projeto unesco

18
 OPR OJE T OUNE S COE  AAGENDADAS CI Ê NCIAS SOCI A IS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 * Ma rcos C hor M aio  R B C S Vo l . 1 4 n o  41 ou tub ro / 99 No s anos de 1951 e 195 2, a Orga nizaçã o d as Nações Uni das pa ra a E ducaçã o, Ciência e Cult ura (Unesco) patrocinou uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil. As investigações foram desenvolvidas em regiões economicamente tradi- cionais, como o Nordeste, e em áreas modernas lo caliz ada s no Sudeste, tendo em vist a aprese ntar ao mundo o s detalhes de um a e xperi ência no cam po das interações raciais j ulgada , na época, singular e bem-sucedida, tanto interna quanto externamente. O programa de estudos, que se convencio- nou de nominar Proj eto Unes co, não ape nas ge rou um amplo e diversificado quadro das relações raciais no Brasil, mas também con tri bui u para o surgimento de no vas leit uras a cerca da sociedade bras il eira e m context o de acelerado processo de modernização capitalista. De uma outra perspecti-  v a, o P r o j e t o U n esc o v e i o a pos s i b i l i tar a a n á l i s e das trajetórias sociais e intelectuais dos pesquisa- dores envolvidos, das redes internacionais de cien- tistas, dos conteúdos teórico-metodológicos que informara m a s pesquisas e do estado da a rte de determinadas disciplinas, especialmente a Antro- pologia e a Sociologia. Ou seja, o ciclo de investi- gações chancelado pela instituição intergoverna- mental ofereceu uma oportunidade singular para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil dos anos 50. 1 Este artigo tem por objetivo descrever o processo de estruturação da pesquisa da Unesco no Brasil. Ao realçar a atuação de determinados atores sociais e suas respectivas visões a respeito do empreendimento a ser realizado no país, pôde-se verificar os elos de ligação entre as de- mandas da agência internacional e o leque de questões formuladas pelas ciências sociais brasi- leiras. Esta agenda, sintetizada por Arthur Ramos (1948) no final dos anos 40, colocava para a inteligência do país inserida no mundo universi- * Este a rtig o, origin a lme nte a pre se nta do no GT Pe ns a- mento Social no Brasil, XXII Encontro Anual da Anpocs, Caxam bu, MG, outubro de 1998, é uma versã o modifi- cada de parte do capítulo II da minha tese de doutorado,  A h is t ó r i a d o P r o j e t o U n e s c o: e s t u d o s ra c ia i s e c i ê nc i a s so c iais n o Bra sil , defendida no Iuperj em 1997, sob a orientação de José Murilo de Carvalho. Gostaria de agra decer a Ricardo Benzaquen de Araújo , Maria Armin- da do Nascimen to Arruda e Élide Rug ai Bastos pelos comentários e suges es. Cabe ainda registrar meus agra decimentos a Ma ria Júl ia Goldwasser, Eli zabeth Xavier e José Augusto Drummond pelo trabalho de tradução das citações.

Upload: usu4riodoscribd

Post on 04-Nov-2015

8 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

.

TRANSCRIPT

  • O PROJETO UNESCO EA AGENDA DAS CINCIAS SOCIAISNO BRASIL DOS ANOS 40 E 50*

    Marcos Chor Maio

    RBCS Vol. 14 no 41 outubro/99

    Nos anos de 1951 e 1952, a Organizao dasNaes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura(Unesco) patrocinou uma srie de pesquisas sobreas relaes raciais no Brasil. As investigaes foramdesenvolvidas em regies economicamente tradi-cionais, como o Nordeste, e em reas modernaslocalizadas no Sudeste, tendo em vista apresentarao mundo os detalhes de uma experincia nocampo das interaes raciais julgada, na poca,singular e bem-sucedida, tanto interna quantoexternamente.

    O programa de estudos, que se convencio-nou denominar Projeto Unesco, no apenas gerouum amplo e diversificado quadro das relaesraciais no Brasil, mas tambm contribuiu para osurgimento de novas leituras acerca da sociedadebrasileira em contexto de acelerado processo demodernizao capitalista. De uma outra perspecti-va, o Projeto Unesco veio a possibilitar a anlisedas trajetrias sociais e intelectuais dos pesquisa-dores envolvidos, das redes internacionais de cien-tistas, dos contedos terico-metodolgicos queinformaram as pesquisas e do estado da arte dedeterminadas disciplinas, especialmente a Antro-pologia e a Sociologia. Ou seja, o ciclo de investi-gaes chancelado pela instituio intergoverna-

    mental ofereceu uma oportunidade singular para odesenvolvimento das cincias sociais no Brasil dosanos 50.1

    Este artigo tem por objetivo descrever oprocesso de estruturao da pesquisa da Unescono Brasil. Ao realar a atuao de determinadosatores sociais e suas respectivas vises a respeitodo empreendimento a ser realizado no pas,pde-se verificar os elos de ligao entre as de-mandas da agncia internacional e o leque dequestes formuladas pelas cincias sociais brasi-leiras. Esta agenda, sintetizada por Arthur Ramos(1948) no final dos anos 40, colocava para ainteligncia do pas inserida no mundo universi-

    * Este artigo, originalmente apresentado no GT Pensa-mento Social no Brasil, XXII Encontro Anual da Anpocs,Caxambu, MG, outubro de 1998, uma verso modifi-cada de parte do captulo II da minha tese de doutorado,A histria do Projeto Unesco: estudos raciais e cinciassociais no Brasil, defendida no Iuperj em 1997, sob aorientao de Jos Murilo de Carvalho. Gostaria deagradecer a Ricardo Benzaquen de Arajo, Maria Armin-da do Nascimento Arruda e lide Rugai Bastos peloscomentrios e sugestes. Cabe ainda registrar meusagradecimentos a Maria Jlia Goldwasser, ElizabethXavier e Jos Augusto Drummond pelo trabalho detraduo das citaes.

  • 142 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    trio o desafio de associar a qualificao profissi-onal nos campos da Antropologia e da Sociologiae o incremento de pesquisas que pudessem deci-frar o que o antroplogo considerava ser a singu-laridade brasileira, o laboratrio de civilizao.Para Arthur Ramos, o tema das relaes raciaisassumia um lugar privilegiado para a percepo eanlise dos desafios da transio do tradicionalpara o moderno, do cenrio de significativas de-sigualdades sociais e raciais, da diversidade regi-onal e da busca em conformar, em definitivo,uma identidade nacional.

    Neste sentido, o Projeto Unesco foi um agen-te catalizador. Uma instituio internacional, criadalogo aps o Holocausto, momento de profundacrise da civilizao ocidental, procura numa esp-cie de anti-Alemanha nazista, localizada na perife-ria do mundo capitalista, uma sociedade comreduzida taxa de tenses tnico-raciais, com aperspectiva de tornar universal o que se acreditavaser particular. Por sua vez, cientistas sociais brasi-leiros e estrangeiros haviam assumido como desa-fio intelectual no apenas tornar inteligvel o cen-rio racial brasileiro, mas tambm responder recorrente questo da incorporao de determina-dos segmentos sociais modernidade. O xitodeste encontro entre propostas distintas contudocomplementares foi a base de sustentao doProjeto Unesco. A descrio do processo de gesta-o dessa pesquisa revela a riqueza das articula-es, das vises, as mudanas de percurso e aautonomia dos intelectuais neste contexto. Consi-dero, enfim, que o programa de pesquisas realiza-do no Brasil guarda mais continuidades do quedescontinuidades2 com a tradio do pensamentosocial brasileiro.3

    Arthur Ramos e a agenda das cinciassociais

    Em meados de outubro de 1949, dois mesesaps assumir a direo do Departamento de Ci-ncias Sociais da Unesco, Arthur Ramos finalizouo delineamento de um plano de trabalho no qualestava previsto o incremento de investigaes so-ciolgicas e antropolgicas no Brasil.4 Em sinto-nia com as crescentes preocupaes da agncia

    internacional com os problemas do racismo ecom as dificuldades socioeconmicas vividas pe-los pases subdesenvolvidos, Arthur Ramos consi-derava ser necessria, junto com o programa con-tra o analfabetismo j implementado pela Unescoem colaborao com o governo brasileiro, umaateno especial ao estudo dos grupos negro eindgena para a tarefa de sua integrao ao mun-do moderno.5

    Em junho de 1950, a 5 sesso da ConfernciaGeral da Unesco, realizada em Florena, aprovoua realizao de uma pesquisa sobre as relaesraciais no Brasil, mas Arthur Ramos, seu idealiza-dor, havia falecido oito meses antes, sem chegar adefinir com maiores detalhes o tipo de estudo quetinha em mente. No entanto, notvel que, mesmosem sua participao no desenho definitivo dainvestigao, suas preocupaes a respeito doBrasil estavam presentes tanto na verso final doProjeto Unesco quanto nos resultados das diversaspesquisas realizadas em seu mbito.

    Em um de seus ltimos trabalhos (Ramos,1948), de natureza programtica, o antroplogoreiterava que o Brasil era um laboratrio decivilizao, expresso cunhada pelo historiadornorte-americano Rudiger Bilden (1929, pp. 71-74).Apesar da crena no mito da democracia racial,suposta marca de distino da sociedade brasileira(Ramos, 1943, p. 179), ele no deixou de reconhe-cer as profundas desigualdades sociais entre bran-cos e negros, bem como a existncia do precon-ceito de cor no Brasil (Ramos, 1938, pp. 124-126).O problema da insero dos negros na sociedadebrasileira estava presente em sua obra, ora vistocomo uma questo social (Ramos, 1947, p. 132, e1951, p. 146), ora percebido como dificuldadeafeita condio de minoria nos estados do Sul(Ramos, 1939, pp. 173-174, e 1942, pp. 62-63).Entretanto, Arthur Ramos registrou que s a partirda dcada de 1940 as cincias sociais brasileirashaviam iniciado o seu processo de qualificaoprofissional para tornar realmente inteligvel esselaboratrio (Ramos, 1948, p. 213).

    Arthur Ramos acreditava que a institucionali-zao das cincias sociais em curso oferecia umaoportunidade singular para a superao da faselivresc[a], literatide dos estudos antropolgicos

  • O PROJETO UNESCO E A AGENDA DAS CINCIAS SOCIAIS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 143

    sobre o ndio e o negro (Ramos, 1948, pp. 214-215). A seu ver, destoando da experincia anteriorde investigao dos cultos afro-brasileiros, conviriao estudo do passado escravocrata e suas implica-es para o entendimento da situao racial brasi-leira, especialmente a influncia psico-sociolgicados grupos dominantes, no-negros, as relaes deraa, os esteretipos de opinies e atitudes, osfatores sociolgicos da casta e da classe [...] (idem,p. 219).

    Em seu programa da Antropologia brasilei-ra, Arthur Ramos ressalta a importncia da elabo-rao de anlises sistemticas sobre os diversosgrupos raciais e tnicos, tendo em vista o entendi-mento dos processos de mudana cultural inseri-dos nos diversos contextos histricos. Com um vissociolgico, ele assinala a relevncia do estudo dainsero dos indivduos em grupos, estratos eclasses sociais, procurando a partir da entender asdesigualdades tnico-raciais (idem, p. 223). Em suaperspectiva,

    s depois de realizadas sries inteiras de pesquisasdesta ordem, poderemos nos aventurar a proporinterpretaes do Brasil, ensaios de conjunto ouplanos normativos de ao, at agora reservadosaos estudos impressionistas que podem ser muitointeressantes, mas conduzem a generalizaesapressadas e perigosas. [...] Do ponto de vistaantropolgico, no h uma cultura brasileira,mas culturas que s agora comeam a ser estu-dadas e compreendidas. Ainda cedo portantopara indagarmos do carter nacional do seuethos, em vises generalizadoras que lancem modo critrio histrico ou social. (idem, p. 224)

    No final dos anos 40, Arthur Ramos j coloca-va em questo a ensastica das consagradas chavesexplicativas sobre o Brasil elaboradas nos anos 20e 30. Essa proposta, como observa Mariza Corra(1987, p. 21), menos do que contestar aquelasgrandes snteses, parece que tratava de coloc-lasentre parnteses, enquanto se verificava, no cam-po, a realidade brasileira. Foi esta agenda dascincias sociais apresentada por Arthur Ramos queacabou por prevalecer no processo de estruturaodo Projeto Unesco.

    A escolha do Brasil

    A opo Brasil guarda ntima relao com ocontexto internacional da poca. Aps os resulta-dos catastrficos da Segunda Guerra Mundial, aUnesco foi criada tendo como um de seus princi-pais objetivos tornar inteligvel o conflito internaci-onal e sua conseqncia mais perversa, o Holo-causto. A persistncia do racismo, especialmentenos EUA e frica do Sul, o surgimento da GuerraFria e o processo de descolonizao africana easitica mantiveram a atualidade da questo racial.A Unesco, em perspectiva igualitria e universalis-ta, estimulou a produo de conhecimento cient-fico a respeito do racismo, abordando as motiva-es, os efeitos e as possveis formas de superaodo fenmeno.

    No final dos anos 40, a luta da agnciainternacional contra a intolerncia racial teve doismovimentos bastante significativos. Primeiro, arealizao de uma reunio de especialistas, con-gregando predominantemente cientistas sociais,com o objetivo de debater o estatuto cientfico doconceito de raa. A 1 Declarao sobre Raa(Statement on race), publicada em maio de 1950,por ocasio da 5 Sesso da Conferncia Geral daUnesco, foi o primeiro documento, com apoio deum rgo de ampla atuao internacional, quenegou qualquer associao determinista entre ca-ractersticas fsicas, comportamentos sociais e atri-butos morais, ainda em voga nos anos 30 e 40. Osegundo movimento foi a escolha do Brasil, nessaocasio, para ser objeto de uma ampla pesquisasobre os aspectos que influenciariam ou no aexistncia de um ambiente de relaes cooperati-vas entre raas e grupos tnicos, com o objetivo deoferecer ao mundo uma nova conscincia polticaque primasse pela harmonia entre as raas (Maio,1998b, pp. 383-405).

    Desde o sculo XIX, relatos de viajantes,cientistas, jornalistas e polticos europeus e norte-americanos registraram uma certa surpresa com aconvivncia pacfica entre as raas e etnias (bran-cos, negros e ndios) no Brasil. Essa imagem deum paraso racial, em constante comparaocom a turbulenta experincia norte-americana,contrastava vivamente com os receios das elites

  • 144 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    brasileiras que, especialmente aps a tardia aboli-o da escravido e a fundao da Repblica,concebiam a macia presena dos negros e aintensa miscigenao, caractersticas visveis docompsito racial brasileiro, como obstculos insero do pas na modernidade. Todavia, nasprimeiras dcadas do sculo XX, particularmenteentre os anos 20 e 40, devido s transformaeseconmicas, sociais e polticas ocorridas no Brasile centralidade do debate intelectual acerca deuma verso definitiva da identidade nacional,houve a substituio da viso pessimista da con-tribuio das raas formadoras da sociedade bra-sileira por um enfoque positivo, no qual o inter-curso racial transformou-se em indicador de tole-rncia e harmonia. A controvertida crena numademocracia racial brasileira, que teve no soci-logo Gilberto Freyre a mais refinada interpreta-o, tornou-se assim um dos principais alicercesideolgicos da integrao racial e do desenvolvi-mento do pas e foi suficientemente substantivapara atrair a ateno internacional.

    Foi no contexto ps-genocdio nazista queo Brasil adquiriu ainda maior notoriedade quantoao panorama de suas relaes raciais e tnicas. Aimagem positiva do pas repercutiu no interior daUnesco. Em contrapartida, cientistas sociais en-volvidos com o exame da realidade brasileiraestavam cientes de que determinadas demandashaviam sido includas, com destaque, na pauta dediscusses da agncia internacional em regiessubdesenvolvidas como os temas da industria-lizao, educao e cincia. Em junho de 1950, aopo Brasil foi aprovada na 5 sesso da Con-ferncia Geral da Unesco e, de junho a dezembrodesse ano, foi definido o escopo da pesquisa noBrasil.

    O Projeto Unesco em construoEm abril de 1950, o antroplogo Alfred M-

    traux, com larga experincia de trabalho etnolgi-co (ndios e negros) tanto na Amrica do Sulquanto na Amrica Central, assumiu a direo dorecm-criado Setor de Relaes Raciais do Depar-tamento de Cincias Sociais da Unesco (Mtraux,1978). Ainda no primeiro semestre de 1950, o

    antroplogo Ruy Coelho, ex-aluno de Roger Basti-de na Universidade de So Paulo, e de MelvilleHerskovits na Universidade de Northwestern onde defendeu tese de mestrado sobre os Carabanegros em Honduras , tornou-se o principalassistente de Mtraux. Os dois cientistas sociaisforam os dirigentes da Unesco responsveis pelacoordenao do projeto de pesquisa a ser realiza-do no Brasil.

    O Projeto Unesco contemplaria, de incio,apenas a Bahia (Mtraux, 1950). Para isso concor-reu a existncia de uma longa tradio de estudossobre o negro na cidade de Salvador desde o finaldo sculo XIX, na qual se destacava o exame daforte influncia da cultura africana. O cenriobaiano parecia adequado aos propsitos da Unes-co. A cidade, com expressivo contingente de ne-gros, havia atrado, nos anos 30 e 40, diversospesquisadores estrangeiros e era vista como umlugar privilegiado em termos de convvio entre asraas (Landes, 1947; Frazier, 1942; Pierson, 1942;Herskovits, 1943). Acrescente-se o fato de quesurgiu uma excelente oportunidade no comeo daestruturao do Projeto Unesco. Menos de duassemanas aps a deciso de Florena, em junho de1950, Charles Wagley estabeleceu contatos com ainstituio. Desde o final dos anos 30, o antrop-logo norte-americano tinha estreitas ligaes como Brasil, seja no estudo de comunidades indgenas,seja por meio da aliana Brasil-EUA nos esforosconcernentes Segunda Guerra Mundial, traba-lhando no Servio Especial de Sade Pblica(SESP), ou, ainda, no envolvimento com um estu-do de comunidade na Amaznia patrocinado pelaUnesco (Wagley, 1957).

    Mtraux foi informado por Wagley, que seencontrava no Brasil, a respeito das atividades doconvnio Universidade de Columbia/Estado daBahia.6 Tratava-se de um projeto idealizado porAnsio Teixeira, ento secretrio estadual de Edu-cao e Sade, na gesto de Otvio Mangabeira(1947-1951), que tinha a inteno de conhecer avida social de trs comunidades rurais prximas aSalvador com o objetivo de colher subsdios para odesenvolvimento de futuras polticas pblicas demodernizao dessas reas (Wagley, Azevedo eCosta Pinto, 1950).

  • O PROJETO UNESCO E A AGENDA DAS CINCIAS SOCIAIS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 145

    Charles Wagley colocou-se disposio daUnesco para a realizao de um trabalho conjunto.A idia foi bem acolhida por Alfred Mtraux e RuyCoelho, pois correspondia utilizao de umprojeto de estudo inteiramente montado e funcio-nando, [...] basta[ndo] imprimir-lhe a direo quedesejamos.7 Wagley sugeriu tambm a investiga-o sobre a cidade de Salvador, que ficaria sob aresponsabilidade do mdico-antroplogo Thalesde Azevedo, um dos coordenadores do projetoUniversidade de Columbia/Estado da Bahia. RuyCoelho considerou vlido o estudo da capital daBahia, j que os trabalhos em Salvador nos dariamuma idia das condies de vida num centrourbano.8 Nos meses seguintes, Wagley e a equipeda Unesco mantiveram correspondncia para acer-tar alguns detalhes da pesquisa na Bahia, alm delevantar algumas hipteses sobre o plano definiti-vo da investigao no Brasil.9

    Nesse intervalo, quatro cientistas sociais seposicionaram pela ampliao do Projeto Unes-co. Otto Klineberg, um dos responsveis pelacriao do Departamento de Psicologia da Uni-versidade de So Paulo, entre 1945 e 1947, foi oprimeiro a se manifestar. Ele trabalhava na inter-face Antropologia/Psicologia Social e desde osanos 20, influenciado pelo antroplogo FranzBoas, encontrava-se na linha de frente do com-bate ao racismo nos EUA, tendo participado dapesquisa de Gunnar Myrdal, An American di-lemma (O dilema americano). Klineberg tevepapel de destaque no processo de organizaodo Departamento de Cincias Sociais da Unescoe nutria enorme simpatia pelo Brasil, como seobserva em algumas passagens da verso emportugus de seu livro Introduo PsicologiaSocial (Klineberg, 1946). Entretanto, tinha umaviso distinta do futuro Projeto Unesco. Na suaopinio,

    So Paulo e Salvador so to diferentes em tantosaspectos que o fato de serem ambas cidades degrande porte me parece quase irrelevante nestecaso. Acredito que seria muito importante estuda-rem-se as relaes raciais sob um certo nmerode condies distintas e, nesse caso, imprescin-dvel que, mais uma vez, o estudo no fique

    restrito situao na Bahia e sua volta. (Kline-berg, 1950, p. 4)

    Na mesma linha de reflexo de Klineberg,Wagley considerava que a investigao da Bahiano deveria impedir a oportunidade de estudos emoutras regies:

    [...] quanto aos estudos urbanos sobre tenso racial(ou sua inexistncia), me pergunto se Salvadorno seria um tanto especial e se os estudos em SoPaulo e no Rio de Janeiro no demonstrariamaspectos diferentes do quadro brasileiro de rela-es raciais em geral. Acabo de assistir ao Con-gresso Nacional do Negro no Rio [de Janeiro] ealguns dos trabalhos e algumas das discussespareciam indicar diferenas entre Rio e So Paulo[...]10

    O socilogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, umdos participantes do debate acerca do estatutocientfico do conceito de raa em dezembro de1949, que resultou na 1 Declarao Sobre Raachancelada pela Unesco (maio de 1950) , emcorrespondncia com Alfred Mtraux, manifestouo interesse de que a Unesco e o Departamento deCincias Sociais da Faculdade Nacional de Filoso-fia, vinculado ento Universidade do Brasil,chegassem a um acordo no sentido de realizar, noRio de Janeiro, dentro do plano da Unesco, assondagens e anlises necessrias para a pesquisadas tenses raciais em rea metropolitana do Bra-sil, analisando a situao racial brasileira na pers-pectiva de uma sociedade em franco processo deindustrializao.11

    Em setembro de 1950, Alfred Mtraux entrouem contato com Roger Bastide, professor da Uni-versidade de So Paulo desde 1938, importantereferncia nos estudos relativos cultura afro-brasileira e autor de uma srie de trabalhos socio-lgicos sobre o negro no Brasil (Bastide, 1973).Mtraux revelou sua inteno de contar com acolaborao do socilogo francs na pesquisa daUnesco. Roger Bastide j conhecia Alfred Mtrauxe tinham uma srie de afinidades intelectuais eprojetos em comum, como o do estudo dos negrosnas Guianas.12 Mtraux afirmava na ocasio que

  • 146 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    naturalmente na Bahia que concentraremosnosso principal esforo, mas pretendo realizarsondagem em outras regies do Brasil e, nesseaspecto, necessitarei de seus conselhos. Quandochegar ao Brasil, entrarei em contato com o senhor,e discutiremos ento aspectos bastante complexosdessa pesquisa.13

    Bastide respondeu carta com entusiasmo.Ele acabava de representar a Frana no 1 Con-gresso do Negro Brasileiro, realizado em agostode 1950 no Rio de Janeiro, sob o patrocnio doTeatro Experimental do Negro (TEN), uma asso-ciao poltico-cultural que teve sua fase urea navirada da dcada de 1940. O evento tinha porobjetivo aproximar cientistas sociais e intelectu-ais, de modo geral, do movimento negro, embusca da associao entre trabalho acadmico einterveno poltica, com a inteno de ofereceralternativas para a reduo das desigualdades so-ciais existentes entre brancos e negros (Nasci-mento, 1982 [1968]).

    O frum promovido pelo TEN aproximava-se, segundo seu principal lder, Abdias Nascimen-to, dos esforos das mais lcidas inteligncias ericas culturas, instituies as mais representativas,como o caso da Unesco, no sentido de dotar omundo de um clima de segurana, de paz eliberdade pela via da compreenso e fraternidadeentre os homens e os povos, acima das divises erivalidades motivadas por questes de origensraciais. (Nascimento, 1950, p. 1).

    Naquele momento, a posio do TEN guar-dava uma certa afinidade com a resoluo daUnesco, aprovada dois meses antes, que escolheuo Brasil para servir de laboratrio socioantropol-gico. Todavia, Nascimento alertava que a sociabi-lidade positiva brasileira no terreno das relaesraciais no impedia as disparidades econmico-sociais existentes entre brancos e negros. Na ver-dade, o problema do negro no teria sido resol-vido aps a abolio da escravido e a fundao daRepblica (idem, p. 1).

    Coube a Guerreiro Ramos, socilogo e mili-tante do TEN, apresentar uma tese na qual sugeriaque o 1 Congresso do Negro Brasileiro procurassesensibilizar o governo do Brasil no sentido deconvencer a instituio intergovernamental a pa-

    trocinar um Congresso Internacional de Relaesde Raa (Guerreiro Ramos, 1982, pp. 237-238). Aseu ver, a Unesco estava exercendo um importantepapel no ps-Segunda Guerra, no processo deintegrao das minorias raciais nos vrios pasesonde elas se encontram mais ou menos discrimina-das (idem, p. 237). Para tanto, seria necessrio quehouvesse sugestes prticas, evitando os estudosde ordem acadmica ou meramente descritivos eque levam a uma conscincia falsa do mesmo [dadiscriminao] (idem, ibidem). 14

    O Congresso do TEN tentou oferecer umaalternativa Unesco no que tange ao perfil dotrabalho a ser desenvolvido no Brasil. Contudo, aproposta de Guerreiro Ramos s contemplava emparte os interesses da agncia internacional. Se,por um lado, no terreno da ao poltica contra oracismo, a idia de um Congresso Internacional deRelaes de Raa poderia estar mais prxima deuma proposta de impacto poltico, por outro, asugesto do TEN no inclua a proposta de umainvestigao-piloto, de natureza acadmica, adota-da pela Conferncia da Unesco em Florena.

    Em setembro de 1950 foi publicada a declara-o final do congresso patrocinado pelo TEN (Guer-reiro Ramos, 1954, p. 2). A tese de Guerreiro foiincorporada na parte relativa s recomendaes doevento, ao lado de uma outra sugesto que propu-nha o estudo, pela Unesco, das tentativas bem-sucedidas de soluo efetiva dos problemas derelaes de raas, com o objetivo de prestigi-las erecomend-las aos pases em que tais problemasexistem (Nascimento, 1982, p. 402). A resoluono teve repercusso imediata junto Unesco. Noentanto, as posies de Guerreiro Ramos comrelao proposta da agncia internacional revelamum momento de disputa quanto natureza polticae/ou acadmica do projeto a ser realizado. Acres-cente-se o fato de que participaram do Congressodo TEN pelo menos dois cientistas sociais, CharlesWagley e Costa Pinto, que estavam em plenaarticulao com a Unesco na perspectiva de opera-cionalizar a pesquisa no Brasil.15 Logo em seguidaRoger Bastide foi contatado por Alfred Mtraux.

    Em sua resposta a Mtraux, Bastide, aindasob o impacto do Congresso do TEN, consideravaque o projeto no se deveria limitar ao trabalho de

  • O PROJETO UNESCO E A AGENDA DAS CINCIAS SOCIAIS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 147

    pesquisa. Seria fundamental dar um sentido prticos reflexes tericas, estimulando uma atitudecooperativa entre intelectuais brancos e associa-es negras. Desse modo, haveria a quebra decertos preconceitos e a diminuio das tenses queestavam sendo criadas, ao menos no sul do Brasil.O socilogo francs revela a Mtraux sua intenode criar um centro de estudos da comunidadenegra de So Paulo, abrangendo brancos e negros,que, entre outras coisas, poderia intervir junto aospoderes pblicos.16

    Os primeiros passos do staff em direo montagem da pesquisa da Unesco indicam a exis-tncia de um cenrio em aberto que foi sendoconstrudo a partir do conhecimento prvio decientistas sociais da agncia internacional, amplia-do pelos contatos e sugestes de pesquisadoresnacionais e estrangeiros com alguma experinciade ensino e/ou pesquisa no Brasil. Esse processoficaria ainda mais ntido ao longo do segundosemestre de 1950.

    O Brasil visto de foraComo vimos, entre junho e setembro de

    1950, a Diviso de Estudos Sobre Problemas Ra-ciais do Departamento de Cincias Sociais daUnesco manteve correspondncia com alguns pes-quisadores cotados para participar do projeto (Cos-ta Pinto, Roger Bastide, Charles Wagley), aforaOtto Klineberg e Paulo Estevo de Berredo Carnei-ro, chefe da delegao brasileira na Unesco, queteve papel decisivo na opo Brasil.17 Almdisso, foram solicitadas a Giorgio Mortara, dem-grafo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estats-tica (IBGE), informaes e anlises sobre a compo-sio racial da populao brasileira.18 Em setem-bro, Alfred Mtraux e Ruy Coelho, a partir doscomentrios de Otto Klineberg (1950),19 elabora-ram a verso final20 do documento que serviria deapoio deciso definitiva sobre o escopo dapesquisa (Mtraux e Coelho, 1950). Pode-se credi-tar a Ruy Coelho21 a parte mais substantiva dodocumento, especialmente no que se refere aoestado da arte das cincias sociais no Brasil e aalgumas sugestes a respeito dos aspectos a seremexplorados pelo estudo.

    A introduo desse trabalho apresenta umabreve anlise da evoluo histrica das pesquisassobre a temtica racial no Brasil. Esses estudos,segundo os autores do documento, avaliam que asrelaes raciais nunca foram considerados proble-mas em si, mas parte dos problemas sociais maisgerais do Brasil (Mtraux e Coelho, 1950, p. 1). Aabolio da escravido e a proclamao da Repbli-ca teriam resolvido, aparentemente, o problemado negro e, por isso, at os anos 30 do sculo XX, aliteratura privilegiaria os estudos da cultura afro-brasileira, destacando-se as obras de Nina Rodri-gues e Arthur Ramos. As mudanas econmicas epolticas fomentadas pela Revoluo de 30 coloca-ram em evidncia os esforos de reflexo dosintelectuais acerca da identidade nacional. O me-lhor exemplo caberia a Casa-grande & senzala deGilberto Freyre, o mais importante marco do pero-do (idem, ibidem).

    Os anos 30 tambm propiciaram o surgimen-to de uma nova estrutura de ensino superior, com acriao dos cursos de cincias sociais no Rio deJaneiro e especialmente em So Paulo, quandosurge a preocupao com a pesquisa social sistem-tica por parte da Escola Livre de Sociologia ePoltica (ELSP). Investigaes acerca das relaesentre negros e brancos e sobre os processos deassimilao e aculturao dos imigrantes (alemes ejaponeses) so os casos citados no documento. Emdestaque aparecem Donald Pierson, Roger Bastidee Emilio Willems. Foi nesse perodo que algunspesquisadores norte-americanos, como Ruth Lan-des, Franklin Frazier e Melville Herskovits, estive-ram na Bahia interessados em diversos aspectosantropolgicos e sociolgicos da populao negra.

    Alfred Mtraux e Ruy Coelho registram acarncia de estudos sobre o padro de relaesraciais existente no Brasil. O livro de DonaldPierson (1942), Negroes in Brazil, era uma refern-cia obrigatria. Entretanto, o trabalho de Piersonsuscitou certas indagaes quanto pertinncia dautilizao de determinadas tcnicas de pesquisapara abordar a presena do preconceito racial nopas. Segundo Mtraux e Coelho (1950, p. 3):

    duvidoso, por exemplo, que o uso de question-rios que lidem diretamente com atitudes raciais d

  • 148 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    um retrato adequado da situao. Deve-se ter emmente que, no Brasil, considera-se uma vergonhao fato de se ter preconceito racial. Como resultadodisso, tais preconceitos, quando realmente exis-tem, podem assumir formas ocultas e sutis queno so reveladas pela tcnica de questionrios.Parece-me, portanto, essencial que se acrescen-tem outros mtodos e tcnicas que permitamchegar-se a uma compreenso mais completa dopadro das relaes raciais no Brasil.

    interessante observar que, embora o Brasilfosse considerado um pas dotado de relaesraciais harmoniosas, especial ateno deveria seratribuda s formas particulares e muitas vezes sutisde manifestao do preconceito racial. Para isso,seria aconselhvel utilizar outros recursos metodo-lgicos como entrevistas qualitativas, observaoparticipante, aferio de certas atitudes com basena escala de distncia social do socilogo EmoryBogardus e o teste de Rorschach (Mtraux e Coe-lho, 1950, pp. 6-9). Mais uma vez fica evidente quea opo Brasil da Unesco no impediu, j nodesenho original da pesquisa, o olhar atento decientistas sociais que procuravam captar as formasespecficas de manifestao do racismo no pas.

    Mtraux e Coelho acreditavam que o Brasilera um bom ponto de partida. Na medida em queconceitos tais como harmonia e boas ou msrelaes raciais so forosamente relativos, umponto de vista comparativo se imp[unha] [...] noapenas entre os Estados Unidos e o Brasil, mastambm entre outros pases sobre os quais [hou-vesse] informao disponvel (idem, pp. 3-4).22Os estudos deveriam levar em conta o padro devida de brancos e no-brancos, incluindo salrios,tipos de ocupao e, de modo mais abrangente, ainfluncia da varivel raa no processo de compe-tio no mercado de trabalho, bem como a interfe-rncia da religio na dinmica das relaes raciais.Sob a influncia de Otto Klineberg (1950, pp. 4-6),eles destacaram o valor da utilizao de tcnicasoriundas da Psicologia Social, especialmente noestudo dos esteretipos e dos tipos de personalida-des em grupos minoritrios (Mtraux e Coelho,1950, pp. 6-9). Por fim, ainda acreditavam, naquelemomento, que a Bahia seria o principal foco do

    Projeto Unesco. Como afirmam: [...] os aspectosculturais e sociais das pesquisas ficaro sob aresponsabilidade do Dr. Charles Wagley e suaequipe [...] Pesquisas adicionais sero necessriasfora da Bahia. (idem, p. 9).

    Mtraux descobre o BrasilEmbora j conhecesse o Brasil, Alfred M-

    traux considerava de suma importncia uma via-gem ao pas a fim de prever a natureza dosproblemas que devem ser estudados e, em segui-da, ter uma idia ntida das instituies e persona-lidades cientficas que possam se encarregar daexecuo dessa parte de nosso programa (M-traux, 1951a, p. 1). O antroplogo visitou o Brasilno final de 1950. Antes da viagem, comeou areconhecer o fato de que o Brasil no era a Bahia.Em conversa com Paulo Estevo de Berredo Car-neiro, em Paris, constata que a questo racial noBrasil demonstra um carter muito diferente con-forme as regies, e indispensvel levar em contaas zonas geogrficas de modo que as pesquisasprevistas nos forneam um quadro vlido para oconjunto do pas (idem, ibidem).

    Na introduo do relatrio oficial da viagemao pas, Mtraux revela as personagens-chave namontagem do projeto no Brasil. De incio, menci-ona Charles Wagley, que a partir de contatosprvios indicou a possibilidade de o Projeto Unes-co vir a ser inserido no programa Universidade deColumbia/Estado da Bahia. Em seguida, cita CostaPinto, que, na condio de amigo do Dr. [Arthur]Ramos, inspirou a resoluo adotada pela [5 ses-so da] Conferncia Geral [da Unesco].23 Porltimo, refere-se a Roger Bastide, professor deSociologia da Faculdade de Filosofia, Cincias eLetras da Universidade de So Paulo, que nosexpressou tambm, em diversas oportunidades,seu interesse pelo projeto e manifestou o desejo denos dar sua contribuio, bem como a de seuscolaboradores (idem, ibidem).

    Ao chegar Bahia, Mtraux manteve conta-tos com Ansio Teixeira e Charles Wagley e confir-mou a realizao da pesquisa no apenas nascomunidades rurais, como estava previsto no Pro-jeto Universidade de Columbia/Estado da Bahia,

  • O PROJETO UNESCO E A AGENDA DAS CINCIAS SOCIAIS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 149

    mas tambm na cidade de Salvador. Caberia aThales de Azevedo a realizao de um estudosobre a ascenso social dos negros e as tensesindividuais e sociais decorrentes de tal processo demobilidade na capital baiana.

    O representante da Unesco teve acesso adados socioeconmicos sobre a Bahia e visitou arecm-criada Fundao para o Desenvolvimento daCincia no Estado da Bahia, instituio de amparo pesquisa criada por Ansio Teixeira. Alm disso,esteve em duas das trs comunidades rurais queestavam sendo investigadas (idem, pp. 2-4).

    Na semana seguinte, Mtraux viajou para oRio de Janeiro. No encontro com Costa Pinto,24

    convenceu-se da importncia da pesquisa no en-to Distrito Federal, tendo em vista os argumentosdo socilogo brasileiro, que considerava de sumaimportncia estudar as relaes raciais inseridasem um contexto de modernizao. Este tema vinhaao encontro dos objetivos da Unesco, que haviadefinido na conferncia de Florena uma linha deinvestigao sobre os impactos da industrializaoem reas subdesenvolvidas (idem, p. 4).

    Em 8 de dezembro de 1950, Mtraux chegou aSo Paulo e viu-se diante da tarefa de estabelecernegociaes entre os professores da Escola Livre deSociologia e Poltica (ELSP) e da Faculdade deFilosofia, Cincias e Letras (FFCL) da Universidadede So Paulo, na medida em que eram, segundo oantroplogo, instituies rivais (Mtraux, 1951a,p. 5; ver Limongi, 1989). Mtraux encontrou-se comos diretores das duas instituies (Fernando deAzevedo e Cyro Berlinck) para expor os objetivosda Unesco. A ELSP e a FFCL gozavam de grandeprestgio junto equipe da agncia internacional.Antes mesmo de ser definida a opo Brasil,Donald Pierson j havia sido sondado sobre apossibilidade de vir a participar de uma pesquisa noBrasil. No incio de fevereiro de 1950, o diretorinterino do Departamento de Cincias Sociais daUnesco, o socilogo Robert Angell, solicitara infor-maes a respeito da ELSP. Pierson apresentou umbreve relatrio dos cursos, das pesquisas e do corpodocente da instituio brasileira e colocou-se disposio da Unesco para uma futura parceria. Nofinal da carta, revelou seu interesse em participar deuma pesquisa sobre as relaes raciais no Brasil.25

    De incio, Donald Pierson e Roger Bastideforam escolhidos para dirigir a pesquisa em SoPaulo. No entanto, a visita de Mtraux ocorreu nomomento em que o socilogo americano j estavacomprometido com um amplo estudo de comuni-dade no vale do rio So Francisco. Donald Piersonsugeriu, em seu lugar, o socilogo Oracy Nogueira,professor da ELSP.

    A principal referncia de Mtraux em SoPaulo era Roger Bastide, que aceitou participarda pesquisa e presidir um comit, com represen-tantes da FFCL e da ELSP (Mario Wagner Vieirada Cunha, Oracy Nogueira e Octavio da CostaEduardo), responsvel pelo projeto em So Paulo(Mtraux, 1951a, p. 5).26 Utilizando a mesma li-nha de raciocnio aplicada ao Rio de Janeiro,Mtraux considerava extremamente importante apesquisa sobre as relaes raciais em So Paulo,pois era um estado em rpido processo de indus-trializao e urbanizao que estaria indicandosinais claros de tenses raciais.

    So Paulo, da mesma forma que o Rio deJaneiro, foi inserido no Projeto Unesco para servirde contraponto experincia baiana. Essas duascidades poderiam retratar as diversas nuanas dasituao racial brasileira. Mtraux afirmava que aelaborao de uma pesquisa numa cidade em fasede acelerado desenvolvimento econmico nosapresenta uma oportunidade nica para conheceros fatores susceptveis de provocar antagonismosraciais que, outrora, se achavam em estado latenteou careciam de virulncia. A pesquisa em SoPaulo expressava, de certo modo, a tenso entrepoltica e cincia, entre as expectativas iniciais daUnesco com respeito ao Brasil e o Projeto Unesco.Isto fica bem ntido no relatrio oficial da viagemao Brasil, no qual Mtraux afirma que [...] descar-tar os problemas novos para nos limitarmos a umestado de coisas j estabelecido, mas ultrapassado,seria trair o esprito cientfico que deve animarnossa investigao. A pesquisa da Bahia ofereceapenas uma imagem incompleta da questo racialno Brasil (idem, ibidem). Em carta a MelvilleHerskovits, ele dizia:

    Contrariamente a meus planos anteriores, a Bahiano ser mais o foco de nosso projeto. Estudare-

  • 150 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    mos as relaes raciais como estas aparecem emquatro comunidades e nos concentraremos noproblema de mobilidade social na cidade de Salva-dor. Por outro lado, deveremos nos concentrar nasituao racial em So Paulo, que est em vias dese deteriorar rapidamente. Dr. Costa Pinto empre-ender um estudo semelhante porm em me-nor escala no Rio de Janeiro. Espero conseguir,no final do ano, um quadro da situao racial noBrasil que seja prximo da realidade e que cubra,ao mesmo tempo, tanto seus aspectos positivosquanto os negativos.27

    O processo de redefinio do ciclo de estu-dos que viriam a ser realizados pela Unesco revelao grau de autonomia dos cientistas sociais envolvi-dos no projeto, especialmente no que tange srelaes entre as demandas da agncia internacio-nal e suas diversas tradues em solo brasileiro. Asrevelaes de Alfred Mtraux no relatrio oficial desua expedio ao Brasil em 1950 so um indica-dor preciso das mudanas de percurso.

    Contudo, o desenho definitivo do ProjetoUnesco s ocorreria no ano seguinte, quando, emnova visita ao Brasil, Mtraux incorporou a cidadede Recife. Os contatos entre o Instituto JoaquimNabuco (IJN), rgo criado por Gilberto Freyre em1949, e a Unesco comearam no primeiro semestrede 1951. Freyre mostrou-se interessado em estabe-lecer um cronograma de atividades junto agnciainternacional, com o intuito de fortalecer instituci-onalmente o recm-criado centro de pesquisasregional. Em agosto de 1951, esteve na Unesco esugeriu que o IJN fosse convidado a fazer parte dapesquisa sobre relaes raciais no Brasil (Mtraux,1952, p. 1). A proposta foi aceita de imediato, dadoo prestgio de Freyre. O socilogo pernambucanofoi o primeiro brasileiro a ser convidado paraocupar o cargo de Diretor do Departamento deCincias Sociais da Unesco.28 Ren Ribeiro, ex-aluno de Melville Herskovits na Universidade deNorthwestern e responsvel pelo Setor de Antro-pologia do IJN, desenvolveu uma pesquisa acercada influncia das diversas religies (catolicismo,protestantismo e cultos africanos) sobre as relaesraciais em Recife (idem, p. 2; ver tambm Freston,1989, e Maio, 1999b).

    As pesquisas da Unesco foram realizadasentre 1951 e 1952. Vrios aspectos influenciaram naescolha e no desenvolvimento dos diversos proje-tos. De incio, contribuiu a presena de uma tradi-o de estudos raciais, sobretudo na Bahia e emSo Paulo. Acrescente-se a existncia de centros deensino e pesquisa, principalmente na cidade de SoPaulo. Cabe lembrar que o Setor de Relaes Raciaisdo Departamento de Cincias Sociais da Unesco eradirigido por cientistas sociais (Alfred Mtraux e RuyCoelho) que tinham um razovel conhecimentodos estudos tnico-raciais realizados no Brasil. Nomenos importante era a preocupao da agnciainternacional, a partir de 1950, com os processos deindustrializao e seus impactos em regies subde-senvolvidas. Dessa forma, pode-se compreender,em parte, a incluso das pesquisas realizadas noSudeste do Brasil. Convm observar tambm queprestgio intelectual, relaes pessoais, elaboraode trabalhos anteriores e experincias internacio-nais foram determinantes nos estudos de caso.Roger Bastide conhecia Alfred Mtraux e tinhamuma srie de afinidades intelectuais e projetos emcomum. Por sua vez, Wagley j investigava o Brasildesde o final dos anos 30. A presena de Costa Pintona pesquisa da Unesco deve-se, em grande parte, ssuas relaes profissionais e pessoais com ArthurRamos. No caso do Recife, a obra de Gilberto Freyrej havia alcanado reconhecimento internacional.

    Por ltimo, importante ressaltar a influnciado movimento negro, por meio do Congresso doNegro Brasileiro de 1950, que teve um certo impac-to sobre, pelo menos, trs socilogos que vieram aparticipar do Projeto Unesco Charles Wagley,Roger Bastide e Costa Pinto. Indo alm, o eventopatrocinado pelo Teatro Experimental do Negroprocurou mudar a natureza do projeto, atribuindo-lhe um carter nitidamente poltico.

    Projeto Unesco: frustrao ourevelao e confirmao?

    Freqentemente se afirma que a pesquisa daUnesco frustrou as expectativas iniciais da institui-o (Andrews, 1991, pp. 3 e 7; Winant, 1994, p.131; Viotti da Costa, 1985, p. 238; Hasenbalg, 1996,pp. 238-239; Skidmore, 1993[1974], pp. 215-216).

  • O PROJETO UNESCO E A AGENDA DAS CINCIAS SOCIAIS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 151

    Na esperana de encontrar a chave para a supera-o das mazelas raciais vividas em diversos contex-tos internacionais, a agncia intergovernamentalteria acabado por se ver diante de um conjunto dedados sistematizados sobre a existncia do precon-ceito e da discriminao racial no Brasil.

    De fato, havia dentro da organizao umaimagem positiva do pas em matria racial. Numapoca em que a Unesco procurava tornar intelig-vel o genocdio nazista, no intuito de impedir queo fenmeno viesse a repetir-se, a instituio assu-miu como um dos seus principais objetivos criticare, com isso, eliminar a validade cientfica doconceito de raa. Neste caso, o Brasil apresentava-se como um laboratrio socioantropolgico pri-vilegiado para desqualificar a importncia conferi-da aos constructos raciais em nome da promissoraexperincia de miscigenao e assimilao.

    Todavia, o projeto desenvolveu-se de formamais complexa. A simpatia que a Unesco nutriapelo Brasil no foi suficiente para determinar oescopo definitivo do estudo e seus resultados.Conforme j demonstrado, a pesquisa da Unesco aprincpio s seria realizada na Bahia. A opopreferencial pelo cenrio baiano parecia adequar-se imagem do Brasil como uma democraciaracial, onde a interao entre as raas seria harmo-niosa. No entanto, os objetivos da investigaoforam ampliados, graas sobretudo atuao deCharles Wagley, Costa Pinto, Roger Bastide, RuyCoelho e Otto Klineberg, acrescida da visita deAlfred Mtraux ao Brasil, no final de 1950, aps aqual ele veio a afirmar que o caso paulista seriasusceptvel de alterar a imagem talvez demasiada-mente otimista que se fazia do problema racial noBrasil (Mtraux, 1951a, p. 5).

    No primeiro semestre de 1951, cinco mesesaps visitar o Brasil, Alfred Mtraux publicou umbalano de sua viagem na revista Courier, daUnesco, sob o sugestivo ttulo Brasil: terra deharmonia para todas as raas? (Brazil: land ofharmony for all races?). Nele, o autor apresentouum painel contrastante do cenrio racial brasilei-ro (Mtraux, 1951b, p. 3). De incio, Mtraux tecealguns comentrios histricos, antropolgicos esociolgicos sobre Salvador. Do seu ponto devista, a grande metrpole negra brasileira cau-

    sava uma impresso paradoxal: por um lado, eravisvel a forte presena da cultura africana; poroutro, o nmero de pessoas realmente negrasera pequeno. Na sua viso, a Bahia era uma terramestia que estaria criando uma nova raa nocontinente (idem, ibidem).29 A intensa miscige-nao, segundo o antroplogo, gera ausncia depreocupao quanto identidade racial. A seuver, so os problemas de natureza social queprevalecem. A partir de suas leituras de GilbertoFreyre, Donald Pierson e Frank Tannenbaum,Mtraux chega concluso de que a heranaportuguesa formara um modelo de escravidomais humano do que na Amrica anglo-saxnica,permitindo assim a ascenso de mulatos e ne-gros. Sem dvida, h uma viso idlica de M-traux sobre o Brasil. No entanto, ele oscila emseus retratos do Brasil.

    Ainda que reconhea aspectos positivos dolegado ibrico, Mtraux chama a ateno para orisco de se adotar uma viso simplificadora dasrelaes raciais no Brasil, salientando a necessida-de de se analisar, por exemplo, as relaes matri-moniais. Embora o autor indique a existncia defreqentes casamentos inter-raciais, eles aconte-cem, em geral, entre pessoas da mesma classe eraramente entre pessoas em posies extremas nocomplexo sistema de classificao das cores noBrasil (idem, ibidem). Essa ilustrao no impedeque Mtraux considere o Brasil um exemplo depas onde as relaes entre as raas so relativa-mente harmoniosas. Todavia, registra que seriaum exagero [...] afirmar que o preconceito racial ignorado. Haveria uma srie de esteretipos emrelao ao negro. Alm disso, quanto mais seascende na escala social, mais evidente se torna opreconceito de cor. Nos grandes centros, como SoPaulo e Rio de Janeiro, existiria um racialismoinequvoco entre os trabalhadores, suscitado pelacompetio nas reas em processo de industrializa-o (idem, ibidem). O antroplogo atribui a exis-tncia do racismo no Sudeste do pas ao passadoescravocrata que ainda mantm os negros emcondies desfavorveis na disputa com os bran-cos. Nesse sentido, as dificuldades dos negros noseriam creditadas sua cor, e sim, posio queocupam na hierarquia social. Suas expectativas

  • 152 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    convergiriam para a educao, canal por meio doqual acreditam que podero ascender socialmente.

    Mtraux minimiza os efeitos da discriminaoracial no Brasil, haja vista que a fora da tradioimpede que os conflitos intertnicos sejam aceitos,o que torna mais fcil solucionar o dilema noBrasil. Os intelectuais brasileiros so orgulhosos dademocracia racial que eles engendraram (idem,ibidem). Por fim, declara que a ansiedade demons-trada pelos socilogos que vm trabalhando com aUnesco para explorar todos os aspectos, tantofavorveis quanto desfavorveis, demonstra o senti-mento de segurana com que, em toda parte, osbrasileiros consideram a situao racial no pas(idem, ibidem). Em seu artigo, no destitudo desurpresas, ambigidades, imprecises e otimismo,Mtraux revela no apenas os motivos que levaram definio da ampla pesquisa da Unesco no Brasil,mas tambm a difcil e tensa relao entre racismo emito da democracia racial brasileira. Essa tensopermanecer ao longo do Projeto Unesco.

    Consideraes finaisA visita de Alfred Mtraux ao Brasil, no final

    de 1950, serviu de agente catalisador da pesquisa.Enquanto os socilogos e antroplogos envolvidosno projeto iniciavam a pesquisa, o chefe do Setor deRelaes Raciais do Departamento de CinciasSociais da Unesco j tornava pblico a diversidadeda situao racial brasileira. Neste sentido, o diag-nstico de Mtraux respondia, em parte, no inciodos anos 50, aos desafios lanados por ArthurRamos em sua proposta de anlise do mosaicobrasileiro. Os resultados do ciclo de pesquisas daUnesco seriam o complemento indispensvel.

    Em seu trabalho sobre o preconceito racialem perspectiva comparada, Nogueira (1955b)apresenta uma breve classificao dos estudosreferentes ao negro no pas. O Projeto Unesco,segundo o autor, inaugura a etapa do estudosistemtico da situao racial brasileira, definidopelos seguintes critrios: 1) delimitao da rea deinvestigao com o intuito de viabilizar uma coletacontnua e intensiva de dados, capaz de garantiruma slida base emprica para o estudo; 2) apre-sentao objetiva dos dados utilizados, visando

    comparao com outras pesquisas e produo denovas anlises; 3) estabelecimento de analogiasentre a situao racial brasileira e a de outrospases, em especial, os Estados Unidos; 4) inteligi-bilidade da complexa situao racial do pas, emseu conjunto, pela comparao e sntese, potenci-alizando o surgimento de novos estudos de casoem distintas localidades do Brasil (idem, p. 412).Dessa forma, o programa da Antropologia brasi-leira proposto por Arthur Ramos, que resultou, emparte, no Projeto Unesco, acabou por se realizar.

    No entanto, Arthur Ramos, em sua propostade agenda para as cincias sociais, indagava-setambm sobre a validade de se considerar a exis-tncia de um carter nacional ou de um ethosnacional (Ramos, 1948, p. 224). Vale a pena nosestendermos um pouco sobre o tema. Para isso,vou me basear em algumas reflexes de FlorestanFernandes, talvez o socilogo que tenha obtidomaior visibilidade entre os pesquisadores envolvi-dos nos estudos da Unesco.

    Em dezembro de 1959, Florestan Fernandesconclua o prefcio do livro Cor e mobilidade socialem Florianpolis, de Fernando Henrique Cardosoe Octavio Ianni. A pesquisa, patrocinada por duasagncias governamentais (INEP/CAPES), contoucom o apoio de Ansio Teixeira e Charles Wagley.Ela era o desdobramento do Projeto Unesco para osul do pas, que at aquela altura ainda no haviasido contemplado. A coleta do material empricofoi realizada em 1955 e o trabalho concludo em1957 (Cardoso e Ianni, 1960, pp. xxxix-xi). Oestudo era o exemplo mais bem acabado dainfluncia do Projeto Unesco no processo de insti-tucionalizao das cincias sociais no Brasil. Ainvestigao representava o primeiro resultado demaior vulto da cadeira de Sociologia I da Faculda-de de Filosofia, Cincias e Letras da USP, sob acoordenao de Florestan Fernandes.

    No prefcio de Cor e mobilidade social emFlorianpolis, Florestan considera que os estudossobre as relaes raciais seriam um indicadorpreciso do amadurecimento das cincias sociais noBrasil. Afora a importncia das preocupaes te-ricas e empricas que mobilizariam os cientistassociais, ao ampliarem os conhecimentos acercados padres de relaes raciais existentes no pas,

  • O PROJETO UNESCO E A AGENDA DAS CINCIAS SOCIAIS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 153

    haveria um interesse em responder questes denatureza imediata e de carter poltico. Comoafirma Florestan:

    Ningum ignora o quanto a heterogeneidade cul-tural e racial afetou, est afetando e continuar aafetar as possibilidades de desenvolvimento dacivilizao ocidental no Brasil. Sob esse aspecto,as questes pertinentes ao assunto possuem ocarter de problema nacional, o que confere sinvestigaes realizadas ou em curso um interesseprtico iniludvel. (Fernandes, 1960, p. xi; nfasesdo autor)

    No entanto, o socilogo paulista lamenta quea sociedade em geral no esteja atenta para osignificado das pesquisas em andamento. Esse fen-meno atribudo por Florestan Fernandes crenade que o Brasil vive sob a gide de uma democraciaracial. Envoltos por essa ideologia, os leigosdificultam o surgimento de uma mentalidade denovo tipo capaz de canalizar esforos na direo deuma sociedade industrial democrtica tanto emtermos polticos quanto sociais (idem, pp. xi-xii).

    Seria funo do socilogo, segundo Flores-tan, desvendar os fundamentos da estrutura social,no intuito de indicar os mecanismos de reprodu-o do racismo. Dessa forma, ficariam evidentes osobstculos mudana social (idem, pp. xii-xiii;nfase do autor). Nesse ponto ele categrico:

    No existe democracia racial efetiva [no Brasil],onde o intercmbio entre indivduos pertencentesa raas distintas comea e termina no plano datolerncia convencionalizada. Esta pode satisfazers exigncias de bom tom, de um discutvelesprito cristo e da necessidade prtica demanter cada um em seu lugar. Contudo, ela noaproxima realmente os homens seno na base damera coexistncia no mesmo espao social e,onde isso chega a acontecer, da convivnciarestritiva, regulada por um cdigo que consagra adesigualdade, disfarando-a acima dos princpiosda ordem social democrtica. (idem, p. xiv)

    Entretanto, afirma Florestan, o desenvolvi-mento da civilizao ocidental no Brasil a

    saber, industrializao, democratizao da riquezae do poder e progresso social deve estarinformado por nossa herana sociocultural, poisum povo que estimule programas rpidos demudana cultural, sem orient-los segundo critri-os inteligentes e construtivos, paga preos exorbi-tantes pelo progresso social. (idem, p. xvi).

    Florestan observa que a modernidade suficientemente rica e plstica para permitir amplasdiferenas entre os sistemas culturais nacionais,que se organizam atravs de seus valores ideaisbsicos. Caberia, segundo ele, incrementar aconscincia de cidadania e o exerccio mais eficazda democracia, sem, com isso, cancelar a tolern-cia convencionalizada nas relaes raciais e omnimo de sobranceria, que caracteriza a expres-so assumida pelo individualismo e pela autono-mia da pessoa quer em nosso homem culto, querem nosso homem rstico. (idem, ibidem; nfasesdo autor).

    Florestan, sem dvida, nos surpreende aoconsiderar que aquilo que nos condena tambma fonte que pode nos redimir. O socilogo paulista,que desenvolveu uma srie de reflexes sobre oantagonismo entre civilizao e cultura de folk, einteressado, sobretudo, no debate sobre as resis-tncias culturais mudana, indica que a tolern-cia convencionalizada nas relaes raciais, umelemento de nossa tradio que poderia sertraduzido, por exemplo, pela cordialidade, pelapessoalidade , um valor a ser preservado sejapela intelligentsia, seja pelos setores subalternos.

    Diante do processo avassalador de desenvol-vimento econmico, urbanizao e mobilidadesocial que chega ao auge na era JK, e convicto deque as desigualdades raciais so um problemanacional, Florestan alerta para os possveis efeitosperversos da ausncia de parmetros sociocultu-rais que regulem a expanso desenfreada do capi-talismo no Brasil, lacuna essa que impediria umaverdadeira reforma social brasileira. Nesse senti-do, o socilogo reconhece aspectos positivos dasociabilidade no campo das relaes raciais erevela a condio paradoxal da convivncia doracismo com o mito da democracia racial, tendoem vista a relevncia dos aspectos culturais que seapresentam no jogo das relaes sociais.

  • 154 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    O desafio lanado por Arthur Ramos, no finaldos anos 40, sobre a possvel existncia de um ethosnacional, transforma-se em problema nacionalnos anos 50, na perspectiva sociolgica de Flores-tan Fernandes, no cancelando as tenses entretradio e modernidade. Em tempos de globaliza-o, de controvrsias entre vises universalistas eparticularistas, de desafios colocados pelo multicul-turalismo, de debates sobre polticas pblicas raci-alizadas, o Projeto Unesco ainda se constitui, semdvida, num importante ponto de referncia parareflexes sobre os dilemas da sociedade brasileira.

    NOTAS

    1 Os resultados das pesquisas do Projeto Unesco forampublicados em Wagley et al. (1952), Azevedo (1953),Costa Pinto (1953), Bastide e Fernandes (1955), Noguei-ra (1955a) e Ribeiro (1956). Sobre a histria do ProjetoUnesco, ver Maio (1997a).

    2 Ianni (1966), em anlise sobre o contexto de emergnciados estudos sobre as relaes raciais no Brasil, estabele-ce um elo de ligao entre o Projeto Unesco e a tradiodo pensamento social brasileiro. Como observa o soci-logo: [...] as iniciativas da Unesco e outras instituiesestrangeiras colaboraram no desenvolvimento das in-vestigaes sobre o assunto. Note-se que dizemos cola-boraram e no iniciaram. Na verdade, esses institutosencontraram condies favorveis sua realizao,inclusive nos meios acadmicos, sendo chefiados porespecialistas brasileiros (Florestan Fernandes, Thales deAzevedo, Oracy Nogueira, L.A. Costa Pinto e outros).Note-se que foram as preocupaes humanitrias daUnesco que a levaram a iniciar essas pesquisas, pois quese havia difundido tambm no exterior que no Brasilreinava a democracia biolgica. Recordemos, entretan-to, que, antes das iniciativas da Universidade de Chicagoe da Unesco, j se realizavam no pas investigaescientficas a respeito das relaes raciais em geral, desdealguns aspectos da integrao scio-cultural dos indge-nas, ou as tcnicas de infiltrao social dos mulatos, ata anlise dos produtos marginais da assimilao dosalemes. (idem, p. 71; nfase do autor).

    3 Vilhena (1997) assinala a centralidade da reflexo sobreo negro na tradio das cincias sociais no Brasil,sobretudo a anlise da escravido no perodo colonial eao longo de meio sculo de nao independente, e olugar que ocupam os negros na formao da sociedadee da cultura brasileiras. Ressalta, ainda, o aspecto singu-lar que essa reflexo assumiu no conjunto de estudosque se inscrevem, segundo o antroplogo, na rubricapensamento social brasileiro. A seu ver, se o pensa-mento social brasileiro se refere de forma relativamentevaga s diversas reflexes sobre temas sociais e polticosproduzidos neste pas, esse conjunto acaba ganhando

    alguma unidade na medida em que se verifica a recor-rncia obsessiva desse esforo de auto-reflexo. Oadjetivo obsessivo passa a se referir no apenas ao fatodesse pensamento se ter produzido no Brasil, mastambm ao fato de ele se ter freqentemente referido aeste pas e a seus problemas em se definir como umanao moderna (idem, p. 128). Enfim, o tema dainsero do negro na modernidade uma obsessocentenria do pensamento social brasileiro.

    4 Carta de Arthur Ramos a Alceu Maynard de Arajo, 27/10/1949, apud Azeredo (1986, p. 215).

    5 Carta de Arthur Ramos a Clemente Mariani, 14/10/1949.Correspondncia Familiar, Seo de Manuscritos, Bibli-oteca Nacional.

    6 Carta de Charles Wagley a Alfred Mtraux, 18/6/1950, p.1. Race questions & protection of minorities. REG 323.1.Part I up to 30/VI/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    7 Carta de Ruy Coelho a Charles Wagley, 27/7/1950, p. 1.Race questions & protection of minorities. REG 323.1.Part II up to 31/VII/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    8 Carta de Ruy Coelho a Charles Wagley, 27/7/1950, p. 2.Race questions & protection of minorities. REG 323.1.Part II up to 31/VII/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    9 Carta de Charles Wagley a Alfred Mtraux (provavel-mente entre o final de julho e incio de agosto); carta deCharles Wagley a Ruy Coelho, 6/9/1950; carta de AlfredMtraux a Charles Wagley, 14/9/1950. Race questions &protection of minorities. REG 323.1. Part II up to 31/VII/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    10 Carta de Charles Wagley a Ruy Coelho, 6/9/1950, p. 2.Race questions & protection of minorities. REG 323.1.Part II up to 31/VII/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    11 Carta de Luiz de Aguiar Costa Pinto a Alfred Mtraux, 31/7/1950, p. 1. Em carta a Alfred Mtraux na qual apresentao seu primeiro relatrio de pesquisa, Costa Pinto foi ain-da mais enftico, considerando acertada a deciso do staffde no circunscrever a pesquisa Bahia, que representa-va um quadro de relaes tradicionais. Em contraposi-o, as pesquisas nas reas metropolitanas, tanto no Riode Janeiro quanto em So Paulo, revelariam os elemen-tos de mudana na sociedade brasileira. Carta de Luiz deAguiar Costa Pinto a Alfred Mtraux, 1/9/1951, p. 3. State-ment on race. REG file 323.12 A 102. Part I (Box REG146), Unesco Archives. Sobre a participao de Costa Pin-to no Projeto Unesco, ver Maio (1998a e 1999a).

    12 Carta de Roger Bastide a Alfred Mtraux, 13/5/1950.Race questions & protection of minorities. REG 323.1.Part I up to 30/VI/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    13 Carta de Alfred Mtraux a Roger Bastide, 18/8/1950.Race questions & protection of minorities. REG 323.1.Part II up to 31/VII/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    14 Desde 1948, Guerreiro Ramos vinha assumindo umaposio crtica em relao aos estudos sobre a culturaafro-brasileira. A seu ver, esses estudos (histricos,folclricos e antropolgicos) no contribuam para oentendimento da vida social dos negros no Brasilcontemporneo, ou seja, para superar as desigualdadessociais entre brancos e negros. Indo alm, Guerreiro

  • O PROJETO UNESCO E A AGENDA DAS CINCIAS SOCIAIS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 155

    Ramos, no Congresso do TEN, revelaria o padro detrabalho sociolgico que deveria nortear as cinciassociais no Brasil e que foi objeto de controvrsia durantea dcada de 1950. Sobre Guerreiro Ramos, ver Oliveira(1995b). Sobre o tema das relaes raciais no pensa-mento de Guerreiro Ramos, ver Maio (1996).

    15 Por ocasio da participao de Costa Pinto no 1Congresso do Negro Brasileiro, ainda no estava dese-nhado o escopo definitivo da pesquisa da Unesco a serrealizada no Brasil, tampouco a equipe de cientistassociais que seria incorporada ao projeto. No debate datese de Guerreiro Ramos (A Unesco e as relaes deraa), Costa Pinto apoiou a mesma, que, a seu ver,aprovada como espero por este Congresso, s irreforar os argumentos apresentados em Florena [5sesso da Conferncia Geral da Unesco] de que o Brasil o campo indicado para tais investigaes (apudGuerreiro Ramos, 1982, p. 241). Embora GuerreiroRamos tenha procurado dar um perfil poltico suaproposta Unesco, considero que Costa Pinto viu nosocilogo baiano um aliado em sua luta para trazer apesquisa para o Rio de Janeiro. No final de 1953, quandoda publicao dos resultados da pesquisa da Unesco noRio de Janeiro, houve uma polmica entre Costa Pinto eGuerreiro Ramos. Sobre esse assunto, ver Maio (1997b).Embora Oracy Nogueira no tenha participado direta-mente do 1 Congresso do Negro Brasileiro, seu traba-lho, Escravido e abolicionismo numa comunidade dointerior, foi lido por Roger Bastide. Como se podeobservar, antes mesmo de participar do Projeto Unesco,Oracy Nogueira j tinha presente em seu estudo decomunidade sobre Itapetininga (SP) pesquisa refe-rente sua tese de doutorado na Universidade deChicago o tema das relaes raciais. Sobre OracyNogueira, ver Cavalcanti (1999).

    16 Carta de Roger Bastide a Alfred Mtraux, 9/9/1950. Racequestions & protection of minorities. REG 323.1. Part IIup to 31/VII/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    17 O qumico industrial Paulo Estevo de Berredo Carneiro(1901-1981) foi delegado permanente do Brasil naUnesco, primeiro como ministro (1946-1958) e depoiscomo embaixador (1958-1965). Foi tambm membro docomit executivo da organizao na maior parte dotempo em que esteve envolvido com o trabalho daagncia internacional. Entre 1951 e 1952 foi presidentedo Comit Executivo da Unesco. Paulo Carneiro erapositivista e seguia a tradicional viso da doutrina deComte no Brasil a respeito da incorporao de ndios enegros civilizao ocidental. Sobre o positivismo e asrelaes raciais no Brasil, ver Bastide (1947). SobrePaulo Carneiro e o Projeto Unesco, ver Maio (1998b).

    18 Carta de Giorgio Mortara a Robert Angell, 1/8/1950.Race questions & protection of minorities. REG 323.1.Part II up to 31/VII/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    19 Um indicador do prestgio de Otto Klineberg junto aostaff do Departamento de Cincias Sociais da Unescopode ser medido pela carta de Ruy Coelho a CharlesWagley. Nela, Coelho comunica a Wagley que o Dr.Klineberg, que esteve em Paris durante pouco tempo e

    que nos deu a oportunidade de tirarmos proveito de seuintelecto arguto e de sua slida experincia cientfica,concorda com vocs que Salvador um caso um tantoespecial. Ele recomenda So Paulo, onde as relaespoderiam ser observadas no apenas entre brancos enegros, mas tambm entre muitos grupos minoritriosde imigrantes: italianos, levantinos, japoneses, etc.Carta de Ruy Coelho a Charles Wagley, 14/9/1950. Racequestions & protection of Minorities. REG 323.1. Part IIup to 31/VII/50 (BOX REG 145), Unesco Archives. Apesquisa realizada na cidade de So Paulo por RogerBastide e Florestan Fernandes (1955) contemplou parci-almente as relaes entre negros e diversos grupos deimigrantes.

    20 A primeira verso do documento de Alfred Mtraux eRuy Coelho no foi encontrada nos arquivos da Unesco.

    21 Antes de se tornar assistente de Alfred Mtraux no Setorde Relaes Raciais do Departamento de Cincias Soci-ais da Unesco, Ruy Coelho (1920-1990), no incio dosanos 40, fazia parte de um ambiente intelectual profcuoassociado Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras eao grupo da revista Clima. Essa publicao, que eradirigida basicamente por alunos e ex-alunos da FFCL,exerceu uma influncia singular no plano da cultura emSo Paulo no perodo do Estado Novo. Neste sentido,Ruy Coelho chegou Unesco com uma experinciaacumulada pela influncia francesa na USP, pela discus-so de temas brasileiros em diversos nveis (Antropolo-gia, Sociologia, Filosofia, Literatura) e pela experinciaacadmica norte-americana no plano dos estudos sobreetnicidade. Sobre a trajetria social e intelectual de RuyCoelho, ver Pontes (1998).

    22 A idia de uma anlise comparativa j havia sidoapresentada discusso na 5 sesso da ConfernciaGeral da Unesco, em maio e junho de 1950, quandoocorreu a escolha do Brasil. Para maiores detalhes arespeito desse debate, ver Maio (1998b, pp. 400-403).

    23 Embora no tenha tido papel de destaque no debateque gerou a 1 Declarao sobre Raa da Unesco, CostaPinto soube aproveitar o prestgio de Arthur Ramos,tanto entre os integrantes do frum anti-racialista, quan-to no Departamento de Cincias Sociais da instituiointergovernamental, no processo de definio do Brasilcomo campo de investigao (Unesco/SS/Conf. 1/SR 1,pp. 2-4, Unesco Archives).

    24 Embora destaque o pioneirismo de sua instituio deensino na formulao do Projeto Unesco, apenas CostaPinto, com a colaborao de seu conterrneo, o etnlo-go e jornalista dison Carneiro, se envolveu na pesquisado Rio de Janeiro. Nos dois relatrios de viagem apre-sentados por Alfred Mtraux direo do Departamentode Cincias Sociais da Unesco no h qualquer menoao contato institucional com a ento Faculdade Nacio-nal de Filosofia, qual pertenciam Arthur Ramos e CostaPinto (Mtraux, 1950 e 1951a). Para entender esseprocesso necessrio observar o processo de instituci-onalizao das cincias sociais no Rio de Janeiro. Sobreesse tema, ver Almeida (1987), Oliveira (1995b) e Maio(1998a, pp. 22-28).

  • 156 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    25 Carta de Donald Pierson a Robert Angell, 15/2/1950.Race questions & protection of minorities. REG 323.1.Part I up to 30/VI/50 (BOX REG 145), Unesco Archives.

    26 Embora o comit tenha sido formalmente constitudo,sua atividade foi de curta durao. Em carta a AlfredMtraux em que apresenta o seu projeto de pesquisasobre as relaes raciais em Itapetininga, interior de SoPaulo, Oracy afirma ter enviado uma cpia do mesmopara Roger Bastide, presidente da comisso que entose constituiu. Carta de Oracy Nogueira a Alfred M-traux, 22/12/1950. Statement on race. REG file 323.12 A102. Part I (BOX REG 146), Unesco Archives. MarioWagner Vieira da Cunha lembra, em informao presta-da ao autor (17/2/1997), que s participou de umareunio da comisso. Essas informaes confirmam, porum lado, o prestgio de Roger Bastide e, por outro, ocarter independente das pesquisas realizadas naqueleestado.

    27 Carta de Alfred Mtraux a Melville Herskovits, 29/1/1951, p. 1. Statement on race. REG file 323.12 A 102. PartII (Box REG 147), Unesco Archives.

    28 Hadley Cantril, professor de Psicologia Social da Univer-sidade de Princeton e coordenador do projeto TensionsAffecting International Understanding, da Unesco, logoaps o frum Tensions that Cause Wars (Paris, vero de1948), sondou informalmente Gilberto Freyre sobre aviabilidade de o socilogo brasileiro vir a tornar-sediretor do Departameto de Cincias Sociais da Unesco.Em sua carta a Freyre, Cantril escreve: Estive conver-sando nos ltimos dias com os principais responsveispela direo da Unesco. Tiveram a gentileza de pedir-me um conselho sobre um candidato para o cargo dediretor do Departamento de Cincias Sociais da Unesco.[Arvid] Broderson est como interino. Como o nossoprograma est se expandindo e ganhando flego, torna-se cada vez mais fundamental que tenhamos um diretorque possua renome no campo, um pouco de sensibili-dade e sabedoria e todas as demais qualificaes quevoc conhece melhor do que eu. Mencionei seu nome,e pediram-me que lhe escrevesse informalmente parasond-lo sobre o seu interesse pelo cargo. Teria de serpor um ano, ao menos, com a esperana, claro, de quevoc quisesse ficar por mais tempo. Creio que o salrioest em torno de US$ 6.700, mas na verdade chega aquase US$ 10.000. Carta de Hadley Cantril a GilbertoFreyre, 13/8/1948, Arquivo do Instituto Gilberto Freyre.Em sua resposta a Hadley Cantril, Gilberto Freyreapresentou os motivos que o levou a recusar o convite.Em nova correspondncia, Cantril agradece a carta deFreyre mas no entra em detalhes sobre as razesapresentadas pelo socilogo pernambucano. Carta deHadley Cantril a Gilberto Freyre, 21/9/1948, Arquivo doInstituto Gilberto Freyre. A carta de Gilberto Freyre aHadley Cantril no foi encontrada. Apesar de nosabermos as razes apresentadas por Freyre, impor-tante lembrar que, na poca, Gilberto Freyre era depu-tado federal pela Unio Democrtica Nacional (UDN) eestava envolvido no projeto de criao de um institutode pesquisa em Pernambuco.

    29 interessante observar como a viso de Mtraux seassemelha do escritor austraco Stefan Zweig no quetange imagem do Brasil como um pas miscigenado,onde uma nova raa estava em constante processo deformao. Em livro que gerou enorme controvrsia napoca de sua publicao, Zweig (1956 [1941], p. 115)afirmou que h quatrocentos anos, na enorme caldeiradeste pas a massa humana, constantemente mexida erecebendo sempre novas substncias, est cozinhando.Est esse processo definitivamente terminado, essa mas-sa de milhes de seres j tomou forma prpria, j setornou uma substncia nova? Existe hoje j alguma coisaque possamos denominar a raa brasileira, o brasileiro,a alma brasileira?. As indagaes de Stefan Zweig, quevia sua civilizao ser pervertida pelo nazismo, j trazi-am embutida a crena de que o Brasil representava onovo, a ausncia de raas ou melhor, uma populaomoldada pelas matrizes europia, africana e indgena,que formava uma mistura nova que ainda fermentaeficazmente (idem, p. 213).

    BIBLIOGRAFIA

    ALMEIDA, Maria Hermnia Tavares de. (1987), Caste-los de areia: dilemas da institucionalizao dascincias sociais no Rio de Janeiro. 1930-1964.BIB Boletim Informativo e Bibliogrfico deCincias Sociais, Rio de Janeiro, Anpocs, 24:41-60.

    ANDREWS, George Reid. (1991), Blacks and whites inSo Paulo, Brazil, 1888-1988. Madison, Uni-versity of Wisconsin Press.

    ARAJO, Ricardo Benzaquen de. (1994), Guerra epaz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilber-to Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, Editora34.

    AZEREDO, Paulo Roberto. (1986), Antroplogos epioneiros: a histria da Sociedade Brasileira deAntropologia e Etnologia. So Paulo, FFLCH/USP.

    AZEVEDO, Thales. (1953), Les lites de couleur dansune ville brsilienne. Paris, Unesco.

    BASTIDE, Roger. (1947), El positivismo brasileo y laincorporcin del proletariado de color a lacivilizacin occidental. Revista Mexicana deSociologia, VIII, 3: 371-388.

    __________. (1973), Estudos afro-brasileiros. So Pau-lo, Perspectiva.

    BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. (1955),Relaes raciais entre negros e brancos em SoPaulo. So Paulo, Anhembi.

  • O PROJETO UNESCO E A AGENDA DAS CINCIAS SOCIAIS NO BRASIL DOS ANOS 40 E 50 157

    BILDEN, Rudiger. (1929), Brazil, laboratory of civiliza-tion. The Nation, CXXVIII, 16 de janeiro: 71-74.

    CARDOSO, Fernando Henrique e IANNI, Octavio.(1960), Cor e mobilidade social em Florianpo-lis. So Paulo, Companhia Editora Nacional.

    CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. (1999),O aspecto humano de nossos dados: a rela-o Pierson/Nogueira, a etnografia e a aborda-gem das relaes raciais, in M.C. Maio e G.Villas-Bas (orgs.), Ideais de modernidade esociologia no Brasil: ensaios sobre Luiz deAguiar Costa Pinto, Porto Alegre, Ed. da UFR-GS, pp. 185-202.

    CORRA, Mariza. (1987), Traficantes do simblico,in M. Corra (org.), Histria da Antropologiano Brasil (1930-1960). Testemunhos: DonaldPierson/Emilio Willems, So Paulo, Vrtice/Ed. da Unicamp.

    COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. (1953), O negro no Riode Janeiro: relaes de raas numa sociedadeem mudana. So Paulo, Companhia EditoraNacional.

    FERNANDES, Florestan. (1960), Prefcio, in F.H.Cardoso e Octvio Ianni, Cor e mobilidadesocial em Florianpolis, So Paulo, CompanhiaEditora Nacional.

    FRAZIER, Franklin. (1942), The negro family inBahia, Brazil. American Sociological Review,7, 4: 465-478.

    FRESTON, Paul. (1989), Um imprio na provncia: oInstituto Joaquim Nabuco em Recife, in S.Miceli (org.), Histria das cincias sociais noBrasil, vol. 1, So Paulo, Idesp/Vrtice/Finep.

    GUERREIRO RAMOS, Alberto. (1954), Interpelao Unesco. O Jornal, 3 de janeiro, pp. 2-3.

    __________. (1982), A Unesco e as relaes de raa,in A. Nascimento, O negro revoltado, Rio deJaneiro, Nova Fronteira.

    HASENBALG, Carlos A. (1996), Entre o mito e osfatos: racismo e relaes raciais no Brasil, inM.C. Maio e R.V. Santos (orgs.), Raa, cinciae sociedade, Rio de Janeiro, Ed. da Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil.

    HERSKOVITS, Melville. (1943), The negro in Bahia,Brazil: a problem in method. American Socio-logical Review, VIII: 394-402.

    IANNI, Octavio. (1966), O estudo da situao racialbrasileira, in O. Ianni, Raas e classes sociaisno Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira.

    KLINEBERG, Otto. (1946), Introduo AntropologiaSocial. So Paulo, Faculdade de Filosofia, Cin-cias e Letras, Boletim LXXV, Psicologia, n 1.

    __________. (1950), Comments on memorandumregarding research on race relations in Brazil,1/8/1950, in Race questions & protection ofminorities. REG 323.1. Part II up to 31/VII/50(BOX REG 145). Unesco Archives, 7p.

    LANDES, Ruth. (1994[1947]), The city of women. Albu-querque, University of New Mexico Press.

    LIMONGI, Fernando. (1989), A Escola Livre de Soci-ologia e Poltica, in S. Miceli (org.), Histriadas cincias sociais no Brasil, So Paulo,Idesp/ Vrtice/Finep.

    MAIO, Marcos Chor. (1996), A questo racial nopensamento de Guerreiro Ramos, in M.C.Maio e R.V. Santos (orgs.), Raa, cincia esociedade, Rio de Janeiro, Editora da Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil.

    __________. (1997a), A histria do Projeto Unesco:estudos raciais e cincias sociais no Brasil. Riode Janeiro, tese de doutorado em CinciaPoltica, Instituto Universitrio de Pesquisas doRio de Janeiro (Iuperj).

    __________. (1997b), Uma polmica esquecida: Cos-ta Pinto, Guerreiro Ramos e o tema das rela-es raciais. Dados, Rio de Janeiro, Iuperj, 40,1: 127-162.

    __________. (1998a[1953]), Costa Pinto e a crtica aonegro como espetculo (apresentao), inLuiz de Aguiar Costa Pinto, O negro no Rio deJaneiro: relaes de raas numa sociedade emmudana, 2 ed., Rio de Janeiro, Editora daUFRJ.

    __________. (1998b), O Brasil no concerto das na-es: a luta contra o racismo nos primrdios daUnesco. Histria, Cincias, Sade Mangui-nhos, Rio de Janeiro, Fiocruz, V (2): 375-413.

    __________. (1999a), O dilogo entre Arthur Ramose Costa Pinto: dos estudos afro-brasileiros sociologizao da Antropologia, in M.C.Maio e G.Villas-Bas (orgs.), Ideais de moder-nidade e Sociologia no Brasil: ensaios sobreLuiz de Aguiar Costa Pinto, Porto Alegre, Edi-tora da UFRGS, pp. 203-221.

    __________. (1999b), Tempo controverso: GilbertoFreyre e o Projeto Unesco. Tempo Social, 11(1): 111-136.

  • 158 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

    MTRAUX, Alfred. (1950), Unesco and the racialproblem. International Social Science Bulle-tin, II, 3: 384-390.

    __________. (1951a), Rapport au directeur gnralsur mission au Brsil (16 nov. - 20 dc. 1950),in Race questions & protection of minorities.REG 323.1. Part II up to 31/VII/50 (BOX REG145), Unesco Archives, 7p.

    __________. (1951b), Brazil: land of harmony for allraces?. Courier, Unesco, April, p. 3.

    __________. (1952), Rapport sur mission au Brsil,29/10 a 12/12/1951, in Statement on race.REG file 323.12 A 102. Part II (Box REG 147),Unesco Archives, 7p.

    __________. (1978), Itinraires 1 (1935-1953). Paris,Payot.

    MTRAUX, Alfred e COELHO, Ruy. (1950), Suggesti-ons for research on race relations in Brazil, inRace questions & protection of minorities. REG323.1. Part II up to 31/VII/50 (BOX REG 145),Unesco Archives, 10 p.

    NASCIMENTO, Abdias. (1950), Inaugurando o Con-gresso do Negro. Quilombo, ano II, 10, junho.

    __________. (1982[1968]), O negro revoltado. 2 ed.,Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

    NOGUEIRA, Oracy. (1955a), Relaes raciais nomunicpio de Itapetininga, in R. Bastide e F.Fernandes (orgs.), Relaes raciais entre ne-gros e brancos em So Paulo, So Paulo,Anhembi. (Reeditada com o ttulo de Precon-ceito de marca: as relaes raciais em Itapeti-ninga pela Edusp em 1998.)

    __________. (1955b), Preconceito racial de marca epreconceito racial de origem (Sugesto de umquadro de referncia para a interpretao domaterial sobre relaes raciais no Brasil).Anais do XXXI Congresso Internacional dosAmericanistas, So Paulo, Anhembi.

    OLIVEIRA, Lcia Lippi. (1995a), As cincias no Rio deJaneiro, in S. Miceli (org.), Histria dascincias sociais no Brasil, vol. 2, So Paulo,Idesp/Sumar/Finep.

    __________. (1995b), A Sociologia do Guerreiro. Riode Janeiro, Ed. da UFRJ.

    PIERSON, Donald. (1942), Negroes in Brazil. Chicago,University of Chicago Press.

    PONTES, Helosa. (1998), Destinos mistos: os crticosdo Grupo Clima em So Paulo: 1940-1968. SoPaulo, Companhia das Letras.

    RAMOS, Arthur. (1938), O esprito associativo donegro brasileiro. Revista do Arquivo Munici-pal, XLVII: 105-126.

    __________. (1939), The negro in Brazil. Washington,The Associated Publishers, Inc.

    __________. (1942), A aculturao negra no Brasil.So Paulo, Companhia Editora Nacional.

    __________. (1943), Guerra e relaes de raa. Rio deJaneiro, Departamento Editorial da Unio Na-cional dos Estudantes.

    __________. (1947), Social pioneering, in L. Hill(org.), Brazil, California, University of Califor-nia Press.

    __________. (1948), Os grandes problemas da Antro-pologia brasileira. Sociologia, X, 4: 213-226.

    __________. (1951), The negro in Brazil, in T.L.Smith e A. Marchant (orgs.), Brazil: portrait ofhalf a continent, Nova York, The DrydenPress.

    RIBEIRO, Ren. (1956), Religio e relaes raciais. Riode Janeiro, Ministrio da Educao e Cultura.

    SKIDMORE, Thomas E. (1993[1974]), Black into white:race and nationality in Brazilian thought.Durham, Duke University Press.

    VILHENA, Lus Rodolfo. (1997), frica na tradiodas cincias sociais no Brasil, in L. R.Vilhena, Ensaios de Antropologia, Rio de Janei-ro, Ed. da UERJ.

    VIOTTI DA COSTA, Emilia. (1985), The myth ofracial democracy: a legacy of empire, in E.Viotti da Costa, The Brazilian empire: mythsand histories, Chicago/Londres, The Universi-ty of Chicago Press.

    WAGLEY, Charles. (1957), Uma comunidade amaz-nica. So Paulo, Companhia Editora Nacional.

    WAGLEY, Charles, AZEVEDO, Thales e COSTA PIN-TO, Luiz de Aguiar. (1950), Uma pesquisa sobrea vida social no Estado da Bahia. Salvador,Publicaes do Museu do Estado, n 11.

    WAGLEY, Charles et al. (1952), Race and class inrural Brazil. Paris, Unesco.

    WINANT, Howard. (1994), Rethinking race in Brazil,in H. Winant, Racial conditions: politics, the-ory, comparisons, Minneapolis, University ofMinnesota Press.

    ZWEIG, Stefan. (1956[1941]), Brasil: pas do futuro.Rio de Janeiro, Delta.