pulsão e cinema tania rivera

Upload: barbara-maria-brandao-guatimosim

Post on 03-Jun-2018

218 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • 8/12/2019 Pulso e cinema Tania Rivera

    1/7

    CINEMA E PULSO: SOBRE IRREVERSVEL,

    O TRAUMA E A IMAGEM

    Tania Rivera.

    RESUMO

    Partindo de um dilogo entre psicanlise e cinema, buscamos refletir sobre oestatuto da imagem na contemporaneidade. Para alm de uma configurao imaginriaapaziguadora, indicada a potencialidade traumtica da imagem, pormeio da concepo freudiana da lembrana encobridora. Tal dimenso traumtica explorada na anlise do filme Irreversvel, produo francesa de 2002. Aviolncia no , nessa obra, apenas mostrada em imagens, mas posta em cenaentreas imagens. Em seu agenciamento pulsa uma ameaadora possibilidadede que aquilo de que se trata na imagem, e que diz respeito ligao entre sexo eviolncia no possa ser contado, mas apenas repetido.

    Palavras-chave: Psicanlise. Cinema. Trauma.

    DRIVE AND CINEMA: ABOUT IRRVERSIBLE,

    TRAUMA AND IMAGE

    ABSTRACT

    Entwining psychoanalysis and cinema, this paper seeks to reflect about thestatus of image in contemporary society. This search goes beyond a conformistimaginary configuration to point out the existence of a traumatic potentialityof the image, as indicated by Freudian concept of screen memories. This ideais explored by a discussion about French Director Gaspar No productionIrrversible, 2002. In this work, violence isnt simply showed in images butworks betweenthe images. In its editing pulsates the scaring possibilitythat something essential about image, related to death and sexuality, cant betold as a history, but destroys everything in a circular repetition.

    Keywords: Psychoanalysis. Trauma. Cinema.

    .

    Psicanalista e professora da Universidade de Braslia. doutora em psicologia pelaUniversidadeCatlica de Louvain, Blgica e pesquisadora bolsista do CNPq. Autora de Arte e Psicanlise(2002) e Guimares Rosa e a Psicanlise. Ensaios entre Imagem e Escrita (2005), ambos porJorge Zahar Editor. Endereo: SHIS, QI 23, chcara 16, Braslia DF.E-mail: [email protected]

    Revista do Departamento de Psicologia - UFF, v. 18 - n. 1, p. 71-76, Jan./Jun. 2006

  • 8/12/2019 Pulso e cinema Tania Rivera

    2/7

    Tania Rivera

    Cinema e psicanlise so rigorosamente contemporneos. Enquanto Freudpublica com Breuer os Estudos sobre a Histeria, em 1895, os irmos Lumirefazem as primeiras apresentaes pblicas de seu cinematgrafo. Freud jamais seocupou dessa nova arte, apesar de conceder lugar privilegiado em sua obra, comosabemos, a analogias entre aparelhos ticos e o aparelho psquico. Lou AndreasSalom notava em texto de 1913, porm, que a tcnica cinematogrfica a nicaque permite uma rapidez de sucesso das imagens que corresponde mais ou menoss nossas faculdades de representaoe que o futuro do filme poder contribuirmuito para a nossa constituio psquica(SALOM, 1913 apud BAUDRY,1975, p. 57). A psicanlise talvez tenha dificuldade em se ocupar do cinema porestar dele mais prxima do que se pensa: ambos parecem partilhar uma radicalcrtica mmesis oriunda da criao da fotografia algumas dcadas antes qualcorresponde uma aguda problematizao do sujeito. Sem dvida, como vaticinouLou Andreas Salom, o cinema, ao lado da psicanlise, contribuiu para a construodo olhar e do sujeito, ao longo de todo o sculo XX e do sculo que se inicia.

    O texto freudiano que mais pode dialogar com o cinema a respeito do estatutoda imagem, Lembranas Encobridoras, data ainda do perodo de gnese dastima arte, tendo sido publicado em 1899. A lembrana encobridora uma fantasia,mas possui um carter ultrantido que lhe concede um valor de recordao.Ela revolucionria por acentuar a distncia entre vivncia e representao e fazer

    da imagem uma construo que encobre a verdade, mas de alguma maneira adeixa entrever, podendo portanto ser perscrutada em uma tentativa de reconstrula uma espcie de fotografia deslocada do infantil. Uma fotografia que evocaseqncias fantasmticas indica algo que no est l, e que apresentado de formaencoberta e deve por meio dela ser buscado. Talvez essa seja uma caracterstica daimagem na contemporaneidade: apresentar-se como uma representao que nobasta em si mesma, no se esgota como reflexo da realidade, mas pe esta emquesto e convida a uma procura por meio da imagem. Uma busca capaz de levar

    o sujeito a se (re)posicionar ante a imagem, incitando a (re)montagens pulsionais.O inconsciente, como bem sabemos, no redutvel a imagens, no consiste

    em um tesouro de imagens, mas em uma srie de marcas, impresses que fixamdeterminados significantes. A anlise do sonho, fundadora da psicanlise, bemmostra isso: o quanto a imagem onrica construda pela linguagem, pictograma.Mas no se trata tanto de imagem, no sonho, quanto de textodo sonho, textomanifesto duplicado pelo texto latente que a anlise pressupe e deve refazer. Aimagem em psicanlise , sobretudo, a lembrana encobridora: cena de grandeacuidade visual, por vezes de forma demasiadamente visual e que encobre outracoisa. Cena que remete, portanto, a outra cena, A Outra Cenaque na pluma deFreud o inconsciente, cena fundante, mas irrecupervel como lembrana, e que,portanto, deve ser (re)construda. Assim como o nascimento da irm de Freud, deque ele no se lembra em absoluto, mas guarda a lembrana muito ntida de doispequenos episdios ocorridos na viagem de trem que fez com a famlia para essaocasio (Cf. FREUD, 1987, p. 277).

    Revista do Departamento de Psicologia - UFF, v. 18 - n. 1 p. 71-76, Jan./Jun. 2006

  • 8/12/2019 Pulso e cinema Tania Rivera

    3/7

    Cinema e pulso sobre Irreversvel, o trauma e a imagem

    A lembrana encobridora nos ensina que uma cena esconde outra, massobretudo, que ela pe em cenasignificantes que engatam fantasias. Essa cena uma tela, portanto, que cobre a experincia traumtica, mas faz ver, por meiode uma montagem complexa, elementos que permitem o desdobramento de outrascenas, as cenas da fantasia. Na lembrana que Freud analisa em LembranasEncobridoras, o amarelo das flores (deflorar) e o gosto maravilhoso do po(ganha-po) que permitem que se reengatem as fantasias que o analista reconstriem sua anlise. Essas duas imagens por excelncia so significantes que ancoramuma encenao mtica da prpria constituio do sujeito, ao mesmo tempovelando e deixando entrever o recalcado.

    Walter Benjamin, em sua Pequena Histria da Fotografia, de 1931, indicauma ressonncia notvel entre o que faz uma fotografia e a interpretao psicanalticaA fotografia, para ele, tem uma potncia analtica, ela capaz de revelaralgo oculto viso (o movimento de um homem que caminha, em cada frao desegundo de seu caminhar, por exemplo, na obra de Muybridge, um dos grandesprecursores do cinema). S a fotografia, afirma Benjamin, (1994, p. 94) revelaesse inconsciente tico, como s a psicanlise revela o inconsciente pulsional.Mas no h paralelismo entre o inconsciente pulsionale o tico: o inconsciente ticode sada, pois em seu regime trata-se sempre de representaes,como insiste Freud ao longo de toda sua obra. A pulso nunca se revela como tal,

    mas se faz representar por significantes. A imagem d testemunho, portanto, demovimentos pulsionais. Poderia ento, se a pulso no se revela, o ticorevelar-se, seja no cinema, seja na psicanlise? A imagem est votada, pelo menosdesde o advento da fotografia, a uma anlise que a conjuga palavra. Tal analticada imagem no se esgota, porm, em uma palavra final. A imagem est de sadaligada ao significante, como notvamos com a lembrana encobridora. A psicanliserefaz repetidamente essa ligao, produzindo novas associaes para umaimagem e, logo, mais imagens para novas associaes. Talvez seja nesse sentidoque Freud defende tanto a idia de que o sonho a via rgia da anlise.

    Toda anlise, psicanaltica ou flmica, depara-se com uma resistncia daimagem, uma polissemia e uma iconicidade que pem em cheque a linguagem. Aanlise no capaz de deter a imagem, mas deve se contentar em acompanhar suas

    errncias ou duplicar sua fixidez. E isso no pouco. A aproximao terica daimagem est obrigada a vagar entre dois extremos que so, em realidade, inerentesa seu objeto: a iluso e a impossibilidade. Tratando da fotografia em seu clebre ACmara Clara, Barthes v nela duas vias: a que nos levaria a submeter seu espetculoao cdigo civilizado das iluses perfeitase a que nos afrontaria com odespertar da intratvel realidade(BARTHES, 1980, p. 175). O primeiro caminho aquele que ele nomeia studium, dimenso que permite que se team de umafotografia comentrios sbios, sociolgicos ou classificatrios. O segundo lheparece mais essencial ao fotogrfico: trata daquele ponto fugidio, de localizaolbil, que nos obriga a fechar os olhos, diante da imagem, pois ele pontiagudo,capaz de atingir, furar (os olhos): o punctum. Este de localizao estritamentesubjetiva, justamente porque corresponde ao ponto em que a foto toca e pe emmovimento pulsional o sujeito.

    Revista do Departamento de Psicologia - UFF, v. 18 - n. 1, p. 71-76, Jan./Jun. 2006

  • 8/12/2019 Pulso e cinema Tania Rivera

    4/7

    Tania Rivera

    A fotografia carrega j em si, portanto, uma possibilidade de movimento que

    o cinema vir explorar, ela cava uma distncia do olhar em relao realidade(justamente ao se propor como reproduo direta, indicial, da realidade) que fazde cada imagem uma seqncia a ser explorada, em busca de outra coisa que noest l (exatamente como faz Freud com sua lembrana encobridora). Mas se afoto implica, em princpio, um desdobramento narrativo (studium), h nela umacorrente oposta, inerente tambm imagem, que circunscreve uma certainvisibilidade, ou melhor, uma impossibilidade de ver que correlativa a umainterrupo da seqncia narrativa, a uma parada no tempo ou a uma repetioincessante que ameaa romper toda possibilidade de narrao (punctum). H algopotencialmente traumtico na imagem.No cinema, para Barthes, essa potncia destruidora da imagem fotogrficaseria domesticada, no bojo da tentativa social de temperar a loucura que ameaaconstantemente explodir no rosto de quem a olha(BARTHES, 1980, p. 172). Ocinema participaria dessa pacificao social da imagem, pelo menos em sua vertentede

    cinema ficcional, justamente porque chamado de stima arte;um filme pode ser louco por artifcio, apresentar os signosculturais da loucura, jamais ele louco por natureza (por

    estatuto icnico); ele sempre o prprio contrrio de umaalucinao; simplesmente uma iluso; sua viso sonhadora,no ecmnsica (BARTHES, 1980, p. 172-173).

    Ora, o cinema das ltimas dcadas parece engajado em tentar ser louco pornatureza, ao mesmo tempo em que se caracteriza como um verdadeiro construtorde lembranas encobridoras coletivas. Por um lado, a imagem impe-se a coma mesma convico perceptiva e o misterioso agenciamento com imagens ausentesque caracterizam a lembrana encobridora, e provavelmente suscita em cadaexpectador um movimento anlogo de evocao singular de seqnciasfantasmticas. O cinema encobre, por essa vertente, o que pode haver de traumticona imagem. Por outro lado, ir ao cinema uma experincia que apela fortementepara o corpo e o mantm imvel, para que melhor as imagens possam colocar

    o sujeito em movimento (pulsional), sua revelia (apesar de cada um percebermais ou menos claramente o quanto se trata, ao adentrar a sala de projeo, deassujeitar-sea ela). Todo filme apresenta, potencialmente, um trem vindo emdireo ao sujeito, como na clebre apresentao dos Lumire que assustou e fezcom que se levantassem alguns expectadores. A agitao mecnica, notaincidentalmente Freud nos Trs Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, produzexcitao sexual, e a sua conjugao com o susto que produz a neurose traumtica(Cf. FREUD, 1976b, p. 190-191). Todo filme implica susto e agitao mecnica,pois obriga o sujeito a oscilar entre os sucessivos pontos de vista que a montagemcinematogrfica pe em seqncia. O cinema pacifica, porm, essa violentasujeio imagem, ao faz-la coletiva e massificar seus sujeitos: ali onde aliteratura e as artes plsticas convocam um olhar singular, nico, o cinema prope

    a miragem do compartilhamento do olhar (O mesmo olhar para todos! Todos emum mesmo ponto de vista, a todo momento!).

    Revista do Departamento de Psicologia - UFF, v. 18 - n. 1 p. 71-76, Jan./Jun. 2006

  • 8/12/2019 Pulso e cinema Tania Rivera

    5/7

    Cinema e pulso sobre Irreversvel, o trauma e a imagem

    A montagem confere ao cinema uma estrutura prpria que a sonoridadevem duplicar de forma tensa, diga-se de passagem. por meio dessa estrutura quese pode, na produo cinematogrfica atual, explorar e radicalizar a imagem emsua vertente traumtica. Refaz-se, ento, a lembrana encobridora, mas ao revs

    de maneira a que a imagem pacfica d lugar ao punctum, revelando insidiosamenteo que ela deveria supostamente esconder. Pensemos na fita Irreversvel, de2002, com direo do argentino radicado na Frana, Gaspar No. Essa obra mostra,especialmente em sua primeira metade, cenas de violncia bastante crua, oque de resto tornou-se quase habitual em nossos dias. No com isso, porm, queela consegue a faanha de redesenhar o trauma, e sim pela sua prpria estruturanarrativa em aprs-coup, com longas seqncias sem corte sendo agrupadas abruptamentesegundo uma ordem cronolgica inversa. Ela estrutura-se segundo acircularidade, a repetio, que o funcionamento prprio da pulso de morte (cf.FREUD, 1976a).A inscrio que abre a fita e retorna para conclu-la circularmente : OTempo Destri Tudo. O tempo no age a no sentido do esquecimento, dorecalcamento graas ao qual a imagem encobre o passado traumtico, mas, aocontrrio, estrutura uma narrativa disruptiva, que ameaa todo o tempo implodir aprpria possibilidade de narrao. O movimento de cmera pe em cena talcircularidade, sobretudo no incio do filme, em que as tomadas panormicas chegam

    a repetidas e vertiginosas rotaes de 360 graus. O final do filme retoma talvertigem em uma cena idlica da protagonista deitada num parque em um dia devero, graas ao movimento de um aspersor que rega a grama em um jato circular,com o qual crianas brincam. A cmera o acompanha em velocidade crescente atgirar sobre seu eixo, acelerando-se a ponto de fazer girar o cho e o cu, at tornarimpossvel qualquer imagem, forando o sujeito a uma vertigem traumtica. No sem ressonncias em relao teoria freudiana do trauma que a cena central emais insuportvel do filme, em seu realismo temporal que lhe confere cinco minutosde durao, seja a do estupro da protagonista. Mas aprs-coup que ela setorna mais terrvel e efetiva, ao descobrir-se, nos ltimos minutos do filme, que apersonagem estava grvida.

    A violncia no , nessa obra, apenas mostrada em imagens: ela posta emcena entreas imagens. Em seu agenciamento pulsa uma ameaadora possibilidadede que aquilo de que se trata, que diz respeito ligao entre sexo e violncia,no possa ser contado, mas apenas repetido, o tempo destruindo tudo, circularmente.Irreversvel irresistvel, porque ele nos engancha em seu tempo prprioe destrutivo. Issode que se trata a terrvel e irreversvel, no h maiscomo fugir, pois isso j aconteceu(no esse o tempo do trauma?). Faz-senecessrio, ento, recortar a configurao traumtica e, sempre aprs-coup,remont-la fantasmaticamente numa mescla um tanto vertiginosa entre pulsesde morte e de vida, entre um filme e outro, o sujeito segue remodelando-se, interminavelmente.

    Revista do Departamento de Psicologia - UFF, v. 18 - n. 1, p. 71-76, Jan./Jun. 2006

  • 8/12/2019 Pulso e cinema Tania Rivera

    6/7

    Tania Rivera

    REFERNCIAS

    BARTHES, R. A cmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

    BENJAMIN, W. Pequena histria da fotografia (1931). In: ______. ObrasEscolhidas. Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1994. p. 91

    107.BRAUDY, J.-L. Le dispositif: approches mtapsychologiques de limpression deralit. Communications, [S.l.], v. 23, p. 56-72, 1975.

    FREUD, S. Alm do princpio de prazer (1920). In: ______. Obras psicolgicascompletas. Rio de Janeiro: Imago, 1976a. v. XVIII, p. 13-85. Edio StandardBrasileira.

    ______. Lembranas encobridoras (1899). In: ______. Obras psicolgicascompletas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. III, p. 269-287. Edio StandardBrasileira.

    ______. Trs ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). In: ______. Obras

    psicolgicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976b. v. VII, p. 119-229. EdioStandard Brasileira.

    ______; BREUER, J. Estudos sobre a histeria (1895). In: ______. Obraspsicolgicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. II. Edio StandardBrasileira.

    IRREVERSVEL. Direo e produo de Gaspar No. Frana: Ressignon/Nord-Aust Production, Grondpierre/Eskubd, 2002. DUD. cor-95 min.

    Recebido em: maro/2005Aceito em: fevereiro/2006

    Revista do Departamento de Psicologia - UFF, v. 18 - n. 1 p. 71-76, Jan./Jun. 2006

  • 8/12/2019 Pulso e cinema Tania Rivera

    7/7