um determinado assunto,

enquanto que o referendo seria um ato mais complexo, em

que o povo delibera sobre outra deliberação “a do órgão de

Estado respectivo”. Apos a dissertação da professora os

alunos parecem satisfeitos mais ainda falta entender o que

é Comarca e Mariazinha voltou a lembrar à professora a

pergunta feita anteriormente. Na verdade as escolas do

interior a alguns atrás a muito surpreenderiam o modelo

atual de ensino.

– Comarca é um termo originalmente empregado para

definir um território Também pode receber os nomes de

distrito. Historicamente, as comarcas estavam

conformadas por freguesias também chamadas paróquias,

mas desde o século XIX integram-nas concelhos

– Professora! Vamos ter que escrever muito ainda?

Reclamou Joãzinho.

– Só mais um pouquinho! Se quizer aprender tem que

estudar. Continuando... No Brasil, é termo jurídico que

designa uma divisão territorial específica, que indica os

limites territoriais da competência de um determinado juiz

ou Juízo de primeira instância. Assim, pode haver

comarcas que coincidam com os limites de um município,

ou que os ultrapasse, englobando vários pequenos

municípios. Nesse segundo caso, teremos um deles que

será a sede da comarca, enquanto que os outros serão

distritos deste, somente para fins de organização

judiciária.

40

As comarcas são classificadas, segundo sua

importância. Para a criação e a classificação das comarcas,

serão considerados os números de habitantes e de

eleitores, a receita tributária, o movimento forense e a

extensão territorial dos municípios do estado.

– Professora em nosso povoado tem habitantes

suficientes para formar uma comarca? Pergunta um aluno.

– Essa é uma boa pergunta. Mas nao posso te

responder, depende de um levantamento demografico.

– Oque é levantamento demografico? Pergunta

Mariazinha.

– È a quantidade de habitantes por território. Ou seja

sera preciso uma contagem dos moradores da regaião. Se o

numero for suficiente nosso povoado poderá ser uma

comarca, caso contrario será um distrito ou pequeno

municipio. Finalmente terminou aquela aula e as crianças

voltaram para casa levando seus conhecimentos para

socializar com seus pais.

41

Capitulo IX

Passaram-se uma semana do velório daquele homem

que apesar de humilde era muito querido naquela região,

resumindo ele não tinha inimigos. O padre havia

convocado a população para rezarem uma missa de 7ª dia

em favor da alma do falecido.

No sábado a igrejinha estava lotada.

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Alguns parentes do velho Pedro que moravam na cidade

souberam do ocorrido, um pouco atrasado para o velório,

mas não para o ato religioso pela alma de seu finado

parente e decidiram vir para as homenagens póstumas.

Chegando ao vilarejo quiseram tomar conhecimento

de tudo conforme aconteceu e as providencias tomadas.

Ficaram emocionados com a solidariedade daquele povo e

demonstraram sua gratidão aos que se fizeram presentes a

referida missa. Mas não puderam agradecer pessoalmente

ao inspetor, pois este não se encontrava no povoado. Tinha

se ausentado pôr motivo de negocio.

Os familiares lamentaram não poder ficar e conhecer

o ilustre cidadão que tornou possível um enterro digno ao

seu parente. Após a missa alguns retornaram a sua cidade,

outros resolveram ir até a cabana do falecido para resgatar

alguns pertences que ao menos servisse como lembrança

do finado parente.

Os habitantes dali, ou parte destes que não tinham

pressa de voltar pra casa e fazer nada. Como era de

costume se espalharam em pequenos grupos. Diante da

escola, a sombra de alguma arvore ou próximos do

armazém. Sempre como o propósito de um simples bate

papo.

Alguns compadres e comadres resolveram

compartilhar o almoço ou simplesmente um chimarrão.

Mas a maioria se recolheu as suas casas. Preferindo o

aconchego do lar para o descanso merecido depois de uma

longa semana de trabalho. Aquela foi mais uma manha

bem movimentada naquele vilarejo, enfim o tempo passou

e a calma voltou a reinar.

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À tarde naquele sábado não se parecia nada com a

manhã agitada. Com exceção da garotada que sempre se

reuniam na pracinha para uma partida de futebol. Mas

como tudo tem um fim, o jogo também.

Os garotos se recolhem e agora o silencio era quase

absoluto. Algumas vezes o silencio era quebrado pelo

gorjeio de um pássara ou o latido de um cachorro.

Raramente alguém transitava. As horas se passaram e

finalmente a noite chegou.

Quando o inspetor voltava ao povoado depois de ter

gastado o que sobrou do dinheiro que havia arrecadado em

nome do falecido com mulheres e bebidas.

Caminhava pensativo, com certo remorso pôr ter feito

tal coisa. Ao passar pela rua principal do vilarejo. Sentiu

um frio na espinha ao deparar com um homem bem a sua

frente. Sentiu o sangue gelar ao reconhecê-lo.

Para o inspetor não havia dúvida. Era ele, o falecido.

Estava ali, bem a sua frente. O inspetor ficou perplexo de

pavor.

Ao recobrar as forças, saiu em disparada, correndo

sem parar até chegar a sua casa. Naquela noite quase não

dormiu assombrado pelo remorso, pôr ter usado algo que

não lhe pertencia. Dinheiro mal havido e gasto em coisas

ilícitas.

No dia seguinte, ficou sabendo que o fantasma que o

fez gelar de medo na noite passada. Na verdade era certo

“Paulo de tal”, irmão gêmeo do falecido.

FIM