psicodrama 1

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176 Rev Bras Enferm 2005 mar-abr; 58(2):176-9. 1. INTRODUÇÃO A violência conjugal é um fenômeno cada dia mais presente no cotidiano de homens e mulheres, por isso tem se tornado uma preocupação de grupos de mulheres (feministas) e, mais recentemente, de grupos masculinos, que tentam compreender de que forma se constrói o fenômeno da violência entre homens e mulheres. Conforme Bustos (1) , a mulher foi criada para fazer companhia ao homem, num papel auxiliar e secundário. Assim, ao buscar a origem do homem e da mulher segundo a bíblia, o autor se reporta ao mito de Lilith, primeira mulher a ser criada por Deus, logo após o nascimento de Adão. Sicuteri apud Bustos (1) afirma que “quando Adão queria ter relações sexuais na posição mais natural, quer dizer, o homem por cima e a mulher por baixo, Lilith se queixava com inquietude: Por que devo Vivência de violência familiar: homens que violentam suas companheiras Nadirlene Pereira Gomes Professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco. Mestre em Enfermagem na área de Concentração Enfermagem na Atenção à Saúde da Mulher. Endereço: Jardim Vera Cruz, quadra 05, lote 08, IAPI, Salvador, BA. CEP: 40 360-590. Fone: (71) 388-6456 / (74) 8101-6878. [email protected] Normélia Maria Freire Professora Adjunto da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Enfermagem pela UNIFESP. Orientadora da dissertação. Pesquisa do Grupo de Estudo Saúde da Mulher - GEM. Coordenadora da linha de pesquisa “Mulher, Saúde e Violência”. [email protected] Recorte da Dissertação “Violência conjugal: análise a partir da construção da identidade masculina” apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia pata obtenção do título de Mestre em 2003.. RESUMO Este estudo objetiva compreender os elementos presentes na construção da identidade dos homens que violentam suas companheiras. De abordagem qualitativa, tem como referencial teórico as Representações Sociais. Foi realizado na comunidade do Calafate, localizada no bairro de San Martin/Salvador-BA. Os sujeitos foram compreendidos por 07 homens que violentavam suas companheiras. Como técnica de coleta de dados, utilizou- se a entrevista semi-estruturada. Os dados foram organizados a partir da Análise de Conteúdo de Bardin, especificamente a Análise Temática, no tema eixo: Relação familiar. O estudo permitiu identificar elementos que interferem na construção da identidade de homens que violentam suas companheiras. Estes têm origem no relacionamento familiar marcado por diversos fatores, dentre os quais: ausência de diálogo e agressões físicas. Descritores: Casamento; Violência doméstica; Relações familiares. ABSTRACT The aim of this study was to understand which elements are present on the construction of the identity of men who commit violence against their mates. This qualitative study took as theoretical reference the Social Representations. It was carried out on Calafate community, San Martin, Salvador, BA. Its population was composed by 7 men who committed violence against their mates. Semi-structured interview provided data, which was organized through Bardin’s Content Analysis, specifically thematic analysis, in the axis Familiar Relation. The study enabled us to identify elements that interfere on the construction of the identity of men who commit violence against their mates. Its origin is in the familiar relationship, marked by factors as lack of dialogue and physical aggressions. Descriptors: Marriage; Domestic violence; Family relations. RESUMEN Este estudio tuvo como objetivo comprender los elementos presentes en la formación de la identidad de los hombres que emplean la violência contra sus compañeras. El mismo con un enfoque cualitativo, tiene como referencia teórica las Representaciones Sociales. El estudio fue realizado en la comunidad de Calafate, localizada en el bairro San Martin/Salvador-BA. Los sujetos fueron 07 hombres que eran violentos con sus compañeras. Para la obtención de los datos se utilizó la entrevista semi estructurada. Estos datos fueron organizados a partir del Análisis de Contenido de Bardin, especificamente, el Análisis Temático, en el tema central: Relación familiar. El estudio permitió identificar los elementos que intervieren en la formación de la identidad de los hombres violentos con sus compañeras. Estes elementos se originan en la relación familiar marcada por diversos factores, entre los cuales estan la ausencia de dialogo y las agresiones físicas. Descriptores: Matrimonio;.Violencia domestica; Relaciones familiares. Experiencing familiar violence: men who commit violence against their mates Vivencia de violência familiar: hombres que son violentos con sus compañeras Gomes NP, Freire NM. Vivência de violência familiar: homens que violentam suas companheiras. Rev Bras Enferm 2005 mar-abr; 58(2):176-9. PESQUISA Revista Brasileira de Enfermagem REBEn

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  • 176 Rev Bras Enferm 2005 mar-abr; 58(2):176-9.

    1. INTRODUOA violncia conjugal um fenmeno cada dia mais presente no cotidiano de homens e mulheres,

    por isso tem se tornado uma preocupao de grupos de mulheres (feministas) e, mais recentemente,de grupos masculinos, que tentam compreender de que forma se constri o fenmeno da violnciaentre homens e mulheres.

    Conforme Bustos(1), a mulher foi criada para fazer companhia ao homem, num papel auxiliar esecundrio. Assim, ao buscar a origem do homem e da mulher segundo a bblia, o autor se reportaao mito de Lilith, primeira mulher a ser criada por Deus, logo aps o nascimento de Ado. Sicuteriapud Bustos(1) afirma que quando Ado queria ter relaes sexuais na posio mais natural, querdizer, o homem por cima e a mulher por baixo, Lilith se queixava com inquietude: Por que devo

    Vivncia de violncia familiar: homens queviolentam suas companheiras

    Nadirlene Pereira GomesProfessora da Universidade Federal do Vale do

    So Francisco. Mestre em Enfermagem na reade Concentrao Enfermagem na Ateno

    Sade da Mulher.Endereo: Jardim Vera Cruz,

    quadra 05, lote 08, IAPI, Salvador, BA.CEP: 40 360-590.

    Fone: (71) 388-6456 / (74) [email protected]

    Normlia Maria FreireProfessora Adjunto da Universidade Federal daBahia. Doutora em Enfermagem pela UNIFESP.Orientadora da dissertao. Pesquisa do Grupo

    de Estudo Sade da Mulher - GEM.Coordenadora da linha de pesquisa Mulher,

    Sade e [email protected]

    Recorte da Dissertao Violncia conjugal: anlise apartir da construo da identidade masculina apresentada Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia

    pata obteno do ttulo de Mestre em 2003..

    RESUMO

    Este estudo objetiva compreender os elementos presentes na construo da identidade dos homens que violentamsuas companheiras. De abordagem qualitativa, tem como referencial terico as Representaes Sociais. Foirealizado na comunidade do Calafate, localizada no bairro de San Martin/Salvador-BA. Os sujeitos foramcompreendidos por 07 homens que violentavam suas companheiras. Como tcnica de coleta de dados, utilizou-se a entrevista semi-estruturada. Os dados foram organizados a partir da Anlise de Contedo de Bardin,especificamente a Anlise Temtica, no tema eixo: Relao familiar. O estudo permitiu identificar elementosque interferem na construo da identidade de homens que violentam suas companheiras. Estes tm origem norelacionamento familiar marcado por diversos fatores, dentre os quais: ausncia de dilogo e agresses fsicas.Descritores: Casamento; Violncia domstica; Relaes familiares.

    ABSTRACT

    The aim of this study was to understand which elements are present on the construction of the identity of menwho commit violence against their mates. This qualitative study took as theoretical reference the SocialRepresentations. It was carried out on Calafate community, San Martin, Salvador, BA. Its population was composedby 7 men who committed violence against their mates. Semi-structured interview provided data, which wasorganized through Bardins Content Analysis, specifically thematic analysis, in the axis Familiar Relation. Thestudy enabled us to identify elements that interfere on the construction of the identity of men who commit violenceagainst their mates. Its origin is in the familiar relationship, marked by factors as lack of dialogue and physicalaggressions.Descriptors: Marriage; Domestic violence; Family relations.

    RESUMEN

    Este estudio tuvo como objetivo comprender los elementos presentes en la formacin de la identidad de loshombres que emplean la violncia contra sus compaeras. El mismo con un enfoque cualitativo, tiene comoreferencia terica las Representaciones Sociales. El estudio fue realizado en la comunidad de Calafate, localizadaen el bairro San Martin/Salvador-BA. Los sujetos fueron 07 hombres que eran violentos con sus compaeras.Para la obtencin de los datos se utiliz la entrevista semi estructurada. Estos datos fueron organizados a partirdel Anlisis de Contenido de Bardin, especificamente, el Anlisis Temtico, en el tema central: Relacin familiar.El estudio permiti identificar los elementos que intervieren en la formacin de la identidad de los hombresviolentos con sus compaeras. Estes elementos se originan en la relacin familiar marcada por diversos factores,entre los cuales estan la ausencia de dialogo y las agresiones fsicas.Descriptores: Matrimonio;.Violencia domestica; Relaciones familiares.

    Experiencing familiar violence: men who commit violence against their mates

    Vivencia de violncia familiar: hombres que son violentos con sus compaeras

    Gomes NP, Freire NM. Vivncia de violncia familiar: homens que violentam suas companheiras. Rev Bras Enferm2005 mar-abr; 58(2):176-9.

    PESQUISARevistaBrasileira

    de Enfermagem

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    Vivncia de violncia familiar: homens que violentam suas companheiras

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    estar sempre por baixo de ti? Por que devo abrir-me debaixo de teucorpo? Por que devo ser dominada por ti? Se eu fui criada do mesmop, ento s tua igual. Se sou tua igual, no te devo obedincia(1).

    Neste contexto, a mulher quebra a ordem sagrada, cometendo opior dos pecados, haja vista ela questiona a ordem natural. Assim, ahistria traz Ado como vtima de Lilith, demnio, expulso do paraso econdenada a torturas. Contudo, a segunda mulher constituda, por suavez, pela costela de Ado, tambm encarna a revoluo. Isto ocorrequando Eva desobedece, j no a seu marido, mas ao prprio Criador.No entanto, assim como Lilith, Eva tambm vai ser castigada: perde oparaso; conhece a dor e condenada a morte.

    A partir destas desobedincias, se estabelece o domnio da mulherpelo homem. Estes mitos, entretanto, so cristalizados e interferem naconstruo das identidades feminina e masculina.

    Durante todas as fases de nosso desenvolvimento, sofremosinfluncias de instituies como a famlia, a escola e a igreja. Elastransmitem normas e valores culturais, ensinando meninos e meninasa diferenciarem o que prprio do sexo feminino daquilo que especficodo masculino, e assim reconhecer os papis de cada sexo(2,3).

    Desta forma, desde cedo aprendemos a realizar atos, assumircondutas, exercer aes, a nos comportarmos de forma apropriada,enfim, a representar os papis atribudos aos gneros, o que influenciarna construo da identidade de gnero.

    Para Gebara(4), essa construo cultural de gnero determina asdiferenas entre os sexos, e a partir destas legitima tanto a inferioridadefeminina quanto dominao e hierarquia sexual e social do homem.Neste sentido, a desigualdade permite que relaes violentas entrehomens e mulheres sejam consideradas naturais.

    Neste sentido, as mulheres se ajustam aos papis que a feminilidadedetermina, e tais papis tm a ver com passividade, subordinao,sensibilidade, obedincia, comportamentos que a sociedade espera queas mulheres tenham. Nada mais natural, portanto, para a sociedade,que a mulher lave, passe, cozinhe, cuide do marido e dos filhos,ocupaes que se limitam ao mbito domstico. Por outro lado, espera-se que o homem, como chefe de famlia, seja o provedor do lar, o viril,o corajoso, o trabalhador, o competente, mas tambm aquele que nopode demonstrar suas fraquezas, dvidas e emoo(2-5), caractersticasque se aprendeu a reconhecer como pertencendo a identidademasculina.

    Durante a socializao, antes de aprender o que devem ser, osmeninos aprendem o que no podem ser, ou seja, no podem serfeminino. Assim, ele s pode existir opondo-se a sua me, suafeminilidade, sua condio de beb passivo... para afirmar umaidentidade masculina, deve convencer-se e convencer os outros de queno uma mulher, no um beb e no homossexual(6).

    Para Badinter(6), a masculinidade, por ser socialmente ensinada,poder ser desconstruda em benefcio das mulheres e dos homens, ereconstruda, ancorada em modelos de papis sociais voltados paraigualdade de gnero, sem que haja uma relao de dominao entremasculino e feminino.

    No entanto, para se desconstruir o modelo de masculinidade,necessrio se faz compreender os elementos presentes na construoda identidade dos homens que violentam suas companheiras.

    2. REFERENCIAL TERICO E METODOLGICOEm virtude da necessidade de compreender os elementos presentes

    na construo da identidade do homem que violenta sua companheira,adotamos como referencial terico a Teoria das Representaes Sociaise como referencial metodolgico a Anlise de Contedo.

    A Teoria das Representaes Sociais amplia o modo com que osenso comum conhece uma determinada realidade, permitindo que esta

    possa ter uma nova representao, uma vez que o conhecimentoestudado via representaes sociais sempre um conhecimento prtico; sempre uma forma comprometida e/ou negociada de interpretar arealidade(7).

    Para aprofundar na complexidade do objetivo, utilizou-se o mtodode estudo qualitativo, haja vista que esta metodologia permite umaabordagem dos problemas humanos e sociais e a compreenso da aohumana, e no apenas a descrio dos comportamentos(8).

    O estudo foi realizado na comunidade do Calafate, localizada nobairro de San Martin, na cidade de Salvador-BA, com o apoio do Coletivode Mulheres do Calafate (CMC), entidade sem fins lucrativos, criadaem 1992, que surgiu devido alta incidncia de violncia domstica nacomunidade.

    Os sujeitos foram constitudos por 07 homens com histria deviolncia conjugal. A este respeito, Minayo(9) refere que uma amostraideal aquela capaz de refletir a totalidade nas suas mltiplasdimenses. Assim, a amostra ideal neste estudo foi identificada nomomento em que as informaes fornecidas pelos entrevistados serepetiam, resultando num esgotamento do contedo.

    Como tcnica de coleta de dados, utilizou-se a entrevista, por ser atcnica de interrogao que apresenta maior flexibilidade(10). Esta eraacompanhada por um roteiro semi-estruturado contendo a seguintequesto norteadora: Conte-me sobre sua relao familiar.

    Os sujeitos se caracterizam por homens catlicos, na faixa etriaentre 20 e 46 anos. Quanto escolaridade, 03 possuam o 1 grauincompleto e 04, o 2 grau incompleto. O tempo de convivncia conjugalfoi entre 03 e 10 anos, resultando no mximo em 03 filhos.

    Para o desenvolvimento destas pesquisas foi levada emconsiderao a Resoluo n.196/96 do Conselho Nacional de Sade,a qual norteia a tica na pesquisa com seres humanos(11).

    Primeiramente, foi explicado aos sujeitos o significado da pesquisa,dando-lhes em seguida a opo de participar ou no da entrevista.Tambm foram garantidos o sigilo e o anonimato, sendo os mesmosidentificados com nomes fictcios referentes aos sete primeiros planetas(Mercrio, Vnus, Terra, Marte, Jpiter, Saturno e Urano). Aqueles quese predispuseram a participar da pesquisa, foram interrogados quantoao uso do gravador nas entrevistas, sendo que nenhum se ops gravao. A partir da exposio de todos estes princpios ticos, ossujeitos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

    Como tcnica de anlise, utilizamos a anlise de contedo, dentreelas, elegemos a anlise temtica, uma vez que esta forma deinvestigao permite explicitar elementos, no visveis, constitudos porsmbolos, representaes e comportamentos, somente alcanados pelasubjetividade, expressa na ordem verbal(12).

    Conforme as autoras acima referidas, a anlise temtica permite,atravs de frases ou etapas, organizar os dados do contedo, buscandoo conhecimento do que est por trs das palavras. Para Bardin(13), estesdados devem ser claramente definidos para que no se d a uma mesmacategoria, significados diferentes. Assim, identificamos para este estudoo tema Relao Familiar e como categorias: Relao com os pais eRelao entre os pais.

    A interpretao dos dados foi baseada nas leituras referentes stemticas gnero, identidade masculina, violncia conjugal e Teoria dasRepresentaes Sociais, a qual, por sua vez, permitiu, a partir do sensocomum dos entrevistados, compreender elementos que influenciam aconstruo da identidade masculina.

    3. RESULTADOS E DISCUSSOA relao familiar est permeada por mitos, que foram introjetados

    na infncia atravs do aprendizado dos papis sociais. Segundo Reis(14),a criana aprende desde cedo que o papel de filho o de obedincia

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    aos pais, tida como sinnimo de amor aos pais, reproduzindo, assim, arepresentao de que amar obedecer; se submeter. Para o autor, afamlia, na funo ideolgica de fixar os papis e as funes de cadaum, ao ser apresentada como natural e necessria, reproduz regras emitos familiares, muitas vezes explicados por si mesmos, nocontestados e sem jamais mencionar suas verdadeiras determinaes.

    Durante as entrevistas, os homens representam o papel de filhos narelao com os pais, bem como os sentimentos que a sociedadedetermina como prprios de um filho com relao aos pais. Assim,mesmo tendo vivenciado a violncia familiar, os entrevistados relatam:

    ... meu pai j chegou a dar uma facada na minha me no brao... Eue minhas irms assistimos a tudo isto... Minha relao com meu paino era boa porque eu sofri muito, apanhava muito. Todas as queixasque os vizinhos faziam, eu apanhava... minha vontade era de morarcom a minha me... no desfazendo dele, ele meu pai e eugosto dele, o que eu puder ajudar ele, eu sempre vou ajudar, maspra outras partes, eu quero mesmo estar com minha me.(Mercrio)Na concepo de Reis(14), a obedincia aos pais significa a aceitao

    sem questionamento de normas que j estavam definidas quando nascemos,de modo que a possibilidade de rompimento destas normas sempreameaadora. Desta forma, os filhos aprendem que amar os pais seupapel e, mesmo tendo sido violentados no processo educativo, eles reprimemseus sentimentos negativos, como o dio, por exemplo. Esta concepo foiproduzida historicamente e, portanto, no imutvel nem natural, podendoser transformada, haja vista que enquanto o dio for mantido inconscienteo individuo no poder se libertar dele nem do sentimento de culpa por elegerado. No entanto, os filhos, no intuito de obter o amor paterno, noexpressam seus sentimentos e idias em relao aos pais, acabando porintensificar o controle e a dominao por parte destes ltimos.

    Aos homens, cabe tambm o papel de protetor da me, uma vezque esta, por ser mulher e, portanto, representada como frgil e indefesa,necessita de uma proteo masculina. Seguem depoimentos queilustram bem isso:

    ... a, sempre deixava de fazer as coisas pra evitar que ele brigassecomigo ou com minha me, eu evitava muito as coisas, evitava muitascoisas at ele sair do lugar, porque eu tinha medo dele. (Jpiter) Em seus discursos, os homens trazem diferenas claras nas

    relaes com pai e me, como nesta fala:... j minha me, se a gente parasse pra conversar com ela, elaparava pra ouvir o nosso lado tambm... Eu dizia no, se eu chamarminha me e disser, oi, t se passando isso, isso e isso, ela vaideixar eu me explicar; j meu pai no (Mercrio).Em seus discursos, os homens trazem um vnculo criado com o pai,

    de maneira distanciada, uma vez que no h espao para o dilogo narelao. Conforme Corneau(15), quando o carinho, a proteo e o amoresperados no se fazem presentes, o pai idealizado se dilui nabanalidade de um contato frio, superficial e sem compromisso afetivo.Seguem alguns depoimentos:

    ... eu no tinha muito dilogo com meu pai, nem ele falava comigo.Dificilmente a gente parava para conversar, ele nunca tinha tempo paramim... (Mercrio)... a gente no tinha muito relacionamento com ele, de conversar, botar nocolo, brincar, ele no fazia isso... Ele sempre foi distante de mim. (Jpiter)A partir dos discursos acima podemos dizer que a relao dos

    entrevistados com seus pais ou com figuras paternas foi apresentadacomo tendo pouco ou nenhum envolvimento afetivo. Contudo, Ramires(16)afirma que a nica funo da criao dos filhos da qual o pai est excludo a da gestao e da amamentao, uma vez que eles sopsicologicamente capazes de participar e interagir nos cuidados com

    seus filhos, de maneira ativa, tocando-os e acalentando-os.Alm de estabelecer com o filho uma relao sem dilogo e respeito,

    os pais o privam de lazer:... quando eu era criana, eu no saa muito com meu pai... ele nogostava de sair comigo no... Ele no tinha tempo para mim comomuitos pais tm: dar um passeio, ah! a gente vai sair; a gente vainuma praia; amanh, a gente pode ir em um shopping; d um passeio;pegar um cinema. Meu pai nunca fez isso comigo. (Mercrio)... ele no queria eu na rua, no queria que eu tivesse diverso quetoda criana tem: brincar de arraia, jogar gude, essas coisas quecriana tem que fazer, n? (Jpiter)Ferrari(17) considera que a infncia o momento nico e singular

    para o desenvolvimento das crianas. No entanto, podemos observar,a partir dos relatos acima, que os pais dos entrevistados no percebema singularidade da infncia para seus filhos e estes, por sua vez,influenciam na reproduo de tal ensinamento.

    Conforme o autor, o desenvolvimento da identidade destes homens estancorado em uma etapa anterior de sua vida, levando-os a agirtransferencialmente nas inter-relaes. Desta forma, no se desenvolveum processo verdadeiro de relacionamento entre pai e filho, construindouma relao sujeito-objeto, uma vez que estes homens no respeitam nemas vontades e nem seus filhos, enxergando-os como objeto de seus desejos.

    O que mais grave que, alm de no participar do lazer dos filhose no valorizar as brincadeiras infantis enquanto instrumento dodesenvolvimento das crianas, os pais acreditam ser o trabalho infantilindispensvel na formao da identidade masculina. assim que oshomens aprendem e transformam em natural o trabalho infantil, julgando-o inerente masculinidade.

    ... a maioria da minha infncia eu passei mais foi trabalhando: fazendobarraco de taipa, carregando madeira... Eu ajudava ele nestestrabalhos... Eu s fazia mesmo ajudar ele, era ele quem ganhava odinheiro... (Mercrio)... eu trabalhei na infncia, desde os 7 anos que meu pai me levavapra trabalhar, e me ensinava a bater um prego, a fazer uma massa, eoutras coisas mais, mas ele no me deixou sair do estudo no, euestudava e tarde eu trabalhava com ele... na poca eu no ganhavanada, s ajudava meu pai, ento naquele tempo eu no pensava nada,s pensava que quando meu pai chegasse do trabalho, a eu chegavado colgio, tirava a farda e ia mais ele, a s chegava umas 5 horas, 6horas em casa. Eu achava que era minha obrigao ajudar ele. (Terra)A educao recebida pelo filho repressora, haja vista que os seus

    pais os educavam atravs de punies como surras, por exemplo, nopermitindo que houvesse dilogo. Desta forma, quando questionadossobre as relaes com seus pais, os homens dizem:

    .... eu tinha uns dez anos, eu ainda me lembro bem disso e tenhomuita raiva dele por isso.. porque quando ele bate, ele bateespancando, de chute, de bicuda, de murro.. (Vnus)... A, qualquer coisa, ele ia logo para a ignorncia, bater, noprocurava conversar, entendeu? ele me bateu de fio, eu fiquei todomarcado de fio, eu tinha uns onze anos... hoje eu tenho trinta. Eusenti muito dio dele, desejava que ele morresse. No dia, eu choreimuito e minha me cuidou de mim. (Jpiter)Ferrari(17) diz que o papel dos pais, na famlia, o de ensinar, enquanto

    que o dos filhos aprender. No entanto, o conhecimento transmitido deforma autoritria, haja vista que aprender significa aceitar os modelos deeducao definidos pelos pais sem, contudo, question-los.

    Azevedo e Guerra(18) comentam que todo e qualquer ato ou omissopraticado por pais, parentes ou responsveis contra crianas eadolescentes, que os violentem fsica, sexual e/ou psicologicamenteimplica na coisificao da infncia, violando seus direitos a serem

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    tratados como sujeitos.Desde a mais tnue infncia, a violncia tem estado presente na

    vida dos entrevistados, influenciando a construo da identidademasculina. No entanto, a violncia entre os seus pais tambm se fezpresente no dia-a-dia deles:

    ... meu pai brigava muito com minha me... A relao entre meuspais no era boa no... Era briga todo dia... Briga, discusso, umqueria furar o outro... meu pai j chegou a dar uma facada na minhame no brao... Eu e minhas irms assistimos a tudo isto... (Mercrio)...ele (padrasto) batia em minha me... ele falava alguma coisa equando ela respondia, ele j queria engrossar. A, j era briga, brigade murro, de faca. Uma vez ele bateu nela... ele deu um murro nacara de minha me e ela caiu, caiu na cama, a eu fui entrando bemna hora e vi. Quando eu entrei que eu vi ela cada l, eu peguei umafaca e meti no brao dele e sa correndo. (Vnus)Contudo, ao presenciar situaes de violncia familiar durante a

    infncia e a adolescncia, os homens incorporam o modelo de homempresente no seu cotidiano, a partir do qual construram sua identidade.

    A este respeito, Ramires(16) coloca que os homens so simbolica-mente importantes para as crianas enquanto modelos de poder eautoridade. Quer dizer, uma infncia carregada de tenso e violncia,em que a prtica e o uso de poder sobre o outro uma constante,favorecer o desenvolvimento de formas de contato com o mundocompatveis com essas vivncias. Assim, ao vivenciar a violncia narelao familiar, o homem a reproduz em outras formas de relaessociais, inclusive nas relaes com suas companheiras.

    4. CONSIDERAES FINAISCom base na anlise, compreendemos, a partir deste estudo, que a

    identidade de homens (e mulheres) construda no espao familiar partindodo aprendizado dos papis e atributos especficos de homens e mulheres.

    No que se refere a sua relao com seus pais, o estudo mostrouque os entrevistados tm boa relao afetivamente com suas mes,sendo que o mesmo no se faz presente com relao ao pai.Percebemos que os homens tiveram uma infncia marcada por situaesde violncia: presenciaram a violncia nos seus lares entre seus pais;sofreram violncia por parte de pais ou figuras paternas; vieram delares nos quais prevaleciam a falta de dilogo, o autoritarismo paternoe a submisso materna.

    Esta vivncia de violncia familiar permitiu compreender que aidentidade destes homens construda neste contexto, haja vista que,quando se relacionam com suas companheiras, eles reproduzem asmesmas histrias de violncia.

    Enfim, o estudo nos permitiu identificar elementos que interferem naconstruo da identidade de homens que violentam suas companheirase, desta forma, perceber que o fenmeno da violncia conjugal nopode ser visto, simplesmente, como homem-agressor e mulher-vtima,mas sim como um problema que tem origem na construo da identidadede homens cujo relacionamento familiar foi marcado pela ausncia dedilogo e agresses fsicas, o que caracteriza relaes de violncia.

    Acredito que este estudo traz uma contribuio no sentido de permitiruma melhor compreenso do fenmeno da violncia conjugal e, a partirda, colaborar para o desenvolvimento de outros projetos de pesquisa ede projetos de interveno que permitam homens e mulherescompreender que o fenmeno da violncia no inerente ao homem,mas sim construdo socialmente e percebido, de forma natural, comoelemento constituinte da identidade masculina.

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    REFERNCIAS

    Data do recebimento: 17/11/2004 Data da aprovao: 17/07/2005