psicodinamica merlo

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    Maria da Graa Jacques

    Wanderley Codo

    (orgs.)

    Sade mental & trabalholeituras

    W EDITORA

    VOZES

    Petrpolis2002

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    Psicodinmica do Trabalholvaro Roberto Crespo MerloM

    As origens

    A percepo de que o trabalho pode ter conseqncias sobre a sa-de mental dos indivduos muito antiga. Podemos encontr-la noclssico "Tempos Modernos" de Charlie Chaplin - sensvel violn-cia produzida pelas transformaes contemporneas do taylorismo edo fordismo sobre os trabalhadores , at nos no menos clssicos

    estudos acadmicos dos "pais" da Sociologia do Trabalho, GeorgesFriedman e Pierre Naville (1962), onde relatam as conseqncias dotrabalho em linha de montagem.

    Nas origens da Psicodinmica do Trabalho, temos os estudos deLe Guillant (1984), que, durante os anos 50, realizou as primeiras ob-servaes sistemticas que lhe permitiram estabelecer relaes entretrabalho e Psicopatologia. Seu trabalho mais citado foi feito em 1956sobre a atividade de telefonistas em Paris, no qual o autor diagnosti-cou um distrbio que ele nomeou como Sndrome Geral de Fadiga

    Nervosa, caracterizada por um quadro polimrfico que inclua altera-

    es de humor e de carter, modificaes do sono e manifestaessomticas variveis (angstia, palpitaes, sensaes de aperto torci-co, de "bola no estmago", etc). O autor falava, ainda, da invaso doespao fora do trabalho por hbitos do trabalho que ele chamou deSndrome Subjetiva Comum da Fadiga Nervosa. Esta ltima sndro-me caracterizava-se pela manuteno do ritmo de trabalho durante asfrias, manifestando-se pela sensao de irritao, por uma grande di-

    54. Mdico, Doutor cm Sociologia (Paris VII), Professor da Faculdade de Medicina e dos Progra-mas de Ps-Graduaesem Psicologia Social e Institucional e em Epidemiologia da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul.

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    ficuldade para ler em casa e pela repetio incontrolvelde expres-ses verbais do trabalho (Le Guillant, 1984: 382).

    Gillon (1962) considerava que no havia uma relao de especifi-cidade entre o tipo de distrbio mental e o trabalho efetuado, exceto noscasos provocados por intoxicaes ou naqueles que ele atribuaa "con-dies de trabalho particularmente penosas", sem precisar as atividadesenglobadas nessa qualificao. Ainda que ele considerasse como excep-cional a possibilidade de que as condies de trabalho fossem respons-veis por distrbios mentais, citava pesquisas que demonstravam queexistiam "elementos desfavorveis" no trabalho, a saber:

    A durao excessiva do trabalho, um trabalho considerado comomontono, muito leve ou muito sedentrio, um trabalho exi-gindo aptides que no esto ao alcance da inteligncia do ope-rrio, um trabalho exigindo um grau de ateno muito alta ouno permitindo suficientemente a iniciativa, um ciclo de traba-lho muito longo (Gillon, 1962: 163).

    No entanto, Gillon marginalizava o papel que podia desempenhara organizao do trabalho ou as relaes no trabalho e reproduzia aabordagem psiquitrica comum na poca, que via no trabalho apenasum instrumento neutro e indispensvel para a ressocializao e a curade doenas mentais. Ele defendia a idia de que o trabalho era funda-mentalmente bom e teraputico, e que cabia ao trabalhador, na medidaem que possusse uma "sade mental equilibrada", adaptar-se. E poss-

    vel perceber-se na sua interpretao uma influncia do prprio pensa-mento taylorista, cuja viso faz do trabalho um elemento essencial-mente benfico, segundo a qual a nica forma possvel de trabalho aquela que tenha sido legitimada por sua "cientifcidade". Desta forma,s restando ao trabalhador a escolha entre a adaptao ou a doena.

    Da Psicopatologia do Trabalho Psicodinmica do Trabalho

    O estudo das repercusses da organizao do trabalho sobre oaparelho psquico ser muito inovado pelo trabalho de ChristopheDejours, com a publicao na Frana de Travail: usurementale. Essai de

    psychopathologie du travail, em 1980, traduzido no Brasil sob o nome deA. Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho, em 1987.A utilizao do conceito de Psicodinmica do Trabalho, emsubstituio ao de Psicopatologia do Trabalho, deu-se a partir de um

    privilegia-mento do estudo da normalidade, sobre o da patologia. Oque impor-

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    ta para a Psicodinmica do Trabalho conseguir compreender comoos trabalhadores alcanam manter um certo equilbrio psquico,

    mesmo estando submetidos a condies de trabalho desestruturan-tes (Dejours, 1993). Prope-se a estudar o espao que separa umcomportamento livre de um outro estereotipado, referindo-se a pala-vra livre, aqui, ao modelo comportamental que faz interviruma ten-tativa visando a transformar a realidade que o circunda, conforme osdesejos do sujeito, no sentido do prazer. O objetivo principal do pro-cedimento de pesquisa seria o de localizar o processo de anulaodesse comportamento livre (Merlo, 1999: 37). Dejours (1987c: 735)define o campo da Psicodinmica do Trabalho como aquele do sofri-mento e do contedo, da significao e das formas desse sofrimentoe situa sua investigao no campo do infrapatolgico ou do pr-pato-

    lgico. Para ele o sofrimento um espao clnico intermedirio quemarca a evoluo de uma luta entre funcionamento psquico e meca-nismo de defesa por um lado e presses organizacionais desestabili-zantes por outro lado, com o objetivo de conjurar a descompensaoe conservar, apesar de tudo, um equilbrio possvel, mesmo se eleocorre ao preo de um sofrimento, com a condio que ele preserveo conformismo aparente do comportamento e satisfaa aos critriossociais de normalidade.

    Uma outra caracterstica importante que a Psicodinmica doTrabalho visa coletividade de trabalho e no aos indivduos isolada-

    mente. Aps diagnosticar o sofrimento psquico em situaes de tra-balho, ela no busca atos teraputicos individuais, mas intervenesvoltadas para a organizao do trabalho qual os indivduos este-

    jam submetidos. Ela tem como uma de suas vertentes fundamentaisas categorias da Psicanlise. Assim, compreende que frente a umasituao de agresso ao Ego, o indivduo defende-se, primeiramen-te, pela produo de fantasmas, que lhe permitem construir uma li-gao entre a realidade difcil de suportar, o desejo e a possibilidadede sublimao. Para Dejours (1987c: 739), a situao de trabalhotaylorizada est bloqueada entre o Ego e a realidade, pois o conte-do da tarefa, seu modo operatrio e sua cadncia so decididos peladireo da empresa. Nessas condies, possvel perceber-se que ofantasma no serve a nada.

    A Psicodinmica do Trabalho tem, tambm, por referncia fun-damental, os conceitos ergonmicos de trabalho prescrito e de trabalho

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    real. no espao entre esseprescrito e esse real quepode ocorrer ouno a sublimao e a construo da identidade no trabalho. Segundo

    Daniellou e colaboradores (1983: 39), existe sempre, no trabalho tay-lorizado, uma separao entre trabalho prescrito e real, conseqente separao entre concepo e execuo.

    Assim, a principal crtica que a disciplina dirige ao taylorismo que ele impede a conquista da identidade no trabalho, a qual ocorre,

    precisamente, no espao entre trabalho prescrito e trabalho real. A Orga-nizao Cientfica do Trabalho no se limitaria apenas desapropria-o do saber; ela proibiria, tambm, toda a liberdade de organizao,de reorganizao e de adaptao ao trabalho, pois tal adaptao exigi-ria uma atividade intelectual e cognitiva no esperada pelo taylorismo(Dejours, 1993: 38).

    Para Dejours (1987c: 730) outras abordagens diferentes, alm daPsicodinmica do Trabalho, so possveis, entre as quais:

    - a tentativa de se evidenciarem doenas mentais especificamenteocasionadas pelo trabalho a partir de uma hiptese patognica inspirada no modelo toxicolgico;

    uma abordagem de tipo epidemiolgica, que vai chocar-se comobstculos importantes, como a seleo de uma amostra significativa,

    pois fica difcil determinarem-se as relaes entre o sujeito que sofrede um distrbio psquico e o trabalho, na medida em que esse traba

    lho j foi perdido, na maior parte das vezes, por motivo de queda deperformance profissional e de alteraes na vida relacional. neces-srio assinalarem-se, tambm, os problemas oriundos das dificulda-des de diagnstico que encontra o pessoal de sade (mdico do traba-lho e mesmo os psiquiatras);

    a abordagem "agressolgica", que privilegia o estudo das conse-quncias do estresse sobre o organismo humano e que poderia ser assemelhada Psicodinmica do Trabalho atravs da identificao en-tre estresse e sofrimento psquico. A principal limitao dessa inter-

    pretao a sua no-especifcidade com relao ao tipo de trabalho,isto , as reaes somticas so sempre de mesma natureza, no im-

    portando o tipo de presso no trabalho;

    - a abordagem psicanaltica, que apresenta, no entanto, limita-es, pelo fato de que a Psicanlise privilegia o campo do fantasmaem relao realidade e, tambm, porque ela tem muitas dificuldades

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    em articular essa realidade com uma estrutura psquica concebida,quase exclusivamente, a partir de experincias infantis. No entanto,

    esse autor pensa que possvel utilizar-se o conceito de sublimaocomo um instrumento de compreenso de situaes de trabalho (De-jours, 1987c: 731).

    O conceito de sublimao tem sua origem na teoria de Freud so-bre o desenvolvimento da sexualidade, segundo a qual, aps o nasci-mento, os rgos sensoriais (pele, olhos, orelhas, etc.) "solicitam sa-tisfao por sua prpria conta", dentro de um mosaico primitivoonde apenas intervm o corpo e onde no existe aparelho psquico

    para controlar essas operaes. o momento da indiferenciao so-mato-psquica. Para chegar a uma sexualidade adulta, necessrioque a criana passe por um estgio no qual ela unifique esse mosaico.Tal unificao faz-se atravs do olhar do outro e, em primeiro lugar,da me no momento dos cuidados com o corpo do bebe. Porm, pul-ses parciais fogem a essa unificao.

    A sublimao , portanto, o processo graas ao qual essas pulsesparciais cuja satisfao , originalmente, de natureza sexual en-contram uma sada substitutiva em uma atividade socialmente valo-rizada. A idia subjacente a de que essas pulses do sujeito, quedeveriam desembocar sobre relaes sexuais, so redirigidas ao tra-

    balho, supondo-se que ocorra, preliminarmente, uma dessexuali-zao e, tambm, uma atividade de substituio socialmente valo-

    rizada. No entanto, essa substituio no simples, pois trata-se demanterem-se juntos os aspectos semelhantes e os aspectos diferen-tes e, dessa forma, faz-los interagir. Por sua vez, o trabalho repeti-tivo elimina toda possibilidade de sublimao e leva, por meio da re-

    presso, tanto a doenas somticas, como a descompensaes men-tais (psiconeurticas).

    Para que a sublimao possa ocorrer na atividade de trabalho, necessrio que certas condies sejam preenchidas:

    a) Condies psquicas

    Em primeiro lugar, deve interviruma dessexualizao das pulsesparciais, como foi descrito anteriormente. Em segundo lugar, ne-cessrio que se produza uma mudana de objetivo na pulso, o queimplica uma competncia particular; na verdade, fundamental que oindivduo possa jogar com sua prpria epistemofilia, este termo sen-

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    do compreendido como um desejo de entender a realidade no caso,a situao e a atividade de trabalho , isto , como a curiosidade ma-

    nifestada em relao situao presente e como a pesquisa do acesso significao dessa realidade. A epistemofilia uma caractersticamuito difundida e ela o resultado deste redirecionamento de objeti-vos das pulses.

    Toda situao de trabalho apresenta algo de enigmtico para o su-jeito, o que o obriga a mobilizar sua curiosidade, a qual ser recom-pensada pela compreenso obtida. Essa compreenso atingir todoseu valor na medida em que ela provocar uma diminuio do sofri-mento e possibilitar que a sublimao acontea.

    b) Condies ontogenticas

    O objeto transicional que substitui o corpo da me deve vir doexterior. Este um elemento que ter um papel essencial nas relaesde trabalho.

    Na sua infncia (dos cinco anos at a puberdade), o trabalhadordeve ser beneficiado por um espao ldico, onde ele aprenda a renun-ciar, parcialmente, atividade sexual e a se interessar por causas comum valor social. Essa fase da infncia exige companheiros (a professo-ra, os pais, etc). A relao que os pais tm com o seu trabalho e sua

    prpria epistemofilia , conseqentemente, fundamental. No caso depais para quem o trabalho no deixa nenhum espao ao desenvolvi-mento de sua prpria epistemofilia, a curiosidade infantil sentidacomo uma ameaa, pois ela vai de encontro a uma estratgia defensivaque eles tiveram muita dificuldade em estabelecer. Nesse caso, a escolano consegue, geralmente, fazer o contraponto frente atitude dos

    pais, e a criana vai encontrar-se presa entre os dois campos.

    c) Condies organizacionais

    O espao no qual pode ocorrer a epistemofilia o mesmo no qualse desenvolve o processo de sublimao, o qual no acontecer seesse espao for muito estreito. A organizao do trabalho dever,

    portanto, responder a certas caractersticas para que tal mecanismopossa funcionar. Assim, deve-se nela encontrar:

    um espao entre organizao do trabalho prescrita e organiza-o do trabalho real;

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    um espao que permita assumirem-se responsabilidades, isto ,algum tipo de atividade de concepo;

    uma correspondncia entre a situao de trabalho e o estado interno do sujeito. Trata-se de se estabelecer uma relao entre duas cenas, a do teatro psquico interno que d forma curiosidade e a doteatro do trabalho e de se passar de um teatro a outro. Essa relao a ressonncia simblica s poder se operar se existir uma analogia,uma semelhana, entre os dois teatros, sendo o do trabalho que ir retomar, de forma controversa, o teatro psquico interno. As diferenasso aqui to importantes como as coincidncias, na medida em queso elas que vo permitir estimular-se novamente, a curiosidade dosujeito e transform-lo.

    d) Condies ticas

    A relao que existe entre a organizao real e a prescrita do tra-balho sempre conflitiva: o sujeito ope-se, invariavelmente, se-gunda. As atitudes inventivas e as tentativas de se realizarem expe-rincias novas no trabalho implicam um sofrimento que se apresentamuito custoso no plano psicolgico e para a sade globalmente.Como retorno contribuio dada pelo trabalhador organizao dotrabalho, ele deve receber uma retribuio que no se resume simplesatribuio de um salrio ou de um prmio por produtividade, isto ,ela necessita ter, antes de mais nada, um carter moral, devendo, nor-

    malmente, tomar a forma de um reconhecimento. Isso significa que osinterlocutores do trabalhador devem reconhecer que as atitudes des-te ltimo contriburam para a realizao do trabalho. Esse reconheci-mento precisa acompanhar-se de um julgamento de utilidade, o quequer dizer que a atividade fornecida pelo empregado deve receber agratido de seus superiores hierrquicos na empresa, como algumacoisa que tenha utilidade do ponto de vista econmico, tcnico, etc.

    e) Condies sociais da sublimao

    Para que a sublimao possa produzir-se no trabalho, o trabalha-

    dor dever constituir um conjunto de pares a quem dar a contribui-o. A valorizao da atividade do trabalhador pelos seus prprioscolegas reveste-se de muita importncia na medida em que no mais a hierarquia que a faz. Dejours (1987) chama de "julgamento de

    beleza", porque ela baseia-se em critrios que so, ao mesmo tempo,

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    estticos e econmicos (no sentido de economia do corpo) quanto realizao do trabalho. Porm, esse julgamento, por sua vez, basea-

    do em critrios estritos: para ser-se bom juiz necessrio pertencerao mtiere respeitar suas regras. Porm, um outro critrio intervmnesse julgamento: a elegncia e a leveza no trabalho. Na medida emque as regras so estritamente respeitadas, elas no mais so vistas.

    O "julgamento de beleza" c, assim, feito pelos pares, isto , pelocoletivo de trabalho, que a equipe ou a comunidade qual a pessoa

    pertence, e esse julgamento necessrio para que se construa a iden-tidade no trabalho. ele que vai abrir um espao ao individual, ouseja, permitir a cada um fazer parte do coletivo, conservando algumacoisa a mais, uma caracterstica particular.

    Outra peculiaridade importante que o julgamento deve referir-se ao trabalho e no pessoa, para permitir a construo da identi-dade. O reconhecimento que se dirige diretamente pessoa atinge,de fato, o domnio do amor, isto , o domnio do ertico. A partir domomento em que o reconhecimento no passa mais pelo trabalho, arelao encontra-se erotizada e no permite mais a construo daidentidade do trabalhador.

    O "julgamento de beleza" refere-se s regras do mtier, constru-das por subverso e transgresso daquelas prescritas. Trata-se, nessecaso, de realizar a "burla" frente s regras. necessrio, no entanto,em dado momento, haver um acordo mtuo quanto maneira detransgredi-las: preciso tornarem-se pblicas as "burlas do mtier",

    para que se possa merecer o "julgamento de beleza", o reconheci-mento dos outros.

    Assim, os trabalhadores so levados a criar espaos pblicos, queso espaos comuns no trabalho, onde eles possam decidir a melhormaneira de realizar uma determinada tarefa. Essa atividade deve con-tar com a participao de todos, para que essas novas normas possamresultar de um consenso que as legitime. Porm, no existem apenascritrios tcnicos que entram na definio desse consenso, pois a rea-lizao da "burla" depende da histria pessoal de cada um e do seu

    conhecimento e experincia anteriores.Acreditamos que a Psicodinmica do Trabalho , tambm, herdei-

    ra da Sociologia do Trabalho, na medida em que se baseia na mesmaanlise minuciosa e sistemtica das organizaes do trabalho taylori-

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    zadas, do desvendamento das relaes de poder que a existem e daapropriao do saber operrio que ocorre.

    O fracionamento da atividade, tal qual instaurada pelo tayloris-mo, exige respostas fortemente personalizadas, que direcionam, prio-ritariamente, aos dois sofrimentos mais importantes provocados

    pelo trabalho, a saber, o medo e a monotonia.

    O medo ressentido no trabalho pode ter vrias origens (Dejours,1993: 97):

    a) o medo relativo degradao do funcionamento mental e doequilbrio psicoafetivo, o qual pode originar-se na desestruturao dasrelaes entre os colegas de trabalho. Manifesta-se atravs da discrimina-o, da suspeio ou ainda de relaes de violncia e de agressividade,

    opondo o trabalhador sua hierarquia. Existe, tambm, um medo espe-cfico relativo desorganizao do funcionamento mental, devido au-to-represso exercida de encontro ao aparelho psquico e pelo esforoempregado para se manterem comportamentos condicionados;

    b)o medo relativo degradao do organismo e ligado, direta-mente, s ms condies de trabalho.

    Sem negar a importncia dos cerceamentos psquicos ligados aotrabalho na gerao do sofrimento, Dejours (1993: 64) chama a aten-o para o fato de que , principalmente, a falta de possibilidades parase mudarem, ou mesmo aliviarem esses cerceamentos, a origem dos

    problemas de sade.

    Ser atravs dos mecanismos de defesa empregados pelo traba-lhador que ser possvel estudar c desvendar seu sofrimento. Assim,Dejours (1987a: 22) estabelece uma separao fundamental entre os"coletivos de defesa" produzidos por sublimao e aqueles gerados

    por mecanismos simplesmente adaptativos:

    Se os coletivos de defesa por sublimao mantm uma relaode relativa continuidade com o desejo, os coletivos originadosem defesas estritamente adaptativas tm uma tendncia maior aquebrar com a expresso do desejo [...]. Isto ocorre porque a su-

    blimao, diferentemente de outras defesas, garante, frente aosofrimento, uma sada pulsional, no destruidora para o funcio-namento psquico e somtico, enquanto que a represso limi-tante para o jogo pulsional.

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    O sofrimento pode, assim, ter dois destinos diferentes: de um lado, asublimao, como no exemplo dado por Dejours (1993: 102) da ativida-

    de dos pilotos de caa, para os quais a defesa a sublimao que permiteaberturas novas e, de outro, os trabalhadores submetidos execuo detarefas repetitivas, para quem as defesas contra o sofrimento so a re-

    presso pulsional, a auto-acelerao ou a ideologia defensiva de profis-so que expulsam, de um lado, o sujeito de seu desejo e favorecem a lgi-ca da alienao na vontade do outro (Dejours, 1987a: 21).

    O sofrimento pode tornar-se o instrumento de uma modificaona organizao do trabalho ou gerar um processo de alienao e deconservadorismo. Este segundo caminho explica-se pelo fato de que,aps terem-se desenvolvido mecanismos de defesa contra a organi-zao do trabalho, torna-se penoso tentar uma modificao nessa si-

    tuao. Como descreve Dejours (1993: 43), a ideologia defensiva fun-cional tem por objetivo

    [...] mascarar, conter e ocultar uma ansiedade particularmentegrave. [...] ao nvel da ideologia defensiva, na medida em quese apresenta como um mecanismo de defesa elaborado por umgrupo social particular, que se deve buscar uma especificidade[...]. Uma ideologia defensiva no dirigida contra uma angstiaoriginada de conflitos intrapsquicos de natureza mental, masela destinada a lutar contra um perigo e um risco real [...]. Umaideologia defensiva, para ser operatria, deve obter a participa-o de todos os interessados e [...], para ser funcional, deve serdotada de uma certa coerncia.

    a partir do estudo das ideologias defensivas que se ir construira investigao proposta por esta metodologia (Dejours, 1987b: 112).

    Outra contribuio da Psicodinmica do Trabalho a sua abor-dagem da relao com o prazer que pode existir entre o trabalhador eseu trabalho. Na realidade concreta e na vivncia individual do traba-lho, no se encontram apenas sofrimento, mutilao e morte. A com-

    preenso da maneira como se elaboram as duas facetas da organiza-o do trabalho, isto , aquelas que so, respectivamente, fonte de so-frimento e de prazer, indispensvel para se tentar uma interpretaomais global dos laos entre trabalho e sade e, tambm, para se pro-curarem alternativas satisfatrias.

    Se essa compreenso encontra sua origem na Psicanlise, que voltada para o estudo e o tratamento teraputico dos indivduos na sua

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    relao com uma histria singular, a Psicodinmica do Trabalho termi-na por romper, de forma importante, com essa fonte de inspirao,ainda que sem abandonar seus conceitos essenciais. Ela constri umanova abordagem, na qual o trabalho no mais visto, unicamente, co-mo uma teraputica universal para remediar "desequilbrios mentais",vistos como o resultado exclusivo da histria singular do trabalhadorque se manifestariam em um indivduo imaginrio quase insensvel aosambientes e organizao do trabalho na qual est inserido. A Psicodi-nmica do Trabalho incorpora conceitos sociolgicos para caracterizare detalhar a organizao taylorista; conceitos ergonmicos para identi-ficar o espao existente entre trabalho real e trabalho prescrito; e, en-fim, conceitos psicanalticos, tais como os de sublimao, para apreen-der o indivduo que entra no universo do trabalho como portador deuma histria singular que foi construda desde sua infncia.

    Mritos e limitaes

    O principal mrito da Psicodinmica do Trabalho , sem dvida,ter exposto as possibilidades de agresso mental originadas na orga-nizao do trabalho e identificveis ainda em uma etapa pr-patolgi-ca. Na medida em que no possvel falar-se de distrbio que possaser associado a uma situao especfica de trabalho, o desvendamen-to do sofrimento psquico desde o estado pr-patolgico permite pro-gredir-se na identificao das conseqncias da organizao tayloris-ta do trabalho sobre o aparelho psquico dos indivduos e pensar-se

    em uma interveno teraputica precoce.Em vrias atividades nas quais no se encontram, praticamente,

    agresses imediatamente observveis diferentemente dos acidentesde trabalho ou intoxicaes , os instrumentos de investigao em-

    pregados pela Psicodinmica do Trabalho revelam-se preciosos auxi-liares para se compreenderem as relaes trabalho-doena.

    A abordagem adotada por essa disciplina permite ultrapassar-se areduo a um denominador comum de diversas situaes de trabalhoe buscarem-se vivncias operrias especficas, que se inscrevem emrealidades concretas de trabalho, como, por exemplo, com relao ao

    papel da inteligncia operria e seu papel como mecanismo de defesae construo de identidade no trabalho (Dejours, 1992).

    A metodologia da Psicodinmica do Trabalho encontrou muitaressonncia entre os pesquisadores e tcnicos brasileiros que atuam

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    na rea da Sade do Trabalhador (psiclogos, mdicos do trabalho,fisioterapeutas, engenheiros de segurana, etc). E isso ocorreu pela

    capacidade dessa disciplina em preencher lacunas epistemolgicasimportantes no conhecimento em sade c trabalho, que haviam sidorelegadas a um segundo plano ou simplesmente negadas.

    Acreditamos, no entanto, que uma metodologia ainda muito jo-vem e em construo e isso dito sem nenhum demrito ao enor-me esforo que vem sendo feito para constru-la , que poder (deve-r) sofrer um processo de amadurecimento, que lhe permitir aportarrespostas mais completas sobre as relaes entre sade mental e tra-

    balho e definir de forma mais ntida suas fronteiras com as outras dis-ciplinas com as quais ela tem interface.

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