james areas texto imagem-pulsão em deleuze

12

Upload: carla-motta

Post on 17-Jul-2015

122 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 1/11

David Lynch: entre 0 Afeto e a A~ao.

Nota sobre a lrnaqem-pulsao em Deleuze.

Esse artigo exprirne a tentativa de aproximar a nocao deleuziana de imagem-

pulsao a exper iencia c inematogra ft ca de David Lynch em B lu e V elve t (EUA,

1986). Nao pretendemos realizar uma analise exaustiva do filme de Lynch,

nern de sua obra, tao rica, inovadora e surpreendente. Trata-se somente de

uma aproximacao e dos embaracos e dificuldades que ela suscita.

Urn encontro ...

«0 cinem a e u ma nova prc!lica das im agens e d os sig no s, c uja Ico ria a filo so fia deve

J a z e r como prdllca c onc e il u al "J .

Talvez, seja precise penetrar a regiao frontetrica onde a pranca conceitual da

filosofia e a pratica cinematografica das imagens e dos signos entram em res-

sonancias e combinacoes variadas para que possamos apreciar uma tal afir-

macae. 0cinema e a manifestacao direta de urn pensarnento em movimento,

ele realiza a metaflsica nas imagens atraves do movimento e do tempo. 0

automovirnento e a autoternporalizacao das imagens cinernatograflcas ensejam

mundos reais: a imagem-mundo que 0 cinema libera constitui a propria rea-

lidade a que a filcsofia tambern aspira quando pretende per 0movimento e 0

tempo no pensamento. 0 cinema poe 0 movimento eo tempo nas imagens

para criar os mundos cinematograficos, A Iilosofta descobre at os elementos

de uma aventura espiritual sem precedentes, pois a cinema nao coloca so-

• Professor Adjunto do Dep". de Filosofia da UERJ.

1 Deleuze. A !m a ge m · T em p o: Cin,ma II , p. 332. Para as rcferencias [ururas de Imagem. Tempo utllt-

zarernos IT, seguido da(s) pagina(s) da cdlcao brasilelra.

o que nos r a z plflS3r nfl16. novembro de 2003

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 2/11

26 I James Arhs

mente 0movirnento na imagem, ele 0poe tarnbern no esplrito. Nesta aventu-

ra a filosofia reencontra uma "historia natural" das imagens, uma taxinornia e

urn esboco de classificacao de onde ela extrai inumeraveis trajetorias da vida

cspiritual ou dos movirnentos do esptrito. Trajetos e movirnentos q'le propria

havia procurado e abandonado, em razao de certas conungencias teoricas que

Ievaram 0 pensarnento algumas vezes a afirmar 0 rnovimento e a desprezar a

imagem, outras a sustentar a realidade das imagens subtraindo-lhe, entretan-

to, 0movimento.

Ora, a imagem-movimento e a imagem-tempo sao conquistas extraordi-

narias para 0pensarnento porque restituern a densidade metafisica que Bergsonreclarnava para os problemas filosoftcos. em sua teruativa de romper com as

estrategias espaciallzantes da racionaltdade representativa. J a em Mater ia e

Mem6r ia 2 a trtplice identidade entre movimento-materia-lrnagem perrnitira

distinguir na imagem-movimento suas variedades: a imagern-percepcao, a

imagern-afeccao e a imagem-acao como mveis diferenciados de conexao do

infinite universe das imagens. Do mesmo modo, possibilitou tanto a analise

das diferentes profundidades da memoria, do trabalho seletivo do cerebra e

da Iiberdade do esptrtto, quanto do Tempo como coexistencia da duracao

para alem do movirnento de da materia.

Na intercessao do cinema com a filosofla proliferam mundos msolitos e

extravagantes". Mundos organicos e inorganicos, perceptivos. afetivos,

pulsionais, ativos, cristalinos. Se 0cinema e a realizacao de mundos e a filoso-

fia criacao conceitual, 0 mundo e ele proprio cinema, cinema em-si onde

fulguram e vivern as imagens e as ideias, Todavia, assim como nenhuma una-

gem do pensamento esgota as ideias, do mesmo modo nenhuma hnagem ci-

nernatografica pede expressar a totalidade do mundo, slmplesmente porquc

o Todo nao se fecha sobre mundo nenhum. 0 Todo e sempre a fenda aberta

por onde resvalam continuamente os mundos, a cesura que 0 transfigure co

faz girar. Os mundos somente exprimem as variacoes da luz, blocos espaco-

temporals ou extratos rebatidos de urn tempo emancipado das cronologias.

Os mundos cmematograflcos exprimem as virtualidades de Aion .

A dimensao metaftsica da imagem, do movimento e do tempo, sua ca-

racterizacao intrmseca e seus agenciamentos exreriores, tornaram-se obje-

to da tnvestigacao filosofica conternporanea de Bergson a Deleuze abrindo

para 0 pensamento um vasto domtruo de problemas e de novas possibili-

2 Bergson. Mater ia e M cm 6ria: E nsaio sa bre a Rda~do d o C orp o co m a E sp lrito .

3 De Gaetano. "Mondes Cmematographiques", em: Der Film bc i Ddeuzd Le c in ema ulan Deleuze,

pp. 166-181.

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 3/11

Davidlynch: entre 0 Afeto e a k30 I 27

dades de experimentacao, posto que a intercessao Iilosofia-cinema e hoje

multo rna is que urn horizonte inexplorado - trata-se, antes, de urn grandi-

oso e inadiavel encontro.

o Pulsar do Tempo

A classi ficacao das imagens c ine rna togra fi cas propos ta por Deleuze em Ima-

ge m-M ov im ento : C ine ma Iiamplia a analise bergsoniana de Materia e Mem6r ia

acerca do universo das imagens, de suas conexoes externas e se suas dife-re nc ia co es in tema s (p erc ep ca o, a fe cc ao e acao), ao introduzir entre a a fe cc ao e

a acao 0 registro da imagem-puis l io . Entre 0 afeto e a acao, no pequeno intervalo

entre 0 "idealismo da i rnagern-afeccao" e 0 "realisrno da imagem-acao", entre a

primeiridade e a segundidade Deleuze acusa a insistencia de urn mundo

perturbador: "ha algo que e como a afeto degenerado , au a acao e mb rion ad a'" .

J a nao se trata mais, portanto, de uma imagern-afecccao, como ele acabara

de descreve-la no capitulo anterior; mas tambern nao se trata, ainda, da ima-

gern-acao que ele analisara, sob as suas duas formas, no capitulo posterior.

No intersttcio do idealisrno e do realismo, entre 0afeto e a acao, ha urn mun-

do. Entre 0urn e 0 dois, entre a primeirtdade "algo que so remere a si mesrno,

qualidade ou potencia, pura possibilidade" e a segundidade "algo que remere

a si apenas atraves de outra coisa, a existencia, a acao-reacao, 0esforco-resis-

tencia" 6 ,germinam forcas, Particulas de energia e de materias nao-forrnadas,

mas, ja degeneradas; embrioes impotentes para a acao, condutas fragmenta-

das, Iorcas selvagens e sem direcao.

Os afetos necessitam de Espacos-quaisquer para se desenvolver, para expri-

mir suas qualidades, encamar suas potencias ou realizar suas possibilidades;

aspiram se comunicar com a delicada superftcie das coisas. As acoes, ao contra-

rio, pressupoe Meios-deterrninados para externar comportamentos, anseiam a

desenvoltura dos corp os e das condutas em grandes extensoes territoriais.

Entre essas duas imagens, entre 0 pequeno circuito dos afetos de superft-

cie e 0grande circuito das acoes nos territorios, entre a expressao virtual dos

afetos e os eomportamentos reais encontramos urn par estranho: Mundos

originarios - Pulsoes elementares,

4 Deleuze. A Imagem-MovimenIO: Cin!ma I. Para as referencias Iuturas de Imagem·Movimcnfo utili-

zaremos 1M, seguido da(s) pagina(s) da cdicao brasilelra.

5 1M . p. 157.

6 IT . p. 43.

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 4/11

28 I JamesAr~as

Urn mundo originano, sustenta Deleuze:

'" nao e urn espaco qualquer (embora possa se assernelhar a de), porqu~ so aparece

ao fundo dos meios determmados; mas tambern nao e urn meio deterrninado,

que deriva somente do mundo onginarto.'

Mas a pulsao, par sua vez, acrescenta Oeleuze:

'" nao e urn afero porque e uma impressao, no sentido mais fone, e nao uma

expressao; mas cIa tambern nao se confunde com os sentimentos ou as ernocoesque regulam e desregulam urn comportameruo."

o conjunto assim formado da imagem-pulsao possui consistencia e auto-

nomia perfeitas, nao se reduz a urn mero lugar de passagem, nem e urn sim-

ples intermediario: a imagem-afeccao nao e capaz de expressar a pulsao pela

via do sentir, a irnagern-acao nao e capaz de a esgotar inteiramentc nos com-

portamentos. Oa imagem-pulsao brota 0 naturalismo (Stroheim, Bunuel) eo

cinema de "violencia originaria" (Visconti, Ray, Losey)",

Segundo Deleuze 0 essencial do naturalismo, seja na literatura de Zola'?

ou no cinema, se encontra na imagern-pulsao, nos diferentes aspectos da

pulsao: em sua natureza, em seu objeto e em sua destinacao. Por urn lado, as

pulsoes sao forcas brutas ou elernentares que rernetem sempre a mundos ori-

ginarios, sao impulsos primitives (Iome, sede, sexo), mas tarnbern complexes

(canibaltsticos, sadicos, masoquistas, necroftlicos) ou espirituais (obsessoes,

taras, rituals). Em segundo lugar, as pulsoes dirigem-se a pedacos, partes ou

fragmentos que pertencern tanto ao mundo origmario quanto sao arrancados,

extratdos ou subtratdos dos objetos reais do meio derivado. E por Iim, as

pulsoes pretendem explorar e esgotar os rneios derivados apoderando-se de

tude, passando de urn meio a outro.

A irnagem-pulsao e , com efeito, 0 conjunto, 0 par indissociavel: mundo

originario-pulsoes elernentares. As coordenadas naturalistas cornpreendern

sempre dois aspectos: 0 Mundo originario de onde germinam e brotam as

Iorcas, e 0Meio derivado para onde elas se dirigem e lutam por se encarnarem.

7 1M.p. 157.81M. p. 157.9 P ara um a breve exposleao da raxinomia d clc uz ia na e p ro blem as co rre la to s c f . Aume nt: Ma rie ,

D ic lio n na ir e l h" 'o riq u~ e c ril iq ue d u c inema.

10 ej. 0magni fi ca a rt igo : "Zola e a Fissura", inclutdo como apendice em : Deleuze, Llgica doSen t i do .

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 5/11

Dav id Lynch :en t re 0Afeto e a A~~o I 29

E a duplicacao dos mundos e a comunicacao entre des. E 0 informe, 0puro

fundo ou 0sem-fundo que invade os rneios derivados para deles extrair a sua

consistencia, a condicao de sua existencia; mas tam bern os pedacos, os esbo-

cos e as partes extratdas violentamente desses rneios.

Assim. trata-se de um mundo de uma violencia muito especial (sob cerros aspectos,

e 0 mal radical); mas tem 0 rnerito de fazer surgir uma imagem originarla do

tempo, com 0 comeco, 0 fim e a tncltnacao, toda a crueldade de Crones."

A imagern-pulsao libera no seio da imagem-movimento uma dimensao

autonorna do tempo: 0tempo pulsado que, a despetto de seu comprometi-

mento com 0movimento circular ou de inclmacao e queda, remere sempre ao

horizonte entropico e a voracidade insaciavel de Cronos que tudo devora.

E verdade, no entanto, que a aparicao do tempo na imagem pulsional

obedece a certas coordenadas e depende de certas exigencias: 0 tempo parece

sempre atingido por uma rnaldicao consubstancial que faz com que tudo que

ele envolve se desfaca e se precipite na degradacao, Ora, nessas condicoes a

dimensao temporal so pode ser apreendida como "destine da pulsao e devirde seu objeto"": Esprernido entre 0originano e 0derivado, 0tempo se reves-

te de uma conduta negativa, enrolando-se e desenrolando-se no pequeno in-

tervalo, condenado a jorrar somente no hiato, ele so se revela atraves de uma

perspectiva amaldicoada: 0 inevitavel da queda, a degradacao entropica, a

rampa infernal, 0horizonte negativo.

Oat, talvez, a forte cornpulsao espiritual e a busca de salvacao que 0pulsar

do tempo acaba por imprimir no naturalismo, E que a pulsao, imprensada

entre 0 afeto e a acao, em sua busca febril de satisfacao, pode transfigurar-se e

se rnetamorfosear, Derramando-se sobre uma linha abstrata ela pode revestir-

se de cores e tonalidades ineditas, Entre a abstracao ltrica e a volupia hiper-

real ela pode "escolher" uma ordem renovada de repettcao, aceitar 0mundo

das derivacoes e recriar-se nele.

Bem-vindo a lumberton ...

Os famosos quatro prirneiros minutes de Ve1 uao Azu l constituem um frag-

mente, urn retalho, uma amostra em miniatura da experiencta americana e

dos acontecimentos que irao se desenrolar na delicada trama do roteiro.

111M. p. 158.121M. p. 162.

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 6/11

30 I JamesAr~as

Urn anteparo azul cobalro de veludo descortina-se trernulante por baixo

dos creditos que nomeiarn a obra, logo a seguir rosas vermelhns e tulipas

amarelas exibern toda a sua incandescencia em contraste com a cerca irnaculada,

de urn branco absolute, hiper-real. Urn carro de bombeiros com urn bornbei-

ro sorridente, urn dalmata. Urn guarda de transite que orienta a travessia das

criancas em direcao a escola. Urn morador desatento rega a grama de sua

pequena casa de provincia. Reina uma atmosfera de contagiante leveza e tran-

quila nitidez. No interior da casa uma senhora torna cafe enquanto assiste a

urn programa de televisao: urn filrne em preto e branco que nos deixa entre-

ver uma mao empunhando uma arma. Uma torcao na mangueira do jardimobstrui 0 fluxo regular da agua, que agora jorra sufocada e em desordern,

nosso morador insiste em desenrolar a mangueira, mas e ele proprio inter-

rornpido por uma convulsao interna e invisivel (urn ataque cardiaco, urn aci-

dente cardiovascular"). Talvez, por uma simples picada de inseto. Trata-se do

Senhor Beaumont que cai contorcendo-se sobre a grama, ainda com a man-

gueira entre as maos. Urn cachorro surge desafiando a agua, Iinalrnente

desobstruida, que esguicha desimpedida. Urn bebe se aproxima cluudicante e

atOnito do corpo esrendido. A camera se desloca e rasteja pelo chao, mergu-lha em foco microscopico na grama como se buscasse urn outro mundo, nas

sombras do solo, ate encontrar besouros negros em surda atividade. Penetra-

mos por instantes nas fronteiras do subsolo, delicada membrana do chao de

onde ecoam rutdos secos e mecanicos, A seguir, em corte subito, a camera

exibe urn singelo cartaz, emoldurado par uma breve saudacao senora, on de

se le: "We l c ome 10 Lurnb e r t on "D .

Lumberton e uma cidadezinha do interior, no estilo dos anos 50, segura e

tranquila, urn fragmento da America, urn extrato, urn rneio denvado extraido

da floresta pela atividade madeireira de seus habitantes. Uma miniatura do

excepcionalismc arnericano!" que sobrepuja com vigor as desafios do meio.

A pequena cidade de exploradores de florestas, semi-industrializada, mas ja

decadente, como sc prefigurasse em silencio as transformacoes inevitaveis do

capitalismo de producao para 0 de produtos. Cidade erguida aos golpes de

machado e ao som das serradeiras com as quais se triunfou sobre as

virtualidades naturals, 0 grao humano laboriosamente arrancado cia selva. 0

natural e 0 atual, 0 origmario e 0 derivado, as coordenadas naturalistas,

13 Para a descrtcao do roreiro servimo-nos das referencias. por vezes modlflcada, de Atkinson.

Vdudo Azut (Btu! Velvet), para referenclas posicrtores VA.

14 Numa perspecuva distinta da nossa Cj. Jameson, "Cinema: a Nostalgia pelo Presentc" cm: Pos-

Modemismo.

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 7/11

Davi d Lynch: e ntr e 0Aleto e a A~30 I 31

Apes a visita ao hospital on de finalmente fora socorrido 0Senhor Beaumont,

urn pequeno cornerciante de ferragens, seu mho Jefrey - urn adolescente

desprovido de qualquer qualidade espiritual assinalavel, a nao ser a fermenta-

~ao hormonal e 0 impeto que 0 desejo de conhecimento empresta a alguns

jovens; e que servira de esteio para 0desenvolvimento da narrativa - retorna

a casa paterna por urn atalho, urn terreno baldio com pequenas pedras, on de

o capim, a vegetacao rasteira e 0 lixo se amontoam. Jefrey atira pedras na

direcao de uma velha construcao abandonada ate distinguir no chao, em meio

aos detritos, uma orelha desterritorializada. provavelmente subtratda de uma

cabeca hurnana.E a Iniciacao de Jefrey, seu tosco despertar para a realidade dos sintomas e

da presenc;a das pulsoes no meio derivado, do vento rude que sopra sobre a

face matinal de lumberton. A descoberta de Jefrey se abre sobre uma via de

mao dupla: e exposicao e 0 contato definitive com 0 estranho labirinto dos

mundos pulsionais: e a curiosa volupia, a atracao sem freios, pelo desconhe-

cido mundo das tonalidades do azul.

o Mundo de Empedodes e 0 Labirinto de Ariadne.

Segundo Deleuze 0mundo de Empedocles e a desterritoriallzacao natura-

lists:

... feito de esbocos e de pedacos, cabecas sem pescar;o, olhos scm fronte, braces sem

espaduas, gestos scm forma. Mas e tambern 0conjunto que reune tudo, nao dentro

de uma orgamzacao , mas que faz todas as partes convergirern para urn imenso campo

de lixo ou urn pantano, e tad as as pulsoes para uma grande pulsao de morte. Ii

Ha varias rernissoes ao longo do lilme as partes subrratdas e aos pedacos

arrancados: 0 chapeu com helices da crianca sequestrada, 0 retalho recortado

do roupao de veludo de Dorothy Vallens {ela propria que oscila continua-

mente entre 0originario e 0derivado e sofre sucessivas desterritorializacoes).

Mas 0mundo de Empedocles e tarnbern 0conjunto das partes e sua conver-

g~ncia, 0conjunto das pulsoes e seu destino. t. verdade tambem que a orelha

eo labirinto, a porta de entrada para 0misteno de Ariadne, a mulher redlrnida

do touro por Teseu, a mulher abandonada que reencontra Dioniso, 0 eterno

retorno e a repeticao que transfigura. L6

151M. p. 158.16 q. a esse respeito: Misterio de Ariadne segundo Nietzsche em: Deleuze, Crtlica e Clrniw. Para as

referencias posteriores cc.

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 8/11

32 I James Ar~as

A trajetoria de Jefrey, a busca pela parte perdida da orelha, invoca 0desejo

de conhecimento, faz dele 0 homem do conhecimento "que pretende explo-

rar 0labirinto ou a floresta do conhecimento" l7 • Ele age em nome dos valores

heroicos e motivado por urn ideal moral: apanha a orelha, coloca-a nurn ve-

lho saco de papel e segue direto para 0distrito policial. La ele entrega a preci-

osa reltquia ao Detetive Williams, que ap6s exarninar cauteloso 0 interior do

saco, nao contern 0sorriso ao emitir seu vaticinto: "e urna orelha humana, de

verdade" l6. A noite, movido pelo impulso cognitivo, talvez, por uma ansie-

dade pubertaria, ele se dirige a casa do Detetive Williams -que, todavia, lhe

frustra a curiosidade aconselhando-o a deixar 0 caso para os proftssionais.logo depois de retirar-se da casa, ainda na calcada, uma voz sibilante lhe

pergunta: "Foi voce quem achou a orelha?", E Sandy, em tons pastels, 0 doce

sussurro da juventude, que se aproxima deixando sorrateiramente a vista, sob

a blusa, os seios desnudos. Para nosso heroi e a ocasiao proptcia. 0 hairos, 0

memento oportuno que nao se deve deixar escapar. Sandy "ouviu dizer" que

a orelha encontrada poderia estar relacionada a uma cantora que vive e mora

ali perto, em urn degradado predio de apartarnentos na vtzinhanca. A vizi-

nhanca, a irredutivel proximidade, os vasos comunicantes, As distincoes 50-

ciais (ricos-pobres) e as reparticoes morais (gente de bern-gente ruim) nao

sao capazes irnpedir a comunicacao dos rnundos, nern de evitar a inclinacao

de urn para 0 Dutro, a penetracao de urn no outro. 0 meio derivado e, a rigor,

somente uma extensao do mundo originario, a modificacao e a diferenca que

eles representam, na perspectiva naturalista, sao sempre ditas em relacao a

origem de onde puderam ernergir. Sao como ilhas desprendidas d e urn conti-

nente vulcanico em continua atividade, sempre ameacadas pela proxirnidade,

atormentadas pela vizinhanca hostll e pela a eventualidade de ascensao do

fundo larvar que tude arrasta e desfaz.

as meios estao sempre brotando ou rcgressando ao mundo origiaario: e mal

cmergem, como esbocos ja condenados, [a confundidos, para voltar mais

definitivamente para l~, caso nao recebarn a salvacao, salvacao que 56 pode advir

desta volta a origem."

E sob 0signo desta descoberta que a alianca entre Sandy eJefn:y se estatui

e se solidifica. Jefrey, 0 pretendente irnberbe da verdade, 0 mvesugador pre-

17 CC, p. 116.16 VA. p. 33.191M. p.l60.

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 9/11

DaYid Lynch: entre 0Aleta e a A~~o I 33

coce, heroi destemido da moral; Sandy a jovern do "ouvir dizer", a curiosida-

de doxica, a volupia loura e lerna do senso comum.

"E urn mundo estranho, nao e mesmo?"

Nao se trata, para a curiosidade juvenil, de uma mera interrogacao, mas, tal-

vez, de uma constatacao terrtvel. A perplexidade que leva a pergunta, neste

caso, soa como urn desafio, uma duvida que procura aplacar-se no assenti-

mento que a duplica, a paz de uma certeza provisoria que se compartilha a

beira do abismo, antes da queda derradeira.

A vizinhanca, 0mundo estranho a que se alude,ea rua Lincoln que a

velha placa exibe em dose -up , logo ali no Ediftcio Deep River parece que se

esconde algo capaz de nos levar ao coracao das trevas, "ao reservatorio da

culpa, do odic e do desespero da cidade" 20. Ali vive Dorothy Vallens, no

apartamento 710, a bela e sedutora Dorothy, a cantora-azulada, vltirna de urn

duplo sequestro (0marido Don Valley e 0 filho), do subomo e da violencia

sexual que lhe impoe Frank Booth, antigo parceiro de seu marido endivida-

do, ex-proprietario da alamada orelha extraida com uma tesoura, e ao qual

Frank se refere como "van Gogh". f para esse apartamento que Jefrey nos

conduzira por qualro vezes.

Em primeiro lugar, ao simular a inspecao de urn agenle sanitario, quando

penetra na cozinha, rouba uma chave esquecida e avista 0 Homem Amarelo.

A segunda vez, quando resolve visitar lunivarnente 0 apartamento, logo de-

pois de assistir a apresentacao de Dorothy no Slow Club: e interrompido no

banheiro apos assinar 0 territorio, alertado pelo rutdo da macaneta, entao

foge para se esconder no closet , ate ser descoberto por Dorothy (com 0roupso

de veludo azul). Depots de descoberto e par ela constrangido a sair do arma-

rio, para, logo depois, ser novamente compelido a voltar, quando da chegada

de Frank. E nesse refugio, de onde espia 0 que se passa, queJefrey contempla

o turbulento Frank em acao, 0 bieho humano, a explosao animal, 0 fracasso

da virilidade. A terceira - apes relatar tudo 0 que viu, em uma (mica noire,

para uma Sandy boquiaberta - retorna para os braces de Dorothy, os miste-

rios do azul, e tern 0 coito interrornpido par Frank e a debilidade organizada

de seu bando. A ultima vez, quando eneontra 05 vestfgios da camilicina re-

cente e enfrenta ardilosamente Frank.

Frank e 0 chefe de uma quadrilha dedicada ao trafico, Irequenta urn esta-belecimento denominado P u ssy H e av en , conectado a rede de venda de drogas

20 VA, p. 44.

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 10/11

34 I James Ar!as

e a exploracao d e mulh eres, administrad o por B en, urn protagonista d e playback

que inspira os afetos degenerados de F rank, e que esconde as sequestrados.E para 0 borde! de Ben que todos se d i n g e m e e 1 < 1 .que tern lugar uma

e stra nh a flg ura cao: a lei, 0 carrasco, 0 grupo de comparsas, as garoras de

p ro gr ama , Do ro th y ,Je fr ey , a a ssis te nc ia muda e Ben , c an ta ro la ndo Roy Orb iso n.

E como uma pausa no f r e n e s i d a tram a onde 0 tem po naturalista m ostra em

conjunto seus efeitos negativos "usura, degradacao, desgaste, destruicao, per-

d a ou sim plesm ente esquecim ento" 21 .

Jefrey depois de surpreend ido par F rank e arra stad o ale 0 estabelecimen-

to de Ben e conduzido, a seguir, por urn passeio a beira da estrada ondeescuta de F rank Booth, antes de ser esm urrado e abandonado: "voce e como

eu" . E is , ta lv ez , 0essencial d e F rank, a forca neg ativ a, a ind iferenca, a v iolen-

cia g ratuita e erotizad a. M a s, tarnbern, 0 d e Jefrey B eaum ont, a Iorca reativ a

que avalia e valora com a escala invertida, 0 niilism o rancoso do hom em

civilizado, 0charlatao dos afetos. A besta hum an a e 0Teseu pos -moderno .

D orothy V allens, a desterritorializada, rnisterio renovado de A riadne,

irrom pe nov am ente algum tem po depois nas proxim id ad es d a casa d e Sand y,

nua, v iolentad a, como se retornasse do pals dos mortos, e acolhida pe1a famI -

lia W illiam s e socorrida par uma ambulancia. Retornara ainda urna vez no

fin al c om 0 m ho, a crianca do chapeu com helices.

S an dy W illiams, a imp re ssio nista , a ven tu ra d o sen tir, c on trai n a su perftc ie

do rosto e na hesitacao gestual os d escam inh os d os afetos, protagoniza a linh a

abstrata que vai do sonho com os tordos aos passaros no peitoril da janela

com 0besouro v ivo preso no bico, a natureza estranha das coisas

Entre as duas cintilam 0 estranho m und o das pulsoes e as tonalid ad es

do azuL .

2) 1M,p. 162.

5/14/2018 JAMES AREAS TEXTO Imagem-puls o em Deleuze - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/james-areas-texto-imagem-pulsao-em-deleuze 11/11

David Lynch: entre 0Afeto e a A~ao I 35

Referencias Bib liograf icas :

Atkinson, Michael. V eludo Azu l (B lu e VdveO.Trad. de Pedro Karp Vasquez e Jose

Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

Aument.jacques; Marie, Marie. Dic t[onna l re th cor lque e c ritiq ue d u d n em a . Paris: Nathan!

Vucf,2001.

Bergson, Henri. M attr ia e M em Oria : Ensalo sobre a Re la fao do Corpo com 0 Esptriro.

Trad. de Paulo Neves. Sao Paulo: Martins Fontes, 1999.

Deleuze, Gilles. A Im ag em -M ov im en to : C in em a 1 . Trad. de Stella Senra, Sao Paulo:

Editora Brasillense, 1985.

___ . A Im agem - Tem po: C inem a II. Trad. de Eloisa de Araujo Ribeiro. Sao Paulo:

Editors Brasiliense, 1990.

___ . CrWca e Clfnlca. Trad. de Peter Pal Pelbar. Sao Paulo: Editora 34,1997.

___ . LO gica do Sen tido . Trad, de Luiz Roberto Salinas Fortes. Sao Paulo: Perspecu-

va, 1974.

Fahle, Oliver; Enge, Lorenz. (org.), Der Film b el D e le uz el L e c in em a se lo n Deieuze.

Verlag der Bauhaus - Universitat Weimar! Sorbonne Nouvelle. Paris: Presses de la

Sorbonne Nouvelle, 1997.

Jameson, Fredric. P Os-M odem ism o: a L6g ica C ultu ra l do C ap ita lism o Tard io . Trad. de

Maria Elisa Cevasco, Sao Paulo: Ed. Auca, 2002.