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Publicado primeiramente, em Belo Horizonte, na Revista da Faculdade Mineira de Direito, v. 10, n. 20, pp.129-154. OS DOIS CAMINHOS DA LIBERDADE EM KANT: RICOEUR LEITOR DE KANT* Theresa Calvet de Magalhães** ([email protected]) A Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira RESUMO Ao retomar os dois caminhos da liberdade em Kant –a liberdade como um modo possível de causalidade no mundo (a liberdade em sentido cosmológico, ou a liberdade transcendental) e a liberdade como privilégio específico do homem enquanto ser racional (a liberdade em sentido prático, ou a liberdade prática)–, este texto explicita como Kant concebe a liberdade como “auto- atividade [espontaneidade] absoluta [absolute Selbsttätigkeit]” e como “autodeterminação [Selbstbestimmung]”. PALAVRAS-CHAVE Liberdade transcendental; espontaneidade absoluta; liberdade prática; razão prática; imperativo categórico; autonomia da vontade. O primeiro caminho da liberdade em Kant visa a liberdade como um modo possível de causalidade no mundo e não como privilégio específico do homem enquanto ser racional. Para Kant, a razão humana chega à idéia transcendental de liberdade ao pensar a categoria da causalidade desvinculada das restrições da experiência possível. Podemos pensar toda a série de todos os eventos como o efeito de uma causalidade inteligível, ou seja, como “o efeito da ação originária [ursprünglichen Handlung] de uma causa que, enquanto tal, não seria fenômeno, mas inteligível”, mas que teria de ser “inteiramente incluída, como um membro da cadeia natural, no mundo sensível” (KrV, B 572). 1 A liberdade no sentido transcendental, como uma idéia da razão, não é então outra coisa a não ser a causalidade natural pensada absolutamente. * A primeira versão deste texto foi apresentada no Colóquio em homenagem ao Prof. Dr. Pe. Henrique C. de Lima Vaz, SJ (1921-2002), promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FAFICH/UFMG, em Belo Horizonte, em 22 de maio de 2003. ** Docteur em Sciences Politiques et Sociales pela UCL (Université Catholique de Louvain), professora aposentada da UFMG (FAFICH- Departamento de Filosofia).

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Page 1: Publicado primeiramente, em Belo Horizonte, na Revista da ...tcalvet/Os dois caminhosdaliberdade em Kant.pdf · As duas edições da Kritik der reinen Vernunft (abreviatura: KrV)

Publicado primeiramente, em Belo Horizonte, na Revista da Faculdade Mineira de Direito, v. 10, n. 20, pp.129-154.

OS DOIS CAMINHOS DA LIBERDADE EM KANT: RICOEUR LEITOR DE KANT*

Theresa Calvet de Magalhães**

([email protected]) A Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

RESUMO Ao retomar os dois caminhos da liberdade em Kant –a liberdade como um modo possível de causalidade no mundo (a liberdade em sentido cosmológico, ou a liberdade transcendental) e a liberdade como privilégio específico do homem enquanto ser racional (a liberdade em sentido prático, ou a liberdade prática)–, este texto explicita como Kant concebe a liberdade como “auto-atividade [espontaneidade] absoluta [absolute Selbsttätigkeit]” e como “autodeterminação [Selbstbestimmung]”. PALAVRAS-CHAVE Liberdade transcendental; espontaneidade absoluta; liberdade prática; razão prática; imperativo categórico; autonomia da vontade.

O primeiro caminho da liberdade em Kant visa a liberdade como um modo possível

de causalidade no mundo e não como privilégio específico do homem enquanto ser

racional. Para Kant, a razão humana chega à idéia transcendental de liberdade ao pensar a

categoria da causalidade desvinculada das restrições da experiência possível. Podemos

pensar toda a série de todos os eventos como o efeito de uma causalidade inteligível, ou

seja, como “o efeito da ação originária [ursprünglichen Handlung] de uma causa que,

enquanto tal, não seria fenômeno, mas inteligível”, mas que teria de ser “inteiramente

incluída, como um membro da cadeia natural, no mundo sensível” (KrV, B 572).1 A

liberdade no sentido transcendental, como uma idéia da razão, não é então outra coisa a

não ser a causalidade natural pensada absolutamente.

* A primeira versão deste texto foi apresentada no Colóquio em homenagem ao Prof. Dr. Pe. Henrique C. de

Lima Vaz, SJ (1921-2002), promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FAFICH/UFMG, em Belo Horizonte, em 22 de maio de 2003.

** Docteur em Sciences Politiques et Sociales pela UCL (Université Catholique de Louvain), professora aposentada da UFMG (FAFICH- Departamento de Filosofia).

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Como propriedade de certas causas dos fenômenos, a liberdade tem de ser, no que

diz respeito aos fenômenos enquanto eventos, diz também Kant, “uma capacidade [ein

Vermögen] de os começar por si mesma (sponte), isto é, sem ser preciso que a própria

causalidade da causa comece e, por conseguinte, sem ter necessidade de nenhum outro

fundamento determinando seu início.” (Prolegomena, § 53).

Nesse contexto de uma consideração teórica da natureza (da natureza considerada

em sua totalidade), a liberdade como espontaneidade absoluta é a liberdade em sentido

cosmológico, ou a liberdade transcendental.

A causalidade e a liberdade como problema cosmológico

A emergência filosófica do conceito de liberdade está ligada, como se sabe, pela

primeira vez com Kant, a uma situação aporética da filosofia especulativa.2 Na Crítica da

Razão Pura, a formulação do problema das relações entre determinismo e liberdade tem, na

segunda divisão da Lógica Transcendental (na Dialética Transcendental)3, o aspecto de um

1. As duas edições da Kritik der reinen Vernunft (abreviatura: KrV) [Crítica da Razão Pura] são designadas

pelas letras A (primeira edição, 1781) e B (segunda edição, 1787) e o número da página do original alemão. 2. No seu uso puro e especulativo, a nossa razão é inteiramente dialética. A razão pura, no seu uso

especulativo, escreve Kant, “exige a totalidade absoluta das condições para um condicionado dado, e essa só pode absolutamente encontrar-se nas coisas-em-si. Mas, visto que todos os conceitos das coisas têm que ser referidos a intuições, as quais, nos homens, nunca podem ser senão sensíveis, por conseguinte não deixam conhecer os objetos como coisas em mas simplesmente como fenômenos [als Erscheinungen], (...) uma aparência [Schein] inevitável provém assim da aplicação [Anwendung] desta idéia racional [Vernunftidee] da totalidade das condições (conseqüentemente do incondicionado) aos fenômenos como se eles fossem coisas-em-si (...); esta aparência, porém, nunca seria vista como ilusória [trüglich] se ela própria não se traísse por um conflito [Widerstreit] da razão consigo mesma, na aplicação aos fenômenos do seu princípio [ihres Grundsatzes] que consiste em pressupor o incondicionado para todo o condicionado”. Esse conflito da razão consigo mesma (a antinomia da razão pura) é de fato, afirma Kant, “o mais salutar extravio [Verirrung] em que alguma vez a razão humana pôde cair, na medida em que nos leva finalmente a procurar a chave para sair desse labirinto” (Kant, 1976 [1788], p. 115). Como “produto da razão pura em seu uso transcendente”, diz ainda Kant, este conflito da razão “age o mais eficazmente para despertar a filosofia do seu sono dogmático e levá-la a ocupar-se com a difícil tarefa da crítica da razão” (Prolegomena, § 50).

3. Como crítica da aparência transcendental-dialética, a lógica transcendental denomina-se dialética transcendental “não como arte de suscitar dogmaticamente tal aparência (...), mas como uma crítica do entendimento e da razão, relativamente ao seu uso hiperfísico” (KrV, B 88). Como ciência da simples forma do pensamento em geral, isto é, como cânon do entendimento e da razão no que diz respeito ao que há de formal no seu uso, a lógica (a lógica geral e pura, ou lógica formal) abstrai de todo o conteúdo do conhecimento e é para Kant “uma doutrina demonstrada” (KrV, B 78). Mas como pretenso organon, isto é,

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conflito (Widerstreit) da razão consigo mesma –ou uma antinomia da razão pura (a terceira

antinomia da razão pura)–, um conflito no qual a razão cai inevitavelmente, ou seja, uma

antitética natural. A tese afirma o seguinte: “A causalidade segundo as leis da natureza não

é a única a partir da qual os fenômenos do mundo no seu conjunto possam ser derivados. É

ainda necessário admitir, para os explicar, uma causalidade pela liberdade”. E a antítese

diz: “Não há liberdade alguma, mas tudo no mundo ocorre unicamente segundo leis da

natureza” (KrV, B 472-473).4

A tarefa da filosofia transcendental consistiria em mostrar a possibilidade da união

da liberdade e da natureza, a orientação decisiva sendo dada pela natureza. Ou seja, ao

dissolver esse conflito em que a razão se via enredada, tratava-se unicamente para Kant de

“salvar a liberdade frente à natureza e em ligação com ela”. Segundo Heidegger, Kant teria

determinado assim, no segundo capítulo do Livro Segundo da Dialética Transcendental,

não apenas o caráter próprio do problema da liberdade mas também o seu limite

(Heidegger, 1982 [1930], p. 244; trad. fr., p. 228).

Se quisermos compreender a originalidade da solução kantiana da terceira

antinomia (a antinomia “dinâmica” da causalidade livre e da causalidade natural), temos de

considerar então a causalidade natural como um determinismo rigoroso.5 Todo efeito, no

como “um organon para a produção efetiva, pelo menos a título de ilusão [Blendwerk], de afirmações objetivas”, a lógica formal é sempre para Kant “uma lógica da aparência” [Logik des Scheins ou ars sophistica], e chama-se dialética (KrV, B 85-87). Usar a lógica formal para, ao menos pretensamente, alargar e ampliar os seus conhecimentos, diz Kant, “não é de modo algum conforme com a dignidade da filosofia” e “não pode senão redundar em oco palavreado”. Ou seja, Kant usa o termo dialética não simplesmente como sendo equivalente à produção da aparência lógico-formal dialética mas como crítica da aparência dialética [Kritik des dialektischen Scheins] (KrV, B 86).

4. A terceira antinomia da razão pura é apresentada por Kant nos Prolegomena: “Tese [Satz]: Há no mundo causas mediante a liberdade. Antítese [Gegensatz]: Não há liberdade, mas tudo é natureza” (Prolegomena, § 51).

5. Para Popper esse determinismo (a previsibilidade forte do determinismo clássico) seria muito diferente da formulação humeana do princípio da causalidade. A causalidade, tal como David Hume a concebe, é no fundo a “conjunção constante” (ver. Hume, 1964 [1739-1740; edição L. A. Selby-Bigge, 1888], pp. 173-174). Essa formulação é tão vaga, afirma Popper, que é perfeitamente compatível com o indeterminismo físico. Do ponto de vista da física, o indeterminismo seria simplesmente “a doutrina de que nem todos os acontecimentos do mundo são predeterminados com uma precisão absoluta, em todos os seus detalhes, e até mesmo em seus aspectos infinitesimais”. Esta doutrina não exclui, portanto, que possa haver um certo grau de regularidade, ou qualquer grau de regularidade que se quiser, nos fenômenos do universo, nem acarreta a concepção de que haveria acontecimentos sem causas. Ou seja, o indeterminismo físico obriga-nos a renunciar ao esquema clássico do determinismo (à previsibilidade forte do determinismo clássico), mas não afirma que há irregularidade no universo. Ver Popper, 1972, capítulo 6 [Of clouds and clocks. An Approach of the problem of rationality and the freedom of man], secção VIII.

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fenômeno, é um evento ou alguma coisa que ocorre no tempo: que tudo o que ocorre no

tempo tem uma causa, que a causalidade dessa causa, isto é, a ação da causa (porque

precede no tempo e em relação a um efeito, produzido segundo uma lei constante, tem que

ter ocorrido), também possui a sua causa entre os fenômenos (pela qual é determinada) e

tem de ser, por conseguinte, um evento que, por sua vez, possui uma causa, e assim por

diante, essa lei da natureza (pela qual “todos os eventos são determinados empiricamente

numa ordem natural”) é uma lei do entendimento, escreve Kant, “não sendo permitido, sob

nenhum pretexto afastar-se desta lei nem tampouco dela eximir qualquer fenômeno”, já que

permitir isto implicaria, segundo ele,“excluir tal fenômeno de toda a experiência possível”

(KrV, B 570).

O princípio de causalidade foi enunciado por Kant, na primeira edição da Crítica da

Razão Pura [1781], na segunda analogia da experiência, da seguinte maneira: “Tudo o que

ocorre (começa a ser) pressupõe alguma coisa a que sucede, segundo uma regra” (KrV, A

189); em 1787, na segunda edição da Crítica da Razão Pura, esse mesmo princípio (“o

princípio da sucessão no tempo segundo a lei da causalidade”) foi enunciado: “Todas as

mudanças ocorrem segundo a lei da conexão de causa e efeito” (KrV, B 232).6 A

demonstração deste princípio pode ser considerada como sendo a resposta de Kant ao

problema de Hume:

“[N]o que diz respeito ao meu trabalho na Crítica da Razão Pura, que foi, sem dúvida, provocado por essa doutrina cética de Hume, indo no entanto muito mais longe e abrangendo todo o campo da razão pura teórica no uso sintético, por conseguinte também do que se chama metafísica em geral, procedi da seguinte maneira em relação à dúvida do filósofo escocês quanto ao conceito de causalidade. Que Hume, ao tomar (...) os objetos da experiência por coisas-em-si, declarasse o conceito de causa como ilusão enganadora e falsa [für trüglich und falsches Blendwerk], tinha nisso inteira razão; pois quanto às coisas-em-si e suas determinações enquanto tais, não se pode discernir [einsehen] como, porque uma coisa A é posta, uma outra coisa B também necessariamente tem de ser posta e, portanto, ele não podia de modo algum admitir um tal conhecimento a priori de coisas-em-si. Este homem sagaz podia ainda menos conceder a este conceito uma origem empírica, pois ela justamente contradiz a necessidade da conexão que constitui o essencial do conceito de causalidade; por conseguinte, o conceito foi banido e em seu lugar entrou o hábito (...). De minhas

6. Para a crítica epistemológica da formulação kantiana do princípio de causalidade, ver Lindsay e Margenau,

1957 (2a ed.), capítulo X (The problem of causality), pp. 515-528. Ver também Ladrière, 1969 [1967], pp. 143-153.

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investigações, porém, resultou que os objetos, com os quais temos a ver na experiência, não são de modo algum coisas-em-si, mas simplesmente fenômenos, e que (...) pode-se muito bem pensar que, enquanto fenômenos, eles têm de estar necessariamente ligados de algum modo numa experiência (...) e não podem ser separados sem contradizer aquela conexão, graças à qual é possível essa experiência, na qual eles são objetos e na qual apenas são cognoscíveis a nós” (Kant, 1976 [1788], pp. 53-54).7

Podemos, no entanto, pensar, no início de uma série empírica de eventos, uma causa

inteligível que os determina.8 Haveria, assim, no que diz respeito ao que ocorre, dois tipos

de causalidade: a causalidade segundo a natureza (o conceito desta causalidade é um

conceito de necessidade natural) e a causalidade pela liberdade (isto é, uma espontaneidade

absoluta das causas). A primeira é, no mundo sensível, escreve Kant, “a conexão de um

estado com um estado precedente, em que um se segue ao outro segundo uma regra” (KrV,

B 560). Por liberdade, em sentido cosmológico, ele entende “a capacidade de iniciar por si

[von selbst] um estado, cuja causalidade não está por sua vez subordinada, segundo a lei da

natureza, a uma outra causa que a determine quanto ao tempo” (KrV, B 561) - a capacidade

originária de iniciativa.

A questão de uma resolução positiva possível da terceira antinomia não se

apresenta, na Dialética Transcendental, sob a forma de uma proposição disjuntiva que nos

induziria a escolher entre a necessidade natural e a liberdade, como se todo efeito no mundo

sensível devesse ser proveniente ou da natureza ou da liberdade. Uma tal alternativa

7. Kant explicita o que entende por uma causalidade segundo a natureza na primeira divisão da Lógica

Transcendental, isto é, na Analítica Transcendental –e mais especificamente, no Livro Segundo, na Doutrina Transcendental da Faculdade de Julgar, ou Analítica dos Princípios (Analytik der Grundsätze)–, ao expor, de um modo completo e num sistema, a relação das categorias com a sensibilidade em geral. O nosso entendimento, como faculdade das regras (as regras necessárias para o uso objetivo das categorias), prescreve leis a priori aos fenômenos e, portanto, à natureza como conjunto (Inbegriff) de todos os fenômenos; ou seja, o nosso entendimento impõe suas leis à natureza (KrV, A 127-128; Prolegomena, §§ 36-37). Popper considera esta formulação como sendo essencialmente correta, mas talvez muito radical, e prefere dizer: “O nosso entendimento (...) tenta –com vários graus de sucesso– impor à natureza leis que ele inventa livremente” (Popper, 1968 [1962], p. 191). Ver também Popper, 1982, p. 3. Se for considerada como uma ontologia da natureza, escreve Martin, a Analítica Transcendental “consiste em demonstrar o princípio de causalidade, que aí aparece, de fato, como signo mais manifesto da totalidade da natureza” (Martin, 1963 [1951], p. 88).

8. “[E]mbora todo efeito no fenômeno exija absolutamente uma conexão com a sua causa segundo as leis da causalidade empírica”, não será, contudo, possível que esta mesma causalidade empírica “possa ser o efeito de uma causalidade não empírica, mas sim inteligível, sem com isso interromper no mínimo a sua interconexão com as causas naturais?” (KrV, B 572).

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impediria, de fato, todo acesso a uma união da liberdade e da natureza.9 No que diz respeito

a um mesmo efeito já determinado segundo a natureza, trata-se apenas para Kant de saber

se a liberdade pode também se encontrar. Ora, “se os fenômenos são coisas-em-si, não é

possível salvar a liberdade”: a natureza considerada como realidade absoluta (como a única

realidade) seria “a causa completa e em si suficientemente determinante de cada evento”.

Ao contrário, se os fenômenos são considerados como o que de fato são para nós, isto é,

como “meras representações, que se encadeiam segundo leis empíricas”, então eles

próprios “têm que ter fundamentos [Gründe] que não são fenômenos”. E isso significa que

esses fundamentos encontram-se eles mesmos e em seu “ser-causa”, isto é, em sua

causalidade, fora da série dos fenômenos, embora os seus efeitos “se encontram na série

das condições empíricas” (KrV, B 564-565). Se pudermos pensar sem contradição uma tal

influência do supra-sensível sobre os fenômenos, então, escreve Kant,

“(...) haverá, sem dúvida, necessidade natural, em toda conexão de causa e efeito no mundo sensível, mas poderá ser concedida a essa causa, que não é ela mesma um fenômeno (embora esteja no seu fundamento), a liberdade, e podemos, assim, atribuir, sem contradição, natureza e liberdade a uma mesma coisa, mas de pontos de vista diferentes, por um lado como fenômeno e, por outro, como uma coisa-em-si.” (Prolegomena, § 53).

É, portanto, a distinção entre “fenômeno” e “coisa-em-si” que possibilita, também

aqui, a resolução desta antinomia: a tese e a antítese da terceira antinomia podem ambas ser

verdadeiras de pontos de vista diferentes. Ao corrigir o sentido das proposições em conflito,

Kant mostra que o que era apresentado como contraditório pode ser conciliado. O que torna

então possível uma conciliação entre natureza e liberdade é a heterogeneidade que pode

existir entre os membros da série e um elemento exterior à série; a resolução kantiana da

terceira antinomia da razão pura é, assim, ao mesmo tempo a demonstração indireta da

idealidade dos fenômenos. A liberdade é considerada, neste contexto, como uma espécie

particular de causalidade –uma espontaneidade absoluta das causas– uma espontaneidade

“capaz de dar início por si a uma série de fenômenos que se desenrola segundo as leis da

9. Ou seja, “a união da natureza e da liberdade enquanto causalidades só é manifestamente possível se um só e

mesmo efeito enquanto tal pode ser determinado causalmente segundo relações diferentes” (Heidegger, 1982 [1930], p. 241; trad. fr., p. 226).

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natureza” (KrV, B 474), escreve Kant, ou “uma capacidade de iniciar absolutamente um

estado e, portanto, também uma série de conseqüências desse estado” (KrV, B 473). A

liberdade é, neste sentido, uma idéia transcendental pura. Mas essa idéia é essencialmente

relativa ao mundo sensível:

“A idéia de liberdade encontra-se somente na relação do inteligível como causa com o fenômeno como efeito. (...) Só quando alguma coisa deve começar mediante uma ação, por conseguinte, quando o efeito deve encontrar-se na série do tempo, portanto, no mundo sensível (por exemplo, o começo do mundo), é que se levanta a questão, de se a própria causalidade da causa tem também de começar, ou se a causa pode suscitar um efeito sem que a sua própria causalidade comece. No primeiro caso, o conceito desta causalidade é um conceito de necessidade natural; no segundo, um conceito de liberdade. (...) ao elucidar a liberdade como a capacidade de começar por si mesma um evento, abordei justamente o conceito que é o problema da metafísica.” (Prolegomena, § 53, nota).

O que permite, no entanto, a Kant defender o pensamento de uma causa agindo

livremente e também a união possível das duas causalidades, é o próprio exemplo do

homem, que pode ser considerado, por um lado, como fenômeno (parte do mundo sensível)

e, por outro lado, no que se refere a certas faculdades, como um objeto puramente

inteligível. As faculdades que elevam o homem acima do sensível são o entendimento

(Verstand) e a razão (Vernunft), mas “sobretudo a razão” (KrV, B 575).10 Enquanto

fenômeno (“um dos fenômenos do mundo sensível”), o homem tem, como todas as outras

coisas da natureza, um caráter empírico.11 O homem, porém, é privilegiado na medida em

10. Podemos aproximar este exemplo do homem do que Kant afirma na terceira secção da Grundlegung zur

Metaphysik der Sitten (abreviatura: GMS) [1783] (Fundação* para a Metafísica dos Costumes). Na medida em que é um ser racional (ein vernünftiges Wesen), o homem tem de considerar-se a si mesmo, enquanto inteligência (als Intelligenz), “não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível”. O homem, escreve Kant, “tem, portanto, dois pontos de vista, a partir dos quais pode considerar-se a si mesmo e conhecer as leis do uso de seus poderes (...): o primeiro, enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis da natureza (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que (...) são fundadas unicamente na razão” (GMS, Ak 4, p. 452).

* Para a tradução de Grundlegung por “fundação” e não por “fundamento”, ou por “fundamentos” como na tradução francesa de Victor Delbos, revista por Alexis Philonenko [Fondements de la Métaphysique des Moeurs, 1980], ver Renaut, 2004, pp. 264-265. Ver também a “Introdução” de Christine M. Korsgaard à tradução inglesa de Mary Gregor [Groundwork of the Metaphysics of Morals. Cambridge: Cambridge University Presss, 1997], pp. vii- xxx.

11. Toda causa atuante (wirkende Ursache), segundo Kant, tem de ter um “caráter”. E por caráter (Charakter) de uma causa, ele entende a lei segundo a qual se exerce a sua causalidade, isto é, a “lei de sua causalidade, sem a qual de modo algum ela seria uma causa” (KrV, B 567). O caráter empírico é aquele pelo qual as ações (Handlungen) de um sujeito, enquanto fenômenos (als Erscheinungen), estariam

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que também sabe que é um objeto puramente inteligível, ou seja, porque “também se

conhece a si mesmo pela simples apercepção e, na verdade, em ações e determinações

internas que ele de modo algum pode atribuir às impressões dos sentidos” (KrV, B 574).

Kant refere-se aqui à auto-atividade ou espontaneidade da razão12 que se dá na consciência

de que podemos dar início a algo por motivos próprios. Essa espontaneidade (uma

capacidade originária de iniciativa) não se reduz a uma mera consciência psicológica da

independência de nossas ações:

“A idéia transcendental de liberdade está, na verdade, longe de constituir todo o conteúdo do conceito psicológico deste nome, conceito que é em grande parte empírico; ela constitui somente o conceito da espontaneidade absoluta da ação, como fundamento próprio da imputabilidade dessa ação; é, no entanto, a verdadeira pedra de escândalo para a filosofia, que encontra insuperáveis dificuldades para admitir tal espécie de causalidade incondicionada” (KrV, B 476; grifos nossos).13

Trata-se, nessa auto-atividade pura, de um determinar cujo determinante e cujas

determinações não podem ser atribuídos às impressões dos sentidos. A “causalidade da

razão” que é a liberdade aparece, assim, como algo atemporal:

“A razão pura, como uma faculdade simplesmente inteligível, não está submetida à forma do tempo nem por conseguinte às condições da série temporal. A causalidade da razão em seu caráter inteligível não nasce ou começa em um certo tempo para produzir um efeito (...). Com efeito, já que a própria razão não é um fenômeno e não está submetida a quaisquer condições da sensibilidade, não se verifica nela, quanto à sua causalidade, nenhuma sucessão no tempo e, por conseguinte, não se lhe pode aplicar a lei dinâmica da natureza que determina, segundo regras, a sucessão temporal.” (KrV, B 579-581).

totalmente presas no encadeamento com outros fenômenos segundo leis constantes da natureza: “Segundo o seu caráter empírico, esse sujeito estaria, portanto, submetido, enquanto fenômeno, a todas as leis da determinação segundo a ligação causal e, neste sentido, nada mais seria do que uma parte do mundo sensível, cujos efeitos decorreriam infalivelmente da natureza, como qualquer outro fenômeno” (KrV, B 568). Pelo seu caráter inteligível, o mesmo sujeito seria, é claro, a causa daquelas ações, como fenômenos, “mas ele próprio não se encontra subordinado a quaisquer condições da sensibilidade, e não é, mesmo, fenômeno” (KrV, B 567).

12. A razão, como auto-atividade pura (reine Selbsttätigkeit) ou como espontaneidade pura (reine Spontaneität), mostra sua superioridade em relação ao entendimento. Como faculdade das idéias, a nossa razão mostra a sua principal função (a de limitar o entendimento) ao distinguir um do outro o mundo sensível e o mundo inteligível. As idéias transcendentais “servem não apenas para nos mostrar realmente os limites do uso puro da razão mas, além disso, a maneira de determinar esses limites” (Prolegomena, § 57).

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Que a nossa razão possui tal causalidade, ou que nos autodeterminamos

conscientemente a agir, é o que claramente ressalta para Kant “dos imperativos que

impomos como regras, em todas as questões práticas, aos poderes executivos [den

ausübenden Kräften]” (KrV, B 575). Como espontaneidade, a liberdade se manifesta na

consciência da autodeterminação. Haveria, assim, no homem, uma faculdade –a razão–

cujo uso (o seu uso prático)14 estaria ligado a princípios objetivos de determinação, que são

idéias puras. Esses princípios fornecem regras universais que expressam não o que é mas o

dever (das Sollen). O dever, escreve Kant, “exprime uma ação possível cujo fundamento

nada mais é do que um simples conceito” (KrV, B 575). É justamente porque a razão possui

uma causalidade, e pode se determinar por um dever, que ela “se cria com uma inteira

espontaneidade uma ordem própria segundo idéias” (KrV, B 576) –a ordem da liberdade–

completamente diferente da ordem da natureza. O dever expressaria aqui “um modo [eine

Art] de necessidade e de conexão com fundamentos que não ocorre em outra parte em toda

a natureza” (KrV, B 575).15

Enquanto “causalidade pura”, a razão “está presente e é idêntica em todas as ações

do homem e em todas as circunstâncias temporais”, mas ela “não está ela mesma no tempo

nem cai, por assim dizer, num novo estado em que não estivesse antes”; ou seja, a razão “é

determinante em relação a esse estado, mas não determinável” (KrV, B 583-584). A

causalidade puramente inteligível da liberdade e a causalidade empírica da natureza podem

então coexistir, sem contradição, porque não sendo a razão ela mesma um fenômeno, “não

se lhe pode aplicar a lei dinâmica da natureza que determina a sucessão temporal segundo

regras” (KrV, B 581).

13. A idéia transcendental de liberdade é considerada aqui por Kant como fundamento ou raiz cosmológica

da idéia ético-jurídica de imputabilidade. 14. No seu uso prático, a razão não se dirige “à determinação do objeto, portanto ao conhecimento, mas (...) à

determinação do sujeito e do seu querer” (KrV, B 166, nota). 15. Ver também a terceira secção da Fundação para a Metafísica dos Costumes: “O homem que, desta

maneira, se considera como inteligência, coloca-se [setzt sich] assim numa outra ordem de coisas e numa relação com princípios determinantes de espécie totalmente diferente, quando se pensa como inteligência dotada de (...) causalidade, do que quando se percebe como um fenômeno no mundo sensível (o que efetivamente também é) e subordina a sua causalidade à determinação externa, segundo leis da natureza [und seine Kausalität äusserer Bestimmung nach Naturgesetzen unterwirft]. (...) mas que o homem tenha que representar-se e pensar-se a si mesmo desta dupla maneira, isso repousa, por um lado, sobre a consciência que tem de si mesmo como objeto afetado pelos sentidos, [e] por outro lado, sobre a

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Tratava-se apenas de saber se a liberdade entrava em conflito com a necessidade

natural numa e mesma ação, e Kant nos mostrou que ambas “podem ocorrer

independentemente uma da outra e sem que uma à outra se perturbem” (KrV, B 585). A

liberdade é, aqui, “uma causalidade não empírica, inteligível, uma causalidade da razão

cuja unidade com a causalidade segundo a natureza é possível”. Permanecemos, assim,

neste capítulo que trata da antinomia da razão pura, no interior dos limites de uma

consideração puramente cosmológica, na qual o homem “não é o motivo primário e

decisivo do problema da liberdade” (Heidegger, 1982 [1930], p. 259; trad. fr., p. 241).

Mas este resultado já abre um caminho livre à filosofia prática. Se a linguagem da

liberdade e da causalidade se mostrasse vazia de sentido, escreve Granel, “não haveria

passagem para uma razão prática cuja própria linguagem teria sido então atingida de

nulidade, e não apenas privada de seu preenchimento por uma intuição.” (Granel, 1970, p.

157). O uso empírico do princípio de causalidade não nos permite ultrapassar o campo da

experiência possível, mas o próprio conceito de causalidade pode receber, e recebe em

Kant, uma outra significação:

“Se eu, com Hume, tivesse tirado ao conceito de causalidade a realidade objetiva no uso teórico* [*no texto da primeira edição original (edição A), de Johann Friedrich Harknoch, encontra-se o termo “prático”] não só em relação às coisas-em-si (ao supra-sensível), mas também relativamente aos objetos dos sentidos, esse conceito teria perdido toda a significação (...) e, como não podemos fazer qualquer uso do nada [von Nichts], o uso prático [der praktische Gebrauch] de um conceito teoricamente nulo teria sido inteiramente absurdo. Ora, o conceito de uma causalidade empiricamente incondicionada é, na verdade, teoricamente vazio (sem intuição que lhe corresponda), mas é, no entanto, sempre possível e refere-se a um objeto indeterminado.” (Kant, 1976 [1788], p. 57).

Teoricamente vazia, a idéia transcendental de liberdade não apenas espera sua

conexão com a idéia moral de lei, mas é preservada enquanto raiz cosmológica da idéia

ético-jurídica de imputabilidade.16 A razão subsiste, assim, “como um sistema de

significações vazias, mas não vãs, abertas mas não ocas” (Granel, 1970, p. 146). Para Kant,

a razão é esperança:

consciência que tem de si mesmo como inteligência ... (portanto como pertencente ao mundo inteligível)” (GMS, Ak 4, p. 457).

16. Ver Ricoeur, 1995, pp. 48-50. Ver também Ricoeur, 2004, p. 160.

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“Quando examino todas as idéias transcendentais, cujo conjunto constitui o problema próprio da razão pura natural, que a obriga a abandonar a simples observação da natureza e a ir além de toda experiência possível e, neste esforço, a realizar a coisa (quer seja saber ou sofisma) que se chama metafísica, creio aperceber-me de que esta disposição natural [a metafísica como disposição natural da razão humana] tem por fim libertar nosso conceito das cadeias da experiência e das barreiras da simples observação da natureza de modo a lhe permitir ver pelo menos aberto diante de si um campo que contém unicamente objetos para o entendimento puro, inacessíveis à sensibilidade, não, é claro, para que façamos deles o objeto de nossa especulação (porque não encontramos nenhum terreno onde possamos firmar o pé), mas porque os princípios práticos, se não encontrassem diante de si um tal espaço para sua necessária espera e esperança, não poderiam alcançar essa universalidade de que a razão necessita absolutamente para seu fim moral” (Prolegomena, § 60).

Kant expressa mais uma vez, em 1788, na Crítica da Razão Prática, a sua crença no

determinismo “científico” no que diz respeito ao mundo sensível e, ao mesmo tempo, a sua

crença de que o homem, enquanto ser racional capaz de imputação, é livre:

“Podemos, portanto, admitir que, se nos fosse possível, acerca do modo de pensar de um homem, tal como ele se mostra por ações tanto interiores como exteriores, ter um discernimento tão profundo [so tiefe Einsicht] que nos fosse conhecido cada um dos seus móbeis, mesmo o menor, juntamente com todas as ocasiões exteriores que agem sobre eles, poderíamos calcular com certeza a conduta de um homem no futuro, tal como se pode calcular um eclipse da lua ou do sol, e afirmar, no entanto, que o homem é livre.” (Kant 1976 [1788], p. 105).17

A diferença entre a liberdade transcendental e a liberdade prática

A liberdade, em sentido cosmológico, foi concebida por Kant como auto-atividade

(espontaneidade) absoluta, ou como uma capacidade de iniciar por si um estado. Ora, é

nesse conceito de liberdade que se funda o conceito de liberdade prática, e é justamente a

idéia transcendental de liberdade que constitui para Kant o ponto preciso das dificuldades

17. Se considerarmos, porém, a mecânica newtoniana apenas como uma hipótese cuja verdade é

problemática, o problema de Kant tem de ser radicalmente mudado (ver Popper, 1968 [1962], pp. 190-193). E do que realmente precisamos então é da tese de que o mundo físico é aberto. Para Popper, o universo a que pertencemos é ele mesmo aberto: ele contém o “mundo 3” (o mundo dos produtos da mente humana e, especialmente, do conhecimento objetivo), um mundo intrinsecamente aberto. E é justamente porque o mundo permanece aberto que o homem guarda a possibilidade de decidir livremente. Ver Calvet de Magalhães, 1997, pp. 7-34.

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que, desde sempre, rodearam o problema da possibilidade da liberdade prática (KrV, B

561-562).

Em sentido prático, a liberdade é definida negativamente, na Crítica da Razão

Pura, como sendo “a independência [grifo nosso] do arbítrio [humano] frente à coação por

impulsos da sensibilidade [die Unabhängigkeit der Willkür von der Nötigung durch

Antriebe der Sinnlichkeit]” (KrV, B 562). Se o arbítrio humano é, sem dúvida, um

arbitrium sensitivum (ou seja, um arbítrio afetado por móveis da sensibilidade, ou afetado

patologicamente), não é, no entanto, um arbitrium brutum (um arbítrio patologicamente

necessitado, ou um arbítrio animal). Para Kant, o arbítrio humano é um arbitrium liberum,

não apenas, diz ele, “porque a sensibilidade não torna necessária a sua ação”, mas também

porque existe, no homem, “a capacidade de determinar-se por si, independentemente da

coação por impulsos sensíveis” (KrV, B 562; grifos nossos). Se não houvesse liberdade

transcendental, todo arbítrio seria bruto, não podendo, como arbítrio livre, “iniciar

completamente por si mesmo uma série de eventos” (KrV, B 562).18 A liberdade prática

funda-se na liberdade transcendental e é, então, no sentido de autodeterminação que a

liberdade é positivamente compreendida.

Kant concebe a liberdade como “auto-atividade [espontaneidade] absoluta

[absolute Selbsttätigkeit]” (KrV, B 446), como uma “capacidade”, inerente ao homem, de

“determinar-se por si [von selbst zu bestimmen]” (KrV, B 562). Segundo Heidegger, não

haveria nada de negativo nestas duas definições, ou seja, os dois conceitos kantianos de

liberdade –o conceito transcendental e o conceito prático– não são negativos. A própria

liberdade em sentido prático, diz ele, é que se divide em liberdade negativa (independência

relativamente à sensibilidade) e em liberdade positiva.19

Se a liberdade em sentido prático foi definida, na Crítica da Razão Pura, pela

independência do arbítrio humano relativamente aos impulsos sensíveis que o afetam, não

podemos reduzir a posição kantiana a esta definição da liberdade prática. Kant concebe ao

18. Ver também a “Introdução” à Metafísica dos Costumes (Die Metaphysik der Sitten in zwey Theilen)

[1797], Ak VI, pp. 213-214 (tradução francesa de Alain Renaut [Introduction à la métaphysique des moeurs], in E. Kant, Métaphysique des Moeurs I – Fondation de la métaphysique des moeurs. Introduction à la métaphysique des moeurs. Paris: Flammarion , 1994, p. 162).

19. Ver Heidegger, 1982 [1930], pp. 20-26 (trad. fr., pp. 30-35). Mas ver também Carmen Innerarity, 1995, pp. 109-133.

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mesmo tempo, nessa obra, positivamente a liberdade prática como uma capacidade –uma

faculdade que se encontra no homem– a capacidade de autodeterminação. Essas distinções

tornam-se um pouco mais claras na Fundação para a Metafísica dos Costumes. Logo no

início da terceira secção, intitulada “Passagem [Übergang] da Metafísica dos Costumes

para a Crítica da Razão Prática Pura”, Kant escreve:

“A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, na medida em que são racionais [sofern sie vernünftig sind], e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser atuante [wirkend sein kann] independentemente de causas estranhas que a determinem; assim como necessidade natural é a propriedade da causalidade de todos os seres desprovidos de razão [aller vernunftlosen Wesen] de serem determinados à atividade [zur Tätigkeit bestimmt zu werden] pela influência de causas estranhas.” (GMS, Ak 4, p. 446).

Esta definição da liberdade prática como “independência” é negativa mas, esclarece

logo Kant:

“A explicitação [Erklärung] da liberdade que acaba de ser dada é negativa e, por conseguinte, para alcançar a sua essência, [é] infecunda; mas dela decorre um conceito positivo desta mesma [liberdade], que é tanto mais rico e fecundo. (...) que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, isto é, a propriedade da vontade de ser uma lei para si mesma [sich selbst ein Gesetz zu sein]?” (GMS, Ak 4, p. 446).

O conceito positivo da liberdade é um conceito prático e significa para Kant

autonomia da vontade, ou autolegislação. O que seria então a liberdade em sentido

transcendental (a liberdade como auto-atividade [espontaneidade] absoluta), se ela não é a

liberdade positivamente prática (a autonomia da vontade) por oposição à liberdade

negativamente prática (a liberdade prática como “independência”)?

A liberdade transcendental não se confunde com a liberdade positivamente prática.

Na liberdade transcendental, explicita Heidegger, “não se trata da vontade e da lei da

vontade, mas de iniciar por si um estado”; ao contrário, na autonomia, trata-se do homem,

“um ente determinado, à essência do qual pertencem o querer e a praxis”. O argumento de

Heidegger é, em resumo, o seguinte: em Kant, a liberdade transcendental estaria pré-

ordenada à liberdade prática enquanto condição de sua possibilidade. Ou seja, a autonomia

em sua possibilidade funda-se na espontaneidade absoluta (na liberdade transcendental): “O

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determinar-se-si-mesmo ao agir como autolegislação é um começar-por-si-mesmo um

estado no domínio particular do agir humano de um ser racional em geral”. A autonomia é,

assim, um modo de auto-atividade (espontaneidade) absoluta: “É sobre a base deste caráter

essencial de espontaneidade absoluta que a autonomia é possível. Se não houvesse

absolutamente nenhuma espontaneidade, também não haveria autonomia.” (Heidegger,

1982 [1930], p. 25; trad. fr., p. 34).20 A determinação da liberdade positiva como

autonomia contém, assim, um problema próprio, o problema de uma causalidade muito

particular (a espontaneidade absoluta das causas) ligado a uma dificuldade que lhe é desde

sempre inerente. A partir de Kant, escreve Ricoeur, “a liberdade prática é, em qualquer

sentido, uma determinação da liberdade” (Ricoeur, 1986 [1979] p. 247).

A vontade como razão prática

O segundo caminho kantiano da liberdade visa a liberdade como privilégio

específico do homem enquanto ser racional. Ora, o que constitui esse privilégio do homem

é sua personalidade, isto é, o que “eleva o homem acima de si mesmo (como parte do

mundo sensível)” (Kant, 1976 [1788], p. 91). É ela, considerada como raiz do dever, que

faz do homem um ser auto-responsável (um ser racional e capaz de imputação).

O que Kant entende em geral por faculdade prática da razão? Encontramos uma

resposta na parte substancial da segunda secção da Fundação para a Metafísica dos

Costumes, onde se trata justamente “de seguir e de apresentar claramente [deutlich

darstellen] a faculdade prática da razão [das praktische Vernunftvermögen], desde suas

regras universais de determinação até onde nasce dela o conceito de dever [der Begriff der

Pflicht]” (GMS, Ak 4, p. 412), e de pelo menos mostrar ou indicar (anzeigen) “o que esse

conceito quer dizer [sagen wolle]” (GMS, Ak 4, p. 421).

Temos de ler primeiro, nessa segunda secção, o seguinte parágrafo:

“Cada coisa da natureza atua [wirkt] segundo leis. Somente um ser racional [ein vernünftiges Wesen] tem a faculdade de agir [das Vermögen ... zu handeln] segundo a

20. A existência dessa relação (entre liberdade prática e liberdade transcendental) já tinha sido enunciada por

Kant na Crítica da Razão Pura: “a supressão da liberdade transcendental anularia simultaneamente toda a liberdade prática” (KrV, B 562).

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representação de leis, isto é, segundo princípios, ou [tem] uma vontade. Como para a derivação [Ableitung] de ações a partir de leis é exigida a razão, assim a vontade não é outra coisa senão razão prática” (GMS, Ak 4, p. 412).

As expressões “agir segundo a representação de leis” ou “agir segundo princípios”

indicam uma atividade específica da razão. O agir segundo a representação de leis (ou

segundo princípios) é uma faculdade exclusiva de seres racionais (vernünftige Wesen), que

se opõe ao simples atuar (wirken) natural de coisas. Só os seres racionais agem

representando-se leis ou princípios de ação.21 Um ser que é capaz de ações segundo a

representação de leis é um ser racional, e Kant denomina a causalidade de um tal ser,

segundo essa representação das leis, uma vontade. A vontade é entendida aqui como uma

faculdade exclusiva de seres racionais. Ora, como a razão é indispensável à vontade para

derivar as suas ações de leis, Kant conclui que a vontade não é outra coisa senão razão

prática. Mas, e é importante lembrar isso aqui, ele não identifica logo a razão prática à

razão moral nem a vontade à vontade absolutamente boa.

Quando Kant se refere, ainda na primeira secção (Passagem do conhecimento moral

comum da razão para o conhecimento filosófico)22 da Fundação para a Metafísica dos

Costumes, à razão que nos foi dada “como uma faculdade prática, isto é, como uma

faculdade que deve exercer influência sobre a vontade” (GMS, Ak 4, p. 396), ou quando

afirma, na segunda secção (Passagem da filosofia moral popular para a Metafísica dos

Costumes)23, que a vontade “não é em si plenamente conforme à razão” (GMS, Ak 4, p.

412), parece que ele considera a vontade como sendo uma faculdade distinta da razão

prática e determinada por ela. Mas Kant tinha dito, logo antes, na segunda secção, que “a

vontade não é outra coisa senão razão prática” (GMS, Ak 4, p. 412). E encontramos, ainda

nessa segunda secção, afirmações tais como “razão prática (vontade)” (GMS, Ak 4, p. 441).

Até que ponto se pode falar então da vontade como algo realmente distinto da razão

prática?

21. “Ora, um ser que é capaz de ações segundo a representação de leis é uma inteligência (um ser racional) e

a causalidade de um tal ser segundo esta representação das leis é uma vontade do mesmo” (Kant, 1976 [1788], pp. 134-135).

22. Übergang von der gemeinen sittlichen Vernunfterkenntnis zur philosophischen (GMS, Ak 4, p. 393). 23. Übergang von der populären sittlichen Weltweisheit zur Metaphysik der Sitten (GMS, Ak 4, p. 406).

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Se a vontade não se distingue da razão prática, como podemos ainda dizer que, no

caso da ação moral, a razão determina imediatamente a vontade? E se, como no caso da

vontade humana (uma vontade imperfeita), “a razão por si só não determina

suficientemente a vontade”, torna-se paradoxal dizer que esta (a vontade) “não é outra coisa

senão razão prática”. A vontade como razão prática seguiria, nesse caso, necessariamente

sua própria lei, não estando submetida a outras inclinações sensíveis. Mas, por outro lado,

se a vontade é razão prática, o que se torna surpreendente é que ela seja ao mesmo tempo

definida como a faculdade de agir “segundo a representação da lei” que ela mesma dita. A

vontade não teria, é o que parece neste último caso, nenhuma necessidade de representar-se

algo que ela mesma é. Todos estes paradoxos podem ser solucionados quando se considera

que Kant usa aqui o termo “vontade” em dois sentidos diferentes, por um lado, como uma

faculdade distinta da razão prática e, por outro lado, como razão prática autolegisladora.24

A vontade, enquanto faculdade distinta da razão prática, em um ser racional finito,

como o homem, que está submetido também à influência de suas inclinações sensíveis, não

segue necessariamente a lei que é ditada pela razão. Como o homem possui também um

caráter sensível e não exclusivamente racional, a lei se apresenta a essa vontade (à vontade

imperfeita) como dotada unicamente de uma necessidade objetiva, mas não subjetiva (isto

é, o homem não segue a lei por uma necessidade de seu ser). A relação da “necessidade

objetiva” da lei com a vontade afetada pelo sensível é, por isso mesmo, a relação da coação

(obrigação). A expressão dessa coação chama-se um imperativo. O imperativo nos

significa que as ações que ele ordena são “necessárias objetivamente”, mas essas ações não

deixam de ser “subjetivamente contingentes”; se não fossem subjetivamente contingentes, o

próprio imperativo seria supérfluo.25

24. A ambigüidade do termo “vontade”, na Fundação para a Metafísica dos Costumes, só será resolvida na

“Introdução” à Metafísica dos Costume quando Kant, ao distinguir a vontade (Wille) do arbítrio (Willkür), reserva o termo vontade (Wille) para a faculdade de apetição (Begehrungsvermögen) “cujo fundamento interno de determinação (...) encontra-se na razão do sujeito” (Ak 6, p. 213). Ou seja, a vontade seria, então, “a faculdade de apetição considerada (...) em sua relação com o fundamento de determinação do arbítrio à ação”. A vontade, afirma agora Kant, “na medida em que pode determinar o arbítrio”, é, assim , “a própria razão prática” (Ak 6, p. 213). Ver também a “Introdução” de Alexis Philonenko à tradução francesa da Primeira Parte da Metafísica dos Costumes [Métaphysique des Moeurs. Première Partie: Doctrine du Droit. Paris: Vrin, 1979 (2ª ed.)], pp. 33-34.

25. Ver Aubenque, 1993 [1975], pp. 188-189.

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Não podemos confundir, aqui, o caso de uma vontade santa (a vontade de um ser

perfeito ou plenamente racional) com o caso de uma vontade imperfeita (como a vontade

humana), em que as representações racionais concorrem com as inclinações sensíveis. A

vontade, no caso de um ser racional mas finito como o homem, possui a faculdade de agir

conformemente à razão, porque é afetada, mas não necessariamente determinada, por

inclinações sensíveis. A “representação de um princípio objetivo”, na medida em que esse

princípio surge como obrigação para uma vontade imperfeita como a vontade humana,

chama-se um mandamento (da razão), escreve Kant, “e a fórmula [grifo nosso] do

mandamento chama-se imperativo” (GMS, Ak 4, p. 413).

Os imperativos são, portanto, “fórmulas que expressam a relação de leis objetivas

do querer em geral com a imperfeição subjetiva da vontade [zu der subjektiven

Unvollkommenheit des Willens] deste ou daquele ser racional, por exemplo, da vontade

humana” (GMS, Ak 4, p. 414). Todos os imperativos (isso seria o seu caráter comum)

significam a relação de uma lei objetiva da razão para a vontade humana e, por isso mesmo,

são todos expressos pelo verbo sollen (“dever”). É nesta relação da vontade com a lei que

surge então, na moral kantiana, a questão “Que devo fazer?”.

O imperativo diz o que se deve ou não se deve fazer, o que não significa que a

vontade humana obedeça a essa fórmula do mandamento. Se for considerado do ponto de

vista da teoria dos atos de linguagem (speech act theory), o imperativo coloca um problema

específico. Com efeito, recorda Ricoeur, além das condições de sucesso (“um mandamento

foi efetivamente proferido de acordo com as convenções que o autorizam?”), os atos de

linguagem estão submetidos a condições de satisfação (“esse mandamento foi seguido de

obediência ou não?”).26 Ora, na linguagem cotidiana, esse tipo de ato exige, diz ele, “um

locutor e um ouvinte distintos: um comanda, o outro é obrigado a obedecer em virtude da

condição de satisfação do imperativo”. E foi justamente essa situação que Kant interiorizou,

escreve Ricoeur, “colocando no mesmo sujeito o poder de comandar e o de obedecer ou de

desobedecer” (Ricoeur, 1990, p. 243).27 Se todos os imperativos, e não apenas o imperativo

26. Para a distinção entre condições de sucesso e condições de satisfação dos atos de linguagem, ver

Vanderveken, 1990, pp. 129-134. 27. E a inclinação é então definida pelo seu poder de desobediência, escreve Ricoeur: “Kant assimila este

poder à passividade inerente à inclinação, o que o faz chamar o desejo de “patológico”. É difícil, aqui, não

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de moralidade, são expressos pelo verbo “dever”, esse “sollen” não tem, no entanto, em

cada um deles, o mesmo sentido:

“O querer [Das Wollen] segundo estes três princípios diferentes distingue-se também claramente pela diferença da obrigação da vontade [durch die Ungleichheit der Nötigung des Willens]” (GMS, Ak 4, p. 416).28

Kant não confunde as obrigações técnicas e pragmáticas com as obrigações que

podem ser ditas morais.29 No que diz respeito aos imperativos hipotéticos –os imperativos

“técnicos” (ou regras) da habilidade (Regeln der Geschicklichkeit) e os imperativos

“pragmáticos” (ou conselhos) da prudência (Ratschläge der Klugheit)–, trata-se de um

dever condicionado, relativamente a um fim simplesmente possível ou a um fim

efetivamente proposto por todos os homens (a felicidade), isto é, um dever submetido a

condições: “deves..., se ... “. Estes imperativos só declaram a ação praticamente necessária

como meio para alcançar um fim, ou seja, subordinam o que eles comandam a um fim,

como a uma condição.30

A questão de como pode ser pensada a obrigação da vontade, no caso dos

imperativos hipotéticos, não causa dificuldade: quem quer o fim, diz Kant, ao se referir aos

imperativos da habilidade, “quer (na medida em que a razão tem influência decisiva sobre

suas ações) também o meio indispensavelmente necessário para alcançá-lo, que se encontra

em seu poder” (GMS, Ak 4, p. 417). Trata-se, neste caso, no que diz respeito ao querer, de

uma proposição (prática) analítica, ou seja, de uma proposição prática que deriva

retomar a acusação clássica de rigorismo, segundo a qual Kant teria considerado o desejo como intrinsecamente hostil à racionalidade. Pode-se, no entanto, resistir até um certo ponto a essa acusação, fazendo passar, como Kant, a linha divisória no próprio interior da família dos imperativos, e distinguindo, como é bem conhecido, entre o imperativo categórico e os imperativos simplesmente hipotéticos, os imperativos da habilidade e os imperativos da prudência.” (Ricoeur, 1990, pp. 243-244).

28. Ver também Habermas, 1991, pp. 100-118. Esse texto (“Vom pragmatischen, ethischen und moralischen Gebrauch der praktischen Vernunft”) é retomado por Habermas, em 1992, em Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats (e mais especificamente no quarto capítulo) e, em 1996, no primeiro capítulo de Die Einbeziehung des anderen. Studien zur politischen Theorie.

29. Ver Aubenque, 1993 [1975], pp. 191-193. 30. A distinção entre os imperativos hipotéticos e o imperativo categórico (GMS, Ak 4, pp. 414-421) retoma,

em um novo contexto, uma distinção já analisada por Kant, na primeira secção da Fundação para a Metafísica dos Costumes, entre as ações conformes ao dever, que podem ser feitas por uma inclinação (mediata ou imediata) pelo propósito a alcançar por elas, e a ação moral, uma ação conforme ao dever feita por dever (GMS, Ak 4, pp. 399-400).

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(analiticamente) o conceito de ações necessárias para alcançar um fim do próprio conceito

do querer deste fim. A mesma explicação vale, em princípio, para os imperativos da

prudência: estes imperativos (que temos de considerar, para falar com exatidão, mais como

conselhos do que como mandamentos da razão) limitam-se, tal como os imperativos da

habilidade, a prescrever uma ação analiticamente e logicamente pressuposta num querer

anterior, e são assim, diz Kant, igualmente analíticos (GMS, Ak 4, pp. 417-418).

Nas obrigações técnicas e pragmáticas, a vontade não se dá a si mesma sua lei, mas

é um fim (o objeto da vontade) que é posto como fundamento para prescrever à vontade a

regra que a determina. Essa regra, escreve Kant, “não é senão heteronomia [grifo nosso] da

vontade” (GMS, Ak 4, p. 444).31 Os imperativos da habilidade e os imperativos da

prudência só valem para uma vontade heterônoma, isto é, estes imperativos só declaram a

ação praticamente necessária como meio para alcançar qualquer fim e só obrigam, portanto,

no caso de o sujeito eleger o fim a que eles conduzem como algo a alcançar. Ou ainda: a

ação só é necessária se o sujeito quiser atingir um fim previamente posto (ele pode,

portanto, sempre desobrigar-se da prescrição renunciando a esse fim). Assim, nos

imperativos hipotéticos, trata-se apenas de um dever condicionado (devo ..., se quero ...),

ou de um dever relativo, e não de uma obrigação moral. Ao contrário, no imperativo

categórico, trata-se de uma obrigação incondicional, ou de um dever incondicional: este

imperativo representa uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação

com qualquer outro fim (GMS, Ak 4, pp. 414-416). Ou seja, e é o que distingue o

imperativo incondicional dos imperativos hipotéticos, o imperativo categórico representa

imediatamente uma ação como objetivamente necessária. É somente aqui que razão e

vontade interpenetram-se totalmente.

O imperativo categórico, sendo absolutamente (embora praticamente) necessário,

pode ser propriamente denominado uma lei da vontade (uma lei prática):

“[S]ó o imperativo categórico é expresso como uma lei prática [der kategorische Imperativ allein als ein praktisches Gesetz laute], ao passo que todos os outros [imperativos] se podem chamar em verdade princípios da vontade, mas não leis; (...) o mandamento incondicional não deixa à vontade a liberdade de escolha relativamente ao contrário do que ordena, só ele tendo portanto em si aquela necessidade que

31. Ou heteronomia do arbítrio, heteronomia da vontade arbitral (Willkür) - ver Kant, 1976 [1788], pp. 33-37.

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exigimos da lei.” (GMS, AK 4, p. 420).32

O imperativo categórico representa, assim, a forma mais elevada de toda obrigação.

Kant não inventou a moralidade33, mas ele tinha plena consciência de ser o primeiro

filósofo a reconhecer o caráter categórico do mandamento através do qual a lei moral se

expressa para o homem. A obrigação moral, que emana da razão, é incondicional. Não

sendo limitado por nenhuma condição, o imperativo categórico ordena imediatamente a

conduta: este imperativo se refere “não à matéria da ação, nem ao que dela deve resultar,

mas à forma e ao princípio de que ela mesma resulta” (GMS, Ak 4, p. 416). O princípio do

dever (Prinzip der Pflicht), enunciado na primeira secção da Fundação para a Metafísica

dos Costumes, era já uma maneira de formular o que Kant chama, nesta segunda secção, de

imperativo categórico: “[E]u não devo nunca me comportar de outro modo a não ser o de

que eu possa também querer que a minha máxima deva tornar-se uma lei universal [ich soll

niemals anders verfahren als so, dass ich auch wollen könne, meine Maxime solle ein

allgemeines Gesetz werden]” (GMS, Ak 4, p. 402).34 E ele tinha dito, logo em seguida

nessa primeira secção, que é unicamente a conformidade universal das ações em geral à lei

(die allgemeine Gesetzmässigkeit der Handlungen überhaupt) o que deve servir de

princípio à vontade.35 Agora, na segunda secção, ao explicitar o simples conceito de

32. Na Introdução à primeira edição [1790] da Kritik der Urteilskraft (abreviatura: KU), Kant não usa mais a

expressão de imperativo. Ao opor as prescrições (Vorschriften) que são tecnicamente práticas, e que constituem regras, às prescrições moralmente práticas, que se fundam totalmente no conceito de liberdade e que se chamam pura e simplesmente leis (as leis da liberdade), Kant afirma agora que todas as regras tecnicamente práticas (tanto as da arte e da habilidade em geral, como as da prudência) só podem ser contadas como corolários para a filosofia teórica, ou seja, não podem ser contadas na parte prática da filosofia (KU, Ak V, pp. 172-173). Já não se trata, nessa Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, de mostrar que as regras de habilidade e os conselhos de prudência só valem para uma vontade heterônoma, mas sim de excluir da segunda parte da filosofia (ou seja, da filosofia prática como teoria da moral) essas prescrições. Se ainda era possível, na Fundação para a Metafísica dos Costumes, atribuir à prudência um lugar intermediário entre a habilidade e a moralidade, com a Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, isso já não é possível: a prudência, escreve Aubenque, “é reduzida ao plano de uma arte, de uma técnica.” (Aubenque, 19, pp. 192-193).

33. Pretender inventar a moral seria algo ridículo; ver aqui não apenas o Prefácio à Fundação para a Metafísica dos Costumes (GMS, Ak 4, pp. 389-390), mas também a resposta de Kant a um dos seus críticos no Prefácio à Kritik der praktischen Vernunft (trad. fr., p. 6, nota 1). Segundo Weil, não se tratava para Kant de inventar a moral mas sim de extrair o sentido do fato da moralidade (Weil, 1982 [1963], pp. 57-107).

34. Ver Copleston, 1960, p. 113. Ver também Tugendhat, 1999, p. 139. 35. Ou seja, se o dever não é uma vã ilusão (leerer Wahn) e um conceito quimérico (chimärische Begriff), é

então “a simples conformidade à lei em geral [die blosse Gesetzmässigkeit überhaupt], o que serve de princípio à vontade e também o que tem de lhe servir de princípio” (GMS, Ak 4, p. 402). O conhecimento

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imperativo categórico, Kant afirma que quando ele pensa um imperativo categórico,

diferentemente do que quando ele pensa um imperativo hipotético em geral36, sabe logo o

que esse imperativo contém. Como além da lei prática (ou seja, do princípio objetivo,

válido para todo ser racional), o imperativo categórico “só contém a necessidade da máxima

[ou do princípio subjetivo para agir] ser conforme a essa lei”, e como a lei prática “não

contém nenhuma condição que a restringiria [keine Bedingung enthält, auf die es

eingeschränkt war]”, só resta então, conclui Kant, “a universalidade de uma lei em geral, a

que a máxima da ação deve ser conforme, e é só essa conformidade que o imperativo [o

imperativo incondicional] propriamente representa como necessária” (GMS, Ak 4, p.

420).37

Mas será que compreendemos a lei moral? O imperativo categórico ordena –é o

que mostra o seu mero conceito– conformidade das máximas à forma da lei. A estrita

universalidade serve, portanto, de critério à moralidade.38 A prova de universalização dá à

máxima sua significação especifica e é nessa universalização das máximas que reside o

formalismo de Kant.39 São excluídos aqui todos os candidatos ao título de obrigação que

não satisfazem a esse critério. As máximas que passam com sucesso a prova de

universalização são chamadas por Kant de deveres (Pflichten) (GMS, Ak 4, pp. 422-424 e

pp. 429-430). Esses deveres, observa Ricoeur, “não são deduzidos, no sentido lógico do

termo, mas derivados.” E a pluralidade dos deveres, diz ele, “resulta do fato de que é à

pluralidade das máximas, elas próprias respondendo a uma diversidade de situações, que a

moral comum da razão humana está perfeitamente de acordo com o que acaba de ser dito e, conclui Kant, “no exercício do seu ajuizamento prático, a razão comum dos homens (die gemeine Menschenvernunft) tem sempre diante dos olhos esse princípio” (GMS, Ak 4, p. 402).

36. Para saber o que é prescrito por um imperativo hipotético, segundo Kant, é preciso que a condição seja dada: “Quando eu penso um imperativo hipotético em geral, não sei, portanto, de antemão o que ele conterá, até que a condição me seja dada” (GMS, Ak 4, p. 420).

37. Para uma crítica desta conclusão de Kant, ver Tugendhat, 1999, pp. 145-149. 38. Kant apóia-se aqui na idéia de um caráter obrigatório sem restrição. Na primeira secção da Fundação

para a Metafísica dos Costumes, ao distinguir as ações conformes ao dever (pflichtmässig) por inclinação imediata (unmittelbare Neigung) das ações conformes ao dever feitas por dever (aus Pflicht), Kant já tinha dito que a moralidade não consiste na simples conformidade com o dever (ou legalidade); a moralidade significa uma ação conforme ao dever feita por dever, e a simples conformidade com o dever não tem valor moral próprio (ver GMS, Ak 4, pp. 397-399). Podemos também ler, na Introdução à Metafísica dos Costumes: “A conformidade de uma ação com a lei do dever é a legalidade (legalitas), a conformidade da máxima da ação com a lei do dever constitui sua moralidade (moralitas).” (Ak VI, p. 225).

39. Ver aqui Höffe, 1985, pp. 82-102.

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regra formal é aplicada. Uma certa produtividade do juízo moral é aqui evidenciada.”

(Ricoeur, 1990, p. 306).

O simples conceito de um imperativo categórico fornece, para Kant, a fórmula em

que esse imperativo é expresso:

“O imperativo categórico é, portanto, só um único, e é este: Age unicamente segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal [Handle nur nach derjenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, dass sie ein allgemeines Gesetz werde]” (GMS, Ak 4, p. 421).40

Mas não é dito nesta fórmula como se formam as máximas, isto é, como se formam

“as proposições de ação que dão um conteúdo à forma do dever”. Se todos os imperativos

do dever podem ser derivados (abgeleitet werden können) desse único imperativo, como de

seu princípio (als aus ihrem Prinzip), Kant pode então pelo menos mostrar o que pensamos

com aquilo a que se chama dever e o que esse conceito quer dizer (GMS, Ak 4, p. 421).

Trata-se, assim, de “provar que, se o dever é um conceito que deve ter uma significação

[Bedeutung] e conter uma legislação efetiva para nossas ações, esta [legislação] só pode ser

expressa em imperativos categóricos” (GMS, Ak 4, p. 425).41 Quanto à questão de saber

como o imperativo de moralidade, ou como esse dever categórico que representa uma

proposição (prática) sintética a priori é possível, e porque uma tal proposição é necessária,

ela só será abordada na terceira e última secção (Passagem da Metafísica dos Costumes

para a Crítica da Razão Prática Pura)42 da Fundação para a Metafísica dos Costumes. A

possibilidade do imperativo categórico coloca um problema singular, o da própria

possibilidade de um uso sintético da razão prática pura. A solução deste problema não

pode já encontrar-se, diz Kant, nos limites da Metafísica dos Costumes. Cabe à terceira

secção realizar a importante tarefa de provar a possibilidade de uma proposição prática

40. Na Crítica da Razão Prática, o único princípio da moralidade é enunciado por Kant como lei fundamental

da razão prática pura: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal [Handle so, dass die Maxime deines Willens jederzeit zugleich als Prinzip einer allgemeinen Gesetzgebung gelten könne]” (Kant, 1976 [1788], p. 30). Ver Marty, 1980, p. 256; e Tugendhat, 1999, pp. 148-149.

41. E de modo algum em imperativos hipotéticos, ou seja, em imperativos técnicos e pragmáticos, que subordinam o que eles comandam a um fim, como a uma condição.

42. Übergang von der Metaphysik der Sitten zur Kritik der reinen praktischen Vernunft (GMS, Ak 4, p. 446).

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sintética a priori (GMS, Ak 4, pp. 453-455).

As três formulações secundárias do imperativo categórico43 são, para Kant, três

maneiras (drei Arten) de se representar a lei moral, ou três fórmulas diferentes de uma só e

mesma lei, e se convém indicar uma diferença entre elas é “para aproximar (segundo uma

certa analogia) uma idéia da razão da intuição e, assim, do sentimento” (GMS, Ak 4, p.

436), ou seja, para “proporcionar à lei moral um acesso (...) e aproximá-la, assim, tanto

quanto possível, da intuição” (GMS, Ak 4, pp. 436-437). A aproximação da intuição

facilitaria a adoção da lei moral. O que a análise das três formulações secundárias do

imperativo categórico exibe, portanto, são as condições para adotar a lei moral ou para

proporcionar à lei moral seu acesso na vontade dos homens.44

Ao considerar agora as máximas, segundo a forma, a matéria e a determinação

completa que elas comportam, Kant afirma que a progressão se faz da “forma, que consiste

na universalidade”, à “matéria (isto é, um fim)”, e daí à “determinação completa de todas

as máximas”, com a noção de reino dos fins (GMS, Ak 4, p. 436). Ou dito de outro modo,

que um tal progresso (Fortgang) –uma progressão “meramente pedagógica ou psicagógica”

(Ricoeur 1990, p. 246)– se faz aqui, de certo modo segundo as categorias da quantidade

(unidade, pluralidade, totalidade), “da unidade da forma da vontade (de sua universalidade)

à pluralidade da matéria (dos objetos, isto é, dos fins) e à integralidade ou totalidade do

sistema dos mesmos.” (GMS, Ak 4, p. 436). Mas é unicamente “de certo modo”, insiste

Ricoeur, “que a unidade da forma é distinguida da pluralidade da matéria. Essa unidade

não é a de um ego solitário. É a da universalidade de querer, considerada nesse momento

abstrato onde ela ainda não se distribuiu entre a pluralidade das pessoas.” (Ricoeur, 1990, p.

246).

43. Não cabe aqui entrar na disputa sobre o número das formulações do imperativo categórico presentes na

Fundação para a Metafísica dos Costumes e sua articulação. Para a exposição clássica das várias formulações do imperativo categórico, ver Paton, 1947. Ver também Marty, 1980, pp. 254-276; e Guyer, 1995, pp. 353-385.

44. Mas, quando se trata do ajuizamento moral (sittlichen Beurteilung), é melhor, escreve Kant, “proceder sempre segundo o método estrito, e tomar por fundamento a fórmula universal do imperativo categórico: “Age segundo a máxima que pode ao mesmo tempo se transformar ela mesma em lei universal [Handle nach der Maxime, die sich selbst zugleich zum allgemeinen Gesetze machen kann]” (GMS, Ak 4, p. 436). Que temos de poder querer que uma máxima de nossa ação se torne uma lei universal, é este, afirma Kant, “o cânon do ajuizamento moral [der Kanon der moralischen Beurteilung].” (GMS, Ak 4, p. 424).

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A primeira formulação secundária do imperativo categórico (a fórmula da lei da

natureza) refere-se à forma das máximas, e como “a universalidade da lei segundo a qual

efeitos se produzem” constitui para Kant “o que se chama propriamente natureza no

sentido o mais geral (quanto à forma), isto é, a existência das coisas, enquanto é

determinada por leis universais”, trata-se então, para aproximar (segundo a analogia com

esse conceito de natureza) a idéia de lei moral da intuição45, de saber se a máxima de

nossas ações pode, uma vez convertida em lei, “lhes conferir uma existência de certo modo

objetiva e constituir com elas como uma ordem da natureza”. Ou seja, a fórmula da lei da

natureza diz que, para ser moralmente possível, a máxima da ação deve sustentar a prova da

universalidade de uma lei da natureza em geral: “Age de tal modo, como se a máxima de

tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza [Handle so, als

ob die Maxime deiner Handlung durch deinen Willen zum allgemeinen Naturgesetze

werden sollte]” (GMS, Ak 4, p. 421).46 Esta primeira analogia entre a lei moral e a lei da

natureza visa a acentuar a espécie ou o modo de regularidade que aproxima a legalidade do

reino moral da [legalidade] do reino físico.

A segunda fórmula (a fórmula do fim em si) considera nas máximas a sua matéria,

isto é, o ser racional (a pessoa) como fim em si, e enuncia que, como fim em si, o ser

racional tem de ser para toda máxima uma condição que sirva a restringir todos os fins

45. Ou, segundo Philonenko, “para tornar sensível (mais justamente compreensível) o imperativo categórico”

(Kant, 1980, p. 95, nota 83). 46. Ao tratar da “típica da faculdade de julgar prática pura [Typik der reinen praktischen Urteilskraft]”, no

segundo capítulo do Livro Primeiro da Crítica da Razão Prática, Kant retoma esta primeira formulação secundária do imperativo categórico. Para a sua aplicação (Anwendung) a ações enquanto fenômenos do mundo sensível, a lei moral recorre ao entendimento (Verstand) e não à faculdade da imaginação (Einbildungskraft). O entendimento, escreve Kant, “pode atribuir a uma idéia da razão, não um esquema da sensibilidade, mas uma lei, porém uma lei tal que, no entanto, possa ser apresentada in concreto a objetos dos sentidos, por conseqüência, uma lei da natureza, mas somente segundo sua forma, enquanto lei para a faculdade de julgar [als Gesetz zum Behuf der Urteilskraft], e a essa lei podemos chamar de tipo da lei moral. A regra da faculdade de julgar sob leis da razão prática pura é esta: Pergunta a ti mesmo se a ação que projetas, se ela devesse acontecer segundo uma lei da natureza da qual tu mesmo fosses uma parte, a poderias ainda considerar como possível por tua vontade. Segundo esta regra, efetivamente, qualquer um ajuíza [beurteilt] se as ações são moralmente boas ou más”. Se o entendimento não tivesse o tipo da lei moral sempre à mão, “ele não conseguiria, na aplicação, fazer uso da lei de uma razão prática pura” (Kant, 1976 [1788], pp. 71-72). No Prefácio à Fundação para a Metafísica dos Costumes, Kant já tinha dito que as leis morais “exigem ainda uma faculdade de julgar [Urteilskraft] afiada pela experiência, para, por um lado, distinguir em que casos elas têm sua aplicação e, por outro, proporcionar a essas leis seu acesso na vontade dos homens (...).” (GMS, Ak 4, p. 389).

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meramente relativos e arbitrários: “Age de tal modo, que trates a humanidade, tanto na tua

pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca

simplesmente como meio [Handle so, dass du die Menschheit, sowohl in deiner Person, als

in der Person eines jeden andern, jederzeit zugleich als Zweck, niemals bloss als Mittel

brauchest]” (GMS, Ak 4, p. 429). Esta segunda fórmula do imperativo categórico pode ser

vista como “a sede de uma tensão entre os dois termos-chave: o de humanidade e o de

pessoa como fim em si”, escreve Ricoeur:

“A idéia de humanidade, enquanto termo singular, é introduzida no prolongamento da universalidade abstrata que rege o princípio de autonomia, sem acepção das pessoas; por outro lado, a idéia das pessoas como fins em si exige que seja levada em conta a pluralidade das pessoas, sem contudo que se possa conduzir essa idéia até à de alteridade. Ora, toda a argumentação explícita de Kant visa a privilegiar a continuidade, assegurada pela idéia de humanidade, com o princípio de autonomia, à custa da descontinuidade inconfessada marcada pela introdução repentina da idéia de fim em si e das pessoas como fins em si.” (Ricoeur, 1990, pp. 258-259).

Para esclarecer essa tensão dissimulada na segunda formulação secundária do

imperativo categórico, Ricoeur apóia-se na Regra de Ouro (“Não faças a teu próximo o que

detestarias que te fosse feito”), e é o que lhe permite tratar este segundo imperativo

kantiano como a formalização da Regra de Ouro:

“O que Kant chama matéria ou pluralidade é exatamente esse campo de interação onde uma vontade exerce um poder-sobre uma outra e onde a regra de reciprocidade responde à dissimetria inicial entre agente e paciente. Aplicada a essa regra de reciprocidade que iguala agente e paciente, o processo de formalização tende a repetir, neste novo campo da pluralidade, a prova pela regra de universalização que tinha assegurado o triunfo do princípio de autonomia. É aqui que entra em jogo a noção de humanidade superposta à polaridade do agente e do paciente. A esse respeito, a noção de humanidade pode ser vista como a expressão plural da exigência de universalidade que presidia à dedução da autonomia e, portanto, como o desdobramento plural do próprio princípio de autonomia. Introduzida como termo mediador entre a diversidade das pessoas, a noção de humanidade tem como efeito atenuar, a ponto de evacuá-la, a alteridade que está na raiz desta própria diversidade e que a relação dissimétrica do poder de uma vontade sobre uma outra, à qual a Regra de Ouro faz face, dramatiza.” (Ricoeur, 1990, p. 259).47

47. Essa “intenção formalizante”, que é expressa pela idéia de humanidade, aparece claramente, escreve

Ricoeur, “quando medimos a distância que Kant toma com respeito à Regra de Ouro (a qual é, aliás, raramente citada por ele, e a cada vez com um certo desdém). Essa desconfiança explica-se pelo caráter imperfeitamente formal da Regra [de Ouro]. Esta pode sem dúvida ser considerada como parcialmente

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Segundo Ricoeur, não apenas a Regra de Ouro e o imperativo do respeito devido às

pessoas têm o mesmo terreno de exercício mas eles têm a mesma visada, a de “estabelecer

a reciprocidade lá onde reina a falta de reciprocidade”. A intuição da alteridade verdadeira

na própria raiz da pluralidade das pessoas volta a aparecer por detrás da Regra de Ouro, e é

desse modo, diz Ricoeur, que a segunda formulação secundária do imperativo categórico

recupera sua inteira originalidade48. Mas isto não é fazer violência ao texto kantiano? A

resposta de Ricoeur consiste em mostrar que os próprios textos da Fundação para a

Metafísica dos Costumes ratificam a originalidade que ele reivindica para a idéia de pessoa

como fim em si:

“A originalidade que reivindicamos para a idéia de pessoa como fim em si é ratificada pelos textos da Fundação para a Metafísica dos Costumes que dão uma “demonstração” independente da correlação entre pessoa e fim em si: “Supondo porém que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto, alguma coisa que, como fim em si, possa ser um fundamento [ein Grund] de leis determinadas, é então nessa coisa, e só nela, que estará o fundamento de um imperativo categórico possível, isto é, de uma lei prática. Ora digo eu: o homem e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si, e não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade; pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se referem a ele mesmo como nas que se referem a outros seres racionais, ele tem

formal, na medida em que ela não diz o que o outro gostaria ou detestaria que lhe fosse feito. Por outro lado, ela é imperfeitamente formal, na medida em que ela se refere ao gostar e ao detestar: ela introduz assim algo da ordem das inclinações. A prova de universalização opera aqui a pleno: ela elimina todo candidato que não passa o seu teste. (...) Amor e ódio são os princípios subjetivos de máximas que, enquanto empíricas, são inadequadas à exigência de universalidade. (...) a humanidade, considerada não no sentido extensivo ou enumerativo da soma dos humanos mas no sentido compreensivo ou a título de princípio [principiel] daquilo que torna digno de respeito, não é outra coisa senão a universalidade considerada do ponto de vista da pluralidade das pessoas: o que Kant chama “objeto” ou “matéria”. (...) a noção de pessoa enquanto fim em si vem equilibrar a [noção] de humanidade, na medida em que ela introduz, na própria formulação do imperativo, a distinção entre “tua pessoa” e “a pessoa de qualquer outro”. Somente com a pessoa vem a pluralidade. Essa tensão sutil no interior de uma fórmula que parece homogênea fica dissimulada pelo fato de que a prova de universalização (...) prossegue com a eliminação da máxima oposta: nunca tratar a humanidade simplesmente como um meio. (...) Algo de novo é dito quando as noções de “matéria”, de “objeto” do dever são identificadas com as de fim em si. O novo que é dito aqui, é exatamente o que a Regra de Ouro enunciava no plano da sabedoria popular, antes de ter passado pelo crivo da crítica. Pois é a sua intenção profunda que acaba sendo aqui esclarecida e purificada. O que é, com efeito, tratar a humanidade na minha pessoa e na de outrem como um meio, senão exercer sobre a vontade de outrem esse poder que, cheio de moderação na influência, se desencadeia em todas as formas da violência e culmina na tortura? E o que dá ocasião a esse desenvolvimento gradual da violência do poder exercido por uma vontade sobre uma outra, senão a dissimetria inicial entre o que um faz e o que é feito ao outro?” (Ricoeur, 1990, pp. 259-261).

48. Ver Ricoeur, 1990, p. 262.

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sempre de ser considerado ao mesmo tempo como fim” (GMS, Ak 4, p. 428). Um estranho paralelismo é assim criado entre o princípio de autonomia e o do respeito das pessoas; não mais no plano dos conteúdos, mas no plano da “demonstração”. É da mesma maneira que se atestam diretamente a autonomia e a noção de pessoa como fim em si. (...) a moral existe porque a pessoa ela mesma existe (existiert) como fim em si. Dito de outro modo, sempre soubemos a diferença entre a pessoa e a coisa: podemos conseguir a segunda, trocá-la, usá-la; a maneira de existir, para a pessoa, consiste justamente em que ela não pode ser obtida, utilizada, trocada. A existência tem aqui um caráter ao mesmo tempo prático e ontológico: prático, neste sentido de que é na maneira de agir, de tratar o outro, que se verifica a diferença entre os modos de ser; ontológico: neste sentido de que a proposição “a natureza racional existe com fim em si” é uma proposição existencial. (...) Essa proposição, que se pode dizer de natureza ôntico-prática, impõe-se sem intermediário. É claro que se poderá objetar que esta proposição encontra-se na segunda secção da Fundação... , portanto, antes da conjunção operada na terceira secção entre o mundo noumenal e a liberdade prática; e é por isso que Kant observa em nota: “Esta proposição, eu a enuncio aqui como um postulado. Na última secção encontraremos as razões [die Gründe] em que se apóia” (GMS, Ak 4, p. 429). Mas a pertença dos seres racionais a um mundo inteligível, não sendo o objeto de nenhum conhecimento, não acrescenta nenhum complemento à conjunção aqui postulada entre o estatuto de pessoa e a existência como fim em si: “Ao se introduzir assim pelo pensamento em um mundo inteligível, a razão prática não ultrapassa em nada seus limites; ela só ultrapassaria esses limites se ela quisesse, ao entrar nesse mundo, intuir-se, sentir-se [wenn sie sich hineinschauen, hineinempfinden wollte]” (GMS, Ak 4, p. 458).” (Ricoeur, 1990, pp. 262-263).

Mas, pergunta ainda Ricoeur, será que Kant conseguiu distinguir, no próprio plano

deontológico em que se encontra, o respeito devido às pessoas da autonomia? E ele

responde:

“Sim e não. Sim, na medida em que a noção de existir como fim em si permanece distinta da noção de dar-se a si mesmo uma lei; conseqüentemente, a pluralidade, que faltava à idéia de autonomia, é introduzida diretamente com a de pessoa com fim em si. Não, uma vez que, em expressões tais como “o homem”, “todo ser racional”, “a natureza racional”, a alteridade é como que impedida de se desenvolver pela universalidade que a encerra, pelo viés da idéia de humanidade.” (Ricoeur, 1990, p. 263).

O que Ricoeur queria, portanto, mostrar é que o respeito devido às pessoas não

constitui um princípio moral heterogêneo em relação à autonomia prática, mas, ao

contrário, desdobra ou desenvolve, no plano da obrigação, a sua estrutura dialógica

implícita.

A própria idéia de pessoa como fim em si está internamente relacionada com a idéia

de um reino dos fins:

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“(...) todo ser racional considerado com fim em si tem de poder considerar-se, com respeito a todas as leis a que possa estar submetido, ao mesmo tempo como autor de uma legislação universal [als allgemein gesetzgebend], porque precisamente esta apropriação de suas máximas para constituir uma legislação universal é o que o distingue com fim em si; segue-se igualmente que a sua dignidade (prerrogativa), acima de todos os simples seres naturais, tem como conseqüência o haver de tomar sempre as suas máximas do ponto de vista de si mesmo, mas ao mesmo tempo também do ponto de vista de todos os outros seres racionais considerados como legisladores (os quais por isso se chamam também pessoas). Ora desta maneira um mundo de seres racionais (mundus intelligibilis), considerado como reino dos fins, é possível, e isto graças à própria legislação de todas as pessoas como membros [de um tal reino].” (GMS, Ak 4, p. 438).

A terceira fórmula (a fórmula do reino dos fins) considera, com a idéia de um reino

dos fins, a determinação completa de todas as máximas, e enuncia “que todas as máximas,

que derivam da legislação própria [de todo ser racional considerado com fim em si], devem

concorrer para um reino possível dos fins, como um reino da natureza [alle Maximen aus

eigener Gesetzgebung zu einem möglichen Reiche der Zwecke als einem Reiche der Natur

zusammenstimmen sollen]” (GMS, Ak 4, p. 436). Sob esta última fórmula, o imperativo da

moralidade ordena agir “segundo máximas de um membro que institui uma legislação

universal para um reino dos fins simplesmente possível [Handle nach Maximen eines

allgemein gesetzgebenden Gliedes zu einem bloss möglichen Reiche der Zwecke]”; e, por

conseguinte, “todo ser racional tem de agir de tal modo, como se fosse sempre por suas

máximas um membro legislador no reino universal dos fins [Demnach muss ein jedes

vernünftiges Wesen so handeln, als ob es durch seine Maximen jederzeit ein

gesetzgebendes Glied im allgemeinen Reiche der Zwecke wäre].” (GMS, Ak 4, pp. 438-

439). Toda uma política está implicada aí, escreve Ricoeur, uma política “que, através do

direito, conduz a uma teoria do Estado, e enfim da paz.” (Changeux e Ricoeur, 1998, pp.

245-246). A terceira formulação secundária do imperativo categórico pode então ser

interpretada como a fórmula geral das relações de cidadania num Estado de direito (um

Estado constitucional).

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Kant termina a segunda secção da Fundação para a Metafísica dos Costumes por

onde tinha começado na primeira secção, ou seja, pelo conceito de uma vontade boa49. A

vontade absolutamente boa acaba sendo igualada por Kant, no término da estratégia

progressiva de depuração, de exclusão, que caracteriza o estilo de uma moral da obrigação,

à vontade autolegisladora, segundo o princípio supremo de autonomia.50

A simples análise dos conceitos da moralidade mostra que o princípio da

autonomia –“não escolher senão de modo a que as máximas de sua escolha estejam

incluídas ao mesmo tempo, no querer mesmo, como lei universal [nicht anders zu wählen

als so, dass die Maximen seiner Wahl in demselben Wollen zugleich als allgemeines Gesetz

mit begriffen seien]” (GMS, Ak 4, p. 440)– é o único princípio da moral. Mas que essa

regra prática seja um imperativo, ou seja, “que a vontade de todo ser racional esteja

necessariamente ligada a ela como condição”, isso, diz Kant, “não pode ser demonstrado

pela simples análise dos conceitos nela contidos, pois se trata de uma proposição sintética,

49. A primeira secção da Fundação para a Metafísica dos Costumes foi considerada por muitos como “uma

obra-prima de construção reflexiva”: de uma única afirmação, a de que só uma vontade boa é boa sem restrição, com a qual Kant abre, de modo dramático, sem qualquer preâmbulo, o primeiro parágrafo [“Não é possível em geral pensar [denken] nada no mundo...” ] –e que é modificada no parágrafo 8 [é nesse parágrafo que Kant, ao colocar o conceito do dever no lugar do conceito de uma vontade boa (porque esse conceito contém, diz ele, “o conceito de uma vontade boa, se bem que sob certas restrições e entraves subjetivos”) se prepara para o procedimento analítico propriamente dito]–, ele desenvolve analiticamente três proposições nos parágrafos seguintes (parágrafos 9-16), três proposições das quais resulta, também analiticamente, no parágrafo 17, a pretensão do imperativo categórico (trata-se de compreender que lei é essa, cuja mera representação tem de determinar a vontade, para que esta possa ser chamada de boa absolutamente e sem restrição). É unicamente a conformidade universal das ações em geral à lei [die allgemeine Gesetzmässigkeit der Handlungen überhaupt], diz Kant, que deve servir de princípio à vontade. O princípio do dever –“que eu não devo nunca me comportar de modo outro que eu também não possa querer que a minha máxima deva tornar-se uma lei universal [ich soll niemals anders verfahren als so, dass ich auch wollen könne, meine Maxime solle ein allgemeines Gesetz werden]”– é já, claramente uma maneira de formular o que Kant chama de imperativo categórico. Se o dever não é uma vã ilusão (leerer Wahn) e um conceito quimérico, “é então a simples conformidade à lei em geral [die blosse Gesetzmässigkeit überhaupt] que serve de princípio à vontade e também que tem de lhe servir de princípio” (GMS, Ak 4, p. 402). O conhecimento moral da razão comum dos homens (der moralischen Erkenntnis der gemeinen Menschenvernunft) está perfeitamente de acordo com o que acaba de ser dito, observa Kant, e a razão comum dos homens, no seu ajuizamento prático, tem sempre diante dos olhos esse princípio (GMS, Ak 4, p. 402). Mas será que já podemos dizer que, nesta primeira secção, Kant teria logrado derivar o imperativo categórico da simples afirmação, tirada do conhecimento moral comum da razão, que a vontade é a única coisa que pode ser boa sem restrição? Podemos considerar toda a argumentação de Kant, e é o que faz, por exemplo, Tugendhat, como uma “simples antecipação de um argumento que Kant acreditava poder apresentar somente com a ajuda do conceito de razão prática na Segunda Secção” (Tugendhat, 1999, pp. 111-139).

50. Ver Ricoeur, 1990, p. 241.

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(...) que ordena apodicticamente (...). Este assunto, contudo, não cabe na presente secção.”

(GMS, Ak 4, p. 440).

Pronunciar o termo de autonomia é, segundo Ricoeur, “pôr a determinação mútua

da norma e do sujeito obrigado”. Em 2000, no seu ensaio “De la morale à l’éthique et aux

éthiques”, Ricoeur retoma a outra vertente do normativo, a saber, a posição de um sujeito

de obrigação, um sujeito obrigado. A idéia de norma é inseparável da idéia de um sujeito

capaz de afirmar-se, de se pôr ele mesmo: “A moral não pressupõe nada mais que um

sujeito capaz de se pôr pondo a norma que o põe como sujeito.” (Ricoeur, 2000, p. 107). A

questão que surge agora é a da ligação entre a idéia de considerar alguém como o autor de

uma ação e a de colocar essa ação sob a obrigação. No fundo, esclarece Ricoeur, isso seria

o sentido da operação sintética operada por Kant na idéia de autonomia que une auto a

nomos, o “Si-autor” à “lei que obriga”. Ricoeur quer mostrar o lugar onde coincidem a

força dessa ligação e a vulnerabilidade que impõe à idéia de autonomia ocupar as duas

posições, aparentemente contrárias, de pressuposição e de fim a atingir, de condição de

possibilidade e de tarefa. Kant se limitou, segundo ele, a considerar essa ligação como um

juízo (prático) sintético a priori, acrescentando no entanto que a consciência que temos

dessa ligação é um fato da razão, ou seja, um dado irredutível da experiência moral. É na

Crítica da Razão Prática, que Kant introduz a ligação decisiva, a ligação entre liberdade e

lei, em virtude da qual a liberdade constitui a condição existencial da lei e a lei a condição

de inteligibilidade da liberdade.51 Somente agora, liberdade e imputabilidade coincidem. A

moral, conclui Ricoeur, “só requer no mínimo a posição mútua da norma como ratio

cognoscendi do sujeito moral e a imputabilidade como ratio essendi da norma.” (Ricoeur,

2000, p. 107).

Mas a autonomia é sempre a autonomia de um ser vulnerável, frágil. A

vulnerabilidade ou fragilidade seria apenas uma patologia, se ela não fosse a fragilidade de

um ser chamado a tornar-se autônomo, porque ele o é de um certo modo desde sempre.

51. “Para que não se imagine encontrar aqui inconseqüências, quando agora denomino a liberdade condição

da lei moral e depois, no tratado, afirmo que a lei moral seja a condição sob a qual primeiramente podemos tornar-nos conscientes da liberdade, quero apenas lembrar que a liberdade é, certamente, a ratio essendi da lei moral, mas que a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade.” (Kant, 1976, [1788], p. 6, nota 2).

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Esse seria para Ricoeur o paradoxo da autonomia e da fragilidade.52

ABSTRACT: This paper aims to elucidate how Kant conceives freedom as “absolute spontaneity” or “absolute self-activity [absolute Selbsttätigkeit]” and as “self-determination [Selbstbestimmung]”, by making reference to the two paths of freedom in his work – freedom as a kind of causality in the world (freedom in the cosmological sense, or transcendental freedom) and freedom as the exclusive privilege of man as a rational being (freedom in the practical sense, or practical freedom). KEY-WORDS Transcendental freedom; absolute spontaneity; practical freedom; practical reason; categorical imperative; autonomy of the will.

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