psicanÁslise e neurociÊncia

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    PSICANLISE E NEUROCINCIA: UMA RELAO TO DELICADA

    Douglas Naegele BarbirattoMestrando em Psicanlise Social

    Orientadora:Flavia Sollero-de-Campos

    RESUMO

    As relaes entre a Neurocincia e a Psicanlise so bastante complexas,demandando previamente um estudo detalhado que contemple aspectosmetodolgicos e epistemolgicos das teorias que se pretende articular. Umencontro entre a Psicanlise e a Neurocincia, em geral, pode apenas

    perpetuar os mal-entendidos numa relao j to eivada de dificuldades. Aautora apresenta as concepes de dois psicanalistas que articulam suasteorias s do neurocientista Gerald Edelman, que prope uma complexa teoria

    da mente.

    SUMMARY

    The relationship between neuroscience and psychoanalysis are quite complex,requiring a previous detailed study that contemplates methodological andepistemological aaspects of the theories which one intends to articulate.

    Anencounter between psychoanalysis and neuroscience, on the whole,would just perpetuate the misunderstandings of a relationship that is alreadyso contaminated with difficulties. The author shows the conceptions of two

    psychoanalysts that articulate their theories to the neuroscientist Geral

    Edelman, that suggests a complex mind theory.

    O tema de nosso encontro certamente um dos mais polmicos da atualidade.Pretendo, portanto, apresentar algumas reflexes sobre a possibilidade daPsicanlise no ficar margem do debate contemporneo que envolve as atuaisteorias em neurocincia. Freud no se furtou e, mais do que isso, sempre estevea par do pensamento cientfico de sua poca, deixando-se influenciar por essasidias. Enfim, historicamente podemos traar a fertilidade de tal procedimento.No entanto, atualmente observo em alguns psicanalistas uma recusa a priori da

    produo contempornea proveniente das cincias naturais, como se essastrassem o esprito da Psicanlise. Em outros, trata-se mais de um desinteresse,

    baseado na certeza de que a Neurocincia nada tem a ver com a Psicanlise. Osefeitos dessas posturas parecem-me danosos, na medida em que podem afastara possibilidade de um dilogo entre diferentes reas de saber e colocar aPsicanlise num incmodo lugar anacrnico. Por outro lado, a postura queidealiza a Neurocincia e a coloca como a possibilidade de salvao daPsicanlise das crticas atuais oriundas das comunidades mdicas e cientficastambm no presta nenhum servio relevante ao lugar dos psicanalistas nosdias de hoje.

    Desde sua constituio, a Psicanlise aborda alguns temas centrais que foram setornando gradativamente objeto de interesse e de pesquisa experimental em

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    algumas abordagens em Neurocincia. a Psicanlise a teoria que assinala queo sujeito no uno; um sujeito dividido, e determinado por foras que estoalm, ou aqum, de sua conscincia. O psiquismo ou a mente, se quisermos regido por conflitos entre o domnio consciente e o inconsciente; , portanto,intrinsecamente inatingvel um funcionamento psquico to harmonioso a

    ponto de neutralizar a existncia do sofrimento no ser humano. O sujeitopsicanaltico seria aquele cuja capacidade para a reflexo sobre si e cujo acesso,at onde for possvel, de sua dimenso inconsciente lhe fornecem talvez a formamais prxima de uma relativa autonomia e liberdade. Sem dvida, a concepopsicanaltica de subjetividade mostra-se complexa e sofisticada.

    A Psicanlise , tambm, e disso devemos lembrar-nos insistentemente, parteintegrante das formas de subjetivao contempornea. Ela uma prtica socialque participa da constituio e da regulao dos sujeitos, inclusive das formasem que concebida sua realidade interna. Em outras palavras, a Psicanlise estinextricavelmente ligada s maneiras pelas quais se compreende a subjetividade

    contempornea. Desse ponto de vista, a clnica constitui-se num dos discursosonde aprende-se um instrumental, um aparato conceitual para se pensar sobresi mesmo e suas relaes interpessoais.

    Alm disso, a Psicanlise refere-se Biologia em suas formulaes, tais comonos conceitos de instinto, pulso, necessidade, e todo um vocabulrio ligado teoria da evoluo. Freud e os psicanalistas que a ele se seguiram propunhaminteraes, correlaes, metforas, no somente com a Biologia, mas tambmcom a Sociologia e Antropologia de sua poca. Ao falarem de analogias,correlaes, interaes, certamente demonstram uma concepo dualista quecaracteriza a Psicanlise. O dualismo continua hegemnico na Psicanlise, pois

    considera-se que somente nessa perspectiva possvel preservar a singularidadedos estados mentais, sua no-redutibilidade a estados fisiolgicos cerebrais,etc., e manter a separao entre as cincia naturais e as cincias humanas.

    Penso que esta concepo dualista mantm-se exatamente por no seproblematizar nem a concepo de cincia, nem a concepo de linguagemdominantes. Alm do mais, a tentativa de manter a integridade da Psicanlise,de se manter a fidelidade imaginria perspectiva freudiana pode tornarnos cegos em relao a dois aspectos. Primeiro, s modificaes e apropriaestericas que o prprio Freud fez, com grande independncia, no decorrer de suaobra. , tambm, esquecer-se do legado lacaniano, pois indubitavelmente

    Lacan transformou de maneira radical a Psicanlise a partir da perspectivaestruturalista.

    Certamente existem vrias maneiras de se fazer a articulao neurocincia-psicanlise. Inicialmente, parece que a questo mais importante - ou pelomenos, a mais visvel - no campo dessa articulao centra-se na questo dasorigens dos distrbios mentais e comparao da ao das vrias formas depsicoterapia, inclusive a psicanlise, com o uso de psicofrmacos. Esta discusso problemtica, e no para ela que esto direcionados os neurocientistas maissofisticados. Por sua vez, boa parte dos psis no leva em considerao em suasreflexes as atuais teorias biolgicas da mente, e suas contribuies para o

    debate.

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    QUE NEUROCINCIA?

    Dada a espantosa complexidade do crebro e de sua atividade, existem estudosque pretendem desde incluir o sistema nervoso em sua integridade, at aquelesque pesquisam um tipo especfico de receptor de protenas. Para Rose (1999),

    por isso a neurocincia representa a convergncia de muitas tecnologias (p. 5).Mas logo assinala que no se trata bem de convergncia, pois os vrios camposmantm-se relativamente isolados. E queixa-se de que existe uma imensaquantidade de dados e de teorias limitadas em diferentes nveis, mas que aindafalta uma concepo unificada do que significa ser um crebro, e de como ele fazo que faz(p. 5).

    Por um lado, podemos divergir da utilizao da palavra tecnologias, pois aNeurocincia composta de vrias disciplinas, que recorrem s tecnologiasdisponveis e adequadas ao desenvolvimento de suas pesquisas Por outro lado,concordamos at certo ponto com Rose, quando este fala da falta de uma teoria

    unificada da mente. Temos uma coorte de teorias pequenas e limitadas, que nonos permitem integrar os dados provenientes das vrias reas de pesquisaenvolvidas.

    Podemos dizer que existem dois tipos fundamentais de abordagem fisicalista 1 aoestudo da mente. O materialismo eliminativista afirma que os fatos mentais soproduto especfico da arquitetura neuronal: os estados mentais so estadosfsicos do crebro, e qualquer tipo de explicao que recorra a uma dimensomentalista para dar conta do comportamento humano enganosa(Churchland, 1984, p. 43). Assim, essa abordagem busca eliminar todo

    vocabulrio psicolgico e substitu-lo por um vocabulrio fisiolgico, que seria

    mais preciso e rigoroso. Para isso, busca formular novas categoriasexplanatrias recorrendo biologia molecular e seus derivados, e construindo,portanto, categorias de nvel neuronal e sub-neuronal.

    Para o materialismo reducionista tambm existiria uma correlao entreestados fsicos cerebrais e estados mentais. O mental estaria intrinsecamenteligado s suas bases cerebrais. Porm, para explic-lo, no seria necessrioafastar todo vocabulrio mentalista; pelo contrrio, para que essa abordagem seapresente como relevante, considera-se fundamental que ela incorporeconceitos e temas provenientes das reas primeiras que tinham o humano porobjeto: psicologia, sociologia, psicanlise, etc., alm da folk psychology. Na

    busca de categorizaes para o estudo do funcionamento neuronal, se recorrera todo tipo de conceitos envolvidas no estudo da subjetividade, visandocompreender o sistema neuronal a partir exatamente dessas categorias; porexemplo, racionalidade, conscincia, inconsciente, emoes, dor, ansiedade.Esta certamente a abordagem mente mais pertinente a um estudo dasubjetividade. Porm, faremos mais uma diferenciao no grupo destas teorias.

    O grupo de tericos neurocientistas reducionistas considera que as noes deorganismo e de vida so imprescindveis ao estudo e ao entendimento da mente- animal e humana. Nenhum computador, por mais sofisticado, dar conta da

    1 O fisicalismo consiste na crena de que todas as propriedades, os acontecimentos e os estados mentais

    podem ser totalmente explicados em termos de propriedades, estados e acontecimentos fsicos.

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    complexidade de um organismo vivo, e mais ainda, do ser humano, com suacapacidade lingstica. Temos, aqui, as teorias de Crick e Koch (1994), quepropem o nvel neuronal de estudo, Penrose (1994), que prope o nvel sub-neuronal - o quark no entendimento da mente. Estes autores soreducionistas, mas a nosso ver falta-lhes o aspecto essencial de interesse para a

    rea de cincias humanas e sociais.

    Portanto, dentro da posio fisicalista, consideramos que a conceporeducionista a mais adequada para os interesses das cincias humanas esociais. Porm, Crick e Koch, e Penrose propem teorias s quais faltaexatamente esse aspecto, na medida em que mantm-se nos nveis sub-neuronale neuronal, que pouco nos auxiliam no entendimento do humano.Consideramos adequados para nossa rea de interesse os autores queestabelecem claras relaes com o entendimento scio-cultural dasubjetividade, atravs de conceitos originrios da psicanlise, da neurologia, dafilosofia (pragmtica e hermenutica), da psicologia, da psiquiatria, incluindo a

    linguagem latu sensu e seus usurios. Portanto, os autores desta linha noeliminam os conceitos e categorias psicolgicos, psicanalticos, psicopatolgicos,scio-culturais, mas sim tentam estabelecer relaes entre estes e ofuncionamento do sistema neuronal. Eles esto exatamente tentando entender oneuronal a partir de categorias tais como racionalidade, conscincia,inconsciente, emoes, valor, e outros. Enfatizam a plasticidade neuronal que,frente s experincias vividas pelo organismo (e no somente o humano),

    viabiliza a produo de estruturas neuronais sempre individuais e singulares. Alm disso, assinalam que quanto mais complexa e diferenciada for aexperincia de vida, mais complexa e rica ser a configurao cerebral doindivduo, e assim, mais resistente deteriorao.

    Dentre os seres humanos, a existncia da linguagem e a complexidade daexperincia social so causa e conseqncia da maior plasticidade cerebral,provocando no sistema cerebral modificaes em cascata (ver, por exemplo,Edelman, Damasio, Schore, Rosenfield, Varela). Para estes tericos, o conceitoque atravessa seu campo no o do computador, e sim o de informao (ocomputador compartilhado enquanto ferramenta pelos dois grupos - mas, noprimeiro grupo, tambm a metfora bsica).

    Consideramos, assim, que uma teoria da mente que nos seja til dever tercomo ponto de partida o fato de que a mente existe em seres vivos que habitam

    um mundo. Os aspectos biolgicos no so, portanto, acessrios; eles sofundamentais para se entender tais sistemas vivos. O conhecimento dosdetalhes antomo-fisiolgicos e do desenvolvimento do sistema nervoso fundamental, assim como a incluso dos aspectos comumente definidos como avida mental e a vida social dos seres vivos: sensaes, percepes,sentimentos, impulsos, interao, e, nos seres humanos, a linguagem e aconscincia de si. Uma teoria da mente deve procurar dar conta dessascaractersticas, incluindo-as no contexto mais amplo das complexas relaes dosseres vivos com o meio ambiente.

    Desenvolvendo tal concepo, os autores citados acima afirmam que a

    experincia social indissocivel da arquitetura cerebral existente noshumanos; os seres humanos so humanos por que constitudos assim, seres de

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    Consideramos, portanto, que no basta falar d a neurocincia e d apsicanlise. Precisamos definir, e escolher usando critrios epistemolgicosconsistentes, as teorias em neurocincia que melhor nos servem, as maisadequadas a nossos propsitos. Nesta escolha, crucial o critrio dapreocupao com os aspectos scio-culturais da subjetividade. Assim como

    temos vrias teorias em psicanlise, o mesmo se d na neurocincia.

    Do ponto de vista da neurocincia, atendendo aos critrios propostos acima, asteorias que atualmente demonstram maior relevncia para ns, das cinciashumanas, so as teorias de Gerald Edelman, Antonio Damsio, Francisco Varelae Michael Gazzaniga. Certamente essas teorias apresentam inmeras diferenasentre si. Mas propem-se a ser teorias abrangentes da mente, e no teoriaslimitadas em diferentes nveis (Rose, op. cit.).

    No campo da neurologia clnica, j so bastante conhecidos os escritos de OliverSacks ( 1995; 1997; 1998 ), onde ele enfatiza a importncia de vrias teorias da

    neurocincia atual, e mais especificamente a teoria de Gerald Edelman (1989,1992, 2000). Tais teorias so fundamentais para Sacks explicar seus casosclnicos, do ponto de vista de reorganizaes fisiolgicas e anatmicas namicroestrutura do crebro. As reorganizaes realizadas por animais e humanosnas suas inumerveis capacidades de adaptao individual frente a situaestotalmente novas - muitas vezes causadas por adoecimentos - geram novaspercepes, novas categorizaes e organizaes, novos modos de relacionar-secom o mundo. A doena tem o papel paradoxal de revelar tais capacidadeslatentes.

    Tambm so interessantes os trabalhos de Israel Rosenfield (1992, 1994), onde

    ele prope uma teoria da memria (a memria no uma entidade precisa; aslembranas no esto estocadas numa espcie de almoxarifado cerebral ) e daconscincia, incluindo a tentativa de explicao de alguns distrbios deidentidade e de conscincia. Rosenfield considera que a neurofisiologiacontempornea possibilita formas de entendimento da subjetividade a partir demecanismos neurolgicos especficos que tinham sido negligenciados at ento,e afirma que a memria, o reconhecimento e a conscincia so parte integrantede um mesmo processo. Elogia a teoria freudiana da memria, pois esta edificauma problemtica mais profunda e mais interessante(p. 46) no somente doque aquela das concepes dos neurologistas contemporneos de Freud, comoainda se mantm vigorosamente atual3.

    E A PSICANLISE?

    Em artigo dedicado questo do descentramento do sujeito realizado peloconceito de inconsciente, Bezerra ( 1994) observa que o fato de se utilizar osmesmos termos - inconsciente, pulso, sujeito, desejo, interpretao,transferncia - no significa que no existam divergncias profundas entre ospsicanalistas quanto ao entendimento e utilizao desses conceitos. Asdiferentes elaboraes em torno da teoria freudiana redefinem continuamente o

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    Um pequeno exemplo da atualidade da concepo freudiana, muito antes de qualquer pesquisa sobrememria de procedimento, aparece em seu artigo de 1914 Recordar, Repetir e Elaborar: na

    transferncia, o paciente repete em atos aquilo de que no se recorda.

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    campo psicanaltico, e podem ser o motivo mais importante nas disputas queocorrem em seu interior. Alm disso, dessas diversas interpretaes podem serelaboradas descries diferentes tanto da experincia clnica quanto do lugar aser ocupado pela psicanlise no interior da cultura. (Bezerra, p. 120).

    A primeira onda de interesse entre os psicanalistas desejosos de incluir apsicanlise no campo cientfico objetivista deu-se entre as dcadas de 50 e 70,nos anglo-saxnicos; propunham-se a redefinir conceitos a partir da teoria dainformao, da teoria de sistemas, e da biologia que j comeava a interagir comestes dois referenciais. Para ser aceita, a psicanlise deveria reconstruir suateoria de maneira a viabilizar a verificao experimental. A cientificidade dapsicanlise seria conquistada pela adoo da filosofia neopositivista e dofisicalismo das cincias da natureza; alis, nos Estados Unidos, a psicanliseexpandiu-se ao ser aceita pela psicologia e pela psiquiatria, e incorporada a elas.

    Assim, os primeiros psicanalistas dedicados a estabelecer bases consideradascientficas para a teoria psicanaltica buscaram tais bases na neuropsicologia e

    na teoria da informao: temos dois pequenos exemplos das obras dePeterfreund (1971) e Rosenblatt e Thickstun (1977).

    no contexto da heterogeneidade reinante no campo da Psicanlise, e dosucesso da neurocincia e reas afins que alguns psicanalistas, principalmentede lngua inglesa, e aps um intervalo de aproximadamente 20 anos, tm-sepreocupado em estabelecer conexes entre a perspectiva psicanaltica e algumasdessas cincias contemporneas, visando explicar como e porqu a psicanlise (e a psicoterapia psicanaltica) funciona, como se d - ou no - a mudanapsquica. Tais conexes estabelecem-se a partir de diferentes campos, tais comoa neurobiologia, a observao de bebs, a etologia e outros aspectos da teoria do

    desenvolvimento contempornea, pesquisas em psicoterapia, psicologiacognitiva, psicofarmacologia, redes neurais e estudos de imagens do crebro. Apreocupao maior desses psicanalistas parece consistir em confirmar suasteorias nos achados da cincia contempornea, procurando afirmar o lugar dapsicanlise na contemporaneidade cientfica. Assim, por exemplo, estabelecemconexes entre a psicanlise e estudos sobre aprendizagem e memria; ouexplicam em termos neuronais parte do que acontece numa sesso psicanaltica.Por outro lado, defendem tambm a posio pr-psicanlise, na medida em queutilizam estes mesmos argumentos para provar que a psicanlise e apsicoterapia psicanaltica podem ser consideradas meios eficazes de se alterar asrepresentaes de relacionamentos que compem o psiquismo, propiciando,

    portanto, mudana psquica.

    Porm, como no definem exatamente o que lhes interessa, e os temasrelevantes para seu esforo de atualizao da Psicanlise, acabam por recorrer aum amlgama de teorias, onde se misturam abordagens eliminativistas comoutras, dos variados matizes reducionistas. Ficamos, ento, com uma colcha deretalhos, onde os vrios tipos de pesquisas em neurocincia no passam por umcrivo epistemolgico mais rigoroso.

    Por outro lado, temos tambm vrios indicadores da crescente preocupao dealguns psicanalistas da atualidade em relacionar de maneira consistente terica

    e epistemologicamente a psicanlise com a neurocincia; no caso, a teoriabiolgica da mente mais utilizada tem sido a proposta por Gerald Edelman.

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    Arnold Modell (1993, 1996) prope-se a estudar o funcionamento interno dotratamento psicanaltico : como o setting psicanaltico pode funcionar como umambiente facilitador da experincia transferencial. Em que consiste exatamentea transferncia: uma repetio do passado, ou uma nova criao? Para Modell,

    nem uma nem outra: a transferncia s pode ser entendida como um paradoxo,tempo cclico e no linear, onde existem relaes extremamente complexasentre memrias e fantasias. As memrias so reconstrudas pela experincia, eao mesmo tempo, o sujeito pode utilizar a fantasia para preencher os buracosnos seus registros. Modell afirma, ento, que a transferncia apresentamltiplos nveis de realidade, que lhe do sua qualidade fugidia e a dificuldadede se dizer qual a relao real do analisando com o analista. Porm, o maisinteressante para ns que Modell, como Rosenfield, encontra na teoria daseleo de grupos neuronais de Edelman uma confirmao inesperada dasconcepes freudianas de memria. Para Edelman, memria recategorizaoda experincia; assim, Modell arrisca-se a explicar de uma maneira nova a

    funo biolgica da repetio e, especificamente, o Nachtraglichkeit (aposteriori). Alm disso, Modell estuda o conceito de self ( 1993) numaperspectiva interdisciplinar que envolve a teoria das relaes de objeto,psicologia do self, e neurocincia (novamente, a proposta de Edelman). Nessesegundo livro, Modell afirma a existncia de uma crise conceitual na psicanlise,causada por dois grandes problemas: primeiro, a teoria das pulses estariaincompatvel com a biologia contempornea. Ao tentarem solucionar essaquesto, alguns afirmam ser a pulso um conceito psicanaltico, e no biolgico.Mas assim discordam da prpria definio freudiana, que coloca a pulso comoconceito limtrofe entre o biolgico e o psquico. Em segundo lugar, a teoria doself apresenta conceituaes totalmente diferentes da teoria das pulses; ento,

    como concili-las? Modell utiliza o conceito edelmaniano de valorevolucionrio para substituir o conceito de pulso Esta substituio permitiriaabranger tanto os sistemas homeostticos do organismo como seu sistema desentidos e preferncias pessoais - e, portanto, englobaria a psicologia do self.Cabe observar que as propostas de Modell no so isentas de crtica; a primeiraseria que o autor busca substituir conceitos da psicanlise por conceitos dateoria de Edelman, e no estabelecer uma relao entre as teorias.

    Alm de Modell, existem inmeros autores psicanalistas que propem-se aestabelecer uma aproximao entre os dois campos, quase sempre referindo-seao exemplo de Freud e seu Projeto para uma Psicologia Cientfica (1896) como

    uma proposta seminal refletindo esse tipo de preocupao. A revistaNeuropsychoanalysis, fundada em 1999, tem trazido grandes contribuies aodebate, buscando novas formas de aproximaes entre os dois campos de saber.Outro psicanalista interessado no tema, e de outra tradio em Psicanlise,

    Andr Green que, desde 1995, demonstra interesse pela mesma teoria de GeraldEdelman.

    Em 1995, Green afirma que os neurobilogos se interessam pelas relaes entreo crebro e a conscincia... no se interessam de modo algum pelo inconsciente.Quer dizer, existe de fato uma recusa do conceito de Ics tal como ns,psicanalistas, o concebemos.(p. 16). Fala da interao dos sistemas

    imunolgico, neuronal e hormonal, heterogneos com o aparelho psquico deFreud. Diz que as teorias que mais o interessam so a de Jean-Didier Vincent,

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    que enfatiza a importncia do sistema hormonal na regulao psquica, e a deEdelman. Como Modell, Green advoga o uso do conceito de categorizao, ou decategorias-valorpara dar conta do funcionamento do inconsciente. Prope arelao entre conceito de investimento/catexe e a determinao de que algotenha valor para um dado indivduo. No seu segundo exemplo, prope que, no

    sistema freudiano, a angstia de castrao poderia ser uma categoria-valor.

    Critica o desejo de se chegar a um procedimento objetivo, que se manifestaprincipalmente pela tentativa de dessubjetivao, o que leva os cientistas arecorrerem a categorias que funcionam segundo um modelo puramentefisiolgico, e que no faz sentido para os psicanalistas. Esta ponderaoconfirma nossas observaes quanto escolha das teorias em neurocincia.

    No segundo artigo, de 1999, aps discorrer sobre fatos clnicos e a diferenciaoiniciada em Freud entre afeto e representao no inconsciente, Green fala sobrealgumas formas de transferncia onde prevalece o irrepresentvel, formulando

    algumas hipteses para tais situaes clnicas. Aqui, ele reafirma a segundateoria das pulses e, ao fazer especulaes utiliza o conceito edelmaniano dereentrada.

    Green duvida que as abordagens ditas observacionais cientficas possam darconta da complexidade da situao analtica. Simultaneamente, para ele, ateoria de Edelman mostra que no estudo da conscincia e a fortiori doinconsciente o melhor referente so outros seres humanos, pois seussentimentos formam a base indispensvel sobre a qual podemos correlacionartodas as suas experincias. E afirma que esta teoria seria a nica que noreduz a atividade psquica atividade neuronal.

    CONCLUSO

    Nosso interesse em apresentar mais detalhadamente as idias de doispsicanalistas decorre do fato de ambos referirem-se de maneira consistente aum neurocientista que prope uma teoria da mente, e sua busca de integr-lo ssuas propostas tericas e tcnicas. Consideramos que a viabilizao do tipo dediscusso proposto neste encontro demandaria, primeiramente, umaredefinio metodolgica e epistemolgica de ambos os campos. Nesse contexto,so grandes as dificuldades encontradas pelos autores psicanalistas que tentamarticular contribuies da neurocincia com problemticas propriamente

    psicanalticas. Em conseqncia, so feitas justaposies at superficiais deaspectos tericos, os quais remetem no apenas aos diferentes pressupostos, dotipo fisicalismo VS. dualismo, como tambm aos diferentes propsitos dasrespectivas teorias.

    Num segundo momento, caberia realizarmos uma discusso das principaiscontribuies da neurocincia que seriam relevantes para a psicanlise. Porexemplo, a questo da ciso e da fragmentao do sujeito, definidas comomltiplos sub-sistemas que se interrelacionam atravs de inmeras vias eformas de conexo, sendo este processo praticamente inconsciente; a questo dapercepo e da memria consideradas como contnuos processos de construo

    e reconstruo envolvendo os sub-sistemas acima citados; a questo dadimenso valorativa inerente a todo esse funcionamento, em seus vrios nveis

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    de complexidade, sendo que tais valores refletem no apenas a programaogentica e as predisposies, mas tambm toda a trajetria idiossincrtica de

    vida do indivduo.

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