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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PROMO’MA’É O MESTRE DO CONHECIMENTO TRADICIONAL Para descolonizar a escola indígena Lila Rosa Sardinha Ferro Orientador: Dr. Othon Henry Leonardos Co-orientadora: Dra. Laís Mourão Dissertação de Mestrado Brasília, janeiro de 2005. 1

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  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

    PROMO MA O MESTRE DO CONHECIMENTO TRADICIONAL

    Para descolonizar a escola indgena

    Lila Rosa Sardinha Ferro

    Orientador: Dr. Othon Henry Leonardos

    Co-orientadora: Dra. Las Mouro

    Dissertao de Mestrado

    Braslia, janeiro de 2005.

    1

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

    PROMO MA

    O MESTRE DO CONHECIMENTO TRADICIONAL

    Para descolonizar a escola indgena

    Lila Rosa Sardinha Ferro

    Dissertao de Mestrado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentvel da

    Universidade de Braslia, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Grau de

    Mestre em Desenvolvimento Sustentvel, rea de concentrao em Poltica e Gesto

    Ambiental.

    Aprovado por:

    _____________________________________

    Dr. Othon Henry Leonardos. PhD (CDS/UnB)

    _____________________________________

    Dra. Las Mouro. PhD. (CDS/UnB)

    _____________________________________

    Dra. Vera Catalo. PhD. (FAE/UnB)

    Braslia, 25 de Janeiro de 2005.

    2

  • FERRO, LILA ROSA SARDINHA

    Promoe ma~ . O mestre do conhecimento tradicional. Para descolonizar a escola indgena.

    173 p., 297 mm, (UnB-CDS, Mestre, Poltica e Gesto Ambiental, 2005).

    Dissertao de Mestrado Universidade de Braslia. Centro de Desenvolvimento Sustentvel.

    1. Multiculturalidade 2. Polticas em Educao

    3. Cidadania Indgena 4. Populaes tradicionais

    I. UnB-CDS II. Ttulo (srie)

    concedida Universidade de Braslia permisso para reproduzir cpias desta dissertao e

    emprestar ou vender tais cpias somente para propsitos acadmicos e cientficos. O autor

    reserva outros direitos de publicao e nenhuma parte desta dissertao de mestrado pode ser

    reproduzida sem a autorizao por escrito do autor.

    __________________

    Lila Rosa Sardinha Ferro

    3

  • Meu av, na cidade de Tocantnia, onde nasci, manteve-se ao lado

    dos Xerente nos constantes conflitos com os fazendeiros. Suas

    iniciativas, frente da prefeitura da cidade, evitaram aes

    agressivas e de extermnio contra os ndios. As lembranas de

    infncia so imagens de uma casa aberta aos compadres, seus

    amigos, com quem ele fazia trocas de vrias naturezas, num

    relacionamento respeitoso e cheio de admirao.

    Dedico esse trabalho ao meu av Tarqunio Sardinha, com quem

    aprendi as primeiras lies de respeito alteridade indgena.

    4

  • Agradecimentos

    Esse trabalho resultado da conjugao de esforos de muitas pessoas, a quem eu estive ligada de

    diferentes formas. A elas agradeo profundamente:

    Aos ndios, lideranas, professores indgenas e comunidades, que depositaram sua preciosa confiana

    em mim e no meu trabalho, dando alma a essa pesquisa, especialmente, Icham Kamayur, Aritana

    Yawalapti, Katuap Yawalapti, Takum Kamayur e Mapulu Kamayur.

    Aos estudiosos, pesquisadores e cientistas, autores de um acervo de idias, descobertas e reflexes,

    com as quais pude contar para dar consistncia e completude a esse trabalho;

    Aos meus queridos professores orientadores Othon e Las, pela generosidade com que me acolheram e

    pelas preciosas sugestes que fizeram ao trabalho;

    Ao pessoal da Administrao Executiva Regional do Xingu/FUNAI, especialmente Otvio Moura, que

    oportunizou o meu trabalho na rea indgena;

    Aos amigos e colegas de trabalho que me apoiaram nos momentos que era preciso viajar rea

    indgena e me afastar temporariamente da escola onde eu leciono, Snia, Maurcio, Ins, a Graa e o

    Rocha;

    minha famlia, Nara e Mariana, minhas filhas, minha me Eurdice, meu pai Serize e irmos Slvia,

    Renata e Tate, com os quais pude contar irrestritamente, possibilitando-me a tranqilidade para

    empreender as numerosas viagens que fiz ao Parque do Xingu, e a minha tia Mathilde e minha av

    Rosa, no reencontro com o meu av indigenista, atravs de suas memrias.

    5

  • RESUMO

    Essa dissertao toma como objeto de estudo os processos de (re)conquista da

    autodeterminao dos povos indgenas, habitantes da regio dos formadores do rio Xingu, conhecida

    como Alto Xingu, ora envolvidos com um projeto de escolarizao, cujas dificuldades suscitaram

    reflexes e crticas em torno das polticas pblicas formuladas para o setor, da legislao vigente e da

    ao de organizaes no governamentais.

    O carter pluritnico da nao brasileira e as prerrogativas constitucionais de proteo s

    sociedades indgenas constituem um campo pouco trabalhado e as aspiraes que poderiam

    aperfeioar as polticas e prticas pblicas ainda no ascenderam categoria de direito.

    Nessa condio, encontra-se o mestre do conhecimento tradicional, que os legisladores da

    educao escolar indgena excluram do processo de escolarizao das aldeias, dando-lhe apenas uma

    participao indireta, como fonte de memria para a pesquisa dos jovens professores em formao.

    Depositrio de saberes e prticas milenares, provindos de formas prprias de apreenso

    do real, os mestres do conhecimento tradicional so personagens fundamentais para a proteo das

    lnguas nativas e do patrimnio cultural indgena do nosso pas.

    A escola indgena, de fato diferenciada, deve ser um espao para o exerccio do dilogo

    intercultural, em que as bases das atividades crebro-espirituais amerndias sejam preservadas. Para

    isso fundamental a atuao dos mestres do conhecimento tradicional, capacitados em suas prprias

    tradies, identificados por suas comunidades e reconhecidos pelo Estado brasileiro, com igualdade de

    direito em relao aos demais professores indgenas formados pelo sistema de ensino oficial.

    Palavras-chave

    Autodeterminao, conhecimentos tradicionais, educao indgena, polticas pblicas.

    6

  • ABSTRACT

    This dissertation focuses on the processes of (re)conquering the self-determination of

    the indigenous peoples that inhabit the region known as Alto Xingu, formed by the Xingu

    River. At the moment these peoples are engaged in a schooling project whose difficulties have

    raised issues and criticism regarding the public policies designed for the sector, the legislation

    in force and the action of non-governmental organizations.

    The pluralist trait of the Brazilian nation and the constitutional prerogatives of

    protection of the indigenous societies form a field of study yet to be worked. The aspirations

    that could enhance the public policies and practices do not have a law worthy status.

    In this scenario, the legislators of indigenous education have excluded the master

    of the traditional knowledge from the educational process in the indigenous settlements. The

    masters were given an indirect participation; the young teachers that have been educated rely

    on them as the source of memory of their history. The masters of the traditional knowledge

    possess ancient knowledge and practices which were acquired by means of their unique

    perception of the reality. Therefore they are the key players in the process of protection of the

    native languages, the cultural indigenous heritage as well as the autonomous schooling

    process of the communities.

    The indigenous school is indeed distinct, and as such it should be a place in which the

    intercultural dialogue is exercised, based on the preservation of the Amerindian intellectual

    and spiritual activities. In order to do that the masters of the traditional knowledge, aware of

    their own traditions, identified by their communities and recognized by the Brazilian State,

    have to be able to work having the same rights of those indigenous teachers educated by the

    official educational system.

    Keywords

    self-determination, traditional knowledge, indigenous education, public policies.

    7

  • SIGLAS

    PIX Parque Indgena do Xingu

    ISA Instituto Socioambiental

    SEDUC/MT Secretaria de Educao/Mato Grosso

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    MEC Ministrio da Educao

    AER/Xingu Administrao Executiva Regional/Xingu

    SPI Servio de Proteo ao ndio

    FBC Fundao Brasil Central

    ERX Expedio Roncador-Xingu

    DEDOC/FUNAI Departamento de Documentao/FUNAI

    CPI Comisso Pr-ndio

    CTI Centro de Trabalho Indigenista

    CCPY Comisso pela Criao do Parque Indgena Yanomami

    CIMI Conselho Indigenista Missionrio

    ABA Associao Brasileira de Antropologia

    UNI Unio das Naes Indgenas

    CF/1988 Constituio Federal de 1988

    SIL Summer Institute of Linguistics

    RECNEI Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indgenas

    UNEMAT Universidade Estadual do Mato Grosso

    UNICAMP Universidade de Campinas

    TIX Terra Indgena do Xingu

    AVA Associao Vida e Ambiente

    ATIX Associao Terra Indgena do Xingu

    PIV Posto Indgena de Vigilncia

    PI Posto Indgena

    FAE/UnB Faculdade de Educao/Universidade de Braslia

    LDB/1996 Lei de Diretrizes de Bases da Educao Nacional/1996

    8

  • FIGURAS Ilustrao de partes e captulos

    Agradecimentos Motivo grfico xinguano dente de piranha.

    Introduo Pintura distintiva alto xinguana usada no rosto.

    Captulo I Os sentidos e os mtodos da pesquisa Motivo grfico xinguano sucuri.

    Captulo II Um (des)encontro de mundos

    Honorio Philopono. Ordinis S. Benedicti Monacho, 16211.

    Captulo III Polticas indigenistas no Brasil

    Nicolas Yapuguay. Companhia de Jesus, 17242.

    1 In: GAMBINI, Roberto. Espelho ndio: a formao da alma brasileira. So Paulo, 2000. Ed. Axis Mundi/Terceiro Nome, pp 42. 2 Idem, p. 150

    9

  • Captulo IV O Alto Xingu

    Motivo grfico xinguano casco do jabuti, associado festa dos

    mortos, o Kuarup.

    Captulo V Educao Escolar no Alto Xingu

    I Seminrio de Educao Escolar do Alto Xingu. Foto Lila Rosa.

    Captulo VI

    Promoe ma, o mestre do conh ecimento trad icio nal .Um argumento a seu favor

    ~

    Icham Kamayur. Foto de autor no identificado.

    Concluso Mithos e Logos

    Cermica zoomorfa (arraia) xinguana waur.

    10

  • SUMRIO

    07 Introduo

    Os saberes milenares 08

    500 anos de colonizao 11

    O dilogo intercultural 15

    Os cenrios mundiais e a cena brasileira 18

    20 Captulo I

    Os sentidos e os mtodos da pesquisa

    Meta pontos de vista 23

    A estrutura do texto 27

    29 Captulo II

    Um (des)encontro de mundos

    36 Captulo III

    Polticas Indigenistas no Brasil

    A colnia Brasil 39

    Brasil a caminho da independncia 41

    Brasil independente 44

    Repblica positivista brasileira 48

    A ditadura militar de 1964 56

    A constituio de 1988 64

    68 Captulo IV

    O Alto Xingu

    Preldio 69

    Arqueologia xinguana 84

    Karl von den Steinen no Alto Xingu 87

    Entradas colonizadoras em territrio xinguano 89

    Etnias do Alto Xingu 95

    11

  • 116 Captulo V

    Educao escolar no Alto Xingu

    Os xinguanos buscam sua autonomia 127

    I Seminrio de Educao Escolar do Alto Xingu 137

    Reflexes 145

    148 Captulo VI

    Promo ma: o mestre do conhecimento tradicional

    Uma fonte de utopia 149

    Um convite ao mestre 151

    159 Concluso Mithos e logos na gnese da educao escolar indgena

    Mithos e logos 160

    Logos e mithos 162

    163 Bibliografia

    12

  • Os saberes milenares

    O trnsito das estrelas no cu vai estruturando o calendrio indgena e organizando os

    eventos que tornam possvel a produo dos alimentos: a derrubada da mata, o fogo e a

    limpeza, o plantio das diversas espcies de mandioca e a colheita. Homens, mulheres, bichos,

    plantas e espritos fazem um acordo de reciprocidades e uma rede de esforos e usufrutos

    torna possvel realizar a festa e o trabalho.

    Quando certa estrela ou constelao nasce no horizonte da noite est na hora de

    comear a derrubada. Aquele pedao de mata que foi retirado ser plantado e replantado

    durante dois, trs, excepcionalmente, quatro anos. Depois, hora de abandon-lo, lan-lo ao

    esquecimento dos homens e restitu-lo memria da mata. Dez, vinte anos sero necessrios

    para que as rvores cheguem novamente s alturas e dem frutos e aquele pedao de floresta

    se feche em cips, lianas e se repovoe de pssaros.

    Ento, com o tempo, a roa vai ficando mais longe e cada vez mais longe. A aldeia vai

    andando atrs de suas roas e deixando para trs seus pomares cultivados e a natureza vai, aos

    poucos e, simultaneamente, incorporando os produtos do trabalho humano e apagando seus

    rastros.

    A composio atual da vegetao madura bem pode ser o legado das civilizaes

    passadas, a herana dos campos cultivados e das florestas manejadas, que foram

    abandonados centenas de anos atrs (GMEZ-POMPA, 2000, p.133) 3.

    Os saps tomam conta da velha aldeia e aquele cho, palco das danas, do pisoteio

    cotidiano, onde esto enterrados os antepassados permanece como referncia para passagens

    eventuais ou quem sabe, muito mais tarde, uma opo para retornos necessrios. H sempre

    uma aldeia velha, ou muitas aldeias velhas na memria das comunidades, lugares onde se vo

    buscar frutas e de onde se estende caminhos que levam ao peixe, s ervas e razes, caa, s

    conchas, s tocas de arara, ao aguap, embira e aos nichos sagrados que marcam as

    3 GMEZ-POMPA, Arturo e KAUS, Andra. Domesticando o Mito da Natureza Selvagem. In: DIEGUES, A. Carlos. Etnoconservao, rumos para a proteo da natureza nos trpicos. NUPAUB. Annablume Editora, So Paulo, 2000, p. 133.

    13

  • fronteiras objetivas e subjetivas desse mundo, que protegido por uma teia de estratgias para

    garantir permanncias mtuas.

    Os abusos de qualquer espcie o lanamento exagerado de timb e uma matana

    desnecessria de peixes, o fogo mal controlado que extrapola os limites previstos ou caadas

    fora de poca so acontecimentos que resultam, para homens ou mulheres que o praticam,

    em estados de m sorte, a panema, nos quais torna-se difcil, at impossvel obter sucesso na

    coleta, na pesca, na caa e at mesmo na relao amorosa.

    A panema um mecanismo a impedir a separao, a impessoalizao ou - conforme

    diria Karl Polanyi (1980) o desembebimento (...) da natureza, que jamais poderia

    ser lida, vivida e reificada como uma comodity(mero meio de produo e

    enriquecimento). So essas ritualizaes entre cultura e natureza que as situam

    no mesmo plano e permitem a ambos os lados uma tica de respeito, generosidade,

    equilbrio e reciprocidade que foram reprimidas, destrudas ou transformadas pela

    chamada modernidade capitalista (DAMATTA, 1993, p.104) 4.

    Enquanto os homens fazem a derrubada ou renovam o plantio na mesma rea, as mulheres

    colhem as razes, processam-nas e, retirando-lhes o veneno, a transformam em mingau, por

    meio de longos cozimentos, e em polvilho que abastecer a casa ao longo do ano.

    - Est cansada Sanain?

    - Ah, muito cansada, muito trabalho... mas estou contente, estou fazendo

    polvilho para os filhos, marido, minha famlia. 5.

    O trabalho fatigante das mulheres durante meses de colheita esconde um bocado de

    prazer. um esforo realizado para si e para os seus que compensa tanto sacrifcio. To

    diferente do cansao da maioria dos trabalhadores, alienados de si mesmos que, no estatuto

    capitalista, dirige sua energia para algo de que provavelmente no poder desfrutar.

    Fora da aldeia e para alm das periferias das roas, a mata um espao amplo que abriga

    animais e espritos, que podem provocar alteraes no equilibro fsico e espiritual dos seres

    humanos. 4 DAMATTA, Roberto. Em torno da representao da natureza no Brasil: pensamentos, fantasias e divagaes. In: Conta de Mentiroso: Sete ensaios de Antropologia Brasileira. Rocco, Rio de Janeiro, 1993, p. 104. 5 Dilogo com Sanain, chegando da roa com uma cesta grande cheia de razes para fazer polvilho. Aldeia Yawalapti, colheita de 2004. Terra Indgena do Xingu.

    14

  • O canto de um pssaro anuncia a presena de algum que, a despeito de sua aparncia

    abriga um esprito pleno de humanidade. Na companhia dos seus, esse pssaro se despoja de

    seus disfarces ou de sua capa de animal e vive uma existncia de homem comum em sua

    aldeia, praticando seus rituais, produzindo e reproduzindo seus costumes.

    Em suma, os animais so gente, ou se vem como pessoas. Tal concepo est quase

    sempre associada idia de que a forma manifesta de cada espcie um envoltrio a

    esconder uma forma interna humana (...) Essa forma interna o esprito do animal:

    uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idntica conscincia humana...

    (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 351) 6.

    A viso darwiniana prope uma origem comum para seres humanos e animais, cuja

    diferenciao foi ocorrendo num lento processo evolutivo, em que humanidade e animalidade

    se distinguiram. A viso amerndia afirma que a condio original comum aos humanos e

    animais no a animalidade, mas a humanidade (Ibidem, p.355) 7. A idia de que existe uma origem humana comum a animais e seres humanos nos coloca em

    uma situao de equivalncia respeitada, cuja ressonncia simblica est circunscrita nas cosmologias8

    amerndias, expressa nos rituais que iniciam ou encerram os ciclos da vida e nos hbitos e

    procedimentos da vida diria. Junto s suas relaes antagnicas e concorrentes, homens e animais

    mantm entre si relaes de reciprocidade e mutualismo, que os tornam ao mesmo tempo dependentes

    e autnomos uns dos outros.

    O perspectivismo indgena se desdobrar nas diversas interaes dos seres humanos com a

    natureza e se expressar nas estratgias ecolgicas que garantem a sustentabilidade das comunidades e

    do meio ambiente. A viso de uma natureza espiritualizada estar refletida nas formas de uma

    socialidade atenta ao outro, tendo como ideal a equanimidade, o despojamento e a gentileza no

    dilogo. A ocorrncia de equivalncias simblicas nas trocas comunitrias um indcio de que a

    solidariedade um dos fundamentos da tica indgena. Num moitar9, realizado entre os Truma e os

    6 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstncia da alma selvagem. Cosac & Naify. So Paulo, 2002, p. 351. 7 Idem, p. 355. 8 Cosmologias so teorias do mundo. Da ordem do mundo, no espao e no tempo, no qual a humanidade apenas um dos muitos personagens em cena. Definem o lugar que ela ocupa no cenrio total e expressam concepes que revelam a interdependncia permanente e a reciprocidade constante nas trocas de energias e foras vitais, de conhecimentos, habilidades e capacidades que do aos personagens a fonte de sua renovao, perpetuao e criatividade. Na vivncia cotidiana, nas aldeias indgenas, essas concepes orientam, do sentido, permitem interpretar acontecimentos e ponderar decises. (LOPES DA SILVA, Aracy. Mitos e Cosmologias Indgenas no Brasil: breve introduo. In: GRUPIONI, Lus D. B (org.). ndios no Brasil. Global, So Paulo, 2000, p. 75). 9 Encontro de aldeias para trocas de produtos.

    15

  • Kamayur, descrito por Orlando Villas Bas (1994) 10, o lder Kutamap Kamayur entrega algumas

    centenas de quilos de polvilho aos Truma, ora em dificuldade com suas roas, em troca de uma

    bolinha de massa de pequi, do tamanho de um gro de milho.

    500 anos de colonizao

    Os homens se diferenciaram porque tornaram-se homens, porque responderam de

    modo especfico a estmulos universais.

    Roberto DaMatta11

    Mas no vejo como a humanidade poderia viver sem diversidade interna.

    Lvi-Strauss12

    Somente no final do sculo XX o Estado brasileiro reconheceu o direito das

    populaes indgenas a uma vida prpria.

    Podemos apontar, dentre outros, alguns fatos que contriburam para essa mudana: a

    notvel resistncia dos povos indgenas colonizao, a sua luta e de seus aliados pelos seus

    direitos; as mudanas paradigmticas no pensamento antropolgico/etnolgico que,

    relativizando as vises sobre as culturas e sociedades espalhadas pelo mundo, e tomando

    como foco a descontinuidade da diversidade humana, nos fez conceber origens e projetos

    humanos distintos; e as presses internacionais sobre o governo brasileiro, levando-o, em

    certos momentos, a tomar decises a favor das populaes indgenas (RECNEI, 2002, p30) 13.

    A viso romntica da mistura das raas na formao do povo brasileiro, circunscrita na

    ideologia dominante, tem cedido lugar a estudos crticos mais consistentes sobre a histria do

    encontro de ndios, brancos e negros nessas terras. Sabemos hoje que a Colnia brasileira

    nunca foi um campo para experincias sociais ou polticas inovadoras, onde se pudesse

    implementar a fundo diferenas radicais e individuais(DAMATTA, 2000, p.64)14.

    Ao contrrio, aqui foi fortalecido o modelo portugus do exerccio das distines sociais e, a

    despeito da diversidade ambiental e das diferenas regionais, a metrpole sempre centralizou

    10 VILLAS BAS, Orlando e Cludio. A Marcha para o Oeste. A epopia da expedio Roncador-Xingu. Editora Globo, So Paulo, 1994, p. 316. 11 DAMATTA , Roberto. Relativizando, uma introduo antropologia social. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, p. 34. 12 LVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa, Edies 70, p. 33. 13 RECNEI - Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indgenas/ Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Fundamental Braslia: MEC/SEF, 2002, p. 30. 14 DAMATTA , Roberto. Relativizando, uma introduo antropologia social. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, p. 64.

    16

  • decises, governando por meio de leis e decretos generalizantes e impondo uma estrutura

    social rigidamente hierarquizada.

    A solidariedade fundada no parentesco, prpria da vida tribal, bem como todos os

    elementos culturais subjacentes, foi substituda, nas povoaes coloniais, por um sistema

    social estratificado em classes, escravocrata e hegemnico, tendo seus ncleos locais

    integrados num corpo poltico, cuja cabea era o rei de Portugal. As populaes indgenas

    foram sendo retiradas a qualquer custo do caminho da empresa colonizadora que, para colocar

    em ao suas atividades agrcolas e extrativistas, protagonizou um genocdio, que at hoje

    oculto nas fbulas histricas, criadas para explicar este pas.

    No sculo XVI, a conscincia coletiva europia no tinha interesse em sequer pensar

    na possibilidade de um desenvolvimento autnomo no Novo Mundo, preocupada em

    expandir-se e responder aos desafios das transformaes econmicas, sociais e filosficas

    pelas quais passava. A alteridade foi riscada do futuro, rejeitada pela crena de uma

    assimilao inexorvel das populaes nativas, em condies submissas e, ao mesmo tempo,

    necessria ao sucesso dos modelos econmicos e sociais implantados para a explorao

    material do mundo. Apoiados por uma religio missionria, os europeus, mesmo na

    convivncia com os ndios, foram incapazes de reconhecer valores em sua cultura milenar.

    Entre ellos no ay amor ni lealtad, (...) No tienen a quien obedezcan sino a sus

    prprias voluntades, y de aqu es hazen quanto se les antoja enclinndose com ellas a

    vicios sucssimos e tan torpes, que tengo por mejor callarlos debaxo de silencio que

    escribiendo descubrir maldades tan enormes.

    Antonio Blzquez15

    Para os jesutas do sculo XVI, como de resto para o homem branco em geral, os

    ndios no foram jamais tocados pela luz: sua natureza, sua cultura, seus corpos e

    almas nunca ultrapassaram o obscuro limiar da condio humana.

    Roberto Gambini16

    15 Carta de Antonio Blzquez aos padres e irmos de Coimbra (8 de julho de 1555, 2), apud GAMBINI, Roberto. Espelho ndio. A formao da alma brasileira. So Paulo, 2000. Ed. Axis Mundi/ Terceiro Nome, p. 93. 16 Espelho ndio: a formao da alma brasileira. So Paulo, 2000. Ed. Axis Mundi/Terceiro Nome, p. 90.

    17

  • Nada que os ndios tinham ou faziam foi visto com qualquer apreo, seno eles

    prprios, como objeto diverso de gozo e como fazedores do que no entendiam,

    produtores do que no consumiam.

    Darcy Ribeiro17

    A crena na inferioridade da cultura indgena desembarcou com os jesutas e foi sendo

    confirmada pela atitude preconceituosa com que eles interagiram com a gente da terra, nos

    projetos da catequese e pela forma distorcida e superficial com que interpretavam a vida

    indgena. Os jesutas so incapazes de aceitar o ndio com suas inclinaes, e passam

    peremptoriamente a julgar tal disposio como evidncia de um mal intrnseco (GAMBINI,

    2000, p.94) 18.

    Por outro lado, a civilizao europia v seu prprio passado com reservas, j que a

    interpretao bblica que o explica lhe remete ao pecado original. Ao mesmo tempo, orgulha-

    se de ter superado a inconscincia e as condies de vida do homem primitivo. Portanto, o

    projeto dos jesutas era atualizar os ndios em relao ao modelo de civilizao europeu,

    elevando-os condio humana, a qual, por suposto, eles ainda no haviam chegado.

    Um monlogo se estabeleceu para humanizar a incompreensvel natureza indgena. Desde logo, os

    ndios foram vistos como pessoas ingnuas, de sentimentos superficiais, sem lei, sem religio, o

    inimigo aqui no era um dogma diferente, mas uma indiferena ao dogma... 19, polgamos e

    antropfagos, pecadores inveterados outros gentios so incrdulos at crer; os brasis, ainda depois

    de crer, so incrdulos 20, independentes, (...) e, sobretudo, falta-lhe temor e sujeio 21, cuja

    converso e mudana dos maus costumes seriam a nica forma de salvarem-se da danao eterna. Os

    jesutas da Companhia de Jesus se responsabilizaram pela tarefa, e, no fim do sculo XVI, os

    Tupinamb da costa brasileira estavam praticamente extintos.

    A resistncia indgena catequese e, por extenso, escravido e ao projeto de

    colonizao portugus era vista como inconstncia, imagem configurada na historiografia que

    ainda ressoa, em seus mltiplos harmnicos, na ideologia dos modernos disciplinadores dos

    ndios brasileiros(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.191).

    17 O Povo Brasileiro. A formao e o sentido do Brasil. Companhia das Letras. (So Paulo, 1997, p. 48). 18 GAMBINI, Roberto. Espelho ndio. A formao da alma brasileira. So Paulo, 2000. Ed. Axis Mundi/ Terceiro Nome, p. 94. 19 VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo. A Inconstncia da alma Selvagem. So Paulo, 2002. Ed. Cosac & Naify, p. 185 20 In: O Sermo do Esprito Santo (Vieira 1657:216) apud Viveiro de Castro, Eduardo. A Inconstncia da alma Selvagem. So Paulo, 2002. Ed. Cosac & Naify, p. 185. 21 Padre Anchieta apud Viveiro de Castro, Eduardo. A Inconstncia da alma Selvagem. So Paulo, 2002. Cosac & Naify, p. 189.

    18

  • O grande equvoco dos jesutas no papel dos educadores dos ndios, fartamente

    documentado e difundido, est nas razes do nosso desconhecimento da alma ancestral do

    Brasil. Uma parte da nossa cultura, negada desde o incio, foi lanada ao esquecimento.

    sombra da nossa conscincia vive a nossa ancestralidade indgena e dela apenas emergem

    alegorias como muletas para apoiar a nossa auto-imagem.

    Um processo que estruturou uma conscincia, um modo de ser, pensar e agir, da

    qual somos portadores e representantes, queiramos ou no, e da qual um passado

    riqussimo foi extirpado, dissociando-se de um todo, do qual deveria fazer parte

    integral e complementar (GAMBINI, 2000, p.25)22.

    At o sculo XIX vivamos numa sociedade ideologicamente contra a igualdade, tendo

    a escravido como forma dominante de explorao do trabalho, cuja tica da patronagem e

    das relaes oligrquicas predominava, apoiada por uma burocracia jurdica totalmente

    impermevel s singularidades, portanto, ndios, negros e todas as gradaes da mestiagem

    no transitam pela hierarquia social.

    Os ndios, vistos como incapazes e lanados na categoria dos rfos, sero tutelados

    pelo Estado. Nessa condio subalterna, tero enormes dificuldades de se movimentarem em

    busca de direitos e vero seus destinos e seu patrimnio gerenciados e usurpados por outros.

    Por outro lado, a indianidade, vista como uma etapa evolutiva que deveria ser

    superada contaminou o pensamento antropolgico brasileiro, expresso nas polticas pblicas,

    que, at o final do sculo XX, somente conseguia pensar o ndio como um ser transitrio.

    Mesmo sob a pedagogia da brandura, salvar a pele das populaes indgenas era a nica

    preocupao. O dilema assimilao versus extino se manteve at a Constituio Federal de

    1988.

    Para o senso comum as comunidades indgenas ainda mantm a imagem de uma

    cultura inferior. Historicamente construda e refeita nos diversos momentos da vida brasileira,

    a imagem do ndio alterna-se entre idlio e atraso. Nas populaes urbanas, distantes das terras

    indgenas e alheias aos conflitos intertnicos, h um consenso de que os povos indgenas tm

    direito s suas terras e a viver de acordo com suas tradies23. Quando nos aproximamos das

    vizinhanas das terras indgenas veremos desaparecer essa imagem idlica para emergir a

    outra, do entrave e do atraso.

    22 GAMBINI, Roberto. Espelho ndio. A formao da alma brasileira. So Paulo, 2000. Ed. Axis Mundi/ Terceiro Nome, p. 25. 23 De acordo com a pesquisa de 1998 do Instituto Socioambiental, www. socioambiental.org

    19

  • A nossa rica etnografia infelizmente mantm-se oculta nas esferas acadmicas. Os

    antroplogos, como mediadores do dilogo intertnico, capazes de proporcionar uma

    inteligibilidade entre mundos, no freqentam o ensino bsico brasileiro para ajudar a refazer

    a histria e a imagem do ndio, e satisfazer a notvel curiosidade de crianas e adolescentes e

    relao a ele. Se isso acontecesse, correramos o risco de inverter a histria: brbaros

    europeus chegaram nessas terras e, como preguiosos renitentes, escravizaram os ndios,

    roubaram suas terras e destruram suas sociedades solidrias...

    Polarizaes parte, preciso corrigir as noes incorretas sobre os ndios desde cedo

    no nosso processo de socializao, ou no veremos as leis decolarem do papel.

    O dilogo intercultural

    Na sociedade europia, o processo de fragmentao do conhecimento iniciado no

    sculo XVII vai progressivamente acentuando a diferenciao entre uma cultura humanista e

    uma cultura cientfica. Embora ambas tenham a mesma origem - a racionalidade grega,

    retomada no Renascimento - e compartilhem de procedimentos e valores comuns, j no sculo

    XIX esto radicalmente dissociadas, resultando numa ciso ontolgica entre esses dois

    campos do conhecimento. Entre filosofia e cincia ocorre um corte epistemolgico que far

    da cultura cientfica um palco de especializaes e, experimentando um grande crescimento,

    fragmentar o conhecimento em disciplinas, com suas linguagens altamente formalizadas e

    incompreensveis ao homem comum.

    Esse modo de conhecimento opera, ou a disjuno entre a Natureza e o Homem, que

    se tornam estranhos um ao outro, ou a reduo do mais complexo ao menos

    complexo, isto , a reduo do humano ao biolgico e do biolgico ao fsico

    (MORIN, q991, p.61)24.

    A averso subjetividade, na produo do conhecimento, repercute nas formas

    simblicas de significao e apropriao do mundo. A cincia, no seu culto objetividade,

    produziu os instrumentos para a explorao da natureza, que passa a ser vista como uma fonte

    de recursos a alimentar uma produo capitalista sempre em crescimento, que acumula

    degradaes ambientais, desigualdades e desequilbrios sociais, hoje, em todo o mundo.

    24 MORIN, Edgar. O Mtodo IV. As idias: a sua natureza, a vida, habitat e organizao. Publicaes Europa-Amrica. Portugal, 1991, p. 61.

    20

  • A epistemologia da cincia moderna, ao banir da pesquisa cientfica o sujeito e negar

    uma abordagem complexa da vida e do mundo, produziu profundas carncias cognitivas que

    se tornaram no final do sculo XX grandes desafios para as sociedades humanas: como fazer a

    religao dos saberes e como restabelecer o dilogo entre mithos e logos, isto , entre

    pensamento simblico-mitolgico, que caminha no territrio da subjetividade, e pensamento

    lgico-racional que opera com a objetividade.

    O vivo, o singular e o concreto so os pontos de partida do pensamento mitolgico

    que, no seu percurso, encontra nos acontecimentos os sinais, os indcios e mensagens do

    andamento do mundo. Sendo o universo provido de alma e fonte de sinais e significao, uma

    relao dialgica intensa e permanente se instala entre seres humanos, natureza e cosmo.

    O pensamento mgico no uma estria, um comeo, um esboo, a parte de um

    todo no realizado, ele forma um sistema bem articulado, independente desse outro

    sistema que constitui a cincia (LVI-STRAUSS, 1989, p.28) 25.

    As transformaes da racionalidade cientfica esto se desenvolvendo conforme o

    fortalecimento e a disseminao de uma conscincia crtica no interior da nossa civilizao,

    possibilitando ao conhecimento observar-se a si prprio. Esse acontecimento tem permitido a

    realizao de encontros entre sujeitos portadores dos diversos saberes que, ao dialogarem

    devero contribuir com a construo de uma racionalidade ambiental (LEFF, 2002, p.137) 26 e restabelecer o respeito pela natureza, a solidariedade social, o reconhecimento dos saberes

    tradicionais e a complexidade da existncia, tudo o que foi rejeitado e posto na sombra pela

    racionalidade simplificadora que tomou as decises sobre a nossa trajetria at agora, baseada

    no clculo econmico da produo, no interesse do capital. A racionalidade ambiental o

    desejo de reconstituir um mundo de relaes capaz de restabelecer o equilbrio entre todos os

    seres.

    25 LVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Papirus Editora, 3 edio, So Paulo, 1989, p. 28. 26 Segundo Leff (2002), a racionalidade ambiental se constri mediante a articulao de quatro esferas de racionalidade: uma racionalidade substantiva, como um sistema de axiolgico que define valores e objetivos (...); uma racionalidade terica, que sistematiza os valores da racionalidade substantiva, articulando-os com os processos ecolgicos, culturais, tecnolgicos, polticos e econmicos (...); uma racionalidade instrumental, que cria os vnculos tcnicos, funcionais e operacionais entre os objetivos sociais e as bases materiais dos desenvolvimentos sustentvel(...)e uma racionalidade cultural(...) que produz a identidade e integridade de cada cultura, dando coerncia a suas prticas sociais e produtivas em relao com as potencialidades de seu entorno geogrfico e de seus recursos naturais. LEFF, Enrique. Saber Ambiental. Editora Vozes. Petrpolis, 2002, p. 137.

    21

  • O homem pode sempre evadir-se para o mundo da relao. A o Eu e o TU se defrontam um com o outro livremente, numa ao recproca (...) Somente aquele que

    conhece a relao e a presena do Tu est apto a tomar uma deciso (BUBER, 1974,

    p.70) 27.

    No curso dos acontecimentos, em que os modelos da vida moderna urbana e industrial

    se tornaram hegemnicos, muito se perdeu. preciso, ento, ir buscar os saberes esquecidos,

    rearticular prticas cotidianas e proteger o que ainda se conserva vivo nas comunidades

    tradicionais. Porm, o resultado do dilogo entre saberes dever ultrapassar os limites de uma

    pesquisa acadmica, na qual busca-se distinguir os diferentes modos de apreenso do real,

    mas dever propor uma epistemologia que inclua os aspectos polticos, sociais e culturais do

    processo de apropriao da natureza, que permita repensar e refazer as relaes dos seres

    humanos entre si e destes com seu ambiente.

    O que nos interessa ir esboando um mapa dos territrios e um guia de navegao

    que permita aventurar-nos nos oceanos do conhecimento das etnocincias e dos

    saberes autctones, para construir uma nova racionalidade social fundada no poder

    dos saberes coletivos sobre a natureza, organizados por diferentes matrizes culturais,

    arraigadas na diversidade biolgica e solidarizadas por suas identidades tnicas

    (LEFF, 202, p.264) 28.

    A proposio de uma racionalidade ambiental dever reverter o predomnio da razo

    tecnolgica sobre os processos da natureza. Dever interrogar a produo econmica quanto

    aos limites e potenciais ecolgicos e aos sentidos sociais dela resultantes. Dever criar

    estratgias para neutralizar as formas de espoliao e dominao econmica inscrita na

    apropriao do saber. Dever abrir-se para um processo participativo, saber conciliar

    interesses antagnicos, gerar complementaridades e reciprocidades. A racionalidade

    ambiental dever propor como princpios para uma reorganizao do mundo, a complexidade

    e o ambiente e desconstruir os atuais modelos da insustentvel vida urbana, para reconstruir o

    habitat que o territrio habitado, engendrado pela coabitao das populaes humanas

    com seu meio, por suas formas de fazer o amor com a natureza (Ibidem, p.283) 29.

    27 BUBER, Martin. Eu e Tu. Introduo e traduo Newton A. Von Zuben. Editora Moraes. So Paulo, 1974 p.60. 28 LEFF, Enrique. Saber Ambiental. Editora Vozes. Petrpolis, 2002, p. 264. 29 LEFF, Enrique. Saber Ambiental. Editora Vozes. Petrpolis, 2002, p.283.

    22

  • Na abordagem complexa, natureza e cultura anelam-se para nos propor uma dupla

    pilotagem que se realiza em seguir/guiar a natureza30. Para isso preciso superar tcnicas e

    modelos cientficos reducionistas e conceber e respeitar a complexidade dos sistemas naturais,

    abandonar posies de hegemonia e projetos de conquista, entender a natureza nos seus

    processos organizativos e, utilizando uma conscincia reflexiva, propor um acordo de mtuo

    desenvolvimento.

    Os cenrios mundiais e a cena brasileira

    Estamos vivendo um mundo em transio em que se modificam as prticas polticas,

    sociais e culturais entre as naes e as regras capitalistas para a globalizao da economia. H

    um processo hegemnico em curso que gera incluso e excluso e seu impacto se estende

    tanto s realidades que inclui como s realidades que exclui 31. Por ser hegemnico e

    circunscrito numa realidade mundial assimtrica, a maioria de seus eventos se realiza de

    maneira desigual, seja no campo poltico, econmico ou cultural, o que mantm e aprofunda

    as enormes distncias entre pases ricos e pases pobres.

    Por outro lado, segundo Boaventura Sousa Santos32, existe uma contradio entre

    globalizao e localizao. Ao mesmo tempo em que a globalizao nos permite atravessar

    fronteiras e romper limites de linguagem e ideologia, as identidades locais emergem,

    buscando afirmar-se em torno dos direitos s razes. o caso de diversas comunidades

    indgenas que, inseridos na histria das conquistas europias no mundo, lutam pelo direito a

    autodeterminao dentro de seus territrios.

    A contradio acima mencionada se desdobra no papel do Estado, cuja tarefa

    equilibrar os interesses da economia globalizada, com suas exigncias de desregulaes da

    economia nacional e ajustes ao sistema mundial, com as necessidades de organizar e regular a

    vida social internamente.

    A presena de uma ampla sociodiversidade na cena brasileira imprime especificidade

    ao nosso processo de globalizao porque inclui um universo alheio ao mundo globalizado,

    30 MORIN, Edgar. O mtodo II: a vida da vida. Publicaes Europa-Amrica. Portugal, 1999, pp. 93-4. 31 SOUSA SANTOS, Boaventura de. Os processos da Globalizao. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (org.). A Globalizao e as Cincias Sociais. Editora Cortez. So Paulo, 2002, p. 65. 32 Ibidem, p. 54

    23

  • apresentando-se como formas de resistncia 33. Podemos notar os movimentos de conquista

    da autodeterminao, que vem sendo sistematicamente recuperada pelas comunidades

    indgenas, especialmente a partir da Constituio Federal de 1988, quando o direito

    diferena dos povos nativos foi reconhecido e o Estado finalmente assumiu o pluralismo

    cultural que caracteriza a nao brasileira. Porm, isso no suficiente, preciso colocar em

    prtica as idias consagradas nas leis e, para isso, conciliar os interesses de uma economia de

    mercado em permanente expanso com as formas de organizao social provindas das

    tradies nativas e, ainda, incluir-se no cenrio mundial globalizado.

    Nas brechas da cena contempornea, a cincia moderna, como recurso do processo de

    globalizao e afirmao de uma universalidade contra os particularismos, pde ser vista

    como uma expresso cultural portadora de uma dimenso histrica. Em outras palavras,

    ampliam-se as possibilidades de reconhecimento de outras formas de apreenso do real e da

    validade da etnocincia ou mesmo de uma cincia multicultural capaz de se reconstruir nas

    relaes com os modos de conhecimento locais34.

    O esforo terico para reconhecer as sociedades tradicionais como depositrias de

    saberes e prticas milenares e o respectivo respeito s suas formas de vida esbarram na

    relutncia dos legisladores e formuladores das polticas pblicas. Da a demora na formulao

    infraconstitucional, um arcabouo jurdico detalhado que possa cumprir com rigor e

    profundidade o que diz a Constituio Federal de 1988.

    Porm, a elaborao de leis no suficiente para remover o pensamento colonial ainda vivo

    na nossa sociedade e promover, de fato, a incluso das comunidades indgenas no universo

    social. Esta uma tarefa do nosso sistema de ensino. Preconceitos e vises estereotipadas

    acerca das comunidades tnicas brasileiras so construdos desde o ensino fundamental,

    atravs de uma histria mal contada, de uma generalizao que somente sero ser revistos em

    estudos superiores e especializados. Trata-se, portanto, de educar a prpria sociedade para

    uma convivncia respeitosa com a alteridade indgena: amansar os brancos para estreitar

    teoria e prtica.

    33 REIS, Jos. A globalizao como metfora da perplexidade? Os processos geo-econmicos e o simples funcionamento dos sistemas complexos. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (org.). A Globalizao e as Cincias Sociais. Editora Cortez. So Paulo, 2002, p.106 34 NUNES, Joo Arriscado. Teoria crtica, cultura e cincia: o(s) espao(s) e o(s) conhecimento(s) da globalizao. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (org.). A Globalizao e as Cincias Sociais. Editora Cortez. So Paulo, 2002, p. 317.

    24

  • Captulo I

    Os focos dessa pesquisa incidem sobre processos da (re)conquista de autodeterminao dos povos

    indgenas da regio dos formadores do rio Xingu, conhecida como Alto Xingu, recentemente

    envolvidos com a implantao de um projeto de educao escolar nas aldeias.

    A regio do Alto Xingu compe uma unidade ecolgica, poltica e cultural, reunindo

    nove etnias, oriundas dos troncos lingsticos aruak, tupi e karib que, ao longo de sucessivas

    migraes e adaptaes, formaram uma sociedade intertribal plurilnge (FRANA, 2001,

    mimeo) 35.

    O etnlogo Karl von Steinen foi o primeiro cientista a fazer contato com os ndios do

    Alto Xingu, em duas viagens que realizou ao Brasil Central, no final do sculo XIX. Nos seus

    relatos de viagem ele descreve e localiza a composio tnica do Alto Xingu, constatando

    semelhanas na cultura material, na apresentao visual das pessoas, na economia e nas

    representaes grficas. Porm, mesmo apresentando essa homogeneidade, diferenas

    existiam e existem entre as vrias tribos e, com base nessas diferenas, que se constituiu um

    complexo sistema de trocas intertribais, suficientemente consolidado que levou von den

    Steinen a falar de uma cultura alto-xinguana (THIEME, 1993, p.67-68)36.

    No esforo de compreenso e entendimento da questo educao escolar xinguana,

    busquei reconhecer as semelhanas e diferenas nas falas, opinies e expectativas dos

    diversos atores envolvidos nesse processo, nomeadamente, os ndios do Parque do Xingu,

    claramente divididos e diferenciados entre Alto e Baixo Xingu e a parceria firmada entre o

    Instituto Socioambiental, a Secretaria de Educao/MT, O Ministrio da Educao e a

    Fundao Nacional do ndio.

    Assim, eu fui compondo os objetivos da pesquisa, acompanhando ao longo de trs

    anos as mudanas de avaliao da situao problema por parte dos sujeitos envolvidos,

    35 FRANA, Jaqueline M. de. Yawalapti (Aruak): uma lngua em perigo de extino. Rio de Janeiro. Setor de Lingstica do Museu Nacional da UFRJ. Projeto de Pesquisa de ps-graduao, 2001 (mimeo). 36 THIEME, Inge. Karl von den Steinen: vida e obra. In: COELHO, Vera Penteado Coelho (org.). Karl von den Steinen: um sculo de antropologia no Xingu. Editora da Universidade de So Paulo, USP. So Paulo, 1993 p. 67-8.

    25

  • concluindo que era possvel fazer algumas proposies comuns para as diversas comunidades,

    porm, especificidades locais deveriam ser respeitadas e que a conquista da autodeterminao

    era e tem sido o objetivo de fundo nas mobilizaes e nas tomadas de deciso dos alto-

    xinguanos, no que diz respeito aos seus processos de escolarizao. Colaborar com essa

    conquista tornou-se o objetivo geral da presente pesquisa.

    No processo formal de escolarizao indgena toda movimentao deve ser

    cuidadosamente discutida, pensada e repensada. O grande desafio hoje descolonizar a

    escola indgena (ORLANDI, 2002, p.108) 37 e realizar a educao diferenciada, proposta

    pela lei. preciso considerar que h diferenas epistemolgicas entre as tradies oral e

    escrita do conhecimento e que a qualidade de um dilogo intercultural afetar a

    sustentabilidade das comunidades tradicionais.

    Inicialmente, as expectativas das lideranas indgenas do Alto Xingu38 giravam em

    torno de uma escola que preparasse as novas geraes para o trnsito e negociaes entre

    mundos no mais isolados, a fim de proteger o territrio e exercer direitos. Com o passar do

    tempo, surgiu uma questo no campo do dilogo intercultural: trazer ou no para os espaos

    escolares os contedos da cultura tradicional atravs da atuao direta dos mestres indgenas.

    A presena dos mestres do conhecimento tradicional39 nas atividades escolares, a

    princpio pouco discutida, foi ganhando importncia para a concepo de uma escola

    comprometida com a preservao da cultura local e que incentivasse o dilogo entre novas e

    velhas geraes, abalado pelo contato com a sociedade envolvente. Desse ponto de vista,

    constatamos ento que a construo autnoma da educao escolar indgena requer a

    participao dos mestres do conhecimento tradicional nos espaos escolares, em igualdade de

    condio e de direito em relao aos professores indgenas reconhecidos pelos sistemas

    estaduais de educao.

    Evidencia-se um vazio na legislao referente atuao direta dos mestres do

    conhecimento tradicional nos processos escolares indgenas. Buscar argumentos e elaborar

    proposies a esse respeito tornou-se o objetivo especfico dessa dissertao.

    37ORLANDI, E. Reflexes sobre escrita, educao indgena e sociedade. Escritos Escritas, Escritura, Cidades (I) n.5. Laboratrio de Estudos Urbanos, Unicamp, So Paulo, 1999 apud ALBUQUERQUE, Judite Gonalves de. Educao no contexto da diversidade cultural. In: Congresso Brasileiro de Qualidade na Educao/Formao de Professores/Educao Escolar Indgena. Vol. 4. Marilda Almeida Marfan (org.). MEC, SEF, Braslia, 2002, p.108. 38As lideranas indgenas do Alto Xingu a que me refiro constituem-se dos lderes de todas as aldeias localizadas nas margens dos formadores do rio Xingu, que formam uma espcie de conselho deliberativo sempre que preciso discutir e decidir sobre questes de interesse comum. 39Utilizo a expresso mestres do conhecimento tradicional para identificar homens e mulheres detentores de saberes e prticas culturais, que so reconhecidos como tais pela sua comunidade.

    26

  • Meta pontos de vista

    Antes, eu Te imaginava exterior a mim mesmo;

    Eu Te supunha no fim da minha viagem.

    Agora que Te encontrei, eu sei que s Tu que eu abandonava desde o

    meu primeiro passo (DJAMI, 1925, p.51)40.

    Conceber um olhar na relao com os xinguanos para um jogo de mtuos interesses

    que resultasse num compromisso existencial entre ns e que, ao mesmo tempo superasse o

    comportamento do intelectual debruado sobre seu objeto de estudo, cujo corpo como

    portador se suas sensaes se distingue do seu meio ambiente (BUBER, 1974, p.26)41,

    lanou-me num trnsito permanente entre objetividade e subjetividade e foi preciso fazer um

    anel entre as noes da compreenso e da explicao.

    Da percepo ao pensamento consciente, uma dialgica cognitiva associa

    diversamente processos analgicos/mimticos e processos analticos/lgicos; dois

    tipos de inteligibilidade, uma compreensiva e a outra explicativa so, ao mesmo

    tempo contidas uma na outra, opostas e complementares.(MORIN, 1996, p.193)42

    Compor com oposies e antagonismos os caminhos da apreenso do real requer um

    pensar complexo que considere as suas diversas dimenses e seja capaz de refazer a totalidade

    fragmentada pelo nosso modo de organizar o conhecimento. Para mim, a linguagem potica

    tem sido um alento na dura tarefa de aprofundar-me na experincia humana e perceb-la

    como fenmeno inacabado e, como tal produzir conhecimento a cu aberto (Ibidem,

    p .

    Lanar mo de todo o corpo como fonte de sentidos fez-me recorrer a um olhar atento

    para uma percepo visual sensvel, j que a nossa comunicao verbal est limitada, por um

    lado, pelo meu desconhecimento das lnguas xinguanas e por outro, pelo conhecimento

    restrito da lngua portuguesa por parte dos ndios. A proximidade fsica nas brincadeiras com

    .32)43

    as crianas, nas conversas na rede, nos cuidados corporais compartilhados possibilitaram-me

    40 Djami. L Bharistan. Traduo de Mass. Ed Paul Geuthner, Paris, 1925. pg 51 41BUBER, Martin. Eu e TU. Introduo e traduo Newton A. Von Zuben. Editora Moraes. So Paulo, 1974. p. 26. 42 MORIN, Edgar. O Mtodo III. O conhecimento do conhecimento. Publicaes Europa-Amrica, Lisboa, Portugal, 1996, p.193. 43 Ibidem, p. 32

    27

  • descobrir, nos fatos prosaicos, a afetividade que explica e concebe a convivncia e a

    socialidade xinguana.

    Essa percepo, que tem sido fundamental cultivar, busca romper a dicotomia clssica

    sujeito/objeto e tem suas razes na fenomenologia.

    Pela reflexo fenomenolgica, encontro a viso no como um pensamento de ver,

    segundo a expresso de Descartes, mas como olhar em posse de um mundo visvel, e

    por isso que aqui pode haver para mim um olhar de outrem...(MERLEAU-

    PONTY, 1999, p.471)44.

    Por outro lado, a disponibilidade de compreender d origem a um campo aberto para o

    dilogo, que permite ao pesquisador libertar-se de si mesmo, fundando reciprocidades, de

    forma que o pensamento do outro, mesmo em objeo ao seu, gera mais pensamentos, cuja

    existncia, muitas vezes, ele nem conhecia.

    As crianas so mestras nesse exerccio que desconsidera as subjetividades privadas,

    prprias do mundo adulto. Como professora, com muitos anos em sala de aula, fui feliz em

    aprender com elas a vivenciar a dinmica da alteridade.

    Para colaborar com os xinguanos na consolidao de sua insipiente educao escolar,

    convite que partiu do Setor de Educao da AERXingu/ FUNAI45, na pessoa do Sr. Otvio

    Moura, chefe do referido setor, e que veio ampliar as minhas aes junto aos ndios, foi

    preciso gerar iniciativas no sentido de aprofundar-me na relativamente farta literatura sobre os

    diversos aspectos dos povos do Alto Xingu e dos povos indgenas de modo geral, pesquisar e

    sistematizar a trajetria da educao escolar indgena no Brasil e empreender um projeto de

    estudo acadmico, na esperana de cercar-me de professores e pesquisadores com quem eu

    pudesse fazer uma interlocuo de alto nvel, de forma a contribuir com uma reflexo

    aprofundada e de qualidade sobre esse importante passo das comunidades, que empreender

    um processo de educao escolar na aldeia.

    Por ocasio do I Seminrio de Educao do Alto Xingu46, Jakalo Kuikro lembra do

    seu pai, das histrias que contava, de suas preocupaes com o contato com os brancos: Se

    homem branco vai ensinar vocs, vocs vo perder nossa cultura. Revela que quando a

    44 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepo. Martins Fontes, So Paulo, 1999, p.471. 45 AER/Xingu a Administrao Executiva Regional da Terra Indgena do Xingu, uma das diversas administraes regionais que compe o organograma da Fundao Nacional do ndio/FUNAI. A Terra Indgena do Xingu corresponde aos limites territoriais do assim conhecido Parque Indgena do Xingu. 46 I Seminrio de Educao Escolar do Alto Xingu foi realizado em maio de 2004, como culminncia de um processo que comeou no I Encontro de Professores do Alto Xingu, em 2002, quando inicio o meu trabalho de consultoria junto ao Setor de Educao da AER Xingu.

    28

  • educao escolar chegou, seu pai chorou e lhe disse: meu filho, a cultura do Alto Xingu vai

    mudar tudo (toda). E continua a sua anlise, citando o comportamento dos mais jovens: Ns lideranas estudamos a nossa cultura... meu filho mais velho no estudou [na

    escola], os outros dois esto estudando e eles no se pintam, vivem de roupa. Na

    poca do Kuarup pintam, depois, nada. (Jakalo Kuikro)

    A pintura, que possui tantas significaes, sendo fonte de intersubjetividade na

    dialgica social, parece estar deixando a esfera cotidiana para restringir-se a um simples

    adereo da festa. Roupa e pintura so elementos antagnicos por natureza: uma esconde a

    pintura e esta inutiliza a roupa.

    Porm, nesse universo, as certezas construdas num dia desfazem-se no outro, um sinal

    de que a pressa nas concluses deve ser totalmente descartada. Nesse sentido, o dilogo entre

    as dimenses objetivas e subjetivas deve ser considerado, num exerccio permanente de

    conexo entre os processos internos dos sujeitos envolvidos e os externos, do conhecimento e

    da descoberta do objeto de pesquisa.

    O pesquisador desempenha, ento, seu papel profissional numa dialtica que articula

    constantemente a implicao e o distanciamento, a afetividade e a racionalidade, o

    simblico e imaginrio, a mediao e o desafio, a autoformao e a heteroformao,

    a cincia e a arte. (BARBIER, 2002, p.18)47

    Para interferir num campo to sensvel, como a educao escolar, que suscita tantas

    dvidas e que encerra mudanas, de todo inimaginveis na vida da aldeia, preciso incorporar

    o tempo indgena, ter pacincia, nada fazer de ltima hora e avaliar continuamente cada

    movimento e cada deciso posta em prtica. Se o centro da aldeia esvaziou-se nessas ltimas

    dcadas, para l que as discusses sobre a educao escolar indgena devem se dirigir. de

    l que as iniciativas e as decises devem partir.

    O discurso da professora, sobrecarregado das acumulaes da escola ocidental, deve

    adaptar-se ao contexto prprio de uma gnese, cuidando para eleger como centro de interesse,

    os problemas colocados pelas comunidades indgenas sobre educao escolar e no aqueles,

    presentes no seu contexto. bem provvel que a disposio para essa apreciao possa fundar

    novos olhares em relao ao processo escolar caraba48 em crise.

    47 BARBIER, Ren. A Pesquisa-Ao. Srie Pesquisa em Educao. Editora Plano. Braslia, 2002, p. 18. 48 Expresso xinguana para designar a populao no-ndia e suas propriedades.

    29

  • Assim, o corpo da minha pesquisa foi ganhando forma quando, envolvida nos

    encontros sobre os desafios da escola, nas viagens que fiz pelas aldeias, como consultora do

    Setor de Educao da AERXingu/FUNAI, e buscando compreender as preocupaes

    recorrentes, presentes no discurso dos mais velhos, sobretudo nas aldeias Yawalapti e

    Kamayur, eu entendi que havia uma pergunta fundamental a fazer, naturalmente, fonte de

    outras inmeras perguntas: como propiciar um dilogo sustentvel entre a tradio indgena e

    a cultura ocidental na gnese de uma escola na aldeia? E mais, como fazer emergir desse

    dilogo os sujeitos envolvidos e garantir a autonomia da comunidade escolar para traar seus

    prprios caminhos?

    Mesmo precariamente instalada a escola, ali estavam os jovens professores em

    formao, os alunos em processo de aprendizagem e os planejamentos elaborados com base

    na estruturao escolar caraba, embora tendo contextualizados os seus contedos. Percebi,

    ento, que para iniciar esse dilogo estavam faltando os mestres do conhecimento tradicional

    indgena na escola. E por que no estavam ali?

    As experincias do magistrio indgena, a imensa tarefa de formar o professor

    concomitantemente ao seu prprio processo de escolarizao, a gnese da escola como um

    espao simblico a engendrar significaes at ento impensadas, enfim, toda essa

    movimentao cheia de avanos e retrocessos, de dvidas e certezas, reservou ao velho mestre

    do conhecimento tradicional um papel um tanto perifrico. Para uma inteno declarada na lei

    de garantir a preservao das culturas nativas, de se estranhar que os mestres da tradio no

    tenham sido mencionados como sujeitos e agentes nos processos de defesa da

    sociodiversidade brasileira. Uma explicao talvez seja plausvel: o desconhecimento dos

    processos de educao tradicional indgena e seus protagonistas, apoiado por uma rejeio

    histrica dos conhecimentos e da epistemologia indgenas, que a cincia ocidental considera

    inacabados, subpropositivos e entrelaados com crenas e supersties.

    Guardei no esquecimento essa questo fundamental, numa estratgia de introspeco

    prpria da criao artstica, em que preciso percorrer caminhos internos, lembrar e esquecer

    muitas vezes at que uma identificao se estabelea e faa as conexes necessrias para uma

    ampla compreenso da questo. Eu sabia que ela voltaria carregada de possibilidades como

    fonte de indagao a motivar-me na construo de novos entendimentos sobre a nossa

    trajetria comum a minha e a dos ndios na pesquisa que elegia seus referenciais tericos.

    Na heurstica, uma conexo inabalvel existe entre o que est fora em sua aparncia

    e realidade e o que est dentro, no pensamento reflexivo, no sentimento e na

    30

  • conscincia... Eu permaneo fora e dentro da minha experincia. (MOUSTAKAS,

    1990, p.12) 49.

    O modo heurstico de conceber e iluminar questes, possibilitando interaes entre

    suas dimenses objetivas e subjetivas, em implicaes e distanciamentos sucessivos, por parte

    do pesquisador pareceu-me mais prximo de minha experincia, mais apropriado para o

    exerccio imprescindvel da autodescoberta, no sentido de associar a busca de informaes

    externas busca das fontes internas da compreenso.

    A estrutura do texto

    A pesquisa nas fontes secundrias permitiu-me situar o tema dessa dissertao no

    contexto da histria, ao mapear as mudanas do pensamento indigenista brasileiro ao longo do

    tempo para identificar no presente as recorrncias no trato da questo indgena e refletir sobre

    as diferentes formas scio-culturais de conceber e transformar o mundo.

    O captulo II analisa o encontro entre amerndios e europeus do ponto de vista da

    comunicao entre mundos diferenciados por antagonismos espirituais, culturais e materiais,

    que resultou na submisso das culturas nativas e na hegemonia da racionalidade europia em

    detrimento do pensamento simblico-mitolgico. Busquei no discurso do filsofo Edgar

    Morin, os elementos para entender teoricamente o impacto do (des)encontro entre europeus e

    ndios.

    O captulo III analisa as polticas de estado desenvolvidas nessas terras a partir da

    chegada dos portugueses, buscando identificar os objetivos do colonizador, as aes

    empreendidas para cumpri-los e os acontecimentos que permitiram, lentamente, mudar a

    lgica do extermnio genocida, passando pelo assimilacionismo etnocida at o

    reconhecimento da sociodiversidade brasileira e dos direitos indgenas, a partir da

    Constituio Federal de 1988.

    O captulo IV trata dos processos de constituio do tema de estudo e as aes

    empreendidas na pesquisa de campo atravs do registro etnogrfico e das vivncias na

    companhia dos ndios. Em seus desdobramentos, sintetiza os processos pr-histricos e

    histricos da regio do Alto Xingu at a criao do Parque do Xingu (PIX).

    49 MOUSTAKAS, Clark. Heuristic research: design, methodology and applications. Sage Publications. USA, 1990, p. 12.

    31

  • O captulo V descreve o processo de escolarizao do Alto Xingu como um campo de

    conquista de autonomia, mencionando os diferentes momentos pelos quais a educao escolar

    foi sendo inserida no contexto cultural xinguano.

    O captulo VI trata da especificidade da pesquisa, a defesa da atuao direta do mestre

    dos conhecimentos tradicionais na escola, buscando demonstrar a importncia de sua presena

    na constituio de uma escola diferenciada de qualidade e nas estratgias para a proteo do

    patrimnio cultural indgena.

    A concluso prope um encontro sustentvel entre logos e mithos nos espaos

    escolares, apontando alguns caminhos para a conquista da autonomia da escola indgena,

    como exerccio de autodeterminao dos povos do Alto Xingu.

    Captulo II

    Ser que consigo transformar o meu vaguear em itinerncia? Aqui, no

    posso eliminar a incerteza sobre a minha prpria verdade e sobre o destino

    de toda verdade. S posso fazer e assumir a minha aposta. 50

    A expanso europia, iniciada a partir do sculo XV, resultou na hegemonia de um

    modelo social, econmico e cultural no Ocidente. Uma rede milenar de interaes, tecida

    pelos povos habitantes do continente dito americano, a partir de ento, comea a ser destruda

    violentamente com a transposio de gentes, de hbitos, de crenas, de esteretipos e

    paradigmas estranhos e antagnicos s tradies da casa.

    50 MORIN, Edgar. O Mtodo IV. As Idias: a sua natureza, vida habitat e organizao. Publicaes Europa-Amrica. Portugal, 1991, p. 91.

    32

  • Uma nao foi sendo engendrada sobre os mortos de uma civilizao, que seus

    conquistadores acreditavam ser inferior, cujos contornos no sero mais possveis definir. A

    atitude de agresso ostensiva, que resultou num genocdio sem precedentes e, mais tarde, no

    projeto assimilacionista, que mantinha vivos os povos, mas negava-lhes a alma, possibilitou a

    ocupao do vasto territrio americano e a dominao de uma cultura que o grande

    computador central passou a reger de longe, constituindo as crias europias no Novo

    Mundo.

    Momentos de enfraquecimento do determinismo cultural europeu, falhas e buracos

    foram produzidos pela resistncia dos povos indgenas e, mais tarde, pela populao aqui

    transfigurada na mistura biolgica dos povos, nos movimentos de criao de direitos, frente s

    aes do colonizador. Mesmo assim, as bases de uma modernidade vo sendo constitudas no

    desejo cultivado pelo novo, em detrimento dos saberes e fazeres tradicionais nativos, lanados

    ao isolamento.

    A agitao e a rebeldia dos novos mandatrios da terra, na distncia da matriz,

    provocam rupturas e pem em movimento a busca pela autonomia. As independncias

    nacionais se sucedem no continente americano, mas o modelo social transplantado resiste.

    Nenhum buraco negro antropolgico se coloca no horizonte porque libertao econmica e

    poltica no corresponde nenhuma mudana filosfica e paradigmtica. Na seqncia

    histrica, insinua-se um processo de urbanizao e industrializao lento, porque colonizado,

    mas persistente, que chegou para ficar.

    A revoluo mental de importncia fundamental comea quando certos indivduos

    deixam de serem submissos perante as ordens, mitos e crenas que emanam do grande

    computador e se tornam sujeitos do conhecimento: o esprito individual toma a liberdade de

    considerar, refletir e pensar nos problemas polticos, sociais, religiosos, filosficos aos quais

    no tinha acesso (MORIN, 1991, p. 34) 51.

    As tentativas de rompimento com os determinismos histricos na nossa sociedade, em

    diversos momentos da histria, vo sendo contornadas pela fora das coeres, violentas se

    necessrio, e, assim, insiste a velha ordem. Os movimentos populares, as efervescncias

    culturais e intelectuais e as guerrilhas que constantemente surgem e ressurgem, em esforos

    de contracultura, no tm sido suficientemente fortes para produzir um abalo no imprinting

    europeu no Novo Mundo, que substituiu uma sociedade solidria por outra, competitiva e

    estratificada; que rejeitou um sistema milenar de trocas pelo mercado com suas transaes

    51 Ibidem, p. 34

    33

  • base do dinheiro, com vistas acumulao capitalista; que imps uma religiosidade sofrida

    sobre uma espiritualidade cultivada; que desestimulou o sentimento de reciprocidade para

    implantar a escravido e a explorao do trabalho humano.

    A descoberta da Amrica, culturalmente destruidora das grandes civilizaes pr-

    colombianas, provocou ao mesmo tempo um choque cognitivo fecundo para o

    humanismo europeu, que pde ento compreender a unidade plural da humanidade

    ao mesmo tempo em que o estado de barbrie de sua prpria civilizao... (Ibidem,

    p. 40) 52.

    O custo das mudanas no pensamento europeu foi muito alto para os amerndios,

    correspondente no apenas a uma destruio cultural, mas a uma excluso intencional e

    sistemtica. Apesar das independncias coloniais decretadas h mais de cem anos,

    encontramo-nos hoje submetidos ordem internacional imposta pelas velhas matrizes

    hegemnicas que h 500 anos aportaram nessas terras com seus projetos de explorao e

    continuamos a viver sob a mesma barbrie que submete naes e condena milhes de pessoas

    fome e pobreza. Um choque fecundo para o humanismo europeu que no chegou a

    rupturas paradigmticas, embora tenha superado parte dos esteretipos e das crenas

    etnocntricas.

    O mundo colonial, com sua gente a gerar riquezas, alimentou o comrcio

    material e de idias nas matrizes, as liberdades individuais, as oportunidades de vida que

    favoreceram efervescncias, fecundidades, florescimentos culturais, intelectuais e cientficos.

    Porm, ao mesmo tempo, produziu a ignorncia do racionalismo eurocntrico que concebeu

    um modelo evolutivo universal, em que as sociedades do mundo acabariam atingindo um

    estgio civilizatrio, semelhante ao europeu vigente na poca. A humanidade chega ao pice

    de sua evoluo: um cidado de uma sociedade progressista e industrial.

    No mundo europeu, possvel percorrer um caminho contnuo que desemboca nas

    revolues do pensamento no sculo XV em diante, retomadas as tradies greco-romanas.

    H uma coerncia no discurso da complexidade, quando analisa a trajetria do pensamento

    europeu com suas idas e vindas, permanncias e rupturas. As cartas esto postas na mesa da

    histria e os movimentos do jogo podem ser verificados.

    Por onde comearemos o nosso discurso no caso de uma anlise da complexidade dos

    processos socioculturais e das idias no Novo Mundo? Aquilo que significou avano na

    52 Ibidem, p. 40, grifos meus.

    34

  • Europa, que gerou calor cultural, aqui ganha contornos de brutal represso, de censura,

    ausncia da dialgica cultural e viglia aos desvios. Como poderemos vislumbrar, na dinmica

    das culturas nativas, as possveis aspiraes universalidade, objetividade e ao exerccio de

    um pensamento que aprofunda e reformula seus prprios princpios (Ibidem, p.42) 53, se as

    culturas vivas foram negadas, postas na sombra e destrudas? Como apreciar os resultados do

    grande comrcio intercultural nessas terras, envolvendo mais de 1500 lnguas, agrupadas em

    dezenas de troncos lingsticos, para citar apenas as existentes nas terras baixas da Amrica

    do Sul?

    Enquanto a Europa debatia-se com a oposio entre a f e a dvida, a religio e a

    razo, que antagonismos do pensar e do sentir animavam as polmicas e as especulaes no

    debate amerndio nas infindveis aldeias, espalhadas nesse vasto territrio? Quantos

    indivduos, em sua singularidade e com a sua imaginao rebelaram-se contra os arcasmos e,

    alterando o imprinting cultural, tornaram-se heris, personagens dos mitos de origem, na

    gnese de novos mundos? Como explicar a diversidade de arranjos numa rede de

    reciprocidades que engendrou acordos e convivncias impensveis para o europeu do sculo

    XV?

    As diversas tribos do Alto Xingu distinguem-se por seus diferentes idiomas e

    tradies culturais. Todavia, o contato social duradouro entre elas criou uma cultura

    relativamente homognea e pacfica, nica na Amrica do Sul e talvez em todo o

    mundo (...) Esse sistema de paz to excepcional que sua origem e seu

    funcionamento so questes tericas de considervel importncia (GREGOR, 2001,

    p.175) 54.

    Que descobertas ou vises de mundo foram concebidas nos momentos em que uma

    dupla conjuno sociocultural-histrica e subjetivo-pessoal se instalou em algum lugar ou em

    muitos ao mesmo tempo na Amrica Indgena?

    Amerndios europeus, asiticos... Estamos na esfera plural da humanidade em que

    nada est decidido.

    E, se numa utopia do passado, o pensamento europeu, ao contrrio de negar o

    pensamento amerndio, estivesse disposto dialgica cultural num cenrio de plurivalncia e

    de respeito, garantindo-se a integridade de ambos? Que conversas infindveis poderiam surgir

    na revelao de mundos to dspares, porm, quem sabe, complementares? Poderamos

    53 Ibidem, p. 42 54 GREGOR, Thomas. Casamento, Aliana e Paz Intertribal. In: FRANCHETTO, Bruna e HECKENBERGER, Michael. Os Povos do Alto Xingu. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 2001, p.175.

    35

  • conceber o pensamento europeu, com suas disjunes corpo/alma, f/razo encontrando

    respostas na Terra sem Males? E, nessa busca, identificar certezas originais comuns? Ou

    empreender uma aventura solidria em direo objetividade para que as culturas do Mundo

    Ocidental refletissem sobre si prprias? (...) Se o primeiro erro consiste em acreditar na

    realidade fsica dos sonhos, deuses, mitos, idias, o segundo erro consiste em lhe negar a

    realidade e a existncia objetivas. (MORIN, 1991, p.75)55.

    Numa conversa infinita entre sujeitos, em meio s incertezas, ou s certezas

    provisrias, na busca permanente de uma dialgica entre noosferas, criando e recriando meta

    pontos de vista, talvez tivssemos evitado a atual barbrie do esprito cogitante, cujas

    aptides dialgicas se mantm ainda subdesenvolvidas em relao ao crebro computante...

    (Ibidem, p.88) 56. A matematizao cientfica, necessria preciso do conhecimento, desenvolveu,

    ao nvel do esprito, uma hipercomputao que, dada a disjuno cincia/filosofia,

    determinou uma subcogitao (...) O pensamento racional no consegue conceber

    racionalmente o pensamento simblico-mitolgico, o qual incapaz de incorporar o

    pensamento racional. (Ibidem, p.88) 57

    Os determinismos culturais que fizeram os caminhos dos europeus nessas terras,

    aliados aos projetos do capitalismo nascente definiram a opo por submeter os povos

    nativos, uma atitude at certo ponto contraditria em relao s tendncias libertrias da

    cultura no Velho Mundo, que naquele momento ensaiava mudanas paradigmticas

    profundas. O tecido social como um relevo acidentado, cheio de picos, depresses, pntanos

    e desertos. As novas idias vo ganhando espao aos poucos e, paralelo a elas, as velhas

    concepes resistem. As idias so menos biodegradveis que o homem

    (WOJCIECHOWSKI apud MORIN, 1991, p.98) 58.

    Quatro sculos foram necessrios para engendrar-se um olhar diferente sobre a

    pluralidade humana. Relativizando as vises sobre as culturas e sociedades espalhadas pelo

    mundo, e tomando como foco a descontinuidade da diversidade humana, foi possvel

    conceber origens e projetos humanos distintos. Ao redor das certezas cientficas e filosficas

    construdas nos sculo XVII, XVIII e XIX comeam a rondar as dvidas e as incertezas. O

    sculo XX palco de funerais de teorias, doutrinas, dogmas e ideologias, e o mundo das 55MORIN, Edgar. O Mtodo IV. As Idias: a sua natureza, vida habitat e organizao. Publicaes Europa-Amrica. Portugal, 1991, p. 75. 56 Ibidem, p. 88 57 Ibidem, p. 88 58 Wojciechowski, J. apud, MORIN, Edgar. O Mtodo IV. As Idias: a sua natureza, vida habitat e organizao. Publicaes Europa-Amrica. Portugal, 1991, p. 98.

    36

  • idias entra em estado de crise. Novos mitos fizeram ninho no prprio corao das idias

    abstratas (MORIN, 1991, p.127) 59 e muitos seres noolgicos arcaicos continuam a viver e

    povoar o mundo urbano ps-moderno.

    Conhecimento cientfico, tecnologia e capitalismo, aliados, exploraram e degradaram a

    natureza em grande escala e ampliaram as desigualdades entre os seres humanos, ao invs de

    libert-los. Os ecossistemas da Terra no conseguem atender a todas as demandas da

    humanidade por recursos naturais e a ameaa de um desequilbrio ecolgico global a brecha

    para possveis mudanas.

    O real foi saturando de contradio o pensamento racional. O sujeito, antes retirado da

    cena, volta e revela os limites do conhecimento. A complexidade da vida e do mundo emerge

    como uma evidncia incontestvel que questiona o reducionismo cientfico, as dissociaes

    sujeito/objeto, corpo/alma, sentimento/razo, a fragmentao do conhecimento e reafirma o

    princpio da incerteza em todo processo de construo do saber.

    Por toda a parte, os princpios de disjuno e de reduo quebram as totalidades

    orgnicas e so cegos em relao a uma complexidade cada vez menos

    escamotevel. Por toda parte o sujeito se reintroduz no objeto, por toda a parte o

    esprito e a matria chamam um pelo outro ao invs de se exclurem, por toda a parte

    cada coisa, cada ser reclama a sua reinsero no seu ambiente (Ibidem, p.207) 60.

    A crise do pensamento (preponderantemente) europeu em ns nos faz buscar idlios,

    saberes, vises de mundo e modos de vida entre as comunidades tradicionais, na esperana de

    encontrarmos o originrio rejeitado.

    Diferentemente dos encontros e encontres entre ndios e europeus no sculo

    XV, chegamos s aldeias, cansados de nossa civilizao, descrentes dos nossos estilos de vida

    e temos expectativas de rever algo que foi perdido, que no sabemos, e que nos faz enorme

    falta. Olhamos o despojamento das casas, do dia a dia das pessoas, o riso frouxo e a alegria

    eminente dos ndios, como sadas para driblar a careta civilizada da prontido terica para

    desvendarmos o real dentro e fora de ns.

    59 MORIN, Edgar. O Mtodo IV. As Idias: a sua natureza, vida habitat e organizao. Publicaes Europa-Amrica. Portugal, 1991, p. 127. 60 Ibidem, p. 207.

    37

  • Captulo III

    Excluso, assimilao e reconhecimento: o longo caminho da alteridade indgena.

    Raas, sociedades, indivduos; espao, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo

    til, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a

    seu regime mximo de intensidade. Eis porque nenhum descanso podia ser dado s

    sociedades que abandonavam o mundo sua tranqila improdutividade originria.

    (CLASTRES, 2004, p. 91)61.

    Terra, planta, bicho, gente... Trinta anos depois de ter invadido e tomado posse dessas

    terras, Portugal fazia a sua contabilidade para um projeto de colonizao. As numerosas

    expedies de reconhecimento das terras descobertas j puderam antever as imensas

    vantagens comerciais que teriam aqueles que a explorassem.

    D. Manuel I (...) resolve conceder a uma associao de comerciantes portugueses e

    armadores italianos a primeira expedio de explorao do litoral da Terra de Santa

    Cruz (...) Alm disso, a misso deveria referir e indicar a existncia de riquezas

    vegetais, minerais e outras possveis, alm da presena de populaes indgenas,

    portanto um relatrio de interesse cientfico, econmico e comercial.

    (FONTANA, 1995, pp. 90-91) 62.

    Segundo Ribeiro (1997) 63, durante milnios, essas terras foram o palco da disputa de

    incontveis povos indgenas que, buscando os melhores nichos ecolgicos, alojavam-se,

    desalojavam-se e realojavam-se incessantemente.

    61 CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violncia. Cosac&Naify. So Paulo, 2004, p. 91 62 FONTANA, Riccardo. O Brasil de Amrico Vespcio. Linha Grfica Editora/ Editora Universidade de Braslia, Braslia, 1995, pp.90-91. 63 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A formao e o sentido do Brasil. Companhia das Letras. So Paulo, 1997, p.29.

    38

  • Na dinmica milenar de acomodao e adaptao das populaes indgenas no

    continente americano, o estado mercantil passa a definir o papel dos povos indgenas no

    cenrio mundial do capitalismo nascente. Facas, machados, faces, tesouras, canivetes,

    basicamente, foram as mercadorias que possibilitaram aos ndios abandonar a tecnologia da

    pedra e integrarem a produo indgena ao mercado.

    O Conselho Ultramarino Portugus e a Igreja Catlica foram as instncias mximas

    das decises no caso brasileiro. O primeiro com atribuies de planejamento e execuo do

    projeto colonial e a segunda, dando legitimidade a essas aes no papel de propagadora do

    catolicismo. A bula Inter Coetera, j em 1493, designa a Portugal e Espanha as terras do

    Novo Mundo, com plenos poderes sobre seu territrio, suas riquezas e sua populao.

    A expanso europia na Amrica, gerando imensos resultados econmicos, vai

    alimentar o processo de emergncia do estado burgus. Porm, enquanto os estados europeus,

    ao longo do tempo, tenderam a ampliar seus mecanismos de regulao, tornando-se

    paulatinamente mais pblicos, criando condies para a democracia e para a cidadania, no

    Brasil, como na maioria dos estados latino-americanos, a histria bem diferente, pois,

    ...desde o incio da colonizao h uma persistente simbiose entre as dimenses

    pblica e privada na gesto da coisa pblica (...) As formas de representao do poder

    pblico, no universo da compreenso real ou simblica da populao, cristalizou-se

    como algo materializado apenas atravs da mediao exercida pelos senhores de

    terras. Atravs deles, poder-se-ia chegar ao pouco de concreto oferecido pelo Estado:

    o assistencialismo (BURSZTYN, 1994, p.29) 64.

    O contrato social, pensado para uma sociedade de homens livres, aqui, fez florescer as

    artimanhas dos poderosos em descobrir brechas e vazios jurdicos e gerar as formas de impor

    sua hegemonia. Aprofundaram-se as desigualdades sociais porque a grande maioria dos

    habitantes dessa terra no era livre. Os critrios de incluso e excluso do contrato social no

    Brasil nascente, deixa de fora, como sempre, entre outras categorias, as maiorias tnicas que,

    se no fazem parte da sociedade civil, continuam vivendo em estado de natureza (SANTOS,

    1999, p.34)65.

    64 BURSZTYN, Marcel. Ser ou no ser: Eis a Questo do Estado, In: Revista do Servio Pblico, ano 45, vol 118, n. 3, Braslia, set/dez 1994, p. 29. 65 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia: entre o pr-contratualismo e o ps-contratualismo. In: A crise dos Paradigmas em Cincias Sociais e os desafios para o Sculo XXI. Ed. Contraponto/Corecon-RJ, 1999, p.34.

    39

  • O Brasil um exemplo de estado onde a nacionalizao da identidade cultural

    assentou no etnocdio e no epistemicdio (Ibidem, p.40) 66. Em outras palavras, os universos

    de conhecimentos, memrias, cosmologias e tradies foram excludos, marginalizados ou

    desfigurados e, com eles, as populaes nativas que lhes davam vida.

    A colnia Brasil

    Braos para o trabalho e almas convertidas para a glria de Deus.

    Contraditria, oscilante, hipcrita: so esses os adjetivos empregados, de forma

    unnime, para qualificar a legislao e a poltica da Coroa portuguesa em relao

    aos povos indgenas do Brasil colonial (PERRONE-MOISS, 1992, p.115) 67.

    A questo da liberdade dos donos da terra, os ndios, parece ter sido o centro das discordncias entre

    os diversos atores da cena colonial e a razo da ambigidade das polticas portuguesas no Novo

    Mundo. O conflito colonial tinha aspectos polticos e econmicos e originava-se no dilogo entre os

    dois interventores principais do mundo indgena: jesutas e colonizadores, que travaram uma disputa

    acirrada pelo controle dos ndios.

    Para os jesutas, o trabalho de converso era a justificativa ltima da presena europia no Novo

    Mundo. Na viso dos colonizadores, no era possvel abrir mo dos braos da terra no trabalho de

    suas roas, na defesa do territrio e como guias nas matas para trazer novos contingentes de pessoas

    que viviam no serto, por bem ou por mal.

    Os jesutas aparentemente defendiam a liberdade dos ndios. Porm, de que liberdade estavam

    falando, se o projeto cristo para a vida indgena minava suas cosmologias, seus sistemas sociais e

    desmontava as redes de interaes entre eles? Frgil liberdade dos ndios aldeados, sujeitos ao trabalho

    e explorao, mal pagos e manipulados por jesutas e colonizadores. Milhares de ndios foram

    incorporados sociedade colonial por meio dos aldeamentos, no como um participante em igualdade

    de condio, mas como trabalhadores braais explorados at a morte ou a fuga.

    Ali, toda a vida indgena regulada para grupos por sexo ou por idade, que tinham

    tarefas prescritas a cumprir, desde a madrugada at o anoitecer, em horrios

    66 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia: entre o pr-contratualismo e o ps-contratualismo. In: A crise dos Paradigmas em Cincias Sociais e os desafios para o Sculo XXI. Ed. Contraponto/Corecon-RJ, 1999, p.40. 67 PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos. Os princpios da legislao indigenista do perodo colonial (sculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro (org.). Histria dos ndios no Brasil. Companhia das Letras, So Paulo, 1992, p.115.

    40

  • assinalados por sinos: hora de trabalhar na roa, na caa, na pesca, na fiao, na

    tecelagem etc. (RIBEIRO, 1997, p.93) 68.

    A Coroa portuguesa soube usufruir os resultados econmicos da colnia, no momento em que o

    comrcio com a ndia declinava. Quando pressionada pelos jesutas, a Metrpole condenava as aes

    escravistas, quando cobrada pelos colonos e acossada com a dvida externa que nunca liquidava,

    concedia o direito de escravizar. Essa ambigidade teria produzido a j citada legislao contraditria,

    oscilante e hipcrita.

    Ao tentar resolver essa contradio e valendo-se da resistncia de muitos povos indgenas, a Coroa

    instituiu o direito de declarar a guerra justa69 contra os que colocavam obstculos s intenes

    evanglicas dos jesutas e aqueles que hostilizarem colonos, atacando suas propriedades e seus

    povoados erguidos em terras indgenas. A guerra justa ser o meio pelo qual a escravizao indgena

    ser legitimada e o poder econmico colonial ser o seu maior empreendedor.

    As guerras sangrentas com o objetivo da destruio total dos inimigos que resistiam

    ganharam contornos de genocdio.

    As recomendaes de destruio total dos inimigos so numerosas no sculo XVII e

    incio do sculo XVIII, e os documentos falam de guerra rigorosa, total,

    veemente a ser movida cruamente, fazendo aos inimigos todo o dano possvel,

    de preferncia at a sua extino total (PERRONE-MOISS, 1992, p.126) 70.

    A existncia de uma grande diversidade de sociedades indgenas e de variadas formas

    de reagir dominao proporcionou relaes que iam da convivncia pacfica ao conflito

    declarado entre ndios e no-ndios. Aos abusos desmedidos dos colonizadores, a Coroa

    respondia com leis de restrio parcial ou total declarao de guerras e, conseqentemente

    escravizao dos ndios. Porm as leis sucessivamente proibiam e restauravam as guerras

    justas porque tambm geravam riqueza para o sistema colonial no mercado de escravos.

    Aos ndios que tinham alguma esperana de viver a sua maneira, restava a fuga,

    embrenharem-se no interior do territrio. Porm, a interiorizao de parte das populaes

    indgenas do litoral, fugitivos do projeto colonizador em curso, provocou conflitos com

    aqueles que tradicionalmente ocupavam essas terras. 68RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A formao e o sentido do Brasil. Companhia das Letras. So Paulo, 1997, p.93 69 A guerra justa uma instituio que data das Cruzadas que, baseada na preexistncia de hostilidade por parte do inimigo e a quebra de acordos, justifica qualquer iniciativa blica de um grupo humano sobre outro. A escravizao dos vencidos, nesse caso considerada legal. 70 PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos. Os princpios da legislao indigenista do perodo colonial (sculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro (org.). Histria dos ndios no Br