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Psicanálise e Transdisciplinaridade- Ignacio Gerber*
As equações do campo gravitacional que
relacionam a curvatura do espaço á distribuição
da matéria já estão começando a fazer parte do
raciocínio comum.
Ítalo Calvino**
Interdisciplina, Multidisciplina, Transdisciplina! Embora façam parte de
um mesmo caudal de absoluta contemporaneidade, cada um destes
termos conota sentidos muitos específicos. O termo Transdisciplinaridade
(que passarei a resumir por TD) foi criado por Piaget e retomado por
inúmeros pensadores nas ultimas décadas: Edgar Morin, Stephane Lupasco,
Basarab Nicolescu, Ubiratan D’Ambrosio e muitos outros.
Quer me parecer que a idéia geral de TD assume atualmente a forma de um
movimento, um fluxo de idéias e principalmente uma maneira de pensa-
las. Este é o ponto focal desta minha comunicação: como tem mudado
nossa maneira de pensar a nós no Mundo e o Mundo em nós, seja a partir
da criação psicanalítica, seja a partir dos desenvolvimentos recentes das
ciências físicas e matemáticas, relativizando conceitos estabelecidos;
conceitos e preconceitos que decorreram de uma apreensão sensorial do
Mundo que era julgada como absoluta e verdadeira. Já a partir de Kant e
principalmente a partir de Einstein nos defrontamos com nossas
resistências em aceitar a limitação destes conceitos, a limitação dessa
maneira de estar no Mundo. Com isso muda nossa maneira de pensar –
expandimos (ou explodimos) uma tendência a concretude que
provavelmente sempre esteve em nós, mas foi radicalmente exacerbada no
período histórico marcado pela divisão do conhecimento em disciplinas
compartimentadas.
** Ítalo Calvino – “As Cosmicômicas” – Companhia das Letras – 2000 – paginas
115
* Membro efetivo da SBPSP Como disse acima a TD tornou-se algo como um movimento informal.
Discute-se, publica-se, os interessados pertencem a todas as áreas do
conhecimento. Para tentar explicar a TD pinçarei fragmentos do texto “A
Evolução Transdisciplinar na Educação” de Fredric M. Litto e Maria F. de
Mello, coordenadores do CETRANS, Centro de Transdisciplinaridade da
Escola do Futuro da Universidade de São Paulo:
... No inicio do século XVII, surge o método cartesiano de investigação, predominante até nosso dias, o qual preconiza a busca da verdade através da ciência, dando origem à primeira proliferação de disciplinas, uma vez que se baseia na decomposição do todo, na sujeição à repetição e à dedução de leis pragmáticas para uma de suas partes. A Disciplinaridade permitiu o exercício da Pluridisciplinaridade, também chamada Multidisciplinaridade, que diz respeito ao estudo de um objeto de uma única disciplina por diversas disciplinas ao mesmo tempo e da Interdisciplinaridade que diz respeito à transferência de métodos e conceitos de uma disciplina à outra. Tanto a Multidisciplinaridade, como a Interdisciplinaridade, mesmo quando exercidas com extrema competência e sucesso – o que é necessário, louvável e de grande importância à Sociedade e ao Ser Humano, porem jamais suficiente - , inscrevem-se em um nível de linearidade disciplinar e dizem respeito a um único nível de realidade. Citando Basarab Nicolescu, físico quântico da Universidade de Paris: “Entendo por realidade aquilo que resiste a nossas experiências, representações, descrições, imagens. (...) É preciso entender por nível de Realidade um grupo de sistemas que permanece invariável sob a ação de certas leis”. A Transdiciplinaridade engloba e transcende o que passa por todas as disciplinas, reconhecendo o desconhecido e o inesgotável que estão presentes em todas elas, buscando encontrar seus pontos de interseção e um vetor comum. A palavra Transdisciplinaridade foi usada pela primeira vez em 1970, por Piaget, quando, em um colóquio sobre Interdisciplinaridade, disse “... esta etapa deverá posteriormente ser sucedida por uma etapa superior, transdisciplinar”. A Transdiciplinaridade, em uma rápida explanação, é um modo de conhecimento, é uma compreensão de processos, é uma
ampliação da visão do mundo e uma aventura do espírito. TD é uma nova atitude, uma maneira de ser diante do saber. Etimologicamente, o prefixo trans significa aquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda disciplina, remetendo à idéia de transcendência. Transdiciplinaridade é a assimilação de uma cultura, é uma Arte no sentido da capacidade de articular. Seguem-se alguns itens do Comunicado Final do Congresso “Ciência e
Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o século XXI” patrocinado
pela UNESCO, Paris, Dezembro de 1991:
3. 3. Uma das revoluções conceituais desse século veio,
paradoxalmente, da ciência, mais particularmente da física
quântica, que fez com que a antiga visão da realidade, com seus
conceitos clássicos de continuidade, de localidade e de
determinismo, que ainda predominam no pensamento político e
econômico, fosse explodida. Ela deu à luz a uma nova lógica,
correspondente, em muitos aspectos, a antigas lógicas esquecidas.
Um dialogo capital, cada vez mais rigoroso e profundo, entre a
ciência e a tradição pode então ser estabelecido a fim de construir
uma nova abordagem cientifica e cultural: a transdisciplinaridade.
4. A transdisciplinaridade não procura construir sincretismo algum
entre a ciência e a tradição: a metodologia da ciência moderna é
radicalmente diferente das praticas da tradição. A
transdisciplinaridade procura pontos de vista a partir dos quais seja
possível torná-las interativas, procura espaços de pensamento as
que façam sair de sua unidade, respeitando as diferenças, apoiando-
se especialmente numa nova concepção da natureza.
5. Uma especialização sempre crescente levou a uma separação entre a
ciência e cultura, separação que é a própria característica do que
podemos chamar de “modernidade” e que só fez concretizar a
separação sujeito-objeto que se encontra na origem da ciência
moderna.
Reconhecendo o valor da especialização, a transdisciplinaridade
procura ultrapassa-la recompondo a unidade da cultura e
encontrando o sentido inerente à vida.
6. 6. Por definição, não pode haver especialistas transdisciplinares,
mas apenas pesquisadores animados por uma atitude
transdisciplinar. Os pesquisadores transdisciplinares imbuídos desse
espírito só podem se apoiar nas diversas atividades da arte, da
poesia, da filosofia, do pensamento simbólico, da ciência e da
tradição, elas próprias inseridas em sua própria multiplicidade e
diversidade. Eles podem desaguar em novas liberdades do espírito
graças a estudos transhistóricos ou transreligiosos, graças a novos
conceitos como transnacionalidade ou novas práticas transpoliticas,
inaugurando uma educação e uma ecologia transdisciplinares.
7. O desafio da transdisciplinaridade é gerar uma civilização, em
escala planetária, que por força do dialogo intercultural, se abra
para a singularidade de cada um e para a inteireza do ser.
Se observarmos os princípios da TD, seja nas citações acima, seja na carta
de princípios publicada no Congresso de Arrábida, Portugal – 94 (ver
bibliografia) podemos perceber que a ética constitui a fundação, o alicerce,
que sustenta seus três pilares conceituais. Uma transição indispensável
entre a construção intelectual humana e seu apoio na Terra, no cosmos, no
mundo físico, na Realidade.
Também vejo assim a Psicanálise: Se não for exagero direi que ela é uma
ética, o que novamente implica numa maneira peculiar de pensarmos nós
mesmos e o mundo. Uma ordem ética implícita no caos do fluxo
paradigmático.
Os três pilares conceituais da TD são:
1. 1. Os níveis de realidade
2. 2. A lógica do terceiro incluído
3. 3. A complexidade
Não caberia neste texto uma explanação detalhada desses três pilares, mas
penso que os nomes já falam por si mesmos do que se trata.
Parece-me que a criação da Psicanálise através da postulação do
Inconsciente por Freud se inscreve pioneiramente nesse movimento
transdisciplinar. Diria mesmo que a Psicanálise compartilha esses pilares.
Assim, a lógica Inconsciente:
1. 1. Admite diferentes níveis de realidade
2. 2. Admite a contradição
3. 3. É a própria essência da complexidade
Praticamente toda a literatura psicanalítica se envolve com esses conceitos;
apenas para citar alguns, Freud, Ferenczi, Lacan, Bion, etc. Um autor cuja
obra estabelece laços pioneiros entre Psicanálise e TD é o psicanalista
chileno Ignacio Matte-Blanco; ele também nos fala de uma outra maneira
de “pensar” – a lógica contraditória do inconsciente. Poderíamos definir
resumidamente os seus dois livros: “O Inconsciente como conjuntos
infinitos” e “Pensar, Sentir e Ser”, emprestando algo das citações acima:
uma aventura do espírito.
Voltando a “tese” dessa minha comunicação, imagino que a psicanálise
inaugura uma visão transdisciplinar do mundo, o que implica uma
postulação prévia: Que a psicanálise tenha uma visão de mundo, uma
maneira peculiar de pensar o mundo, uma Weltanschaung. Nos anos 30,
momento histórico onde Freud imaginava ser fundamental para a
sobrevivência da psicanálise sua adoção pela comunidade cientifica
acadêmica, ele escreveu o capítulo “A questão de uma Weltanschaung”
como parte das “Novas conferências introdutórias”. Nele ele nega à
psicanálise uma cosmogonia independente daquela da ciência positivista da
virada do século. Podemos compreende-lo - naquele momento o endosso
concreto que a Física dava ao pensar relativista era coisa recente e
“esotérica”.
Para dar um exemplo da gradual abertura das até então chamadas ciências
exatas, existem atualmente em várias universidades de ponta centros de
estudo e revistas cientificas dedicadas à matemática experimental, onde
se trata de uma matemática quase empírica. Outros setores se interessam
pela matemática contraditória ou paraconsistente, ou mesmo pela
Metamatematica. Lembro aqui o Principio de Alfred Tarski: Nenhum
grupo fechado em si mesmo pode ter uma visão objetiva e completa de si
mesmo – outros pontos de vista são indispensáveis e com isso abrem-se as
fronteiras disciplinares.
Por incrível coincidência (ou sincronicidência!), ontem numa livraria dei de
cara com uma nova edição de “Flatland” de Edwin Abbott. Escrito em
1884 este romance é uma fantasia lógico matemática sobre um mundo
“chato” (flat), só com duas dimensões. Nele acompanhamos as peripécias
do Sr. A. Square (Um Quadrado, que é exatamente o que ele é nesse mundo
imaginário que se desenrola num plano) e sua descoberta aventurosa de
uma terceira dimensão ortogonal que lhe escapa completamente. Através
dele podemos imaginar – imaginar não, inteligir, pois nos falta exatamente
a capacidade de criar imagens de um mundo com um numero de dimensões
espaciais maiores que três – como nossa concretude sensorial cria verdades
relativas. Existem muitas dimensões que nos escapam. As estimativas
atuais falam em sete ou oito dimensões ocultas.
Coincidência porque Matte-Blanco propôs um sistema inconsciente
multidimensional, que nos ajuda a compreender as características
inconscientes propostas por Freud. Não tenho notícia de contatos diretos
entre Matte-Blanco e o movimento Transdisciplinar (talvez com Lupasco?)
e no entanto os pilares de apoio parecem ser comuns: o Inconsciente como
um contínuo probabilístico multidimensional entre o apreensível e o não
apreensível, talvez, trans-apreensivel.
Em um texto anterior propus o termo A – consciente como alternativa para
inconsciente. Isto porque o prefixo A grego (alfa – privativo) denota um
além de, uma transcendência de nível de realidade, diferente do In que
aponta para uma negação do consciente no mesmo nível de realidade.
Se preferirem, talvez, trans-consciente!
Referencias bibliográficas (na biblioteca da SBPSP)
1. 1. Carta de Transdisciplinaridade – Ciret – UNESCO – 1994
2. 2. Aspectos Gödelianos da Natureza e do Conhecimento – Basarab
Nicolescu
3. 3. Bibliografia básica sobre TD.