psicologia de massas e análise do zumbi: da sugestão ao contágio

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Blog Geração Zumbi: hp://geracao-zumbi.blogspot.com.br/ 1 Psicologia de Massas e Análise do Zumbi: da sugestão ao contágio Phillip Mahoney * Tradução: Rodrigo Belinaso Guimarães O espírito de massa cresce e se expande a partir de cada inclusão de um novo membro humano. Como um canibal, ele se alimenta de seres humanos. - Boris Sidis A realização de uma Festa do Imaginário ocorre na formação – uma formação contagiosa – de um plano de coerência onde amigos e inimigos podem livremente disporem de si mesmos e se fazerem inteligíveis uns aos outros. - Tiqqun Zumbis e Multidões Na atualidade, a íntima conexão entre zumbis e multidões se manifesta tanto nos filmes de zumbis quanto nos discursos populares da psicologia de massas. Uma vez que George Romero pavimentou a associação até então inexistente entre hordas de zumbis com multidões ensandecidas, se tornou comum nos filmes de zumbis a utilização de imagens de públicos hipnotizados, de fugas em massa e de protestos políticos, muitas vezes até mesmo em suas cenas de abertura, tal como em 28 Days Later (2002) 1 e na regravação de Dawn of the Dead 2 (2004) de Zack Snyder. Além disso, possivelmente como resultado da intervenção revolucionária de Romero nos filmes de zumbis, críticos culturais em geral empregam uma retórica zumbificante quando descrevem multidões como autômatos hipnotizados e como facilmente manipuladas por aqueles que estão no poder. 3 Em outras palavras, nos dias atuais, comparar massas e multidões com zumbis é uma prática massiva e não um rito exclusivo da elite intelectual. Dessa forma, a própria capilaridade deste entrelaçamento retórico por conta de sua lógica aparentemente intuitiva ameaça naturalizá-lo, obscurecendo suas contingências históricas. Para piorar, na atualidade, a comparação rápida e irrefletida entre zumbis e multidões é quase sempre pejorativa. Assim, a releitura dos discursos da antiga psicologia das multidões nos permitirá revelar aspectos cruciais do processo pelo qual estes dois personagens, zumbis e multidões, foram unificados na consciência ocidental contemporânea. Esta retomada também nos ajudará a construir * Doutorando da Temple University, onde estuda representações sobre coletivos na literatura americana. 1 28 Days Later , DVD, dirigido por Danny Boyle (Londres: DNA Films, 2002). 2 Dawn of the Dead, DVD, dirigido por Zack Snyder (Universal City, CA: Universal Studios, 2004). 3 Uma simples pesquisa no Google é suficiente para ilustrar esse aspecto. Um artigo no site Kill Your Television fala da criação de “zumbis das redes”, enquanto, em um debate com Bill O'Reilly, Glenn Beck fatidicamente refere-se aos seus próprios espectadores como zumbis. No CSRwire, John Rooks diagnostica o “consumismo zumbi” e, finalmente, um novo livro conservador alerta contra aquilo que o autor chama de “Zumbis do Obama”. Ver Ron Kaufman, “The Creation of Network Zombies,” Kill Your Television, 1997, http://www.turnoffyourtv.com/ commentary/network.zombies.html; Foster Kamer, “Bill O'Reilly Calls Glenn Beck Insane, Glenn Beck Calls his Viewers 'Zombies,'” Gawker , 25 de Agosto, 2009, http://gawker.com/5378821/bill-oreilly-calls-glenn-beck-insane- glenn-beck-calls-his-viewers-zombies; John Rooks, “Zombie Consumerism,” CSRwrite, 29 de Setembro, 2009, http://www.csrwire.com/csrlive/commentary_detail/1179-Zombie-Consumerism; Jason Mattera, Obama Zombies: How the Liberal Machine Brainwashed My Generation (New York: Threshold, 2010).

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Blog Geração Zumbi: http://geracao-zumbi.blogspot.com.br/ 1

Psicologia de Massas e Análise do Zumbi: da sugestão ao contágio

Phillip Mahoney*

Tradução: Rodrigo Belinaso Guimarães

O espírito de massa cresce e se expande a partir de cada inclusão de um novo membro humano. Como um canibal, elese alimenta de seres humanos.

- Boris Sidis

A realização de uma Festa do Imaginário ocorre na formação – uma formação contagiosa – de um plano de coerênciaonde amigos e inimigos podem livremente disporem de si mesmos e se fazerem inteligíveis uns aos outros.

- Tiqqun

Zumbis e Multidões

Na atualidade, a íntima conexão entre zumbis e multidões se manifesta tanto nos filmes de

zumbis quanto nos discursos populares da psicologia de massas. Uma vez que George Romero

pavimentou a associação até então inexistente entre hordas de zumbis com multidões ensandecidas,

se tornou comum nos filmes de zumbis a utilização de imagens de públicos hipnotizados, de fugas

em massa e de protestos políticos, muitas vezes até mesmo em suas cenas de abertura, tal como em

28 Days Later (2002)1 e na regravação de Dawn of the Dead2 (2004) de Zack Snyder. Além disso,

possivelmente como resultado da intervenção revolucionária de Romero nos filmes de zumbis,

críticos culturais em geral empregam uma retórica zumbificante quando descrevem multidões como

autômatos hipnotizados e como facilmente manipuladas por aqueles que estão no poder.3 Em outras

palavras, nos dias atuais, comparar massas e multidões com zumbis é uma prática massiva e não um

rito exclusivo da elite intelectual.

Dessa forma, a própria capilaridade deste entrelaçamento retórico por conta de sua lógica

aparentemente intuitiva ameaça naturalizá-lo, obscurecendo suas contingências históricas. Para

piorar, na atualidade, a comparação rápida e irrefletida entre zumbis e multidões é quase sempre

pejorativa. Assim, a releitura dos discursos da antiga psicologia das multidões nos permitirá revelar

aspectos cruciais do processo pelo qual estes dois personagens, zumbis e multidões, foram

unificados na consciência ocidental contemporânea. Esta retomada também nos ajudará a construir

* Doutorando da Temple University, onde estuda representações sobre coletivos na literatura americana.1 28 Days Later, DVD, dirigido por Danny Boyle (Londres: DNA Films, 2002).2 Dawn of the Dead, DVD, dirigido por Zack Snyder (Universal City, CA: Universal Studios, 2004).3 Uma simples pesquisa no Google é suficiente para ilustrar esse aspecto. Um artigo no site Kill Your Television fala dacriação de “zumbis das redes”, enquanto, em um debate com Bill O'Reilly, Glenn Beck fatidicamente refere-se aos seuspróprios espectadores como zumbis. No CSRwire, John Rooks diagnostica o “consumismo zumbi” e, finalmente, umnovo livro conservador alerta contra aquilo que o autor chama de “Zumbis do Obama”. Ver Ron Kaufman, “TheCreation of Network Zombies,” Kill Your Television, 1997, http://www.turnoffyourtv.com/commentary/network.zombies.html; Foster Kamer, “Bill O'Reilly Calls Glenn Beck Insane, Glenn Beck Calls hisViewers 'Zombies,'” Gawker, 25 de Agosto, 2009, http://gawker.com/5378821/bill-oreilly-calls-glenn-beck-insane-glenn-beck-calls-his-viewers-zombies; John Rooks, “Zombie Consumerism,” CSRwrite, 29 de Setembro, 2009,http://www.csrwire.com/csrlive/commentary_detail/1179-Zombie-Consumerism; Jason Mattera, Obama Zombies: Howthe Liberal Machine Brainwashed My Generation (New York: Threshold, 2010).

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um vocabulário que explore os aspectos positivos desta identificação.

Sendo assim, eu começarei indicando alguns dos pontos mais visíveis da convergência entre

os mitos zumbis com a psicologia das multidões, para enfim, focar minha análise no uso de dois

conceitos centrais da antiga psicologia das multidões que também podem ser visualizados nos

filmes de zumbis: sugestão e contágio. Meu argumento é que no curso das mudanças históricas nos

filmes de zumbis, o zumbi sofreu uma transição de uma criatura sugestionável para uma contagiosa.

Ao ler o ambiente ficcional dos filmes de zumbis acompanhado do discurso “científico” da

psicologia das multidões prometo fazer mais do que simplesmente expandir nosso conhecimento

das trivialidades destes filmes. Assim, procurarei demonstrar como os filmes de zumbis podem

oferecer modos de se refletir sobre alguns dos impasses clássicos da psicologia das multidões e

sobre as teorias da ação coletiva. Minha argumentação não aponta simplesmente para o fato de que

os críticos de filmes de zumbis deveriam estudar melhor psicologia das multidões, mas ao contrário,

os psicólogos das multidões prestam a eles mesmos um grande desserviço ao ignorarem os mitos da

cinematografia zumbi.

Crucial a esse respeito é o meu argumento de que o deslocamento da lógica da sugestão para

a do contágio indica uma concomitante substituição da figura do líder tirânico em favor de uma

relação horizontal e coletiva entre membros iguais. Lido deste modo, a típica visão distópica da

coletividade zumbi passaria por uma reformulação utópica. O zumbi, eu argumento, é um poderoso

personagem das multitudes, uma vez que desafia o nosso imaginário sobre a vida coletiva, não

através de conceitos humanísticos e psicológicos de simpatia e identificação, mas através de termos

ligados àquilo que o coletivo radical francês Tiqqun chama de “formação contagiosa.”4

A psicologia das multidões não se tornou um discurso amplamente conhecido até a

publicação em 1895 de The Crowd do sociólogo conservador francês, Gustave Le Bon. Enquanto

outros escritores tinham refletido sobre as multidões desde o início daquele século, ironicamente, a

crítica mordaz de Le Bon às multidões foi a mais acessível à massa de leitores. Anunciando o

despertar de uma nova “era das multidões” na civilização ocidental,5 o trabalho de Le Bon

lastimava o inevitável deslocamento do “direito divino dos reis” para o “direito divino das massas”

e previa nada menos do que a completa destruição da sociedade.6

4 Tiqqun, Introduction to Civil War, trad. por Alexander R. Galloway and Jason E. Smith (Los Angeles: Semiotext(e),2010), 179. O coletivo anônimo Tiqqun está muito provavelmente conectado aos autores do The Coming Insurrection(2009), um livro atribuído ao igualmente obscuro Invisible Committee, que ganhou alguma atenção nos EUA depois deser negativamente criticado por Glenn Beck em seu programa. Para mais informações, ver Judith Rosen, “Glenn beckHelps Turn Anarchist Book into Bestseller,” Publishers Weekly, 18 de Fevereiro, 2010, acessado em 8 de junho, 2010,http://www.publishersweekly.com/pw/by-topic/industry-news/publisher-news/article/42133-glen-beck-helps-turn-anarchist-book-into-bestseller.html; Alberto Toscano, “The Story of the Tarnac 9,” Organic Consumers Association, 11de janeiro, 2009, acessado em 8 de junho, 2010, http://www.organic-consumers.org/articles/article_19366.cfm.5 Gustave Le Bon, The Crowd: A Study of Popular Mind (Mineola, NY: Dover, 2002), x. Originalmente publicado em 1895 como Le psychologie des foules.6 Ibid., xi.

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No ano seguinte, The Crowd foi traduzido para o inglês e se tornou disponível nos EUA,

onde influenciou uma série de sociólogos, tal como Franklin Giddings, Boris Sidis, James Mark

Baldwin e Edward Ross,7 muitos dos quais escreviam em publicações populares tais como The

Atlantic Monthly e The Popular Science Mouthly. Apesar do fin-de-siècle nos EUA ter sido

caracterizado por greves de trabalhadores, linchamentos e aglomerações urbanas, a “multidão” se

tornaria uma figura retórica para estes escritores, principalmente, porque ela oferecia a possibilidade

de um melhor entendimento das mais amplas e mais abstratas coletividades, particularmente o

público nacional de eleitores.8 Nesse sentido, o termo “psicologia das multidões” é de algum modo

impróprio, tal como o de “multidão”, pois na maioria das vezes é usado, não para um agregado de

corpos fisicamente próximos, mas para virtualmente toda e qualquer forma de coletividade humana

concebível: raça, classe, públicos, nações e telespectadores.

Em geral, por causa de sua inclinação conservadora, a antiga psicologia das multidões

assumiu muitas vezes um estilo apocalíptico e um tom que antecipou as representações de grandes

invasões zumbi. A maior parte dos escritores concordou com Le Bon, ou seja, a supremacia das

multidões representava uma terrível ameaça, senão como no caso de Le Bon, para a sociedade

aristocrática, ao menos para a sociedade democrática organizada. A psicologia das multidões

formulou a noção de multidão combinando os discursos da criminologia italiana, da psiquiatria

francesa e da biologia evolucionista. Nas palavras de Boris Sidis, tal qual um legítimo “demônio

dos demônios” capaz de arrastar “o corpo político em direção a convulsões de fúria demoníaca.”9

Ao fim, filmes de zumbis posteriores, particularmente, The Last Man on Earth (1964),10 tornariam

literárias as noções metafóricas de Sidis sobre o corpo político possuído por demônios.

Talvez seja este medo subjacente das multidões que inspirava os excessos discursivos

encontrados nos trabalhos dos antigos psicólogos das multidões. Em seus esforços para

compreender a multiplicidade caótica das multidões, não foi suficiente para Le Bon comparar a

multidão com “mulheres, selvagens e crianças”11; ele precisa se valer também de metáforas com

células,12 animais,13 engrenagens14 e bactérias15. Então, quando Le Bon atribui à multidão uma

tendência de associar “coisas dessemelhantes que possuem uma conexão meramente aparente,”16 ele

estaria simplesmente externando seus próprios pensamentos em relação ao fenômeno. O próprio7 Ericka G. King, “Reconciling Democracy and the crowd in Turn-of-the- Centary American Social-Psychological Thought,” Journal of the History of the Behavioral Sciences 26 (Fevereiro 1990): 334.8 Ibid., 338.9 Boris Sidis, The Psychology of Suggestion: A Research into the Nature of Man and Society (New York, Appleton, 1898), 313.10 The Last Man on Earth, DVD, dirigido por Ubaldo Ragona (1964; Los Angeles: 2007).11 Le Bon, The Crowd, 10.12 Ibid., 4, 72.13 Ibid., 78.14 Ibid., 8.15 Ibid., 78.16 Ibid., 34.

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conceito de multitude parece encorajar uma superprodução retórica, como se nenhuma simples

metáfora, alusão ou definição pudesse representá-la.

A este respeito, não é incomum os antigos analistas das multidões invocarem o sublime

imaginário da natureza para ajudá-los a representar aos seus leitores a incipiente imagem da

multidão. Le Bon descreve o indivíduo na multidão como um “grão de areia entre outros grãos de

areia, que o vento agita a vontade.”17 Em seu ensaio de 1897 publicado na Popular Science Monthly,

intitulado “The Mob Mind,” Edward Ross recorre ao imaginário marítimo para ilustrar a volúvel

mentalidade das massas norte-americanas, as quais “estão à deriva sem leme ou âncora” em

“ondas” e em “correntes de opinião.”18 Enquanto isso, para Boris Sidis, “a turba é como uma

avalanche, quanto mais se movimenta, cresce e se torna mais ameaçadora e perigosa.”19 A ameaça

dos muitos pressiona as fronteiras da representação linguística, indeterminando o discurso

presumivelmente racional e científico da psicologia das multidões, revelando, em vez disso, ser

motivado por uma mistura complexa de fascinação e horror.

Esta discursividade excessiva da antiga psicologia das multidões se tornaria, posteriormente,

o próprio substrato e ponto focal dos filmes de zumbis, os quais muitas vezes retratam hordas

fluindo em massivas e incontáveis marés na paisagem urbana. Conforme Christian Thorne observa:

“Filmes de zumbis estão sempre narrando multidões.”20 Zumbis cinematográficos são criaturas

grupais, inexpressivas individualmente, mas perigosas em grande número. Dessa forma, é

relativamente fácil para um não infectado rechaçar um único zumbi, mas por causa de sua

persistência lenta e arrastada, uma multidão de zumbis é normalmente fatal. Em geral, o zumbi

cinematográfico permanece perdido no anonimato da multitude, assim, nós raramente nos

identificamos com algum ou mesmo lembramo-nos de algum em particular. Esta é talvez uma das

mais óbvias e mais importantes diferenças entre os zumbis e outros monstros clássicos do horror. Os

zumbis individuais/protagonistas de filmes como Deathdream (1972)21 e I, Zombie: The Chronicles

of Pain (1998)22 são, neste aspecto, meras exceções que confirmam a regra. Muito mais comum na

atualidade são as hordas vastas e pulsantes, cujo número frustra qualquer tentativa dos expectadores

em perceberem uma totalidade reconhecível por fervilharem para além das bordas da tela do

cinema.

Entretanto, como outros críticos têm notado, o zumbi cinematográfico é literal e

figurativamente múltiplo, significando números stricto sensu e um conjunto de ansiedades

17 Ibid., 8.18 Edward A. Ross, “The Mob Mind,” Popular Science Monthly 51 (1897): 397.19 Boris Sidis, The Psychology of Suggestion, 303.20 Christian Thorne, “The Running of the Dead,” Commonplace Book, 24 de julho, 2010, http://people.williams.edu/ cthorne/articles/the-running-of-the-dead-part-1/.21 Deathdream, DVD, dirigido por Bob Clark (1972; West Hollywood: 2004).22 I, Zombie: The Chronicles of Pain, DVD, dirigido por Andrew Parkinson (Miami: 1998).

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politicamente carregadas.23 Kyle Bishop vê o ressurgimento recente do zumbi nos cinemas como

uma expressão do medo largamente difundido de ataques terroristas.24 Em relação aos primeiros

filmes de zumbis, Bishop argumenta que referem-se a ansiedades culturais profundamente

segmentadas, tal como: “a dominação patriarcal dos brancos, a misógina ameaça da mulher, o

colapso da família nuclear e a violência não controlada da Guerra do Vietnã.”25 Adiciona-se a esta

lista dificilmente exaurida de metáforas relacionadas aos zumbis: ameaças ambientais e nucleares,

doenças (particularmente a AIDS) e, obviamente, revoltas de massa. Estas ameaças, apesar de

apresentarem inconsistências lógicas e contradições, são capazes de descrever uma vastidão de

perigos.

Tal sobredeterminação metafórica dos zumbis a das multidões gera uma confusão

considerável quando se trata de definir o objeto em questão. Desse modo, nos discursos que

envolvem estas figuras encontra-se a preocupação com distinções classificatórias que raramente

fazem mais do que realçar a futilidade de tal esforço.26 Em vez de adentrar em tais debates, talvez

seja mais proveitoso determinar o que a falta de um esquema classificatório inflexível poderia nos

dizer sobre zumbis e multidões. É possível, em outras palavras, ver a própria ausência de uma única

característica determinante como o aspecto mais saliente, positivo, dos zumbis e das multidões.27

O excesso que se encontra em referência aos zumbis e coletivos, aos quais metáforas e

figuras de linguagem são empilhadas desordenadamente umas sobre as outras, constitui somente um

dos lados de uma aparentemente contraditória estratégia de representação. Embora o primeiro

aspecto que os escritores tendem a perceberem sobre as multidões e os zumbis seja esta sublime

qualidade de receberem diferentes interpretações. Eu argumentaria que tal sobredeterminação é, de

fato, o efeito de uma primordial ausência de conteúdo ou o efeito de um vazio constitutivo. Como

figuras do múltiplo, zumbis e multidões, confrontam-nos primeiramente com uma sinistra ausência

de características essenciais, sobre a qual nós somos então compelidos a preencher com conteúdos.

23 Kyle William Bishop, American Zombie Gothic: The Rise and Fall (and Rise) of the Walking Dead in Popular Culture (Jefferson: McFarland, 2010), 95.24 Ibid., 11.25 Ibid., 95.26 Embora admita que a “substancial sobreposição entre os vários monstros do cinema evita a possibilidade de umacompleta e abrangente definição de um zumbi,” Peter Dendle decide “limitar (sua) cobertura para os filmes em que ascriaturas são, na verdade, corpos revividos ou são explicitamente nomeadas como zumbis.” Peter Dendle, The ZombieMovie Encyclopedia (Jefferson, NC: McFarland, 2001), 13. Infelizmente, como o próprio Dendle salienta, istodesqualifica muitos filmes com criaturas que “exibem grande parte dos traços familiares, mas não são, verdadeiramente,corpos reanimados.” Ibid., 13. No caso da literatura sobre multidão, encontra-se um esforço similar para se distinguirentre plebe, desordeiros, massas, públicos, etc. Canetti segue o impulso classificatório o mais longe possível,distinguindo entre “massas de acossamento,” “massas de fuga,” “massas de proibição,” “massas de inversão,” e “massasfestivas.” Elias Canetti, Crowds and Power, trad. Carol Stewart (New York: Farrar, Straus and Giroux, 1962), 48.Talvez, a definição arbitrária de Mills seja mais reveladora: “Como uma regra, quando eu descrevo uma multidão euquero dizer um amontoado que não cabe em uma sala, mas pode, de outro modo, estar agrupado em uma praça.”Nicolaus Mills, The Crowd in American Literature (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1986), 9.27 Em relação a ideia de que a indeterminação pode ser uma característica positiva para a organização coletiva, estou emdébito para com a concepção pós-estruturalista de “populismo” de Ernesto Laclau. Ernesto Laclau, On Populist Reason(Londres: Verso, 2005). Ver, em particular, o capítulo 4, “The 'People' and the Discursive Production of Emptiness.”

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No caso da multidão, é o psicólogo social James Mark Baldwin, na virada para o século XX,

que nos oferece a versão mais extrema desta característica radical de não possuir qualidades

definidoras. No capítulo, “Theory of Mob Action,” de sua ambiciosa obra Social and Ethical

Interpretations in Mental Development (1897), Baldwin pergunta: “O homem no interior de um

coletivo não pensa? Não tem senso de valores? Não delibera? Não tem autocontrole? Não tem

responsabilidade? Não tem consciência? Não tem desejo? Não tem motivos? Não tem

propósitos?”28 Obviamente, a resposta imediatamente dada foi: “Não, ele não tem nada.”29 “A

consciência sugestionável,” ele continua, empilhando negações sobre negações, “é a consciência

que não tem passado, não tem futuro, não tem limites, não tem profundidade, não tem

desenvolvimento, não tem referência para com nada; ela é apenas uma engrenagem.”30 O homem na

multidão é, muito simplesmente, um homem sem qualidades, um desnaturado, um não-corpo

desnudo. Similarmente, as características clássicas do zumbi são normalmente expressas em

registros negativos; o zumbi é representado como sem alma, sem consciência, sem vontade,

insensível à dor e como indestrutível, então, a própria imortalidade do zumbi (ela mesma uma

característica negativa) deve ser entendida negativamente, como “não-morte.”

A imortalidade negativamente representada do zumbi e a indeterminação constitutiva da

multidão os permitem ocupar um “espaço vazio” dentro da consciência ocidental, onde eles

funcionam, nas palavras de Slavoj Zizek, como “contêineres” ideais para hospedarem “medos

divergentes, flutuantes, inconsistentes.”31 Fundamentalmente, zumbis e multidões podem de alguma

forma ser representantes do que Giorgio Agamben em The Coming Community (1993) chama “vida

nua”: uma forma-de-vida conectada, não “por qualquer característica em comum, [ou]

identidade,”32 mas através da própria falta de características positivas. Assim, em vez de tentar

determinar suas próprias características, modelar suas verdadeiras identidades ou preenchê-los com

conteúdos, eu olho atentamente para esta negatividade dos zumbis e das multidões, observando a

própria negatividade como um modo de se constituir um novo entendimento sobre a vida coletiva.

Da sugestão…

A indeterminação do zumbi e da multidão deriva de dois conceitos que tiveram a sua mais

detalhada elaboração nos discursos da psicologia das multidões: sugestão e contágio. Depois de

listar os três atributos básicos da mente das multidões em conformidade com Le Bon - “um

28 James Mark Baldwin, Social and Ethical Interpretations in Mental Development, 5.ed. (1897; rept. New York:Macmillan, 1913), 246.29 Ibid.30 Ibid.31 Slavoj Zizek, Tarrying with the Negative: Kant, Hegel, and the Critique of ideology (Durham: Duke University Press,1993), iii.32Giorgio Agamben, The Coming Community, trad. Michael Hardt (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993),iii.

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sentimento de invencível poder,” “contágio” mental e “sugestibilidade” - Mikkel Borch Jacobsen

indica que “o segundo e o terceiro (os mais decisivos na argumentação [de Le Bon]) seriam

manifestadamente não-características ou características não especificadas.”33 “Nenhum substrato ou

subestrutura,” argumenta Borch-Jacobesen, “porém uma substância muito leve, maleável, plástica,

infinitamente receptiva, sem vontade ou desejo ou qualquer instinto específico de si própria,”34

Sobretudo, à multidão de Le Bon não pode nem mesmo ser atribuída qualquer posse de um espírito

ou de um caráter. As duas “características” predominantes da multidão, contágio mental e

sugestibilidade, representam pouco mais do que a habilidade da multidão em absorver, do exterior,

aquilo que seria adequadamente chamado de conteúdos.

Embora distintos em suas aplicações, como eu mostrarei em breve, sugestão e contágio são

similares no sentido de que ambos possuem algo como “anti-propriedades,” o que conota uma inata

e constitutiva “abertura” para influências externas. Desse modo, a multidão é nada mais do que o

seu potencial de se tornar alguma coisa. Este é o tom dominante da antiga teoria das multidões.

Consequentemente, nós percebemos os antigos psicólogos das multidões agrupando

sugestionabilidade e contágio com várias outras definições, tal como a de gregarismo inato,

simpatia orgânica e imitação. Todas elas enfatizam a tendência dos membros de uma multidão de

absorverem as características e os aspectos “sugestionados” a eles por algum estímulo externo.

Le Bon identifica a raiz desta sugestibilidade nas estruturas primitivas do cérebro. Em uma

multidão, Le Bon argumenta, pensamentos próprios e conscientes são inibidos, permitindo ao

comportamento inconsciente da “raça” se expandir e chegar à superfície. Conforme o autor, os atos

da multidão “estão muito mais sobre a influência da medula óssea do que do cérebro,” fazendo com

que a multidão “se torne muito parecida com os seres primitivos.”35 Esta tentativa de localizar a

sugestionabilidade na parte “primitiva” do cérebro pode, de algum modo, explicar a prevalência do

racismo nos antigos filmes de zumbis e, também, a convenção desenvolvida pós Romero de se

mirar na cabeça quando se tenta destruir um zumbi.

Embora muitos dos norte-americanos seguidores de Le Bon leram sugestão e contágio como

sinônimos, eu acompanho Freud quando ele estabelece uma cuidadosa distinção entre os dois

termos.36 De acordo com a leitura de Freud, sugestão descreveria a maneira pela qual o líder33 Mikkel Borch-Jacobsen, The Freudian Subject, trad. Catherine Porter (Stanford, CA: Stanford University Press,1988), 139.34 Ibid.35 Le Bon, The Crowd, 11.36 “Não temos intenção de contradizer Le Bon, mas queremos apenas dar ênfase ao fato de que as duas últimas causaspelas quais um indivíduo se modifica no interior da massa, nomeadamente o contágio e a alta sugestionabilidade, nãosão evidentemente a mesma coisa… Possivelmente o melhor meio de interpretar o que ele afirma seja relacionando ocontágio aos efeitos que os membros da massa, tomados individualmente, têm uns sobre os outros, enquanto para asmanifestações da sugestão na massa, estas são semelhantes ao fenômeno da influência hipnótica, apresentando, assim,uma diferente fonte.” Sigmund Freud, “Mass Psychology and Analysis of the 'I,'” Mass Psychology and Other Writings,trad. J. A. Underwood (London: Penguin, 2004), 24. Originalmente publicado como Massenpsychologie Und Ich-Analyse (Zurich: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1921).

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influenciaria a multidão impressionável, por sua vez, o contágio indicaria os efeitos que cada

membro da multidão teria sobre os demais. Embora, os dois fenômenos pressuponham a

impressionabilidade e instabilidade como componentes básicos das multidões, eles se expandiriam

em direções divergentes. A sugestão pode ser descrita como um fenômeno vertical, expressando a

relação do líder para com a multidão, enquanto o contágio representa o movimento horizontal

através do qual a sugestão original do líder se espalharia, como uma doença, por todo o corpo da

multidão. Desse modo, tal como se presume das observações acima, sugestão e contágio designam

uma clara sequência temporal: primeiro, o líder planta “sugestões” na multidão, depois a sugestão

original é intensificada pela interação contagiosa entre os membros individuais da multidão.

O conceito de sugestão germinou de um interesse por hipnose entre os psiquiatras franceses

do século XIX. Assim, lê-se na obra The Crowd de Le Bon que: “um indivíduo imerso por alguma

extensão de tempo em uma multidão em movimento logo se encontra (..) em um estado especial, o

qual muito se assemelha com a fascinação que o indivíduo hipnotizado encontra-se nas mãos do

hipnotizador.”37 O ensaio de Freud “Mass Psychology and Analysis of the 'I'” (1921), do qual este

artigo emprestou seu título, apresenta a mais elaborada aplicação desta analogia, claramente

associando o “duplo” cenário, de um lado o hipnotizador e o hipnotizado, do outro a relação entre o

líder e a multidão.38

Com o fenômeno hipnótico da sugestão, o discurso da psicologia das multidões começaria a

ganhar um colorido sentimental que o transformaria numa fonte ideal para os primeiros filmes de

zumbis. Isto está bastante claro no reacionário e apocalíptico tons dos escritos de Sidis sobre

“sugestibilidade social.”39 Aproveitando-se das analogias esboçadas por Le Bon entre o sujeito

hipnotizado e o membro da multidão, Sidis descreve o “ego semiacordado” que emerge na vida

coletiva:

A multidão contem dentro de si todos os elementos e condições favoráveis para a desagregação da consciência.O que é requerido é apenas que um objeto interessante, ou que qualquer impressão inesperada, fixe fortemente aatenção da multidão e, assim, imerso em um estado em que a personalidade consciente está desprovida de suadignidade e poder, um ego desnudo e semiacordado permanece sozinho cara a cara com o ambiente externo.40

O membro de uma multidão, segundo Sidis, é essencialmente um sujeito hipnotizado, cuja

vontade própria está asfixiada pela força da sugestão do hipnotizador. O conteúdo particular da

multidão, de acordo com este entendimento, permanece para ser esboçado, assim, a multidão é o

mero efeito de um “exterior.” Além disso, o complexo sugestão-hipnose seria, por este

37 Le Bon, The Crowd, 7.38 Ver, em particular, o capítulo intitulado “Being in Love and Hypnosis,” no qual Freud escreve, “A relação hipnótica é(se a expressão for permitida) uma formação de uma massa de dois. A hipnose fornece uma boa comparação com aformação da massa, sendo na verdade idêntica com esta última. Da relação hipnótica isola-se para nós um doselementos do comportamento da massa, a saber, o comportamento do indivíduo da massa em direção ao líder.” Freud,“Mass Psychology and Analysis of the 'I,'” Mass Psychology and Other Writings, 68.39 Sidis, The Psychology of Suggestion, 297.40 Ibid., 300.

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entendimento, responsável pela visão distópica do zumbi enquanto um personagem metafórico das

instáveis e impressionáveis massas.

White Zombie (1932)41 oferece o exemplo mais memorável de um líder hipnotizador no

gênero de filmes de zumbis, a saber, o personagem de “Murder Legendre,” interpretado por Bela

Lugosi. No início, entretanto, o filme parece incapaz de decidir se o poder de Legendre sobre os

outros é resultado de rituais vodu ou daquilo que Le Bon chama de “prestígio” do líder carismático:

uma “misteriosa força” que justifica a influência deste sobre a multidão.42 Esta misteriosa força, Le

Bon argumenta, em uma rara passagem em primeira pessoa, “paralisa nossa faculdade crítica e

preenche nossa alma com espanto e respeito.”43 Então, em White Zombie, nós vemos Legendre

esculpindo e queimando bonecas vodus, através das quais ele conquista o controle de Madeline e

Beaumont, mas nós também vemos ele controlar um serviçal de Beaumont com um mero aceno de

mão. Talvez o mais marcante seja o prolongado enquadramento de câmera nos olhos de Legendre,

que se movimentam sobre um pano de fundo negro e, dessa forma, sugerem que a verdadeira fonte

de seu poder está na manipulação de um olhar hipnótico.

Em seu exaustivo estudo do filme, White Zombie: Anatomy of a Horror Film, Gary D.

Rhodes relata a forma como a “história do hipnotismo e mesmerismo (…) estão na base de White

Zombie, particularmente no poder de controle dos olhos de Legendre.”44 Rhodes não faz conexões

entre o uso de noções populares do hipnotismo com as sugestões do líder da multidão, assim como,

há pouca razão para supor que Halperin tivesse em mente alguma destas noções quando fez este

filme. Jennifer Cooke também observa a hipnose como um elemento central dos filmes de zumbis

em geral, mas ela faz uma distinção entre os primeiros filmes, tal como White Zombie, que

apresentam um “mestre hipnotizador” com filmes posteriores, como Nigth of the Living Dead, que

retrata uma “multidão (sem líderes) (…) suscetível à sugestão e ao contágio.”45 Na verdade, como

em muitos dos antigos filmes de zumbis, há poucas cenas em White Zombie em que nós somos

ameaçados por uma “multidão” de zumbis. (A cena no engenho de açúcar, em que vários escravos

nativos estão entediados em seu trabalho forçado, é uma das mais arrepiantes a este respeito.) O

41 White Zombie, DVD, dirigido por Victor Halperin (1932; Marina Del Ray, CA: RCF, 2008).42 Le Bon, The Crowd, 81.43 Ibid.44 Gary D. Rhodes, White Zombie: Anatomy of a Horror Film (Jefferson, NC: McFarland, 2006), 30.45 Jennifer Cooke, Legacies of Plague in Literature, Theory and Film (New York: Palgrave Macmillan, 2009), 167. Éimperativo que eu faça uma melhor distinção entre as observações do estudo de Cooke e as minhas próprias. Porque elavê a hipnose como uma característica perene dos filmes de zumbi, desde White Zombie até Night of the Living Dead.Para a autora, o desaparecimento da antiga figura do “mestre hipnotizador” em Night of the Living Deadparadoxalmente significa a emergência de uma perfeita multidão e a continuação por outros meios do fenômeno dahipnose (167). Em outras palavras, atribuindo à hipnose como seu princípio organizador, Cooke vê a multidão comouma característica, apenas, dos mais recentes filmes de zumbi. Por contraste, ao atribuir à multidão como meu princípioorganizador do gênero de filmes de zumbi, eu vejo a hipnose como uma característica revelante somente para os maisantigos filmes de zumbi. Eu penso que apenas estudos futuros podem determinar a relativa produtividade destasdistinções conflitantes.

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drama central do filme, de fato, foca-se no título “zumbi branco,” Madeline é uma exceção à regra,

precisamente, por ser uma “pessoa” branca separada da multidão de zumbis nativos.

Halperin não produziria nenhuma associação entre as crenças populares em zumbis e a

psicologia das multidões até seu menos conhecido Revolt of the Zombies46 de 1936. Aqui, nós temos

o padrão do filme de zumbi com história de amor que se tornou famoso com White Zombie, com a

diferença importante que agora a ação começa na I Guerra Mundial, com uma tropa de hipnotizados

zumbis cambodianos que estão sendo levados ao campo de batalha. O filme envolve a busca pelo

“segredo dos zumbis” localizado na cidade perdida de Angkor. Armand é o principal ator do filme,

um apaixonado que perdeu sua noiva, Clara, para o novo amor dela, Cliff. Obviamente, Armand se

apropria do segredo dos zumbis, que, como em White Zumbie, envolve uma estranha mistura de

vodu hollywoodiano e hipnose. Fascinado por seu inacreditável poder, Armand começa criando seu

próprio exército zumbi. Seus soldados, entretanto, não são zumbis tradicionais, pois não são

ressuscitados da morte, mas homens vivos postos sob o controle de um feitiço hipnótico.

Embora muitos dos temas de White Zombie reapareçam aqui, eles assumem decididamente

um molde mais político, nos encorajando a interpretar retroativamente algumas das ambiguidades

do antigo filme que alcançou maior sucesso. Assim como “Mass Psychology and Analysis of the 'I'”

de Freud é muitas vezes lido como um relato presciente da psicologia de massa do fascismo,47

Revolt of the Zombies, intuitivamente, apresenta um exército que constitui uma multidão “artificial”

tal como a expressão paradigmática da psicologia das multidões.48 Freud foca nas multidões

artificiais porque, de acordo com ele, Le Bon não enfatizou ampla e suficientemente a influência do

líder em relação ao fenômeno da multidão.49 Como se seguisse esta pista de Freud, Revolt of the

Zombies reformula o olhar hipnótico e fixo do sacerdote vodu como se fosse o de um líder militar

fascista. Isto pode ser observado, claramente, quando a imagem dos olhos de Legendre retorna

sobreposta às tropas de catatônicos, mas indestrutíveis soldados.

De acordo com as aparências, Halperin simplesmente reciclou a cena dos olhos usada em

White Zombie, mas talvez seja precipitado considerar esta repetição como uma simples economia na

produção. Eu leio esta repetição como a apresentação tardia da parte de Halperin de um significado

político inexplorado em White Zombie, diferenciando-se do olhar hipnótico apolítico encontrado

neste filme. Este tom político aparece desde o início de Revolt, quando Armand fala ao seu amigo

Cliff sobre os antigos “reis sacerdotes” que “mentalmente” controlavam e dirigiam seus seguidores

como se eles fossem meros “robôs.” Sobre isto, o individualista convicto, Cliff, responde, “Eu não

acredito que você pode transformar homens em autômatos (…) ou, como você os chama, zumbis.”46 Revolt of the Zombies, DVD, dirigido por Victor Halperin (1936; Philadelphia: Alpha Video, 2003).47 André E. Haynal, “Groups and Fanaticism,” On Freud's “Group Psychology and the Analysis of the Ego,” ed. Ethel Spector Person (Hillsdale, NJ: The Analytic Press, 2001), 112.48 Freud, “Mass Psychology and Analysis of the 'I,'” 45.49 Ibid., 27.

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O movimento dos olhos, obviamente, se torna a prova final do quanto Cliff (que Armand ao final

transforma em um zumbi) está errado. No fim do filme, a mesma cena dos olhos fixos ameaçadores,

que primeiramente dirigiram as ações de personagens individuais como Madeline e Beaumont em

White Zombie, é usada aqui para ilustrar o comando de Armand sobre milhares de inconscientes

“semiacordados” soldados.

Embora encontra-se no filme muitos dos clichês vodu – com um ligeiro viés “oriental” - esta

mitologia é deslocada por uma estrutura explicativa que se parece muito mais com aquilo que

Wilhelm Reich chama de “psicologia de massa do fascismo.”50 Em sua primeira vítima, a

empregada desafortunada Buna, Armand mistura e queima um misterioso pó branco, o vapor deste

pó deixa Buna em um catatônico transe.51 Porém quando Armand dá ordens, Buna simplesmente

permanece congelada em sua pose rígida. Assim, os olhos de White Zombie reaparecem de repente

sobrepostos a uma superfície negra, quando Armand repete seu comando para “abaixar seus

braços,” Buna finalmente obedece. A partir desse momento, os olhos se tornam a fonte central do

estranho e inexplicado poder de Armand. Através deles, ele é capaz de acumular um imenso

exército e controlar as ações militares de inacreditáveis distâncias, desse modo, exercendo o que o

sociólogo francês Gabriel Tarde chama de “sugestões remotas.”52 Tais “sugestões remotas” do líder

simbolizam a passagem nos filmes de zumbis da preocupação com invasões locais de zumbis para

as globais. Então, o que em White Zombie envolve, simplesmente, um relacionamento entre “duas

partes,” o hipnotizador e o hipnotizado, nos filmes de zumbis posteriores é transposto para um

campo político mais amplo e reescrito como um relacionamento entre o líder carismático e sua

horda de seguidores.

O filme termina com um irônico giro temático, apresentando os zumbis não apenas como

um paradigma para as formações fascistas, mas também para as revolucionárias. Depois dos

soldados serem libertos de seu encanto, eles dirigem-se contra Armand. Neste momento, a

empregada Buna lidera as massas em sua “revolta” contra o líder tirânico. Certamente, nós

estávamos esperando que Armand fosse abandonado e, assim, somos levados a nos identificarmos

com esse novo coletivo. O filme faz outro uso inventivo de cenas recicladas, narrando a revolta dos

soldados emancipados através das mesmas imagens das tropas de “zumbis”. Então, o que

novamente parece ser o efeito de uma mera conveniência ou da preguiça dos produtores, na

verdade, funciona como uma comparação injusta entre os zumbis militares sem alma com os

conscientes e esclarecidos rebeldes. Esta ironia temática é diretamente Freudiana, pois segundo o

50 Wilhelm Reich, The Mass Psychology of Fascism, ed. Mary Higgins and Chester M. Raphael (New York: Farrar,1970).51 A ironia é que Buna já obedece a qualquer comando de Armand, fazendo o estímulo do transe hipnótico um tantoquanto supérfluo.52 Ver Mary Esteve, The Aesthetics and Politics of the Crowd in American Literature (Cambridge: Cambridge UniversityPress, 2003), 84.

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autor uma patologia semelhante está por trás tanto das formas de comportamento coletivo

“artificial” e institucionalizado quanto das suas manifestações mais espontâneas e revolucionárias.

Embora White Zombie seja a mais bem-sucedida produção de Halperin, Revolt of the

Zombies tem sua importância ao pressagiar a posterior massa de zumbis cinematográficos,

particularmente através de sua repetição complacente com a espetacularização fetichizada da massa

de incontáveis zumbis. Assim, os soldados zumbis hipnotizados e sem emoções de Revolt formam

aquilo que Freud chama de uma “organizada” ou “artificial” multidão,53 uma temática que se

tornaria comum nos filmes de zumbis dos anos de 1950. Creature with the Atom Brain (1955),54 por

exemplo, desfaz dos clichês vodu dos anos de 1930 para a reformulação do zumbi como um

“homem da massa” ou “homem de organização,” vivendo no interior dos “normais” subúrbios

norte-americanos.55 Os filmes de zumbi dos anos de 1950 são também dignos de nota por

oferecerem uma versão zumbi antiga daquilo que Tarde chama de “coletividade espiritual,” um

termo que reflete o modo como a sugestão pode operar, não somente em um aglomerado localizado

de corpos fisicamente próximos, mas através da imprensa e de publicações de massa, em uma

escala nacional ou global.56

Nesta fase de transição, os elementos da psicologia das multidões são esporádicos. Mesmo

em um filme pioneiro tal como The Zombies of Mora Tau (1957),57 “o primeiro filme em que os

zumbis claramente existem sem um mestre zumbi ou líder controlando-os e o primeiro em que a

condição zumbi é contagiosa,”58 há pouco avanço em relação aos temas da psicologia das multidões

presentes em Revolt of the Zombies. Ao lado de algumas cenas exemplares de um grupo pequeno de

quinze ou dezoito zumbis levantando-se de seus túmulos em templos Africanos pré-históricos, há

relativamente poucas indicações, neste filme, de que os zumbis sejam um fenômeno de massa.

Durante esta transição, mais relevante para a relação da psicologia das multidões com os

mitos zumbis é o advento dos especialistas em zumbis. Dos filmes pré Romero até os pós Romero,

o zumbi passa de um simples fato material a ser controlado e reprimido, até um objeto de

“biopoder”, algo para se exercer uma “forma de governo”59 mais sutil, “combinando poder militar

com controle social, econômico, político, psicológico e ideológico.”60 Se anteriormente o zumbi não

era mais do que uma ameaça a ser destruída, nos anos de 1950 e 1960 os zumbis se tornariam um

“objeto” da curiosidade genuína de doutores, cientistas e oficiais governamentais. De modo

53 Freud, “Mass Psychology and Analysis of the 'I,'” 45.54 Creature with the Atom Brain, DVD, dirigido por Edward L. Cahn (1955; Culver City, CA: Sony Pictures, 2007).55 Ver Dendle, The Zombie Movie Encyclopedia, 38.56 Gabriel Tarde, “The Public and the Crowd,” On Communication and Social Influence, ed. Terry N. Clark (Chicago:University of Chicago Press, 1969), 277. Originalmente publicado em 1901, como uma parte de L'Opinion et la foule.57 The Zombies of Mora Tau, VHS, dirigido por Edward L. Cahn (1957; Culver City, CA: Sony Pictures, 1986).58 Dendle, The Zombie Movie Encyclopedia, 212.59 Michael Hardt e Antonio Negri, Multitude: War and Democracy in the Age of Empire (New York: Penguin, 2004), 13.60 Ibid., 53.

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semelhante, a própria psicologia das multidões parece ter seu início relacionado com a ideia de que

ninguém mais aniquilaria uma multidão através do poder militar. “O conhecimento sobre a

psicologia das multidões,” Le Bon escreve “é hoje o último recurso do homem de estado que deseja

não governá-las – o que tem se tornou uma questão muito complicada – mas de algum modo não ser

governado por elas.”61 Esta nova consciência da necessidade de não simplesmente aniquilar, mas de

entender a coletividade zumbi é dramatizada de um modo memorável no conflito, apresentado por

Romero em Day of the Dead (1985)62 entre os soldados, que querem exterminar os zumbis, e os

cientistas, que insistem em aprender mais sobre eles. Porém, mesmo em 1966, nós vemos um

exemplo quase presciente do interesse médico nos zumbis em Plague of the Zombies (1966)63 de

John Gilling. Contraposto aos regimes militar e governamental do biopoder, o zumbi, durante esta

fase, começa a ganhar um status ambivalente da perspectiva dos observadores humanos. De um

lado, ameaçando a identidade e a racionalidade individuais, mas de outro, assumindo um papel na

luta revolucionária contra os abusos do Estado. Assim, o zumbi ocupa uma tênue zona límbica, na

qual se disponibiliza um espaço potencial de emancipação e de revolta coletiva.

… para o Contágio

É de certa forma natural que a emergência de uma lógica do contágio nos filmes de zumbi

conduza a um aumento do interesse, por parte dos regimes de biopoder, em entender o fenômeno

zumbi. Nos tempos em que a sugestão cumpria um papel principal, o zumbi se encaixava

perfeitamente em uma hierarquia predominantemente racista e colonialista que privilegiava o

indivíduo racional e branco sobre as irracionais e influenciáveis “tribos.” Multidões de zumbis eram

ameaçadoras na medida em que eram controladas pelos indivíduos errados, assim, a verdadeira

ameaça, nestes filmes, não era a multidão zumbi enquanto tal, mas muito mais o indivíduo maligno

que a mantinha como “sua” cativa.

Com o aparecimento da inovação de Romero, Night of the Living Dead (1968),64 tudo isto

começa a mudar. Romero não faz somente uma associação metafórica explícita entre zumbis e

multidões, ele também transforma a estrutura básica da horda zumbi, ao apagar todos os traços das

crenças vodu e inscrever o contágio como o aspecto primário do fenômeno de massa zumbi.65

Respeitando a lógica do contágio consoante com a antiga psicologia das multidões, Night of the

Living Dead também afasta o típico líder carismático,66 permitindo que a horda zumbi apareça como

61 Le Bon, The Crowd, xiv.62 Day of the Dead, DVD, dirigido por George Romero (1985; Campbell, CA: Anchor Bay, 1998).63 The Plague of the Zombies, DVD, dirigido por John Gilling (1966; Campbell, CA: Anchor Bay, 1999).64 Night of the Living Dead, DVD, dirigido por George Romero (1968: Fort Mill, SC: Sterling Entertainment).65 Para um proveitoso sumário das inovações temáticas de Night of the Living Dead, ver Dendle, The Zombie MovieEncyclopedia, 6-7.66 Gregory A. Walter, The Living and the Undead: From Stoker's Dracula to Romero's Dawn of the Dead (Chicago:University of Illinois Press, 1986). Embora ele compare Night of the Living Dead com as antigas representações de

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o objeto central da fascinação espectral e um ameaça por si própria.

Tem-se tornado lugar-comum identificar Night of the Living Dead como um ponto de

inflexão nos mitos dos filmes de zumbi; entretanto, em termos da transição de uma lógica da

sugestão para a do contágio, Night of The Living Dead não representa uma ruptura radical, mas sim

uma mudança crucial de ênfase. Como nós temos já observado, na antiga psicologia das multidões,

o complexo sugestão/contágio implica uma sequência temporal relativamente curta: primeiro, o

líder “sugere” uma ideia à multidão e, então, a ideia sugestionada espalha-se de um membro ao

outro, crescendo mais e mais em poder através de um processo de reforço mútuo. Dessa forma, eu

estou simplesmente estendendo esta sequência temporal para os trinta e seis anos que separam

White Zombie de Night of the Living Dead. Mesmo com a mudança representada pelo contágio

neste último filme, nós podemos ainda perceber um traço formal do papel sugestivo do líder por

causa da necessidade de um fator primordial, geralmente um vírus ou um desastre radioativo. Deste

modo, a causa original do fenômeno zumbi ocupa o espaço estrutural previamente preenchido pelo

líder hipnótico. Talvez até mais impressionante, neste contexto, seja a curiosa adesão demonstrada

por Night of the Living Dead para com a velha tropa de hipnotizados e sugestionados, por conta do

uso de zumbis lentos e desengonçados. É quase como se os zumbis de Romero experimentassem

algo como vestígios da hipnose sem se darem conta de que não há mais um líder controlando-os

com sugestões.

Assim não fica claro, no inovador filme de Romero, até que ponto nós realmente

transitamos de uma lógica da sugestão organizada verticalmente para uma lógica do contágio

organizada horizontalmente. Em muitos filmes de zumbis – e Night of the Living Dead não é uma

exceção – a causa primeira é quase sempre descrita superficialmente, como se fosse uma mera

consideração a posteriori.67 Do ponto de vista de um coletivo político radical, o desafio para os

filmes de zumbis contemporâneos é encontrar um meio de eliminar completamente esta causa

transcendente, para assim localizar a fonte do fenômeno do contágio no corpo político por si só.

Nos momentos finais desse ensaio, eu até proponho uma interpretação alternativa sobre a

obrigatoriedade de alguma causa primeva, assim, tento posicioná-la mais diretamente no interior de

uma descentralizada e não hierárquica lógica do contágio.

No capítulo intitulado, “The Leaders of Crowds and the Means of Their Persuasion,” Le

vampiros, Waller traça uma evolução que é estruturalmente similar àquela que eu tracei aqui entre os filmes de zumbispré e pós Romero. Para ele, a “horda primitiva” encontrada em Dracula de Stoker é “governada por um líder superior”(277), enquanto os zumbis em Night of The Living Dead são “doentes, autômatos dirigidos por seus instintos [que]caminham pela terra sem um líder” (280).67 Sobre Night of the Living Dead, Dendle escreve, “Os distribuidores não lançariam o filme até que a equipe deprodução apresentasse algum tipo de explicação para o fenômeno (…) consequentemente, as referências ao satéliteexploratório enviado à Vênus que voltou trazendo um misterioso alto nível de radiação.” Dendle, The Zombie MovieEncyclopedia, 121. Como Waller salienta, “Afirmar que uma ‘radiação misteriosa’ provoca de alguma formainexplicável que os mortos vagem pela terra em busca de carne humana é, afinal, um pouco melhor do que nenhumaexplicação.” Waller, The Living and the Undead, 275.

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Bon identifica três maneiras para que a sugestão do líder possa ser propagada com sucesso através

de uma multidão: afirmação, repetição e contágio.68 Na verdade, neste último termo, o líder não está

mais envolvido de uma forma significativa, uma vez que ele tenha afirmado uma noção e, então, a

repetido várias e várias vezes, ela escapa de suas mãos e o controle é assumido pelo automático e

determinístico processo do contágio. O significado dos termos afirmação e repetição seria

autoevidente e Le Bon perde pouco tempo explicando-os. No entanto, sua discussão sobre o

contágio vale a pena transcrevê-la em detalhes, pois ele rapidamente desliza para uma linguagem

microbiológica que se assemelha fortemente com os mitos zumbis:

Quando uma afirmação foi suficientemente repetida e há unanimidade nesta repetição (…) se forma aquilo queé chamado de uma corrente de opinião e intervém o poderoso mecanismo do contágio. Ideias, sentimentos,emoções, crenças possuem na multidão um poder de contágio tão intenso quanto o dos micróbios. Estefenômeno é bastante natural, sendo até mesmo observado em animais quando eles formam um conjunto (…).Um pânico que tenha dominado um punhado de ovelhas logo se estenderá para todo o rebanho. No caso dehomens reunidos em uma multidão, todas as emoções são muito rapidamente contagiadas, o que explicaria ondasrepentinas de pânico.69

Quando nós desvinculamos a sugestão do contágio, ou os efeitos do líder dos efeitos dos

membros da multidão uns sobre os outros, nós vemos que, tal como é o caso das multidões de

zumbis cinematográficos, o contágio passa a ser um fenômeno quase antipsicológico, algo que está

presente num nível elementar da biologia animal, ou até mesmo num nível, ainda mais fundamental,

dos micróbios.

A ligação de multidões com micróbios ou células é comum nas antigas teorias sobre as

multidões. Em seu resumo do livro de Wilfred Trotter sobre o “instinto de horda,” Freud escreve,

por exemplo, que o conceito de instinto de horda é, na realidade, uma “extensão dos organismos

multicelulares … uma expressão da inclinação … de todas as criaturas vivas similares a se unirem

em unidades mais amplas.”70 Em um artigo para o The Atlantic Monthly de 1895, Boris Sidis expõe

sobre a organização celular das multidões, argumentando que, como todo “organismo inferior, as

multidões possuem um enorme poder de propagação.”71 “Sob condições favoráveis,” ele continua,

“as multidões se multiplicam, crescem e se propagam com uma fúria incrível.”72 Mesmo um escritor

recente tal como Aaron Lynche usa uma linguagem que ressoa com a inclinação viral e

bacteriológica dos filmes de zumbis, assim, ele compara o “contágio (social) de uma ideia” com um

“vírus em uma rede de computadores ou um vírus gripal em uma cidade.”73 Como estes outros

vírus, ele escreve, “pensamentos contagiosos proliferam por serem efetivamente ‘programados’ para

sua retransmissão.”74

68 Le Bon, The Crowd, 78.69 Ibid.70 Freud, “Mass Psychology and Analysis of the 'I,'” 72.71 Boris Sidis, “A Study of the Mob,” The Atlantic Monthly, Fevereiro de 1895, 192.72 Ibid.73 Aaron Lynch, Thought Contagion: How Beliefs Spreads Through Society (New York: Basic Books, 1996), 274 Ibid.

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Apesar de o contágio, nos exemplos acima, ainda ser representado negativamente, enquanto

uma força que precisa ser limitada e contida, trabalhos mais recentes tais como The Wisdom of

Crowds75 de James Surowieck e Smart Mobs76 de Howard Rheingold, para nomear apenas alguns,

propõem que as redes sociais interligadas tecnologicamente seriam em essência um campo de

contágio e um meio possível para a cooperação descentralizada e coletiva. Em seu ensaio

“Networks, Swarms, Multitudes,” Eugene Thacker nos previne contra o ingênuo “utopismo tecno,”

enquanto sua noção de “vida em rede” descreve um espaço descentralizado, dinâmico e intensivo de

entrelaçamento que pode atuar de forma concatenada com aquela outra, potencialmente radical,

rede de “não-vivos:” o enxame zumbi.77

Enquanto a lógica da sugestão nos oferece o “eu semiacordado,” representado nos filmes de

zumbis por olhos fixos e mortos, além de um caminhar desengonçado e sonâmbulo. O contágio, por

sua vez, nos proporciona um meio de representação da rápida propagação e contaminação de um

vírus. Assim, com a desconexão destas duas lógicas, o zumbi perde a aparência de sonâmbulo

hipnotizado e pode adquirir movimentos rápidos, tal como em Zombieland (2009),78 e às vezes até

mesmo inteligência. (Em Burial Ground [1980]79 um dos zumbis usa uma foice para decepar uma

cabeça, por exemplo.) Esta parece ser uma tendência progressiva, como se, conforme suas

implicações, o zumbi cinematográfico estivesse se tornando mais apto mental e fisicamente.

Particularmente, nós encontramos zumbis rápidos e sofisticados em Nightmare City (1980)80

de Umberto Lenzi. Neste filme, um desastre radioativo provoca uma invasão massiva daquilo que

talvez seja melhor chamar de “seres” contagiosos. Fiel à tradição pós Romero, o desastre radioativo

causa a perda de células vermelhas nos infectados, por conta de precisarem ser reabastecidos, eles

procuram sangue fresco. Naturalmente, quando um zumbi morde o pescoço de um humano para se

alimentar, este se torna também um infectado. Lenzi afirma na entrevista incluída no DVD que ele

estava preocupado em mostrar um vírus se espalhando de forma verossímil. Nightmare City

apresenta zumbis em todos os estágios da contaminação e, em geral, enquanto o filme progride,

mais e mais zumbis são adicionados à tela. Esta tendência culmina em uma das cenas finais, na qual

um grupo de uma centena ou mais de zumbis corre por um campo e é enquadrado de uma posição

privilegiada, do alto de um helicóptero. Assim, o contágio parece ter se espalhado tão amplamente

que a câmera deve buscar alturas extremas para abarcar uma multidão inteira de zumbis num só

quadro.

75 James Surowiecki, The Wisdom of Crowds (New York: Anchor, 2004).76 Howard Rheingold, Smart Mobs: The Next Social Revolution (Cambridge: Perseus 2009).77 Eugene Thacker, “Networks, Swarms, Multitudes” CTheory.net, 18 de maio, 2004, acessado em: 28 de nov. de 2010, http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=422.78 Zombieland, DVD, dirigido por Ruben Fleischer (Culver City, CA: Sony Pictures, 2009).79 Burial Ground, DVD, dirigido por Andrea Bianchi (1980; New York, NY: Shriek Show, 2002).80 Nightmare City, DVD, dirigido por Umberto Lenzi (1980; West Hollywood, CA: Blue Underground , 2008).

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Porém as semelhanças entre os seres contagiosos de Lenzi e os zumbis típicos acabam aqui.

Conforme Lenzi salienta na entrevista, suas criaturas não são zumbis tradicionais; ele até mesmo

hesita em dar a eles um nome explícito, afirmando para simplesmente “chamá-los do que vocês

quiserem.” Tal como os soldados de Revolt of the Zombies, os seres de Lenzi não se levantaram da

morte, sendo meros humanos infectados. Em uma cena central, o protagonista Miller e sua esposa,

Anna, não percebem que seus amigos são zumbis, porque eles ainda se parecem com os humanos.

Neste contexto, Dendle criticou o filme por sua maquiagem barata (a qual geralmente consistia em

pouco mais do que manchas aleatórias de um óleo),81 mas tal crítica parece não ter tanto sentido,

pois se baseia numa ideia que o próprio filme de Lenzi aparenta desafiar – a saber, que zumbis e

humanos são seres ontologicamente distintos. Os zumbis de Lenzi movimentam-se como humanos,

usam ferramentas e improvisam armas como humanos e até trabalham juntos para realizarem

tarefas complexas, muitas vezes, tal como veremos, melhor do que humanos. De fato, em seus

ataques cuidadosamente orquestrados contra estabelecimentos fundamentais para o poder, como

emissoras de TV, redes de abastecimento da cidade, hospitais e, até mesmo, uma base militar, as

criaturas de Lenzi se parecem muito mais com sabotadores políticos ou membros de uma

organização esquerdista radical, como a Weathermen, do que com zumbis tradicionais.

Conforme eu argumentarei, a atitude de Lenzi em relação a estas criaturas contagiosas,

“chame-os como você quiser,” é significativa enquanto um modelo para a ação coletiva. Agamben

escreve que “a comunidade que vem” não será baseada em propriedades ou predicados

compartilhados (no caso dos zumbis: não-mortos, lentos e sem alma), mas antes, por um simples

efeito de nomeação, do “ser-dito.”82 O coletivo francês radical, Tiqqun, desenvolve detalhadamente

em sua obra Introduction to Civil War (2010) os postulados de Agamben em relação à coletividade

futura, um trabalho que aparecerá nos comentários finais deste ensaio.83 Aqui, eu somente quero

salientar que por nos dizer “chame-os como você quiser,” Lenzi revela uma falta geral de interesse

por distinções classificatórias e, então, identifica o zumbi, não como uma criatura com esta ou

aquela característica essencial, mas como aquilo que Tiqqun, seguindo Wittgenstein, chama de

“forma-de-vida.”84

A ideia de que os zumbis de Lenzi não são seres ontologicamente distintos – que eles não

estão interligados com base em um conjunto de qualidades compartilhadas – se torna mais

importante quando nós examinamos suas relações com os protagonistas humanos, de um lado, e

com os regimes de biopoder, de outro. Como outros filmes dos anos de 1970 e 1980,

particularmente aqueles com óbvias conotações políticas, Nightmare City posiciona os zumbis no

81 Dendle, The Zombie Movie Encyclopedia, 36.82 Agamben, The Coming Commnity, iii.83 Tiqqun, Introduction to Civil War.84 Ibid., 16.

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mesmo lado dos protagonistas humanos, pois ambos, zumbis e humanos, estão engajados em um

conflito mais amplo contra a mídia, os militares, o governo e o complexo médico/científico. A

maior dificuldade, como nós veremos, é que os humanos não encontram uma posição própria nesta

nova distribuição de seres.

Em uma cena inicial, logo após a invasão zumbi ter começado, o protagonista, um repórter

de TV chamado Miller, se envolve em uma calorosa discussão com seu chefe e com o general

Hutchison, do departamento de defesa. Os dois últimos concordam que o surto deve ser mantido em

sigilo do público. Com um tom explosivo, o liberal Miller argumenta que é seu dever como repórter

“manter o público informado.” O general responde com uma questão retórica: “Você está consciente

dos protestos que aconteceriam após esta notícia?” Esta resposta é significativa porque ela revela

que, da perspectiva liberal de Miller, trata-se de uma injustiça comparar as massas de influenciáveis

telespectadores com os zumbis contagiosos. Porém, se o público descobrir sobre a crise, de acordo

com o pensamento do general, um pânico massivo se espalhará no corpo político e o Estado será

forçado a conter dois separados, mas estruturalmente análogos surtos “virais:” o dos humanos

histéricos e dos zumbis infectados. Portanto, o Estado se encontra agora posicionado contra dois

potenciais inimigos.

Eu penso que para entender o significado deste novo contexto político, nós deveríamos nos

concentrar na causa do fenômeno zumbi. Como em Night of the Living Dead, o advento do vírus

radioativo ocorre fora da tela, antes da própria ação da narrativa. O vírus, o ímpeto inicial do surto e

o momento de fundação do filme por si mesmo, parece ser uma relutante concessão à lógica de

causa e efeito que o diretor preferiria não ser obrigado a realizar. O interesse real está nos zumbis e

naqueles que se importam com os motivos por eles terem ficado daquele modo. Assim, aquilo que

está relacionado ao causador específico do surto viral (uma droga elaborada cientificamente, um

componente químico de um meteoro, um ritual vodu) é imaterial em um sentido bastante específico

e formal. O que o vírus radioativo representa, o que ele cria materialmente, é uma clara divisão

entre “amigos” e “inimigos.” O vírus radioativo não tem sentido por si mesmo, parecendo tão

superficial neste e em tantos outros filmes de zumbi porque, nas palavras de Agamben, trata-se

“daquilo que é mais difícil de pensar: a absoluta falta de experiência para com a pura

exterioridade.”85

Então, em Nightmare City, o vírus radioativo simplesmente tornou manifesta a guerra civil

que estava sempre presente, embora em estado de latência. Com o despertar do vírus, Miller, o

repórter, já não pode negar que ele está numa posição diametralmente oposta ao do proprietário da

TV para a qual trabalha. Além disso, o relacionamento obscuro entre a mídia e os militares se torna

terrivelmente evidente com ambas as partes em conluio para confundir o público. Então, o vírus ao

85 Agamben, The Coming Community, vxi.

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separar a multidão dos regimes de biopoder torna legível aquilo que Jacques Rancière chama de

nova “distribuição do sensível”86. Esta nova distribuição do sensível, este puro evento do exterior,

opera como um “chamado” que estabelece uma fronteira vibrante “entre o Estado e o não-Estado.”87

A grande incapacidade por parte dos humanos, a este respeito, é sua dependência para com a lógica

dos essencialismos que separa os seres de acordo com suas “condiç[ões] de pertencimento (ser

ruivo, ser italiano, ser comunista).”88

Por isso, nós vemos uma justiça poética nas manchas desleixadas de óleo de motor que

indicam a mínima diferença formal entre os supostamente vivos e os paradoxalmente mortos

animados. Como um puro evento do exterior, o vírus não faz nada mais do que indicar, nomear ou

designar uma divisão entre os que estão no poder dos que são seus antagonistas. Conforme Ernesto

Laclau argumenta, “o povo” não expressa uma realidade sociológica já constituída (uma classe

particular, uma raça, uma nação, mas “na verdade constitui o que se expressa no próprio processo

de enunciação.”89 Nós estamos imensamente enganados se insistirmos, tal como os protagonistas

humanos de Nightmare City, em ver os zumbis como um grupo previamente constituído ao qual

alguém poderia pertencer com base em determinadas propriedades. “Zumbi” aqui é nada mais ou

nada menos do que o nome de uma nova conceituação para “o povo,” “a multitude” - chame eles

como você quiser.

De acordo com sua entrevista, Lenzi não permitiu, contrariamente às especificações do

roteiro original, que os protagonistas humanos alcançassem alguma segurança no final do filme.

Depois do helicóptero o resgatar, Miller acorda como se tivesse tido um pesadelo e o drama

completo reinicia com a repetição da invasão inicial de zumbis. De um lado, esta decisão de Lenzi é

puramente prática: se os humanos falharam em conter o vírus, não haveria mais nenhum lugar

possível para escapar. De outro lado, a improvisação de Lenzi é política e tematicamente sensata: o

drama pode se repetir mais e mais vezes até os humanos reconhecerem sua solidariedade intrínseca

com os “zumbis” infectados. Miller será forçado a reviver este cenário até ele fazer a escolha

correta – até, em outras palavras, ele perceber que ele está no mesmo lado dos zumbis contra o

Estado.

Freud nunca duvidou da eficácia dos agrupamentos humanos, mas ele via claramente que os

grupos humanos eram fundados em uma identificação enraizada em algo mais primitivo como a

rivalidade, o ciúme e a inveja.90 Tal identificação humana baseada na rivalidade é construída sobre

um a priori, ou seja, uma lógica que elabora propriedades de pertencimento com as quais alguém

pode se incluir. Por contraste, os “seres” de Lenzi não são mais do que uma resposta ao apelo vazio86 Jacques Ranciere, Dissensus: On Politics and Aesthetics, ed. e trad. Steven Corcoran (London: Continuum, 2010), 36.87 Agamben, The Coming Community, xix.88 Ibid.89 Laclau, On Populist Reason, 99.90 Freud, “Mass Psychology and Analysis of the 'I,'” 75.

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do exterior, representado aqui por um vírus radioativo que cria uma divisão entre o Nós e o Eles.

Este parece ser o único modo apropriado para interpretar todas as falhas na ação dos coletivos

humanos: desde os dançarinos coreografados com suas roupas padronizadas que são aniquilados ao

vivo na TV, passando pelos médicos e enfermeiras mortos no meio de uma cirurgia, até o grupo de

humanos histéricos presos em um elevador. Todos estes grupos humanos falham, precisamente

porque eles não conseguem ver que a distinção real não é entre humanos e zumbis, mas entre Nós e

Eles.

Lenzi insiste que o vírus radioativo é para ser visto como um presságio, uma visão ficcional

da epidemia de AIDS. Não importa se aceitamos como verdade ou não a reivindicação de prenúncio

de Lenzi, mais produtiva para nosso entendimento sobre as possibilidades de ação dos coletivos

humanos é a ideia de que zumbis não são entidades ontologicamente diferentes, mas meros

humanos afligidos por um vírus que alterou sua existência. Nós deveríamos vê-los, em outras

palavras, como tocados ou animados por uma nova “forma-de-vida,” que Tiqqun designa como a

“união humana elementar.”91 Os zumbis de Nightmare City não se identificam uns com os outros,

nem possuem a experiência da rivalidade ciumenta que é a fonte necessária para tal identificação.

Ao contrário, os “zumbis” de Nightmare City são, nas palavras de Tiqqun, “mais fiéis à [suas]

predisposições do que aos [seus] predicados.”92 O fato desta predisposição ser uma predisposição

por sangue fresco não nos impede de aprendermos com eles uma lição sobre o futuro da ação

coletiva. As criaturas de Lenzi, por assumirem sua “desubjetivação”93 viral, por se tornarem

“anônimos,”94 por se tornarem “uma singularidade qualquer,”95 demonstram que o ato de apresentar

uma nova forma-de-vida “espontaneamente manifesta … sua comunidade de pertencimento,”96

transformando a obscura relação de hostilidade em uma inimizade genuína.97 Os zumbis ao

apresentarem esta nova forma-de-vida constroem um vibrante campo de “guerra civil” entre amigos

e inimigos, enquanto os humanos permanecem presos, no meio do caminho, entre serem hostis ao

governo ou aos infectados que o poder quer erradicar.

Os zumbis de Lenzi representam para nós a “formação contagiosa” que é a organização

coletiva ideal do programa anarquista de Tiqqun.98 Tal formação contagiosa, em que “amigos e

inimigos” ganham vida e “se fazem inteligíveis uns aos outros,”99 pode emergir por causa da

indeterminação constitutiva dos zumbis. Isso os deixa abertos para um puro evento da

91 Tiqqum, Introduction to Civil War, 16.92 Ibid., 23.93 Ibid., 204.94 Ibid., 206.95 Ibid., 205.96 Ibid., 181.97 Ibid., 31.98 Tiqqum, Introduction to Civil War, 179.99 Ibid.

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“exterioridade” que possibilita o rompimento com os limites da lógica humana da “identidade”

coletiva baseada em propriedades.

Eu quero encerrar esta discussão dos zumbis enquanto um modelo para a organização

coletiva com uma breve consideração sobre as “paradas zumbis,” uma prática que pôs este modelo

em ação de uma forma bastante literal e dramática. De acordo com o ensaio de Simone do Vale

“Trash Mob: Zombie Walk and the Positivity of Monsters in Western Popular Culture,” a primeira

parada zumbi ocorreu em Toronto em 2003 e incluiu somente seis participantes que se vestiram de

acordo com seus filmes de zumbi favoritos e vagaram pelas ruas, primeiramente, para satisfazer seu

desejo de entretenimento.100 Desde então, graças às novas tecnologias sociais, o fenômeno tem se

espalhado, com paradas zumbi sendo sediadas em todo o mundo.101

Embora ela distingua as paradas zumbis das “aglomerações rápidas,” Vale ainda as vê como

uma celebração do “poder enquanto massa”102 dos participantes. Apesar do fato de que muitas

vezes, em anos recentes, as paradas zumbis ocorreram como ações de caridade, parece que é a

própria indeterminação ao redor do fenômeno que permite que ele assuma vários significados

políticos. Como uma típica aglomeração rápida, em outras palavras, a parada zumbi poder ser

analisada como a manifestação do significado vazio do social por sí mesmo, demonstrando,

essencialmente, nada mais do que a habilidade das pessoas em organizarem-se em massa.

No convite aos zumbis são divulgadas listas de discussão e sites da internet devotados às

paradas zumbis. Neles, o termo “zumbi” opera como aquilo que Ernesto Laclau, em seu livro sobre

o populismo, chama de um “significante vazio,” um termo que “pode ser anexado aos mais diversos

conteúdos sociais,” precisamente porque ele não tem “o seu próprio conteúdo”103 particular. Na

página da internet da Toronto Zombie Walk, por exemplo, nenhuma orientação específica é dada a

respeito de fantasias e maquiagem.104 Em uma típica parada zumbi, “[c]ada zumbi,” nas palavras de

um escritor, deve decidir “por ele ou ela mesma qual 'tipo' de zumbi interpretar.”105 Aqui, predicados

particulares (zumbi caipira, zumbi rainha de formatura, zumbi que escapou do hospital) são muito

menos importantes do que o mero fato de “ser-dito.”106 Desta maneira, a parada zumbi constrói um

campo de guerra civil, que divide o supostamente “vivo” e isolado, espectador individual, do

coletivo de não-mortos. Esta multitude zumbi, finalmente, é ela mesma “animada” peculiarmente

100 Simone do Vale, “Trash Mob: Zombie Walk and the Positivity of Monsters in Western Popular Culture,” There BeDragons Out There: Confronting Fear, Horror, and Terror, editado por Shona Hill and Shilinka Smith (Oxford: Inter-Disciplinary Press, 2009), 131, acessado Agosto 27, 2010, http://inter-disciplinary.net/wp-content/uploads/2009/11/FHT-2-Final.pdf#page=143.101 Ibid.102 Ibid., 136103 Laclau, On Populist Reason, 76.104 Toronto Zombie Walk, http://www.torontozombiewalk.ca/index.html.105 Dan Linehan, “Zombie Walk: Death Imitates Art,” The Mankato Free Press, Julho 6, 2009, acessado Agosto 27,2010, http://mankatofreepress.com/local/x1048527008/Zombie-walk-Death-imitates-art.106 Agamben, The Coming Community, iii.

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por um puro chamado linguístico para celebrar o significado vazio da sociabilidade.

A parada zumbi é uma última prova física da substituição dentro dos mitos zumbis, de uma

lógica da sugestão para uma lógica do contágio. As próprias páginas da internet e listas de discussão

que “convidam” as multidões zumbis são elas mesmas múltiplas e fugazes. Seus organizadores

permanecem em grande parte anônimos, preferindo negar suas funções óbvias de promotores para

se misturarem na horda indiferenciada. Nós precisamos entender que o termo “zumbi” não tem

importância por si mesmo. O importante é que, por agora, “zumbi” efetivamente opera como um

“significante vazio,” capaz de pôr em circulação um campo ativo e global, dividindo aqueles que

respondem ao chamado – em “qualquer” estilo – e aqueles que não.