putin criou esta rússia e tornou- -se o seu líder inevitável · altura em que a rússia está de...

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18-03-2018 ELEIÇÕES NA RÚSSIA Putin criou esta Rússia e tornou- -se o seu líder inevitável Há 18 anos que Vladimir Putin está no topo do poder e o seu nome volta a estar hoje nos boletins de voto. Nos próximos anos joga-se a sucessão do obreiro da Rússia do século XXI N ada impedirá a reeleição de Vladimir Putin para mais seis anos no poder. Para os milhões de eleitores que vão votar hoje, numa altura em que a Rússia está de costas voltadas para a Europa e para os EUA, acusada de interferir nas democracias ocidentais e de ter assassinado um ex-espião em solo estrangeiro, Putin já não é um candidato como os outros. Ascendeu a um patamar histórico, depois de devolver o orgulho aos russos e de lhes garantir estabilidade, mesmo à custa da reputação internacional. Por causa das suspeitas de que a ordem para assassinar Sergei Skripal terão vindo do Kremlin, o Reino Uni- do e a Rússia anunciaram a expulsão de 23 diplomatas colocados nos dois países. Mas isso não afecta Putin, que após 18 anos no Kremlin, será reconduzido para um quarto man- João Ruela Ribeiro dato, durante o qual irá tornar-se no líder russo com mais longevidade no poder desde Estaline. A reeleição abre o debate sobre o que se irá seguir à era de Putin, mas para a perceber é preciso voltar atrás no tempo. Putin revelou um dos pilares que sustentaram a sua governação nos últimos 18 anos, em duas respostas aparentemente caricatas, na fase fi- nal da campanha. Numa entrevista, o líder russo falava dos anos 1990, um período marcado pela “terapia de choque” a que a economia russa foi sujeita após a queda da União So- viética, ao mesmo tempo que o caos e a desordem tomavam conta das ruas, dominadas por guerras de gan- gues ao serviço de oligarcas rivais. Memória dos anos 1990 “Na minha casa de campo, tinha de ter uma caçadeira ao lado da cama”, contou Putin. Por essa altura, o fu- turo Presidente russo estava sem trabalho, depois de ter saído da Câ- mara Municipal de São Petersburgo. “Pensei que talvez pudesse procurar trabalho como taxista nocturno”, afirmou Putin na entrevista. Ao partilhar a sua experiência pessoal neste período, Putin pôs-se no lugar de milhões de russos que se recordam da inflação galopante, da falta de bens de primeira necessida- de, do desemprego e da insegurança que fazia parte do seu dia-a-dia. “É a memória dos anos 1990 que explica a ascensão de Putin”, diz ao PÚBLI- CO Bernardo Pires de Lima, inves- tigador do Instituto Português de Relações Internacionais. Em quase duas décadas, Putin construiu um sistema altamente centralizado baseado na lealdade e nas relações pessoais que o acom- panhavam desde os tempos como coronel do KGB. Quando foi catapul- tado para o Kremlin por um Boris Ieltsin já em estado de coma políti- co, Putin era uma “marca branca” que personalidades mais poderosas da elite económica e governamental A Rússia de Vladimir Putin Fontes: Banco Mundial, Rosstat – Serviço Federal de Estatísticas da Federação Russa Total países Total países 12 8 4 0 -4 -8 -12 Evolução do PIB Em % Liberdade de Imprensa (Repórteres sem Fronteiras) 1999 2004 2008 2012 2017 30 25 20 15 10 5 0 Taxa de pobreza Em % da população 13,5% 12,5 29 2000 2005 2010 2015 2016 Menos livre Mais livre 139 Em 2002 Menos livre Mais livre 179 Em 2011 Menos livre Mais livre 180 Em 2017 121 142 148 Corrupção (Transparência internacional) Mais corrupto Menos corrupto 90 Em 2000 Mais corrupto Menos corrupto 178 Em 2011 Mais corrupto Menos corrupto 180 Em 2017 82 154 135 10 1,5% -7,8 2000 2008 Presidente Primeiro-ministro primeiro-ministro

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Page 1: Putin criou esta Rússia e tornou- -se o seu líder inevitável · altura em que a Rússia está de costas voltadas para a Europa e para os EUA, acusada de interferir ... primeiro

18-03-2018

ELEIÇÕES NA RÚSSIA

Putin criou esta Rússia e tornou--se o seu líder inevitávelHá 18 anos que Vladimir Putin está no topo do poder e o seu nome volta a estar hoje nos boletins de voto. Nos próximos anos joga-se a sucessão do obreiro da Rússia do século XXI

Nada impedirá a reeleição de

Vladimir Putin para mais

seis anos no poder. Para

os milhões de eleitores

que vão votar hoje, numa

altura em que a Rússia está

de costas voltadas para a Europa e

para os EUA, acusada de interferir

nas democracias ocidentais e de ter

assassinado um ex-espião em solo

estrangeiro, Putin já não é um

candidato como os outros. Ascendeu

a um patamar histórico, depois de

devolver o orgulho aos russos e de

lhes garantir estabilidade, mesmo à

custa da reputação internacional.

Por causa das suspeitas de que a

ordem para assassinar Sergei Skripal

terão vindo do Kremlin, o Reino Uni-

do e a Rússia anunciaram a expulsão

de 23 diplomatas colocados nos dois

países. Mas isso não afecta Putin,

que após 18 anos no Kremlin, será

reconduzido para um quarto man-

João Ruela Ribeirodato, durante o qual irá tornar-se no

líder russo com mais longevidade no

poder desde Estaline.

A reeleição abre o debate sobre

o que se irá seguir à era de Putin,

mas para a perceber é preciso voltar

atrás no tempo.

Putin revelou um dos pilares que

sustentaram a sua governação nos

últimos 18 anos, em duas respostas

aparentemente caricatas, na fase fi -

nal da campanha. Numa entrevista,

o líder russo falava dos anos 1990,

um período marcado pela “terapia

de choque” a que a economia russa

foi sujeita após a queda da União So-

viética, ao mesmo tempo que o caos

e a desordem tomavam conta das

ruas, dominadas por guerras de gan-

gues ao serviço de oligarcas rivais.

Memória dos anos 1990“Na minha casa de campo, tinha de

ter uma caçadeira ao lado da cama”,

contou Putin. Por essa altura, o fu-

turo Presidente russo estava sem

trabalho, depois de ter saído da Câ-

mara Municipal de São Petersburgo.

“Pensei que talvez pudesse procurar

trabalho como taxista nocturno”,

afi rmou Putin na entrevista.

Ao partilhar a sua experiência

pessoal neste período, Putin pôs-se

no lugar de milhões de russos que se

recordam da infl ação galopante, da

falta de bens de primeira necessida-

de, do desemprego e da insegurança

que fazia parte do seu dia-a-dia. “É a

memória dos anos 1990 que explica

a ascensão de Putin”, diz ao PÚBLI-

CO Bernardo Pires de Lima, inves-

tigador do Instituto Português de

Relações Internacionais.

Em quase duas décadas, Putin

construiu um sistema altamente

centralizado baseado na lealdade e

nas relações pessoais que o acom-

panhavam desde os tempos como

coronel do KGB. Quando foi catapul-

tado para o Kremlin por um Boris

Ieltsin já em estado de coma políti-

co, Putin era uma “marca branca”

que personalidades mais poderosas

da elite económica e governamental

A Rússia de Vladimir Putin

Fontes: Banco Mundial, Rosstat – Serviço Federal de Estatísticas da Federação Russa

Total países Total países

12

8

4

0

-4

-8

-12

Evolução do PIBEm %

Liberdade de Imprensa(Repórteres sem Fronteiras)

1999 2004 2008 2012 2017

30

25

20

15

10

5

0

Taxa de pobrezaEm % da população

13,5%12,5

29

2000 2005 2010 2015 2016

Menos livre Mais livre139Em 2002

Menos livre Mais livre179Em 2011

Menos livre Mais livre180Em 2017

121

142

148

Corrupção(Transparência internacional)

Mais corrupto Menos corrupto90Em 2000

Mais corrupto Menos corrupto178Em 2011

Mais corrupto Menos corrupto180Em 2017

82

154

135

10

1,5%

-7,8

2000 2008

PresidentePrimeiro-ministro primeiro-ministro

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PÚBLICO

Esperança de vidaAnos80

70

60

66 65,05

70,9

1999 2004 2008 2012 2015

20

10

15

5

0

Riqueza obtida a partir dos recursos naturaisEm % do PIB

2000 2004 2008 2012 2015

11,410,3%

21,7

2012 2018

Presidente

YURI KOCHETKOV/EPAO futuro do Kremlin vai começar a ser pensado amanhã, depois da consagração de Putin

pensavam poder manipular a seu

bel-prazer. Apareceu como um ho-

mem sem história ou sem presença

mediática, um desconhecido em que

cada um podia ver o que quisesse.

“Mesmo em Abril de 2000, quan-

do já tinha sido eleito Presidente,

dois terços da população russa di-

ziam saber muito pouco sobre Putin,

apesar da sua presença constante

nos ecrãs de televisão. Podiam-lhe

ser atribuídas quaisquer qualidades.

Putin era um homem sem caracterís-

ticas especiais, um espião perfeito”,

escreve o jornalista Arkadi Ostrovski

em A Invenção da Nova Rússia (Clube

do Autor).

Por outro lado, Putin não podia

ser mais diferente de Ieltsin. En-

quanto um era jovem, forte, confi an-

te e discreto, o outro estava velho,

cansado, e era o rosto de um líder

humilhado, que era encontrado a

vaguear de madrugada pelos relva-

dos da Casa Branca de Moscovo em

circunstâncias pouco dignas.

Putin chegou ao Kremlin na al-

vorada do novo milénio para pôr

fi m à desordem dos anos 1990 e

assegurar uma vida estável aos rus-

sos. Para isso, começou logo por

pôr a comunicação social — que

tinha gozado de uma liberdade

inédita na história do país, apesar

de dependente do dinheiro dos

oligarcas — ao serviço do Kremlin.

Putin apareceu sem outra ide-

ologia que não uma negação dos

anos anteriores, da “terapia de cho-

que”, da desordem e da humilha-

ção internacional. “Ele veio trazer

ordem, prestígio, ambição, fi m da

corrupção”, diz Bernardo Pires de

Lima, autor de Putinlândia (Tinta

da China). “É claro que tudo isto é

substituído por outra roupagem,

outra corrupção, outra desordem”,

acrescenta.

Ao longo dos últimos 18 anos, as

grandes decisões políticas do Kre-

mlin foram tomadas face às opor-

tunidades que foram aparecendo. O

primeiro grande desafi o foi a guerra

na Tchetchénia, o palco perfeito pa-

ra Putin, vindo do mundo dos servi-

ços de segurança, mostrar a sua pos-

tura dura e agressiva — projectando

logo de início a sua popularidade

para índices que Ieltsin poderia ape-

nas sonhar.

Seguiu-se o ataque de 11 de Setem-

bro de 2001 contra as Torres Géme-

as, em Nova Iorque, em que Putin

fez questão de ser o primeiro chefe

de Estado a telefonar ao Presiden-

te George W. Bush para assegurar a

unidade na luta contra o terrorismo,

de que a Rússia também era alvo.

Ao contrário da época de Ieltsin, a

Rússia não se subjugava ao Ociden-

te, mas antes era um parceiro com

os mesmos objectivos.

Colisão com o OcidenteEm contraciclo com a crise fi nancei-

ra que deixou a Europa e os EUA em

recessão, a Rússia atravessava um

período de prosperidade impulsio-

nada pela subida recorde do preço

do petróleo. Menos de duas déca-

das após a queda da União Soviética,

eram criados multimilionários a um

ritmo quase diário. A única condi-

ção: enriqueçam, mas mantenham-

se fora da política. Ao mesmo tem-

po, o Kremlin consolidava-se como

uma máquina de distribuição de

recursos em circuito fechado e to-

das as suas políticas eram guiadas

por esse objectivo. “O dinheiro era

a única ideologia que o Kremlin pro-

fessava”, escreve Ostrovski.

Por esta altura, Putin atingiu o li-

mite constitucional de dois manda-

tos e cedeu a presidência a Dmitri

Medvedev, passando a ocupar o car-

go de primeiro-ministro. As relações

com o Ocidente mantinham-se cor-

teses, mas de Moscovo vinham avi-

sos. Em 2008, a adesão da Ucrânia e

da Geórgia à NATO estava iminente,

para ser travada no último minuto

durante a cimeira de Bucareste,

com o objectivo claro de evitar um

confl ito com a Rússia. Enquanto de-

corre esse debate, as tropas russas

intervêm militarmente na Geórgia,

surpreendendo um mundo que já

não esperava ver tanques a rolar em

solo europeu.

Anos depois, a deposição do Pre-

sidente ucraniano Viktor Ianukovi-

tch após meses de protestos contra a

aproximação da sua Administração

a Moscovo, abre uma janela de opor-

tunidade, mas também de muitos

riscos: a península da Crimeia é ocu-

pada por forças militares pró-russas

que organizam um referendo não re-

conhecido internacionalmente para

consagrar a anexação à Rússia.

Para Bruxelas e Washington es-

tava violado o statu quo que gover-

nou as relações internacionais na

Europa do pós-Guerra Fria e com

a Rússia nada poderia voltar a ser

como dantes; em Moscovo, cele-

brava-se efusivamente o regresso

da cidade heróica de Sebastopol à

mãe Rússia, o orgulho ferido estava

fi nalmente sarado.

O “momento Crimeia” deu a Pu-

tin um crédito de popularidade

quase sem tecto — nunca mais os

seus índices baixaram dos 80%,

sobrevivendo ao isolamento inter-

nacional, às sanções e à quebra da

economia por causa da descida do

preço do petróleo.

Maioria pós-CrimeiaAs eleições de hoje representam

o momento para Putin legitimar

toda esta conduta, especialmen-

te a anexação da Crimeia — não

é à toa que a data escolhida para

as eleições coincide com o quarto

aniversário da passagem do territó-

rio para a Rússia. “Estas não serão

eleições no verdadeiro sentido da

palavra”, escreve o especialista do

Centro Carnegie de Moscovo, An-

drei Kolesnikov, “mas sim uma es-

pécie de celebração da identidade

da maioria pós-Crimeia”.

Hoje, os dois fantasmas que

assombravam os russos órfãos da

União Soviética — a instabilidade e a

humilhação — parecem ter sido do-

mados por Putin. O que se segue?

A Constituição obriga a que Putin

deixe a presidência no fi nal deste

mandato, e o próprio já afastou a

hipótese de a alterar. Assim, a pers-

pectiva da saída de Putin passa a ser

o principal facto político que deve-

rá dominar a Rússia nos próximos

anos. “Após as eleições, o compor-

tamento dos principais actores po-

líticos e económicos russos irá ser

defi nido não pela presença de Putin

no sistema, mas pela expectativa da

sua partida”, escrevem os analistas

Ivan Krastev e Gleb Pavlovski, num

artigo publicado pelo European

Council on Foreign Relations.

Porém, a saída de cena de Putin

não signifi ca necessariamente uma

mudança de regime. Pires de Lima

diz que “as condições económicas

e a coesão do núcleo duro” vão de-

terminar a possibilidade de que a

sucessão seja feita em circuito fe-

chado. “Com um prenúncio de su-

cessão daqui a seis anos, poderão

surgir muitas clivagens. É aí que

pode estar uma oportunidade pa-

ra algumas pessoas com coragem

capitalizarem com o descontenta-

mento gerado pela economia e falta

de liberdades”, afi rma. Apenas o

tempo dirá se o putinismo irá so-

breviver a Putin.

Após as eleições, o comportamento dos principais actores políticos e económicos russos irá ser definido não pela presença de Putin no sistema, mas pela expectativa da sua partidaIvan Krastev e Gleb PavlovskiEuropean Council on Foreign Relations [email protected]

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ELEIÇÕES NA RÚSSIA

MAXIM SHEMETOV/REUTERS

As presidenciais russas de

hoje despertam escassa

curiosidade. Mas abrem

uma discussão fascinante.

A sucessão de Vladimir

Putin, em 2024, é um tabu,

mas também causa de nervosismo

na chamada elite. “O problema do

Kremlin não é a vitória eleitoral,

mas o que acontecerá a seguir — o

desenvolvimento da agenda pós-

eleitoral”, resume a analista russa

Lilia Shevtsova.

“À medida que 2024 se

aproxima, a questão de quem

ou daquilo que substituirá Putin

vai tornar-se cada vez mais

relevante. Há o sentimento de que

a Rússia está a entrar na era pós-

Putin”, afi rma Sir Andrew Wood,

antigo embaixador britânico em

Moscovo. A razão é simples: a

sucessão põe a nu as fraquezas do

“Estado forte” de Vladimir Putin.

Não está em causa uma

mudança de regime. Mas o

regime vai começar “a mudar”,

escrevem os analistas Ivan Krastev

e Gleb Pavlosvky, num estudo

do European Council on Foreign

Relations. “A eleição presidencial

marcará a chegada da Rússia pós-

Putin, independentemente de

Putin permanecer na chefi a do

Estado nos próximos seis ou 16

anos. Porque, a seguir ao voto,

o comportamento dos grandes

actores políticos e económicos não

se defi nirão pela presença de Putin

no poder mas pela expectativa da

sua partida.” Um prolongamento

do mandato presidencial para

lá de 2024 apenas agravaria o

problema. A verdadeira questão

não é tanto quem poderia ser

o sucessor e o modo como

ascenderia ao “trono”, mas

aquilo que o novo líder poderá

fazer uma vez lá chegado, num

sistema concebido à medida da

personalidade de Putin.

Saberá a Rússia gerir o momento

crítico da substituição do líder? A

Rússia não tem instituições fortes.

O regime não tem mecanismos

institucionais para fazer a

passagem do poder.

O “árbitro-chefe”Putin dirige a Rússia há 18 anos,

dos quais 14 como Presidente,

com o mesmo “círculo de

amigos”, onde prevalecem

oligarcas e os siloviki, homens dos

aparelhos de força — militares,

forças de segurança e serviços

secretos.

Foi o fundador do Estado russo

pós-soviético. O “putinismo”

assenta na concepção do “Estado

forte”, ultracentralizado, baseado

na “vertical do poder” e em

que o arbítrio é designado por

“ditadura da lei”. O FSB, sucessor

do KGB, em que Putin começou

a sua carreira, está instalado

no “coração do sistema”. Trata-

se de um regime largamente

desinstitucionalizado, de uma

estrutura de poder opaca que

roda em torno da única instituição

funcional, a Presidência, e dotado

de uma administração inefi caz

e corrupta. Putin não funciona

como ditador: é sobretudo o

“árbitro-chefe” dos interesses

e das facções da elite, que

frequentemente se digladiam.

Os oligarcas têm a sua riqueza

protegida desde que apoiem o

Presidente e não tenham ambições

políticas. Os recalcitrantes acabam

na prisão.

A grande interrogação é: sem

Vladimir Putin, como funcionará

o “putinismo”? O Presidente

levanta um sério problema à

sobrevivência política do “círculo

interno”, que não existe sem ele.

O primeiro objectivo da elite é

conservar o seu próprio poder

e este depende da presença de

Vladimir Putin.

“A diferença em relação a

antes é que Putin se tornou um

obstáculo ao processo, não um

facilitador, porque ninguém pode

assumir o papel [de sucessor] sem

minar a sua autoridade”, escreve

Pavlovsky no Moscow Times. “A via

de acesso à hierarquia do poder

na Rússia signifi ca que a procura

do próximo Presidente é uma

anedota. Todos percebem que,

enquanto Putin tiver o controlo

dos códigos nucleares, não

abdicará do seu papel de árbitro-

chefe.”

A elite tem a noção de que o

Presidente vai estar concentrado

no desenho da “Rússia pós-

Putin”, frisam Krastev e Pavlovsky.

Começou a promover uma nova

geração de jovens tecnocratas

a posições de poder. “Tem a

convicção de que a Rússia não

necessita de um simples sucessor

— como ele o foi de Boris Ieltsin —

mas de uma “geração sucessora”.

Haveria uma transferência de

poder da actual elite para a

“geração Putin”. Como?

Putin parece hoje muito mais

ocupado com a política externa do

que com a doméstica. “A Rússia

moderna não é um império mas o

seu regime político tem aspirações

imperiais”, que se traduzem

num virulento nacionalismo e

numa política de confronto com

o Ocidente, resume o analista

Andrei Kolesnikov. O desígnio

de transformar a Rússia numa

grande potência é um dos grandes

esteios do poder pessoal e da

popularidade do Presidente. Nada

indica que nos próximos seis anos,

e depois deles, haja qualquer

infl exão nesta política.

Krastev e Pavlovsky exprimem

uma derradeira dúvida: “Mas

sem [Putin] a Rússia será

provavelmente um actor

internacional mais fraco: foi Putin,

mais do que o Estado russo, que

reconquistou o estatuto de grande

potência.”

[email protected]

Começa amanhã a era pós-Putin

Ponto de VistaJorge Almeida Fernandes

A elite do poder teme o fim do último mandato do Presidente. Sem Vladimir Putin, como funcionará o “putinismo”? É um regime sem mecanismos para organizar a sucessão

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ELEIÇÕES NA RÚSSIATHIERRY ROGE/REUTERS

Será difícil quebrar o actual

ciclo de más relações do

Ocidente com a Rússia,

diz Maria Raquel Freire,

investigadora do Centro

de Estudos Sociais da

Universidade de Coimbra, que se

centra nos estudos para a paz, a

Rússia e no espaço pós-soviético.

É autora do livro A Rússia de Putin

— Vectores Estruturantes de Política

Externa (2012, Edições Almedina).

Mas há alguns bons exemplos de

como se poderia fazer o degelo.

Por que é que a Rússia nunca foi capaz de se “desdiabolizar” aos olhos do Ocidente?A lógica do inimigo mútuo tem que

ver com a forma como as relações

entre os dois blocos evoluíram nas

décadas após o fi m da Guerra Fria

e, nomeadamente, com o processo

de construção da segurança

europeia. A preservação da NATO

foi mal acolhida por Moscovo e

esteve na origem da manutenção

do clima de desconfi ança mútua.

Desde essa altura que no discurso

político russo tem estado muito

presente a ideia de que os aliados

excluíram o país do processo

securitário europeu. Essa lógica de

exclusão levou a Rússia a criticar e

A modernização da NATO foi mal feita e manteve a desconfi ança

Maria Raquel Freire explica que Moscovo se sentiu excluída do processo securitário europeu e procurou responder à letra. Não há uma saída fácil desta situação tensa

EntrevistaAntónio Saraiva Lima

demonizar o Ocidente, que por sua

vez passou a encarar um discurso

russo como uma imagem em

espelho.

Até que ponto é que, entre o fi nal da Guerra Fria e meados dos anos 2000, o Ocidente não confundiu um rival com um inimigo e o tratou como tal?A relação foi sempre difícil. Essa

confusão foi-se fazendo desde o

fi m da Guerra Fria, mas deixou

de se fazer com a anexação da

Crimeia (2014). Ainda assim,

houve vários momentos em que

as relações avançaram. Basta-

nos relembrar, por exemplo, a

parceria entre a Rússia e a UE para

a modernização, em 2010. Foi um

momento importante, porque

surgiu após um período de enorme

tensão, gerado pelos planos da

Administração Bush em instalar

um escudo de defesa antimíssil

na Europa, pela discussão sobre o

alargamento da NATO à Ucrânia e

à Geórgia e pela própria guerra na

Geórgia (2008).

A percepção ocidental da Rússia como um inimigo agravou-se com as intervenções militares na Ucrânia e na Síria?Sim, claramente. A anexação da

Crimeia marca de forma muito

negativa as relações entre Ocidente

e Rússia. A partir do momento

em que se dá uma ingerência nos

assuntos internos de um Estado,

e se leva a cabo uma violação

de fronteiras, assiste-se a uma

mudança na leitura da segurança

internacional e da segurança do

ponto de vista europeu. Desde

então a confi ança é coisa que

não existe. As relações estão a

atravessar o pior momento de

sempre. Sempre me pareceu

exagerado quando em 2008 e 2012

se falava no regresso da Guerra

Fria. Mas admito que estamos

numa situação muito próxima

daquele estado de grande tensão

entre o Ocidente e a Rússia. Neste

momento não há altos e baixos,

só baixos. Não vislumbro grandes

oportunidades de melhoria e é

difícil de ver como se pode quebrar

o actual ciclo. Quando lemos que

Putin está a testar novos mísseis

que não são interceptáveis e que

Donald Trump está a desenvolver

armas nucleares mais pequenas,

é porque estamos perante uma

escalada militarista. E embora

nenhuma das partes tenha

interesse numa guerra directa,

podemos afi rmar que ela já está a

ser travada na Síria.

Os líderes políticos, comunicação social e opinião pública ocidentais também contribuem para a diabolização da Rússia?Contribuem bastante. Notícias

relacionadas, por exemplo, com

a capacidade de ingerência russa

nos recentes processos eleitorais

ocidentais contribuem para isso,

uma vez que reforçam a leitura

que fazemos do poder da Rússia

no sistema internacional. Quando

dizemos que a Rússia sobrevoa

os espaços aéreos de outros

países, que tem submarinos aqui

e ali, que interfere nas eleições

norte-americanas, francesas ou

no referendo catalão, estamos a

atribuir-lhe um estatuto.

Apesar de ser um pouco crítica da

forma como se publicita a política

russa na Europa, penso que, ainda

assim, é importante ter a noção de

que a Rússia tem sido, de facto, um

actor muito activo na infl uência

das redes sociais e na difusão de

propaganda e de desinformação.

Tanto é assim que a UE criou

o StratCom — um gabinete de

contra-informação que trabalha

a tempo inteiro no combate à

desinformação e às notícias falsas.

É possível dissociar a liderança de Putin desta realidade?Não. É importante enquadrar esta

narrativa com o discurso patriótico

russo e com a promoção da Rússia

como uma grande potência,

seguida pelo seu Presidente. É

interessante verifi car que nestas

eleições Putin recandidata-

se como independente e não

como candidato do partido

Rússia Unida. Claramente quer

distanciar-se de algumas políticas

internas menos bem-sucedidas

e quer ser reconhecido como

o líder patriótico e a fi gura

histórica que trouxe a Rússia

de volta à cena internacional.

Olhando para a anexação da

Crimeia e para a intervenção

na Síria, estamos perante uma

série de acções de Putin que

apontam ao entendimento e

ao reconhecimento da Rússia

enquanto grande potência. E que

acabam por contribuir também

para o seu isolamento.

A lógica do inimigo mútuo só se poderá alterar sem Putin?Eventualmente. Se analisarmos a

situação interna e pensarmos no

quanto a Rússia tem a ganhar com

uma normalização com o Ocidente

e, particularmente, com a União

Europeia, há muitas vantagens.

Ultrapassando a questão das

sanções, retomando as políticas

de modernização e a colaboração

no investimento estratégico ou

tecnológico, é possível criar

sinergias. Alguns exemplos podem

dar esperança, como o acordo de

cooperação que a UE assinou com

a Arménia (2017) sem a obrigar a

ter de optar por um ou por outro

gigante. Um modelo diferente do

que foi proposto à Ucrânia.

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Estamos nas margens do

rio Moscovo e quem olhar

para a estátua de Pedro,

o Grande instalada no

vértice de uma das suas

ilhotas pode perceber mais

facilmente a natureza imperial da

ancestral “Mãe Rússia”. A estátua,

inaugurada em 1997 para celebrar

os três séculos da Marinha russa,

é descomunal, erguendo-se 97

metros acima do nível das águas,

com um pedestal de pequenos

galeões a sustentarem o galeão

principal no qual emerge a

gigantesca fi gura do imperador.

Um século depois da revolução

que depôs os Romanov, que

dominaram a Rússia ao longo de

mais de 300 anos, Pedro, o Grande

continua a merecer uma devoção

especial. Porque foi a sua ousadia e

abertura às ideias modernizadoras

da Europa que transformaram

um gigante distante e adormecido

numa potência europeia de

primeira grandeza.

A Rússia provou então as

delícias do poder e jamais deixou

de subordinar a sua natureza, a

sua essência, a essa experiência

e condição. O “urso”, animal que

a caricatura ocidental associa a

esse poder, derrotaria depois o

grande exército de Napoleão e,

já no século XX foi o principal

responsável pela destruição da

força nazi que ameaçava devorar a

Europa — e é por isso que o regime

de Putin e a Rússia contemporânea

concedem a Estaline um

tratamento de excepção na aversão

aos soviéticos. Hoje, a Rússia é um

actor de segundo plano em termos

económicos — o seu produto é

metade do da França ou do da

Califórnia e muito baseado nas

matérias-primas. A sua demografi a,

que à custa dos generosos apoios

do Estado voltou a recuperar, está

longe de se comparar com os pesos-

pesados do planeta — os Estados

Unidos, a União Europeia ou a

China. Mas, ainda assim, a Rússia

voltou a ser uma potência temida.

É importante notar que

essa recuperação de um papel

de primeiro plano na cena

internacional nasce dos escombros

do fi m da União Soviética. As

experiências de liberalização

económica conformes ao

receituário ocidental foram uma

tragédia para os russos. A economia

colapsou, a pobreza alastrou, o

Estado foi tomado de assalto por

oligarcas e pela corrupção, e essa

experiência foi vivida pelos russos

como mais uma prova de que o

Ocidente jamais perderá uma

oportunidade para os vexar. Putin

respondeu a esse sentimento de

forma exemplar. Um império que

vai da vizinhança da velha Europa

de herança austro-húngara aos

Urais, à Sibéria e ao mar do Japão

tinha de recuperar a sua maneira

de ser, autocrática e sustentada na

tese do “nós contra o mundo”. A

humilhação dos tempos de Ieltsin

tinha de ser vencida pelo regresso

ao glorioso passado imperial.

A um ocidental custa a perceber

como é que os russos cultos,

cosmopolitas, que conhecem

os sistemas constitucionais e de

governo da Alemanha ou do Reino

Unido, que bebem champanhe

e ouvem o rock produzido em

Londres, se deixam seduzir pela

mensagem de Putin. A verdade é

que, na Rússia actual, é frequente a

opinião, mesmo entre intelectuais,

de que a Rússia é uma potência

eternamente acossada pelo

Ocidente. O discurso autocrático e

militarista de Putin é por eles visto

como a única forma de a Rússia

manter a sua dignidade nacional

e o estatuto internacional a que

tem direito. As forças armadas são

objecto de uma devoção para nós

doentia, mas para os russos são um

instrumento de dissuasão de que

não podem prescindir. A Rússia

vive uma espécie de complexo de

perseguição.

Opinião Manuel Carvalho

O “urso” quer continuar a ser “urso”O Ocidente, que se retirou de

armas e bagagens deixando a

Rússia lamber as feridas da sua

fracassada liberalização, ajudou

na germinação desta mentalidade.

Depois, querer levar a NATO

até às fronteiras da Rússia, na

Geórgia ou na Ucrânia, foi uma

forma de legitimar o discurso

de Putin sobre a perseguição

externa. O limes funciona como

uma zona de protecção desde os

tempos da Roma imperial e nada

parece ter mudado desde então.

Deu no que deu: a Rússia jamais

tolerará o Ocidente à porta. A

Geórgia foi devastada e a Crimeia

conquistada. A intervenção na

Síria mostra o renascimento

do poder da Rússia em dar

cartas no exterior e os ataques

informáticos — ou as operações

de envenenamento de “espiões

traidores” — são, para os russos,

pura e legítima defesa.

Os russos da era de Putin

condescendem com tudo — até

com os caminhos perigosos de

um regime iliberal, no limiar da

ditadura —, porque é assim que se

sentem defendidos e protegidos da

permanente ameaça da Europa.

Os chineses ganham espaço na

fronteira do Amur e tomaram conta

das riquezas da Mongólia, mas não

é aí que se joga o destino na Mãe

Rússia. É na relação de forças com

alemães, franceses ou americanos.

Se nos tempos das velhas alianças

europeias a Rússia ora estava com

as monarquias conservadoras,

ora com a França progressista

para criar os grandes blocos que

devastaram o continente em

guerras sucessivas, hoje sabe que

(pelo menos por agora) tem à sua

frente uma Europa unida para lhe

fazer frente.

Putin é para os russos o homem

providencial para se impor nesta

conjuntura. A nós, ocidentais, custa

a entender o preço que se paga

por essa quimera imperial. A eles,

russos, esta é a melhor forma de se

sentirem seguros e de viverem sem

medo da rapacidade do Ocidente.

ALEXANDER NATRUSKIN/REUTERS

É importante ter a noção de que a Rússia tem sido um actor muito activo na influência das redes sociais e na difusão de propagandaMaria Raquel FreireInvestigadora universitária

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MAXIM SHEMETOV/REUTERS

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