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LONDRINA 2013 AMANDA MARIA ANDRÉA MATEOS EUGÊNIA DE CAMPOS AGUIAR CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE PSICOLOGIA PROBLEMATIZANDO A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O AGRESSOR MERECE ATENDIMENTO?

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LONDRINA

2013

AMANDA MARIA ANDRÉA MATEOS

EUGÊNIA DE CAMPOS AGUIAR

CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE PSICOLOGIA

PROBLEMATIZANDO A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O AGRESSOR MERECE ATENDIMENTO?

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher é algo alarmante não só para a sociedade civil como

também para o Governo. E seus custos são altíssimos tanto para um quanto para outro.

Contudo, parece haver entre as pessoas uma sensibilização quanto à causa da mulher, em vista

de que, em geral, são elas as vítimas, em vários casos, até fatais da agressão com

materialidade, especialmente física e sexual, e uma frieza e desumanização quanto à visão do

homem nesse contexto, traçando e firmando papéis de vítima e agressor nessa relação.

Por entendermos que a violência é algo relacional, abordamos nesse projeto os conceitos de violência, agressão, construções de gênero, casos de trabalho com homens autores de violência contra a mulher e a visão do psicólogo sobre a questão.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Teorias da Agressão

A fim de que possa ser melhor compreendida a dificuldade da abordagem do tema de

atendimento ao agressor, este trabalho proporá uma breve revisão sobre as teorias elaboradas

a respeito da agressão e suas mudanças no decorrer do tempo. Mesmo por vezes contrapostas

entre si, cada uma das teorias lançadas sobre o tema com certeza deixam seus rastros e

indicam caminhos pelos quais percorrem não só os psicólogos, mas também juristas e até

mesmo a sociedade civil, que mesmo não conhecendo cada uma das construções a fundo,

também pode ser tocada por elas.

Violência e Agressão

Em uma pesquisa feita por Alvim e Souza, L. (2005), a conceituação de violência

para os sujeitos participantes foi de se sentir agredido e/ou agredir verbal e/ou

psicologicamente e para alguns a violência seria algo muito forte e interno, individual e

natural de cada um, que num momento é colocado para fora e “explode”. Zaluar e Leal (2001,

citados por Alvim e Souza, L., 2005) conceitual violência psicológica como algo de difícil

identificação e denúncia, por falta de sua materialidade, e que tem como parâmetros os limites

e regras de convivência, caracterizando-se não apenas pelo uso da força, mas também pela

ameaça de usá-la (Velho, 1996, citado por Alvim e Souza, L., 2005) e pelas agressões não-

físicas, como xingamentos, exposição pública, humilhações, entre outras.

Para tornar melhor a compreensão do leitor, deve-se ter em mente que, embora

semelhantes, as definições dos fenômenos de violência e agressão são distintas. Violência

designa a qualidade daquele que é violento, que emprega a ação violenta, opressora ou

tirânica, ou qualquer força contra a vontade, liberdade ou resistência da pessoa ou coisa;

constrangimento físico ou moral exercido sobre uma pessoa para submetê-la à vontade de

outrem. De outro lado, como agressão lê-se a disposição para agredir e para o desenrolar de

condutas hostis e destrutivas bem como o ato de hostilidade e provocação ou de ataque a

integridade física ou moral de alguém. Para a Psicologia Social, a agressão é definida como

“qualquer comportamento que tem a intenção de causar danos, físicos ou psicológicos,

em outro organismo ou objeto. Importante destacar nesta definição a intencionalidade

da ação por parte do agente da agressão: só se caracteriza como agressivo o ato que

deliberadamente se propõe a infringir um dano a alguém." (RODRIGUES, 2007,

citado por GAUDÊNCIO, 2012)

As teorias sobre a agressão podem ser divididas em dois grupos: Biológicas e

Inatistas e Psicossociais (RIBEIRO, M., SANI. A; 2009).

A agressão como componente basal do organismo

Constituem-se como inatistas as teorias que pressupõe que a violência é algo inerente

ao ser humano, uma característica que foi selecionada durante a evolução da espécie, para a

sobrevivência (GAUDÊNCIO, 2012).

Das teorias inatistas, uma das mais influentes foi a do renomado médico e diretor de

um manicômio, Cesare Lombroso, pioneiro na catalogação de delitos e delinquentes com base

na medicina legal e na psicologia (SILVA, I., 2002). Suas idéias deram início à Antropologia

Criminal e também à Escola Positiva de Direito Penal. Na obra, Lombroso (1876) classifica

em cinco tipos aqueles em situação de delinquência (dos quais apenas um, o “criminoso

profissional”, não possuiria predisposição genética, mas se tornaria criminoso por função de

pressões do meio) e aponta a agressividade e o crime como algo inato da maioria desses

indivíduos. Quanto ao senso moral destes que ele chama como dementes, diz:

“Quanto à índole moral, à afetividade, a analogia, é inconteste, e eu não

tenho a escolher senão as descrições deixadas pelos mais encarniçados adversários da

minha escola, para demonstrá-la sem poder ser tachado de parcialidade. São [...], uma

espécie de idiotas morais que não podem dignar-se a compreender o sentimento

moral, ou se por educação o devessem, essa compreensão deteve-se na forma teórica

sem traduzir-se na prática. São daltônicos, cegos morais, porque a retina psíquica

deles torna-se incapaz de formular juízo estético. De outra parte, falta a eles a

faculdade de utilizar noções de estética, de moral, de modo que os instintos latentes no

fundo de todo homem levam vantagem. [...] Os dementes morais são infelizes com a

demência no sangue, contraída no ato da concepção; nutrida no seio materno. Faltam-

lhes o sentimento afetivo e senso moral; nasceram para cultivar o mal e para cometê-

lo. Estão sempre em guerra contra a sociedade [...]; todos são egoístas e com

deficiência absoluta de sentimentos afetivos.” (LOMBROSO, 1876, págs. 200 - 201)

Outras teorias inatistas também foram de grande influência, como a teoria do

instinto, de Freud (1925, citado por Ribeiro, M., Sani., A; 2009) e a teoria da frustração-

agressão, de John Dollard (1939, citado por RIBEIRO, M., SANI., A; 2009).

De acordo com Ribeiro e Sani (2009), para a teoria do instinto, a agressividade seria

algo inato e natural em todos os indivíduos e deve ser libertada, quer seja de forma aceitável,

na atividade física, quer seja de forma inaceitável (ato criminoso). A crueldade seria um traço

natural da infância e o desenvolvimento da agressividade começaria a se formar junto com o

desenvolvimento do indivíduo. Essa agressividade seria a tradução externa das pulsões de

morte, que visam a redução completa das tensões, e qualquer restrição a sua liberação externa

só aumentaria a auto destruição. Bem como aponta como inútil qualquer tentativa de

erradicação das inclinações agressivas dos homens por entendê-la como uma característica

psicológica da civilização (KRISTENSEN et al, 2003).

Sob um enfoque diferente, Dollard (1941, citado por Kristensen et al, 2003) diz que a

frustração, definida como “[...] um ato ou evento que impede alguém de atingir um objetivo,

seja isto uma barreira física, social (regras, leis), ou uma simples interrupção”, produz, entre

outras respostas, energia agressiva e esta instiga o comportamento agressivo que pode ser

mais ou menos intenso dependendo, por exemplo, do valor atribuído e da força que o

indivíduo tem para chegar a um objetivo. Por entender que reações catárticas reduziriam a

energia negativa provocada pela frustração, entende que esse tipo de atividade pode ser auto-

reforçadora, reduzindo não só a energia agressiva como também a probabilidade daquele que

se sentiu frustrado agredir alguém. Segundo Berkowitz (1978, citado por Ribeiro, M., Sani.,

A; 2009), para que a frustração levasse à agressividade, dois fatores deveriam estar presentes:

“a oportunidade para a acção (sic) agressiva e a presença de estímulos apropriados, como a

ira, por exemplo”.

Extensamente difundidas e consolidadas, essas e outras teorias biológicas da

agressão colocaram sobre o delinquente um enfoque de refém de sua própria natureza, ora

pelo determinismo biológico, por suas características herdadas geneticamente, ora pelo

determinismo moral, onde o indivíduo já nasceria degenerado ou normal, ora pelo

determinismo psicológico, “onde as maneiras da pessoa reagir psicologicamente à vida eram

inatas”, ora pelo determinismo social, onde as circunstâncias sociais levavam invariavelmente

ao crime (BALLONE, 2005, acesso em 17 de abril 2013). Esse modelo teórico predispõe a

existência de uma constituição violenta no sujeito e alguns deles, como o de Lombroso, nos

leva à desesperança um quadro onde não há forma de reversibilidade. Diferentemente dessa

abordagem a Psicologia Social aborda esse fenômeno através de suas características

psicossociais, considerando as especificidades de interação entre agressor e vítima, dando

ênfase ao exame de processos cognitivos, afetivos e comportamentais suscitados por situações

sociais incitadoras de violência (GAUDÊNCIO, 2012), como pode-se ver nas características

das teorias listadas a seguir.

A agressão como produto do contexto social e ambiental

Nas teorias psicossociais, a Psicologia Social aborda o fenômeno da agressão como

algo diretamente relacionado com o contexto social e ambiental do indivíduo. As teorias nessa

linha são divididas em Teoria da Aprendizagem Social, Cognitivismo Neo-Associassionista,

Processamento da Informação Social, Interacionismo Social e Modelo Geral da Agressão

(RIBEIRO, M., SANI., A; 2009).

De acordo com a Teoria da Aprendizagem Social, postulada por Brandura (1973,

citado por Kristensen et al, 2003), a maior causa da agressão seriam o incentivo a recompensa

que o sujeito ganha para e por cometê-la, sendo que este sujeito pesa sempre seus prós e

contras do comportamento agressivo, adotando aquilo que lhe parecer mais “lucrativo”; diz

que não há um impulso inato para atos agressivos mesmo em situações incômodas; e que atos

de extrema violência não podem ser cometidos a não ser que tenham sido aprendidos

lentamente e treinados, além de terem tido modelos que o praticassem (família, sociedade ou

ídolos), mostrando quais tipos de ação são passíveis de recompensa ou punição. A

agressividade é tida, então, como um padrão de resposta aprendida através do reforço e

modelagem (aprendizagem vicariante), onde o observador aprende inclusive em quais

circunstâncias o ato agressivo é punido ou elogiado (BRANDURA, 1977, citado por

RIBEIRO, M., SANI., A; 2009).

Numa tentativa de melhorar ou reformular a hipótese inatista de frustração-agressão

(Miller et. al, 1941, citado por Kristensen et al, 2003), Berkowitz (1988, citado por Kristensen

et al, 2003) formula a teoria neo-associassionista, onde a frustração é definida como o não-

recebimento de uma gratificação esperada e é introduzido o conceito de afeto negativo, onde,

perante a ocorrência de um fato que seja, que de acordo com a interpretação particular do

sujeito, aversivo há a estimulação de respostas cognitivas e biológicas relacionadas a luta e

fuga, sendo as associações de luta condutoras à raiva e as associações de fuga condutoras a

sentimentos rudimentares de medo. Sendo assim, a ocorrência da agressão depende de como o

sujeito vivencia os eventos que lhe ocorrem, porém, “assume [...] que deve existir uma

associação entre as dicas ou pistas apresentadas durante determinada situação aversiva, a

referida situação e as respostas eliciadas pela situação atual” (Anderson & Bushman, 2002,

citados por Kristensen et al, 2003). Nesta teoria, são utilizados dois sistemas de agressão:

reativa ou afetiva e instrumental. A agressão reativa seria um componente inato do organismo,

provocada por estímulos aversivos e servindo para atacar impulsivamente a fonte desses

estímulos ou qualquer outro alvo. A raiva, nesse sistema, não é só determinante, como

também facilitadora da resposta e a intensidade desta dependerá da avaliação cognitiva feita

pelo indivíduo acerca do estímulo que a provocou (Ribeiro, M., Sani., A; 2009). No sistema

de agressão instrumental, por outro lado, a agressão não é mais uma reação, mas, sim, um

comportamento aprendido com fim de alcançar recompensas ou evitar punições. Para

Tedeschi & Felson (1994, citados por Kristensen et al, 2003), “embora o sistema de agressão

instrumental estabeleça-se a partir do sistema anterior, é o sistema de agressão reativa

impulsiva aquele mais significativo na compreensão da agressão em humanos”. Entretanto,

mesmo teoricamente separados em dois sistemas, processos cognitivos envolvidos no ato

agressivo estão presentes em mecanismos semelhantes em ambos, diferenciando-se apenas em

seus objetivos (Dodge e Coie, 1987, citados por Kristensen et al, 2003) e Bushman e

Anderson (2001, citados por Ribeiro, M., Sani., A; 2009) propõe que a dicotomia entre os

dois modelos deva ser abandonada e formulados novos modelos teóricos inovadores que

representariam uma segunda geração de paradigmas.

Para o modelo de Processamento da Informação Social, uma resposta agressiva passa

por quatro processos mentais: a) codificação das pistas situacionais, b) representação e

interpretação dessas pistas, c) procura mental de possíveis respostas à situação e d) seleção de

uma resposta (Dodge & Coie, 1987, citados por Kristensen et al, 2003), e a origem de

diferentes tipos de agressão estão em défices de processamento nessas etapas (Dodge, 1986,

1991, citado por Ribeiro, M., Sani., A; 2009) e uma resposta agressiva ou atitude hostil e de

contra-ataque pode ser gerada a partir de uma atribuição de má intenção do outro, seja por

erro de percepção ou insuficiência na percepção de estímulos. A previsão de benefícios ou a

antecipação de obtenção de um benefício social ou material também podem originar

comportamentos agressivos, quando existe a crença de que a distribuição dos ganhos está em

segundo plano (ALMEIDA, 2006, citado por RIBEIRO, M., SANI., A; 2009).

Ainda neste modelo, enquanto Dodge apontou basicamente percepções e atribuições

do indivíduo, Huesmann (1986, citado por Ribeiro, M., Sani., A; 2009) sugerindo que

crianças ao presenciarem situações agressivas montam scrips mentais agressivos que uma vez

aprendidos podem ser recuperados a qualquer momento e utilizados como indicador do

comportamento, porém, sua permanência dependerá de quanto seu uso produzirá as

consequências desejadas pelo sujeito, fator chamado de aprendizagem instrumental

(Huesman, citado por Kristensen et al, 2003). Contudo, as respostas do ambiente às ações do

sujeito, quando ativados esses scripts, não constituem por si só o caráter de resposta punitivas

ou compensadoras, sendo que esse julgamento depende da interpretação que o indivíduo faz

delas e que nem sempre o sujeito atribui diretamente ao seu ato agressivo uma resposta

negativa dada a ele pela sociedade.

No Interacionismo Social é utilizado um modelo de decisão onde o sujeito (ou ator)

examina os meios alternativos para chegar a um destes três objetivos: “a) controlar

comportamento de outros, b) restaurar justiça e c) assegurar e proteger identidades” (Tedeschi

& Felson, 1994, citados por Kristensen et al, 2003) e sua decisão de uma ação agressiva ou

coerciva, como na terminologia dos autores, é direcionada pelas recompensas, custos e

probabilidades de resultados esperados (Anderson & Bushman, 2002, citados por Kristensen

et al, 2003). O uso do termo coerção pelos autores da teoria, Tedeschi e Felson (1994, citados

por Kristensen et al, 2003) é em vista de que, para os mesmos, a palavra “agressão” direciona

para fatores psicológicos e biológicos, influenciando para um negligenciamento dos objetivos

sociais dos atores com suas ações. Nesta abordagem temos um objetivo imediato, submissão,

associado a outro objetivo racional, motivo; havendo, desta forma, mesmo na agressão reativa

a possibilidade de existência um objetivo racional subjacente (Anderson & Bushman, 2002,

citados por Kristensen et al, 2003) e abre caminhos para o entendimento das descobertas de

uma maior propensão de cometer atos violentos em sujeitos com elevada auto-estima e com

conceitos bastante elevados sobre si mesmos do que em outros com auto-conceitos moderados

ou negativos (BAUMEISTER, SMART & BODEM, 1996, citados por RIBEIRO, M., SANI.,

A; 2009).

Para o último modelo explicativo citado, Modelo Geral da Agressão Baseado em

Estruturas do Conhecimento, (Anderson & Bushman, 2002; Bushman & Anderson, 2001,

citados por Ribeiro, M., Sani., A; 2009) as estruturas de conhecimento para a percepção,

interpretação, tomada de decisão e ação são os fundamentos. Enfatizados os subtipos de

estruturas de esquemas perceptuais, esquemas pessoais e scripts comportamentais, que se

desenvolvem a partir da experiência do indivíduo, influenciam a percepção do mesmo em

diferentes níveis e, conforme utilizadas, tornam-se automatizadas, sempre associadas a

estados afetivos e orientando a resposta comportamental do sujeito diante das situações

ambientais (Anderson & Bushman, 2002, citados por Ribeiro, M., Sani., A; 2009). O modelo

constitui-se em um ciclo de uma interação social continuada, sustentando-se na Psicologia

Social, em especial na vertente de Higgins (1990, citado por Kristensen et al, 2003), onde os

padrões e o conhecimento social são determinantes básicos da significância psicológica dos

episódios ou eventos, influenciando a reação das pessoas a eles. Esse modelo pode ser usado

como a tentativa de ligação entre os modelos de agressão reativa e instrumental e tem três

aspectos como pilares: a) inputs referentes à pessoa (traços, sexo, crenças, atitudes, valores,

objetivos e scripts) e à situação (incentivos, frustração, provocação, drogas, dor e desconforto

e dicas agressivas), b) rotas do estado internoatual (cognição, afetos, excitação) e c) resultados

decorrentes dos processos de avaliação (imediata ou automática e “secundária” ou controlada)

e decisão. Por ser um modelo de processo cíclico, os resultados finais desse processo servem

como inputs para uma próxima situação.

Resultante de todas essas teorias e das mudanças de perspectiva a respeito daquele

que comete um ato de agressão, a visão lançada sobre a constituição e possibilidade de

recuperação desse agressor também foi mudada no âmbito legal.

“Ninguém nasce criminoso, o que pode existir é uma relação entre a

personalidade, que é algo que, em parte, nasce com a pessoa e vai-se formando

durante a vivência do indivíduo, com um jogo de fatores e de momento que

impulsionam a pessoa a agir de determinada maneira”, afirma, o doutor em Psicologia

Clínica, Alvino Augusto de Sá (2009, citado em JUSBRASIL, 2009).

As raízes de uma conduta criminosa estão na história de vida do indivíduo, na

formação da criança e relações aprendidas entre ela e a sociedade, porém, não somente as

situações determinarão a conduta delinquente, mas também fatores psíquicos e constituintes

do sujeito, sendo que a ação violenta em si, seria uma conjunção desses fatores, relacionados

entre si (Alvino Augusto de Sá 2009, citado em JusBrasil, 2009). A questão da violência deve

ser abordada, então, de uma forma sistêmica, onde esse fenômeno passa a ser visto na sua

complexidade, em seus fatores individuais, relacionais, sociais e culturais, e não mais através

de explicações simplistas e reducionistas (ZUMA, 2004a).

Agressão de gênero – papéis engessados e estigmatizantes de vítima e agressor

A violência doméstica tem sido definida como um padrão de comportamentos

abusivos que envolve uma série de práticas de maus tratos (físicos, sexuais e/ou psicológicos),

onde as mulheres frequentemente são as vítimas preferenciais. Essa exposição pública da

violência que antes era conhecida somente no âmbito privado, por um lado, proporcionou voz

e socorro aos que vivem sob situações de agressão, mas, por outro lado, causou uma forte

identificação da mulher pelo viés da vitimização. Contudo, geralmente existe na apreensão de

práticas agressivas um misto de aprendizagem direta e vicariante, onde quando alguém

consegue o que quer ao maltratar outro sujeito e, adotando esse outro sujeito uma postura

submissa, reforçará positivamente essa ação, que tenderá a ocorrer novamente com a mesma

vítima, uma vez que quando o agressor tender a adotar a prática agressiva novamente

provavelmente selecionará como alvo a mesma pessoa com a qual obteve um “bom

resultado”, não necessitando mudar de vítima, tática ou prática para alcançar o fim almejado.

É o que se vê na maioria dos casos de violência doméstica, onde cerca de 80% das agredidas

reagem com sinais de passividade: choro, postura de autoproteção, sinais de sofrimento, entre

outros. (GAUDÊNCIO, 2012; ALVIM e SOUZA, L., 2005).

Essa postura adotada por agressor e vítima, contudo, fazem parte do que se espera

dentro de uma abordagem dicotômica como esta, onde ficam implícitos quais

comportamentos são esperados de ambos os papéis, como diz Cobb (1997, citado por Bronz,

2005), sobre a cultura da violência, explicando que aquele que se encontra no papel de vítima,

para assim continuar a ser caracterizada, não tem o direito de reação, dessa forma, estando

impedida por esse critério de definição, também, de efetuar uma mudança de posição e se

recuperar; por outro lado, aquele que se encontra no papel de agressor deve ser encarado pela

vítima como louco e/ou mau, não havendo nenhuma possibilidade de ser visto pela vítima

como um ser humano. Essa desumanização sistemática na qual está calcada a caracterização

do agressor pela vítima é o mesmo alicerce que mantém uma cultura de violência (BRONZ,

2005).

Nas relações de gênero, as novas configurações sociais passam a exigir dos atores

dos relacionamentos conjugais novas negociações que exigem um sistema de reciprocidade

mínimo para a convivência entre as partes envolvidas. Esse sistema é construído sócio-

historicamente e, por conta de valores tradicionais, pode vir juntamente com recorrentes

impossibilidades de troca e irromper em violência (Velho, 1996, citado por Alvim e Souza,

L., 2005) e mesmo que na maioria das vezes essas negociações sejam feitas pacificamente,

parte delas desviam-se para a agressão, baseando-se nas concepções fundamentadas sobre o

que é ser homem ou ser mulher (Féres-Carneiro, 1998, citado por Alvim e Souza, L., 2005).

Fundamentos esses que, de acordo com estudos recentes de gênero, sofreram poucas

mudanças (ALVIM e SOUZA, L., 2005).

De acordo com Giffin (1994, citada por Alvim e Souza, L., 2005) as idéias sobre

masculino e feminino são polarizadas e excludentes, onde geralmente é afirmado que o

homem é ativo e a mulher passiva, consequenciando na identificação de homens como

cultura/mente/razão e de mulheres como natureza/corpo/emoção. A mulher só ganharia o

status de ativa quando colocada numa posição de sedutora, tentadora de homens (Giffin,

1994, citada por Oliveira, D. e Souza, L., 2006). Essa concepção favorece ao surgimento de

fenômenos de agressão ao passo de que abre espaço para o julgamento de superioridade de

um em relação ao outro, que passa a ser coagido a submeter-se aos interesses e desejos

daquele que lhe é superior. Sendo assim, de acordo com o afirmado por Kimmel (1997 citado

e traduzido por Alvim e Souza, L., 2005), não se deve atribuir ao homem a opressão das

mulheres e minorias, mas sim, à receita do que é ser masculino que causou a crise de

masculinidade e todos estes outros desmandes. A aceitação de que os homens são

potencialmente mais fortes e agressivos, não só torna a agressão quando praticada por

mulheres, contra homens, mais justificável, na tese da autodefesa (Almeida, 2001; Jackson,

1999 citados por Alvim e Souza, L., 2005), como também dá ao homem uma permissividade

maior de cometer atos de violência (Nolasco, 2001; Cook, 1997, citados por Alvim e Souza,

L., 2005), posto que, nessa concepção, uma “natureza agressiva” estaria mais presente nos

homens do que nas mulheres.

Ao adotar uma postura mais abrangente com relação ao fenômeno da agressão de

gênero torna-se ainda mais gritante a necessidade de se lançar um olhar mais relacional sobre

as situações de agressão, abandonando os simples e finais enquadramentos de vítima e

agressor, mas vendo que na conjuntura dos relacionamentos, cada um traz em si mesmo suas

construções sócio-históricas, seus valores e seus scripts de ação e que todos, nessa visão

relacional, assumem e agem de acordo com papéis que implicitamente lhe são propostos e

reforçados socialmente de alguma forma. Nesta concepção é bastante alarmante que, estando

em busca de erradicar a violência contra a mulher, pesquisas sobre violência conjugal,

produzidas sob uma perspectiva feminista, tenham ignorado, ao longo da história de seu

movimento, as transformações produzidas no âmbito das masculinidades, colocando os

homens pura e simplesmente como violentos e agressores nos estudos em que os mesmos são

apontados como agentes causadores da violência conjugal (Nolasco, 2001, citado por Alvim e

Souza, L., 2005), que deixam de lado o fato de que, sendo homens e mulheres alvos e algozes

de situações de agressão, o foco deveria ser dado na dinâmica através das quais se constroem

tais relacionamentos e quais seus efeitos sobre os diversos aspectos na vida de todos os seus

envolvidos (ofensor e ofendido) (Alvim e Souza, L., 2005); e que existem raras análises que

consideram os aspectos relacionais desses fenômenos afim de obter uma melhor compreensão

da conjugalidade violenta (CASTRO; RIQUER, 2003; NOLASCO, 2001; MÉNDEZ, 1999;

GIDDENS, 1993 citados por ALVIM e SOUZA, L., 2005).

Bronz (2005) diz que essa visão estereotipada acerca do homem que vigora ainda

hoje, pode ser explicada ao se examinar a gênese dos estudos sobre gênero, que nasceram

juntamente com os movimentos feministas e que fizeram poucas pesquisas sobre

masculinidades e nos que foram feitos, a maior parte é voltada para a mulher e a compreensão

do homem é buscada pelo viés de compreensão de seu papel no patriarcalismo, onde muitas

vezes são abusivos em seu poder. A explicação da gênese das diferenças de gênero, feita por

Méndez (1995, citado por Bronz, 2005), que é bastante aceita entre feministas, estudiosos de

masculinidade e terapeutas de família, parece somente aumentar ainda mais o abismo que

separa os estudos de gênero de uma maior compreensão sobre as masculinidades e violência,

colocando também uma visão determinista sobre a forma de agir do homem, que estaria

encerrado dentro de sua própria formação de identidade, com pouquíssimas chances de

mudança, como lê-se abaixo:

“Garotos e Garotas iniciam seu projeto de desenvolvimento como pessoas

mediante uma definição de si mesmas em um contexto de relação com uma mulher

psicologicamente definida de acordo com o seu gênero [...] O desenvolvimento da

garotinha, então, é sobre a base da igualdade com a mãe e a aquisição da identidade do

garotinho se baseia na diferença [...] nos momentos que em que as mulheres buscam a

igualdade, o homem se sente intensamente ameaçado em sua masculinidade,

recorrendo à violência física para mostrar a diferença”.

Porém, se ao invés de adotarmos essa visão, de certo modo naturalista, entre

diferenças de identidade de homens e mulheres, abordarmos explicações de gênero sobre a

violência do homem contra a mulher, a complexidade da problemática do tema fica não

apenas mais exposta como também é colocado sobre a mulher um olhar bastante delicado e

contraditório (BRONZ, 2005).

De acordo com Zuma (2004a), se não lançarmos fora essa forma de abordar as

diferenças de gênero e a relação entre masculinidade e violência, não poderemos apresentar

uma colaboração efetiva para a problemática da violência intrafamiliar, chamada hoje, por

conta de seus impactos visíveis alarmantes, de violência contra a mulher (OLIVEIRA, J.,

SOUZA, L., 2006).

“No caso específico da violência intrafamiliar, não avançaremos em nosso

propósito de preveni-la, se não incluirmos, como objeto de atenção, todos os

envolvidos na situação. Dentro dos limites que o desequilíbrio de poder entre os

envolvidos impõe, temos que mobilizar recursos para todos: vítimas, autores de

violência, testemunhas, bem como para a rede comunitária imediata.” (ZUMA, 2004a)

Abordando o tema, o livro “Mas Ele Diz que me Ama...”, lançado no Canadá e

traduzido para 10 países, incluindo o Brasil, o escritor, Pelford, conta, de forma didática, os

detalhes da construção e manutenção da dinâmica violenta (Guimarães, Silva, E. e Maciel,

2007). Guimarães, Silva, E. e Maciel, em um trabalho proposto a respeito deste livro afim de

iniciar uma discussão acerca de violência intrafamiliar, baseiam-se na Teoria do Ciclo de

violência, proposta por Walker (1979, citado por Guimarães, Silva, E. e Maciel, 2007), onde a

relação violenta é proposta de uma forma sistêmica e dinâmica, em três fases: Construção da

Tensão: início de fatos menores e consideração desses fatos como coisas sob-controle e

justificáveis através de discursos racionais. Tensão Máxima: descontrole da situação e

agressões levadas ao extremo. Ocorre um remodelamento da dinâmica relacional, podendo

haver desde a separação, intervenção de terceiros ou manutenção da relação violenta. Lua de

Mel: reestruturação do relacionamento. Agressor relata desejo e promessas de mudança e o

relacionamento é reatado. A tendência de início de um novo ciclo vem da dinâmica e desgaste

relacionais. Na perpetuação do ciclo de violência há o que pode ser chamado de “duplo-

cego”, sendo retirada do campo de consciência da pessoa uma parte da experiência, de modo

que o sujeito fica incapaz seque de notar sua falta, assegurando-lhe tanto a sobrevivência

quanto as correntes que lhe mantém refém do ciclo relacional abusivo (Ravazzola, 1998

citado por Guimarães, Silva, E. e Maciel, 2007). O “duplo-cego” é abordado no livro de

Pelford favorecendo para que os personagens não vejam que não vêem a relação violenta e

suas consequências (Guimarães, Silva, E. e Maciel, 2007) e aponta para o fato de que a ajuda

de terceiros ou a intervenção psicossocial deve “promover junto à família uma reflexão sobre

o contexto abusivo, re-significando o sintoma da violência” (GUIMARÃES & COLS. 2006

citados por GUIMARÃES, SILVA, E. E MACIEL, 2007).

Quanto às formas de violência, Johnson (2009, citado por Gaudêncio, 2012) diz que

são três as modalidades basilares entre parceiros íntimos: terrorismo íntimo, resistência

violenta e violência situacional. Essas modalidades são resultado do paralelismo entre os

sexos, reconhecendo o sexo masculino como mais propenso à prática agressiva, e também

como resultado das tensões e conflitos de nível familiar. O terrorismo íntimo e a resistência

violenta se enquadram no esquema de controle e resistência, surgindo como resultados de um

contexto de exercício de controle sobre o parceiro, exercido de forma permanente e por um

longo prazo. A violência situacional é explicitada pelo autor do ato de violência quando a

vítima, comumente do sexo feminino, responde ao agressor também de forma violenta e numa

atitude agressiva. Essa reação violenta é observada na pesquisa de Alvim e Souza, L. (2005),

onde os participantes que eram vítimas da agressão acabavam por afirmar que o fato de

falarem coisas impulsivamente deveria ser considerado violência psicológica posto que

lançavam mão desse recurso ao invés de conversar sobre suas diferenças de interesses,

utilizando a agressão psicológica para revidar.

Ainda, de acordo com Guimarães, Silva, E. e Maciel (2007), a intervenção junto a

casais em situação de agressão deve lançar um olhar sobre as crenças e discursos

compartilhados entre os envolvidos na questão, os quais são contribuintes para que seja

mantido o padrão relacional abusivo, e de forma a entender que a violência conjugal é um

processo cíclico, relacional e progressivo e adotando, de acordo com essa visão, nova re-

significação do contexto de intervenção e novas formas de intervenção.

Para que o trabalho das redes de atenção ocorra dessa forma, contudo, é preciso que

haja uma nova visão sobre o homem e masculinidade, complexificando o tema e o abordando

através de uma perspectiva, no caso abaixo, construcionista, sistêmica e de gênero.

Construções de Gênero: Masculinidade

Bronz (2005) afirma que a sociedade vê os homens como violentos por natureza,

sendo fadada ao fracasso qualquer tentativa de mudar esse quadro, mas que, através de uma

reflexão dos estudos sobre gênero, podemos ver que isso não é um reflexo da verdade. Os

movimentos feministas vêm alcançando significativas mudanças nas relações de gênero,

contudo, por estarmos ainda no meio do andamento da mudança, não é possível afirmar se

estamos rumando para um novo modelo de organização social, abandonando o modelo

patriarcal, ou se simplesmente estamos acomodando o que já existe (OLIVEIRA, J., SOUZA,

L., 2006).

Desde que nascemos somos expostos à cultura na qual vivemos, e somos ensinados a

viver essa cultura por nossas famílias. O machismo intervém na educação da infância,

construindo preconceitos sexistas ao, por exemplo, orientar como brincadeira de menina

aquela que a coloca em casa, no exercício de cuidar, e como brincadeira de menino aquela

que o coloca na rua (lutas, carros), desde então alicerçando seus papéis de competitivo e

provedor, ao ponto de termos uma situação em que “vários estudos atuais confirmam que ‘ser

pai’ para os homens de baixa renda significa assumir a responsabilidade pela sustentação do

filho, não sendo resultado automático da participação na geração de uma criança” (Giffin,

1998, citado por Oliveira, J., Souza, L., 2006). Ora, se o espaço do homem é na rua é porque

de alguma forma ele foi lançado para fora de casa, ele não tem direito à intimidade doméstica.

Dessa forma, o homem é violentado desde cedo em sua humanidade, tornando-se também

propício a se tornar violento para com a Humanidade (OLIVEIRA, J., SOUZA, L., 2006).

De acordo com Oliveira (2006), é negado ao homem o espaço privado e negado à

mulher o espaço público, sendo que cada um destes se torna esferas de poder particulares de

cada um dos gêneros. O movimento feminista, contudo, vem galgando espaços públicos de

atuação para as mulheres e acabando por lançar o homem em um espaço obscuro e sem

“utilidade”, quando analisado pelo padrão ainda atual, de provedor, e de acordo com Giffin

(1998, citado por Oliveira, J., Souza, L., 2006), diante das transformações globais sofridas

pelos homens e sem novas referências identitárias que as nomeiem, “sem palavras, novas

palavras para nomear, os homens agem com violência”.

Ainda, ao homem que é criado diante de crenças inquestionáveis, e muitas vezes

veladas, porém não menos presentes ou imperativas, a respeito de quem deve ser e do que é

esperado dele (insensibilidade emocional, tida como força – “homem não chora” –, frieza,

autoritarismo, autonomia, voltado para a ação em detrimento a emoções – para “agir como um

homem e não como uma menininha” –, entre outros), foi dado pouco ou nenhum recurso para

o conhecimento das próprias emoções, restando assim, poucas maneiras de lidar com elas e

refletir sobre elas nos momentos de conflito, propiciando a ele o uso da linguagem que lhe foi

mais imputada como própria: da força e da ação, que, desvinculadas de uma compreensão

emocional, facilmente se tornam violentas e levando a que, diante desse “analfabetismo

emocional”, não haja nele a capacidade para a revisão dos efeitos de suas ações (OLIVEIRA,

J., SOUZA, L., 2006).

Decorrentes dessa criação sem espaço para os próprios sentimentos, o homem tem a

tendência de ter medo de seus sentimentos sejam rejeitados pelos outros, gerando uma grande

resistência às oportunidades de expô-los ou compartilhá-los. O chavão “Homem que é homem

não chora” afasta o homem de sua própria fragilidade e nega a ele a possibilidade de não ser

onipotente, pois, para não chorar, o homem, além de se embrutecer, nega a si mesmo a

possibilidade de recorrer à ajuda e acirram o conflito interno do mesmo quando encontrado

em situações de impotência (OLIVEIRA, J., SOUZA, L., 2006).

Sobre a utilidade das classificações de gênero, Oliveira classifica que

“o papel de gênero é um recurso de pertencimento que oferece um modelo

para a individuação enquanto esta não se sustenta por si própria. Tornar-se

homem é individuar-se, discriminar-se das suas origens; mas seguir o papel

de gênero é uma forma de se sentir homem, sem discriminar-se de suas

origens, apenas seguindo o que elas preconizam. Como a individuação

completa excluiria o pertencimento, ela nunca se dá totalmente, e todos nós

vivemos essa contradição de seguir um modelo para nos discriminarmos”.

Dentro dessa análise de esferas de poder, público/homem e privado/mulher, talvez

possamos encontrar uma possibilidade de ação na esfera doméstica: a de educar os filhos de

ambos os sexos, de uma forma que tenham um melhor trânsito entre essas duas esferas,

possibilitando que homens e mulheres se desenvolvam e equilibrem suas potências, como

complementadoras, e não excludentes, abrindo mão das prepotências compensatórias que se

fazem necessárias para ambos hoje, nessa luta por espaço e soberania (OLIVEIRA, J.,

SOUZA, L., 2006).

A agressão intrafamiliar como um problema social

Estamos expostos e submetidos a cada vez mais fatores estressantes: altas taxas de

desemprego, necessidade de mais horas de trabalho por dia, notícias bombardeadas em nossos

lares através da mídia com respeito a guerras, tráfico de drogas e corrupção, autorização das

polícias para agirem de forma coercitiva com a população, necessidade de capacitação cada

vez mais constante em frente a um sistema de “obsoletização” de coisas e pessoas, numa

constante batalha entre o humano e o tecnológico, entre outros. Todos esses fatores são

impulsionadores da violência doméstica. Mas, tanto quanto ou ainda mais fundamental que o

estudo desses fatores pós-modernos na constituição da violência, está a organização patriarcal

da sociedade. Esse modelo de estruturação é algo naturalizado para a sociedade e tem

intrínseco a si uma estrutura de dominação violenta, que dá a luz a todas as outras formas de

violência que vivenciamos atualmente (OLIVEIRA, J., SOUZA, L., 2006).

Em todas as análises, deve ser levada em conta a característica social do ser humano,

e o fato de que vivemos submersos em uma cultura que possibilita a ação violenta entre seus

membros, uma cultura conservadora da violência que é refletida e retroalimentada pelas

famílias. Na violência intrafamiliar, deve-se sempre analisar o ato e o processo, sendo que o

ato tem sempre um autor, uma vítima e, geralmente uma ou mais testemunhas. No processo

está a possibilitação do ato, dos quais todos participam, pois, todos os dias mantemos a

violência na cultura por nós compartilhada. Porém, essa cultura foi construída por nós

mesmos – através de conceitos expressos desde os ditos populares, como o de que “homem

não chora” até as nossas leis, como a figura de “legítima defesa da honra”, que era utilizada

até a década de 70 por maridos, para justificarem atos agressivos com suas esposas –, então

também podemos desconstruí-la a partir de uma postura ativa de linguagem (ZUMA, 2004a).

Dessa forma, a questão da agressão doméstica passa a não ser mais um problema

privado, concernente somente aos atores da relação conjugal, mas, também, de toda a

sociedade que a mantém e replica seus “ensinamentos” geração após geração. É necessária a

sensibilização da população afim de que não seja reiterada a violência de menosprezar,

ridicularizar ou negar a problemática da violência familiar, bem como a conscientização de

que violência é toda ação que desconsidera a legitimidade da diferença e que tenta impor ao

outro o que será realidade para ele, conseguindo perceber a violência não só nas situações

extremas, mas também em suas manifestações sutis, travestidas de educação ou proteção

(PAKMAN, 1993, citado por ZUMA, 2004a).

A partir do conceito de redes definido por Sluzki (1997, citado por Zuma, 2004a) –

sendo estas entendidas como “a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como

significativas ou define como diferenciadas da massa anônima da sociedade” – podemos

mapear aquela que envolve uma situação ao identificarmos dentro dela os atores sociais

envolvidos. Essas redes tem um imenso poder sobre a individualidade do sujeito, uma vez que

é a partir delas que formamos nosso conceito de identidade e de auto-imagem.

“Nos restringindo ao recorte da violência intrafamiliar contra as mulheres e

contra as crianças e adolescentes, teremos: a família nuclear, a família extensa, os

amigos, a vizinhança ou comunidade, o policial da delegacia de mulheres ou da

delegacia de proteção à criança e ao adolescente, o conselheiro tutelar, o médico do

pronto-socorro e odo IML, os profissionais do centro de atenção à mulher ou de

defesa da criança e do adolescente, os serventuários da justiça, o promotor público, o

defensor ou advogado, o juiz e o legislador. [...] Podemos categorizar esses atores

sociais em quatro tipos de rede: a familiar, a comunitária, a de justiça e a de atenção

ou de serviços.” (ZUMA, 2004a)

As redes familiar e comunitária são as mais próximas e, portanto, as primeiras nas

quais é procurada a ajuda, contudo, geralmente, os integrantes da comunidade, ao se

depararem com a posição de serem testemunhas de uma agressão familiar, se encontram em

um dilema entre seguir o dito popular de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a

colher”, porque depois da briga “os dois fazem as pazes e quem está de fora fica de vilão”,

socorrerem, acolherem ou aconselharem, ou até mesmo de denunciarem ou não. A

participação ativa dessas redes familiar e comunitária, juntamente com as redes de justiça e de

atenção ou serviços, no acolhimento do núcleo envolvido na agressão, sem preconceitos

relacionados à situação, são de extrema importância para as famílias em situação de violência,

uma vez que estas tendem, por vergonha e medo desses preconceitos, a se isolar tanto da

comunidade, quanto entre seus próprios membros, vivendo uma rotina dominada pelo silêncio

para evitar reviver ou relembrar seu sofrimento. Geralmente mais esquecida, deve ser trazida

para o debate também a responsabilidade social das empesas e associações comerciais e

industriais, que devem integrar-se ao debate assumindo uma postura ativa na interrupção e

prevenção da violência familiar e de gênero (Zuma, 2004a), mesmo que não por altruísmo,

mas talvez por lembrar que “um em cada cinco dias em que as mulheres faltam ao trabalho é

motivado pela violência doméstica” (BANCO MUNDIAL, 1998, citado por ZUMA, 2004a).

Governos também devem atuar mais ativamente no tocante à violência, pois é sabido

que a mesma, como um todo, tem sido um fator de grande peso para os cofres da saúde

pública, a ponto de a 49ª Assembléia Mundial da Saúde (1996, citada por Zuma, 2005) ter

apontado a violência como um dos principais problemas mundiais de saúde pública e de a

própria Organização Mundial de Saúde (OMS) ter feito um Relatório Mundial de Saúde

(OMS, 2002) afim de abordar o tema da violência e tratar também da violência doméstica,

que no relatório é entendida dentro do grupo de violências (auto-infligida, intrapessoal ou

coletiva) como intrapessoal (Zuma, 2005) e, no tocante ao tipo de abordagem teórica sobre a

violência que se deve ter ao trabalhar com o tema violência dentro da saúde pública, explica

que “a saúde pública é, acima de tudo, caracterizada por sua ênfase na prevenção. Em vez de

simplesmente aceitar ou reagir à violência, seu ponto de partida é a forte convicção de que

tanto o comportamento violento quanto suas consequências (sic) podem ser evitados” (OMS,

2002, citado por ZUMA, 2005).

Grupos de Reflexão para homens que cometem atos de agressão contra a

mulher: projetos encerrados, ativos e barrados – uma nova forma de combate e

prevenção à violência doméstica

Pioneiro, no Brasil, em uma abordagem da violência doméstica não somente pelo

viés de proteção à mulher, mas sob um enfoque sistêmico e de gênero, olhando para os

estudos das masculinidades, o Instituto Noos, localizado no Rio de Janeiro, teve o seu

primeiro grupo de reflexão com homens autores de violência contra a mulher em 1999, no

Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Estado do Rio de Janeiro (CEDIM), e um dos

desdobramentos desse movimento foi a criação do Projeto de Aplicação de Penas e Medidas

Alternativas aos Homens Autores de Violência Intrafamiliar e de Gênero, cujo objetivo era

verificar se os grupos de reflexão poderiam servir, junto com uma pena mais branda e que não

implicasse o cerceamento de liberdade dos réus, como um recurso para a justiça, que se via

diante de cada vez mais casos de acusados de violência contra a mulher. Foi a primeira vez no

país onde foi utilizado o recurso de medidas e penas alternativas, com o apoio do Instituto

Promundo e o Centro Especial de Orientação à Mulher Zuzu Angel (CEOM) e do Ministério

da Justiça (BRONZ, 2005).

De acordo com Oliveira (2006), a reflexão em grupo é utilizada como uma

ferramenta transformadora da dinâmica de violência, dentro da perspectiva do

construcionismo social.

“[...] do mesmo modo que o viver no conversar substituiu o mundo particular

em que vivemos, o viver no conversar nos permite mudar de mundo quando

entramos na reflexão sobre o nosso viver. A reflexão é uma operação de

linguagem que trata a própria circunstância como um objeto que se olha e se

pondera, e sobre a qual se pode atuar. Para que a reflexão se dê, no entanto,

se requer uma operação no emocionar que solta o apego à própria

circunstância e a abre ao olhar reflexivo. A reflexão é o ato máximo de

liberdade e, de certo modo, o dom máximo do viver humano. [...] A reflexão

nos permite sair de qualquer armadilha. Mas, para refletir, devemos operar na

biologia do amor que solta o apego à verdade ao admitir a legitimidade do

outro.” (MATURANA, 1995, citado por OLIVEIRA, J., SOUZA, L., 2006)

Sobre o processo de reflexão, Knights (1985, citado por Oliveira, J., Souza, L.,

2006), toda reflexão necessita de um refletor apropriado, sendo um processo mediado

socialmente e que se realiza na atenção da outra pessoa, e que envolve atividades intelectuais

e afetivas que são empregadas pelos sujeitos a fim de explorar suas experiências e como

forma de gerar novos entendimentos e avaliações, sendo assim, a reflexão, necessariamente

criativa, e não repetitiva (Oliveira, J., Souza, L., 2006), passando aquele que reflete sempre

por três fases (Boud, Keogh e Walker, 1985, citados por Oliveira, J., Souza, L., 2006):

retornando à experiência (relembrando os aspectos mais importantes da experiência e

narrando aos demais); ocupando-se dos sentimentos (acomodando os sentimentos positivos e

negativos relativos à experiência); e reavaliando a experiência (associando novos

conhecimentos e integrando-os à estrutura conceitual). Através desse diálogo interno

permeado por um sentir-conhecer-agir cíclicos, as novas descrições do observador.

Hoje os grupos de atendimento a homens que cometem atos de agressão contra

mulheres estão em maior número, porém, ainda assim, continuam sendo poucos se

comparados com a rede exclusiva de atendimento a mulher. Os homens participantes dos

grupos são a eles encaminhados por proposta judicial, como alternativa para suspensão do

processo, cumprimento da pena alternativa¹ ou redução de pena (conforme informado pela

psicóloga e coordenadora do Projeto Caminhos, Renata Maciel de Freitas, em Londrina/PR)..

De acordo com reportagem pulicada em várias mídias sociais¹ no ano de 1999, o

Juizado Especial Criminal da Violência Doméstica contra a Mulher de São Gonçalo, RJ,

publicou que, dos homens autores de violência contra a mulher que participam de grupos de

reflexão, menos de 2% voltam a agredir suas companheiras. O índice de sucesso desses

grupos na mudança de conduta dos homens autores de agressão se repetem também em São

Caetano, no ABC Paulista, onde, em dois anos e meio de existência dos grupos, houve apenas

um reincidente, e em Nova Iguaçú, na Baixada Fluminense, onde o percentual de reincidência

foi de 4%. Esse percentual de reincidência em locais onde não existem os grupos de reflexão

são bem mais altos, chegando a 75% em São Luiz/MA, conforme revelado pela Vara Especial

de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da cidade, taxa mais alta que a

reincidência criminal geral que, no Estado de São Paulo é de 58% e em todo o país é de 70%.

Centros de educação e reabilitação de agressores estão previstos no artigo 30º da Lei

11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, mas, tanto quanto os serviços

especializados de atendimento à mulher agredida, ainda são pouquíssimos no País¹. Os

esforços de criação ou manutenção destes centros sofrem com a resistência da sociedade, das

entidades, do Judiciário e de alguns coletivos feministas, os quais não enxergam com olhos

complacentes as penas alternativas, em casos de violência doméstica contra a mulher.

Em Curitiba/PR, foi feito e aprovado um projeto para o início de um grupo de

reflexão com homens autores de violência contra a mulher, porém logo veio o veto que

desaprovou a formulação da lei que previa um atendimento multidisciplinar ao agressor no

município de Curitiba – PR. No documento do veto, foi descrito que “não compete ao

Legislativo a iniciativa de projeto de lei que trate sobre política pública local, nesse caso a

violência doméstica, posto se tratar de competência do Executivo” (Câmara Municipal de

Curitiba, 2013). Em entrevista ao Blog “Mulherio” do Jornal Gazeta do Povo, a secretária

nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Aparecida Gonçalves, afirmou

que considera o agressor como criminoso. “Para o agressor, não é atendimento psicossocial, é

um serviço de responsabilidade e reeducação, que envolve outra perspectiva, outro olhar, com

outros profissionais.” afirmou Aparecida². No Paraná, há a preocupação maior com o

atendimento à mulher vítima de agressão, já que seu número cresce e o atendimento deve ser

expandido para atender a nova demanda. A criação da Coordenação das Delegacias da Mulher

no estado do Paraná foi feita justamente para padronizar as delegacias paranaenses, medida

essa tomada após a repercussão do caso da enfermeira que sofreu estupro coletivo em Curitiba

e que afirmou não ter sido atendida pela Delegacia da mulher. Um levantamento feito sobre as

delegacias da mulher no estado mostrou que elas, mesmo sendo o alvo principal das

campanhas de abordagem, tratamento de sequelas e prevenção da violência doméstica, não

contam com atendimento multidisciplinar, que seria de suma importância para a vítima, além

da acumulação de funções dos delegados em outros distritos, que acarreta na carência no

atendimento às vítimas.

A iniciativa foi feita pelo NEVICOM (Núcleo de Estudos da Violência Doméstica e

Familiar contra a Mulher) e o objetivo seria, segundo Luana Márcia de Oliveira Billerbeck,

uma das coordenadoras do Nevicom, a reflexão, reeducação e responsabilização dos homens

autores desse tipo de violência, e não terapia³.

No Acre, existe o Projeto Serviço de Educação e Responsabilização para Homens

Autores de Violência Doméstica (SER Homem), financiado pelo Ministério da Justiça e

executado pela Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), que trabalha

com os homens através de dinâmicas de grupo e oferece apoio psicossocial aos homens

autores de violência contra a mulher através de uma equipe composta por assistentes sociais e

psicólogos. De acordo com a coordenadora do projeto, a assistente social Luiza Barros, “o

principal objetivo do projeto é fazer com que esses homens autores de violência reflitam sobre

os crimes cometidos e busquem uma mudança de comportamento para que vivam em

harmonia com a família”. O SER Homem foi firmado pelo Tribunal de Justiça do Estado (TJ)

como forma de cumprimento de pena alternativa no Acre em dezembro de 2012 e entrou em

vigor neste ano, em março de 20135, prevendo o atendimento de 150 homens, divididos em

grupos de 15, num prazo limite de 18 meses para a execução do projeto, onde será realizado

um relatório com objetivo de avaliar o trabalho desenvolvido4.

Em Londrina, PR, foi iniciado o trâmite para aprovação do Projeto Caminhos, de

grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher, em 2011. O Grupo

Caminhos iniciou suas atividades graças à parceria do Escritório de Aplicação e Assuntos

Jurídicos da UEL com o Ministério da Justiça, objetivando abordar com esses homens, que

devem ingressar no projeto através de indicação pela Vara Maria da Penha, questões

relacionadas a gênero, sentimentos, situações familiares e incentivar a reflexão sobre a

agressão. O grupo conta com uma equipe multidisciplinar de uma advogada, uma psicóloga e

uma assistente social. De acordo com sua coordenadora, a psicóloga Renata Maciel de Freitas,

a inserção desses homens na participação de grupos reflexivos “é a melhor maneira de mudar

o furuto”6.

De acordo com Maciel e Cabrera (2011), a abordagem dos homens autores de

violência contra a mulher é algo complexo, porém, isso não pode ser usado como desculpa

para que naturalizemos o fenômeno, pelo fato de isso se apresentar a nós como uma saída

mais cômoda. Cita, também, entre as várias resistências a esse tipo de trabalho, que na ânsia

de sermos justos (fazermos justiça), acabamos sendo violentos também, ao não

possibilitarmos ao sujeito o pensar no seu ato violento, tirando dele a possibilidade de

interromper o ciclo que o levou a ter esse tipo de resposta.

Em 2011, o tema da agressão contra a mulher foi abordado no programa Profissão

Repórter, da Rede Globo de Televisão, abordando, entre outras coisas, essa iniciativa de se ter

grupos de reflexão para homens autores de violência contra a mulher. O link para acesso ao

vídeo pode ser encontrado no final desse trabalho, em referências.

A postura do psicólogo diante das situações de agressão intrafamiliar

Dentro dessa conjuntura onde vem sendo levantada cada vez mais a necessidade de

atendimento também ao autor da agressão, Oliveira, D. e Souza, L. (2006), realizam uma

pesquisa onde foram levantadas as visões de psicólogos a respeito da violência conjugal. Essa

pesquisa e também os dados levantados por ela são de significativa importância posto que

demonstram a as concepções dos psicólogos que fazem parte da rede de articulação do

planejamento das atividades, avaliação e encaminhamentos a outros serviços, destinados a

esta população.

Como gênero, a pesquisa constatou que os psicólogos entendem como uma relação

de poder construída socialmente e ainda fortemente influenciado pelos papéis tradicionais de

homem-provedor e mulher-cuidadora e que a violência conjugal, agressões físicas e/ou

psicológicas, resultam de um processo de opressão, mediado por esse processo de poder

desigual entre homens e mulheres, e que pode ser imposto ou sofrido por ambas as partes,

independentemente de gênero (OLIVEIRA, D. e SOUZA, L., 2006).

Por poder, Pakman (1993, citado por Oliveira, J., Souza, L., 2006) entende

“um contexto de interação que permite que certos membros de um sistema social dado

definam o que é que vai ser validado como real para outros membros do sistema. Essa

definição, que pode ou não ser expressa lingüisticamente (sic), estará sempre

encarnada em práticas cotidianas que geram, mantêm ou reforçam essa “realidade”

assim criada. Esse poder pode ser eventualmente instrumentalizado através da

violência, entendida como aquele contexto de interação em que alguns membros de

um sistema social dado são negados ou invalidados como sujeitos sociais, emissores

únicos e originais de linguagem e atores de uma história intransferível”.

A maioria dos psicólogos entende que ainda hoje, mesmo tendo conquistado espaço

no mercado de trabalho e decisões políticas, a mulher ainda ocupa espaço de submissão e que

muitas vezes os estudos priorizam o sofrimento feminino, favorecendo o discurso dicotômico,

onde os custos dessa agressão conjugal é todo das mulheres e, mesmo havendo psicólogos

que tenham mostrado sensibilidade ao reconhecer a participação tanto masculina quanto

feminina na violência conjugal, de forma geral, a mulher é entendida como um ser passivo,

subalterno, diante do poderio masculino e que mesmo quando provoca, bate ou ameaça,

estaria apenas respondendo ás agressões masculinas, aproximando-se, assim, das concepções

de outros autores (Saffioti, 1999; Saffioti e Almeida, 2003 e Barcelos ,2003, citados por

Oliveira, J., Souza, L., 2006) que acreditam que os limites para atuação das mulheres é fixado

pelos homens, que determinam as regras da relação, aplicando, novamente, o prejuízo trazido

pelos papéis de gênero apenas para as mulheres.

Os psicólogos avaliados, talvez por trabalharem diariamente no atendimento a

mulheres que sofrem agressões, mostraram uma postura complacente à causa feminina, de

modo que, mesmo quando defendem o atendimento ao homem, o taxam como agressor, e

defendem que seu tratamento e acompanhamento deve ser feito para que futuramente não haja

outras agressões contra outras mulheres (Ynoub, 1998, citado por Oliveira, J., Souza, L.,

2006). Realmente, não pode-se negar que a mulher tem sofrido danos mais visíveis

decorrentes da agressão intrafamiliar do que os homens, como foi colocado no Relatório

Mundial da Saúde (OMS, 2002) ao se abordar o tema de que os transtornos psicológicos e

medicamentos psicotrópicos eram mais comuns em mulheres do que em homens:

“Outra razão das diferenças sexuais nas perturbações mentais comuns é a

elevada taxa de violência doméstica e sexual a que as mulheres estão sujeitas. Ocorre

violência doméstica em todas as regiões do mundo, e as mulheres suportam a maior

parte da sua carga [...]. Uma resenha de estudos [...] verificou que a prevalência de

violência doméstica durante a vida situa-se entre 16% e 50%. É comum também a

violência sexual. Já se estimou que uma em cada cinco mulheres sofre estupro ou

tentativa de estupro durante a sua vida. Essas ocorrências traumáticas têm

consequências psicológicas, sendo as mais comuns as perturbações depressivas e as

devidas à ansiedade. Um estudo recente feito na Nicarágua mostrou que as mulheres

com angústia emocional tinham seis vezes mais probabilidades de dar parte de maus-

tratos conjugais, em comparação com as mulheres sem essa angústia [...]. Além disso,

as mulheres que sofreram sevícias graves, durante o último ano, mostraram 10 vezes

mais probabilidades de passar por angústia emocional do que as mulheres que nunca

tinham sofrido maus tratos.”

Contudo, é de se ponderar que homens e mulheres, mesmo em desigualdade de

poderes, constroem juntos as relações violentas e que, portanto, ambos se agridem e sofrem

com ela. O não-entendimento disso leva a uma abordagem psicológica incapaz de verificar os

múltiplos fatores que constituem uma conjugalidade violenta além de contribuir para o

silenciamento dos homens que se sentem frágeis, machucados ou violentados, mantendo uma

cultura enaltecedora da virilidade masculina e fragilidade feminina. Essa visão também se

esquece de que em muitos momentos as próprias mulheres têm artifícios pelos quais mantém

os padrões de agressão de um relacionamento violento.

“[...] Foi colocado em primeiro plano à necessidade de castigar o abuso da

força física que desemboca em atos violentos do homem contra a mulher. A arma é

usada a partir da desigualdade. No entanto, o que acontece com o resto das armas

desta guerra? No domínio da violência psicológica podemos ver a mulher como

desigual, vulnerável, inferior? Somos nós as mulheres incapazes de ser violentas?

Podemos simplesmente não nos responsabilizar por nossos atos de violência

psicológica? [...] me atreveria em dizer que, com não pouca freqüência (sic) e talvez

como compensação a desigualdade física, a mulher tende a ser mais precisa em seus

golpes de violência psicológica” (MÉNDEZ, 1995, citada por BRONZ, 2005).

Como forma de transformar a prática psicológica Oliveira (2006) aponta a adoção de

uma perspectiva relacional como a saída, onde deve ser exigido o atendimento a todos os

envolvidos na situação de violência conjugal, de forma que homens e mulheres inseridos

nessas relações conjugais violentas possam compartilhar seus sentimentos e lutar pelo

exercício do respeito mútuo, assumindo seus papéis como responsáveis pela construção de

relações conjugais de maior equidade e qualidade, e Rapizo (1998, citada por ZUMA, 2004b)

aponta que para a prática terapêutica ser eficaz, “o interesse dos terapeutas desloca-se assim

das seqüências (sic) de comportamento a serem modificadas para os processos de construção

da realidade e identidade familiar, para os significados gerados no sistema, incluindo nele o

terapeuta” devendo-se abandonar o modelo médico de atendimento, que traz em si

incorporadas práticas de diagnóstico, modelos etiológico e categorias psicopatológicas, como

ilustrado por Maturana (1995, citado por Zuma, 2004b): “a desejabilidade ou indesejabilidade

de cada comportamento é socialmente determinada [...] não podemos afirmar que qualquer

coisa é boa ou má, sã ou insana por si própria, como se estas fossem sua qualidade

constitutivas e intrínsecas”.

Cesca (2004), afirma que somente testes psicológicos e leis jurídicas não podem dar

conta da imensidão existente na configuração familiar, uma vez que se insere no subjetivo que

não pode ser abordado pela mensuração ou aplicação de normas. Os profissionais devem,

então, adotar uma abordagem mais flexível, estando dispostos a criar novos caminhos e

alternativas para tratar, e não punir, a violência familiar, da forma mais saudável possível.

Devem ser investigadas as causas e o trabalho direcionado de tal forma que possibilite a

reestruturação familiar. Porém, percebe-se um baixo índice de atitudes a esse respeito,

florescido da crença de que, diante de uma problemática tão complexa, pouco se pode fazer

para obter resultados positivos de real mudança. Os profissionais envolvidos na rede de

atenção devem ser melhor capacitados não só em suas funções bem como em seus alicerces

pessoais e, em especial o psicólogo, que trás em seu papel a responsabilidade de ser um

agenda facilitador da saúde, deve procurar garantir os direitos fundamentais de todos os

indivíduos, visando a saúde mental e busca da cidadania. Caso contrário, será apenas mais um

agente repressor.

Finalizando sua pesquisa, Oliveira (2006), nos deixa um questionamento bastante

válido quanto às práticas e conceitos dos próprios psicólogos, no que se refere aos serviços de

atenção que dão maior prioridade, forma de atendimento e relacionamento com os que lhe

procuram e participação ativa na afirmação e manutenção ou transformação e criação de

formas de relacionamento entre gêneros:

“Se a violência conjugal é uma produção histórica sustentada por questões

culturais que regem o funcionamento das relações, as diversas combinações entre

afeto, valores, crenças e condições materiais devem ser investigadas. Quando apenas

as mulheres são “acolhidas”, “fortalecidas” e “empoderadas” pelo atendimento

psicológico, ou mesmo quando os homens são atendidos, mas unicamente na condição

de agressores que precisam ser conscientizados para que outras mulheres não sejam

violentadas, nos perguntamos: que violência está sendo trabalhada e que violência está

sendo produzida pelos psicólogos?”

JUSTIFICATIVA

Este projeto optou pelo tema da violência contra a mulher pelo viés do homem autor

de agressão em vista de que acreditamos não ser possível tratar um problema sem analisar

todos seus ângulos de vista e entende a violência não como algo intrínseco ao ser e

incontrolável em seu impulso, mas, sim, como algo que deve ser problematizado para que seja

abordado dentro de sua complexidade, que é perpassada por fatores sociais, culturais,

econômicos e que ocorre de forma relacional, tendo assim, todos os sujeitos nela envolvidos

como seus autores, que necessitam ser abordados, ouvidos e atendidos.

OBJETIVOS

Esse projeto tem como objetivo, a partir da discussão e do levantamento da

necessidade de conscientização e desesteriotipação, referentes ao agressor, tanto da

comunidade em geral, quanto dos próprios envolvidos na relação violenta e até mesmo os

psicólogos da rede de atenção, que prestam atendimento às vítimas de agressão, a confecção

de dois tipos de materiais gráficos (folderes ou panfletos) e multimídias e um tipo de material

multimídia: um material gráfico e multimídia voltado para a instigação de uma mudança de

perspectiva dos psicólogos com relação a abordagem do homem que comete agressão a

mulher e a construção da masculinidade, a ser distribuído e divulgado entre os psicólogos e

estudantes de psicologia, em faculdades, universidades e conselhos de classe; um material

gráfico e multimídia para os envolvidos em situações de violência doméstica e comunidades

de risco, a ser distribuído e divulgado nas Delegacias da Mulher, Centros de Apoio à Mulher,

Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializado

em Assistência Social (CREAS) e Vara da Família (6ª Vara, no Fórum Municipal de

Londrina) com a divulgação do projeto caminhos e com informações que ampliem a visão

desses sujeitos com relação à violência (papéis de vítima e agressor) e à construção da

identidade de gênero, que pode ser um dos fatores geradores de violência; e um material

multimídia a ser divulgado nas redes sociais e websites dos Conselhos de Psicologia,

Assistência Social e Direito (OAB e sites relacionados ao tema), abordando as construções de

gênero sob o viés de estudos das masculinidades e abrindo a visão para a opressão lançada

também sobre o homem, por conta dessas construções, tais quais estão feitas, propondo uma

nova forma de abordagem dos sujeitos envolvidos em situações de violência doméstica e

propondo um novo paradigma na visão do masculino.

Almeja-se conseguir patrocínio de órgãos, entidades, projetos públicos ou privados,

instituições de ensino, empresas e áreas governamentais que estejam interessados em

colaborar com a prevenção e erradicação da agressão a mulher, para a confecção dos materiais

gráficos supracitados.

RESULTADOS ESPERADOS

Este projeto espera conseguir atingir a comunidade envolvida em relações violentas

abrindo-lhes a visão para a existência de um novo caminho, onde a não-violência é possível e

causando-lhes mudança de perspectiva quando a estereótipos de vítima e agressor, gerando

impacto de mudança quando a passividade da execução desses papéis, abrindo caminho para

que aflore a consciência entre os envolvidos de que todos são, juntos, não só atores, mas,

também, autores das situações vivenciadas. Espera-se também que seja lançado um novo

olhar sobre a função e importância de uma mudança na forma de educação das crianças, de

ambos os sexos, de forma com que haja mais coesão e coalisão no trato entre ambos, abrindo

perspectivas de entrada de um para o mundo do outro, e oportunizando a liberdade para que as

identidades sejam construídas fora da forma de gêneros que, tal qual estão feitas hoje, servem

de mantenedoras para a cultura da violência.

É objetivado também alcançar a comunidade de psicólogos, formados e em

formação, para a abertura do debate a respeito da necessidade de uma nova abordagem no

tocante à violência doméstica, sob o viés não só de violência contra a mulher, mas, sim, de

violência relacional, onde a tensão é mantida por todos os participantes da situação, de forma

também a lançar uma nova luz à visão dos psicólogos quanto a possibilidade de mudança dos

homens formados em condições que lhes levou à violência e agressão, numa tentativa de

mudança da crença velada, mas bastante clara nas pesquisas abordadas neste projeto, de que

essa mudança e regeneração não é possível.

Por último, tem por alvo a comunidade geral, através de campanhas em websites e

redes sociais, afim de causar novos impactos sobre a visão do homem que comete agressão

contra a mulher, podendo até, quem sabe, iniciar uma mobilização da própria sociedade civil

para o debate do tema, ou dos próprios homens que se percebem em situação de risco de

cometerem atos de agressão contra a mulher, a fim de que a mudança seja feita como

prevenção efetivamente, e não mais como reparo.

Em nenhum momento este projeto pretende “inverter os papéis” de vítima e agressor,

vitimizando o homem que comete agressão contra a mulher. A pretensão é de que, sim, seja

abandonada a visão simplista dos fatos, que acomoda pura e simplesmente cada um no seu

papel (vítima ou agressor) e que nada mais faz, a não ser medidas legais ou de “conserto de

danos”. É importante ressaltar que esse projeto também não visa amenizar a visão a respeito

da violência e agressão, mostrando complacência a elas por entender suas raízes sócio-

históricas, mas espera, a partir da disseminação dessa visão problematizada do problema, abrir

horizontes e espaço para que os que cometem agressão possam se repensar, se ajustar, se

humanizar.

REFERÊNCIAS

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