pulp feek #21

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Semana de Fantasia Épica/Espada & Magia, com as séries de Marlon Teske e Victor Lorandi.

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Atrasamos um pouquinho. Mas foi pro bem. Nosso descanso foi merecido, e causado, na verdade, por compromissos demais e coincidências terríveis.

E falando em coincidências, será uma coincidência o fato de ter-mos todos chegado ao final do ano lendo e escrevendo? Será uma coin-cidência o fato de todos desejarmos nosso espaço nesse mercado tão maluco ao qual chamamos editorial?

Eu não acredito nessa sorte, e culpo alguns nomes, como Tolkien, Aasimov, John W. Campbell. E Joanne K. Rowling. A autora de Harry Potter teve uma importância enorme na minha formação como leitor e escritor, e acredito que também na de grande parte de vocês leitores. Por isso decidi comemorar o mês de dezembro com uma série na mi-nha coluna Como Escrever Sobre, voltada para Harry Potter. Espero que os fãs gostem e os não-fãs leiam, me dando uma chance de explicar essa paixão maluca pela história do garoto que sobreviveu.

O Lucas também vem com a sua coluna Fonte de Inspiração, nes-sa edição sobre o mangá Fairy Tail.

E como estamos na Semana Fantástica, temos d’A Queda de Aqueron, por Marlon Teske, e Rixa, por Victor Lorandi. Sem falar na estréia de um one-shoter, André Bassi, com Tula.

Lembrando que a NaNoWriMo acabou, e estamos preparando uma edição especial de Natal para falar dos resultados do mês de No-vembro, bem como colocar na balança tudo que fizemos no ano. E por fim, mas não menos importante, estamos preparando uma surpresa para o começo de Janeiro. Sim, outra surpresa. Sim, estamos tentando deixar vocês mimados.

Nada nos agrada mais do que mimar os leitores.

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A quedA de Aqueron - o Portão dos Penitentes... um passo para fora. Acompanhe o que espera os mártires do lado externo da velha cidade, quemedos ou surpresas os aguardam neste mundo de sombras? - Marlon teske -Pág 3

rixA - PArte vi ... A ordem de ferro finalmente permite a Boller sua caça-da enquanto isso ele enfrentará o julgamento dos magos. Poderão eles confiar num antigo inimigo mesmo após tantas duvidas? - victor Lorandi ---- Pág 11

séries

tuLA... neste maravilhoso conto cuidado com o que se brinca. isto pode tornar-se real e você pode acabar perdendo completamente o con-trole. - André Bassi -------------------------------------------------- Pag 22

one-shot

Fonte de insPirAção... Conheça uma das cinco grande séries de mangá da atualidade oriental. suas características e sua história. o que afinal faz as pessoas pensarem que Hiro Mashima pode se colocar entre os maiores Mangakás da his-tória? - Lucas rueles ---------------------------------------------------------- Pág 35

extra

Na Próxima Semana: Na próxima semana: Lady Starbuck encontrará seu passado, poderá ela resolver o que deixou para trás, ou irá continuar amargando isso para sempre?

Coil irá nos revelar um pouco mais de sua história, o que esse ciborgue nos guarda?

Isso e a continuação do especial de quatro partes sobre Harry Potter por Rafael Marx

CoMo esCrever soBre... na primeira parte de um especial dividido em qua-tro, rafael Marx, nosso editor chefe falará sobre as temáticas e técnicas e como desenvolvê-las fez de Harry Potter o que é. ----------------------------------- Pág 41

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o Portão dos Penitentes foi fechado com um estrondo e, por al-guns segundos, nenhum dos nove mártires conseguia enxer-

gar nada além de sombras. isto mudou quando duas mulheres muito velhas adentraram o lugar, carregando velas que utilizaram para acen-der tantas outras em alguns castiçais de ferro antigo que adornavam as paredes de pedra escura. dirigiram-se primeiro até as duas menores e começaram a, gentilmente, tirar suas roupas caras, suas sedas e seus adornos.

uma era velha, ainda mais enrugada do que as anciãs que a aju-davam a despir-se. tinha cabelos, tão ralos e brancos que ofuscavam, amarrados cuidadosamente em um coque. não trazia nenhuma marca em seu corpo além das provocadas pelo longo tempo em que viveu em terra-Além, mas seus olhos eram diferentes, muito menores, quase uma mera linha em um rosto redondo e simpático. deixaram-na completa-mente nua. devido à postura, seus seios pequenos descansavam sobre a barriga roliça de alguém que fora mãe um sem número de vezes. Aquilo revoltou o outro que ali estava:

— vistam-na com alguma coisa, pelos velhos deuses! — exclamou, removendo o elmo prateado e polido para revelar um rosto quadrado e robusto, tão negro quanto a noite. seus olhos, igualmente, eram duas piscinas de escuridão que ocultavam o sangue dos nobres de outrora.

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os cabelos eram grossos, cheios, assim como a barba hirsuta. — A nudez dela lhe incomoda? — comentou outra voz, irônica —

ela reflete sua própria velhice, meu nobre senhor.— É apenas uma questão de respeito — tornou o outro — no pas-

sado, honrávamos os anciãos.— outros tempos, outras regras — respondeu a outra uma vez mais.

Agora havia uma menina clara de cabelos tão escuros e longos quanto a noite igualmente nua ao lado da anciã. quando terminaram de despi-la, meio correu, meio gatinhou até um canto e encolheu-se ali. As duas ve-lhas caminharam até o grandalhão e começaram a tirar-lhe a armadura. ele as afastou com um gesto rígido, calmo, porém firme.

— não vão deixar você levar os brinquedos, Aurélio — era um gor-do, enfiado em uma armadura enorme, mas que, ainda assim, lhe aper-tava terrivelmente. estava despindo-se por conta própria a esta altura. - e nem adianta argumentar com as duas. elas não têm mais língua. Foi arrancada há tempos para que não pudessem falar.

— quem é você? — perguntou o primeiro — e como sabe o meu nome?

— Me chamo Glauco — suspirou puxando o elmo com força para arrancar-lhe da cabeça redonda repleta de marcas, com os olhos roxos e ainda fechados devido à tortura — e quase fui um santo, até engordar e

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foder demais. Agora estou na mesma situação que todos vocês, amaldi-çoado com esta busca por…

— Abençoado, você quis dizer.o homem que interrompeu Glauco também já estava sem parte de

sua vestimenta cerimonial. era loiro, com uma barba bem feita e olhos tão verdes que pareciam brilhar sob a luz fraca da vela.

— encare como quiser, garoto. — dario — cortou ele — tenho um nome, Glauco, e espero que o

use ao dirigir-se a mim. — tanto faz. isto tudo não me importa mais. vamos morrer de qual-

quer maneira assim que...de repente, do outro lado, um dos mártires caiu de joelhos ao chão

e então desabou de bruços com o rosto na pedra do assoalho. A mulher que enfrentou Aurélio correu em seu auxílio, retirando o elmo de seu rosto e o gorjal, para que ele pudesse respirar. Ao ver seu rosto, até mes-mo Aurélio não conseguiu evitar uma exclamação de repulsa e horror. estava terrivelmente marcado, tão magro que podia-se ver os ossos do crânio e tossia sangue. A mulher virou-se para as velhas, implorando:

— Arturo precisa de água, por favor — disse tentando encontrar piedade, mas estas se restringiam a recolher e retirar as peças das arma-duras, desnudando um a um os nove que ali estavam. Fizeram o mesmo

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com o ferido Arturo e seu corpo não estava em melhores condições do que o rosto.

— o que diabos fizeram com ele? — rosnou Aurélio.— o que fizeram com todos que se negaram a desfilar para os cren-

tes — respondeu um grandalhão de porte guerreiro saindo das sombras onde despira-se. estava completamente marcado por açoite, da cabeça aos pés, tanto no peito quanto nas costas. Ao ouvir sua voz, a garotinha de cabelos negros correu de seu esconderijo e abraçou suas pernas. ele, em resposta, afagou-lhe o cabelo e a ergueu facilmente no colo.

— está tudo bem, Cassandra — disse ele, num murmuro, beijando-lhe o topo da cabeça — eu também vim, ouviu? relutei um pouco, mas estou aqui.

Pela primeira vez, a criança sorriu e afagou-lhe o rosto barba-do. naquele instante, um silvo engasgado sobressaltou a todos. quando viraram-se, notaram que uma das mulheres silenciosas estava caída de costas, sendo amparada pela primeira. seus olhos estavam muito aber-tos e gritava a plenos pulmões, ainda que tudo o que conseguisse soar com a boca desprovida de língua era aquele silvo que lembrava um gar-garejo. diante dela, estava a mulher que acudiu Arturo. estava nua, ex-ceto pelo véu.

— se incomoda se eu permanecer com o rosto coberto, minha

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querida? — disse, dirigindo-se a velha. esta estava ainda em choque, gritando no chão. um baque distante foi ouvido e, então, a parede dos fundos começou a deslizar pesadamente para os lados, derrubando po-eira no chão. tratavam-se de duas placas pesadíssimas de metal antigo, reforçadas por blocos de pedra. A velha de olhos estreitos foi a primeira a atravessar para o outro lado. Lá, o chão era de terra batida. ela pareceu satisfeita ao sentir o barro úmido sob seus pés.

Havia mais pessoas ali, todas com as línguas arrancadas, tatean-do à meia-luz que brotava entre as falhas do muro exterior. vagavam de um lado para o outro arrastando cestos com frutas, caixas de verduras, legumes, pescado e animais de corte que caminhavam puxados por uma corda até o local onde eram abatidos. nenhum deles pareceu notar os nove mártires nus que ali adentravam, exceto por um velho homem e um garoto vestidos em trapos de linho. eles traziam roupas semelhantes consigo, que foram entregando a eles, um a um.

quando Aurélio e dario atravessaram o portão, trazendo Artu-ro consigo, e o colocaram no chão, o mesmo som distante se repetiu e a estrutura começou a deslizar de volta para o ponto inicial, fechando-se atrás deles com um estrondo.

— estamos fora de Castelo Azul — comentou Glauco, mais para si próprio do que para qualquer outro.

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— e o que é este lugar? — inquiriu Aurélio.— É a verdadeira função do Portão dos Penitentes — respondeu o

grandalhão. A menina em seu colo dormia, então colocou-a gentilmen-te sobre uma pilha de feno e começou a vestir-se — As trinta mil pessoas que vivem dentro do enclave dependem da comida que provém de fora. os moradores são doutrinados desde cedo para não pensarem muito nisso, mas o alimento e a matéria prima que provém dos penitentes que vivem além dos muros é o que possibilita a vida lá dentro.

— eu lembro de você — disse Glauco — você é, ou foi, membro do exército, não?

— sim. Me chamo Péricles. Fiz parte da Guarda até dois dias atrás, quando fui banido por não concordar com uma ordem de Belzequíades.

— você ficou contra um dos três grandes Mestres? — gargalhou Glauco — tem sorte de estar vivo então! se não fosse pela queda de Aqueron, agora estaria aqui, junto com toda essa gente mutilada, ser-vindo como um animal sem mente até o fim da sua vida. sem dúvidas estará melhor agora entre os bárbaros.

— será? — interveio a mulher do véu que, com as mangas sujas das roupas de andarilha, tentava tirar um pouco do sangue dos olhos de Ar-turo, que continuava inconsciente — qual será nosso destino do outro lado dos portões de Castelo Azul?

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— nossa missão é clara — cortou dario — devemos ir até terra-Além e salvar Aqueron.

— Com esse bando maltrapilho? — ironizou Aurélio — talvez já te-nha notado, dario, mas os poderosos Mártires são um grupo de velhas, torturados, gordos e crianças…

— e nós — corrigiu dario indiferente — somos fortes o suficiente para garantir a segurança dos fracos. A sacra doutrina não os colocaria nesta situação caso não fossem úteis para nossa demanda. não acha?

— não, não acho — respondeu Aurélio terminando de vestir-se com aqueles andrajos. sentia as pulgas no tecido remexendo-se e mordendo-lhe a pele — somos apenas nove sujeitos que ficariam melhor longe da cidade. simplesmente encontraram a melhor maneira de se livrar de cada um de nós.

um ronco distante se fez ouvir e, então, o portão externo começou a abrir-se lentamente. uma luz ofuscante tomou o ambiente e mais de um daqueles homens protegeram-se, virando seus rostos para o chão. quando voltaram a erguer seus olhos, o que viram era de tal forma di-ferente de tudo o que conheciam ou sabiam que sentiram suas pernas fraquejarem e suas gargantas secarem pela dúvida.

A liberdade era tão terrível e completa que os oprimia. estavam diante de um mundo completamente novo.

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valleri não podia acreditar naquilo. seu coração batia acelerado em seu peito, fazendo sua visão ficar turva. suas palavras não

eram realmente suas, mas de um furor sem igual.― você sabia que isso ia acontecer e não nos avisou? ― ela rugiu.seu dedo delicado parecia um punhal apontado na direção de el-

dron. ela se sentia traída, abandonada e enganada. ela se sentia indefe-sa, como uma pequena criança.

― sinto muito, valleri, mas se eu tivesse dito qualquer coisa pra você, teríamos parado imediatamente e teríamos retornado ao templo inutilmente.

― você não pode me dizer isso. nós poderíamos ter ajudado. eles queimaram nossa árvore.

toras se aproximou dos dois. os outros magos estavam sentados ao redor de uma fogueira, seus rostos tristes e pesarosos. Alguns choravam em silêncio.

― desculpem, mas acho que esse não é o momento de dar culpa um ao outro. ― ele disse.

― não se meta nisso, cavaleiro. ― valleri respondeu.ela sentia angústia. sua raiva agora parecia tomar um novo rumo,

na direção do jovem cavaleiro. ― valleri, por favor. ― eldron tentou acalmá-la.― não! Foi por culpa de toras que abandonamos o templo! você

sabia, não é? você faz parte do plano, não faz? está nos levando a uma armadilha?

toras levantou os braços.― eu não sabia de nada, valleri. eu juro que não fazia ideia do que

a ordem estava planejando. Lembre-se que nós não sabíamos da exis-tência do templo. eles não deveriam saber sobre ele. ninguém deveria

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saber.valleri se afastou dos dois, abrindo seu manto e deixando cair no

chão. toras se moveu em sua direção, mas eldron o segurou.― não. ela precisa estar sozinha no momento.valleri correu entre as árvores, sentindo os galhos das árvores roça-

rem seu corpo nu e as folhas de grama pinicarem seus pés. ela correu até seus pulmões pareceram estar em chamas. ela sentia o chamado da natureza e respondia sem hesitar.

quando ela finalmente parou de correr, ela se viu diante de um rio de águas calmas. era um rio profundo, mas curto. ela decidiu entrar nele. A sensação da água correndo ao redor de seu corpo era uma me-mória distante sendo despertada de forma bem-vinda. ela respirou fun-do e mergulhou completamente.

Lá, sob a água, ela podia apenas ouvir seus pensamentos e o rugir da água. vez ou outra, ela via peixes passando a seu redor e podia sentir alguns passando perto dela. ela se manteve sob a água por muito tempo, meditando calmamente. ela não queria mais sair dali. era muito pací-fico e perfeito para se concentrar. ela poderia criar uma bolha de ar e se esconder ali para sempre, na água fria e límpida do rio. talvez fosse assim que as histórias sobre as ninfas das águas começavam. uma maga amarga com sua vida e seus deveres. Frustrada com seus companheiros, sem motivos para continuar. ela poderia se acostumar a comer peixe para sempre e respirar o ar artificial que ela mesmo criaria. talvez se ela se esforçasse, ela poderia mudar seu próprio corpo para viver para sem-pre entre os peixes.

ela voltou a superfície lentamente e respirou fundo, gozando cada centímetro de ar em seus pulmões.

― quem é você? ― ela ouviu uma voz assustada.

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valleri olhou ao redor, procurando o dono da voz.na mesma margem de onde ela tinha vindo, um homem alto de lon-

gos cabelos negros estava agora. ele estava vestindo uma túnica branca sobre calças verdes que escondiam seu corpo, mas ela podia ver que ele era forte.

Foi então que ela percebeu que estava nua ainda e tentou se cobrir com as mãos, sentindo o olhar do estranho.

― que é você? ― ela perguntou.― eu perguntei primeiro. ― ele respondeu.― Meu nome é valleri.― eu não perguntei seu nome.― Me dê sua túnica, eu não me sinto confortável com seu olhar.o homem deu de ombros e removeu a túnica, deixando sobre uma

pedra. valleri tinha razão, aquele homem era musculoso e tinha visto muito combate. Cicatrizes cobriam seu torso, pequenos e grandes mar-cas esbranquiçadas sobre sua pele. ele não tinha um ar agressivo e virou de costas quando ela se aproximou da túnica.

― eu geralmente não faço isso. Muitos bandidos nestas estradas.― Pareço ser um bandido para você?― eles geralmente são mais fedidos e menos formosos, mas todos

os truques estão valendo desde que os reinos caíram.valleri se vestiu apressada. A túnica parecia enorme sobre seu pe-

queno corpo. o homem devia ser mais alto que eldron.― você se importa de me acompanhar até meu acampamento?ele a olhou por um instante.― você pode ser cheirosa e formosa, mas eu não confio em estra-

nhos.― eu já disse. Meu nome é valleri. você quem não disse seu nome.

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― eu sou Kronim Arkoon. eu sou um ex-soldado do reino Central.― e você apoiou a ordem de Ferro em sua revolta?ele recolheu um cinto e uma longa faixa de tecido do chão e amar-

rou as duas em sua cintura.― eu preferi não escolher lados. nunca tive problemas com meu

rei, mas já tinha renunciado minha espada quando a revolta começou. ― eu sou uma maga.Kronim se ajoelhou diante dela sem pressa, abaixando a cabeça, seus

longos cabelos cobrindo seu rosto.― eu sou humilde diante de sua presença.valleri sentiu seu rosto arder de vergonha. ela nunca tinha sido tra-

tada daquela forma, nem mesmo no templo. uma dor em seu coração a lembrou que seus irmãos estavam mortos agora. e nunca mais volta-riam.

― Levante, Kronim. você não precisa se ajoelhar diante de minha pessoa. eu sou apenas uma maga exilada, não como os reis.

Kronim se levantou.― será uma honra acompanhá-la até seu acampamento.ele estava olhando para baixo. valleri sentia-se nervosa com aquele

comportamento, mas não disse nada. ela simplesmente começou a ca-minhar de volta ao acampamento.

― diga-me, Kronim, o que o traz ao norte?― viagens. e a sorte. eu estava indo visitar o continente do oeste

quando minha estrada foi bloqueada por soldados da ordem. eles mar-chavam ao oeste, na direção dos mares.

― e você sabe onde eles estavam indo?― não sei, mas não permitiram que eu os acompanhasse. tive de

tomar uma outra rota.

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― e quando foi isso?― Alguns dias atrás. valleri caiu em silêncio. ela sabia que aquele grupo era, provavel-

mente, o grupo que fora mandado para destruir o templo. eles caminharam o resto da estrada em silêncio. quando eles se

aproximaram do acampamento, uma fogueira tinha sido acesa. os ou-tros estavam sentados ao redor do fogo, preparados para começarem a janta. o sol ainda estava no céu, rasgando o horizonte com seus últimos raios e logo a lua apareceria para clarear as trevas.

― Junte-se a nós, Kronim. onde está seu cavalo?― oh, eu não uso cavalos. eu pego passagem em carroças ou ca-

minho. Me deixaram aqui perto ontem e caminhei o resto do caminho. Mas aceito seu convite.

quando eles se aproximaram, os outros levantaram assustados, mui-tos deles olhando para Kronim desconfiados.

― valleri, o que aconteceu? quem é esse? ― toras perguntou en-quanto eldron entregava o manto de valleri.

ela devolveu a túnica a Kronim e vestiu seu manto. Kronim vestiu sua túnica enquanto ela explicava o que tinha acontecido.

― e podemos confiar nele? ― toras perguntou.― sim, podemos. ele teve muitas oportunidades para me atacar,

mas não o fez.Kronim esperava longe da fogueira, observando as árvores.― eu acho melhor não confiarmos nele. ― toras disse.― eu acho que podemos confiar nele. ― eldron disse.um dos outros magos se aproximou.― valleri, eu digo que podemos confiar nele tanto quanto confia-

mos em toras.

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A mensagem era clara para valleri e ela sabia que era clara para o cavaleiro. ele ainda não merecia a confiança deles.

ela chamou Kronim e todos se sentaram para comer.o homem se mostrou educado e muito moderado, mesmo para seu

grande porte. toras lançava olhares de esguelha em sua direção enquan-to os outros bombardeavam o soldado com perguntas.

Kronim parecia contente em contar suas histórias.― você nasceu no reino Central, Kronim? ― um dos magos per-

guntou.― não, eu nasci muito longe do reino Central.― É mesmo? de onde você é?― eu não sei dizer, meu caro. Apenas que não foi perto de nenhum

reino.valleri podia jurar que depois de alguns minutos conversando com

o homem, eldron ficou pálido e não tocou novamente sua comida.― está tudo bem, velho? ― ela perguntoueldron balançou a cabeça e dispensou a preocupação dela.― eu acho que não é nada. Mas te avisarei se algo me chamar a

atenção, não se preocupe.quando a janta terminou, um dos magos puxou uma flauta e come-

çou a tocar melodias tranquilas do passado enquanto os outros canta-vam em turnos. Até mesmo toras conhecia algumas histórias dos reis Magos e cantou com um sorriso cansado.

Mas Kronim não conhecia nenhuma.― sinto muito, eu não sou um cantor. eu fui um guerreiro e não

tive tempo para canções.― nem mesmo uma lenda? uma rima? nada?Kronim balançou a cabeça com um sorriso envergonhado.

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― senhores, senhora. ― eldron disse, se levantando. ― eu vou me retirar. Boa noite a todos. valleri, podemos falar por um minuto?

― Claro.toras se levantou.― eu gostaria de ter uma palavra com vocês dois, se possível. ― ele

disse.eldron concordou e os três se afastaram da roda. quando se afasta-

ram bastante para estarem encobertos pela noite e pelos sons da flores-ta, eldron se virou para encará-los.

― eu não confio em Kronim. ele está escondendo algo. Algo ina-creditável. ― ele disse, olhando na direção do grupo.

― Acha que devemos nos livrar dele? ― toras perguntou.valleri olhou para trás, pensando nas coisas que tinha ouvido de

Kronim. tudo parecia normal para ela, mas ela sabia que eldron era de confiança.

― se ele pedir para nos acompanhar, acho que seria sábio negar passagem. ― toras sugeriu.

eldron e valleri começaram a pensar no assunto.― nisso tudo, eu não quero me desviar, mas preciso saber algo, el-

dron. ― toras disse.― o que?― você sabe dizer se alguém no templo sobreviveu? se sim, a or-

dem vai procurar por eles?eldron fechou os olhos, se concentrando muito pela primeira vez

desde que valleri o conhecera.― sim, muitos sobreviveram. eles receberam meu aviso.valleri sentiu novamente a raiva pelo velho aumentar.― você podia ter me avisado, eldron.

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― não vamos discutir isso novamente.ela se sentiu reduzida novamente, mas afastou o sentimento rapida-

mente. eldron se virou para toras novamente.― sim, a ordem vai procurar por eles. e eles vão nos encontrar.valleri piscou algumas vezes para entender bem o que estava ouvin-

do.― Como assim? ― ela perguntou.― eles estão procurando por qualquer mago. Com a fuga dos ou-

tros magos, a caçada vai recomeçar e eles virão atrás de nós também. ― toras disse. ― você não devia ter avisado eles, eldron.

valleri e eldron lançaram olhares cheios de fúria para toras.― não ouse dizer algo assim, meu jovem. os magos são a salvação

dos reinos. Ainda estamos em tempo de recuperar e remendar o dano que seus amigos causaram.

― nós estávamos tentando salvar os reinos.― os reinos estavam perfeitamente bem antes da ordem aparecer

e começar sua revolução. ― eldron disse, apontando um dedo acusa-dor.

os três se assustaram com um barulho vindo da floresta. Kronim apareceu dentre as árvores, seu olhar era sério.

― eu posso dizer com certeza que nem tudo era perfeito nos rei-nos e que a ordem não é a solução. nada estava perfeito e nada vai ficar perfeito se a ordem dominar tudo.

os três ficaram em silêncio. Kronim parecia saber do que estava fa-lando.

― vocês estão fora de seus elementos nesta discussão. É inútil ten-tar dizer quem estava certo ou errado. eu estava no meio da gente antes da guerra e quando ela começou.

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― os reis não estavam fazendo mal a ninguém. ― valleri disse.― e você sabe disso como? ― Kronim perguntou.― eu sei. eldron sabe.Kronim cruzou os braços maciços e lançou um olhar para eldron. o

velho mago pareceu estremecer. Algo em Kronim o fazia hesitar.― seu amigo não sabe de tudo, valleri. eu vivi entre as pessoas, eu

vi o que elas estavam passando. seus reis cuidavam das cidades e das pessoas ali, mas qualquer um que vivia às margens era vilanizado e tra-tado como criminoso.

― era por isso que a ordem... ― toras começou, mas parou ao ver o olhar de Kronim.

― A ordem não está ajudando com sua guerra, toras. Muitos des-ses marginais se alistaram e acabaram morrendo em combates contra soldados que eram amigos. diga-me, cavaleiro, quantos amigos seus você teve de matar em batalha?

Mas toras não tinha uma resposta. ele sempre se viu cercado de cavaleiros da ordem. ele sempre matou os soldados dos reis, nunca se perguntando quem eram aquelas pessoas.

― Foi o que pensei.Kronim se virou de costas e voltou para a fogueira.― ele tem razão. ― eldron disse. ― nós não podemos perder tem-

po com isso. nós temos de continuar com nossa missão.― Minha missão é garantir que o mesmo não aconteça. ― toras

disse. ― eu não quero que pessoas sejam tratadas como criminais ape-nas por viverem fora da região abraçada por um rei.

― eu quero viver em paz. ― valleri disse.toras a olhou com petulância pela primeira vez. ela imaginou que

talvez toras não apreciasse paz.

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― o que vamos fazer? ― eldron perguntou.valleri sentiu-se irritada com ele. ele sabia muito bem o que ia acon-

tecer, mas ela fingiu que não sabia.― nós vamos continuar com nossa busca para encontrar o orbe de

gelo. Kronim vem conosco.ela voltou à fogueira sem hesitar e sem esperar por uma resposta.

toras a seguiu.ela chegou no círculo, mas não encontrou Kronim.― onde está o soldado? ― toras perguntou.― ele disse que estava cansado e foi dormir. Acho que ele está na

margem da estrada, ao lado da carroça.valleri deu boa noite aos outros e foi até a carroça. Ao se aproximar,

ela ouviu eldron falando com alguém.― eu não sei quem você é, mas com certeza não é quem diz ser.― você não sabe de nada. ― era a voz de Kronim.― eu sei que você não devia estar aqui. Minha visão sempre me

mostrou tudo que eu precisava saber sobre uma pessoa, seu passado, seu presente e seu potencial futuro.

― Mas?― Mas eu não entendo que vejo de você. eu não vejo você. eu não

vejo os reinos. eu não sei o que estou vendo.Kronim riu.― você devia pensar bem antes de invadir a privacidade das pesso-

as, eldron. você pode encontrar coisas que não deveria. ou não quer.valleri se aproximou, se revelando aos dois. Kronim não pareceu

surpreso, mas eldron saltou assustado.― valleri? o que está fazendo?― eu ouvi tudo.

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― nós não podemos levar ele conosco.ela mediu Kronim novamente. ele não parecia ter intenções malig-

nas ou nocivas ao grupo.― ele vem. você pare de implicar com ele. e você, se você se de-

monstrar problemático em qualquer momento, você será retirado à for-ça.

Kronim abaixou a cabeça, concordando.― Boa noite. ― ela disse, subindo na carroça.ela não queria mais problemas. ela não queria ter de pensar em ou-

tra coisa que não encontrar o orbe e acabar com a caça aos magos. Mas conflito não traria aquilo. ela precisava pensar em uma alternativa.

...Mas qual?

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Tula André Bassi

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tula era uma trambiqueira como qualquer outra. seu estabelecimento tinha uma placa com os dizeres “trago a pessoa amada em três dias” e, em letras miúdas na parte inferior, “desde que ela esteja localizada na região metropolitana ― 1 dia adicional para cada trezentos quilômetros de distância”.

ela não nasceu pra ser aquilo e sequer estava em seus planos, até que,num belo dia, enquanto andava pela Praça da sé, foi confundida com uma cigana. “quantos você cobra pra ler minha mão?” ― uma moça perguntou ao abordá-la. ela, obviamente, fez cara de quem não estava entendendo nada e continuou andando, mas a mulher insistiu: “eu te pago cinquenta reais, é tudo que eu tenho comigo agora!”. e, desde que inventou uma explicação qualquer, sem nexo nenhum, para as linhas daquela mão esquerda – ela sequer perguntara se a moça era destra ou canhota – descobriu uma habilidade que nenhum teste vocacional jamais a indicara: a de enganar as pessoas.

de leitura em leitura de mãos, ela foi acumulando o suficiente ao menos para poder ter um ponto fixo. Junto com sua amiga Márcia, alugou uma salinha minúscula na Augusta e criou um empreendimento inovador: a ideia era enganar as pessoas de dia e embebedá-las de noite, o primeiro bar místico da cidade e, por mais esdrúxulo que isso pareça, elas tiveram sucesso nessa empreitada.

Cada vez mais envolta na realidade alternativa que havia criado, tula começou a incrementar seus serviços. Começou lendo mãos e tirando cartas de tarô – só depois de demorar quase três meses para decorar os nomes de todos aqueles malditos arcanos –, passou a jogar búzios, usar uma bola de cristal e, mais recentemente, simular possessões. se você quisesse se despedir de verdade de algum ente querido, era só ir lá! toda

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uma parafernália de luzes e sons, coisa hi-tech mesmo. o negócio ia de vento em popa até que, um dia, algo deu errado. ou certo – depende por qual ângulo você vê.

uma senhora chegou noshiva’s – existe nome mais clichê que esse? – querendo entrar em contato com seu pai, falecido havia uns três anos já, para perguntar onde ele havia deixado um suposto baú com alguns documentos importantes para a família. e lá foi tula para seu “ritual”, com a ajuda de Márcia: fechou os olhos, fez alguns movimentos aleatórios como se estivesse tremendo, as luzes piscaram, um vento leve começou a soprar na saleta, a mesa chacoalhou e a farsante saiu meio que dançando em círculos ao redor da mesa à qual sentava a cliente. de repente parou e começou a falar com uma voz mais grossa.

― Maria, como vai você? ― Pai... É você?― sim filha... e estou com saudades...― eu também pai! – e começou a chorar – tá tudo bem com o

senhor aí em cima?― tá sim minha menina... tá sim...― Pai, eu preciso saber onde está o baú com os documentos da

casa. eu briguei com a Lurdes e com a Clara e a gente vai, enfim, dividir a herança... não dá mais pra conviver com elas, pai...

― não! onde já se viu, três irmãs brigadas? eu não quero que vocês dividam essa herança, mas sim que continuem vivendo juntas, como eu queria que fosse quando estava vivo. eu não vou falar onde está o baú!

― Mas pai...

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― sem “mas”, Maria... Agora vai pra casa e pede perdão pras suas irmãs!

do nada, tula se sentiu estranha. Justo quando tudo estava começando a se resolver, ela teve uma sensação totalmente nova, como se alguém estivesse a controlando, e, então, começou a surgir fumaça debaixo da mesa e tudo que passou por sua cabeça, antes de desmaiar, foi: “Fumaça... como é que eu nunca pensei nisso?”.

depois de ver a vidente parada em sua frente por uns três minutos, Maria resolveu perguntar:

― Pai, você ainda tá aí?― seu pai nunca esteve aqui, sua burra! essa mulher é uma farsante!

– respondeu tula com uma voz um pouco mais ácida.― Hã? Como assim Madame sara?― Madame sara uma ova! essa mulher se chama tula e estava te

enganando. e você caiu feito um patinho... tonta!― Mas quem é você que tá falando? eu não to entendendo mais

nada...― ela queria tanto invocar espíritos que uma hora conseguiu.

Prazer, Milena ramos.***

A essa altura, Maria já tinha saído correndo e se benzendo, gritando por socorro, perdão e misericórdia divina. Márcia saiu da cochia daquele que teria sido um grande e lucrativo espetáculo e confrontou a amiga:

― que merda é essa, tula? A gente ia fazer uma grana boa com

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essa aí!― você não me ouviu não? sua amiga já era. quem tá aqui agora

é Milena ramos.― tula, pare de brincar! isso não tem graça nenhuma...― Ai ai... tinha que ser loira, não é mesmo? queridinha, vê se

entende: eu não sou sua amiga. Agora me pega um cigarro que eu preciso fumar. Já se passaram quase 40 anos desde a última vez em que tive aquela sensação deliciosa da fumaça percorrendo meus pulmões...

― isso é sério mesmo? você é um fantasma que se apossou do corpo da minha amiga? – perguntou Márcia, ainda incrédula, alcançando seu maço de cigarros e o isqueiro para a pessoa que ela não sabia mais se era tula ou Milena.

― Bingo! e obrigado! – Milena acendeu o cigarro e deu um trago. sua cara era de um prazer inenarrável, como se estivesse provando do próprio elixir da vida. A fumaça invadindo todo seu interior, sendo absorvida e a inebriando aos poucos. – oh deus, como eu sentia falta disso... Próximo item da lista: um bom whisky. você por acaso tem algum aí?

Márcia estava atônita. não sabia de onde aquele suposto espírito havia surgido ou como e seiria, algum dia, sair do corpo de sua amiga. na dúvida – e num estado em que sequer conseguia contestar – começou a conversar e responder aquela pessoa de maneira automática, como se fosse mesmo sua amiga. Afinal de contas, era sua amiga: ela ainda não acreditava na história e torcia pra que não passasse de uma brincadeira de mal gosto de tula. “eu te mato se isso for só zoação!” ― pensou ela, antes de seguir a conversa com Milena.

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― tenho sim. Aqui também é um bar, esqueceu? Ah, é mesmo... essa é sua primeira vez aqui, não é?

― Claro que não! eu vinha sondando essa sua amiga havia um bom tempo. A cada coitado que ela enganava aqui eu pensava se aproveitava ou não a oportunidade de incorporar nela. Hoje acabei me decidindo e, pelo que vejo, a decisão não foi das piores.o clima está bom, será que chove? Ah, e me traz o whisky puro, sem gelo mesmo.

― Mas eu ainda não estou entendendo toda essa história tul... Milena. Por que a tula? o que é que você está fazendo aqui? – disse Márcia enquanto atravessava o estabelecimento para pegar a garrafa do whisky mais caro que tinha no bar – eu também reparei que você citou uma lista. que lista é essa?

― Pode parecer clichê, mas eu estou aqui numa missãozinha pessoal. eu já deveria ter me desapegado do mundo material e partido para o próximo plano, mas tenho assuntos inacabados e coisas que gostaria de fazer antes de reencarnar.

― e é isso que está nessa sua lista? – perguntou Márcia entregando o copo pra Milena.

― obrigado. – Milena tomou um gole e, novamente, pareceu estar sob a sensação mais prazerosa possível. depois de mais um gole, continuou a conversa. – Mais ou menos isso. eu preciso fazer algumas coisinhas pequenas antes de voltar. se você me ajudar, terá sua amiga de volta o quanto antes... – tomou mais um gole – e aí, o que me diz?

Após refletir um pouco, Márcia chegou à conclusão de que, independentemente do que fosse tudo aquilo, só havia uma resposta correta.

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― Ajudo. Mas que coisinhas pequenas são essas?― Me dá um pedaço de papel e um lápis que eu te escrevo.Márcia mais uma vez atravessou o bar e foi até o balcão. Pegou um

caderno velho e um lápis e trouxe até Milena. Assim que pegou o lápis, a mulher começou a escrever. não demorou muito até que terminasse e entregasse a lista para Márcia, que a leu.

A lista era a seguinte:

1. Fumar um cigarro2. Beber um whisky3. Nadar pelada4. Matar o Carlinhos

― Como assim “Matar o Carlinhos”? que Carlinhos é esse e por que você quer mata-lo? eu não vou ser cúmplice de homicídio nenhum não, você tá louca é? – Márcia já estava à beira de um colapso e só agora a total estranheza da situação começava a passar por sua cabeça.

― Carlinhos. Carlos Alfredo de Albuquerque e Bragança, meu namorado e, infelizmente, meu assassino. esse filho da puta estava desviando dinheiro da empresa do pai e, quando eu descobri, ele me matou. – Milena passou a mão pelo seu pescoço (o de tula, na verdade). sua expressão se alterara completamente e agora estava com um olhar vazio e triste, como se estivesse revivendo toda sua dor.

nesse momento, Milena contou tudo para Márcia. Contou sobre

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como, em 1956, aos 19 anos de idade, fora morta por asfixia pelo homem com o qual deveria se casar alguns meses depois. Contou sobre como a sua mão era forte e como o ar aos poucos foi sendo barrado de seus pulmões. Contou sobre como agonizou e se debateu até que, enfim, sentiu a vida escapando-lhe entre os dedos. Contou sobre como vagara por 35 anos tentando entender o que faria quanto a aquilo e como finalmente entendeu que a única maneira de ter paz seria retribuindo o favor àquele que tirara sua vida.

― e é a única maneira de você e sua amiga voltarem a ter paz. eu só abandono esse corpo quando tiver completado minha missão. o item #4 é o principal, mas não abro mão do #3. – Fez uma pausa e olhou seriamente pra Márcia. – e aí, vai me ajudar ou não?

Márcia estava tremendo. Achava que, como amiga, era seu dever fazer o que fosse preciso para que tula voltasse. Além disso, como mulher, sentia que devia ajudar a vingar tal crime. Mas não sabia de que maneira seria de alguma ajuda – nunca teria coragem de matar alguém.

― e o que eu posso fazer? não faço a mínima ideia de quem seja esse tal Carlose, sinceramente, não sei como vamos encontrá-lo.

― eu sou morta, mas não sou burra, né? eu sei o que é internet, Google, Wikipédia, etc. Abra seu notebook e faça uma pesquisa rápida pra mim e descubra onde ele está morando que já será de bastante ajuda por hora. Aliás, não... Preciso de mais uma coisinha: uma roupa decente! essa sua amiga só usa essas roupas ridículas, não tem um pretinho básico sequer. tô me sentindo uma refugiada com essa roupa brega! Me dá seu cartão, por favor...

― Meu cartão? – Márcia estava começando a ficar brava.― sim querida. vou comprar um vestido decente pra continuar

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minha missão. e você sabe né: a sua amiga só volta quando eu terminar isso...

― tá bom... – respondeu contrariada. Abriu a carteira, pegou o cartão e o deu para Milena – A senha é 4390. tem uma loja a duas quadras daqui, você pode ir lá enquanto eu pesquiso esse tal de Carlinhos.

― Gostei da sua atitude. – disse Milena pegando o cartão – Até mais.

***não foi difícil para Márcia descobrir quem era o tal Carlinhos. Ao

digitar seu nome completo no Google, vários resultados apareceram, especialmente artigos em revistas de negócios.ele tinha 70 anos e era o dono de uma rede de supermercados que herdara de seu pai. viúvo, três filhos e cinco netos. Apesar da idade, ainda comandava a empresa in loco: estava todos os dias no escritório central. Assim que soube dessas informações, Milena se preparou pra sair.

― Mas qual é o seu plano? vai chegar lá no escritório e fazer o que? vai esganá-lo?

― não seja idiota! – Milena olhou para a amiga de sua hospedeira com uma expressão de desprezo – eu também comprei uma arma com seu cartão, vou meter uma bala na cabeça daquele babaca!

― Mas e a tula? você vai cometer um crime e quem vai pagar é ela! eu não posso deixar você fazer isso!

e, nisso, Márcia pulou em cima de Milena e ambas começaram a brigar. se batiam de um lado para o outro, uma atracada nos cabelos da outra. Mas uma briga de bar não é uma briga de bar se ninguém

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leva uma garrafada na cabeça – a contemplada desta vez fora Márcia, que caiu inconsciente no chão e deixou o caminho livre para aquele fantasma vingativo cometer um crime enquanto no corpo de sua amiga.

Ainda com o cartão de Márcia, Milena pegou um táxi e foi até a sede da A&B. disse para a secretária que precisava falar com o seu Carlos em caráter de urgência. quando perguntada sobre o motivo, disse que tinha informações importantes sobre a concorrência.

― que tipo de informações a senhorita tem? – Perguntou Carlos para Milena assim que sua entrada na sala dele foi liberada.

― nenhuma. eu apenas estou aqui pra te matar! – respondeu ela ao mudar totalmente sua expressão: de um sorriso gentil para um olhar de ódio.

― Como assim minha filha? Cê tá louca, é?― eu não sou sua filha, mas já fui “parente” sua. se lembra? eu

sou a Milena, seu filho de uma puta, e agora estou aqui pra retribuir o favor... nos vemos no inferno!

Milena retirou a arma da bolsa e apontou pra Carlos. ele estava pálido, como se realmente tivesse visto um fantasma. no entanto, antes que Milena cometesse o crime, ele começou a tremer e caiu no chão. estava tendo um ataque cardíaco.

ele suplicou por ajuda, mas Milena ficou ali apenas parada o vendo sofrer – no final das contas, uma morte bem melhor, mais dolorida e agonizante do que aquela planejada por ela. quando ele tentou alcançar o telefone, ela correu até lá e afastou-o. também tapou sua boca para que ninguém ouvisse seus últimos murmúrios. quando viu que ele estava

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finalmente morrendo, disse com muito gosto:― Adeus, seu filho da puta!depois de se certificar que ele realmente estava morto, ela respirou

fundo e pensou, inclusive, em usar a arma para se matar (ou melhor, matar tula), mas tinha feito uma promessa e a honraria. saiu da sala gritando por socorro e dizendo que o seu Carlos tinha acabado de cair no chão e não estava passando bem.

na correria toda de funcionários e parentes, ela conseguiu sair quase despercebida do edifício, passou na loja mais próxima e comprou outra roupa qualquer, algo mais próximo do que a própria tula usaria – isso seria disfarce o suficiente.

Caminhava pelo centro com uma sensação de dever cumprido, feliz consigo mesma por ter cumprido sua missão particular. Mas, nesse momento, lembrou que ainda faltava um item da sua lista. olhou pelos arredores e viu o chafariz da Praça ramos de Azevedo: na falta de algo melhor, aquilo seria o suficiente.

tirou toda sua roupa – em público mesmo! – e se jogou na água. Ficou lá por menos de três minutos, somente o tempo suficiente para sentir que realmente havia cumprido a última de suas missões. nesse momento, resolveu partir.

tula se viu pelada e imersa num chafariz perto do teatro Municipal, com todo mundo olhando pra ela e, pior de tudo, com plena memória de tudo que se passara naquele dia. saiu o mais rápido que pode de lá, se vestiu e fez questão de ir embora sem olhar nos olhos de ninguém.

naquele instante, ela resolveu que nunca mais faria nada pra enganar

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ninguém. nenhuma leitura de mão, nenhuma invocação, nadinha. ela se tornaria uma mulher séria e honesta, que voltaria pra faculdade e terminaria seu curso de Administração. naquele instante, nascia a “nova tula”.

Mas toda aquela determinação só durou até que, minutos depois, uma mulher a confundisse com uma cigana e oferecesse dinheiro para ter ter sua mão lida.

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Acho que muitas pessoas não sabem, mas, entre 2008 e 2009, eu fui editor de um scantrad maravilhoso chamado Animaregia (que, infeliz-mente, deixou-nos em outubro de 2012). Meu trabalho mais extenso foi em rosarioto vampire, onde deixamos pronta a primeira parte inteira. Mas o mangá que viria a me chamar a atenção dentro dessa expe-riência era um que, na verdade, sempre fui proibido de editar: Fairy-tail (em Japonês, フェアリーテイル). o Mangá de HiroMashima é publicado na Weeklyshōnen Magazine, no momento, a maior rival da conhecida shōnenJump.

Sinopse Lucy Heartfilia é uma maga celestial de 17 anos de idade que foge de casa com o objetivo de coletar o máximo possível de chaves raras. em sua missão, ela possui uma grande admiração por uma guilda extrema-mente problemática, chamada Fairy tail. esta guilda é extremamente conhecida por seus membros, que cons-tantemente aparecem em notícias - desde cometendo pequenas traves-suras até causando grandes estragos. Ao longo do caminho, Lucy conhece natsudragneel, um garoto que não consegue viajar em nenhum meio de transporte sem se sentir enjo-ado. Junto com seu parceiro Happy, um gato voador azul, ele viaja pela terra de Fiore procurando seu pai adotivo, um dragão chamado igneel, que desapareceu sete anos antes. Lucy logo é raptada por um mago renegado se passando como o famoso salamander, membro da Fairy tail. natsu resgata Lucy, revelan-do-se o verdadeiro salamander e um dragon slayer(um mago com ha-bilidades de um dragão). depois de derrotar o impostor, natsu convida

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Lucy para se juntar a Fairy tail.

O mundo único Hoje muito se fala em criar um mundo único. Mas, afinal, o que é isso? Para alguns um mundo único é algo novo, nunca antes apresenta-do. Mas, se formos observar, em toda obra da história, desde o inicio da escrita, eles tinham algo em comum. Por isso, ao falarmos de individualidade não devemos procurar algo novo, devemos simplesmente procurar algo que nos surpreenda da me-lhor forma naquele momento. Algo que talvez estivesse esquecido, uma combinação de estilos nunca antes tentada, um remix de algo antigo ou ainda uma obra antiga reescrita sobre uma nova visão.

Fairytail é um mundo único e compará-lo com qualquer outro é, no mínimo, não conhecer o mundo do mangá. Costumam comumente compará-lo com one-Piece, pois bem, estes que fazem essa comparação já asssitiramdragonball? ou quem sabe Hunter x Hunter? Algo do Go nakai? ou do osamu tezuka, quem sabe Astroboy? sim, eu vejo semelhança entre one Piecee essas obras, mas nem por isso penso em sair acusando um plágio. Até porque, não faz sentido para o HiroMashima ter outro estilo para esse mundo. e vou explicar o porquê. Para começar a analise, os desenhos parecidos parecem ser proposi-tais. sim, natsu tem um design parecido com Luffy de propósito, assim com Lucy tem um design parecido com a nami de propósito. Mas isso foi bem no início da obra e, desde então, os personagens mudaram e se-guiram outro rumo.

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isso é explicado, você tem que pensar que é um mercado onde se depende de um ranking para se afixar, onde o publico gostar de sua obra depende muito para vender revistas e vencer nos questionários. ou seja, se ele fez isso ou não, cabe uma pergunta ao Mashima, mas não é de modo algum criticável, isso é comum em qualquer mercado, mas não desmerece de forma alguma uma obra. À partir daí as comparações acabam. o mundo que nos é apresentado é o misterioso mundo da magia, onde um filho deseja encontrar o seu pai adotivo e uma filha deseja en-contrar um lar. A guilda Fairytail é uma espécie de orfanato, onde mui-tos filhos sem pai esperam os seus. um mundo onde ter poder significa muito, assim como gera muito problemas, defender aquilo que se ama é muito importante, bem mais importante que ambicionar as coisas, porque parece que eles já têm tudo. Assim eles se afiam para serem fortes e defender a guilda, defender seu lar, esse argumento para eles lutarem me lembrou muito a obra Ha-jime no ippo de George orikawa, demonstra o porquê este é um mangá da Magazine e não da Jump. nessa construção de cenários, vemos cada vez mais a criação de la-ços a conquista de poder se dá de forma de dor e constante sofrimento. o poder é passado de amigo para amigo e num momento vemos que todos crescem em conjunto. e são mais fortes quando lutam juntos. um foco nesses combates em grupo, mesmo que desenhados de forma diferente, é uma característica da obra de HiroMashima que me atrai, assim como me atrai a característica dos poderes deles. são poderes que não são simplesmente usados de forma engenhosa

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ou de forma combinada, eles realmente funcionam de forma estratégi-ca, são pensados para funcionar de forma composta. não estão sendo simplesmente sendo jogados em batalhas que não fazem sentido, eles estão lutando em batalhas onde eles sempre têm uma motivação para lutar. As lutas apresentam muito mais dano real e im-portante do que Fan service. embora ele exista, ele tem uma motivação, e isso é outra coisa que me atrai bastante para o mangá, ele é o mangá com a menor quantidade de Fillersdo mercado. uma coisa que qualquer fã admira muito, afinal, estes são os maiores inimigos dos eficientes seguimentos de roteiro.

Argumento eficiente, ritmo envolvendo, comédia equivalente.

usando as palavras que escutei uma vez, comédia não é algo que vem do nada. É algo trabalhado a partir de um ritmo. não dá para fazer piada jogando massivamente situações engraçadas, mangás não funcio-nam assim, o fracasso do gênio dos quadrinhos stan Lee no mundo oriental prova isso. A partir disso, todo oriente foi moldado, do humor mais negro para o mais leve, essa é a característica que permeia todas as histórias, os alí-vios, que só funcionarão se tiverem uma coisa: um bom argumento. e o argumento usado por Mashima é a guilda, a amizade, um per-sonagem debochado. Parece um coisa um tanto simples de se fazer, não é. Criar elementos que se liguem e funcionem de forma fluída em uma história é algo que não pode simplesmente funcionar, é algo que deve ser constantemente evoluído.

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A habilidade de criar carisma entre a história e o publico é neces-sária, prender ele a cada instante na história. essa é uma condição que o sistema de revista e de rankings que elas utilizam para qualificar seus autores acaba gerando de forma natural, é o pré-requisito do sucesso, encontrar sua forma de ser amado. ser mangaká é uma das maneiras mais específicas de se trabalhar um roteiro. voltando ao ritmo, você trabalha em vários arcos de forma independente e no grosso vai mexendo para que um arco não seja inútil em relação ao outro e, assim, produzir um roteiro final sem furos. o grande potencial de Fairytail se mostra aqui, diferente de onePie-ce que necessita de ciclos gigantescos e previsíveis de ápices e baixas em clímax e anti-climáx até óbvios, a história criada pelo autor da Magazine busca seguir em frente. Algo que só pode ser conquistado pela experi-ência de quem já fechou um ciclo, pelo autor que começou um sucesso e o fechou, a experiência de rave Master se mostra aqui. Continuamente, você pode seguir em frente na história, sem se pre-ocupar com as falhas ou buracos criados em um arco, apenas se pergun-tando se isso vai fazer sentido lá na frente. e, quando você vê que faz sentido, você fica chocado. nesse ponto, faz mais sentido compararmos o trabalho de Mashima com o de tite Kubo, mas a mesma coisa só é possível no trabalho deste pela experiência. o ritmo é um dom natural que auxilia no grande processo laborato-rial de lapidar a pedra criativa que é o desenho e o roteiro de um mangá.

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sendo você fã ou não da saga do bruxo que sobreviveu, peço que leia o artigo até o fim.

Harry Potter é um assunto controverso. quando Joanne Kathleen rowling começou a escrevê-lo, no caminho de um trem em meio a um divórcio e sem perspectiva de emprego, com toda a certeza, ela não ima-ginava que um dia seria mais rica do que a rainha da inglaterra. tam-bém não sabia a importância que sua obra teria para a ressurreição da literatura de gênero.

Pois sim, Harry Potter (a saga, não o personagem) foi a coisa mais importante que aconteceu com a literatura de gênero nas últimas dé-cadas. A influência e importância da série para a fantasia só podem ser equiparadas a uma única obra até hoje feita - e estou falando de senhor dos Anéis.

se você é um “Potterhead” (como se auto-afirmam os fãs da série), vai concordar com isso que eu disse sem mudar nenhuma vírgula. Pra você, com toda a certeza, o que eu tenho a falar sobre Harry Potter será só uma fonte de argumentos técnicos para reafirmar a força da série.

entretanto, existem aqueles que não chegaram a ler a saga em sua juventude, pessoas para quem a saga britânica não teve papel algum na concepção de sua identidade como leitor. talvez você tenha começado com neil Gaiman, stephen King, George Martin ou dado um salto, a partir dos quadrinhos, para os livros. não importa. É você que me im-porta mais que leia a coluna, ao menos esta.

Por óbvio, desconstruir e defender uma saga de sete livros princi-pais e mais alguns paralelos não é tarefa de um dia só. Por isso, decidi dividir o trabalho em quatro partes. A primeira é esta, onde prossigo

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mostrando as temáticas e algo da técnica da série.A segunda parte está na revista que acompanha o lançamento des-

ta. Lá, eu discuto a importância de Harry Potter para o mercado literá-rio. na terceira parte, semana que vem, eu desconstruo a forma como rowling conduziu sua história, mostrando a construção de seu herói e de outros heróis ao redor, e também a utilização técnica de elementos. e, por fim, na edição que será lançada daqui a duas semanas, eu irei to-car o assunto de forma mais pessoal e irei contar a vocês como Harry Potter me moldou como escritor.

isso decidido e posto à parte, vamos em frente para a avaliação dos temas recorrentes da série. devo avisar que você não deve prosseguir com a leitura a partir daqui se, de qualquer forma, ainda planeja ler os livros. Há diversas revelações de tramas nos parágrafos a seguir e eles se destinam a todos aqueles que já leram a história ou que não desejam ler.

O poder do amor

extremamente piegas a temática, não? Pois saiba que, apesar de pa-recer algo extremamente clichê... É exatamente isso! Mas tratado de for-ma única. Já havia dito, em uma coluna anterior, que os clichês são cli-chês porque funcionam e não há nada de errado em pegar um clichê e dar a ele uma nova roupagem.

em meio à saga Harry Potter, somos presenteados com o fato de que Harry é parcialmente imune ao seu grande inimigo, Lord voldemort,

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devido ao ato definitivo de amor deixado a ele por sua mãe: ela deu sua vida para proteger o ainda bebê Harry. É dito que, por conta disso, o vi-lão fica impedido de matar Harry naquela noite. o amor filial - no caso, o amor de Harry direcionado a seus falecidos pais - também está pre-sente, uma vez que ele se prende a qualquer foto dos Potter ou a qual-quer objeto que lhes tenha pertencido, como na busca por uma prova da existência deles.

o tema recorre das mais variadas formas, na verdade. rowling nos conduz por diversos tipos de amor. está presente o sentido clássico de romance desde o gradual e crescente amor entre rony e Hermione até a forma arrebatadora como Gina Weasley e Harry se entregam um ao outro, passando pelo platônico romance de Harry com Cho Chang e mesmo pela terrível perda que Cho sofre com a morte de seu amor, o que, em parte,a exime da culpa por não conseguir amar Harry.

está presente também o incondicional amor familiar dos Weasley, família do fiel escudeiro ron, que mostra seu tamanho pelo fato de con-seguir se expandir para fora da família de ruivos, facilmente abraçando Harry e Hermione e, com facilidade, tocando outros personagens. A prova desse amor incondicional é o fato dele servir, em diversos mo-mentos, como uma forma de guiar o próprio Harry. A cena em que isso fica explícito está no sétimo livro: sendo uma tradição entre os bruxos que, aose completar dezessete anos (a maioridade no mundo Bruxo), um rapaz deve ganhar um relógio. Harry não conta com uma família que o dê o presente, mas, sendo ele rico, facilmente poderia comprar um para si próprio. entretanto, ele ganha um relógio do senhor e da senhora Weasley: um que pertenceu ao falecido irmão da dona de casa.

está presente também, logicamente, o amor na forma de amizade.

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em nenhum momento a importância de rony e Hermione parece se tornar inferior que a do próprio protagonista da história e isso se deve, em grande parte, à influência que ambos têm para com Harry. embora faça parecer em diversos momentos que a amizade dos três estava des-tinada, rowling fez questão de incluir, já no primeiro livro, cenas que demonstram que ela se deve a escolhas pessoais dos personagens. em dado momento, dracoMolfoy (um sujeito rico e pedante) lança quase um convite de amizade a Harry, o que impediria Harry de firmar uma amizade com rony, mas o protagonista decide ficar com o garoto pobre. Posteriormente, Harry e rony decidem enfrentar uma situação de peri-go para resgatar Hermione de um apuro. Antes do resgate, a relação dos garotos com a menina era de coleguismo, pontuada com o tratamento típico dado ao melhor aluno da sala (no caso Hermione): a alienação do pobre melhor aluno.

Ao apresentar todo o aspecto do “amor”, em se tratando de relações humanas, rowling estende o que parece um clichê para uma analise muito mais profunda. Afinal, o sucesso de Harry a cada livro é sempre pautado e baseado nas ações daqueles que o amam e que recebem dele amor.

O Homem Contra a Morte

o objetivo de Lord voldemort ao longo da saga se torna bem claro. ele não quer apenas o poder, ele quer o poder para poder usá-lo para sobrepujar a morte. ele quer evitar o final de sua vida conquistando aquela que se encontra ao final.

Harry, por outro lado, tem outra atitude em face do perigo de per-

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der a vida. em diversos momentos ele demonstra estar disposto a se sacrificar, desde que isso represente o bem de outros. ele faz isso sem em nenhum momento se mostrar suicida, sem em nenhum momento apresentar qualquer tipo de pensamento que possa indicar que ele não deseja mais viver. Pelo contrário, em todos os momentos em que o pro-tagonista parece em face de seu final, ele se lamenta e demonstra um imenso desejo de viver.

o tema relacionado à morte, pautado pelo fato de temermos ou não a ela, já se apresenta no primeiro livro da série: Harry Potter e a Pedra Filosofal. A tal pedra do título dispõe da qualidade de produzir um eli-xir que torna seu consumidor imortal, enquanto dispor da capacidade de continuar a consumi-lo. o próprio criador da pedra, nicolau Flamel, e sua esposa, são consumidores do elixir e apresentam uma vida que já se prolonga por muitos séculos. entretanto, no final do livro, em face do desejo escuso de alguns e do risco de que a Pedra e seu elixir sejam usados de formas negativas, Flamel aceita destruir a pedra, o que signi-ficará que sua vida não poderá mais se estender eternamente. ele abraça a morte, como outros personagens abraçarão ao longo da história, acei-tando-a não sem medo, mas, ainda assim, com virtude.

o tema percorre todos os livros, inclusive com a apresentação de personagens que terão a sua temática totalmente voltada para a morte. Pedro Pettigrew, um antigo amigo dos pais de Harry, é revelado como o traidor que indicou a voldemort a localização dos Potter. sua moti-vação foi o medo de morrer notório no personagem, que é apresentado como um covarde.

rowling chega ao máximo de apresentar um personagem que está na história apenas para morrer no auge de sua vida, gerando uma refle-

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xão. trata-se de Cedrico diggory, um aluno muito popular de Hogwarts (a escola dos bruxos), que falece com apenas 17 anos, ao fim do quarto livro. o personagem é assassinado a sangue frio, mesmo tendo demons-trado diversos atos de talento e revelado ser uma pessoa particularmen-te promissora, honesta, respeitável, entre diversas virtudes. sua morte, entre os fãs, é tratada como injusta e é isso mesmo que rowling deseja-va. Por meio dela, a autora ensina que a morte é, na maioria das vezes, uma injustiça e uma desnecessidade, mas que ainda assim é necessário lidar com ela e seguir em frente. É extremamente simbólico o fato de essa questão tomar lugar no quarto livro, que marca o meio da história.

A própria rowling declarou, em uma entrevista: “Meus livros são em grande parte sobre a Morte. eles abrem com a morte dos pais de Harry. Há a obsessão de voldemort pela conquista da morte e sua procura pela imortalidade a qualquer preço, o objetivo de qualquer um com a mági-ca. eu realmente entendo porque voldemort quer conquistar a morte. todos nós estamos aterrorizados com ela.”

talvez seja interessante notar que, com menor destaque, a autora in-sere em diversos momentos a presença de feitos de personagens a muito falecidos, bem como o legado que personagens ainda vivos estão cons-truindo. dumbledore, o mentor de Harry e diretor da escola de Ho-gwarts, tem uma lista de feitos de grande importância enumerados jun-to com seu nome. ele, que é o exemplo maior de uma figura superior e admirada, parece estar procurando imortalidade para seus feitos, e não realizando feitos para encontrar imortalidade como o vilão.

A força das minoriasem dado momento da série, somos apresentados aos elfos-domés-

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ticos: uma raça de seres mágicos escravizada pelos bruxos. esse grupo de injustiçados parece extremamente dependente da existência de sua servidão para sobreviver, ou assim acreditam os bruxos e os próprios elfos. entretanto, tendo sido Harry criado entre “trouxas” (pessoas sem capacidades mágicas), ele considera a servidão dos elfos um tanto estra-nha, e mesmo auxilia um elfo a conseguir sua liberdade já no segundo livro. o elfo não apenas se torna um ótimo aliado do garoto, como con-segue se virar muito bem longe de seus antigos donos. esse mesmo elfo, de nome dobby, tem um papel essencial no sétimo e último livro, ao salvar os protagonistas de uma situação que, de outra forma, resultaria em morte certa.

A essência da tolerância é demonstrada mesmo de forma menos explícita. entre os bruxos, existe a separação entre aqueles que vêm de famílias tradicionais no mundo mágico e aqueles que são os primeiros de sua família a encontrar a veia da magia. os tradicionalistas, chama-dos “puro-sangue”, não aceitam a presença dos “nascidos trouxas” e dão a eles o título de “sangue ruim”. na sociedade dos bruxos, quando um bruxo de família tradicional tem um filho com um nascido trouxa, a criança será considerada pelos puro-sangue como sendo um “mestiço”. esse é o caso de Harry, tendo sua mãe sido uma nascida trouxa. Her-mione é uma nascida trouxa também e rony é de sangue puro, mas sua família está tradicionalmente associada aos trouxas, o que faz com que as outras famílias mais antigas os considerem “traidores do sangue”. to-dos eles párias a sua maneira.

Há ainda uma veia de feminismo na história. embora alguns críti-cos tenham apontado na direção contrária, dizendo que a saga não de-monstra interesse em indicar mulheres em papeis de destaque, isso me

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parece um engano. Há mulheres lutando em ambos os lados da guerra e temos Hermione e Gina como mulheres fortes e de destaque. entre os bruxos com grandes descobertas, muitos dos citados em obras que es-tendem o universo dos livros são mulheres. e mesmo uma personagem num papel quase militar é apresentada: ninfadoratonks, uma auror. os aurores são uma espécie de polícia dos bruxos e ninfadora é tratada por outros aurores da história como alguém de grande talento e com uma carreira promissora dentre eles. outro fato que deve ganhar destaque é a capacidade que rowling teve de inserir personagens de outras etnias que não a dela, como ne-gros e asiáticos, sem que isso causasse qualquer tipo de influência em suas personalidades. o fato de todos eles serem coadjuvantes suscitou críticas, mas a forma como a etnia dos personagens foge dos estereóti-pos é extremamente relevante. Ao invés de tentar criar uma identidade negra ou asiática por meio de comunidades próprias para esses, a auto-ra representou negros e asiáticos como membros comuns da sociedade bruxa. Assim como são (e deveriam ser tratados) na nossa sociedade.

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EDITORES-CHEFESLUCAS RUELESRAFAEL MARX

EDITORES SEMANAISERIC PAROJOÃO LEMESLUIZ LEALDIOGO MACHADO

DIAGRAMADORJOÃO LEMES

REVISORESANDRÉ CANIATOIARA SPADREZANE

REDATORALAN PORTO VIEIRA

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SEMANA HORROR

Horror: Amanda Ferrairo

Noir: Philippe Avellar

SEMANA FANTASIA MODERNA

Steampunk: Rafero Oliveira

Fantasia Urbana: Thiago Sgobero

AUTORES:

SEMANA FANTÁSTICA

Fantasia Épica: Marlon Teske

Espada e Magia: Victor Lorandi

SEMANA CIENTíFICA

Ficção Científica Social (Cyberpunk): Alaor Rocha

Ficção Científica Space Opera: Rodolfo Xavier

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