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1 Prolegômenos acerca da crítica ontológica da economia política marxiana Sandra Rodrigues dos Santos* 1 RESUMO: Desde finais do século XIX não foram poucos os que se dedicaram a apreender o veio condutor da nova forma de cientificidade instaurada pelo pensamento de Karl Marx. Destarte, a obra marxiana e, por conseguinte, a fundamentação ontológica dos estudos e análises nela presentes, só pode ser devidamente entendida se considerarmos a processualidade que tornou possível, a formação e o amadurecimento da investigação crítica e conscienciosa realizada por este pensador acerca das questões histórico-econômicas e extraeconômicas. Ao evidenciar que a anatomia da sociedade civil só poderia ser encontrada na economia política, Marx se dedicou arduamente aos estudos econômicos, unindo a estes, todos os momentos da vida do ser social em sua historicidade. Ao criticar o método de estudo e análise da filosofia especulativa e da economia política, este filósofo demonstrou o porquê foram concebidas algumas lacunas e falhas no seio destas. Porém, não se tratou apenas de uma demonstração crítica e conscienciosa, ele instaurou ao mesmo tempo, uma nova forma de cientificidade que evidenciou a subsunção do pensamento à lógica específica do objeto de estudo, no contínuo processo de apropriação da historicidade do ser social. As construções abstratas realizadas pelo seu pensamento o permitiram conceber as categorias econômicas enquanto momentos da totalidade do ser social. Esboçar acerca da crítica da economia política em Marx e, por conseguinte, acerca do método de estudo e análise marxiano por uma perspectiva ontológica constitui objetivo precípuo do presente trabalho. Palavras-chave: crítica da economia política; ontologia; método marxiano. *Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Membro do Grupo de Estudos de Crítica da Economia Política (GECEP), da UFVJM. (e-mail: [email protected]).

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Prolegômenos acerca da crítica ontológica da economia política marxiana

Sandra Rodrigues dos Santos*1

RESUMO: Desde finais do século XIX não foram poucos os que se dedicaram a apreender o veio

condutor da nova forma de cientificidade instaurada pelo pensamento de Karl Marx. Destarte, a

obra marxiana e, por conseguinte, a fundamentação ontológica dos estudos e análises nela

presentes, só pode ser devidamente entendida se considerarmos a processualidade que tornou

possível, a formação e o amadurecimento da investigação crítica e conscienciosa realizada por este

pensador acerca das questões histórico-econômicas e extraeconômicas. Ao evidenciar que a

anatomia da sociedade civil só poderia ser encontrada na economia política, Marx se dedicou

arduamente aos estudos econômicos, unindo a estes, todos os momentos da vida do ser social em

sua historicidade. Ao criticar o método de estudo e análise da filosofia especulativa e da economia

política, este filósofo demonstrou o porquê foram concebidas algumas lacunas e falhas no seio

destas. Porém, não se tratou apenas de uma demonstração crítica e conscienciosa, ele instaurou ao

mesmo tempo, uma nova forma de cientificidade que evidenciou a subsunção do pensamento à

lógica específica do objeto de estudo, no contínuo processo de apropriação da historicidade do ser

social. As construções abstratas realizadas pelo seu pensamento o permitiram conceber as

categorias econômicas enquanto momentos da totalidade do ser social. Esboçar acerca da crítica da

economia política em Marx e, por conseguinte, acerca do método de estudo e análise marxiano por

uma perspectiva ontológica constitui objetivo precípuo do presente trabalho.

Palavras-chave: crítica da economia política; ontologia; método marxiano.

*Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

Membro do Grupo de Estudos de Crítica da Economia Política (GECEP), da UFVJM. (e-mail:

[email protected]).

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Prolegômenos acerca da crítica ontológica da economia política marxiana

Introdução

A obra marxiana e, por conseguinte, a fundamentação ontológica dos estudos e

análises nela presentes, só pode ser devidamente entendida se considerarmos a

processualidade que tornou possível, a formação e o amadurecimento da investigação

crítica e conscienciosa realizada por Marx acerca das questões histórico-econômicas e

extraeconômicas. Mesmo porque, o estatuto ontológico dos estudos realizados por este

pensador, sobretudo na fase madura de sua reflexão, não se configurou como mero produto

do acaso ou de sua genialidade, mas correspondeu antes, à forma como Marx concebeu as

relações de produção e reprodução social da vida humana em estágios historicamente

determinados. O espírito crítico de sua visão de mundo correspondeu ao conjunto das

condições materiais de vida em que se encontrava inserido enquanto sujeito ativo, e, ao

qual, em determinado momento de sua trajetória – pelas condições reais da produção de sua

existência social – teve que compreender em sua essência para poder enfrentar a difícil

tarefa de ter que opinar sobre os chamados “interesses materiais”.

A experiência vivida por Marx durante sua atuação como redator da Gazeta

Renana2, foi fundamental para que este pensador iniciasse seus estudos acerca da economia

política. Isso porque, foi nesse espaço de debate e formação que Marx se viu pela primeira

vez na obrigação de tratar sobre os “chamados interesses materiais”, isto é:

[...] debates da Dieta renana sobre a destruição furtiva e o parcelamento da

propriedade do solo, a polêmica oficial mantida entre o Sr. Von Schaper, na

ocasião governador da província renana, e a Gazeta Renana sobre a situação dos

camponeses do Mosela e, finalmente, os debates sobre o livre câmbio e o

protecionismo [...] (MARX, 2003, p.21).

Reconhecendo a insuficiência de seu arcabouço teórico para tratar sobre estas

questões econômicas, Marx se afastou do Diário e se dedicou arduamente aos estudos. Sua

2 Reich Zeitung - Diário radical publicado em Colônia em 1842-1843. Marx foi seu redator-chefe de 15 de

outubro de 1842 a 18 de março de 1843.

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primeira empreitada nesse sentido foi a revisão crítica da filosofia hegeliana do direito. Este

primeiro estudo crítico realizado por Marx lhe permitiu chegar ao resultado de:

[...] que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser

compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito

humano, mas se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo

conjunto Hegel resume, seguindo o precedente dos ingleses ou franceses do

século XVIII, sob o nome de "sociedade civil", e que a anatomia da sociedade

civil precisa ser procurada na economia política (MARX, 2003, p.21).

Uma vez alcançado por Marx este resultado – produto do seu estudo crítico acerca

da filosofia do direito de Hegel, iniciado em meados de 1843 – fundamentou sua vida

prático-reflexiva até o fim de seus dias. Isso porque, a partir deste momento Marx pode

evidenciar, diferentemente de Hegel, que o Estado não se configurava como demiurgo da

sociabilidade humana, tão pouco, como mediação possibilitadora da realização humano-

social. Portanto, compreendeu que não eram no bojo do Estado racional que poderiam ser

encontradas as respostas clarificadoras acerca dos problemas humano-societários, mas sim,

na sociedade civil, posto ser esta a protoforma originária das concreções materiais e sociais

da vida humana que fundamentam a gênese de todas as formas de instituições e

representações socialmente objetivadas pelos sujeitos históricos.

Todavia, a constatação marxiana de que o conjunto das condições materiais de vida

se apresentava como base originária, tanto das relações jurídicas como das formas de

Estado, ainda não havia permitido-o evidenciar a verdadeira anatomia do conjunto das

relações sociais e específicas de produção e reprodução da vida que se objetivavam no

interior desta sociedade civil, ou seja, nesse primeiro momento de seu estudo crítico, Marx

ainda não havia concebido as leis naturais e as determinações socioeconômicas que

operavam e se impunham com férrea necessidade no que e no como da efetivação destas

relações sociais e políticas historicamente determinadas. Este entendimento só se tornou

possível e efetivo quando Marx iniciou seus estudos, em 1844, sobre a economia política.

Foi somente a partir destes dois primeiros estudos conscienciosos3 acerca da filosofia do

3 Cabe mencionarmos aqui a forte influência que teve sobre o pensamento de Marx, no momento em que este

iniciou seus estudos acerca da economia política, a obra escrita por Engels em 1844 e publicada em fevereiro

do mesmo ano, intitulada Umrisse zu einer Kritik der Nationalokonomie (Esboço para uma crítica da

economia política). Também aqui devemos justificar o motivo pelo qual não tratamos nesse ponto do presente

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direito de Hegel e da economia política clássica, que este pensador pode conceber a

anatomia da sociedade civil enquanto complexo que precisava ser procurado na economia

política.

Estes pressupostos permitem observarmos como Marx, ontologicamente, em nome

da condição real e concreta do ser4 e de suas condições materiais de vida, rechaçou a

forma abstrata hegeliana de conceber a relação entre Estado e sociedade civil.

Evidentemente, o estudo crítico que levou Marx a este esclarecimento, permitiu-o

demonstrar que a inversão efetivada pelo pensamento de Hegel encontrava-se

fundamentada sobre a maneira como este concebeu o processo prático de desenvolvimento

dos homens em sua temporalidade histórica.

Para Marx, o motivo pelo qual o pensamento foi concebido por Hegel como sujeito

sem predicado, isto é, como sujeito de si mesmo, que pensa a si e se autoconstitui de forma

autônoma, enquanto momento de gênese da objetividade humano-social, não se deveu

somente à sua condição e limitação teórico-histórica, mas, sobretudo, ao fato de que a

apropriação da base sócio-material realizada por seu pensamento da única forma possível,

ou seja, na forma imediata, foi concebida como momento de gênese do concreto e não

como concreto-de-pensamento, não o permitindo apreender a essência da totalidade

concreta na qual se efetivam as formas de ser e existir – e, portanto, ontológicas – do ser

que constrói a si e a sua sociabilidade mediante a realização objetiva de sua práxis social.

A crítica da filosofia do direito de Hegel impulsionada pelas dúvidas acerca dos

interesses materiais que assaltavam Marx desde meados de 1843 encontrou expressão

esboço sobre a forma como as obras de Feuerbach se apresentaram para Marx no processo de constituição de

seu próprio pensamento. Isso se deve ao fato de não nos julgarmos esclarecidos suficientemente para

fazermos esta exposição nesse momento, ainda que estejamos apenas nos aproximando dos fios condutores

desta complexa problemática. Devemos, portanto, ter cautela em nossas afirmações para que não venhamos

cair em possíveis equívocos teóricos que em nada contribuiriam para este estudo. Se em alguma medida

tratamos de tal questão no capítulo I deste esboço, foi porque nos textos dos autores apresentados houve a

preocupação de compreender a importância do pensamento de Feuerbach para Marx e todos os enunciados

presentes no citado capítulo dizem respeito unicamente à interpretação que fizemos dos escritos destes

sujeitos, e que por isso não são originários de nosso pensamento.

4 Veja como Marx concebe a sociedade civil enquanto protoforma originária e base material sobre a qual se

sustentam as relações jurídicas e as formas de Estado. O fato de que nesse primeiro momento este conjunto de

relações sociais ainda seja concebido em sua forma geral não impede de que seja afirmada desde este

momento a condição primígena do ser social, concebido sob o conjunto das relações sociais da vida material.

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máxima em seu pensamento quando este teórico se dedicou a estudar criticamente a

economia política. Uma vez que já havia concebido a sociedade civil, bem como o conjunto

das relações materiais de vida em sua base terrena, Marx se via agora na difícil tarefa de ter

que compreender em sua essência, as formas como as relações sociais de produção e

reprodução da vida material se organizavam e se realizavam historicamente no interior da

sociedade burguesa.

Ao galgar pelas veredas abruptas da ciência econômica5 sobre a qual debruçou

ferrenhamente seus estudos, Marx evidenciou que apesar da economia nacional ter

realizado em seu tempo alguns avanços e descobertas historicamente válidas, esta não havia

conseguido dar conta de explicar a origem histórica das leis naturais e determinações

socioeconômicas que necessariamente operavam no cerne do conjunto das relações

materiais e sociais de vida que formavam a sociedade burguesa.

Foi precisamente a partir destas clarificações constitutivas e fundamentais ao

processo de emersão do pensamento propriamente marxiano, como afirmou Lukács (1979,

p.15), que pela “[...] primeira vez na história da filosofia, as categorias econômicas

apareceram como as categorias da produção e da reprodução da vida humana, tornando

assim possível uma descrição ontológica do ser social sobre bases materialistas [...]”. O não

entendimento desta eterna e real conexão entre cientificidade e processualidade histórica

configurou-se no seio do pensamento econômico, segundo Marx, como uma tentativa de

“[...] provar a eternidade e a harmonia das relações sociais [...]” burguesas (MARX, 2003,

p.228).

Após ter dedicado longos anos de sua vida a uma conscienciosa investigação, Marx

chegou à conclusão de que as individualidades sociais que de alguma forma tentaram

compreender os problemas humano-societários se depararam sempre com determinados

limites, que certamente corresponderam, sobretudo, à incorreta apreensão do processo de

desenvolvimento real do ser social, isto é, do desenvolvimento histórico da atividade

5 Sobremaneira cabe destacar aqui o papel crucial que tiveram os estudos econômicos de Adam Smith e David

Ricardo para Marx. Porém, de forma nenhuma, esta contribuição deve ser entendida como imediata

identificação com tais visões e compreensões de mundo. Todas as leituras realizadas por Marx diziam

respeito somente à sua necessidade crítico-investigativa que se configurava enquanto mola propulsora para

seu passo à frente no processo de desvelamento da essência efetiva e concreta das formas de ser e existir em si

sociais que fundamentavam a história da humanidade.

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humano-material sob determinadas condições histórico-materiais independentes de sua

vontade (MARX, ENGELS, 1987, p.36). Ainda que um ou outro tenha concebido de forma

parcial algumas categorias sócio-históricas e suas leis naturais, estas sempre apareceram

revestidas com mantos abstrativos6, como uma coleção de fatos mortos ou a-históricos

7.

Isso porque, segundo Marx e Engels (1987, p.17) “[...] os produtos de sua cabeça acabaram

por se impor à sua própria cabeça. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações

[...]”, portanto, não conceberam os “[...] pressupostos reais de que não se pode fazer

abstração a não ser na imaginação [...]”. Marx diferentemente destes, se propôs a ensinar

“[...] os homens a substituir estas fantasias por pensamentos que correspondam à essência

do homem [...] a comportar-se criticamente para com elas [...] a expurgá-las do cérebro

[...]”, e assim, tencionar para que a realidade existente caísse por terra (MARX, ENGELS,

1987, p.17).

Todo o processo de constituição do pensamento marxiano e de sua visão de mundo,

se configurou como uma busca permanente pela correta apreensão da vida sob uma forma

determinada de produção material, a saber, a sociedade burguesa8. Mas, se é verdade que

6 Podemos tomar como exemplo, Hegel que concebeu o trabalho como essência do homem, enquanto trabalho

espiritual abstrato.

7 Adam Smith é a individualidade sócio-histórica que melhor se encaixa nesse exemplo pois para ele os

momentos constitutivos da produção social, historicamente determinada, foram concebidos como leis naturais

e independentes da história, logo, como leis naturais e eternas.

8 Não podemos considerar o pensamento de um determinado sujeito histórico sem compreendermos a base

material de seu tempo e a sua historicidade. Os estudos de Marx acerca da economia política que em tese

podem ser sintetizados como estudos sobre a história da humanidade, se iniciaram em 1844 e só se

encerraram no fim de sua vida. Mas entre 1844 e 1883, Marx viveu momentos extremamente delicados,

passou muita necessidade financeira e enfrentou sérios problemas de saúde, o que comprometeu intensamente

seus estudos sobre a economia política, que interditados em 1853 só puderam ser retomados efetivamente em

1857-59, período em que escreveu os Grundrisse, a Introdução de 1857 e sua Contribuição à Crítica da

Economia Política. Não fosse a ajuda de Engels, provavelmente, Marx teria sucumbido à miséria extrema. O

fato de ter participado ativamente dos movimentos políticos e revolucionários de sua época fez com que Marx

sofresse duras represálias. Viveu o exílio durante toda a sua vida, e com ele sua grande família com quem

compartilhou todos estes momentos de forma extremamente dura. Prova disso foi a perda dos filhos, que

morreram por conta da precária condição de vida em que se encontravam. Partindo destes fatos, podemos

afirmar que o trato e rigor científico sob os quais foram expostos os pontos de vista da concepção marxiana

correspondem essencialmente à vida, pois dizem respeito a si e a seu gênero, a si, enquanto individualidade

social que apreendeu a processualidade histórico-material de seu tempo, e de seu gênero enquanto expressão

máxima da produção social de sua vida. Além disso, concebeu a condição primígena do ser em si humano-

social diante das determinações e categorias econômicas que só podem ser compreendidas dentro das relações

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Marx se dedicou ferrenhamente à crítica conscienciosa dos corpus científicos de sua

temporalidade histórica, não é menos verdadeiro, o fato de que teve que enfrentar a difícil

tarefa histórica de demonstrar concretamente, “[...] que ali onde termina a especulação, na

vida real, começa também a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do

processo prático de desenvolvimento dos homens [...]” (MARX, ENGELS, 1987, p.38),

isto é, teve que demonstrar os fundamentos ontológicos da nova forma de cientificidade por

ele instaurada e na qual se encontravam fundamentadas as suas análises e investigações da

vida humano-social. Uma observação importante a ser feita nesse momento, e que

corresponde a um esclarecimento necessário, diz respeito a um fato que o próprio Lukács já

havia anunciado muito bem em seu escrito9, de que mesmo na fase madura do pensamento

marxiano, em que muitos conceberam Marx como simples economista em oposição ao

jovem filósofo dos escritos de 1840, a “[...] filosofia continuou sendo – mesmo sem a

pretensão de dominar e submeter os fenômenos e suas conexões – o princípio diretivo dessa

nova concepção [...]" (LUKÁCS, 1979, p.29). Ou seja, que:

Diante do conhecimento adequado de tais complexos, a lógica perde seu papel

filosófico de guia; torna-se, enquanto instrumento para captar a legalidade de

entidades ideais puras e, portanto homogêneas, uma ciência particular como

qualquer outra. Mas, com isso, o papel da filosofia é superado apenas no duplo

sentido hegeliano da palavra. Enquanto crítica ontológica de todos os tipos de ser,

a filosofia continua sendo – mesmo sem a pretensão de dominar e submeter os

fenômenos e suas conexões – o princípio diretivo dessa nova cientificidade. Por

isso, não é casual, não é uma peculiaridade surgida das contingências históricas

da ciência, o fato de que o Marx maduro tenha intitulado suas obras econômicas

não como Economia, mas como Crítica da economia política. Naturalmente, a

referência imediata diz respeito à crítica dos pontos de vista econômicos

burgueses (uma crítica já por si bastante importante) mas também está implícito o

aspecto para o qual temos chamado a atenção, ou seja, a ininterrupta crítica

ontológica imanente de todo fato, de toda relação, de toda conexão submetida a

leis. (LUKÁCS, 1979, p.29).

A observação lukacsiana supracitada abre caminho para que possamos compreender

como Marx instaurou uma forma cientificamente nova de se conceber o real, forma que em

reais de produção e reprodução material e social da vida humana sob uma processualidade historicamente

determinada.

9 LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo:

Ciências Humanas, 1979, p.29.

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seu pensamento se apresentou enquanto “[...] síntese peculiar de novo tipo, que associou de

modo teórico-orgânico a ontologia histórica do ser social com a descoberta teórica das suas

leis concretas e reais [...]” (LUKÁCS, 1979, p.46).

Precisamente a partir destes principais pressupostos, sinteticamente apresentados, é

que desenvolvemos nosso entendimento acerca da crítica ontológica marxiana da economia

política. Entendimento este que está fundamentado, sobretudo no escrito marxiano

intitulado Introdução de 1857, ou como o próprio Marx o denominou, Introdução geral.

Escrito extremamente denso, no qual Marx sintetizou o itinerário constitutivo de seu

próprio pensamento e os resultados gerais aos quais chegou após mais de quinze anos de

estudos econômico-filosóficos, os quais ganharam concretude e completicidade na sua obra

madura; O Capital.

Os princípios ontológicos da crítica da economia política marxiana

Não é por acaso que Marx inicia sua Introdução geral afirmando que o objeto de

seu estudo é desde o princípio, a produção material. Esta primeira delimitação demonstra

claramente o seu posicionamento consciente e crítico, diante dos pressupostos filosóficos

especulativos e idealistas. Se estes desciam do céu à terra, partindo daquilo que os “[...]

homens diziam, imaginavam e representavam, ou seja, dos homens pensados, imaginados e

representados, para depois chegarem aos homens em carne e osso [...]”, Marx, pelo

contrário, afirmou que não tem“[...] história, nem desenvolvimento, mas os homens, que ao

desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material transformam a sua

realidade, seu pensar e o produto de seu pensar [...]” (MARX, ENGELS, 1987, p.37).

O ponto de partida do estudo crítico e ontoprático realizado por Marx acerca da

economia política, não poderia ser outro senão a produção de indivíduos socialmente

determinada. Trata-se do estudo “[...] de uma determinada forma de atividade dos

indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos

mesmos [...]”, isto é, “[...] das condições materiais de sua produção [...]” (MARX,

ENGELS, 1987, p.27-28). Produção esta, que Marx demonstrou ser condicionada pela

organização corporal desses indivíduos e, por conseguinte, pela sua relação com o resto da

natureza. Pois, é sobre sua base natural que os homens encontram as condições objetivas e

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necessárias para produzirem os seus meios de vida e, por meio deste processo, produzir

indiretamente sua própria vida material (MARX, 1987, p.27).

A produção material da vida é por condição, uma atividade social. Pois, “[...] o

homem é, no sentido mais literal, um dzôon politikhón 10

, não só um animal sociável, mas

um animal que só em sociedade pode isolar-se [...]” (MARX, 2003, p. 226). Os indivíduos

produtores isolados não se configuram de maneira alguma, em Marx como ponto de partida

para se conceber as relações sociais de produção e reprodução da vida humana. Esta

compreensão – a dos indivíduos produtores isolados – segundo o pensamento marxiano

tratou-se apenas de uma ilusão muito mal concebida pelos profetas do século XVIII, que

influenciou sobremaneira, os economistas, principalmente Adam Smith e David Ricardo,

para quem os indivíduos produtores se apresentavam como um dado da natureza, enquanto

a processualidade histórica aparecia apenas como produto de um ideal que teria existido no

passado (MARX, 2003, 226). Todavia, esta visão de mundo sustentada por tais profetas e

potencializada pelos economistas modernos, se constituiu para Marx como um reflexo

efetivo da incompreensão por parte destes, acerca da origem histórica das relações

econômicas, que só podem ser entendidas, por seu curso, se concebidas enquanto produto

de um desenvolvimento humano social historicamente determinado. (MARX, 2003. p.226).

Marx criticou conscienciosamente a insustentabilidade da eternização das relações

sociais burguesas, pressuposta pelos economistas por meio da separação brutal entre a

produção e a distribuição em geral, concebidas enquanto elementos opostos entre si, isto é,

totalmente dissociadas da base material e econômica que as alicerçam, apresentando-as

como que “[...] fechadas em leis naturais, eternas e independentes da história [...]” (MARX,

2003, p.230). Ou seja, como determinações gerais e comuns a algumas épocas históricas da

produção do homem, porém, concebidas in abstracto e engessadas ao modo capitalista de

produção.

Destarte, a crítica ontológica marxiana parte dos pressupostos da economia política,

aceitando sua “[...] linguagem e suas leis [...]”, para “[...] a partir da própria economia

nacional, com suas próprias palavras [...]” (MARX, 2004, p.79), demonstrar que:

10

Animal político. (Cf. N. do R. T.). MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Martins

Fontes: São Paulo, 2003, p. 262.

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A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração racional, na medida

em que, sublinhando os traços comuns, nos evita a repetição. No entanto, este

caráter geral ou estes traços comuns, que a comparação permite estabelecer

formam por seu lado um conjunto muito complexo cujos elementos divergem

para revestir diferentes determinações (MARX, 2003, p.226-227, grifo nosso).

Porém, Marx (2003, p.227), esclarece que:

Algumas destas características pertencem a todas as épocas, outras são comuns

apenas a umas poucas. [Algumas] destas determinações reveler-se-ão comuns

tanto à época mais recente como a mais antiga. Sem elas, não é possível conceber

nenhuma espécie de produção.

Mesmo porque, segundo este pensador (2003, p.227, grifo nosso):

[...] se é verdade que as línguas mais evoluídas têm de comum com as menos

evoluídas certas leis e determinações, é precisamente aquilo que as diferencia

destes traços gerais e comuns que constitui a sua evolução; do mesmo modo é

importante distinguir as determinações que valem para a produção em geral, a

fim de que a unidade – que infere já do fato de o sujeito, a humanidade, e o

objeto, a natureza, serem idênticos – não nos faça esquecer a diferença essencial.

Este esquecimento é o responsável por toda a sapiência dos economistas

modernos que pretendem provar a eternidade e a harmonia das relações sociais

atualmente existentes.

Segundo Marx, por esquecer-se desta diferença essencial, a economia política não

concebe que cada época histórica é regida por leis e determinações específicas,

correspondentes ao desenvolvimento das forças produtivas humanas em um estágio social

historicamente determinado, e que, portanto, o modo como compreendem a produção geral

se trata apenas do processo de abstração racional realizado pelo pensamento, que permite

apreender as determinações que valem somente para delimitar os traços comuns a todas as

épocas e evitar a repetição, mas que de forma nenhuma correspondem a uma forma

específica da produção humana.

Foi precedendo desta concepção da produção em geral, que a economia política

compreendeu ou supôs compreender, as condições gerais de qualquer produção, isto é, as

“[...] condições sem as quais a produção não é possível [...]”, bem como as “[...] condições

que favorecem mais ou menos o desenvolvimento da produção, como, por exemplo, o

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estado social progressivo ou estagnado de Adam Smith [...]”, que parte do pressuposto de

que “[...] um povo industrial encontra-se no apogeu de sua produção no próprio momento

em que, de certo modo, atinge o seu apogeu histórico [...]”. Quanto a isso Marx argumenta

que “[...] de fato, um povo está no seu apogeu industrial quando não é ainda o lucro, mas a

procura do ganho, que é tida como essencial [...]” (MARX, 2003, p. 229-230, grifo nosso).

Para Marx o problema maior suscitado pelo fato da economia política partir das

categorias gerais e comuns, se encontra na forma como os economistas apresentam a

produção em oposição à distribuição. Para eles – os economistas – a produção se apresenta

“[...] como que fechada em leis naturais, eternas, independentes da história [...]”, já a “[...]

distribuição, pelo contrário é entendida como um momento em que os homens permitir-se-

iam agir com muita arbitrariedade [...]” (MARX, 2003, p.230).

Trata-se, sem dúvida, de um inquietante encadeamento, o qual Marx se dedica a

desconstruir demonstrando como a distribuição se apresenta como um momento

constitutivo da produção real de vida dos homens. Segundo este pensador, é a organização

dos indivíduos no processo de produção material de suas vidas sob uma determinada

processualidade histórica que determina o modo como estes participam da distribuição dos

produtos socialmente produzidos. Porém, a interconexão real destes dois momentos – em

que cabe à produção o momento predominante – não se configura, para Marx, como uma

arbitrariedade concebida pelo pensamento que pensa a si mesmo, muito pelo contrário, ela

corresponde às relações reais de produção historicamente construídas, isto é, se configura

como um momento unitário do processo de desenvolvimento histórico e social da prática

humana.

Ao conceber as condições gerais da produção, a economia política “[...] reduz-se a

algumas determinações muito simples repisadas em insípidas tautologias [...]” (MARX,

2003, p.228). O fato de não apreender corretamente as leis e determinações específicas de

cada época, de cada estágio da produção humana, sobre bases econômicas historicamente

determinadas, levou os economistas a cair em alguns equívocos. Marx demonstra como eles

partem da concepção de fatores abstratos e gerais (por exemplo, a propriedade e relações

jurídicas historicamente construídas pelos homens), para concebê-los como leis naturais e

determinações de uma sociedade específica, eternalizando assim, o capital, que é na

realidade produto histórico da atividade humana e por isso, transitório.

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Os economistas, partindo da concepção das categorias econômicas em geral,

compreendem a relação geral entre a produção, a distribuição, a troca e o consumo. Como

Marx demonstra, há no modo como os economistas concebem estas categorias gerais,

fundamentos silógicos, porém, o silogismo não representa de maneira alguma a

processualidade real, tão pouco se encontra fundamentado sobre uma determinada

materialidade histórica. Logo, ao ser concebido por Marx por uma perspectiva crítica, tal

encadeamento tem evidenciada sua insustentabilidade e invalidez.

Se o ponto de partida e de permanência da economia política foram sempre as

categorias econômicas em geral, a apreensão das determinações específicas, bem como das

legalidades próprias das relações burguesas de produção, puderam ser concebidas apenas de

forma aparente pelos economistas. Ou seja, o fato das categorias específicas não terem sido

apreendidas em sua essência por estes, enquanto determinações correspondentes à

historicidade dos indivíduos produtores, não os permitiram conceber tais categorias “[...]

como formas de ser, determinações de existência [...]” (MARX, 2003, p.255), e, portanto,

pertencentes ao movimento real das determinações categoriais históricas, que somente

podem ser apreendidas em sua materialidade pelo pensamento, mediante uma permanente

crítica conscienciosa das relações sociais de produção e reprodução da vida na

sociabilidade burguesa.

Esta problemática se torna mais evidente, quando Marx concebe a forma como os

economistas se propuseram a analisar em sua forma geral a relação entre produção,

distribuição, troca e consumo. Aliás, relação aparente, pois na medida em que concebem

estas categorias como que fechadas em leis naturais, as mesmas acabaram por ser

concebidas de forma separada e independentes entre si, bem como de sua base econômica

material, passando a representar simplesmente um “silogismo-modelo” mistificado.

Observemos “[...] os diversos tópicos de que os economistas acompanham a

produção [...]” (MARX, 2003, p.232). Ainda que extensiva a citação, apresentaremos esta

problemática tal como Marx se propõe a demonstrar criticamente:

Na produção, os membros da sociedade adaptam (produzem, dão forma) os

produtos da natureza em conformidade com as necessidades humanas; a

distribuição determina a proporção em que o indivíduo participa na repartição

desses produtos; a troca obtém-lhe os produtos particulares em que o indivíduo

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quer converter a quota-parte que lhe é reservada pela distribuição; no consumo,

finalmente, os produtos tornam-se objetos de prazer, de apropriação individual. A

produção cria os objetos que correspondem às necessidades; a distribuição

reparte-os segundo leis sociais; a troca reparte de novo o que já tinha sido

repartido, mas segundo as necessidades individuais; no consumo, enfim, o

produto evade-se desse movimento social, torna-se diretamente objeto e servidor

da necessidade individual, que satisfaz pela fruição. A produção surge assim

como ponto de partida, o consumo como o ponto de chegada, a distribuição e a

troca como meio-termo que, por seu lado, tem um duplo caráter, sendo a

distribuição o momento que tem por origem a sociedade e a troca, o momento

que tem por origem o indivíduo. Na produção o indivíduo objetiva-se, e no

indivíduo subjetiva-se o objeto; na distribuição é a sociedade, sob a forma de

determinações gerais dominantes, que faz o papel de intermediária entre a

produção e o consumo; na troca a passagem de uma a outra é assegurada pela

determinação contingente do indivíduo. [...] produção, distribuição, troca e

consumo formam assim (segundo a doutrina dos economistas) um silogismo-

modelo; a produção constitui o geral, a distribuição e a troca, o particular, o

consumo, o singular para o qual tende o conjunto. Trata-se sem dúvida, de um

encadeamento, mas muito superficial (MARX, 2003, p.232).

Marx diferentemente dos economistas, compreende que a produção é imediatamente

consumo, e o consumo é imediatamente produção. O consumo é concebido pelo

pensamento marxiano em seu duplo caráter; subjetivo e objetivo. O consumo subjetivo diz

respeito segundo Marx, ao processo eterno de produção da vida, em que o indivíduo

desenvolve suas faculdades ao produzir, ao mesmo tempo em que as consome. O homem,

ao satisfazer suas necessidades essencialmente humanas, consome suas capacidades físicas,

mentais e espirituais em um processo em si diverso e unitário de desenvolvimento e

consumo destas capacidades no ato de produção. O consumo objetivo se realiza por meio

dos meios de produção empregados no processo da produção. Assim como no processo de

apropriação da matéria-prima, que se constitui enquanto elementos que vão sendo

desgastados e utilizados para o processo de efetivação da vida humana. “[...] Portanto, o ato

de produção é, em todos os seus momentos e ao mesmo tempo, um ato de consumo [...]”

(MARX, 2003, p. 234).

Mas o ato de consumo também se concretiza como um ato de produção, pois na

medida em que o indivíduo consome e desenvolve suas forças corporais no ato da

produção, para satisfazer suas necessidades, há o carecimento de alimentar-se, produzir-se

enquanto ser humano, enquanto ser produtor/consumidor e consumidor/produtor. Esta

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processualidade se efetiva enquanto momento diverso de uma unidade indissociável;

produção consumidora (MARX, 2003, p. 235).

Segundo Marx, a economia política apreende este movimento unitário determinado

de forma dissociada, em que o ato de objetivar-se em si humano é concebido como

consumo produtivo, e o processo em que o objeto criado se personifica mediante o

consumo realizado por seu criador se manifesta enquanto uma segunda produção, resultante

da destruição do primeiro produto. Ainda que esta produção consumidora seja

essencialmente diferente da produção propriamente dita, ambas não deixam de constituir

uma unidade entre produção e o consumo (MARX, 2003, p.235).

Nesse sentido, para Marx o consumo produz duplamente a produção, primeiro

porque somente através do consumo é que o objeto se torna produto, efetiva seu caráter de

produção efetivada que satisfaz pelas suas especificidades uma necessidade humana.

Enquanto o produto não se concretiza enquanto objeto consumido, o mesmo não cumpre

seu caráter efetivo de produto, pois, “[...] a produção não se desenvolveu enquanto

atividade objetivada, mas como mero objeto para o sujeito ativo [...]” (MARX, 2003, p.

236). Segundo, o consumo cria a necessidade de uma nova produção. O ato de consumir

que é ao mesmo tempo um ato de produção, pressupõe que o sujeito ativo que produz, o faz

usando objetos que já existiam no plano ideal, que por seu turno, criam a necessidade de

outros objetos, e os criam, pela carência humana e necessidade humana. É no consumo de

suas capacidades corporais na interação com sua base objetiva que o homem se apropria

dos elementos da natureza tais como eles se apresentam, mas é no processo de

consumo/produção destes elementos em sua forma ainda natural, que o homem lhe dá a

forma especificamente humana. As necessidades humanas são determinações que emergem

do processo da produção e, por conseguinte, do consumo – mediante o trabalho – dos

elementos da natureza. “[...] Ora o consumo reproduz a necessidade [...]” (MARX, 2003, p.

236), na medida em que, permitindo a satisfação das necessidades humanas essenciais,

inerentes à condição de ser social ativo, possibilita a apropriação por parte deste da sua

base material para transformar seus objetos em objetos úteis, nesse processo novas

necessidades vão emergindo e carecendo de serem supridas.

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Do ponto de vista da produção, Marx afirma que este duplo caráter corresponde a

uma interrelação permanente em que a produção fornece ao consumo seu objeto, mas não

se trata de um objeto em geral. A produção se efetiva em objetos determinados que

satisfaçam por sua especificidade as necessidades humanas determinadas. “[...] a fome é a

fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com faca e garfo, não é a

mesma fome que come carne crua servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes [...]”

(MARX, 2003, p.236). Ao satisfazer necessidades determinadas, a produção determina

também a forma de consumo, não unicamente de forma objetiva, mas também subjetiva,

cria assim também o consumidor. Portanto, “[...] a produção não cria somente um objeto

para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto [...]” (MARX, 2003, p. 237).

O fato de que esta unidade de diversos, em que a produção mantém seu caráter de

categoria predominante na sociedade burguesa nos apareça de forma deturpada em que a

realização de um se apresente de forma dissociada da realização do outro, reside no fato de

que:

[...] na sociedade a relação entre o produtor e o produto, quando este em último se

considera acabado, é uma relação exterior, e o retorno do produto ao sujeito

depende das relações deste com os outros indivíduos [...]. Não se torna

imediatamente proprietário. Tanto mais que a imediata apropriação do produto

não é o objetivo do produtor ao produzir em sociedade. Entre o produtor e os

produtos interpõe-se a distribuição, que obedecendo às leis sociais determina a

parte que lhe pertence na totalidade dos produtos, colocando-se assim entre a

produção e o consumo (MARX, 2003, p.239).

Para Marx, a distribuição enquanto categoria econômica se expressa como um

momento da produção, que de forma nenhuma, como pregam os economistas, assume a

forma de uma categoria autônoma, e, portanto, dissociada da sua eterna ligação com a

produção – momento predominante. Não podendo jamais ser considerada de forma isolada

pelo processo de análise e apreensão real das bases econômicas, realizado pelo pensamento.

A produção enquanto momento predominante é quem determina a distribuição

enquanto distribuição dos instrumentos de produção e distribuição dos membros da

sociedade pelos diferentes gêneros de produção (MARX, 2003, p.242). Mas pode ocorrer

como afirma Marx momentos históricos – no caso das conquistas de territórios –

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determinados em que a distribuição aparentemente – mas só no plano da aparência esse

processo ocorre, pois a distribuição sempre corresponde a uma forma determinada de

produção social – determina a produção, mas a questão em saber que relação se estabelece

entre a distribuição e a produção que ela determina depende da própria produção (MARX,

2003, p.242).

O entendimento de que entre as categorias econômicas de produção, distribuição,

troca e consumo não se efetivam nenhuma dicotomia ou autonomia singular de uma sobre a

outra, não se expressa como mero fenômeno do pensamento de Marx, é partindo das

relações sociais de produção, de suas conexões e determinações reais que este pensador

apreende o conjunto de elementos gerais que compõe a base econômica de uma

determinada processualidade histórica. É somente após a apreensão das determinações

gerais, que o concreto pensado – respeitando a imanência do objeto real – consegue realizar

o caminho de volta, e conseguintemente, conceber as categorias simples que formam a

totalidade da base econômica de um período histórico determinado, com suas

particularidades e especificidades determinantes. Foi somente por este processo de análise

que Marx concebeu no pensamento o movimento real tal como ele se apresentava nas suas

contradições e potencialidades ativas, e somente assim pode também, compreender o lugar

que cada categoria econômica ocupou historicamente no seio das relações sociais de

produção e reprodução da vida material. Coube à produção, no pensamento concreto de

Marx, o momento predominante exatamente porque assim esta se apresenta concretamente,

enquanto momento de afirmação da prática humana e das relações sociais de produção e

reprodução. Não é a economia simples e pura, enquanto ciência singular burguesa o

fundamento das análises de Marx, mas pelo contrário, seu ponto de partida é a totalidade

do ser social, que se produz e reproduz de formas historicamente determinadas, e nesse

processo contrai relações que independem de sua mera vontade, mas que mesmo assim,

realizam um papel importante no processo de sua afirmação objetiva e social. Não é o

econômico que determina as relações de produção social da vida. O fato dele em um

estágio específico se apresentar como momento preponderante, deve-se somente à forma

como se constituíram historicamente as relações entre os indivíduos sociais produtores, que

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produzindo socialmente puderam criar potencializar e constituir a base econômica de um

período histórico determinado.

Portanto, também ao compreender a interrelação entre a troca e a produção, Marx

reconhece a produção enquanto momento predominante. Em que a troca assume também

sua importância enquanto intermediária entre a produção e a distribuição que ela determina

tal como o consumo. Porém na medida, por outro lado, em que este último surge como um

dos fatores da produção, a troca constitui manifestamente em um momento da produção. A

troca se constitui enquanto momento da produção, por exemplo, na troca de atividade e de

capacidades que tem lugar na própria produção, mas não só neste, em todas as relações de

troca pressupõe-se que tenha se estabelecido as relações de produção, pois uma troca de

nenhum produto não é uma troca, e para seu desenvolvimento efetivo na sociabilidade

capitalista pressupõe-se uma produção determinada que se mantenha como momento

preponderante, enquanto base que fundamenta a totalidade orgânica das categorias

econômicas.

Marx ao dar início à formação da sua própria intelecção de mundo a partir de

meados de 1843 rompeu definitivamente com todas as amarras economicistas e idealistas

de seu tempo. Sua ruptura se efetivou em concomitância com a constituição de uma forma

cientificamente nova de se conceber as determinações e categorias econômicas, enquanto

elementos essenciais para concepção das formas de ser e existir do ser social em épocas

historicamente determinadas. O fato da “[...] crítica da economia marxiana durante toda a

sua realização estar penetrada por um espírito crítico científico que jamais renuncia a esta

consciência e visão crítica, na verificação de todo fato [...]” (LUKÁCS, 1979, p.24),

possibilitou a Marx conceber, diferentemente dos seus predecessores, a historicidade dos

“[...] indivíduos reais, em suas ações práticas e suas condições materiais de vida, tanto

aquelas por ele já encontradas, como as produzidas por sua própria ação [...]” (MARX,

1987, p.26). Trata-se de uma concepção que apreendeu a sociabilidade humana em seu

decurso histórico real, isto é, em condições sociais e reais, que independem de mera

vontade dos indivíduos sociais para seguir seu curso processual.

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São, portanto, pressupostos reais, que partem da vida real em sua forma

representativa imediata, mas que partindo daí vão para além, no sentido de compreender a

essência de cada fato, isto é, compreender a essência da totalidade do ser social em suas

relações materiais de produção e reprodução da vida, por meio de uma cientificidade real,

positiva, correspondente à atividade prática e ao processo prático de desenvolvimento dos

homens. Parte-se do processo de vida real dos indivíduos e a ele se retorna.

Este caminho reflexivo e expositivo em Marx se configurou entre seus seguidores

como algo não muito bem compreendido e por vezes demasiadamente simplificado. Fato

que demonstra e afirma a necessidade do máximo cuidado que devemos ter ao tentarmos

expor a forma metodologicamente nova da cientificidade marxiana, bem como o trajeto real

de sua conscienciosa reflexão crítica, comprovando que, de fato, “[...] não há estrada real

para a ciência, e só tem probabilidade de chegar aos seus cimos luminosos aqueles que

enfrentarem a canseira para galgá-los por veredas abruptas [...]” (MARX, 2006, p.31).

Marx inicia sua exposição crítica acerca do método de análise da economia política

afirmando que:

Quando consideramos um determinado país do ponto de vista da economia

política, começamos por estudar a sua população, a divisão desta em classes, a

sua repartição pelas cidades, pelo campo e à beira-mar, os diversos ramos da

produção, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços

das mercadorias, etc. (MARX, 2003, p.247, grifo nosso).

Porém, segundo o pensador:

Parece que o melhor método será começar pelo real e pelo concreto, que são a

condição prévia e efetiva; assim, em economia política, por exemplo, começar-se-

ia pela população, que é a base e o sujeito do ato social de produção como um

todo. No entanto, numa observação atenta, apercebemo-nos de que há aqui um

erro. A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes de

que se compõe. Por seu lado, essas classes são uma palavra oca se ignorarmos os

elementos em que repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, sem o valor, o

dinheiro, sem o preço, etc., não é nada (MARX, 2003, p.247).

Marx esclarece como teríamos uma visão caótica do todo se começássemos pela

totalidade na sua representação imediata (como, por exemplo, a população). Seria

necessário, primeiramente, concebermos esta totalidade caótica e imediata através de uma

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abstração geral racional, posteriormente, deveríamos seguir formulando abstrações cada

vez mais simples, e análises mais precisas, para então, conseguirmos chegar aos conceitos

mais simples. Ou seja, “[...] do concreto figurado passaríamos a abstrações cada vez mais

delicadas até atingirmos as determinações mais simples [...]” (MARX, 2003, p.247).

Porém, ainda que este caminho nos permitisse conceber corretamente este todo caótico, a

essência desta rica totalidade permaneceria desconhecida, seu real conhecimento só se

tornaria possível se, partindo daqui caminhássemos em sentido contrário até chegarmos

finalmente, e de novo, à população, “[...] que não seria, desta vez, a representação caótica

do todo, mas uma rica totalidade de determinações numerosas [...]” (MARX, 2003, p.247).

Segundo Marx, a primeira via foi a que a economia política adotou. Isso significa que

economistas começaram:

[...] sempre por uma totalidade viva: população, Nação, Estado, diversos Estados,

mas acabam sempre por formular, através da análise, algumas relações gerais

abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor, etc.

A partir do momento em que esses fatores foram mais ou menos fixados e

teoricamente formulados, surgiram sistemas econômicos que, partindo de noções

tais como trabalho, a divisão do trabalho, a necessidade, o valor de troca, se

elevavam até o Estado, as trocas internacionais e o mercado mundial. Este

segundo método é evidentemente o correto (MARX, 2003, p.248).

De acordo com Marx, se é verdade que a economia política conseguiu conceber em

certa medida a totalidade categorial das determinações gerais da produção humana de vida

em sua temporalidade, não é menos verdade que ao seguir na efetivação deste decurso

metodológico através do pensamento, esta permaneceu continuamente fundamentada pelas

limitações próprias de toda ciência particular, que correspondem à fragmentação de suas

análises e, por conseguinte, à impossibilidade objetiva de compreensão crítica e

conscienciosa das determinações do ser social.

Partindo sempre de uma totalidade viva os economistas formularam, através da

análise, algumas relações abstratas determinantes. No entanto, Marx aponta que apesar de

ter iniciado em certa medida, o processo de apreensão das relações de produção humana, os

economistas não conseguiram compreender a interconexão destas determinações com o

processo de desenvolvimento histórico e real da prática dos homens. Trata-se como afirmou

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Lukács, de um isolamento dos fenômenos econômicos puros, e da separação brutal entre

estes e as relações de produção de vida dos indivíduos sociais.

Marx ao criticar o método de estudo da economia política, demonstra o porquê

foram concebidas algumas lacunas e falhas no seio desta ciência particular durante suas

perscrutações. Mas não se trata apenas de uma demonstração crítica e conscienciosa, ele

instaura ao mesmo tempo, uma nova forma de cientificidade, que evidencia a subsunção do

pensamento à lógica específica do objeto de estudo (a sociedade), no seu processo de

apropriação da historicidade do ser social. Nesse processo, as construções abstratas

realizadas pelo pensamento o permitem conceber as categorias econômicas enquanto

momentos da totalidade do ser social.

O movimento em que o pensamento, parte da totalidade viva imediata, e formula a

abstração geral do “todo caótico” por meio de análises conscienciosas, realizando a

construção de abstrações simples, o permite apreender “[...] as diferentes formas de

desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas [...]” (Marx, 2004, p.

21). Este movimento efetivado pelo pensamento se configura, portanto, segundo Marx,

como caminho correto a ser seguido para apreensão da realidade historicamente posta.

Porém, ao chegarmos a esta totalidade corretamente concebida, não mais em sua forma

caótica, é preciso realizar o caminho de volta. Partirmos da totalidade corretamente

concebida para apreender pelo pensamento, a sua essência, bem como os elementos vivos

que a compõem. Ou seja, “[...] o primeiro passo reduziu a plenitude da representação a uma

determinação abstrata, pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do

concreto pela via do pensamento […]” (MARX, 2003, p.248).

Exatamente por conceber que as determinações do movimento real se originavam

no pensamento, isto é, de que era no pensamento que se encontrava o processo de gênese da

processualidade histórica, foi que Hegel se viu limitado diante de alguns problemas reais

humanos. Se no lugar da historicidade real e concreta do ser social, Hegel concebeu a

completicidade e conclusividade do decurso histórico real estritamente no âmbito do

espírito absoluto, isso se deveu ao fato de, em suas análises e abstrações ideais não ter

compreendido que o “[...] concreto é concreto por ser síntese de múltiplas determinações,

logo, unidade da diversidade […]” e “[...] por isso um resultado, e não um ponto de partida,

apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e, portanto igualmente o ponto da representação

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[...]” (MARX, 2003, p.248). Segundo Marx e Engels (1987, p.43), foi justamente o

esquecimento de que a consciência é desde o início, um produto da prática dos homens, e

que, portanto, continuará se expressando assim enquanto os aqueles existirem, que

impossibilitou alguns indivíduos conceberem que:

Para a consciência – e a consciência filosófica considera que o pensamento que

concebe constitui o homem real, e, por conseguinte, o mundo só é real quando

concebido –, portanto, o movimento das categorias surge como um ato de

produção real – que recebe um simples impulso do exterior, o que é lamentado –

cujo resultado é o mundo; e isto é (mas trata-se ainda de uma tautologia) exato na

medida em que a totalidade concreta enquanto totalidade-de-pensamento,

enquanto concreto-de-pensamento, é de fato um produto do pensamento, da

atividade de conceber: ele não é, pois, de forma alguma o produto do conceito

que engendra a si próprio, que pensa exterior e superiormente à observação

imediata e à representação, mas um produto da elaboração de conceitos a partir

da observação imediata e da representação (MARX, 2003, p.248-249).

Aqui Marx não só rechaça os pressupostos hegelianos, para quem o pensamento se

apresenta como independente de sua base real e concreta, como demonstra claramente que

o concreto-pensado não é outra coisa senão a realidade transposta ao pensamento. O

concreto-de-pensamento é de fato um produto do pensamento, mas do pensamento que se

apropriou e concebeu do único modo possível de uma determinada processualidade real e

existente fora de si. Marx demonstra como não há nenhuma forma de conhecimento a

priori, somente o objeto real em sua diversidade e concreticidade pode delinear o

verdadeiro caminho para seu efetivo conhecimento. Por isso, o objeto deve em todos os

momentos da reflexão teórica, assumir a condição eterna de dado primeiro, que independe

da vontade e dos preceitos investigativos para cumprir seu curso. É preciso não esquecer

que a totalidade social – com suas conexões e determinações – já existia bem antes de se

tornar objeto de análise, isto é, a materialidade histórica sempre existirá em sua

autenticidade imanente e autonomia histórica, independente dos juízos de valor do

investigador e de seus interesses pessoais, mesmo porque, somente uma correta

aproximação e apropriação do decurso real específico deste objeto – neste caso a sociedade

– podem permitir ao investigador conceber a sua essência real.

Para Marx, somente a partir da consideração do objeto na sua imanência e

existência própria é que se pode conceber objetivamente, os elementos e determinações da

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vida humano-social de forma verdadeiramente autêntica. Trata-se de um movimento uno no

qual ser e cognição formam um complexo unitário que tem por ponto de partida o ser

concreto em sua diversidade e completicidade.

A correta apreensão do objeto real só pode ser concebida, segundo Marx, por meio

de construções categoriais, através das quais se torna possível apreender as determinações

específicas do objeto investigado (no caso de Marx, a sociedade burguesa). O que Marx

coloca em questão aqui, não é a vontade de se conhecer o objeto, mas as possibilidades

apresentadas pela imanência do objeto de estudo, para sua correta compreensão. A questão

central que Marx tenta demonstrar é a necessidade de percorrer permanentemente as

múltiplas determinações do movimento real. Este processo investigativo pressupõe

necessariamente que o ponto de partida seja a imediaticidade, que é em tese, síntese de

determinações gerais e, por conseguinte, a realização de construções de categorias, pois,

somente assim, o processo real e efetivo em sua totalidade pode ser compreendido em

determinações específicas.

Pode parecer ao investigador que no processo de construção do conjunto de

categorias realizado pelo pensamento, este possa autonomamente realizar algumas

hierarquias e sistematizações, dando prioridade àquelas que parecem idealmente mais

importantes em épocas determinadas do processo de desenvolvimento dos homens. Porém,

Marx esclarece que tão somente a historicidade da produção humana, a forma como estes

se organizam para produzir suas condições de vida, produzir a si e a seu gênero, podem

afirmar o momento e o lugar de cada categoria na processualidade histórica.

Se as categorias exprimem-se como formas de ser e condições de existência, é

somente no processo de desenvolvimento das relações de produção e reprodução da vida

humana, que podemos apreendê-las pelo pensamento. Pode parecer que ao tratar das

categorias simples, Marx apenas nos remeta intencionalmente a um estágio pretérito da

produção humana, sendo assim, as categorias econômicas concretas diriam respeito às

formas de produção especificamente capitalistas (no caso de Marx que parte da sociedade

burguesa moderna). Mas, se observarmos bem os enunciados deste pensador, veremos que

o objeto (a sociedade burguesa) não começa a existir a partir do momento que é tomado

como objeto de estudo, mas pelo contrário, ele é expressão do desenvolvimento da prática

humana. De acordo com Marx (2003, p.255): “[...] esta sociedade de maneira nenhuma

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começa a existir, inclusive do ponto de vista científico, somente a partir do momento em

que ela está em questão como tal [...]”.

É necessário saber que o processo de construção destas categorias é apenas o meio

do pensamento se apropriar do movimento real, “[...] um modo que difere da apropriação

desse mundo pela arte, pela religião, pelo espírito prático [...]” (MARX, p.249).

O pensamento parte da totalidade em sua forma representativa imediata, e a partir

dela formula a construção de categorias por meio da análise, estas categorias corretamente

concebidas, nos permite apreender as determinações mais simples das relações sociais

constituídas no processo histórico da produção humana, e nos encaminha para alcançar, de

forma cada vez mais clara, as determinações mais complexas do ser social. Pode ser que

estas categorias simples tenham existido em uma época histórica passada, exprimindo

relações dominantes de um todo menos desenvolvido, como é o caso do dinheiro, que já

exprimia uma relação dominante, por exemplo, nas relações de troca realizadas pelos

eslavos. Ou, pelo contrário, pode ser que esta categoria simples exprima uma relação

subordinada de um todo mais desenvolvido, vejamos, mais uma vez, o exemplo do dinheiro

no interior das relações de troca capitalistas.

Porém, de acordo com Marx, se é verdade que as categorias simples podem existir

antes da mais concreta o seu completo desenvolvimento só pode pertencer precisamente a

uma forma de sociedade complexa (como por exemplo, o dinheiro, que existiu

historicamente antes de existir o capital, os bancos, o trabalho assalariado). Já a categoria

concreta pode ter se desenvolvido no interior de relações de produção mais atrasadas.

Segundo Marx, o que faz da sociedade burguesa a chave para se compreender todas

as formas predecessoras da produção humana, é justamente o fato de, nela se expressarem

com toda significação, o máximo desenvolvimento das forças produtivas humanas.

Obviamente esse desenvolvimento diz respeito, sobretudo, ao desenvolvimento das forças

produtivas sociais, e, por conseguinte, ao enriquecimento do ser social no processo de

apropriação da sua base objetiva e à sua dominação, de forma extensiva e intensiva, das

forças da natureza através da realização de sua atividade laborativa, o trabalho (a questão

de que este processo se efetive no interior da propriedade privada, e, portanto, mediante o

estranhamento e negação do homem, não implica na desconsideração de que as

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individualidades sociais tenham, nesse processo de desenvolvimento, enriquecidos seu ser e

seu saber de forma qualitativamente significativa).

Para Marx se é verdade que a concepção das categorias econômicas da sociedade

burguesa se apresenta como chave para compreendermos as relações estabelecidas pelos

homens em sociedades anteriores, faz-se necessário que tenhamos consciência que entre as

formas mais desenvolvidas e as formas pretéritas de produção possuem diferenças

essenciais.11

Portanto, é preciso que o pensamento compreenda criticamente o processo

histórico a partir de sua temporalidade, pois somente a partir da correta apreensão desta

torna-se possível compreender as tonalidades específicas de todas as categorias históricas.

Segundo Marx, o ponto de partida é sempre o capital, enquanto relação de produção

e reprodução social mais desenvolvida. É preciso que o pensamento compreenda

primeiramente a sua essência, as determinações específicas das relações jurídicas, políticas

e econômicas que nela que se constituem. Somente após a concepção concreta desta

complexa realidade temporal e histórica, é que se podem compreender singularmente as

demais determinações e categorias simples e estabelecer entre elas a comparação. Seu lugar

e momento na processualidade histórica só podem ser corretamente compreendidos se o

pensamento do sujeito investigador comportar-se criticamente.

Certamente, o objetivo de Marx em sua Introdução geral não foi somente rechaçar a

forma como até então havia sido compreendida a história da humanidade. Trata-se de um

esforço maior de expor cientificamente, o caminho por ele desenvolvido para se conceber

os problemas da humanidade a partir das relações de vida do próprio homem,

historicamente compreendido. Se Marx refutou conscienciosamente todos os corpus

científicos que o precedeu, o fez sempre indo para além da mera faticidade. É eterna busca

pela compreensão da essência das formas de ser e existir em si humanas, que

impulsionaram Marx criticamente, a se posicionar diante das concepções escolásticas.

Como afirma Chasin apud Vaisman (2009, p.11) há em Marx a afirmação contínua de “[...]

um para além do metodologismo, em nome do para quem do ente [...]”.

11

[...] é como uma iluminação geral em que se banham todas as cores e que modifica as tonalidades

particulares destas. É como um éter particular que determina o peso específico de todas as formas de

existência que ali se salientam [...] (MARX, 2003, p. 252).

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Portanto, é esta a mola propulsora do pensamento marxiano que foi historicamente

mal concebida. O que se deveu, sobretudo, à desconsideração – consciente ou inconsciente

– da particularidade de sua forma de conceber o mundo dos homens, bem como do plano de

estudo esboçado ao final de sua complexa Introdução geral, projeto que foi deixado em

aberto por Marx. Em tese este “caminho a seguir”, muito bem delineado, sintetiza todo o

percurso dos estudos marxianos. Síntese de concreto-de-pensamento, que infelizmente não

foi concluída, mas que continua em construção. Mesmo porque, após a crítica ontológica da

economia política realizada por Marx, este escrito foi largado às traças e em seu lugar se

consolidou a forma apologética da ciência econômica burguesa, imperante até os dias

atuais.

Por fim, podemos afirmar que a crítica ontológica marxiana da economia política

está fundamenta, sobretudo na tese de que “[...] é ali onde termina a especulação, na vida

real” que “começa também a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do

processo prático de desenvolvimento dos homens [...]” (MARX, 1987, p.38) e que,

portanto, não há saber que possa existir senão aquele que tenha como protoforma originária

a realidade autoposta pelo ser social, mediante suas relações sociais de produção e

reprodução da vida material, pressuposto que demarca a impossibilidade de sustentação de

todas as interpretações que julgaram ter encontrado um método apriorístico em Marx, posto

que, na sua concepção, a única certeza que pode ter o investigador que se propõe a analisar

e a compreender as possíveis vias de transformação da materialidade sócio-histórica em sua

multidiversidade e completicidade, é a certeza do não saber apriori, a não certeza inicial é,

por condição, a única mola que impulsiona e possibilita a escavação do real, permitindo

assim, os caminhos para sua correta apreensão e possível transformação.

Certamente, este artigo não pretendeu esgotar a temática ora abordada, haja vista

que a crítica ontológica da economia política se apresenta na realidade, como o projeto de

vida de Marx, isto é, constitui-se como um estudo crítico consciencioso que esteve o tempo

todo fundamentado pela tentativa de compreender o ser social em sua totalidade e

historicidade, ou seja, em suas relações históricas de produção e reprodução da vida, e que,

portanto, para ser corretamente apreendida, carece de estudos críticos contínuos e

imanentes.

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