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LUIZ ANTONIO NASCIMENTO DE SOUZA PROPOSTA DE REFORMA AQUÁTICA DO MOVIMENTO DOS RIBEIRINHOS DO AMAZONAS EM FACE ÀS MODIFICAÇÕES DAS PRÁTICAS PESQUEIRAS Tese apresentada à Universidade Federal de Viçosa, como parte das exigências do Programa de Pós- Graduação em Extensão Rural, para obtenção do título de “Magister Scientiae”. VIÇOSA MINAS GERAIS - BRASIL NOVEMBRO - 2000

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LUIZ ANTONIO NASCIMENTO DE SOUZA

PROPOSTA DE REFORMA AQUÁTICA DO MOVIMENTO DOS RIBEIRINHOS DO AMAZONAS EM FACE ÀS MODIFICAÇÕES DAS

PRÁTICAS PESQUEIRAS

Tese apresentada à Universidade Federal de Viçosa, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural, para obtenção do título de “Magister Scientiae”.

VIÇOSA MINAS GERAIS - BRASIL

NOVEMBRO - 2000

LUIZ ANTONIO NASCIMENTO DE SOUZA

PROPOSTA DE REFORMA AQUÁTICA DO MOVIMENTO DOS RIBEIRINHOS DO AMAZONAS EM FACE ÀS MODIFICAÇÕES DAS

PRÁTICAS PESQUEIRAS

Tese apresentada à Universidade Federal de Viçosa, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural, para obtenção do título de “Magister Scientiae”.

APROVADA: 31 de maio de 1999.

Maria Izabel Vieira Botelho Edemir de Carvalho

Rosana Rodrigues Heringer José Norberto Muniz (Conselheira) (Conselheiro)

Franklin Daniel Rothman (Orientador)

ii

Aos Ribeirinhos do Amazonas, razão deste trabalho.

A minhas queridas meninas Kátia, companheira, e Mariana, filha,

que muito me ensinaram ao longo deste período.

A meus pais e irmãos, meu muito obrigado.

A minha família.

À Tia Luci (in memoriam).

Ao bispo Dom Jorge Marscell (in memoriam).

A meus amigos, pela presença.

iii

AGRADECIMENTO

Muitas são as pessoas e instituições às quais eu gostaria de

agradecer, contudo, temo não me lembrar de todas.

Aos colegas professores do Departamento de Ciências Sociais da

Universidade do Amazonas, por terem criado condições necessárias a minha

liberação.

Ao amigo Lino João, pelas dicas, pelas sugestões e pelo apoio.

À Fundação Universidade do Amazonas, em especial ao ex-reitor prof.

Nelson Fraiji, que adotou uma política ostensiva de capacitação do corpo

docente da Instituição.

Às estudantes Nádia e Erisvalda, alunas do curso de Ciências Sociais

da Universidade do Amazonas, pelo auxílio na fase preliminar da pesquisa.

À CAPES, pela concessão da bolsa de estudos - modalidade PICDT.

Ao Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de

Viçosa, por ter-me acolhido como estudante.

Aos funcionários do DER, em especial, Graça, Rosângela, Tedinha,

Ruço, Brilhante, Rita, Helena e Carminha.

À população de Viçosa que tão amavelmente acolheu a mim e a minha

família.

À Comissão Pastoral da Terra - Regional Norte I, pelas preciosas

informações e por ter colocado os seus arquivos a minha disposição.

iv

Aos Ribeirinhos do Amazonas, em especial àqueles da comunidade

ribeirinha localizada no lago do Serpa, Itacoatiara-AM.

Ao IBAMA - Superintendência do Amazonas.

A meus amigos e colegas do curso de mestrado, pela colaboração nos

momentos mais difíceis.

v

BIOGRAFIA

LUIZ ANTONIO NASCIMENTO DE SOUZA, nascido em 1.o de março

de 1964, exatamente 30 dias antes do Golpe Militar que submergiu o Brasil, por

longos anos, na ditadura, é filho de Benedicto, pedreiro, e de Maria Catharina,

cozinheira.

Em 1977, foi às ruas, juntamente com sua mãe, protestar contra a

carestia, defendendo a anistia ampla, geral e irrestrita. Em 1978, trabalhou,

como metalúrgico, no movimento sindical e freqüentou aulas noturnas em uma

escola pública na periferia de São Paulo.

Em 1981, então na 7.a série, descontente com os rumos da escola

pública, optou por transferir-se de escola, iniciando o supletivo no Colégio Luiza

de Marillac, onde concluiu os estudos em 1984.

Em 1986, ingressou no curso de Ciências Socais da UNESP -

Universidade Estadual Paulista, campus de Marília, graduando-se em

Bacharelado e Licenciatura.

Em 1992, foi aprovado por processo de seleção para realizar o curso

de mestrado em Sociologia da UNESP de Araraquara, porém não iniciou seus

estudos, pois, no mesmo período, foi aprovado, em 1.o lugar, por concurso

público para o cargo efetivo de professor de sociologia da Fundação

Universidade Federal do Amazonas, exercendo, ali, o cargo de chefe do

Departamento de Ciências Sociais, de 1993 a 1994.

vi

CONTEÚDO

Página LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ................................................ viii EXTRATO ............................................................................................. ix ABSTRACT ........................................................................................... xi 1. INTRODUÇÃO .................................................................................. 1

1.1. Considerações preliminares ...................................................... 1 1.2. O ambiente amazônico e sua ocupação ................................... 4

1.2.1. Descrição do meio ambiente ............................................... 6 1.3. O problema e sua contextualização .......................................... 11

1.3.1. Hipóteses ............................................................................. 22

1.3.1.1. Hipótese geral ................................................................ 22 1.3.1.2. Hipóteses específicas .................................................... 22

1.3.2. Objetivos .............................................................................. 23

1.3.2.1. Objetivo geral ................................................................. 23 1.3.2.2. Objetivos específicos ..................................................... 23

vii

Página

2. REVISÃO DE LITERATURA ............................................................. 24 3. METODOLOGIA ............................................................................... 30

4. A ATIVIDADE PESQUEIRA: FORMAS DE APROPRIAÇÃO DOS

RECURSOS NATURAIS ..................................................................

33

4.1. A atividade pesqueira ................................................................ 33

4.1.1. O perfil dos pescadores que atuam no Amazonas .............. 33 5. O CONFLITO E A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA DE REFORMA

AQUÁTICA .......................................................................................

43 6. RESUMO E CONCLUSÕES ............................................................. 49

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 60

viii

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CPP Comissão Pastoral da Terra

CPT Comissão Pastoral da Terra

ECO/92 Conferência Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento

IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

ONG Organização Não-Governamental

ONU Organização das Nações Unidas

WWF World Woldlife Fund

ix

EXTRATO

SOUZA, Luiz Antonio Nascimento de, M.S., Universidade Federal de Viçosa, novembro de 2000. Proposta de reforma aquática do movimento dos ribeirinhos do Amazonas em face às modificações das práticas pesqueiras. Orientador: Franklin Daniel Rothman. Conselheiros: Rosana

Rodrigues Heringer e José Norberto Muniz.

Há, no imaginário coletivo da sociedade brasileira, a idílica visão de

que a Amazônia é um paraíso e fonte inesgotável de recursos animais,

vegetais, minerais, etc. Tentar transpor as “ilusões e utopias” a que se referiu

Ianni e visualizar a Amazônia em suas manifestações reais, quotidianas ou,

segundo Kosik, em sua Totalidade Concreta, é o desafio deste trabalho. Das

possibilidades de reflexão sobre a Amazônia, uma, em particular, chama

atenção - trata-se da questão do uso comum dos recursos naturais disponíveis

nos diferentes ambientes amazônicos. Especialmente, analisa-se a questão da

apropriação dos recursos aquáticos pela população ribeirinha e por pescadores

comerciais do Amazonas e suas conseqüências sociais e ambientais. Essa

reflexão se dá a partir do estudo da proposta de Reforma Aquática, elaborada

pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Ribeirinhos do Amazonas, e das

condições que possibilitaram o surgimento daquela proposta. Neste trabalho, é

abordado um único problema teórico, qual seja, quais os fatores e

x

condicionantes sociais, econômicos, políticos e ambientais que contribuíram

para a elaboração da proposta de uso e manejo sustentável dos lagos – com

os seus recursos ictiológicos – daquela região e de que maneira esses fatores

e condicionantes podem ser compreendidos à luz da Ecologia Humana. Assim,

procurou-se compreender a maneira pela qual a questão dos recursos naturais

(em particular, dos recursos aquáticos) e as possibilidades de seu uso comum

permeiam a proposta dos Ribeirinhos. O estudo teve como unidade de análise

a comunidade ribeirinha, situada nas margens do Lago do Serpa, em

Itacoatiara, Amazonas.

xi

ABSTRACT

SOUZA, Luiz Antonio Nascimento de, M.S., Universidade Federal de Viçosa, November 2000. Proposal for acquatic reform made by the movement of rural workers, river dwellers of Amazonas, in view of new fishing techniques. Adviser: Franklin Daniel Rothman. Committee Members:

Rosana Rodrigues Heringer and José Norberto Muniz.

The Brazilian collective imagination believes the Amazon to be a

paradise and an endless source of animal, plant and mineral resources. In the

preface to the book The Invention of Amazonia, by Gondim, 1994, Ianni writes:

The Amazon epitomises utopia in the New World. Since the 16th century,

through to the end of the 20th, and at the start of the 21st, there is a lot of utopia

in what is said and thought of the Amazon. There are still a lot of people around

the world who dream that the Amazon hides exotic realities, discoveries,

marvels. A lot of what is said about the Amazon, in prose and verse, in the most

diverse of languages, expresses this illusion of the other world. The Amazon

has been transformed into a utopia based on Nature. The challenge is to

transform these illusions and utopia that Ianni mentions into an understanding

of its true, daily realities, or as Kosik says: its concrete reality. Of all the different

ways of thinking about the Amazon, one in particular merits our attention. It is

the comunal use of natural resources available in the different Amazon

environments. More specifically we should reflect on the use of acquatic

xii

resources by the riverine populations and the commercial fishermen of the

Amazon and its social and environmental consequences. This becomes

especially relevent in view of the study proposal for Acquatic Reform put

forward by the Movement of Rural Riverine Workers of the Amazon and the

conditions which led to the formulating of this proposal. Here it is necessary to

point out that we are dealing with a single theoretical problem: what are the

factors, the social, economic, political and environmental conditions which

contributed to the elaboration of a proposal for the sustainable management of

lakes and waterways and fish resources of the region, and in what way can

these conditioning factors be interpreted in the light of Human Ecology. We use

human ecology as the measuring factor in as much as the proposal by the

riverine populations should not be studied singularily, but in the wider context of

the various interests which permeate the Amazon. We are interested in knowing

to what extent the question of natural resources (and in particular acquatic

resources) and their common use is at the base of the proposal by the riverine

comunities.

1

1. INTRODUÇÃO

1.1. Considerações preliminares

Há, no imaginário coletivo da sociedade brasileira, a idílica visão de que a Amazônia é um paraíso e fonte inesgotável de recursos animais, vegetais, minerais, etc. Ianni, ao prefaciar o livro A Invenção da Amazônia (GONDIM, 1994), apontou que

a Amazônia desvenda e esconde a utopia do Novo Mundo. Desde o século XVI até o fim do século XX, quando se anuncia o século XXI, há muito de utopia no que se pensa e diz sobre a Amazônia. São muitos, em todo o mundo, que ainda sonham com a ilusão de que ali se escondem exotismo, deslumbramentos, maravilhas. Muito do que se diz sobre a Amazônia , em prosa e verso, nas mais diversas línguas, expressa a ilusão do outro mundo. Ocorre que a Amazônia tornou-se o emblema de uma utopia situada na natureza.

Tentar transpor as “ilusões e utopias” a que se referiu Ianni e visualizar

a Amazônia em suas manifestações reais, cotidianas ou, conforme indicou

KOSIK (1989), em sua totalidade concreta é um desafio permanente.

Das possibilidades de estudo sobre a Amazônia, uma, em particular,

chama atenção - trata-se da questão do uso comum dos recursos naturais

disponíveis nos diferentes ambientes amazônicos (DIEGUES, 1994).

Especialmente, pretende-se investigar a apropriação dos recursos aquáticos

2

pela população ribeirinha e por pescadores comerciais do Amazonas e as

conseqüências sociais e ambientais dessa apropriação.

Essa reflexão se dá a partir do estudo da proposta de Reforma Aquática, elaborada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Ribeirinhos do Estado do Amazonas, e das razões e condicionantes que possibilitaram o surgimento desta proposta (Figura 1).

Assim, nesta seção, será delimitado o problema desta pesquisa, contextualizado no cenário amazônico e ambiental. Serão apresentados ainda os objetivos e as hipóteses que nortearam o estudo. Na segunda seção, será feita uma breve revisão de literatura, destacando-se alguns conceitos e marcos teóricos. Contudo, optou-se por diluir, no corpo do trabalho, a maior parte da revisão de literatura. Na terceira seção, será abordada a metodologia empregada. Na quarta e na quinta seção, serão discutidos e analisados os resultados do estudo. Na quarta seção, serão apresentadas a atividade pesqueira e suas diferentes formas de apropriação e uso dos recursos naturais; na quinta seção, serão discutidas as origens dos conflitos entre ribeirinhos e pescadores comerciais, em torno da questão do uso dos recursos aquáticos, e a efetivação da proposta de manejo e uso dos recursos aquáticos elaborada pelos ribeirinhos, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Ribeirinhos do Estado do Amazonas.

3

Faz-se necessário ressaltar que, neste trabalho, é abordado um único

problema de pesquisa, qual seja, quais os fatores e condicionantes que

contribuíram para a elaboração da proposta de uso e manejo sustentável dos

lagos do Amazonas e de que maneira esses fatores e condicionantes podem

ser compreendidos à luz da Ecologia Humana.

Entende-se que a Ecologia Humana permite realizar uma reflexão

acerca das questões socioambientais inerentes ao problema formulado, na

medida em que aproxima as ciências sociais e ambientais, tentando superar as

dicotomias existentes.

Dessa maneira, empregaram-se as discussões elaboradas por Emílio

Morán em duas de suas obras, quais sejam, “A ecologia humana das

populações da Amazônia” (1990) e “Adaptabilidade humana: uma introdução à

Antropologia Ecológica” (1994). Este trabalho também se baseou em outros

autores e teorias, na tentativa de encontrar respostas às indagações. Assim,

autores como DIEGUES (1991, 1994, 1997), com suas discussões a propósito

A proposta, em síntese, defende a criação de três

categorias de lago. São elas:

Lago de Uso Restrito Lago Santuário Lagos Livres

Percentual dos lagos em relação ao total de lagos

perenes do Estado do Amazonas

5% 15% 80%

Lagos santuários seriam aqueles totalmente reserva-dos à reprodução do pes-

Lagos de uso restrito seriam aqueles reservados ao uso exclusivo das comunidades

Lagos livres seriam aqueles onde a pesca seria total-mente livre, sendo permitida

4

Figura 1 - Proposta de reforma aquática.

da utilização de recursos comuns; OSTROM (1990), com sua Teoria dos

Comuns; e MARX (1986), com suas discussões sobre as formações

econômicas pré-capitalistas, serão citados nesta dissertação.

1.2. O ambiente amazônico e sua ocupação

Quando se fala de conflitos sociais na região Norte do País, via de

regra, há, no senso comum, tendência a generalizações, visto que se tende a

acreditar que há, do Maranhão ao Acre, somente conflitos fundiários que

envolvem latifundiários (em geral, empresas agroflorestais), mineradoras,

posseiros, grileiros, índios e garimpeiros.

Contudo, essa questão não é tão homogênea assim. Há

particularidades que acabam por exigir mais atenção do pesquisador que

tem interesse em investigar as relações sociais rurais da região. Na Amazônia

ocorrem muitos conflitos sociais nos quais estão envolvidos posseiros,

empresas capitalistas e índios. As empresas capitalistas, detentoras de títulos

de propriedade, reclamam a posse das terras até então ocupadas pelos

posseiros, que, por sua vez, pressionados por essas empresas, passam a

avançar sobre os territórios indígenas, provocando, assim, novos conflitos.

5

Dessa maneira, o capital coloca pequenos contra pequenos, ou seja, coloca

índios versus posseiros1 em situação de conflito.

Diante do fato de que há muitos e diferentes conflitos sociais na

Amazônia, necessário se faz refletir acerca de uma dessas particularidades

que se podem constatar no Estado do Amazonas, assim como em quase toda

a Amazônia, que é a questão do uso dos recursos aquáticos pelas populações

humanas, em particular, ribeirinhos e pescadores comerciais que habitam

aquela região e dos problemas e conflitos advindos daí.

A idéia é fazer um contraponto entre utilização e apropriação

coletivizada dos recursos aquáticos versus apropriação privada dos recursos

aquáticos, de forma especificamente capitalista.

É possível iniciar esta discussão afirmando que os trabalhadores rurais

ribeirinhos do Norte do País são “seres anfíbios”, já que vivem, em um período

do ano, nas várzeas ou em terra firme e, em outro período, praticamente

“dentro da água”, mantendo constante processo de adaptação à dinâmica das

águas2.

Na verdade, esta parece ser uma característica milenar não apenas

dos ribeirinhos, mas também de parcela importante dos demais habitantes da

floresta amazônica. Segundo FURTADO (1993:88), desde o período pré-

colombiano, a população humana que habitava a Amazônia se relacionava

com o meio ambiente, buscando uma forma de adaptação mais efetiva ao

ambiente amazônico, onde se destacava uma íntima relação com as áreas

inundáveis e lagos, construindo habitações do tipo palafitas, o que - para

aquele autor - atesta a envolvência da população com o ambiente aquático,

justificando sua forte relação com o peixe, a qual secularmente perdura na

região.

Esse processo de adaptação cotidiana dos ribeirinhos ao meio ambiente apresenta-se como resposta às pressões ambientais, visto que, quanto maior for o período durante o qual uma

1 Ver, a este respeito, José de Souza Martins. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1991. 195 p.

2 Isto se dá em decorrência dos períodos de cheia (inverno), que vai de janeiro a junho, e da vazante (verão), que ocorre de julho a dezembro de cada ano.

6

população humana fica sujeita a tais pressões ambientais estáveis, maior será o grau de sua adaptação às mesmas pressões (MORÁN, 1990). Ao contrário do aparente transtorno ou incômodo, as estratégias de ocupação de áreas de várzea adotadas pelos ribeirinhos da Amazônia caracterizam-se como estratégias de adaptação à dinâmica da natureza, adaptação esta que pode ser percebida, por exemplo, na arquitetura de suas moradias que, construídas sobre palafitas e com mecanismos de ajuste do piso, suportam, sem problemas significativos, o ciclo de cheias e vazantes dos rios.

MELLO (1987:22-24) descreveu a relação do homem amazonense com a natureza e com a dinâmica das águas, em particular, da seguinte forma:

A lei do rio não cessa nunca de impor-se sobre a vida dos homens. É o império da água (...). É o Amazonas e seu ciclo das águas(...) É o regime das águas condicionando e transformando a vida do homem amazônida ao longo das etapas do ano. (...) o homem sofre os efeitos, generosos ou adversos, da subida ou da descida das águas. Na sua casa, na sua comida, no seu trabalho de cada dia. O regime das águas é um elemento constante no cálculo da vida do homem. Porque são também ciclos econômicos.(...)O homem fica à mercê do rio. Mas não desanima(...). O rio diz ao homem o que ele deve fazer. E o homem segue a ordem do rio. Se não, sucumbe.

Neste trabalho, conforme Morán, acredita-se que haja possibilidade de o homem amazonense adaptar-se ao meio ambiente em que vive, embora não de maneira passiva, como se poderia aparentar num primeiro momento. Ao mesmo tempo que é ambientalmente pressionado, pressiona também o meio ambiente em que vive. De tal maneira, ambos, homem e natureza, sofrem transformações

7

nem sempre facilmente perceptíveis.

Mas, afinal, de que ambiente se fala? Se é verdade o que salientou Ianni, citado por GONDIM (1994), acerca de uma visão utópica que se tem da Amazônia, é verdade, também, que se pode desconstruir essa visão. É nesse sentido que será feita uma apresentação descritiva da Amazônia, para, em seguida, tratar do problema desta pesquisa.

1.2.1. Descrição do meio ambiente

O propósito é apresentar o meio ambiente amazônico que se coloca

ora como cenário, ora como sujeito desta história. A intenção é dispor, para o

leitor, um fragmento das características da Amazônia brasileira, procurando

enfatizar sua fragilidade ambiental diante de ações humanas que impactam o

meio ambiente.

Considera-se como ação humana que impacta o ambiente aquela que,

de alguma forma, altera o meio ambiente e sua biota (fauna e flora de um

ambiente). Em outras palavras, têm-se duas formas de se fazer uso dos

recursos naturais presentes nas floresta amazônica. Primeira, aquela praticada

centenariamente pelos índios e caboclos, em que a principal característica

(porém não única) é a conservação dos recursos naturais. Dessa maneira, a

caça, a pesca, a agricultura e o extrativismo obedecem a uma dinâmica e a um

calendário biológico que garantem a renovação constante dos estoques

utilizados, razão da existência, entre os amazonenses, da idéia de tempo de

pesca, tempo de caça, tempo de lavoura. Este tipo/forma de ação

prioritariamente não-predatória objetiva a manutenção e a reprodução

socioeconômica e cultural dos grupos que a praticam.

Esta ação do homem amazonense na transformação da natureza

ocorre por meio de diferentes representações (míticas, econômicas, religiosas,

etc.) que explicam as formas de apropriação e de uso dos recursos naturais.

Para as comunidades ribeirinhas ou indígenas, a floresta, com seus recursos

8

naturais, apresenta-se como um lugar de moradia, de onde se obtém alimento

e de onde vieram os antepassados, na qual coexistem forças do bem e do

mau, enquanto para o colonizador, para os pescadores comerciais e para os

madeireiros (por exemplo), a floresta é o lugar que esconde o eldorado, a

possibilidade do sucesso econômico.

Se, para os ribeirinhos e índios, a floresta é um lugar conhecido, para

os empresários que ali atuam, ela significa um obstáculo a ser transposto para

que se promovam o desenvolvimento e o progresso. É óbvio que há exceções

de ambas as partes, contudo, o que se tem verificado, empiricamente e na

literatura, é essa dicotomia.

Dessa maneira, as formas de apropriação e de uso dos recursos

naturais são diferentes. O amazonense tem como perspectiva o uso dos

recursos necessário a sua (presente e futura) reprodução biológica, cultural,

social e econômica, enquanto os “empresários” que atuam na floresta

amazônica têm como perspectiva a possibilidade de acumulação de capital, o

que implica formas de apropriação e uso dos recursos naturais. Nesse caso, as

ações negativas, do ponto de vista ambiental e socioeconômico, quando

analisadas detidamente, são predominantes.

Atividades humanas, tais como mineração, pesca comercial (que se

vale de tecnologia sofisticada), extração de madeira e pecuária extensiva, que

vêm sendo praticadas na Amazônia, têm causado impactos sociais e

ambientais, como desmatamentos, poluição dos rios com mercúrio e da

matéria orgânica em suspensão e disseminação de doenças (em especial, aos

povos indígenas).

A respeito da fragilidade do meio ambiente amazônico, VERNER

(1994:104) salientou que,

nas florestas tropicais, as espécies são, muito mais que em outros lugares, muito dependentes umas das outras (...): do desenvolvimento de uma espécie acarreta o desenvolvimento de outras. Essa grande biodiversidade deve-se ao calor, à umidade, mas também à estabilidade desse meio tropical, que não teria se modificado há algumas centenas de anos.

De acordo com esse autor, a floresta tropical ainda possui grande

biodiversidade porque a sua estabilidade foi, ao longo dos anos, preservada.

Em grande parte, esta estabilidade foi mantida porque centenas de povos

indígenas habitantes daquela região foram capazes de - mesmo fazendo uso

9

dos recursos naturais existentes na floresta - não alterar significativamente o

equilíbrio ecológico, fato que começa a se modificar com o advento do

processo de ocupação colonial estrangeira, iniciada no século XVI.

Características do meio ambiente

Dessa forma, pode-se iniciar a descrição do ambiente amazônico

afirmando que a Amazônia é formada por uma floresta tropical que representa

cerca de 78% da cobertura vegetal do território brasileiro, algo em torno de

30% das reservas de florestas tropicais do mundo. Além disto, a região possui

a Bacia Amazônica, considerada a maior bacia hidrográfica do mundo, que

contribui, sobremaneira, para “irrigar” toda a floresta, servindo, assim, como

hidrovias de acesso a todos os cantos e como fonte de alimentação, lazer, etc.

A Bacia Amazônica, com seus rios, paranás, igarapés, lagos, etc., é tão

importante para os habitantes da região que, com muita freqüência, os

moradores de determinada região ou cidade se identificam não como

moradores, por exemplo, de São Gabriel da Cachoeira ou de Itacoatiara, mas

como moradores do alto rio Negro, ou do médio Amazonas, ou seja, o rio, o

lago, o igarapé passam a ser referência de lugar.

A Amazônia, diferente da primeira impressão homogeneizada que se

tem quando observada à distância, é constituída por grande variedade de

ecossistemas tanto terrestres quanto aquáticos, o que implica grande

diversidade de biota. Esta, talvez, seja sua principal virtude - ser muitas em

uma só; contudo, essa característica implica debilidade, visto que a destruição

(mesmo que parcial) de uma biota pode acarretar importantes impactos

ambientais em todo o seu entorno. Dessa forma, não se pode percebê-la de

maneira singular.

A este respeito, PORRO (1996:12) salientou que:

A Amazônia, que numa primeira visão se apresenta geograficamente homogênea, compõe-se na verdade de dois ambientes naturais bastante diferenciados que condicionaram formas diferentes de adaptação das sociedades indígenas e, posteriormente, de ocupação pelo colonizador. Aproximadamente 98% da grande planície é constituída de terra firme, a terra normalmente não inundada, com altitudes de 10 a 100 metros sobre o nível do mar. Aqui, a espessa floresta tropical cobre solos, em geral, de baixa fertilidade, ácidos e de fragilíssimo equilíbrio ecológico (...) O segundo ecossistema da Amazônia é a várzea, que vem a ser a planície aluvional propriamente dita ou o leito maior dos rios; é a região sujeita às inundações anuais.

10

A cobertura vegetal da Amazônia não é unívoca, como se poderia

concluir à primeira vista. Têm-se, ali, diferentes sistemas ambientais

particulares que, cada um ao seu modo, contribuem e se inter-relacionam para

dar à região uma identidade ambiental que define o tipo de esforço que as

populações humanas locais são levadas a despender para se adaptarem ao

meio ambiente.

Dependendo do tipo de relação que aquelas populações

estabelecerem com o meio ambiente, há maior ou menor relação de

estranhamento homem-natureza, ou seja, as populações humanas que

mantêm relação harmoniosa com o meio ambiente, procurando transformar-se

para adaptar-se a sua dinâmica e alterando o menos possível o meio onde

vivem, tendem a sofrer muito menos os efeitos perversos impostos pela

natureza, tais como doenças tropicais, proliferação de pragas nas lavouras,

redução dos estoques pesqueiros, etc.3

Em relação aos diferentes ecossistemas encontrados na Amazônia,

podem-se distinguir, claramente, pelo menos três tipos de florestas ou de

cobertura vegetal. O primeiro é aquele em que a vegetação se localiza em

regiões inundáveis periodicamente, denominado de várzeas4, e ocupa cerca

de 10% do total da floresta amazônica; o segundo é denominado de terra

firme ou hiléia5.

As áreas de terra firme ou hiléias não estão sujeitas às inundações

anuais, representam cerca de 80% da floresta e estão situadas (nas

proximidades dos rios) a altitudes médias de 30 a 40 metros em relação ao

leito dos rios, podendo chegar a altitudes de 100 metros, como se pode

observar às margens do baixo Amazonas, no município de Óbidos - PA

(BECKER, 1997).

3 Em relação ao estranhamento homem-natureza, ver artigo de José Tavares dos Santos, intitulado As novas terras como forma de dominação, publicado pela Revista Lua Nova, n. 23, em março de 1991, p. 67 - 82.

4 No interior das várzeas encontram-se os igapós, que, mesmo sendo parte constitutiva das várzeas, se diferenciam daquelas por ficarem permanentemente alagados.

5 Ver a respeito, dentre outros autores, PORRO (1996), DIEGUES (1991) e FURTADO (1993).

11

Por fim, há os campos e cerrados que se localizam no interior de

florestas ou ainda em regiões de fronteiras geográficas, como são os casos de

Roraima, Mato Grosso e Ilha do Marajó, no Estado do Pará.

A hiléia ou terra firme abriga, principalmente, milhares de espécies

animais e vegetais em seu interior. Os recursos genéticos depositados ali são

de dimensões incomensuráveis, haja vista que há algo entre 1,5 e 2 milhões de

espécies vegetais e animais, das quais, na melhor das hipótese, já foram

classificadas cerca de 500 mil.

Apesar da importância das hiléias, dos campos e dos cerrados, no que

se refere à biodiversidade, há maior concentração de variáveis ambientais

apropriadas à adaptação humana nas áreas de várzea, pois neste ambiente a

vida se manifesta com mais abundância. De outra forma, pode-se dizer que é

nas várzeas que o homem encontra ambiente mais adequado a sua

sobrevivência e reprodução, porque esta oferece grande estoque de recursos

naturais necessários à sobrevivência humana, dentre os quais os aquáticos,

que são elementos fundamentais à sobrevivência do homem varzeiro e serão

objeto de reflexão mais apropriada ao longo deste estudo.

É evidente também que o homem varzeiro, seja ele índio, caboclo ou

imigrante, está mais vulnerável aos desequilíbrios ambientais, como poluição

dos rios, epidemias, penetração populacional estranha ao lugar, etc., conforme

ocorreu em toda a calha do rio Amazonas, quando os colonizadores

portugueses, posteriormente espanhóis e holandeses, invadiram a Amazônia

após 1500 e inúmeras tribos indígenas foram totalmente dizimadas, vítimas de

ações violentas dos invasores ou de doenças estranhas a eles (PORRO,

1996).

Outro aspecto importante do meio ambiente amazônico é a

característica de sua bacia hidrográfica, constituída por centenas de rios,

igarapés, lagos, paranás, etc. Dentre as inúmeras questões importantes que

podem ser ressaltadas, destacam-se as características físico-químicas das

águas dos rios que cortam toda aquela região.

Têm-se, basicamente, três tipos de água, a saber: águas claras ou

turvas, águas negras e águas brancas. As águas claras ou turvas são as

águas (por exemplo) dos rios Solimões, Amazonas e Madeira; as negras, as

dos rios Negro, Jaú, Alalaú; e as brancas, dos rios Trombetas e Tapajós.

12

Torna-se importante apontar tais características da hidrografia

amazônica porque estas exercem significativa influência no meio ambiente. Os

rios de águas claras, por exemplo, são extremamente ricos em massa orgânica

e nutrientes, o que faz com que a fauna seja rica e suas várzeas sejam, a cada

cheia, revigoradas, do ponto de vista de sua produtividade agrícola.

Nos rios de águas negras, o que se percebe é exatamente o contrário;

têm-se, ali, baixos volumes de nutriente e massa orgânica e altas taxas de

acidez, o que faz com que a fauna seja relativamente mais pobre, em

comparação aos rios de águas brancas e claras, e suas várzeas frágeis, no

que se refere à produtividade agrícola.

Nesse sentido, não é por acaso que se encontra maior densidade

populacional concentrada nas várzeas dos rios de águas claras e brancas, do

que nas de águas negras. Há, nas comunidades que vivem nas várzeas dos

rios de águas negras, menos atividade agrícola, maior esforço na atividade

pesqueira e maior participação da caça, coleta e extração vegetal na

composição nutricional da população.

1.3. O problema e sua contextualização

Diante do modo de vida e da

relação que o amazonense mantém com o meio ambiente e, sobretudo, diante de seu hábito alimentar, em que o peixe ocupa posição privilegiada (FURTADO, 1993; PETRERE, 1991), uma questão se levanta como importante a ser analisada, qual seja, o uso dos recursos pesqueiros pelas populações ribeirinhas e pelo setor pesqueiro comercial do Estado do Amazonas e suas conseqüências socioeconômicas.

Neste trabalho, investigaram-se as razões e os condicionantes que levaram os trabalhadores rurais ribeirinhos do Amazonas a formular a proposta de reforma

13

aquática, embora pareça que esta tenha sido conseqüência das ações praticadas pelos pescadores comerciais, conforme a seguir.

Nos últimos anos, sobretudo a partir de meados dos anos 70,

empresários do setor pesqueiro, estimulados pelo aumento da demanda de

pescado, têm, cada vez mais, adentrado, com os seus barcos, os lagos

habitados tradicionalmente por comunidades rurais ou localizados em sua

proximidade, com o objetivo de capturar o pescado ali encontrado.

O aumento da demanda de pescado tem origem no longo processo de

urbanização que a Amazônia vem experimentando, desde meados dos anos

60. As razões para este processo de urbanização parecem estar situadas nos

fatos relatados a seguir.

Com o declínio do Ciclo da Borracha, ocorrido a partir do final do

século passado e início deste, a Amazônia viu-se mergulhada em profunda

apatia econômica, política e social (CUNHA, 1986; TOCANTINS, 1974; REIS,

1953). Nas décadas de 20 e 60, pouco foi feito para retirar a Amazônia do

agroextrativismo e do isolamento regional, ou seja, pouco foi feito pelas elites

dirigentes e pelo Estado para ocupar o vazio econômico deixado pelo Ciclo da

Borracha, restando à região uma atividade agrícola de subsistência e práticas

extrativistas que não contaram com a mesma atenção dispensada pelo Estado

à atividade gomífera. Dessa maneira, a região – que até os anos 20 detinha

importante papel no cenário econômico nacional e internacional, em razão de

ser a principal produtora mundial de borracha – padece de significativo declínio

social e econômico.

Este quadro somente sofre radical transformação a partir dos anos 60,

com o advento do novo modelo econômico implementado pelo Regime Militar,

que reservou à Amazônia estratégias de integração territorial, cujo objetivo era

viabilizar a expansão acelerada das relações capitalistas internas e sua

conseqüente acumulação econômica (MACHADO, 1995). Nesse sentido, a

Amazônia era considerada como uma grande reserva de espaços

incorporáveis, como renda ou como reserva de valor.

14

Uma das primeiras ações governamentais para colocar em prática tais

estratégias foi a criação da Operação Amazônia, de 1965/676, cujo objetivo era

atrair grupos empresariais sulistas e estrangeiros à região, a fim de ocupá-la

por meio de latifúndios, com projetos agropecuários, minerais e madeireiros

que tiveram amplos aportes financeiros e técnicos por intermédio de agências

governamentais. Assim, o regime militar pretendia atingir duas importantes

metas - garantir o desenvolvimento econômico da região e afastar o risco de

ela vir a ser ocupada por forças estrangeiras, em especial, as norte-

americanas, com o pretexto de proteger o continente contra o avanço do

comunismo (IANNI, 1979:224).

É evidente que tais medidas provocaram novos fluxos migratórios,

porém de caráter e forma diferenciados em relação àqueles ocorridos no

período da economia gomífera7, os quais provocaram transformações nas

relações tradicionais de uso e posse da terra e dos recursos naturais.

Em poucos anos, a rápida introdução de contingentes populacionais

étnicos e culturalmente diferentes e as “novas” formas de relações capitalistas

produziram conflitos fundiários, expulsão de caboclos ribeirinhos de suas terras

e êxodo rural dos novos imigrantes que ali haviam há pouco chegado, assim

como de antigos moradores - colonos, ex-seringueiros, os quais foram

impulsionados aos centros urbanos, o que provocou inchaços e favelas

(GRZYBOWSKI, 1990; MARTINS, 1989).

O referido crescimento populacional resultou, ainda, em pressão sobre

os diferentes recursos naturais, como os impactos causados nos estoques

pesqueiros. Acredita-se que o aumento da demanda de peixes, estimulado pela

concentração de parcelas significativas da população nos centros urbanos

(Manaus, Parintins, Santarém, Belém, etc.), juntamente com os incentivos

governamentais, tenha encorajado a atividade pesqueira comercial que, pelo

seu caráter de extrativismo em grande escala, passou a competir com as

comunidades ribeirinhas pelos estoques pesqueiros existentes.

6 A qual criou em seu bojo, por meio de Decreto Lei n

0 288, de 1997, a Zona Franca de

Manaus. 7 Período econômico em que o Brasil figurou como o maior produtor e exportador mundial de borracha, também conhecido por “Ciclo da Borracha”. Período compreendido entre meados dos séculos 19 e primeiras duas décadas deste século.

15

Com o advento da urbanização da Amazônia, a pesca, como atividade extrativista adotada milenarmente pelas populações humanas de toda a Amazônia, passa a ser praticada de forma muito mais intensa e com tecnologias de impacto, do ponto de vista ambiental, do que aquelas até então praticadas na região.

Dessa maneira, a atividade pesqueira comercial capitalista avançou sobre formas até então pré-capitalistas de extrativismo. Não se pretende aqui admitir que somente as práticas de exploração capitalista sejam destruidoras do meio ambiente. Como afirmou WALDMAN (1994:16), são muitos os exemplos históricos de destruições ambientais provocadas por sociedades não-capitalistas:

Formas bem mais primitivas de produção foram responsáveis pelo extermínio de um numero incontável de espécies vegetais e animais e modelaram profundamente vastas paisagens. Vale lembrar que foram as tribos primitivas da Nova Zelândia que exterminaram o Moa, uma magnifica ave da Oceania. Os romanos liquidaram com os leões da África do Norte, capturados para abastecer o circo de espetáculos. Não é de outra forma que muitos especialistas explicam o processo de surgimento do cerrado brasileiro, de provável origem antrópica (humana).

Contudo, o problema reside no fato de que a pesca comercial no

Estado do Amazonas, da maneira como vem sendo praticada, tem concorrido

para a exaustão de estoques de recursos pesqueiros, que não têm sido

repostos, com a mesma agilidade, pela natureza. Dessa maneira, o que se tem

é o risco de uma estagnação na relação oferta e demanda daqueles recursos.

O principal problema está no fato de a pesca estar sendo praticada de

maneira predatória. Têm sido utilizadas técnicas pesqueiras com instrumentos

de elevado poder de captura, as quais, embora sejam proibidas por legislações

federais, têm sido responsáveis pela redução significativa dos estoques

pesqueiros e de outros vertebrados aquáticos habitualmente consumidos por

16

comunidades ribeirinhas, colocando-os em risco de sobrevivência, como os

casos verificados nos municípios de Coari e Itacoatiara, onde pescadores

comerciais chegaram a utilizar dinamites e redes de malha fina para a captura

do pescado.

O preocupante impacto nos estoques pesqueiros, resultante da

atividade pesqueira comercial, não tem sido um "privilégio" do Estado do

Amazonas, nem mesmo da Amazônia como um todo. Na verdade, trata-se de

uma dinâmica que parece ser inerente ao setor pesqueiro mundial.

Em relatório divulgado em maio de 1999, a organização não-governamental World Woldlife Fund (WWF) denunciou uma sobrepesca em todo o mundo. Segundo aquele relatório, o tamanho da frota pesqueira mundial é 155% maior do que o necessário para garantir o suprimento de peixes, de forma a não esgotar os estoques existentes (WORLD WOLDLIFE FUND - WWF, 1999).

Em relação às atividades pesqueiras predatórias, a Organização das

Nações Unidas para a Alimentação (FOOD AGRICULTURAL ORGANIZATION

- FAO, 1999), em seu documento "El estado mundial de la pesca y la

acuicultura 1998", enfatizou que:

La capacidad de pesca resulta excesiva en la mayor parte de las regiones del mundo. Por ejemplo, como consecuencia de la intensificación de la presión pesquera en el Asia meridional, muchas poblaciones costeras de peces pelágicos y demersales de la bahía de Bengala, el golfo de Tailandia y el mar de China meridional están totalmente explotadas o sobreex-plotadas. Ello se hace patente en la creciente proporción de las especies de bajo valor y ejemplares jóvenes con respecto a las especies de alto valor capturadas. La pesca en alta mar, por sus condiciones de libre acceso, crea una situación especialmente difícil con

17

respecto al control de la capacidad de pesca. En la Convención de las Naciones Unidas sobre el Derecho del Mar, de 1982, no se plantea prácticamente el problema de la capacidad de pesca.

Afirmou, ainda, que,

En varias de las pesquerías mundiales más importantes hay un exceso de capacidad de pesca. Ello es motivo de creciente preocupación. No sólo representa una amenaza para la sostenibilidad de las poblaciones ícticas explotadas sino que constituye una posible amenaza para otras poblaciones. El exceso de capacidad significa, en pocas palabras, que en muchas de las pesquerías mundiales las flotas pesqueras son mayores de lo necesario para capturar y desembarcar, con el menor costo posible, los peces actualmente disponibles, y mayores de lo que haría falta para las actividades de pesca una vez que se hubieran recuperado esas poblaciones.

Assim como descrito acima, na cidade de Manaus (principal ponto de

desembarque de pescado no Estado do Amazonas), têm-se verificado maior

abundância de espécies de peixes de menor valor comercial e redução gradual

de espécies de maior valor comercial, o que indica a possibilidade de maior

"pressão pesqueira" sobre aquelas espécies mais valorizadas, acarretando

sobrepesca.

A sobrepesca já foi identificada pelo Estado, que, por intermédio do

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

(IBAMA), vem colocando em prática medidas que tentam controlar a captura de

peixes em determinados rios e suas bacias de drenagens (afluentes,

subafluentes e lagos), objetivando proteger o conjunto das espécies existentes

naquelas áreas. De dezembro de 1998 a fevereiro de 1999, período de desova

da maioria dos peixes amazônicos, a Superintendência Estadual do IBAMA

18

proibiu, totalmente, a pesca comercial em 25 rios do Estado do Amazonas8 e a

pesca do pirarucu e do tambaqui (espécies de grande valor comercial e

considerados em processo de extinção), em todo o Estado.

O chefe de Divisão de Fauna e Recursos Aquáticos do órgão afirmou

que:

A fiscalização do órgão está direcionada desde o ano passado (1997) para a proteção das áreas de desova com a finalidade de manter os estoques de peixes em perfeito equilíbrio. Como os 25 rios vem apresentando baixa produtividade de ovos, a proibição objetiva possibilitar uma vasta distribuição de larvas (ovos) em todo o sistema lacustre do estado.

A partir do risco de esgotamento dos estoques pesqueiros, devido à

presença constante dos barcos pesqueiros (também chamados de geleiros),

inúmeras comunidades ribeirinhas - com o apoio de mediadores9 - passaram,

processualmente, a organizar-se, buscando compreender a gravidade do

problema, elaborar propostas alternativas de manejo dos lagos com os seus

recursos aquáticos e também criar e desenvolver políticas pesqueiras de

viabilidade sustentável.

Os primeiros passos rumo à organização dos ribeirinhos tiveram início

em 1983, quando foi realizado, de 19 a 21 de agosto, na cidade de Itacoatiara,

Estado do Amazonas, o Encontro sobre Pastoral dos Pescadores da

Regional Norte I, coordenado pela Comissão Pastoral da Terra Regional Norte

I e pela Comissão Pastoral do Pescador - Nacional.

Ao longo dos encontros posteriormente realizados pelos trabalhadores

ribeirinhos (média de um por ano), cunhou-se a proposta de Reforma

Aquática, como alternativa de manejo de recursos comuns renováveis.

Contudo, parece que essas discussões não se processaram de maneira isolada, mas, na verdade, foram reflexos locais de um discussão local, regional e mundial acerca da questão ambiental, concretizando-se, em

8 O que corresponde a 8% das áreas de desova do Estado (de um total de 400). A interdição faz parte do defeso 98/99 (proibição da pesca em período de desova).

9 Os mediadores em questão têm como origem: a) Igreja Católica, por intermédio da CPT - Comissão Pastoral da Terra: Regional Norte I AM/RR; b) CNBB - Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, por meio das ações de bispos da região Norte; c) Partidos políticos (como o Partido dos Trabalhadores e Partido Socialista Brasileiro) e; d) Fundação Universidade do Amazonas.

19

nível mundial, a partir dos anos 70, com o advento da chamada crise ecológica e com o aparecimento do movimento ecológico, que ecoou, no Brasil, a partir de meados dos anos 70 (PÁDUA, 1992; GOLDENBERG, 1992).

Em princípio dos anos 70, a ecologia transforma-se em uma Questão Ecológica; a partir daquele momento, a Organização das Nações Unidas (ONU) toma para si a tarefa de promover uma série de discussões mundiais sobre meio ambiente10, destacando-se a Conferência Internacional para o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo (Suécia), em 1972, e a Conferência Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento - Eco/92, realizada no Rio de Janeiro (Brasil), em 1992.

O debate ambiental é amplo e possui diferentes vertentes, mas o que interessa, neste momento, é enfatizar, como resultado de toda uma reflexão acerca da questão ambiental, o surgimento de diferentes movimentos sociais preocupados em apresentar alternativas de uso e manejo dos recursos naturais à sociedade, os quais são fundamentalmente propositivos, e não mais apenas reativos.

Diante de um problema ambiental, esses movimentos

10

Esta tomada de rumo da ONU teria sido resultado das intervenções da Suécia durante a XXIII Assembléia Geral da ONU, realizada em 1969. Na ocasião, a Suécia, preocupada com o acidente ecológico da Baía de Minamata, Japão (ocorrido em 1969), onde pescadores e moradores foram seriamente contaminados por mercúrio liberado pelas indústrias da região, apresentou proposta para que a ONU realizasse uma conferência internacional sobre meio ambiente. A resolução foi aprovada durante a XXIV Assembléia Geral, e a própria Suécia abrigou o evento, em 1972.

20

sociais se colocam como proponentes de alternativas, buscando no diálogo com outros setores ou com grupos sociais (governos, empresários, ONGs, etc.) saídas negociadas e com maior probabilidade de êxito.

Em 1988, dentro desse marco ambientalista mundial, regional e local, o movimento de trabalhadores rurais ribeirinhos do Amazonas elaborou a idéia de Reforma Aquática, cuja meta fundamental contida na proposta era a necessidade de estabelecer normas e mecanismos de controle do uso dos recursos comuns.

Sob este marco, e retomando a idéia de reforma aquática exposta, o

Movimento de Ribeirinhos propõe a criação e a definição de três categorias de

lagos de manejo, a saber: 1) Lagos de procriação, denominados lagos

santuários, totalmente fechados à pesca, cuja finalidade é desempenhar a

função de reprodutores permanentes, como uma espécie de úteros naturais; 2)

Lagos de pesca de subsistência, onde a pesca estaria restrita às comunidades

ribeirinhas; e 3) Lagos livres, onde estaria liberada a pesca comercial, ficando

sujeita às normas legais no que diz respeito aos instrumentos e às tecnologias

de pesca permitidos.

No momento em que elaboram a proposta de formas e mecanismos de

uso de recursos aquáticos, os ribeirinhos estão apresentando algo que, talvez,

possa ser visto como mais um modelo alternativo de ocupação dos espaços na

Amazônia. Dessa maneira, apresentam propostas que objetivam proteger e

preservar não apenas “seus” lagos (mediante criação de mecanismos de

manejo sustentável destes), mas também o ecossistema que os cerca.

A proposta nasce do interior de uma organização social formada por

populações tradicionais da Amazônia, cujo objetivo principal é a garantia do

acesso, pelo conjunto da comunidade, aos recursos naturais indispensáveis à

sobrevivência. Mas este objetivo não pára por aí. Se assim o fosse, os

ribeirinhos estariam lutando pela criação de áreas reservadas somente a eles,

mas este não é o caso, visto que propõem mecanismos de uso dos recursos

21

naturais existentes no Amazonas, os quais garantam não apenas a reprodução

socioeconômica e cultural das comunidades ribeirinhas, mas também a

atividade pesqueira comercial.

Como visto na proposta, há possibilidade de os pescadores comerciais

adentrarem em determinados lagos previamente definidos como lagos livres à

pesca comercial.

Os ribeirinhos, hoje, têm consciência de que o manejo comunitário dos

lagos pode significar uma alternativa para um desenvolvimento sustentável dos

recursos das várzeas, já que não há como preservar os lagos sem preservar o

ecossistema que dele fazem parte. Estão conscientes também de que, ao

preservarem um lago, estarão contribuindo para a manutenção de diferentes

espécies animais e vegetais que deles dependem para se manterem.

A propósito, faz-se necessária uma observação para que se possa

definir aqui o que se entende por preservação e conservação. Ambos os

conceitos tiveram origem nos Estados Unidos da América do Norte, em

meados do século XIX.

O conceito conservação dos recursos naturais contém os seguintes

princípios: a) Garantia do uso dos recursos naturais pelas gerações presente e

futura; b) Controle de desperdícios; e c) Possibilidade de dispor os recursos

naturais para a maioria da população, e não para poucos cidadãos. Este

conceito, elaborado por Gifford Pinchot (engenheiro florestal), foi precursor do

que hoje se chama desenvolvimento sustentável.

O conceito de preservação dos recursos naturais tem como princípios:

a) Proteção da natureza contra o desenvolvimento moderno e contra o homem,

pois ele é que a ameaça; b) Preservação da integridade, da estabilidade e da

beleza da natureza. Foram essas idéias que nortearam a criação dos parques

nacionais norte-americanos no final do século XIX e que ainda hoje orientam a

criação de muitos parques nacionais no Brasil (DIEGUES, 1994).

É importante salientar que os ribeirinhos desenvolveram a concepção

de que, por mais que se esforçassem, não teriam êxito na implementação de

suas propostas sem a participação efetiva do Estado, visto que compete a este

o papel de regular e fiscalizar quaisquer políticas ambientais.

22

É evidente que os ribeirinhos também puderam perceber que o Estado,

por possuir uma série de limitações11 - via de regra - encontra-se ausente e, ou,

omisso no que se refere ao atendimento das demandas e anseios populares,

conseqüência de um modelo de Estado que não privilegia essas questões

(BURSZTYN, 1993).

McGRATH et al. (1994:396) confirmaram esta ausência do Estado na

regulação da ação pesqueira, ao afirmarem que,

nas últimas três décadas, a pesca comercial teve um impacto profundo nas populações das principais espécies comerciais. O IBAMA, por falta de recursos financeiros e de pessoal, tem-se mostrado incapaz de gerenciar a pesca no região de forma efetiva. Inevitavelmente haverá superexploração do recurso com a produção anual, estabelecendo-se abaixo de seu nível ótimo em termos de valor, se não de biomassa.

Diferente de alguns movimentos sociais que tendem a invocar o Estado

para que este solucione seus problemas ou que atenda às suas demandas12,

parcela significativa dos atuais movimentos ambientalistas, nos quais se

enquadra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Ribeirinhos, tem apresentado

propostas à sociedade na qual estes se enquadram, em conjunto com o Estado

e com outros setores e grupos sociais, como co-responsáveis pelas ações

transformadoras. A este respeito, SADER (1995:29) afirmou:

Nessa representação a luta social aparece sob a forma de pequenos movimentos que, num dado momento, convergem fazendo emergir um sujeito coletivo com visibilidade pública.

Ao analisar o papel do Estado na regulação ambiental, BURSZTYN

(1993:84) enfatizou que, paradoxalmente a um mundo norteado por uma onda

antiestatal, neoliberalizante e individualista, vem sendo registrada, nos últimos

anos, crescente participação do setor público no gerenciamento e na regulação

ambiental, a qual só se deu em razão da maior pressão de setores sociais que

adquirem aquilo que Sader chamou de visibilidade pública. Segundo este autor,

isto vem ocorrendo à medida que,

11

Limitações que vão das deficiências de infra-estrutura às limitações de ordem política. Ver, a respeito, VIOLA (1992) e GUIMARÃES (1997).

12

É o caso, por exemplo, dos movimentos sociais que lutam contra a violência urbana e reivindicam do Estado políticas públicas mais eficientes e, sobretudo, mais policiamento ostensivo. Contudo, estes movimentos sociais, geralmente, não apresentam projetos nos quais se considerem como co-responsáveis por tais políticas.

23

quanto mais conscientes os cidadãos, maior a exigência da ação do setor público; mas por outro lado, o crescimento deste se traduz, geralmente, em problemas estruturais que desagradam aos cidadãos.

Daí, há necessidade de se estabelecerem parcerias entre Estado,

grupos de interesse e outros setores sociais envolventes13.

BURSZTYN (1993) comentou, ainda, que contemporaneamente, em

relação à necessidade de regulação ambiental, cabe ao Estado um papel

estratégico. Segundo este autor,

num mundo tendendo a reduzir a ação estatal, a questão ambiental se apresenta como importante exceção à regra. Em toda a parte, salvo, paradoxalmente, nos países socialistas (...), foram sendo criadas estruturas governamentais voltadas para a regulação e para a fiscalização das atividades causadoras de danos ao meio ambiente (idem:85).

Com vistas em superar o descontentamento do cidadão que espera

ações efetivas do poder público, a resposta talvez esteja exatamente nas

propostas dos diferentes movimentos populares ambientalistas (DIEGUES,

1994) que avistam, nas reservas ambientais e unidades de conservação (as

quais incorporam, em seu gerenciamento, populações tradicionais, sociedade

civil e Estado), alternativas de preservação ambiental.

Ao tomar consciência da ameaça que os cercava, na medida em que a

pesca comercial predatória era uma realidade, e da ausência do Estado na

regulação e fiscalização desse processo, os ribeirinhos, com apoio de

mediadores (sobretudo da CPT), são levados a se organizarem na busca de

alternativas viáveis de uso e manutenção dos recursos pesqueiros disponíveis

nos lagos perenes do Estado do Amazonas. Tudo isso ocorreu porque um bem

comum estava sendo utilizado de maneira privada e predatória por um grupo

da sociedade (pescadores comerciais). Os recursos ictiológicos, que são

recursos naturais renováveis, passam a ser ameaçados porque são usados na

forma capitalista, o que implica o seu esgotamento como recurso econômico,

passando de um recurso renovável a um recurso finito.

Assim tem sido em todos os casos em que um recurso natural passa a

ser usado na forma capitalista, como a borracha da Amazônia, as reservas

madeireiras da Europa e Ásia, e as inúmeras espécies de peixes de água doce

e salgada, pirarucu na Amazônia, sardinha no litoral sul do Brasil, etc.

(BECKER, 1997; FAO, 1999).

24

Há um descompasso entre o ritmo de uso dos recursos naturais

orgânicos ou inorgânicos e o ritmo de sua reposição pela natureza. Enquanto o

industrialismo retira do meio ambiente, anualmente, centenas de toneladas de

matérias orgânicas e inorgânicas, estas levam, em alguns casos, anos e, em

outros, centenas de anos para serem repostas pela natureza.

COSTA (1995:155), ao discutir esta questão, afirmou que:

O consumo destes estoques não é apenas um mero ato de conversão equivalente de matéria em energia - cuja a soma total sempre será a mesma, como nos ensina a primeira lei da termo dinâmica - mas também o ato de transformar matéria totalmente estruturada em matéria degradada, dejetos (matéria de baixa entropia por matéria de alta entropia - esta última inútil ou mesmo prejudicial para a vida humana). Implica tal ato numa perda de qualidade da própria base natural da vida - expressa no aumento de sua entropia (desordem) total - como formula a segunda lei da termodinâmica. Na medida em que estoques utilizados não se repõem no horizonte de muitas gerações, tais mudanças, tem um caráter de irreversibilidade quando

observadas no tempo próprio (Brüseke, 1990) da reprodução humana.

Nota-se, aqui, que os ribeirinhos do Amazonas foram levados, pelas

circunstâncias descritas, a romperem as relações tradicionais que mantinham

com o meio ambiente e com o Estado, tomando para si, ao menos em parte, a

responsabilidade de encontrar mecanismos de exploração sustentável dos

recursos naturais disponíveis.

O processo social vivenciado pelos ribeirinhos, a partir do incremento da atividade pesqueira comercial, acabou por provocar mudanças nas relações sociais14 existentes no interior das comunidades, entre as diferentes comunidades e entre estas e o Estado.

Como já apontado e a partir da reflexão apresentada, pode-se resumir o interesse deste trabalho na questão: Quais os fatores e condicionantes que contribuíram para a formulação da proposta de reforma aquática pelos ribeirinhos?

13

Apesar de ser este um importante tema, não houve preocupação com ele nesta dissertação. 14

As mudanças ocorreram, por exemplo, quando membros das comunidades passaram a prestar serviços, como pescadores, para os responsáveis pela pesca comercial, ou ainda quando as comunidades de ribeirinhos começaram a se organizar, na perspectiva de se contrapor ao avanço da pesca comercial.

25

1.3.1. Hipóteses

1.3.1.1. Hipótese geral

Os ribeirinhos possuem uma história de relações com a natureza

baseada na conservação, enquanto a relação especificamente capitalista,

praticada pelos pescadores comerciais, não apresenta tal história e sua relação

com o meio ambiente tem, como faceta, uma prática destrutiva. A proposta

atualizada dos ribeirinhos de reforma aquática viabiliza a manutenção de uma

relação harmoniosa entre homem e natureza, em que o primeiro, ao se

apropriar dos recursos naturais comuns, garante sua reprodução

socioeconômica e cultural, sem, contudo, destruir a segunda.

1.3.1.2. Hipóteses específicas

a) A inter-relação dos ribeirinhos e mediadores, sobretudo com a CPT, foi

fundamental para a elaboração da proposta de reforma aquática.

b) A proposta de reforma aquática representa um mecanismo de controle do

processo destrutivo do capitalismo, caracterizado, aqui, pela pesca

comercial.

1.3.2. Objetivos

1.3.2.1. Objetivo geral

Compreender quais foram as condições e os fatores que contribuíram

para a elaboração da proposta de reforma aquática elaborada pelo Movimento

dos Trabalhadores Rurais Ribeirinhos do Estado do Amazonas.

1.3.2.2. Objetivos específicos

1. Determinar quais as ações/reações dos pescadores comerciais diante da

referida proposta;

26

2. Distinguir os efeitos ou conseqüências provocados pelas ações dos

ribeirinhos no campo da regulação do uso dos recursos pesqueiros;

3. Compreender como as lideranças dos ribeirinhos se percebem enquanto

sujeitos propositivos;

4. Verificar se há influências (e quais seriam) dos movimentos ambientalistas; e

5. Verificar como a tomada de consciência se processou e qual o papel dos

mediadores.

27

2. REVISÃO DE LITERATURA

A princípio, faz-se mister ressaltar que se optou por diluir parte da

revisão de literatura ao longo do corpo deste trabalho.

Das possibilidades de reflexão sobre a Amazônia, uma, em particular,

chamou atenção - trata-se da questão do uso comum dos recursos naturais

disponíveis nos diferentes ambientes amazônicos (DIEGUES, 1994). Mais

especificamente, deseja-se refletir acerca do uso dos recursos aquáticos

pela população ribeirinha e pelos pescadores comerciais do Estado do

Amazonas e suas conseqüências sociais e ambientais.

Esta reflexão se dá a partir do estudo da proposta de Reforma

Aquática, elaborada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Ribeirinhos do

Amazonas, e dos fatores e condicionantes que possibilitaram o surgimento

daquela proposta.

Ressalta-se que foi abordado um único problema teórico, qual seja,

quais teriam sido os fatores e condicionantes que contribuíram para a

elaboração da proposta de uso e manejo sustentável dos lagos daquela região

e de que maneira esses fatores e condicionantes podem ser compreendidos à

luz da Ecologia Humana, entendida aqui como uma teoria multidisciplinar que

tenta compreender a relação homem-meio ambiente não de maneira

fragmentada ou departamentalizada, mas sob uma perspectiva mais integrada.

De outra forma, trata-se de uma disciplina que objetiva contextualizar o

homem no ambiente físico em que está inserido, na sua história social e na sua

28

percepção do meio ambiente, a fim de buscar explicações para as inter-

relações humanas.

Nesse sentido, parece que a Ecologia Humana, com sua característica

de promover maior aproximação entre as ciências sociais e ciências

ambientais, pode ser útil para o entendimento das questões aqui propostas.

Esta dissertação visou buscar, em duas obras de Emílio Morán, os

marcos teóricos que a nortearam. As obras em questão são A ecologia humana

das populações humanas da Amazônia (1990) e Adaptabilidade humana: uma

introdução à antropologia ecológica (1994).

Na tentativa de se encontrar um suporte teórico às interpretações e à

compreensão da questão do uso comum dos recursos naturais no Amazonas,

utilizaram-se as análises e proposições de Morán.

É evidente que uma teoria científica não pode pretender dar conta do

todo, razão por que foram consultados outros autores e teorias, para se

obterem algumas respostas às indagações, dentre eles, OSTROM (1990), com

sua Teoria dos Comuns, e DIEGUES (1994), com suas discussões acerca do

uso comum de recursos naturais.

A Ecologia Humana e suas proposições são ferramentas para a tarefa

proposta. Segundo MORÁN (1990:80),

o ponto inicial de uma pesquisa em ecologia humana é a definição de uma relação entre uma dada população e seu meio ambiente definindo uma dada problemática. A definição do problema determina onde deverá ser realizada a investigação e quais as variáveis com maior potencial de explicar as relações homem/meio ambiente. Assim, uma pesquisa em ecologia humana começa pelo exame sistemático dos processos de interação homem/ambiente.

Partindo do pressuposto que homem e sociedade vivem em um

contexto físico e material e que este contexto interfere no comportamento, na

ideologia e na cultura do primeiro, torna-se necessário um estudo que

considere as inter-relações do homem e natureza, tendo em vista que há quem

considere homem e natureza como dicotomizados.

A Ecologia Humana, que tem como premissa a necessidade de uma

abordagem multidisciplinar na qual estejam integradas as relações homem (em

suas diferentes e múltiplas inter-relações socioculturais) e meio ambiente,

propõe-se a

... integrar o conhecimento sobre a diversidade de comportamento das populações humanas com os sistemas dentro do qual tais populações se

29

encontram, invalidando a idéia de que representa um ‘reducionismo materialista (MORÁN, 1990:34).

A Ecologia Humana detém, como uma de suas virtudes, a possibilidade

de, ao contextualizar o homem em seus diferentes ambientes físicos, seu

contexto histórico e sua percepção ambiental, explicar a complexidade das

inter-relações humanas.

No entanto, para que a Ecologia Humana seja fiel ao que preconiza

como disciplina, tem de estudar

... o comportamento humano em toda a sua variabilidade (VIERTLER: 1988). O raciocínio ecológico baseia-se na análise interdisciplinar das bases desse comportamento: o contexto variável do ambiente físico e geográfico, as diferenças em trajetória histórica, a organização social e suas contradições internas, o impacto de forças externas, a dinâmica política interna e as relações políticas externas (idem: 35).

De tal sorte, pode-se perceber que se trata de uma disciplina

preocupada em não dissociar homem/natureza.

Nesse sentido, MORÁN (1994:58-64), ao dialogar com Boas, entendeu

que há uma importante diferença interpretativa entre Ecologia Humana e, por

exemplo, Antropologia Cultural. A Ecologia Humana entende que cultura e

meio ambiente se inter-relacionam, enquanto para a antropologia cultural, de

Franz Boas, o fator determinante ao entendimento do desenvolvimento cultural

é a história, e não mais o fator ambiental (fato que ele próprio havia defendido

no passado), do qual o homem faz uso a partir de sua herança cultural.

Dessa maneira, Boas entende que o comportamento humano é

compreensivo no contexto cultural, enfoque que coloca o determinismo cultural

no lugar do determinismo ecológico. Esse autor foi muito enfático ao defender o

argumento de que os fatores históricos eram fundamentais na explicação das

mudanças sociais (MORÁN, 1994:58-64)

Um dos elementos presentes nos fundamentos explicativos da

Ecologia Humana, e que parece importante, é a sua preocupação em negar o

determinismo ambiental.

O determinismo ambiental, bastante presente desde a era greco-

romana até os anos 50, procurou enfatizar a influência determinante da

natureza no homem. Esta influência se dava, por exemplo, por meio do clima,

considerado responsável pela determinação da qualidade de vida, pela saúde,

pela inteligência e pelo sucesso ou fracasso econômico e político.

30

Preceitos aceitos até o século XVIII sofreram importante variação no

enfoque analítico no século XIX, quando a variável explicativa estava nas

características geográficas e nas suas influências nas sociedades. Isto posto

(i.é, negado o determinismo ambiental), pode-se dizer que um estudo analítico

do comportamento humano deve levar em consideração não apenas os valores

e as estruturas sociais que são fundamentais, mas também outros fatores que

igualmente influem no comportamento humano, dentre os quais os fatores

ambientais.

O ambiente ocupado por um indivíduo ou por uma população contém

um conjunto de pressões materiais que tanto podem ter origem no meio físico

(tempestades, oscilações excessivas de temperatura, etc.) quanto no meio

social (poluição das águas ou do ar, sobrepesca, desmatamentos, etc.). Essas

pressões poderão levar populações humanas a interagirem umas com as

outras e com os seus ambientes, na busca de formas de adaptação às

pressões específicas, superando-as (MORÁN, 1994).

No entanto, MORÁN (1990:80) chamou atenção para o fato de que,

apesar de os indivíduos de todas as espécies, incluindo os seres humanos,

sofrerem grande variedade de pressões ambientais15,

as pressões ambientais não determinam, no entanto, o comportamento humano, sua fisiologia ou seu fenótipo. Ao invés disso, tais pressões funcionam como fatores seletivos, atuando sobre as diferentes alternativas disponíveis aos indivíduos. Tais respostas podem ser socioculturais, morfológicas ou fisiológicas (p. 80).

Outra importante característica da Ecologia Humana está em seus

princípios metodológicos que levam em consideração o fato de ser

praticamente impossível tomar para efeito de análise de comportamentos

humanos os ambientes físicos e culturais em sua totalidade. Nesse sentido, o

que esta disciplina propõe é levar em consideração os processos específicos e

suas interações, assim como as respostas dadas pelos membros de

determinada comunidade.

Conforme MORÁN (1990:81),

nossa consideração do processo adaptativo como estratégia para solucionar uma série e limites não inclui o ambiente físico ou a cultura em sua totalidade, mas os processos interativos entre ambos e os resultados das respostas dos

15

A característica do fenótipo é um exemplo de tais pressões. Em muitos casos, o fenótipo pode expressar, fisicamente, características genéticas melhor adaptadas ao ambiente habitado por aquele indivíduos.

31

indivíduos em uma sociedade. Desta forma evitamos a ênfase excessiva em fatores monocausais, afastamo-nos da suposição de estabilidade em sistemas e enfatizamos que o grau de adaptação é sempre imperfeito.

Em relação à questão do uso de

recursos comuns, a primeira referência é

a obra de HARDIN (1968), The Tragedy

of the Commons, na qual, em síntese, o

autor defendeu o argumento de que, num

regime de propriedade de recursos

naturais comuns, cada indivíduo

tenderia, necessariamente, a buscar a

ampliação de seus rendimentos, de

maneira que tal ação levaria a um

crescimento das pressões sobre os

estoques existentes.

Dessa maneira, Hardin propôs, como alternativa ao uso coletivo dos recursos naturais, a constituição de um regime de substituição da propriedade comunal por propriedade privada dos recursos naturais.

Na concepção desse autor, somente uma ação coercitiva do Estado,

mediante o controle do acesso e do uso dos recursos naturais por meio de

instrumentos legais ou a transferência dos recursos naturais à esfera privada,

seria capaz de garantir a proteção dos recursos ao longo do tempo e a sua

utilização econômica de maneira rentável.

É claro que essa idéia não se sustenta por muito tempo, sobretudo

quando se reporta ao período medieval, aos campos ingleses, em que os

recursos naturais, coletivamente utilizados pelos agricultores e pelos criadores

de ovelhas, renovavam-se periodicamente, garantindo às comunidades

camponesas sua reprodução. Contudo, com o advento dos “cercamentos” dos

pastos (e a sua efetiva privatização), promovidos pela Coroa Inglesa em fins do

século XVII e meados do século XVIII, houve, em poucos anos, o esgotamento

destes16. Na realidade, não seria preciso ir além, dado que as experiências

que se têm no Brasil, de utilização privada dos recursos naturais, não são nem

um pouco satisfatórias. Ao contrário, predominam o esgotamento acelerado

dos estoques de recursos naturais, a poluição ambiental, o esgotamento da

16

A este respeito, ver Léo Huberman. A história da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.

32

fertilidade dos solos (vide as áreas onde predomina a monocultura), a redução

dos recursos hídricos, etc.

Em contrapartida, na literatura têm-se estudado diferentes práticas de

apropriação e uso de recursos naturais, de maneira comunal (WALDMAN,

1994; FURTADO, 1993; DIEGUES, 1997; McCAY e ACHESON, 1987).

Verifica-se, com muita freqüência, que populações tradicionais são

prejudicadas ou expropriadas de áreas ocupadas tradicionalmente por elas.

Há, no Brasil, casos de povos indígenas da região Norte e de comunidades

quilombolas do Maranhão ou caiçaras do litoral paulista.

McCAY e ACHESON (1987), ao parafrasearem e criticarem Hardin,

afirmaram que o que se tem verificado é a “tragédia dos comunitários”.

O conflito entre ribeirinhos e pescadores comerciais que vem

ocorrendo no Estado do Amazonas é um dos exemplos da conseqüência da

apropriação privada dos recursos naturais.

33

3. METODOLOGIA

Com vistas em viabilizar este estudo, fez-se uso da metodologia

conhecida como Estudo de Caso17, a qual foi implementada pela utilização

das técnicas de pesquisa mais apropriadas, quais sejam, entrevistas abertas,

semi-estruturadas, observação direta ou livre, estudo documental (inclusive

documentos oficiais que normatizam a questão pesqueira) e, finalmente,

análise e sistematização dos dados obtidos, conhecida como análise de

conteúdo.

Optou-se pelo estudo de caso, por ser considerado como uma

metodologia de pesquisa bastante adequada aos estudos sociológicos, como

defendeu BECKER (1997:117), ao afirmar que o método supõe que se pode

adquirir conhecimento do fenômeno adequadamente a partir da exploração

intensa de um único caso, e também porque o objeto de estudo é um

fenômeno específico. Sendo assim, o estudo de caso propicia apreender a

totalidade de uma situação, assim como descrevê-la, em sua complexidade,

como um caso concreto.

A unidade de análise investigada foi o Lago do Serpa, localizado no

município de Itacoatiara, situado a cerca de 280 km de Manaus, na margem

esquerda do rio Amazonas.

17

Entendido aqui como uma estratégia de pesquisa que tem como objeto uma unidade analisada cuidadosamente. Esta análise deverá ter como referência não apenas aquela tal unidade, mas todo o meio que a cerca e a contém.

34

A decisão de realizar o estudo de caso junto aos comunitários

moradores do Lago do Serpa pautou-se nas seguintes razões: a) Trata-se de

uma comunidade ribeirinha organizada e atuante na luta em defesa dos

recursos aquáticos e que teve êxito na demarcação do lago como área de

preservação. Essa demarcação foi deliberada pela Câmara dos Vereadores do

município, após intensas reivindicações da comunidade em questão que já

vinha mantendo o lago fechado à entrada de embarcações de pesca comercial;

b) Trata-se de uma comunidade ribeirinha localizada em uma área de relativa

facilidade de acesso, tanto em períodos de cheia quanto de vazante, o que é

fundamental para o sucesso dos trabalhos de campo.

Entrevistaram-se indivíduos que possuíam vinculação significativa com o problema estudado, razão por que foram entrevistados lideranças de comunidades ribeirinhas, coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Ribeirinhos do Amazonas, assessores da Comissão Pastoral da Terra, lideranças dos pescadores comerciais do Amazonas, lideranças dos armadores e donos de barcos pesqueiros e técnicos da direção regional do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA). Após coleta, os dados foram analisados, combinando-se análise de conteúdo com análise histórico-dialética (TRIVIÑOS, 1995).

Adotou-se a análise de conteúdo por tratar-se de um método que

auxilia no estudo das motivações e dos condicionantes contidos nas ações

coletivas, muitas vezes velados e camuflados no interior de leis, discursos e

ações. Outro atributo desse método é que ele pode ser utilizado em parceria

com o dialético.

O método dialético pode também auxiliar no estudo, visto que possui

como um dos fundamentos a idéia de que existe uma realidade objetiva regida

por aquilo que é visto como a lei fundamental da dialética, qual seja, a unidade

35

e a luta dos contrários. Em outras palavras, não há categorias prontas e

acabadas, mas categorias construídas e desenvolvidas a partir da ação

humana sobre a natureza e sobre a sociedade. É esta ação que leva o homem

a adquirir conhecimento e, ao mesmo tempo, transformar-se, transformando a

natureza e a sociedade.

Neste trabalho, não foi possível, lamentavelmente, contar com a

participação das lideranças dos pescadores comerciais e dos armadores e, ou,

proprietários das embarcações, visto que estes não se dispuseram a dar

entrevista, sob a alegação (por exemplo) de que, por inúmeras vezes, haviam-

nas concedido "ao pessoal da universidade". Dentro do propósito desta

pesquisa, delimitou-se, temporalmente, este estudo nos anos de 1983 e 1997.

Este período se justifica pelo fato de ter ocorrido, no período de 19 a 21

de agosto de 1983, na cidade de Itacoatiara-AM, o Encontro sobre Pastoral

dos Pescadores da Região Norte I, coordenado pela Comissão Pastoral da

Terra (CPT), Regional Norte I, e pela Comissão Pastoral dos Pescadores

(CPP) - Coordenação Nacional18. Trata-se do primeiro encontro de ribeirinhos e

pescadores do Estado do Amazonas, proposto por lideranças de comunidades

ribeirinhas, pela CPT - Regional Norte I e pela Prelazia de Itacoatiara (Igreja

Católica). Este encontro teve a preocupação de avaliar a situação dos

pequenos pescadores (ou pescadores artesanais) e da população ribeirinha

que dependem do peixe para sobrevivência, assim como refletir sobre

possíveis respostas pastorais àquela realidade.

O período-limite do estudo, 1997, justifica-se à medida que será

possível perceber o momento atual das ações do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Ribeirinhos do Amazonas e seus desdobramentos.

36

4. A ATIVIDADE PESQUEIRA: FORMAS DE APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

4.1. A atividade pesqueira

4.1.1. O perfil dos pescadores que atuam no Amazonas

Pretende-se, aqui, apresentar um perfil dos diferentes tipos de

pescadores que atuam no Amazonas e um painel com algumas das principais

características que estão presentes na atividade pesqueira praticada naquele

Estado, com vistas em determinar as possíveis diferenciações entre a prática

pesqueira exercida pelos ribeirinhos e a exercida pelos pescadores comerciais.

O amazônida mantêém, desde tempos remotos, relação com a água e,

por desdobramento, com a pesca em toda aquela região. Há indícios de que,

em períodos remotos19, esse indivíduo tenha sido coletor de conchas e de

moluscos, além de pescador e caçador. Apesar das alterações ambientais, por

exemplo, que levaram à redução do nível do mar, provocando o rareamento

das conchas e dos moluscos, o qual teria forçado os indígenas a recorrer aos

18

Participaram do encontro representantes de pescadores e, ou, ribeirinhos das cidades de Itacoatiara, Tefé, Coari, Lábrea, Guajaramirim (RO) e comunidades ribeirinhas do rio Purus (divisa com o Estado do Acre).

19 Segundo PORRO (1996), o povoamento do Brasil teria se dado, provavelmente, no período

anterior a 30 mil anos, por meio de um lento deslocamento de pequenos grupos no decorrer de muito milhares de anos. Além da caça e da pesca, a alimentação dependia da coleta de crustáceos, sementes, raízes e frutas. Alguns desses povoadores deixaram sues vestígios nos sambaquis do litoral brasileiro (p. 14-15).

37

recursos terrestres além da caça e da coleta (FURTADO, 1993:90; PORRO,

1996), o amazônida nunca perdeu sua relação umbilical com a água.

Em épocas mais recentes20, o amazônida, em particular aquele que

habita as áreas de várzea, estreita seus laços com a terra, tornando-se

também um agricultor.

É pertinente afirmar que existem, pelo menos, três importantes

categorias de pescadores no Amazonas, as quais estão fundamentadas no

grau de profissionalização e na ligação com o mercado, quais sejam:

a) Pescador Profissional (ou comercial) é aquele aquele que não

possui vínculos com a atividade agrícola21, é morador da periferia de centros

urbanos e exerce a atividade pesqueira na maior parte do tempo. O pescador

profissional é um trabalhador que, normalmente, não possui salário fixo, mas

percebe um valor monetário resultante da partilha dos lucros de uma pescaria,

o qual é definido de comum acordo entre o armador, que é o proprietário do

barco de pesca, e os demais membros da tripulação.

Dentro dessa categoria de pescador comercial há importante divisão

social do trabalho que influenciará na definição da remuneração de cada um

dos trabalhadores. Tem-se o mestre, geralmente um dos mais velhos e

experientes da tripulação de uma embarcação pesqueira, profissional que

detém um conjunto de habilidades que lhe permitem localizar importantes

áreas para a pescaria de cardumes de espécies rentáveis. É ele também que

sabe melhor lidar com as forças da natureza, podendo indicar, com significativa

antecedência, a ocorrência de tempestades, as mudanças dos níveis d‟água e

os repiquetes. Por essas razões, este profissional exerce importante liderança

entre os demais pescadores e é o que recebe o maior filão da partilha dos

lucros da pesca.

20

Segundo PORRO (1996), não há dados arqueológicos para se precisar o aparecimento da agricultura na América do Sul, porém as evidências são indiretas a partir da ocorrência de cerâmica, pois admite-se a associação desses traços culturais. Com os dados disponíveis atualmente, pode-se dizer que a cerâmica começa a aparecer no Brasil durante o primeiro milênio a.C.

21

Isto porque, quando é o caso de ter sua origem na zona rural, já os perde, ou por já ter nascido na zona urbana.

38

Abaixo do mestre está o gelador de peixe, cuja tarefa principal é

armazenar o pescado em caixas de isopor, intercalando-os entre camadas de

gelo; e o pescador lançador ou pescador armador, que não se confunde

com o armador, que é o proprietário do barco. Sua tarefa é, após a indicação

do mestre, efetuar o lançamento das redes de arrasto cerco, ou armar as

malhadeiras.

Finalmente, há o pescador cozinheiro, que, apesar de exercer uma

atividade-meio, é reconhecido pelos demais membros da tripulação como um

pescador. Normalmente, trata-se de um trabalhador de idade avançada para as

atividades de convés e, ou, portador de alguma deficiência física (oriunda, ou

não, do trabalho no convés), ou de jovem aprendiz.

b) Pescador morador é aquele que, embora possa habitar as áreas

rurais (normalmente as margens de lagos ) e cultivar seu roçado, começa a dar

indicativos de que está se desvinculado, culturalmente, de seu local de moradia

e, ao mesmo tempo, se profissionalizando22.

Isto ocorre, principalmente, nos períodos da vazante, quando os lagos estão com grandes estoques pesqueiros e os barcos de pesca comercial encontram dificuldades em adentrá-los. Nesse momento, os responsáveis pelas frotas pesqueiras contratam alguns ribeirinhos que moram naqueles lagos, como pescadores, distribuindo-lhes redes e malhadeiras, além de caixas de isopor, gelo, bombilhos (pequenas lâmpadas para lanternas rudimentares), combustível, pilhas e algum acessório, para realizarem a pescaria em seus lugares. Como esses pescadores moradores conhecem muito bem os lagos e igapós, o sucesso da pescaria é praticamente garantido.

22

Não se pretende, aqui, fazer uma análise dessas transformações socioculturais. A este respeito, ver FURTADO (1993).

39

Após toda noite de trabalho, o fruto da pescaria é entregue aos mestres

ou aos donos dos barcos, os quais fazem o pagamento do pescado ora hcom

alimentos industrializados, medicamentos, cigarro, material ou instrumentos de

pesca, hora com dinheiro.

Deve-se salientar que esse tipo de atividade gera constantes conflitos,

porque o pescador morador, ao pescar no lago muito além daquilo que lhe é

necessário à subsistência, estará gerando, entre os demais moradores daquela

comunidade, um descontentamento potencializado, quando se trata de

comunidades organizadas e que têm os lagos protegidos contra a pesca

comercial.

Outro tipo de conflito muito comum é entre o pescador morador e os

responsáveis pelo barco pesqueiro, quando estes não informam,

adequadamente, ao primeiro sobre os descontos dos investimentos no valor

combinado a ser pago por quilo do pescado entregue. Assim, ao receber, o

pescador é informado que terá de pagar pelo gelo, pelas pilhas, pelas

lâmpadas, pelo combustível, pelos danos causados às caixas de isopor e pelos

instrumentos de pesca, etc. Não raro, o pescador morador se vê devedor

diante o pescador comercial.

Essas questões relativas aos conflitos estão melhor caracterizadas na

quinta seção, que trata do conflito e de seus desdobramentos.

c) Por fim, tem-se o Pescador lavrador, conhecido também por

varzeiro ou ribeirinho. Essa categoria (sujeito principal neste estudo) talvez

seja, dentre as diferentes categorias de pescadores aqui indicadas, a que

reúna maior número de indivíduos em todo o Amazonas.

O que caracteriza o pescador lavrador é sua relação umbilical e

articulada com a agricultura e com a pesca de subsistência, com a coleta e

com o extrativismo florestal. De outra forma, é aquele trabalhador que se ocupa

das atividades agrícolas e da agropecuária, na época da vazante (período

compreendido entre julho e dezembro), e das atividades extrativistas, após

aquele período.

No período da vazante, o ribeirinho preocupa-se, particularmente, com

seu plantio e com o gado (quando é caso), e a atividade pesqueira fica

relegada a segundo plano, até porque, como neste período há maior

40

abundância de pescado, o esforço necessário para a pesca é bem menor, se

comparado com aquele necessário em épocas de cheia.

Com o advento das cheias (período de janeiro a junho) e com a

impossibilidade de se exercer qualquer atividade agrícola de várzea, o

pescador agricultor volta-se para as atividades eminentemente extrativistas,

como a pesca e a coleta de frutos (castanha, pupunha, buriti, tucumã, etc.), e

para o monitoramento do gado, que é levado para áreas de terra firme ou

colocados em marombas (espécie de curral sobre palafitas), construídas em

áreas de várzea.

A atividade pesqueira no Amazonas pode ser dividida em três

categorias: pesca de subsistência ou artesanal, pesca comercial e pesca

de lazer. Neste trabalho, serão foram abordadas apenas as duas primeiras,

dado que a pesca de lazer não possui relevância, diferente do que ocorre, por

exemplo, no Estado do Mato Grosso (SILVA e SILVA, 1995).

A princípio, é importante salientar que, para os ribeirinhos, a atividade

pesqueira, associada ao extrativismo, à agricultura e à pecuária de pequeno

porte, inter-relaciona-se como uma estratégia de uso dos recursos naturais, de

maneira à utilizá-los de forma que estes se renovem ao longo do tempo. Nesse

sentido, o ribeirinho possui estratégias de sobrevivência diante das condições

ambientais que se apresentam a ele.

Essas estratégias cotidianas dos ribeirinhos se coadunam com os

preceitos de desenvolvimento sustentável e responsável ao longo do tempo. É

sustentável porque garante um aproveitamento racional e equilibrado dos

diferentes recursos disponíveis no meio ambiente; é responsável porque

respeita o homem e suas necessidades socioeconômicas e culturais e porque

respeita o meio ambiente, ao levar em consideração que este meio é

vulnerável e que, por ser vulnerável, ao longo do tempo pode tornar-se

vulnerável à humanidade.

É interessante observar que essa preocupação centenária dos

ribeirinhos, que também é a preocupação dos povos indígenas e dos caboclos

em geral da Amazônia, passou a ser também preocupação de grupos e

organismos organizações sociais, governamentais e não-governamentais de

todo o mundo, que se materializou materializada, em 1972, na Conferência

Internacional para o Meio Ambiente Humano, promovida pela ONU e realizada

41

em Estocolmo (Suécia), e durante a Convenção da Eco-92, quando foi

elaborada a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU/UNCED, 1992).

O que se deseja enfatizar é que o extrativismo, a agricultura, a

pecuária de pequeno porte e a pesca são práticas que podem ser vistas como

exemplos das estratégias mencionadas e constituem em base social e

econômica essencial aos ribeirinhos, embora se tornem bastante frágeis

quando ocorre o seu desequilíbrio interno ou externo .

Retornando à questão proposta, a pesca representa, na região

Amazônica, uma atividade imprescindível às relações socioeconômicas e

culturais. Pode-se diferenciar a atividade pesqueira a partir do modo como ela

é praticada e por quem ela o é. Tem-se a pesca comercial, que é exercida por

pescadores profissionais em embarcações especificamente preparadas para

este fim, conhecidas por geleiras, cujo objetivo é abastecer os mercados

consumidores urbanos. Em contrapartida, tem-se a pesca artesanal ou de

subsistência, que é praticada, fundamentalmente, por ribeirinhos, pequenos

agricultores e varjeiros (FURTADO, 1988).

A pesca artesanal é praticada por todos os membros da família e objetiva, fundamentalmente, alimentar os próprios pescadores e seus familiares, sendo possível comercializar os excedentes.

É importante evidenciar que esse tipo de pesca é imprescindível à

população amazônida, sobretudo dos ribeirinhos, visto que o peixe é o principal

alimento. Para se ter dimensão dessa importância na cadeia alimentar dos

ribeirinhos, o consumo médio per capita é de 60 kg anuais, considerado como

a maior média brasileira e uma das maiores do mundo, representando cerca de

60% da proteína animal consumida (MEGGERS, 1979; SMITH, 1989).

No Amazonas, a atividade pesqueira tem sido responsável por

importante parcela da oferta de emprego, o que é vital para a região, já que o

conjunto da atividade economia não tem sido suficiente para gerar novos

empregos à população economicamente ativa, que, ano a ano, vem crescendo.

Esse fato pode ser constatado em estudo realizado pela Comissão Pastoral

Regional Norte I AM/RR, no qual se enfatiza que a atividade pesqueira no

42

Estado do Amazonas conta com cerca de 20.000 pescadores profissionais, dos

quais apenas 9.700 possuem carteira assinada, e mais cerca de 50.000

pessoas empregadas diretamente no setor pesqueiro, as quais atuam na

produção do gelo, nas atividades de desembarque do pescado, no transporte

do produto até feiras e mercados e na sua comercialização (COMISSÃO

PASTORAL DA TERRA - CPT, 1992), ou seja, o setor é responsável pela

geração de cerca de 70.000 empregos diretos, dados que indicam a

positividade e a negatividade do setor pesqueiro.

Para se ter uma noção da importância dessa atividade, embora se

considere uma possível defasagem dos dados ao longo do período, verifica-se

que o distrito industrial da Zona Franca de Manaus empregava, em 1997, cerca

de 45 mil trabalhadores23, o que implica que a atividade pesqueira se

apresentava como responsável pela oferta de algo em torno de 10% dos

empregos em Manaus, cidade que concentra mais de 90% das atividades

econômicas e cerca de 50% da população do Estado do Amazonas.

Por outro lado, os dados que apontam a importância da atividade

pesqueira devem ser vistos também com preocupação, visto que, com a

redução quotidiana dos estoques pesqueiros, a atividade pesqueira comercial

passa a ser ameaçada como atividade econômica, comprometendo, por

conseguinte, aqueles empregos, o que, sem dúvida, causaria conseqüências

perversas ao conjunto dos trabalhadores amazonenses já bastante penalizados

com o desaquecimento da economia industrial local.

Apesar de os principais setores econômicos serem considerados

responsáveis por significativo número de postos de trabalho, a atividade

pesqueira comercial também tem sido responsável por importantes

transformações no meio ambiente aquático amazônico, como a utilização, cada

vez maior, de novos e impactantes instrumentos de captura do pescado e a

pesca de outros animais aquáticos.

De acordo com JUNK e HONDA (1976), a pesca comercial, a cada dia,

vem incorporando aparelhos e métodos modernos de pesca, como malhadeiras

e redes de arrasto de material sintético..., assim como ampliando,

sobremaneira, sua frota pesqueira. De 1971 a 1974, período em que o governo

23

Contra 76 mil, em 1990, e uma População Economicamente Ativa, para 1990, calculada em 743.938 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, 1991).

43

federal intensificou a remessa de recursos destinados à implantação dos

projetos de desenvolvimento da Amazônia, a frota do Estado do Amazonas

saltou dos 210 para 558 barcos, acréscimo de cerca de 167%.

O desenvolvimento desordenado da atividade pesqueira potencializou,

“na contramão”, os problemas já visualizados em fins do século passado e

início deste. JUNK e HONDA (1976), ao apontarem tais problemas, afirmaram

que

... (o) comércio mais intenso e novas modalidades de aproveitamento como, por exemplo, a obtenção de óleo de ovos de tartaruga ou a preparação de couros, aumentaram a pressão sobre algumas espécies (da fauna ictiológica). Logo homens de visão ampla como Veríssimo (1895) e Goeldi (1904) apontavam as conseqüências catastróficas que resultaram da utilização descuidada e sem controle das reservas.

Não se pode afirmar que o atual estágio de exploração do pescado no

Amazonas beire a uma “catástrofe”, como apontaram os citados autores;

contudo, ainda são poucos os esforços acadêmicos com vistas em melhor

compreender suas diferentes facetas e apresentar alternativas econômicas e

ecologicamente sustentáveis24 (DIEGUES, 1994; LOUREIRO, 1995;

PETRERE, 1991).

Os responsáveis pelo tipo de atividade pesqueira comercial que vem

sendo desenvolvida no Estado do Amazonas não têm demonstrado

preocupação com a possibilidade de um esgotamento da capacidade dos

estoques. Têm-se, hoje, indicadores que apontam o risco da extinção ou, ao

menos, redução drástica dos estoques de algumas espécies economicamente

importantes, tais como tambaqui, jaraqui de escama fina, jaraqui de escama

grossa, curimatã e matrinchã (BERTHEM, 1991).

A prática pesqueira, desenvolvida em toda a Amazônia nas duas

últimas décadas, tem sido considerada de elevado impacto ambiental,

econômico e social. Segundo a CPT - Norte I (CPT, 1992),

o desaparecimento do peixe de muitos lagos e rios é uma realidade na região Amazônica..., Há 15 anos atrás, o pescador poderia escolher o tamanho do peixe para pescar. Hoje, gasta-se o dia inteiro para pescar algumas piranhas. (...) também, a invasão aos lagos vai se tornando cada vez mais audaciosa. (...) utilizando-se de imensas redes (pescadores comerciais), arrastam tudo o que existe no lago, peixes grandes e pequenos. (...).A prática da pesca

24

Um dos esforços, neste sentido, tem sido o trabalho realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (UA) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), com o projeto “Subsídio para o manejo dos recursos pesqueiros da Amazônia Central”, financiado pelo CNPq, do qual o autor deste trabalho fez parte.

44

predatória, (...), está provocando escassez ou até mesmo a extinção de diversas espécies de peixes e animais aquáticos, trazendo a fome para as populações ribeirinhas.

Apesar da importância da atividade pesqueira em toda a Amazônia,

tanto do ponto de vista social quanto econômico e ambiental, são poucas as

informações básicas confiáveis acerca da dinâmica da prática pesqueira

comercial e de subsistência e acerca de suas conseqüências25. No entanto,

algumas informações disponíveis (como as indicadas) são importantes para

indicar a necessidade de estudos mais aprofundados sobre esta questão.

Por outro lado, as sociedades brasileira, em geral, e amazônida, em

particular, ao vislumbrarem a Amazônia de maneira idílica e utópica, como

indicou IANNI (1979), têm dificuldades em constatar que os recursos

pesqueiros vêm sofrendo impacto preocupante causado por desequilíbrios

ambientais.

São recorrentes, nos discursos acerca das riquezas vegetais e animais

da Amazônia, em particular entre os pescadores entrevistados, expressões do

tipo:

o peixe não vai acabar, há muito o que pescar por estes rios, ou, meu avô e meu pai sempre pescaram aqui e foi daqui que tiraram o sustento de suas famílias. Eles nunca falaram que poderiam acabar os peixes. Agora vem o pessoal do Ibama e da Universidade dizendo que tem que preservar, que tem que haver o defeso, se não o peixe irá desaparecer. Não acredito nisto não.

Finalmente, nos últimos anos, a questão vem despertando interesse

tanto das comunidades ribeirinhas e dos pesquisadores quanto dos próprios

empresários do setor, o que vem estimulando tanto a “publicização” dos

estudos sobre a região quanto o aumento do número e a qualidade das

pesquisas (FURTADO, 1993; DIEGUES, 1991).

A pesca comercial, na Amazônia como um todo (o que significa que o

Estado do Amazonas ali está “contido”), apresenta, como característica básica,

baixo nível tecnológico e altos índices de desperdício. Segundo PETRERE

(1991),

25

Estudos a esse respeito, como os de Maldonado (1994), Sales e Moreira (1996), Cunha e Rougelle (1989) e Madruga e Diegues (1992), realizados em outras regiões do País, pouco têm auxiliado, pois a pesca na Amazônia possui especificidades e características que não se têm verificado em outras regiões. Espera-se que, com o decorrer deste estudo, este problema possa ser solucionado.

45

a pesca industrial da piramutaba... na foz do Amazonas - é a única pescaria de 110 toneladas bruta de capacidade média, operando em parelhas com redes de 7 - 12 m de com características verdadeiramente industriais na região, empregando barcos com casco de ferro profundidade, capturando ate 28.000 t de pescado por ano. O descarte, constituído por peixes inadequados para a filetagem, é alto, atingindo cerca de 56% do total capturado.

Atualmente, é possível que qualquer outra atividade econômica

capitalista não suporte um descarte de tal ordem, como a pesca comercial não

tem suportado. Essa prática tem obrigado os pescadores comerciais a

penetrarem, a cada dia, em novas áreas em busca do peixe, não mais farto

como se pensava. Práticas como estas também têm sido verificadas em outras

formas de extrativismo comercial, cuja tendência (madeira, ervas medicinais,

minerais, recurso animais, etc.) é ir adentrando, cada vez mais, o interior das

matas e florestas em busca de novos recursos a serem extraídos. Dessa

maneira, depreda-se todo o entorno da área em que se encontrava o recurso

extraído (BUNKER, 1985). É o que ocorre, por exemplo, com a extração de

ouro na região paraense conhecida como “Serra Pelada”, ou com a extração de

madeira em toda a floresta amazônica.

A pesca de subsistência no Amazonas é uma atividade humana

milenar, como já foi indicado, e tem importância fundamental, tanto do ponto

de vista das relações socioculturais quanto econômicas, para as comunidades

humanas que habitam toda a região.

Segundo PETRERE (1991:32), esse tipo de atividade pesqueira,

apesar de não constar das estatísticas oficiais de desembarque de pescado,

representa cerca de 61% do volume de pescado capturado em 1980.

O produto da pescaria, normalmente, é consumido pelo pescador e por

sua família e, eventualmente, por outros membros da comunidade onde mora,

sendo o excedente, quando há, comercializado em pequenas comunidades,

cidades ou regatões26 que transitam ao longo de muitos rios.

26

Negociantes que possuem uma espécie de taberna ou pequeno empório instalado em um barco a motor. Normalmente, as relações comerciais praticadas entre regatões e ribeirinhos são desiguais, já que os primeiros são sempre beneficiados. Ocorrem, com bastante freqüência, práticas de escambo.

46

5. O CONFLITO E A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA DE REFORMA AQUÁTICA

Como apontado na primeira seção, os diferentes interesses

existentes entre pescadores comerciais e ribeirinhos do Estado do

Amazonas, em relação à apropriação e ao uso dos recursos aquáticos

daquela região, acabaram por gerar conflito, que, por sua vez, gerou uma

tomada de atitude por parte dos ribeirinhos, no sentido de superá-lo. O

que se pretende, aqui, é discutir um pouco esse processo, a partir de sua

gênese, que culminou com a elaboração, por parte dos ribeirinhos

organizados em torno de uma organização denominada movimento dos

Trabalhadores Rurais Ribeirinhos do Amazonas, da proposta de uso e

manejo dos recursos aquáticos do Estado do Amazonas, denominada

Proposta de Reforma Aquática.

Nesta pesquisa, o autor atuou ora como locutor, ora como

interlocutor de algumas das lideranças dos ribeirinhos, de um dos

mediadores e do Superintendente Regional do IBAMA. Não houve

participação das lideranças dos pescadores comerciais, que não se

dispuseram a dar entrevista, razão por que se utilizaram dados coletados

ao longo do estudo, mediante acesso a documentos referentes aos

47

inúmeros encontros realizados pelos ribeirinhos e entrevistas a

lideranças e a mediadores.

Pelo que se pode perceber, a questão do conflito em torno da

água começa a adquirir mais visibilidade a partir de 1978-79, quando os

ribeirinhos começaram a perceber que o peixe estava desaparecendo

dos lagos, igapós, paranás e rios. As primeiras queixas dos ribeirinhos

foram manifestadas no interior das dioceses e paróquias do Estado como

um todo.

A partir daí, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização da

Igreja Católica criada em 1975, devido aos conflitos por terra que vinham

se generalizando em todo o Brasil e, principalmente, na Amazônia Legal,

passa a preocupar-se com as constantes reclamações dos ribeirinhos

contra a escassez do pescado.

Naquele momento, a CPT constata que se tratava de uma

questão completamente diferente do que vinha ocorrendo no restante do

Brasil. Em todo o país e até mesmo em algumas partes da região Norte

(Pará, Maranhão, Mato Grosso, Acre, etc.), enquanto ela se preocupava

em apoiar e organizar trabalhadores rurais, posseiros, meeiros e

seringueiros que desejavam lutar pela posse da terra, no Amazonas, o

que estava em jogo era a questão da apropriação e do uso de recursos

aquáticos.

Como constam dos documentos da CPT e das entrevistas feitas

com o Pe. Dionísio Kuduavicx, um dos coordenadores regionais daquela

entidade, a situação deixou-os perplexos nos primeiros momentos. De

qualquer maneira, a CPT constatou que seria necessária uma ação para

dar respostas às demandas das comunidades.

O Pe. Dionísio descreveu, assim, aquele momento:

... Tanto que o Amazonas é uma realidade completamente diferente do que do resto do Brasil. A população é anfíbia - depende da água e depende da terra. Então a CPT começou a ter uma característica diferente das CPT’s do resto do Brasil. (...) Então, diante disso, a igreja começa a se preocupar com isso, e não tendo muito claro, inclusive, de como este trabalho em frente. Foi a partir de 1983 que começa a entrar nos programas da CPT a questão da preservação, principalmente da pesca...

48

Os conflitos tiveram início com as constantes competições entre os

pescadores comerciais e os ribeirinhos pelos recursos aquáticos, isto

porque, enquanto os primeiros pressionavam os recursos para obter

maior aproveitamento, destinando-os aos centros urbanos (principais

consumidores), os ribeirinhos preocupavam-se com a garantia desses

recursos para seu próprio sustento. Ambos os grupos entendiam que

tinham direito recíproco de se apropriar e fazer uso daqueles recursos

naturais. Divergiam em relação até onde cada um poderia ir, sem tolher

os direitos do outro. Como esta questão não estava clara, criava-se o

conflito.

É evidente que aqui foi simplificada a questão dos conflitos, já que

não se objetivava analisá-los em si, mas o desdobramento gerado por

eles. Para compreendê-los melhor, o leitor pode recorrer a HARTMANN

(1991).

A partir do risco de esgotamento dos estoques pesqueiros que passou

a existir com a presença constante dos barcos pesqueiros (também chamados

de geleiros), inúmeras comunidades ribeirinhas, com apoio de mediadores,

passaram, processualmente, a se organizar, buscando: a) compreender a

gravidade do problema; b) elaborar propostas alternativas de manejo dos

lagos; e c) propor a criação e o desenvolvimento de políticas pesqueiras de

viabilidade sustentável.

O primeiro encontro, no qual se discutiram os conflitos em torno da

questão aquática, denominado “Encontro sobre Pastoral dos Pescadores da

Regional Norte I”, ocorreu em agosto de 1983, na cidade de Itacoatiara-AM,

sob a coordenação da CPT-Norte I e da Comissão Pastoral dos Pescadores

(CPP) nacional. Naquele encontro, que contou com a cúpula regional da

Igreja27, estiveram presentes representantes dos municípios amazonenses de

Tefé, Lábrea, Coari, Itacoatiara e Guajará-Mirim (RO), e da região do rio Purus,

no Acre.

27

D. Jorge Marscell, bispo de Itacoatiara, Pe. Humberto Guidotti, coordenador regional da CPT - Norte I, e Frei Alfredo Schnuettgen (da cidade de Recife-PE), coordenador da CPP.

49

As principais preocupações detectadas durante aquele encontro foram

com a situação dos pequenos pescadores e da população ribeirinha, que

dependiam do peixe para sobreviver, e com as possíveis respostas pastorais

àquela realidade.

Em carta encaminhada ao Frei Alfredo, coordenador nacional da CPP,

o Bispo de Itacoatiara, D. Jorge, ao avaliar a necessidade da realização do

encontro, escreveu:

Nossa região oferece um quadro de circunstâncias diferentes talvez do

nordeste e outras áreas. Aqui tem o pescador artesanal, na maioria das vezes

explorado pelos donos dos grandes pesqueiros. Há também o agricultor que é

também pescador. Creio que seja de muita importância uma reflexão sobre

esta realidade.

Essas categorias de sujeitos sociais, apontadas por D. Jorge, vão

começar a se diferenciar a partir do segundo encontro, denominado “Encontro

de Pescadores Artesanais”, realizado em outubro de 1985, na cidade de Tefé.

Naquele encontro, começavam a delinear as contradições internas existentes

entre ribeirinhos, índios e pequenos pescadores comerciais (denominados, até

então, pescadores artesanais).

A questão é que estavam se reunindo, em torno de uma mesma mesa,

grupos com interesses bastante distintos. Os pequenos pescadores

reclamavam da falta de condições de competição entre eles, enquanto os

grandes pescadores comerciais reclamavam, por exemplo, do não-atendimento

de suas demandas pelos frigoríficos, que favoreciam somente os grandes.

Um trecho do relatório do encontro descreve essa questão da seguinte

maneira:

Resumindo todo o quadro de trabalho, pode se ver que os maiores

problemas, vistos pelos pescadores são os índios, os ribeirinhos, no fundo dos

comentários sempre saíram estes nomes. Portanto trata-se de pequenos

contra pequenos. É necessário tentar refletir por que esse problema de

pequeno contra pequeno.

Este problema apontado não foi solucionado por uma razão muito

simples, qual seja, os primeiros encontros reuniram exatamente parcelas

50

dos dois principais grupos de interesses - ribeirinhos e pescadores

comerciais. Pode-se perceber, a partir dos relatórios dos três primeiros

encontros, que, como referenciado, os dois grupos se achavam no direito

de utilizar os recursos aquáticos, não abrindo mão destes, embora, de

maneira velada, não se acusassem mutuamente.

O que se nota de relevante no relatório geral do terceiro encontro,

parece que realizado em Coari, em 1986 (o relatório não deixa muito

claro), é o surgimento de uma proposta para que cada participante

elabore levantamento de áreas em seus municípios, com a finalidade de

preservar lagos para a procriação de peixes e subsistência dos

ribeirinhos. Pela primeira vez, em três anos de tentativas de organização,

aparece uma proposta de resolução do problema relativo ao

esgotamento do pescado.

Na verdade, essa proposta já era uma conseqüência das

mudanças de rumo que os encontros passaram a ter. Como afirmou o

Pe. Dionísio,

nós começamos a reunir pescadores e agricultores. E a gente foi realizando encontros (...) e a gente começou a sentir que não deslanchava a coisa. Convidamos assessores do nordeste. Veio gente do Recife aqui que trabalha com colônia de pesca no litoral, para nos assessorar aqui nessa questão de preservação. Só que eles trazem uma experiência do pescador do litoral que se organizam em vista da pesca, inclusive pela briga das milhas marítimas, (...) e nós fomos sentindo que não estava dando certo. Ai é que começamos a, lentamente, nos dar conta de que não era por esse caminho que nós devíamos andar. Nós devíamos separar os grãos. Nós deveríamos começar a chamar os agricultores e começar a ouvi-los e que, a partir dessa escuta, ver que propostas estão levantando. Isso levou anos. Eu acredito que foi a partir de 86/87 é que começou se elaborar um pouco mais clara uma proposta de preservação de lagos, embora ainda muito diluída. Os agricultores querendo preservar áreas imensas que só era possível serem preservadas se fosse de helicóptero e não de canoas ou rabeta.

Duas questões materializam-se nos documentos analisados e na

fala do mediador Pe. Dionísio. Primeiro, o papel fundamental dos

mediadores na busca de soluções; segundo, a partir das proposições dos

ribeirinhos e dos mediadores, a idéia de preservação dos lagos começa a

tomar forma. Ao longo do quarto “Encontro de Pescadores e Ribeirinhos”,

realizado em outubro de 1987, em Manaus, ao discutirem acerca dos

51

principais problemas levantados pelos participantes, o que se destaca é

uma crescente politização dos debates e avaliações.

Com mais ênfase, detectam-se a omissão e a falta de apoio por

parte das autoridades que só privilegiavam os grandes pescadores

comerciais, estimulando, dessa maneira, a pesca predatória e a

devastação.

Como síntese daquele encontro, registrou-se que a relação

sistema capitalista versus povo desorganizado e crescimento

demográfico e ambição pelo lucro (por parte dos pescadores) constitui o

principal obstáculo às causas ali defendidas, ou seja, não se tem mais a

idéia de que o inimigo seja o pescador “A” ou “B”, mas um modelo

econômico e político que propicia as ações predatórias dos pescadores

comerciais.

Durante o referido encontro, realizou-se uma dramatização do

conteúdo avaliado pelos participantes do evento. Segue, abaixo, um

fragmento do texto apresentado pelos ribeirinhos:

Um grande pesqueiro aliciando um pequeno pescador e um comunitário, que juntos invadem um lago e fazem uma boa pescaria. Quando vão vender o pescado ao grande pesqueiro este lhes paga um valor irrisório, e ainda lhes diz que nem sempre se ganha na vida, o importante é não parar”. Após cinco anos de encontros e como resultado de toda esta caminhada e reflexão coletiva aparece pela primeira vez a questão de reforma aquática. Isto ocorreu ao longo do quinto encontro ‘De Pescadores’, realizado em junho de 1988, em Manaus. A questão aparece após uma longa reflexão em relação ao papel desempenhado pelos sindicatos de trabalhadores rurais os quais, segundo os participantes do encontro não estariam sendo capazes de levantar a bandeira do trabalhador para a defesa e preservação dos lagos. De tal forma os ribeirinhos tinham como entendimento que era necessário ao sindicato de trabalhadores rurais ‘estudar mais a questão do ribeirinha, pois a pesca não pode ficar de fora’ das reivindicações dos sindicatos, assim - concluem os participantes do encontro - ‘não é possível uma reforma agrária sem reforma da água’.

Como síntese do encontro, foi elaborada a proposta de reforma

aquática. A importância desta proposta do Movimento dos Trabalhadores

Rurais Ribeirinhos do Amazonas é que, do total de lagos existentes no

Estado, 5% seriam transformados em santuários; 15%, em lagos de uso

restrito; e os restantes 80%, em lagos livres. É essencial ressaltar que

a pesca no leito dos rios, nos igarapés e nos paranás permaneceria

inteiramente livre, ou seja, a preocupação central dos ribeirinhos seria

52

com a não-proibição da pesca ao conjunto da sociedade; na verdade, o

que eles queriam era disciplinar a atividade pesqueira, praticada de

maneira insustentável ao longo do tempo.

53

6. RESUMO E CONCLUSÕES

O Estado do Amazonas é formado, em sua totalidade, por florestas

entrelaçadas por inúmeros rios e lagos que formam as “estradas naturais‟‟ e

oferecem melhores condições de sobrevivência ao pescador lavrador

(ribeirinho) que mora nas margens desses rios e lagos, o que torna decisiva a

influência das águas na vida dos habitantes do Estado.

A agricultura é a principal atividade dos ribeirinhos, visto que eles

cultivam a várzea e a terra firme e a pesca é uma atividade complementar a

sua dieta, pois dedicam pouco tempo a essa prática e maior tempo à

agricultura. A pesca só recebe atenção mais acentuada pelo ribeirinho no

período da vazante, pois, nessa época, a abundância de pescado permite a ele

complementar a sua subsistência familiar.

No entanto, essa situação tem se modificado porque a fartura dos

estoques pesqueiros dos rios e lagos da Amazônia vem se esgotando, devido à

pesca predatória e indiscriminada praticada pelos barcos pesqueiros. Essa

progressiva escassez do pescado está alterando, significativamente, a forma

de subsistência das comunidades ribeirinhas. Em razão da quebra deste

54

equilíbrio, alteram-se as condições de vida do ribeirinho, tornando mais claras

suas dificuldades de sobrevivência no interior do Estado. Essa situação força

uma parte destes a migrar para as áreas urbanas, travando, aqui, mais uma

verdadeira luta pela vida, enquanto a outra parte defende os lagos

comunitários da ação da atividade pesqueira comercial.

Os sujeitos principais que praticam a pesca e fazem disso uma

profissão são os pescadores, que podem ser classificados em três categorias:

1. Pescador-lavrador (também conhecido como ribeirinho, comunitário ou

varzeiro). Esta categoria pratica, principalmente, a agricultura na época da

vazante do rio. Devido à maior disponibilidade de peixes nesse período e ao

fato de a atividade agrícola ser mais intensa, a divisão do trabalho acontece

no seio da família. Neste caso, o marido pode dedicar-se à agricultura, e a

esposa e os filhos, à pesca.

2. Pescador-morador - Apresenta incipiente grau de profissionalização. Durante

a época da vazante, os pescadores da frota pesqueira de Manaus adentram

os lagos de várzea mais populosos e distribuem malhadeiras a seus

moradores, que, nessa época, estão com pouco trabalho na agricultura.

Essas pessoas saem com suas canoas, armam suas malhadeiras no igapó e

trocam o pescado fresco capturado por gêneros alimentícios, fumo,

remédios, pilhas, etc., ou vende-o ao dono (ou mestre) do barco (PETRERE,

1982). Esse tipo de transação comercial é vantajoso para os donos de

barcos que não têm de despender nenhum esforço para conseguir o

pescado, além de evitar conflitos com as comunidades ribeirinhas, já que

são seus próprios membros que praticam a pesca.

3. Pescador-profissional ou comercial - Neste caso, ele já perdeu o contato com a agricultura; é, normalmente, habitante da periferia de pequenos ou grandes centros urbanos. Pode ser oriundo do interior

55

ou já ter nascido na cidade (pescador citadino ou monovalente). O pescador profissional é um trabalhador semi-assalariado, ou seja, trabalha à base da partilha do lucro da pescaria. A partilha é feita com base na função que cada um desempenha no barco, e a maior parte do quinhão cabe ao armador (geralmente, o dono do barco ou aquele que financia as pescarias), o qual fica com 50% do lucro da pesca.

Não obstante os demais trabalhadores do setor pesqueiro, os

pescadores profissionais são, na atividade pesqueira, aqueles que percebem

as mais baixas remunerações, decorrentes da forma de pagamento feito pelo

sistema de partes, já que o armador financia toda a estrutura necessária à

realização de uma pescaria, como a compra dos alimentos a serem

consumidos aos longo da pescaria, o combustível, a manutenção da

embarcação e, por vezes, possíveis adiantamentos de remuneração da

tripulação do barco de pesca.

Ao término de uma pescaria, que pode variar em relação ao número de

dias, de acordo com o período do ano, condições climáticas, etc., e com a

venda do pescado, os custos desta são computados e subtraídos do valor

auferido pela venda do pescado, ou seja, do lucro bruto são subtraídos todos

os custos associados àquela pescaria.

Após esta operação, o armador retira para si, normalmente, 50% do

valor recebido pela comercialização (lucro líquido); somente após esta fase é

que cada um dos tripulantes da embarcação será hierarquicamente

remunerado, de acordo com cada uma das partes a que tem direito,

preestabelecidos antes de uma pescaria. Esse sistema não é exclusivo da

pesca local, mas trata-se de modalidade de relação de trabalho adotada ao

longo de todo o litoral brasileiro, assim como em outros países.

Via de regra, uma tripulação é constituída, hierarquicamente, pelo

mestre (responsável pelo barco), pelo motorista (condutor da embarcação),

pelo gelador, pelo lançador de rede e pelo cozinheiro, aprendiz ou ajudante.

Esse empreendimento adotado pelos armadores, comum à atividade

pesqueira, é a forma perversa de se repartirem os riscos com a tripulação,

56

protegendo-se, assim, da aleatoriedade da captura e do mercado, os quais

poderiam ser fatais aos armadores, sobretudo para o pequeno armador.

Nesse caso, se a tripulação fosse remunerada por salário, uma série

de viagens consecutivas sem bons resultados poderia implicar na falência. Na

verdade, o pescador assume diretamente as responsabilidades da armação,

assim como os prejuízos que porventura venham a decorrer do processo de

captura. Caso haja prejuízo, este é aceito com naturalidade pelos pescadores.

Quanto ao armador, a situação é de relativa tranqüilidade, pois, por pior que

seja a pescaria, ao menos uma parte do capital constante e do capital variável

será reproduzida. A remuneração pelo sistema de partes apresenta, assim,

uma carga ideológica ao pescador, pois este se ilude ao acreditar que, em uma

boa pescaria, pode-se ganhar muito mais do que outros trabalhadores.

Portanto, essa forma de pagamento está condicionada ao volume de

peixes capturados, o que induz o pescador profissional a se empenhar cada

vez mais no processo de captura, porque o seu rendimento será

proporcionalmente maior à medida que for maior o volume de peixes

capturados. Nesse sentido, tornam-se evidentes as razões que levam os

pescadores comerciais a adotarem estratégias de pesca que impactam o

ambiente.

No Estado do Amazonas, são praticados, basicamente, dois tipos de

pescarias:

1. Pescarias artesanais - São pescarias de subsistência que também fornecem

pescado para pequenas vilas e cidades, nas quais são empregados,

principalmente, caniço, malhadeira e zagaia na captura de peixe. Essas são

as mais importantes da Amazônia e não aparecem nas estatísticas oficiais

de desembarque, perfazendo 61% do total estimado em 1980. Essas

pescarias são, geralmente, praticadas por ribeirinhos ou por pescadores

moradores que usam pequenas embarcações.

2. Grandes pescarias comerciais - Centralizadas ao redor dos grandes centros

consumidores como Manaus, Coari, Tefé, Parintins, etc., são utilizadas

embarcações com capacidade de armazenamento que podem variam de 15

a 60 toneladas. Essas embarcações podem permanecer de 15 dias a dois

meses no mar, para captura de peixes. Nesse tipo de pesca, é prioridade a

captura de espécies mais rentáveis economicamente, as quais se

57

caracterizam por peixes migradores. Assim, na Amazônia Central, o

Tambaqui (Colossama macropomum), o Jaraqui (Temaprochilodus

iseniurus) e o Curimatã (Prochilodus nigricans) perfizeram 72% da captura

total, em 1978 (PETRERE, 1991), de um total de 32 grupos de espécies

comercializadas. Os peixes lisos não são consumidos localmente em grande

escala como as demais espécies, sendo capturados para exportação.

Dos mais variados tipos de capturas de peixes, a pesca comercial, por

excelência, é a atividade de maior impacto ambiental e social no Estado do

Amazonas. A pesca comercial é praticada em todo o Estado, mas seu núcleo

central de comercialização localiza-se na cidade de Manaus. Isto ocorre

porque, em outras áreas, o número de barcos e pescadores é incipiente, em

relação ao de Manaus. De fato, é a capital que possui a maior frota pesqueira e

é também o maior mercado consumidor no Amazonas.

Calcula-se que haja cerca de 1.200 barcos regularmente registrados

em Manaus, em relação a uma demanda de 150 toneladas de peixes (CPT,

1991), sem levar em conta os barcos clandestinos - aproximadamente 300, que

não possuem autorização para pescar. Essas embarcações aportam,

principalmente, nos portos de Educandos, Compensa e São Raimundo.

O rápido crescimento do setor pesqueiro e o aumento, sem controle,

dos números dos barcos pesqueiros determinam maior concorrência entre os

pescadores. Os instrumentos de pesca tornam-se cada vez mais sofisticados e

os sistemas de pesca cada vez mais predatórios, com vistas na efetivação de

pesca mais fácil, o que resulta no freqüente desrespeito às regras

estabelecidas pelo IBAMA, na captura de grandes volumes de pescado em

menor tempo possível e na rápida comercialização destes no porto de Manaus

ou em outro mercado comprador.

Desse modo, a pesca comercial praticada no Estado do Amazonas

vem se tornando predatória, visto que utiliza instrumentos impactantes como

arrastão, arrastadeira e malhadeira que fazem uma verdadeira „‟raspagem„‟ do

leito dos rios e lagos, não deixando escapar nem mesmo os peixes de pequeno

porte e aqueles sem valor comercial, os quais, normalmente, são abandonados

- mortos - nos próprios lagos.

58

Nos últimos anos, em Manaus, no período da safra, a oferta média de

peixe tem oscilado em torno de 300 toneladas dia, o dobro em relação à

demanda diária, que oscila em torno de 150 toneladas dia, saturando, em

níveis insustentáveis, o mercado local.

A pesca predatória, aliada à falta de capacidade de armazenamento

adequado dos estoques excedentes, é a principal causa do desequilíbrio entre

oferta e demanda dos estoques pesqueiros no Estado. A falta de um terminal

pesqueiro em Manaus faz com que perdure um sistema obsoleto de

desembarque do pescado, que é realizado com o auxílio de canoas, ou seja, os

geleiros aportam a cerca de 100 metros da margem esquerda do rio Negro,

onde o pescado é colocado a venda. Para que os compradores tenham acesso

aos peixes, é necessário que se desloquem até os geleiros, em pequenas

canoas (quase sempre fretadas).

Os longos períodos de pescaria, a forma de armazenamento do

pescado em caixas de isopor, a inexistência de estoques reguladores e os altos

valores cobrados pelos pescados têm acarretado significativos desperdícios do

pescado, que é jogado fora pelos armadores porque já estão se deteriorando

ou porque há dificuldades em realizar a venda, por inexistência de

compradores dispostos a pagar os valores cobrados pelo pescado. Calcula-se

que cerca de 60 toneladas de peixes sejam desperdiçadas, diariamente, nos

períodos de safra.

Os barcos pesqueiros regularmente autorizados são cerca de 1.200

unidades. A capacidade do frigorífico de cada um varia de 5 a 60 toneladas,

mas a grande maioria dos barcos (80%) tem capacidade de 15 a 30 toneladas

(tamanho médio). Portanto, a frota pesqueira é formada por embarcações de

médio porte.

Outro dado é em relação ao perfil

dos proprietários dos barcos. Mais de

80% dos proprietários possuem

apenas um barco e apenas 15 a 20%

possuem mais de um barco. Isto

demonstra que os armadores com

mais de um barco são minoria e

raramente chegam a possuir mais de

cinco barcos.

59

Conclui-se que a atividade pesqueira praticada no Estado do

Amazonas é muito "artesanal", ou seja, neste Estado, a pesca comercial tem

sido praticada com técnicas e instrumentos tecnologicamente superados e,

sobretudo, ineficientes, o que implica índices de descarte expressivos. Na

pesca comercial amazonense há ausência da grande empresa pesqueira, fato

que difere, significativamente, da realidade encontrada, por exemplo, no Estado

do Pará, assim como em quase toda a costa litorânea brasileira, onde se

verificam concentração dos barcos em mãos de poucos proprietários e relação

de produção pesqueira industrializada.

Geralmente, a média de tripulantes, por embarcação, é de 10

pescadores. O IBAMA (Instituto Brasileiro de Defesa do Meio Ambiente)

cadastrou, em 1991, cerca de 9.700 pescadores profissionais “com carteira“;

contudo, calcula-se que haja cerca de 20.000 pescadores profissionais no

Amazonas. Além dos pescadores profissionais, há aqueles desembarcados, ou

seja, os que atuam diretamente nos setores (pós-desembarque do pescado),

estimados em cerca de 50.000 trabalhadores; por fim, encontra-se o pessoal

que atua indiretamente no setor pesqueiro, estimado em cerca de 30.000.

Esses dados ressaltam a importância socioeconômica que o setor

pesqueiro representa (uma vez que dele depende, direta ou indiretamente,

cerca de 300.000 pessoas somente em Manaus), assim como a ausência do

Estado na regulação e proposição de políticas destinadas ao setor pesqueiro.

Nesse contexto, destaca-se a figura do despachante, que, muitas

vezes, é o próprio armador, cuja função é comercializar o pescado, leiloando-o

e estabelecendo seu preço. Além de monopolizarem a distribuição do peixe, os

despachantes financiam a compra e venda e os empréstimos que envolvem os

pequenos proprietários e pescadores (PETRERE, 1991).

A venda e a distribuição do pescado são feitas, durante a madrugada,

nos portos de Manaus, especialmente na feira da Panair, no Bairro do

Educandos, onde dezenas de barcos chegam, das 20 horas até a madrugada,

para o leilão do pescado. Os pescadores respeitam a tradição - esperam os

despachantes, pois sem a presença destes não há autorização para que os

frigoríficos dos barcos sejam abertos. Alguns dos despachantes chegam a

controlar a comercialização de dezenas de barcos, cobrando cerca de 10% de

comissão. A descarga do pescado, vendido por meio dos despachantes aos

60

atravessadores e aos feirantes, é feita pelos canoeiros que vão até os barcos,

carregam-nos e descarregam-nos na beira do rio, para que sejam comprados.

O preço do peixe é ditado pelo mercado e mediado pelo despachante

que procura obter preço mais elevado possível. No período de entressafra, o

preço do pescado atinge seu ápice, enquanto no período de plena safra

(setembro a novembro), para manter o preço mínimo de mercado, é jogado nos

rios o excedente do pescado, para evitar prejuízos ao setor. Os prejuízos desse

descarte são assumidos pelo consumidor, pois, até o produto chegar a suas

mãos, o preço pode elevar-se até 300%, devido às comissões recebidas pelos

despachantes, pelos atravessadores e pelos feirantes.

Como apontado, o Estado tem se mostrado incapaz de planejar,

dinamizar e fiscalizar as relações pesqueiras no Amazonas, razão pela qual

tanto ribeirinhos quanto pescadores comerciais enfrentam problemas que

carecem de soluções cujo desfecho deve ser dado pelo Estado.

De um lado, tem-se o pescador-lavrador que luta com as dificuldades

vivenciadas em seu cotidiano, de outro, tem-se a figura do pescador-

profissional que tem na pesca comercial sua principal fonte de renda. Ambos,

em comum, almejam a busca pacífica daquilo que outrora era abundante, o

peixe. Porém, contemporaneamente, protagonizam um conflito devido à forma

desordenada pela qual o capital administra o setor.

O principal problema enfrentado pelos ribeirinhos é a condição precária

de vida no interior do Estado, principalmente quando um barco pesqueiro entra

em lagos de seu domínio e captura os peixes que são importante

complementação alimentar, sobretudo nos períodos de entressafra agrícola.

Muitas vezes, dependendo da região do Estado, o peixe é a única fonte de

proteína animal à qual o ribeirinho tem acesso.

Diante desse problema, os ribeirinhos optaram, como alternativa, pela

adoção de práticas que possam obstaculizar a entrada de embarcações

pesqueiras em lagos de seus domínios.

A partir de 1980, em razão da crescente invasão de barcos pesqueiros

em lagos das comunidades ribeirinhas, da freqüente pesca predatória e estrago

de peixes, e da conseqüente diminuição dos estoques pesqueiros, as

comunidades ribeirinhas definiram uma proposta de luta contra a atividade

pesqueira comercial praticada em lagos comunitários. Dentre outras práticas

61

adotadas por essas comunidades, uma consistia no fechamento de algumas

áreas à pesca comercial, com vistas na preservação dos seus mananciais

piscosos, o que acabou por gerar conflitos entre ribeirinhos e proprietários (ou

armadores) dos barcos de pesca comercial.

Houve ações violentas de ambos os lados. Os ribeirinhos, para impedir

invasões dos lagos, passaram a destruir os utensílios dos pescadores, além de

apreenderem o pescado, enquanto os proprietários ou armadores dos geleiros,

valendo-se dos pescadores comerciais e dos demais membros da tripulação

das embarcações, passaram a defender-se desses ataques, muitas vezes com

violência, pois não aceitavam as imposições dos ribeirinhos, ponto de vista

compartilhado, muitas vezes, por autoridades públicas (delegados de polícia,

prefeitos e vereadores). O que estava em pauta era a questão do direito ao uso

e à apropriação dos recursos aquáticos localizados em áreas de uso comunal.

A este respeito, Hartmann teceu as seguintes considerações:

A administração e aproveitamento sustentado de recursos naturais é possível sobre três regimes de propriedade, ou seja, particular, governamental (ou res pública no linguajar dos juristas) e de propriedade em comum (ou res comunes), onde o recurso é mantido por uma comunidade definida de usuários que podem excluir outros ou

regulamentar o seu uso; uma quarta possibilidade é a do acesso livre (ou res nullis), que, freqüentemente é associada e confundida com as formas de propriedade pública e propriedade em comum; porém, o regime do livre acesso é justamente caracterizado pela essência de direitos definidos de propriedade (...). A questão do regime de

propriedade, assim, do direito de determinar as formas e limites do seu uso, é, obviamente, ligada ao tipo e ao tamanho do recurso natural em pauta. No caso de recursos pesqueiros temos, num extremo, lagos fechados, sem conexão a sistemas aquáticos mais complexos, que podem ser possuídos particularmente, igual a propriedade da

terra; (...). Porém, é importante ressaltar que propriedades de comunidades, isto é, propriedade comum, não significa livre acesso ao recurso natural (...) a legislação pesqueira vigente garante a cada cidadão o acesso a este recurso natural (...) o decreto federal de 1923 estabelece o domínio da União sobre todas as águas correntes e

interligadas, mesmo temporariamente, e, subseqüentemente, a competência da justiça federal de legislar a seu respeito (HARTMANN, 1991).

Tem-se, aqui, uma legislação que garante o livre exercício da atividade

pesqueira em todo o território nacional, embora sujeita à regulamentação de

duvidosa eficácia, isto porque acaba por não contemplar as possibilidades de

uso comunal de áreas públicas. Esse impasse fez com que o conflito entre

ribeirinhos e proprietários e, ou, armadores continuasse até recentemente.

Os conflitos, via de regra, ocorriam, basicamente, por duas razões: a)

Inexistência de mecanismos legais que pudessem regular a apropriação e o

uso privado e coletivo dos estoques de recursos naturais oriundos de áreas

utilizadas coletivamente por comunidades locais; b) Incapacidade ou

desinteresse do Estado em aplicar os instrumentos legais existentes.

Em relação à questão jurídica legal, a Constituição Federal de 1988,

em seu artigo 231, § 3.o, representa um marco no contexto político-institucional,

62

pois preconiza que fica facultado ao Estado e aos municípios criar, por critérios

próprios, novas áreas de reservas, inclusive reservas pesqueiras nos lagos e

rios para povoamento de peixes, limitando-se, nesses casos, à pesca artesanal

e de subsistência.

Contudo, apesar do previsto em lei magna, o que se constata é que o

IBAMA, órgão federal responsável por apontar as diretrizes da implementação

das políticas publicas ambientais, não consegue cumprir o seu papel de

agente encarregado de gerenciar, fiscalizar e propor políticas ambientais.

Em conseqüência disto, ou seja, a partir dos problemas gerados - junto

às comunidades ribeirinhas - pelo tipo de atividade pesqueira impactante do

ponto de vista ambiental e social, comunidades ribeirinhas (por exemplo,

comunidades dos municípios de Silves, Coari, Itacoatiara, Tefé, Itapiranga,

etc.) formaram associações e, posteriormente, organizaram-se em torno do

Movimento dos Trabalhadores Rurais Ribeirinhos, iniciado em 1983, quando

então passaram a refletir sobre a questão da apropriação e do uso dos

recursos pesqueiros por parte do setor pesqueiro comercial e sobre a

conseqüente redução dos estoques.

Como resposta ao problema, as comunidades ribeirinhas passaram a

controlar o acesso aos lagos previamente escolhidos para configurarem como

áreas de manejo e uso comum das comunidades, sendo proibido o acesso de

geleiros.

O IBAMA, órgão federal responsável pela fiscalização dos lagos, pouco

ou nada vinha fazendo para controlar e fiscalizar as ações dos geleiros, por

duas razões fundamentais: primeiro, por preocupar-se mais com os interesses

patronais (como afirmou o atual Superintendente Regional do Órgão em

Manaus); segundo, por não possuir as mínimas condições de infra-estrutura e

de pessoal para fiscalizar os lagos da região.

O máximo que o IBAMA vinha fazendo era publicar, anualmente,

portarias que proibiam a captura de algumas espécies de peixes (tambaqui,

63

pirarucu, tucunaré), de dezembro a março, período em que os peixes saem dos

lagos para reproduzir, apesar de os resultados serem tímidos em relação à

depredação que ocorre nesse período. O governo estadual também tem sido

omisso na questão de regulamentação do setor pesqueiro, uma vez que se

detém ao desenvolvimento técnico e econômico do setor pesqueiro, ainda

assim precário, não levando em consideração a questão social emergente dos

problemas da pesca, remetendo-o à esfera federal.

O que ocorre, em particular neste cenário de “tragédia dos

comunitários”, é a mobilização do Movimento de Trabalhadores Ribeirinhos do

Amazonas, cujo resultado foi a elaboração da proposta de reforma aquática

instituída pelos próprios ribeirinhos do Amazonas, com apoio de mediadores

ligados à Comissão Pastoral da Terra - CPT (entidade ligada a Igreja Católica).

Porém, o que se apresentou como relevante, ao término desta

pesquisa, foi o fato de que a proposta de reforma aquática passou a ser não

apenas apoiada totalmente pelo IBAMA, por intermédio da sua

Superintendência Regional (evidentemente com o aval da direção nacional do

órgão), mas também se tornou uma das principais políticas públicas ambientais

adotadas pelo Estado.

Na verdade, o IBAMA, sem uma política autônoma voltada para a

questão pesqueira no Amazonas e pressionada, interna e externamente, por

movimentos ambientalistas e movimentos populares, acabou tomando para si a

proposta dos comunitários amazonenses. Assim sendo, por iniciativa da

Superintendência Estadual no Amazonas, elaborou e implementou, em julho de

1997, o "Programa de Ordenamento da Atividade Pesqueira no Estado do

Amazonas", cujos principais objetivos são:

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buscar meios para viabilização de uma atividade pesqueira econômica e ambientalmente sustentável; administrar os fatores intrínsecos que caracterizam o uso dos recursos pesqueiros, suas interfaces, conflitos e outros; propor uma estrutura de ação política no âmbito do ordenamento competente para o gerenciamento da pesca por micro-bacia hidrográfica.

Nesse sentido, o que se têm são indícios de uma nova concepção de

política pública ambiental destinada à Amazônia, em que o cerne é exatamente

o manejo dos recursos naturais renováveis a partir de uma perspectiva de

desenvolvimento social balizado por um manejo responsável dos fatores

ambientais.

Esta tomada de decisão política foi estimulada pelas ações adotadas

pelos ribeirinhos do Amazonas em defesa do direito ao uso coletivo dos

recursos aquáticos presentes nos lagos, rios e igarapés do Estado.

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