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Projeto ExperimentalCurso de JornalismoUniversidade Federal do Ceará

AutoraBárbara Rocha Barbosa Silva

OrientadorRonaldo Salgado

Banca ExaminadoraNaiana RodriguesMarco Antônio Krichanã

DiagramaçãoLivia Schramm

Fotos da CapaCacique Pequena - Bárbara RochaJuliana Alves – Bárbara RochaRaquel Alves – Gleydson Moreira

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A todos os índios brasileiros

e à vovó Dica, que adorava ler e contar

histórias, mas partiu dias antes deste livro ficar pronto.

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Agradecimentos

A Deus. Tudo com Ele e para Ele.

À minha mãe, Conceição Rocha, que me ensinou a ler e a

escrever, despertando meu interesse pelas palavras. O gosto

pelo jornalismo é também culpa dela.

Ao meu pai, Francisco de Assis Silva, que, embora não

tenha completado sequer o Ensino Fundamental pelas

adversidades da vida, esforçou-se para que eu concluísse o

Ensino Superior.

À Salete Rocha, a tia que foi minha educadora em casa,

atrás da porta do quarto, e me presenteia com livros desde

quando aprendi a lê-los.

Ao André Ítalo Rocha, que, com amor e cuidado, ofereceu

apoio, incentivo e observações a este trabalho.

Aos amigos da Comunicação Social da UFC, Camila

Aguiar, Andressa Souza, Roberta Souza, William Santos,

Raíssa Veloso, Ana Lídia Coutinho, Luana Barros, Grazi

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Barros e tantos outros, nos quais encontrei companheirismo e

afeto e com os quais compartilhei lamentos e conquistas; aos

queridos Gleydson Moreira e Luiza Carolina Figueiredo, donos

dos olhares por trás de muitas fotos deste trabalho; e à amada

Livia Schramm Feitosa, que diagramou este livro e segurou as

pontas para mim em muitos momentos na reta final do curso.

À sábia Júlia Miranda, ou Juju, que me estimulou a sair da

zona de conforto na busca pelo fio condutor deste livro-

reportagem.

Ao Melquíades Junior, uma das inspirações à jornalista que

pretendo ser. Não fosse o despertar provocado pela reportagem

“Mulheres em defesa da grande Mãe Natureza”, de sua autoria,

provavelmente meu trabalho de conclusão de curso não traria

esta temática. Grata, também, pelas imagens cedidas

gentilmente.

Ao mestre e amigo Ronaldo Salgado, que topou orientar

este livro-reportagem quando mal me conhecia, no quinto

semestre do curso. Obrigada pelos conselhos, pelas correções,

pela paciência e, especialmente, por acreditar neste projeto

comigo.

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Aos professores que me acompanharam ao longo dos

quatro anos de curso, em especial, Helena Martins, Ricardo

Jorge, Naiana Rodrigues, Larissa Cavalcante, Daniel Dantas,

Rafael Rodrigues, Edgard Patrício, Riverson Rios, Kamila

Fernandes e Mônica Mourão.

Aos jornalistas que me supervisionaram nos estágios que

fiz, Mayra Pontes, André Marinho, Daniel Praciano, Ticiana de

Castro, Mayara de Araújo e Dellano Rios.

Aos pesquisadores e profissionais engajados na causa

indígena, índios ou não, Maria Amélia Leite, Aline Furtado,

Eliakim Lucena, Leonardo Oliveira, Lucas Guerra, Weibe

Tapeba, Ceiça Pitaguary, Isabelle Braz, Marco Antônio

Krichanã (Max), Everthon Damasceno, Thaynara Martins, o

pessoal do Grupo de Estudos e Pesquisas Étnicas da UFC e

tantos outros que dedicaram um pedaço de tempo a uma leiga

curiosa para explicar particularidades desse universo tão rico e

estimular a reflexão sobre a complexidade dele.

Às Mulheres da Encantada, Cacique Pequena, Juliana

Alves e Raquel Alves, por abrirem as portas de casa e

compartilharem experiências de vida com uma completa

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desconhecida de forma tão natural e acolhedora. Este

agradecimento se estende também aos Jenipapo-Kanindé

Heraldo (Preá), Carline, Osana, Conceição (Bida), Sebastião,

Seu Chiquinho, Daniel, Daniela, João Batista, Grazi, Levy,

Cleilton, Janaína, alunos e professores da Escola Indígena

Jenipapo-Kanindé e muitos outros índios da etnia que cruzaram

meu caminho nessa jornada de um ano e meio. Este trabalho é

de vocês.

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Sumário

Apresentação..…...........................................................10

Introdução.................................................................... 16

1] A mulher na aldeia; a aldeia na mulher................... 26

2] As mulheres em Irê....................................................89

3] A menina Raquel: resistência e luta de uma jovem

índia.......................................................................;............. 148

Considerações finais.....................................................200

Referências Bibliográficas............................................203

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Apresentação

Observar e escrever. Ouvir e escrever. Sentir e escrever. Não

necessariamente nesta ordem. Para mim, mergulhar em

histórias reais é o mais envolvente no jornalismo. Talvez por

desilusões de que isso não seria possível no dia a dia da

profissão quase desisto do curso após três semestres para ir ao

encontro da psicologia. Mas esta área, infelizmente (ou

felizmente) não se estende, necessariamente, aos escritos, que

eternizam momentos e, principalmente pessoas. E é pelas

palavras e pelo ser humano – especialmente, aquele que é

esquecido no jornalismo diário – que concluo este curso, com

este trabalho.

Com o pé no pedido de transferência, durante a greve de

quatro meses pela qual passei na Universidade Federal do

Ceará (UFC), resolvi checar a programação da XXI Semana de

Comunicação, despretensiosamente, e ali estava o motivo:

Conferência de Lançamento de Livros-Reportagem - O

Cotidiano Reportado: do prazo do diário ao perene da escrita

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no Jornalismo Literário. As palavras ecoaram em mim. Dei a

chance.

Na ocasião, o professor Ronaldo Salgado – do qual, até

então, só conhecia nome (e renome) – e dois ex-orientandos

que haviam publicado livros-reportagem recentemente

conversavam sobre o processo de produção das obras.

Encantei-me de imediato e escolhi, naquele momento, que

permaneceria no curso, pelo menos, para ter a experiência de

produzir o livro-reportagem. Desde então, pensava em mil

temáticas que poderiam ser abordadas, clipava inúmeras

notícias que poderiam ser úteis ao iniciar a apuração, me

imaginava indo a campo, me perdendo em prosas com pessoas

incríveis e invisíveis nesse mundo de meu Deus. A paixão pelo

jornalismo, aos poucos, voltou a pulsar.

Desejava sair de Fortaleza, fugindo do que já é recorrente

nos periódicos, em busca de cidadezinhas, pessoas esquecidas,

histórias instigantes. Ao elencar as ideias para o pré-projeto, as

possibilidades já eram tantas que travei. Outrora, havia levado

a sério a ideia de escrever o livro-reportagem acerca de uma

temática muito ligada à minha experiência de vida, mas a

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mulher de cabelos de fogo e sabedoria inspiradora, Júlia

Miranda, me incentivou a buscar algo distante do meu

universo. Segui o conselho.

Em sete de junho de 2013, o jornalista Melquíades Junior

cutucou meu olhar adormecido. “Mulheres em defesa da

grande Mãe Natureza” era o título da reportagem assinada por

ele, integrando a série “Excluídos”, da edição do jornal Diário

do Nordeste daquela sexta-feira, sobre o protagonismo

feminino em etnias indígenas do Ceará.

As mulheres da aldeia Jenipapo-Kanindé me chamaram a

atenção logo de início não só por estarem no lide da matéria,

mas porque, entre elas, segundo a reportagem, estava a

primeira cacique mulher do Brasil. Até então, não havia pisado

em terra indígena cearense, nem sequer conversado com um

índio, muito menos descoberto que, a poucos quilômetros de

Fortaleza, encontrava-se a pioneira no cacicado feminino. De

súbito, senti vergonha; depois, a necessidade de pesquisar e,

quem sabe, tornar a temática o fio condutor do meu livro-

reportagem. Assim o fiz.

Confesso que foi arriscado e, talvez, insano de minha parte

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escrever um projeto de livro-reportagem sobre uma temática,

até então, distante do meu pequeno universo antes mesmo de

visitar a aldeia. Porém, no fundo eu tinha a certeza de que lá

encontraria elementos que poderiam saciar a minha sede de

descobrir, ouvir, observar, sentir e escrever. Era tudo novo e o

olhar estava virgem, embora alguns estereótipos necessitassem

ser desconstruídos. Mas qual beleza teria o jornalismo se não

fosse desafiador?

Foram várias conversas não só com Pequena, Juliana,

Raquel, Preá, Carline, Daniel, Daniela, Grazi, Everardo e

outros índios Jenipapo-Kanindé, mas também com

representantes de outras etnias, pesquisadores e profissionais

que atuam em órgãos voltados para a política indigenista local.

Todos foram pacientes, claros e detalhistas em meus inúmeros

questionamentos. Espero que a voz de cada um esteja impressa

neste trabalho. Nas visitas, o ouvir sempre veio antes do falar,

imergi em reflexões e permiti que os sentidos aflorassem ao

máximo para sentir a atmosfera do lugar.

Contudo, ainda não sou, nem de longe, uma profunda

conhecedora da etnia indígena Jenipapo-Kanindé, muito menos

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da complexidade na qual determinadas questões indígenas se

configuram no Brasil. Mas tenho buscado saber mais para que

a minha relação com as etnias indígenas do Ceará – e quiçá do

Brasil – não se encerre neste trabalho. Hoje, compreendo

melhor a história deste Estado que adotei como meu e que

inspira um sentimento de pertença muito maior em relação ao

meu lugar de origem. E interesso-me pela pesquisa acadêmica,

da qual fugia antes de ter contato com os estudos acerca da

temática. É importante ressaltar, também, que este trabalho está

sob o olhar subjetivo de uma repórter em formação, mas, ainda

assim, um olhar jornalístico; não de uma pesquisadora

antropológica.

Sobre a situação explanada no início deste texto, até o

momento, não desejo outra profissão se não essa, que oferece

várias histórias aos meus ouvidos, protagonizadas por gente tão

desconhecida quanto fantástica. As delícias são bem maiores

que os ardores.

Definitivamente, “Mulheres da Encantada” ressignificou o

jornalismo em mim.

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Introdução

Que índio é esse?

A tarefa do livro-reportagem pode ser vista

tanto mais complementadora dos periódicos e

do jornalismo eletrônico quanto mais se

percebe que aquela resulta, muitas vezes, do

interesse inicialmente despertado pela mídia

cotidiana, da atualização artificial que este

provoca em torno de um evento (…) ou do

vazio que a imprensa deixa, muitas vezes, por

não querer ou não poder mergulhar na

profundidade em temas para os quais existe

público interessado. Sob outra ótica, essa

complementação se dá pela tentativa do livro

em escapar da efemeridade e da

superficialidade na imprensa cotidiana. O

efêmero lhe é inerente, a superficialidade é

uma condição que pode e deve ser combatida,

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sempre que possível. (Edvaldo Pereira Lima,

Páginas Ampliadas, 2004, p.41).

Durante o período em que estive pesquisando, apurando e

escrevendo sobre os índios Jenipapo-Kanindé, colegas e

amigos que sabiam que eu estava em processo de produção do

trabalho de conclusão de curso questionavam acerca da

temática desenvolvida. Ao ouvir a resposta, muitos achavam

interessante e elogiavam a iniciativa, alguns sequer sabiam que,

no Ceará, ainda existiam índios, outros, com curiosidade quase

inocente, perguntavam se os índios moravam em ocas,

andavam nus ou eram canibais e, quando eu negava

pacientemente, poucos, mas não de forma menos dolorosa,

acrescentavam algo como: “Que índios são esses que não

possuem tais características?”.

Em tempo: não os culpo totalmente. Crescemos em uma

sociedade que ainda teima, de modo mascarado ou escrachado,

que o Brasil foi descoberto pelos europeus; que a construção de

usinas hidrelétricas em terras ocupadas por indígenas – os

transferindo a um pedaço de chão com o qual não mantêm

relação alguma – é sustentável e somente contribui para o

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desenvolvimento do País; que os índios perderam a própria

cultura e, hoje, aproveitam-se de “regalias” asseguradas pela

Constituição Federal para desfrutarem de benefícios oferecidos

a esse povo. Na escola, pouco ou nada se fala sobre as etnias

indígenas que se mantêm até hoje.

Os índios brasileiros são, muitas vezes, retratados de forma

homogeneizada. Assim, como afirma a professora Isabelle Braz

(Observatório Indígena) em um de seus discursos, temos uma

noção caricatural do ser índio, o qual achamos ser sempre

aquele nu, pintado, com vestes de palha e linguagem

desconhecida, que mora na oca e atira flechas, do Brasil

colonial ou o que vive em Estados distantes do Ceará: “(…) o

desafio que temos que enfrentar é desconstruir essa noção

caricatural do que é ser índio e por fim à insistência que temos

de querer congelar os povos indígenas no tempo e no espaço”.

A mesma professora, utilizando-se de um termo criado por

Darcy Ribeiro, salienta que os índios do Ceará podem ser

considerados “integrados”:

(…) os integrados vivem “ilhados” em meio à

população nacional, incorporados à economia

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nacional, na maioria das vezes como reserva de

mão de obra. Apesar de terem perdido a

autonomia cultural, também as suas terras e

viverem “confinados em parcelas de seu antigo

território”, em meio à população rural, ou em

alguns casos, mesmo no meio urbano,

preservam a consciência de que constituem um

povo distinto e são assim percebidos pelos seus

vizinhos, ainda que na maioria das vezes de

forma estigmatizada (Ribeiro, pp. 432 – 34 in

Braz, p. 154).

A abordagem de grande parte dos veículos de comunicação

no Brasil não contribui para a desmitificação da imagem

equivocada de índios despolitizados, submissos, aculturados e

invasores. Quando envolve etnias indígenas, a cobertura,

geralmente, abrange protestos, fatos curiosos, embates com

ruralistas, luta por demarcação de terras e divulgação de

estatísticas. Entretanto, manifestações culturais, costumes e

histórias de vida desse povo dificilmente estão presentes nos

principais cadernos, a menos que seja uma data comemorativa

ao dia do índio, tão criticado pelos próprios. Outra

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característica percebida ao longo desses meses de apuração foi

o fato de os índios do Ceará ainda ficarem distantes da

cobertura jornalística local em relação aos povos indígenas de

outros Estados.

Há, sim, reportagens que abordem de forma mais

aprofundada a situação dos índios no Ceará, como a que

transformou meu olhar e inspirou este livro-reportagem. Mas

essas, infelizmente, são raras. Não por falta de relevância!

Em 22 de abril de 1500, quando as caravelas portuguesas

chegam às terras tupiniquins para as desbravar, cerca de seis

milhões de nativos já habitavam o território há 10 mil anos.

Desde então, os indígenas conviveram com repressão,

escravidão e ofertas tentadoras do homem branco. Obedeciam,

caso não quisessem a dizimação do próprio povo, o que

aconteceu inúmeras vezes aos índios que tentaram resistir.

O Marquês de Pombal, em 1755, estabelece o Diretório

Indígena, por meio do qual incentiva o casamento entre

brancos e índios e determina a substituição da língua nativa

nheengatu pelo português. Menos de 100 anos depois, o

presidente da província do Ceará ordena a extinção de grupos

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indígenas por meio de um decreto, episódio que se repetiu em

outras regiões (GOMES, 1988, p. 23).

Anos passaram e o silêncio dos índios que não declaravam

a própria identidade devido às repressões e aos massacres que

vitimaram as gerações passadas permaneceu. Somente 294 mil

índios se assumiram como tais no levantamento do censo

demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) de 1991. Em 2000, o aumento da estatística foi de

150%, quando 734 mil índios se declararam no País. No censo

seguinte, em 2010, o aumento foi somente de 11,4%, quando

foram registrados 896.917 indígenas. Por meio do censo,

também foi comprovada a existência de índios em todos os

Estados brasileiros e no Distrito Federal.

Na região Nordeste, 232.739 índios são registrados, no

entanto, menos da metade (45,6%) vive em terras indígenas. O

Ceará é o 5º Estado da região com maior população de índios.

Atualmente, cerca de 22 mil indígenas estão divididos em 14

etnias registradas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), são

elas Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé,

Kariri, Pitaguary, Potyguara, Tabajara, Tremembé, Tapeba,

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Tapuya-Kariri, Tupiba-Tapuia e Tupinambá.

A aldeia Jenipapo-Kanindé situa-se em Aquiraz, na Região

Metropolitana de Fortaleza (RMF), às margens da Lagoa da

Encantada, próxima ao Morro do Urubu. Desde 1995, a

comunidade é liderada por cacique Pequena, que afirma ser a

primeira cacique mulher do Brasil. Entretanto, como não há um

registro oficial em relação ao título, optei por considerá-la,

neste livro – com o auxílio de profissionais envolvidos com a

política indigenista local –, a primeira cacique mulher do

Ceará.

Os índios Jenipapo-Kanindé – etnônimo atribuído aos

Cabeludos da Encantada na década de 1980, quando foram

descobertos – são reconhecidos pela Fundação Nacional do

Índio na década de 1990. A Terra Indígena (TI) Lagoa da

Encantada abrange 1734 hectares, no entanto, o processo de

demarcação aguarda homologação decretada pela presidente da

república.

O protagonismo das mulheres da aldeia Jenipapo-Kanindé

é o que salta aos olhos ao conhecer a comunidade. Trabalham,

estudam, lideram e representam a etnia com firmeza admirável,

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embora dividam as tarefas com maternidade, vida conjugal e

atividades domésticas.

Os indígenas são, geralmente, vistos como um povo

primitivo, com intenso patriarcalismo presente na organização

comunitária, devido ao preconceito enraizado naturalmente nos

que vivem distantes dessa realidade. A atuação feminina em

aldeias indígenas do Ceará e do Brasil também é desconhecida

por muitos, inclusive, na aldeia Jenipapo-Kanindé, situada a

pouco mais de 50 quilômetros da capital, liderada por uma

mulher há quase 20 anos. Ao longo da pesquisa, percebi que

mulheres à frente de movimentos indígenas estavam presentes

em outras comunidades do Ceará. Não fossem elas,

possivelmente algumas conquistas não teriam sido alcançadas e

as reivindicações estariam enfraquecidas.

Diante dessa questão, resolvi unir grupos historicamente

subjugados, trazendo aspectos da aldeia Jenipapo-Kanindé

revelados por figuras femininas. A proposta de “Mulheres da

Encantada” é perpassar por elementos da aldeia indígena

Jenipapo-Kanindé através de três gerações de mulheres,

representadas por Maria de Lourdes da Conceição Alves, a

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cacique Pequena, Juliana Alves, a cacique Irê, e Raquel Alves,

uma das lideranças jovens da etnia. As três fazem parte do clã

que atua em diversas esferas dentro e fora da Terra Indígena

Lagoa da Encantada, portanto, aqui debruço-me sobre

tradições, liderança, atividades produtivas, educação,

manifestações culturais, resgate, resistência, participação em

movimentos indígenas, dentre outras particularidades dos

Jenipapo-Kanindé.

Mas, se a ideia é, de certa forma, antropomorfizar essas

questões, personalidade, sentimentos de pertença, relações

interpessoais, estudos, conexão com a natureza e cotidiano das

três mulheres aqui apresentadas são intrínsecos a cada capítulo.

Embora Pequena, Juliana e Raquel sejam as principais vozes

desta reportagem, outras mulheres, jovens, crianças e homens

Jenipapo-Kanindé, pesquisadores e profissionais atuantes na

causa indígena foram escutados e contemplados em “Mulheres

da Encantada”, de maneiras distintas.

As falas das três protagonistas selecionadas para costurar o

texto são longas, se comparada aos espaços oferecidos aos

entrevistados nos jornais impressos. Elas me contaram a

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história e desejo que você a leia da mesma forma, assim, a

alternativa escolhida para particularizar esses trechos foi

destacá-los em itálico em todos os capítulos.

Retomando a citação do Edvaldo Pereira Lima que abre a

introdução deste trabalho, o livro-reportagem pretende-se como

complementador da abordagem tangencial dos meios de

comunicação acerca das etnias indígenas do Ceará, seja pela

rapidez ou pela indiferença, buscando desconstruir estereótipos

e tornar conhecida parte da realidade dos índios do Ceará

através dos próprios.

Assim como “Mulheres em defesa da grande Mãe

Natureza” e as demais reportagens da série “Excluídos”

despertou-me para uma situação complexa, encantadora e que

clama por visibilidade, desejo que “Mulheres da Encantada”

estimule você, leitor, a mergulhar em fragmentos da história

dos Jenipapo-Kanindé e, assim, também encontrar-se, afinal,

somos todos indígenas.

Boa leitura!

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Capítulo 1]

A mulher da aldeia; a aldeia na mulher

Foto: Arquivo Diário do Nordeste/ Helene Santos

Histórias, canções, abraços e sorrisos me arrebataram. Maria de

Lourdes da Conceição Alves, a Pequena, me encantou antes

mesmo de eu estar frente a frente com a primeira cacique

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mulher no Ceará. Inicialmente, o ineditismo do título saltou aos

olhos. Estava na reportagem que guardo comigo até hoje. Mas

foi quando conversamos pela primeira vez que descobri os

verdadeiros tesouros que a cacique carrega, e me senti

lisonjeada por poder escutá-los, vê-los, tocá-los, senti-los.

Pequena me revelou de forma pura e autêntica que quem não

registra em papel o imaterial da vida adquire uma capacidade

ainda maior de guardar tudo no “computador da cabeça”,

como chama ela a excelente memória que tem.

Construí o primeiro capítulo trilhando sobre memórias,

sentimentos e ambientes que perpassam a eterna cacique dos

Jenipapo-Kanindé. A índia de pele morena, olhos negros e

cabelos escuros e longos – os quais contrastam com alguns

poucos fios brancos que surgem na raiz – não sabia escrever

além do próprio nome, tampouco ler, até os 67 anos. Mas, ao

falar, reúne em si gerações anteriores, contemporâneas e

futuras dos índios Jenipapo-Kanindé, descortinando a riqueza

da aldeia da qual está à frente desde 1995 com sabedoria

admirável.

Não conheci Pequena em minha primeira visita à

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comunidade. O contato pessoal com o povo da Encantada foi

combinado com Juliana, a cacique Irê, e Heraldo, conhecido

como Preá, também filho de Pequena e responsável pelas

visitas à aldeia. À época, cacique Pequena havia levado uma

queda que agravou uma crise de diabetes, doença descoberta há

alguns anos e controlada de perto com o auxílio de filhos e

netos. Devido à recuperação, optaram por poupá-la de

visitantes naquele período.

O retorno aconteceu somente dois meses depois, em um

sábado de carnaval. A aldeia estava no clima do feriado mais

esperado por grande parte dos brasileiros. Já havia combinado

uma conversa com Juliana e Raquel, pois Pequena, ainda que

tivesse manifestado uma melhora, não estava preparada para

me receber. Pouco antes de o delicioso cará frito ficar pronto

para o almoço no restaurante de Osana, filha de Pequena, fui à

casa da cacique, em frente ao estabelecimento, a fim de avisar

para Raquel que em alguns minutos estaria lá para nossa

conversa. João Batista, outro filho de Pequena, me convidou

para entrar e me apresentou, finalmente, à mãe. O entusiasmo

surgiu de imediato, mas me preocupei com a aparência um

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tanto abatida da cacique, que, terminando de almoçar um dos

pratos principais nas mesas dos Jenipapo-Kanindé – peixe –,

contou-me que, naquela manhã, havia sido curada.

Pequena não apresentou o mal estar dela a um pajé de outra

aldeia – uma vez que os Jenipapo-Kanindé não possuem um

curandeiro dessa natureza; o antigo pajé da etnia se converteu

ao protestantismo e deixou a função. Também não foi a um

hospital se queixar a um médico sobre as insuportáveis dores

que sentia. No domingo de carnaval, Pequena pediu à filha,

Juliana, que a levasse de carro à Igreja Universal do Reino de

Deus. Ela contou que assistiu a um programa televisivo do

bispo da referida igreja durante a madrugada e, por meio das

palavras do sacerdote, teve a certeza de que seria curada no

templo localizado no Iguape.

No momento do culto dedicado à cura dos adoentados,

Pequena se colocou em frente ao altar, reunindo a fé de

influências diversas, da crença na força da natureza aos

ensinamentos do pastor, passando também pelo catolicismo.

Acreditou e voltou para casa aliviada. Quando nos

encontramos, ela estava cansada, mas já não sentia o mal-estar

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que a deixou distante dos afazeres durante, aproximadamente,

três meses. Antes de voltar para o restaurante de Osana, a

cacique me garantiu, de braços abertos, que me receberia com

prazer em outro momento.

No dia seis de abril de 2014, conheci a real Pequena:

saudável, disposta, reluzente e ainda mais acolhedora. Nossa

segunda conversa durou duas horas e meia, que passaram como

se fossem poucos minutos. Os relatos da índia me envolveram

de forma leve, hipnotizante e irresistível. Mergulhei neles

como em meu primeiro banho na Lagoa da Encantada. Difícil

dizer tchau. A cada conversa que tínhamos, a agenda retornava

cheia de notas para o livro-reportagem e para a vida.

Nos encontros que se seguiram, Pequena me recebeu muito

bem, com espírito maternal genuíno, permitindo que eu me

sentisse à vontade naquele novo território, embora não fosse

uma Jenipapo-Kanindé. As outras conversas permaneceram se

estendendo mais do que eu imaginava, me inspiraram e me

encorajaram a seguir com a temática até então distante do meu

universo, contudo, também me deixaram em conflito ao

escolher o que seria contemplado neste trabalho. Palavras,

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cantos, gestos e olhares não podiam escapar. Nela, é possível

adentrar a aldeia Jenipapo-Kanindé. O que é intrínseco, claro,

não se separa.

Encantada e Pequena: histórias que se

confundem

Em dia chuvoso e com o clima mais ameno, no início da Festa do Marco

Vivo, Pequena veste casaco com nome da etnia estampado nas costas Foto:

Gleydson Moreira

Chovia forte naquela manhã de quarta-feira. Acordei

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cedinho para não me atrasar para a celebração, mas a ansiedade

que ebulia há tempos esperando o dia que começava também

teve papel no meu despertar. O aguaceiro se intensificou na

CE-040 e parecia que não ia cessar tão cedo. Eu e Gleydson,

amigo que me acompanhou para registrar momentos em fotos,

ficamos receosos de continuar na estrada a caminho da

celebração do Marco Vivo e paramos no início do percurso.

Minutos depois, a chuva acalmou e seguimos devagarzinho.

O asfalto da pista dá lugar à estrada de barro, na esquina

onde se encontra uma placa indicando a direção para chegar à

aldeia Jenipapo-Kanindé. As idas e vindas anteriores ajudaram

a não me perder nas bifurcações que atrapalham os

desacostumados. A cada poça de água que podia esconder um

buraco profundo, vinha a preocupação de atolar o carro, ter de

empurrá-lo debaixo da chuva e perder parte de um dos

principais dias de apuração.

O Marco Vivo estava programado para começar às oito

horas do dia nove de abril de 2014, dez dias antes do Dia do

Índio, instituído em dois de junho de 1943, pelo então

Presidente Getúlio Vargas, por meio do Decreto-Lei nº 5.540.

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No domingo anterior, quando estive na casa de Pequena, ela já

havia falado sobre a sacralidade da data que se aproximava:

O dia do índio é todo dia. Não tem essa história de ser só

no dia 19 de abril. Quem botou isso botou errado. Temos a

nossa diferença, sim. Nove de abril é a festa do Marco Vivo,

que chama a atenção dos índios Jenipapo-Kanindé e dos

nossos outros parentes: Tapeba, Pitaguary, Kanindé de

Aratuba, Anacé, até os Tremembé de Almofala. Chama a

atenção de todos eles para nesse dia estarem nessa festa. E nós

vamos levando de ano em ano. A cacique Irê, logo que ela

entrou, queria mudar para outro dia. Ó o dedinho (faz gesto de

negação com o dedo). [Eu disse]: “Enquanto a sua mãe for

viva, a cacique Pequena for viva, vai ser nove de abril, com

chuva ou sem chuva, com comida ou sem comida, porque a

gente faz a festa.”

Pequena era cacique há quatro anos quando aconteceu a

primeira Festa do Marco Vivo, em nove de abril de 1999. A

delimitação da Terra Indígena Lagoa da Encantada, no governo

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do Presidente Fernando Henrique Cardoso, motivou a

celebração, que reúne diversas etnias indígenas do Ceará.

O toré – animado por tambores e maracas, acompanhado

pelo mocororó e pelo aroma inebriante que sai do cachimbo

dos índios e purifica o ambiente – é dançado em torno do

tronco de Yburana, adornado com plantas e flores, amparado

pelos Encantados que os indígenas invocam. Discursos das

lideranças da aldeia Jenipapo-Kanindé e de representantes de

movimentos indígenas ressaltam a luta que não finda e

aproveitam o momento para reivindicar condições melhores,

especialmente, aos órgãos responsáveis pela saúde indígena e

pela aceleração de processos carregados com morosidade,

como a homologação da Terra Indígena Lagoa da Encantada,

que necessita de decreto presidencial.

A celebração se encerra quando alguns representantes da

etnia fincam a Yburana em um dos limites do território da

aldeia. Após o replantio, essa espécie de tronco tem a

capacidade de renascer, criar raízes e frutificar. Com orações,

os índios agradecem pela terra que dá abrigo, alimenta e cura.

O Marco Vivo é também dia de celebração à natureza.

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De fato, embora a chuva demorasse a parar, assim que

aproximo o carro do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, após

cinco quilômetros sobre a terra lameada e 40 minutos do

horário previsto, vejo a líder dos Jenipapo-Kanindé

caminhando à nossa frente, em direção ao local do encontro, a

estrutura que abriga o Museu Indígena Jenipapo-Kanindé e a

Pousada, segurando uma sacola sobre a cabeça para não se

molhar. Ela está com um vestido estampado com flores e não

se caracterizou com cocar e pinturas feitas com jenipapo e

urucum naquele dia.

Aproximamo-nos da entrada já escutando o barulho de

tambores, cânticos e conversas que denunciavam que a reunião

de índios Jenipapo-Kanindé, Tapeba e Pitaguary já começara.

Heraldo nos recebe e nos convida para o café da manhã.

Sobre o balcão, há frutas (banana, maçã, melancia, rodelas de

abacaxi, mamão e laranja), mandioca, pães com queijo e

presunto, sucos, leite e outros alimentos para fortificar o corpo

de quem havia levado, principalmente, a alma para celebrar

junto aos Jenipapo-Kanindé. Na parede, atrás do balcão onde

os alimentos descansam à espera dos visitantes, um banner

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pendurado e estampado pelas fotos do dia em que Pequena

nomeou Juliana e Conceição como caciques da aldeia, e de

uma das plantações do tronco de Yburana.

Seu Chiquinho, o marido, chega a passos curtos, calçados

por chinelos simples, calça dobrada até pouco abaixo do

joelho, uma camisa azul clara de botões e o marcante chapéu

preto, preso firmemente com a cordinha que é amarrada abaixo

do queixo.

Pouco depois, Pequena vem do corredor para nos

cumprimentar. É notório o misto de alegria e ansiedade em dia

tão marcante. Entretanto, a índia não consegue esconder um

certo desapontamento. O lançamento do CD, com 16 músicas

cantadas por ela, não estaria na programação do Marco Vivo de

2014, como havia planejado. A desculpa dada pela gravadora –

da qual ela não recordava o nome naquele momento – era de

que os 100 discos não ficaram prontos a tempo, embora a

cacique tivesse salientado a data em que desejava lançá-los. Ela

estava frustrada, afinal, cada canção é como uma cria, sejam as

de sua autoria ou as que adotou para avivar com sua voz

afinada. Para ela, foi doloroso deixar algumas de fora por falta

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de espaço no disco. “Tirei a música da mente, as meninas

copiaram no caderno e eu cantei”.

Da cozinha, situada no final do corredor da Pousada, vem o

som da conversa entre mulheres, embora um homem esteja

auxiliando no preparo da refeição de meio-dia. Pequena diz que

gostaria que ficássemos para o almoço e mostra um sorriso

largo quando respondo que estaremos com eles até o final do

Marco Vivo.

Ela observa tudo e busca estar presente nas rodas de

conversas que se agrupam em cada ambiente do Museu e

Pousada Jenipapo-Kanindé. Alguns parentes Tapeba e

Pitaguary, que estavam na aldeia desde o dia anterior, devido à

Semana Intercultural que acontecia, se reúnem para cantar

músicas de toré e se atualizar sobre assuntos das etnias.

Pequena, claro, está entre eles. O movimento se intensifica

depois de 10 horas. Receptiva, ela preocupa-se com o

acolhimento das pessoas que chegam: indígenas, pesquisadoras

e curiosos. É, mulher, você havia saído do cacicado, mas o

cacicado sempre foi incapaz de te soltar.

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Durante o Marco Vivo de 2014, convidados prestam atenção ao discurso

de Cacique Pequena Foto: Gleydson Moreira

Aos 69 anos, a cacique Pequena é mãe de 16: oito homens

e oito mulheres. Entretanto, os 54 netos e os 15 bisnetos

também estão sob o cuidado da índia, alguns longe, outros

perto. A comunidade, que abrange cerca de 400 pessoas, é

abraçada como filha tanto quanto os que têm o mesmo sangue

da líder. Pela aldeia, Pequena dividiu o tempo como dona de

casa, mãe de filhos e netos e cacique para ir à luta por proteção

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à terra e aos direitos do povo Jenipapo-Kanindé. Viajou boa

parte do Brasil de ônibus ou avião, hospedando-se em pousadas

fornecidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) ou em

acampamentos, dialogando com etnias diversas, simpatizantes

e políticos, incluindo o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva,

com quem esteve em mesa-redonda para discutir a causa

indígena com outros parentes.

Com tanta intrepidez, é curioso o nome com o qual se

apresenta. Foi inevitável questioná-la sobre isso na pergunta

que abriu a primeira entrevista. Pequena não tem tal apelido

pelo tamanho, que é normal para uma senhora daquela idade.

Nascida e criada na mata, depois do Morro do Urubu, no

Grutião, a caçula de três irmãs recorda que, ainda criança, era

chamada assim pela Dona Maria Joana e o Seu Alfredo. Nos

braços do pai, Maria de Lourdes balançava e adormecia ao

ouvi-lo cantar “A fia do pai, a fia da mãe. É a pequena do pai, é

a pequena da mãe. É a pequena do pai, é a pequena da mãe...”

Ficou, não teve jeito. A alcunha se espalhou com o passar dos

anos, foi adotada pela cacique como se fosse o nome de

batismo. Agora, Lourdes só aparece em documento.

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Quando a índia nasceu, a família morava na região

conhecida como Riacho. Poucos dias depois do nascimento, o

único irmão homem de Pequena, de apenas seis anos, deixava o

mundo após ter sido acometido por catapora. Como as

condições de tratamento não eram favoráveis, o menino não

resistiu. Triste, Dona Maria Joana pediu ao esposo que fossem

embora do lugar no qual o filho havia morrido, de preferência

para a Mangabeira, onde moraram durante três anos. Após essa

temporada, se instalaram no Pacoti. Lá, ficaram por 16 anos.

Com as filhas criadas, Alfredo quis retornar para o Riacho,

onde permaneceu até a morte.

Desde muito nova, Pequena se reconhece como uma índia

dos Cabeludos da Encantada. A tribo era assim chamada devido

aos marcantes e longos fios dos habitantes da aldeia, os quais

cobriam a cabeça e, às vezes, eram também vestimentas.

Contudo, o passado que acompanhara a etnia com massacres,

escravidão e intrusão de posseiros nas terras impedia que a

família e os antepassados da cacique se autodeclarassem

indígenas. Pequena sabia que pertencia a um grupo “diferente”,

subjugado. Viveram escondidos durante longos e, muitas vezes,

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dolorosos anos, com receio do que o homem branco pudesse

fazer caso fossem encontrados.

Nós tínhamos medo de abrir a boca e dizer “somos

índios”. Nós tínhamos medo de dar o peito para o homem

branco, porque o índio foi muito massacrado, como hoje o

índio ainda é massacrado. Diziam que, no Ceará, não tinha

mais índio, que os índios daqui já tinham sido extintos. Muito

pelo contrário, os índios estavam escondidos e muito bem

escondidos.

Permaneceram Cabeludos da Encantada até a chegada dos

primeiros pesquisadores, na década de 1980. Os estudiosos

afirmavam que a etnia tinha quatro raízes indígenas. Eram os

Kanindé, Payakú, Jenipapo e Tapuia. Segundo informações do

Diário Oficial da União de 18 de agosto de 2004,

possivelmente, a língua da etnia seria o Tairariú, substituída,

posteriormente, pelo tupi. Atualmente, os Jenipapo-Kanindé

falam somente português.

A história desses povos, assim como a da família de

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Pequena, foi marcada por intensa mudança de território,

fugindo da perseguição, em busca de um lugar onde pudessem

estar em paz, plantando e colhendo o próprio alimento,

produzindo os próprios instrumentos de caça e pesca e vivendo

em comunidade. Conduzidos, na maioria das vezes, pelo

homem branco, pela guerra ou pela manipulação, os indígenas

se espalharam em territórios do Ceará. Aos poucos, foram se

encontrando na Terra Indígena Lagoa da Encantada até

formarem um povo só.

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Os Kanindé eram aldeados às cabeceiras do Rio Banabuiú. Em uma guerra contra colonos em 1721,

foram vitimados ao defenderem o território. À época, o rei de Portugal ordenou que o Governador de

Pernambuco devolvesse a liberdade dos índios através da Carta Régia de 16 de outubro de 1722. Nove

anos depois, foi concedida aos Kanindé a permissão para se aldearem próximo à nascente do Rio Choró,

mais especificamente na passagem conhecida como Muxió.

Nos sertões do Alto Curu e nos rios Banabuiú e Quixeramobim, encontravam-se os Jenipapo. Com o

apoio dos índios Icó e Quixarirús, entraram em conflito com o homem branco e, em 1726, foram

mandados para o Piauí. Inconformados, os Jenipapo não atenderam as ordens do capitão-mor e sofreram

extermínio de tropas constituídas por índios Kanindé e Payakú da Ribeira do Jaguaribe até os limites

com o Piauí. Somente em 1739, os índios Jenipapo pediram aldeamento e, assim, foram viver junto com

os Kanindé.

As duas etnias se uniram em um território conhecido como Missão da Palma ou Nossa Senhora da

Palma. Tempos depois, foram transferidos para a Serra de Baturité, que, em 1858, foi elevada a cidade de

Baturité.

Pesquisas históricas apontam que os Payakú habitavam região próxima ao Rio Açu, à Serra do Apodi

e à Ribeira do Jaguaribe. A etnia era conhecida por ser inimiga de vários povos indígenas, como

Potiguara e Jaguaribara, e pelo intenso derramamento de sangue que causavam em revoltas. Para que a

Capitania ficasse em paz após inúmeros conflitos, o capitão-mor Jorge Correia da Silva ordenou o

extermínio dos Payakú em 1671. Entretanto, a etnia não esqueceu o massacre, se fortaleceu novamente e,

em 1694, organizou, junto com os índios Icó e Jandoin, um combate que quase exterminou os colonos

que se encontravam às margens dos rios Banabuiú e Jaguaribe. O aldeamento dos Payakú aconteceu em

1696, em Arará, próximo à cidade de Aracati, mas, em 1765, foram levados para a Vila de Montemor,

onde já estavam os Jenipapos e os Kanindés, que não concordaram com a chegada dos novos moradores.

Com a rejeição, os Payakú foram ordenados a ir para Messejana.

Já os Tapuias foram removidos para a Aldeia Velha, sítio localizado na cidade de Limoeiro.

Provavelmente, mais tarde foram levados para a Serra da Palma, ao sul da bacia do açude do Cedro, em

Quixadá.

Diário Oficial da União, 18 de agosto de 2004.

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A prima do meu avô, pai do meu pai, o Pai do Céu já

levou, disse que era da família dos Kanindé. Quer dizer que,

na certa, nós fomos um povo “andarejo”. Entende a palavra

“andarejo”?

“Andarejo” é quando a gente se muda de um canto para

outro, de um canto para outro, de um canto para outro, de um

canto para outro. Que não tem canto certo para morar, que

nem cigano. Quando eu era mocinha, eu ouvia muito o Tio

Jorge dizer: “Olha, vocês são índios, Pequena. Vocês são

índios Payakú”.

Cacique Pequena conta que, pelo menos, três gerações

anteriores à dela habitaram a região do Riacho. O avô de

Pequena nasceu em 1845, 169 anos atrás. Sobre o bisavô,

embora a índia saiba que ele tenha nascido na aldeia, não tem

conhecimento do ano exato.

Pequena ainda propaga uma história contada pelo pai sobre

um intenso conflito que aconteceu em Aquiraz, época em que a

cidade se transformava em vila. Ela acredita que os

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antepassados tenham sido sobreviventes da batalha.

Meus pais diziam que para o povo de Aquiraz se entregar

para os não índios, o sangue deu no meio da canela, mataram

muita gente. Botaram para correr e pediram reforço para

tomar conta do Aquiraz, e os índios botaram eles para correr

até a Paupina. Quando eles conheceram que a gente não era

gente igual a eles, voltaram com o dobro do reforço. Um

bocado foi morto, outro bocado foi levado para trabalhar nas

canas-de-açúcar, para trabalhar com gado; e outros correram,

que na certa fomos nós. Na certa, era o avô dele que contava

para o pai dele. Na certa, a família dele escapou, que somos

nós.

Os antepassados de Pequena se sustentavam a partir da

água, do alimento e de outros recursos que a mãe natureza

oferece, “da fruta do mato e do peixe do rio”. As plantações de

batata, mandioca e feijão predominavam. Na lagoa, carapeba,

camorim e curimatã nadavam em cardumes, “de fartura

mesmo, de você chegar e o peixe andar quase no pé”.

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A cultura de troca entre os índios também era muito

presente. Ninguém dormia sem comer ou acordava preocupado

com falta de alimento para aquele dia. Na vida em comunidade,

se um tinha a massa para fazer beiju, mas não havia pescado,

fazia a troca com o índio que tinha peixes sobrando, mas não

guardara a massa para o alimento de origem indígena. Se não

cambiavam, reuniam-se com os parentes para uma

confraternização corriqueira e, ali, todos almoçavam juntos.

Quando escurecia, a fumaça da fogueira subia avisando que

naquela noite haveria encontro para comer, beber café e

conversar sobre a vida e os encantos da aldeia. Geralmente,

acontecia em frente a alguma das casas de palha espalhadas

pelo território.

Aí fazia o quê? Contavam as histórias que eles sabiam.

Meu pai contava uma história assim, outro contava outra,

outro contava outra. Pra findar a história, a dona da casa

vinha com um pote de café para tomar. Eles já tinham assado

na fogueira milho, jerimum, batata, macaxeira. Aí é só tirar a

areia de tudo aquilo, limpar, abrir – porque eles assavam com

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casca e tudo –, depois comer com café.

Foto: Bárbara Rocha

Como guardiã da memória, Pequena sempre apresenta aos

moradores e visitantes da comunidade Jenipapo-Kanindé um

dos elementos principais das conversas em volta da fogueira: o

sobrenatural da Lagoa da Encantada.

As visões e vivências que os índios diziam ter ao irem até a

água da aldeia atravessaram as gerações, mas hoje são

consideradas lendas, imergidas no imaginário dos Jenipapo-

Kanindé e da Lagoa, que não poderia receber outro nome. É

encantada.

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Ao contar as lendas, Pequena se debruça sobre o passado

dos indígenas, explicando o contexto do período em que as

histórias se passaram. Nos relatos, também são repassadas

mensagens de proteção à natureza, tão pregada entre os

Jenipapo-Kanindé.

O cacique Adorico contava muito essa lenda para nós. Um

dia, um índio da aldeia foi buscar água na lagoa. Quando ele

chegou na lagoa, ele viu um camorim. Camorim é um peixe,

aqui na lagoa tem muito, não como antes, mas ainda tem. Ele

tava pegando água no pote de barro, que antigamente a gente

só usava vaso de barro. Ninguém usava vaso de alumínio, nem

de lata, era só de barro.

Ele viu aquele camorim para lá e para cá, para lá e para

cá e disse: “Ah, vou pegar esse peixe para eu levar e comer.

Não tem nem jeito”. Correu em casa, deixou o pote, pegou o

arpão, voltou e “tchum”, aqui no cuncum do peixe (Pequena

bate nas costas).

O peixe safou do arpão da mão dele e foi embora. Ele

disse: “Olha só! Perdi esse peixe, rapaz. Era um almoço para

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eu almoçar mais meus pais. Tem nada não”. Quando ele disse

“Tem nada não” e ia embora, levantou na frente dele uma

moça bonita, bem alva, pele fina, com os cabelos batendo no

chão, que disse:

– Eu vim buscar você.

– Me buscar? Para quê?

– Para tirar aquele ferro que você botou no cuncum do

meu pai.

Aí disse que eles tiveram uma teima.

– Não! Eu arpoei foi um peixe, não foi gente.

– Vamos logo, não vamos teimar não. Sente no meu

cuncum e feche os olhos. Não abra os olhos, só abra os olhos

quando eu mandar.

E assim ele fez. Sentou no cuncum da moça, fechou os

olhos e ela “fuuuum”, entrou de água adentro e foi embora

com ele.

Com um pedacinho, ela mandou: “Abra os olhos”. Quando

ele abriu, estava dentro de um palácio, a coisa mais linda do

mundo.

– Vamos lá onde está meu pai.

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Quando chegou lá, estava o velhão em cima da cama,

gemendo, com o arpão arpoado no cuncum do velho.

– Valha-me, Deus. Eu arpoei foi uma pessoa pensando que

era um peixe.

Eu sei que ele mesmo deu um jeito, puxou o arpão, tirou

das costas do velho, lavou o sangue todinho e disse:

– Pronto! Agora eu vou embora.

– Vamos dar uma corrida aqui dentro da lavoura do meu

pai.

Foram correr na lavoura deles, tinha muita coisa bonita,

coisa banhada de ouro.

– Mas não toque. Se você tocar, você fica com nós.

Ela pegou o arpão e disse:

–Agora vamos embora. Você quer ficar aqui?

– Não, vou embora, que minha mãe tá morrendo de

saudade de mim.

– Pois faça o mesmo trabalho que eu pedi para você fazer.

Se montou no cuncum dela, fechou os olhos e ela

“fuuuum”. Quando ele viu tava na beira da Lagoa, saiu do

cuncum dela e foi agradecer. Aí dizem que no abrir e fechar de

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olhos, quando caçou ela, o canto mais limpo.

Antes de Pequena assumir o cacicado, há registros de dois

tuchauas – nome que se dava aos líderes da aldeia –, Chico

Pixinga e Adorico.

O primeiro, avô de Seu Chiquinho, já era conhecido em

regiões próximas à comunidade, como Iguape e Aquiraz.

Quando chegava, o homem branco já anunciava: “Lá vem o

tuchaua dos Cabeludos da Encantada”.

Pequena recorda que Chico Pixinga era uma das principais

figuras da comunidade não somente pela função de líder da

aldeia, mas, especialmente, por contar as histórias surreais da

Lagoa da Encantada. Ainda menina, Pequena ouvia tudo com

atenção de criança curiosa, impressionada com os encantos que

as águas podiam carregar.

O finado Chico Pixinga via era banda de música tocando

dentro do navio em dezembro, no Natal. Em dezembro eles iam

para a Lagoa e lá ia um navio com a banda de música tocando

as coisas mais lindas do mundo. Vinha aqui e voltava no final

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dela, vinha aqui e voltava no final dela, e assim passavam

horas e horas eles vendo aquelas belezas. Depois (bate uma

mão na outra) sumia, não sabia para onde ia. Diziam: “Ah,

meu Deus, vamos embora para casa, porque já sumiu tudo”.

Era assim, eu desse tamanhinho (mostrando que era

pequena), cansei de ver o finado Chico Pixinga contando essa

história, que era o homem que a gente chamava de tuchaoa.

Se a natureza sustentava todos, a terra também era

compartilhada. Em um mesmo terreno, cerca de dez homens

semeavam em harmonia, cada um colhia o seu plantado e

estava disposto a dividir caso o companheiro não tivesse

desfrutado a mesma sorte. Os momentos de pesca na Lagoa da

Encantada também tinham mais graça quando os índios

estavam em grupo, nas canoas feitas de gameleira. Peixes

partilhados, almoço garantido, acompanhado, é claro, do beiju

de cada dia.

O marido chegava da praia, da maré, da lagoa, com peixe,

aí a gente tratava o peixe, enchia uma panela de barro com

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peixe, botava no fogo e seis horas da manhã o peixe já estava

cozido e fazia o pirão de beiju de caco. A gente fazia no caco a

massa da mandioca, amassava, fazia o beiju e botava dentro

da vasilha. Depois botava no prato de barro, cortava bem

miudinho, botava o caldo dentro, escaldava e comia com

peixe. Depois tomava o café, era a sobremesa. A gente comia

com todo mundo.

(...)

Minha mãe dizia que era uma união muito forte, viviam

sem dinheiro. A vida deles era aquela, não precisavam de

dinheiro, ter o que comer era o que bastava. Por isso eles

viviam no paraíso, um povo inocente, um povo sem maldade,

porque eles mesmos eram o povo de si próprios.

A vida da comunidade que Pequena ainda alcançou

mantinha pouquíssimo contato com o homem branco. Os

encontros com aqueles que permaneciam provocando suspeita

– devido ao trauma que os índios ainda carregavam –

aconteciam, principalmente, quando os mais velhos iam até a

cidade – Iguape, Aquiraz ou Fortaleza – para vender o que eles

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mesmos produziam na aldeia, como a cera feita a partir do mel

de abelha e esteiras feitas de junco.

Antes da década de 1970, os brancos não haviam

descoberto as terras indígenas Lagoa da Encantada. Ou, se já

tinham conhecimento sobre a aldeia, não apareciam. Os

costumes indígenas eram muito preservados na comunidade,

afinal não precisavam disputar com as ofertas que o homem

branco impingia.

Da natureza, extraiam a força necessária para cada dia por

meio da contemplação do pôr do Sol do alto do Morro do

Urubu ou de um banho na Lagoa da Encantada. Também de lá

vinha o sustento para o corpo, fosse alimento ou remédio.

As doenças não se manifestavam com recorrência até a

entrada dos não-índios. Quando o mal-estar surgia, a infinidade

de raízes, ervas e frutos espalhados pela mata curava. Segundo

Pequena, os remédios naturais não falhavam, só não davam

certo quando Pai Tupã tinha de chamar um índio para a voz.

Quando nós não tínhamos contato com ninguém, nós

vivíamos melhor do que hoje. Era difícil adoecer e, quando

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adoecia, era doença para morrer de uma hora para outra. Não

passava quatro, cinco meses doente, nem levava a vida inteira

doente, porque os remédios serviam. Se estava gripado,

tomava chá de jatobá para ficar bom, a água do jatobá, ou da

ameixa e de outros remédios que servem. Se tinha uma

inflamação, tomava um “chá da cabeça do nego”.

Você arranca a “cabeça do nego” e faz as rolinhas. É uma

batata, tipo as que vendem na feira para a gente comer.

Ralava, tirava a goma, fazia o chá e tomava, que é bom para a

inflamação.

Hoje ninguém usa mais. É todo tempo no remédio

convencional. Uns servem, outros não servem.

Isolados, porém felizes, naturalmente. A simplicidade do

cotidiano, a união e a sensação de que ali estavam protegidos

sustentavam prazeres que impediam que os Cabeludos

quisessem outra vida. Até os casamentos surgiam dentro da

aldeia e, muitas vezes, entre pessoas da mesma família. Um

dos exemplos é Pequena e Seu Chiquinho, primos casados há

52 anos. Os pais de Pequena também eram parentes, Seu

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Alfredo era tio de Dona Maria Joana.

Embora a reclusão impedisse que os índios descobrissem

benefícios a que tinham direito, é dessa época que Pequena

sente falta. Lamenta a passagem dos anos em que havia

profunda comunhão entre os parentes, sustento totalmente

advindo da mãe-terra, encontros em volta da fogueira, e a

ausência de dinheiro – desnecessário para a sobrevivência

básica naquele período –, capaz de seduzir e cegar, em um

descuido, até mesmo os índios mais centrados nos princípios da

etnia.

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Cabeludos à vista

Hoje, Pequena tem facilidade para falar a um público formado por

índios e não índios, mas nem sempre foi assim Foto: Luiza Carolina

Figueiredo

Quando grupos de estudantes de colégio, universitários e

pesquisadores chegam à aldeia Jenipapo-Kanindé, geralmente

procuram Pequena para recepcioná-los e compartilhar as

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histórias que a guardiã da memória carrega consigo. A primeira

cacique mulher no Ceará faz questão de apresentar aos

visitantes da comunidade a cultura do povo dela, mesmo

durante o período em que esteve afastada do cacicado

oficialmente.

Pequena também não foge de entrevistas jornalísticas para

reportagens em quaisquer veículos de comunicação, seja na

própria comunidade ou durante encontros indígenas realizados

em todo o Brasil. Ela mesma pediu, dias antes do Marco Vivo,

que, se fosse possível, eu procurasse divulgar a celebração para

que repórteres pudessem fazer a cobertura e tornar ainda mais

conhecida a manifestação cultural tão importante para o povo

da Encantada. Entretanto, a relação entre a índia e os homens

brancos nem sempre foi harmoniosa. Os próprios Payakú, dos

quais os Jenipapo-Kanindé são descendentes, eram conhecidos

como índios agressivos que resistiam fortemente à invasão dos

brancos.

Ainda relembrando, saudosa, a vida em comunidade de

anos atrás, Pequena ressalta que as coisas começaram a mudar

quando pessoas “diferentes” entraram na aldeia, seja para

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estudo do povo indígena, saciar a curiosidade ou tomar posse

das terras dos, até então, Cabeludos da Encantada.

Nessa época, eram só as ocas de palha. Uns faziam

comprida, outros faziam redonda, faziam aquela porta, aquele

buraco, aquele arco. A casa do meu pai era um arco, a porta.

Aí faziam dois buracos, um buraco na frente e um buraco

atrás. Não tinha janela, não tinha nada, só aqueles dois

buracos de entrar e sair. Não tinha parede, não tinha nada, era

um vão só. Se tinham outras pessoas [na casa], a gente tinha

que se trocar nos matos. Ah, muito boa nossa vida

antigamente, um paraíso. Ah, se aquela época ainda voltasse,

mas não volta. Não volta mesmo. Hoje é diferente. Quando eu

comecei a ver gente, assim, que nem você, eu já fiquei

estranha [e dizia]: “Valha-me, Deus, o que esse povo veio ver

aqui?”

Em 5 de dezembro de 1967, é criado, por meio da Lei nº

5.371, a Fundação Nacional do Índio (Funai), com a

responsabilidade de “estabelecer as diretrizes e garantir o

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cumprimento da política indigenista” no Brasil, já

desmoralizada devido a inúmeras falhas do órgão anterior que

tinha atribuições semelhantes.

Antes de a Funai entrar em vigor, o Serviço de Proteção ao

Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) é

instalado em 1910 e, oito anos depois, passa a ser chamado

Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que atuou na região

Nordeste após solicitação dos próprios indígenas.

Desde o surgimento, o SPI esteve envolvido com processos

de aculturação dos índios, promovendo o etnocídio por meio de

ações que evidentemente priorizavam apenas o

desenvolvimento nacional, dentre elas, contatos com

comunidades indígenas objetivando integrá-las à sociedade por

meio de centros que atraíam os índios isolados; povoações para

os que estavam em processo de civilização; e centros agrícolas

para os que já haviam absorvido a proposta do SPI, segundo

informações que constam no livro “Diga ao povo que avance”,

tese de doutoramento da socióloga Kelly Oliveira.

A exploração disfarçada de assistencialismo perpetuou-se

durante muitos anos, acarretando inúmeras denúncias reunidas

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no Relatório Figueiredo, com 5.515 páginas, feito a partir de

uma Comissão de Inquérito presidida pelo Procurador-Geral

Jader Figueiredo, em 1967. De acordo com a pesquisadora

Kelly Oliveira e as referências que ela utiliza, o relatório

apontava, dentre as denúncias ao SPI, prostituição forçada,

desvio de verbas públicas e orçamentárias e falsificação de

documentos oficiais.

Com o advento da Funai, o governo federal tentou corrigir

a péssima imagem que o SPI havia deixado marcada em povos

indígenas, entretanto, o órgão também apresentou

incompetência no início, principalmente, durante a década de

1970, quando funcionários realmente preocupados com a causa

indígena eram demitidos ou pediam exoneração e outros com

pouco comprometimento eram contratados, conforme a

pesquisadora relata no livro.

A Funai também tardou a chegar à aldeia indígena de

Aquiraz e a iniciar o processo de reconhecimento da etnia e a

delimitação da terra. Antes de o órgão competente cumprir seu

papel com os Cabeludos da Encantada, estudiosos e outras

entidades envolvidas com os interesses indígenas tomaram à

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frente da busca pela efetivação dos direitos do povo da

Encantada.

Mesmo sabendo que eram índios, a política indigenista e

sua complexidade ainda lhes era desconhecida até o final da

década de 1970. Em publicação do Diário Oficial da União do

dia 18 de agosto de 2004, é informada a existência de índios na

região da Lagoa da Encantada a partir de dados levantados pelo

Núcleo de Geografia Aplicada (Nuga), do Departamento de

Geociências da Universidade Federal do Ceará, entre setembro

de 1981 e dezembro de 1982.

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Caracterização do Grupo Indígena - As notícias atuais, sobre os índios habitantes da Lagoa

Encantada foram publicadas em 19/02/84 no Jornal de Fortaleza, “O Povo”. A reportagem informava

a existência de índios que habitavam a localidade Lagoa da Encantada no município de Aquiraz, a

partir de dados levantados por uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual do Ceará - UECE,

no período de set/81 a dez/82 e coordenada pelo Núcleo de Geografia Aplicada do Departamento de

Geociências - NUGA.

Segundo esta pesquisa, a comunidade que habita na Lagoa Encantada possui “uma herança

cultural indígena, possivelmente de grupo dos Tapuios, da Tribo dos Paiacus” (NUGA,1983:568 in

Assis, 1998: 20). O Prof. José Cordeiro, participando de levantamentos realizados sob os auspícios da

Arquidiocese de Fortaleza, foi um dos interessados em pesquisar a etno-história desses índios,

identificando-os como descendente dos Jenipapo-Kanindé. Uma hipótese, baseada no livro “Os

Aborígenes do Ceará”, explica que os Jenipapo-Kanindé são remanescentes dos índios Baiacus,

também chamados Paiakú.

Mas, conforme o relatório histórico-documental, descendem dos Genipapo, Canindé e Paiakú. O

etnônimo por eles incorporado e pelo qual são conhecidos pelos regionais é “Cabeludos da

Encantada”. As conclusões das pesquisas do Prof. José Cordeiro em torno da definição do etnônimo

Jenipapo-Kanindé foram assumidas em sua totalidade por esta comunidade. Para eles, hoje, “Paiacu,

Cabeludos da Encantada ou Jenipapo-Kanindé é a mesma coisa”, assim falou a Cacique Dona

Pequena.

Diário Oficial da União, 18 de agosto de 2004.

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Para os Cabeludos da Encantada, a entrada dos

pesquisadores marca o início de uma nova fase na aldeia,

certamente irreversível. Após a divulgação da pesquisa do

Nuga, o advogado José Cordeiro adentrou a comunidade como

membro da Equipe de Assessoria da Arquidiocese de Fortaleza,

alertando os índios que ali habitavam sobre a possibilidade de

desapropriação das terras deles. Pequena não esquece da

primeira conversa com o mediador.

Foi feita uma pesquisa aqui na Encantada e descobriram

que nós éramos índios, porque pegaram toda a nossa cultura,

todos os nossos costumes, nossos modelos de viver e de ser e

disseram:

– Esse povo é índio, nem que eles não queiram ser, mas

eles são índios.

Esse povo vem para fazer o estudo e entra o Cordeiro. E o

Cordeiro pergunta:

– Pequena, vocês sabiam que vocês eram índios?

– Há muitos anos. Desde pequena, meu pai disse que nós

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éramos esse povo.

– Pequena, se vocês não se organizarem, vocês vão ser

despejados, porque descobriram nas pesquisas que vocês são

índios de Aquiraz, que vocês têm cinco descendências e vão

querer colocar vocês lá onde é a descendência mais forte, que

são os Payakú.

Aí todo mundo ficou doido, começou a chorar.

Segundo Cacique Pequena, naquela época, começaram as

investidas para remover os Cabeludos da Encantada em prol da

especulação imobiliária. Receosos, os índios se uniram a

comunidades de não-índios situadas próximas à aldeia,

Trairussu e Tapuio – formando uma associação – e, ao lado de

advogados da Pastoral Indigenista da Arquidiocese de

Fortaleza, batalharam para que a intrusão não fosse

concretizada. A índia não era a cacique da aldeia, mas, ainda

assim, foi em busca de dialogar com os envolvidos a fim de

resolver o conflito, no entanto, as portas fechavam quando

Pequena chegava. Foram frustrantes inúmeras tentativas. Ela

diz que somente após dois anos de associação das três

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comunidades, o prefeito de Aquiraz finalmente aceitou um

encontro para impedir a invasão.

Chamamos o prefeito, encostamos ele no pé da parede e

perguntamos:

– O que o senhor quer de nós? O senhor está disposto a

comprar a Lagoa da Encantada, mas o senhor está disposto a

comprar um terreno muito maior que o da Lagoa Encantada

para dar para os índios? Porque o senhor só pode ficar com a

Lagoa da Encantada se o senhor matar os índios um por um,

mas se o senhor deixar uma família, já não pode, porque a

gente vai lutar pelos nossos direitos até o ponto final.

Ele disse para nós que tinha voltado atrás.

A mudança do nome da etnia foi também uma das

principais novidades após a chegada dos pesquisadores. De

Cabeludos da Encantada, passaram a ser Jenipapo-Kanindé,

etnônimo ainda questionado na Academia, principalmente,

porque a ascendência mais expressiva seria a dos Payakú.

Logo, a comunidade foi pautada em diversas reportagens da

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época, nas quais já foi identificada a partir da denominação dos

estudiosos.

Para a Cacique Pequena, os índios não deveriam ter

aceitado a nomenclatura apresentada por pessoas de fora. Ela,

que já era influente na comunidade naquele período, afirma

que, se pudesse, voltaria atrás.

Como faz? Bota Jenipapo-Kanindé ou Cabeludos da

Encantada? Eu fiquei confusa e era para eu ter dito: “Não,

nós vamos ser Cabeludos da Encantada como nascemos e nos

criamos”. Mas eu fui dar na besteira de dizer: “É, bota

Jenipapo-Kanindé”.

Com o início das pesquisas, a aldeia se tornou mais

conhecida e atraiu novos visitantes, que eram recebidos com

desconfiança pelos índios da região, afinal, assim como o

universo indígena era novo para os brancos, estes assustavam

os Cabeludos da Encantada ainda que demonstrassem gentileza

e respeito.

Hoje, Pequena rememora, entre risos, as vezes em que foi

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hostil com os curiosos que a procuravam, até mesmo se

escondendo para evitar o contato com o homem branco, sendo

apelidada de “índia braba”. O cenário atual se difere também

nesse aspecto.

Eu corria e me escondia. Chegavam, batiam na porta, e eu

tava lá escondida, dentro dos matos, fugindo. Ficava por ali,

muito assustada, e as pessoas iam embora. Depois, passado o

tempo, quando eu dava fé vinha uma pessoa [e dizia]:

– Olha, Pequena, vim aqui com essa pessoa que queria te

conhecer.

– Pronto, tá me conhecendo.

Mas eu não dava a mínima atenção como eu estou dando

aqui para você, como estou conversando com você.

Aí a pessoa:

– Ah, ela não fala não?

– Não, ela fala, é porque ela é índia braba. Ela não dá

muita atenção a ninguém, não.

Tinha uma senhora, Socorro. Ela chegava aqui, uma

pessoa tão doce, tão humilde, era rica, mas fazia um papel de

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gente pobre. Botava o pé no chão e andava para todo canto

descalça. Aí ela chegava [e dizia]:

– Comadre Pequena, eu vim aqui para conversar com

você. Você pode conversar comigo?

– Não, eu estou muito ocupada. Tenho ali uma roupa para

lavar, não posso falar com ninguém.

Quando eu chegava na lagoa [da Encantada], tava

lavando as roupas, ela chegava:

– Oi, comadre Pequena, eu vim aqui para a gente

conversar e vim tomar banho.

Ela começava a conversar, a me fazer perguntas, ia

contando uma coisa aqui outra acolá, mas eu não contava nem

a metade, e ela tava ali, o sol começava a esquentar, ela era

alvinha e começava a se queimar. Eu dizia:

– Olha, é bom a senhora tomar seu banho e ir embora,

porque o sol tá lhe queimando (risos).

E era assim. Hoje, graças a Deus, passou todo o receio.

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Fotos: Arquivo O Povo/ Dário Gabriel

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A líder Pequena

Foto: Arquivo Diário do Nordeste/ Helene Santos

Das lembranças da infância que Pequena guarda, a música

que o pai cantava para niná-la, os banhos dados pelas irmãs

mais velhas, o gosto do beiju preparado no caco e o timbre de

cada parente jamais foram esquecidos. Audição, tato, olfato e

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paladar são, até hoje, sentidos bem apurados. A cegueira que

durou toda a infância era o principal motivo para reconhecer

tão bem o que a cercava mesmo sem enxergar.

Pequena relata que, com um mês e meio de nascida, levou

uma chuva muito forte, extremamente prejudicial para um bebê

da idade dela. Conseguia abrir os olhos, mas só via escuridão.

A natureza estava presente em todos os outros sentidos, mas

não podia ver a beleza que mais tarde traduziu em uma de suas

canções.

Para reverter a situação de Pequena, Dona Maria Joana

tentou de tudo, inclusive uma garrafada comprada em

Fortaleza. Nesse período, a família morava bem próximo à

praia, porém não imaginava que a cura para os olhos de

Pequena pudesse estar ali, aos montes. Se outrora a água que

cai do céu havia levado o resplendor dos olhos da pequena

índia, devolveu por meio do mar as chances para que ela

pudesse concretizar o sonho de ter o sentido que lhe faltava.

Um senhor que também morava na região fez o alerta,

indicando o remédio natural para a mãe da cacique: água de

ostra.

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Ele disse: “A senhora arrume a ostra, tire a água, e dê

para ela tomar e lavar a visão, passar em cima dos olhos

dela”.

A minha mãe começou a fazer, porque tinha ostra demais,

aí eu comecei a tomar e comer. E comecei a comer, comecei a

comer. Ora, minha filha, não deu um mês e eu estava vendo

tudo.

Certo dia, aos 11 anos de idade, Pequena abriu os olhos e a

escuridão havia desaparecido. A união dos azuis do céu e do

mar compunha o primeiro cenário visto pela índia. Ao falar

dessa primeira visão, um brilho surge por trás dos óculos de

grau com armação lilás. Em uma manhã de domingo, na sala

de casa, abaixo dos três quadros com retratos da neta Carline e

dos filhos Juliana e Preá, questionei qual foi a sensação ao

enxergar pela primeira vez. Pequena abriu o sorriso,

aparentando ter retornado mentalmente para aquele dia

marcante, e contou-me:

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A primeira coisa que eu vi foi o mar, porque a gente

morava de frente para o mar, em cima de um cabeçote de

morro. De lá, nós víamos o mar da cidade até aqui, o Iguape,

aquela coisa linda. Eu fiquei muito feliz [e disse]:

– Ah, eu quero ir naquele rio tomar um banho, mãe.

– Agora não, só quando você tiver bem boa.

Esse dia, para mim, foi tudo na minha vida, porque

conheci minhas irmãs, conheci meus pais, apesar de a

primeira coisa ter sido o mar, aquele rio imenso. Foi o céu

aberto para mim! De lá para cá, não fiquei mais cega, graças

a Deus.

Antes do início da programação de aniversário de quatro

anos do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, realizada no dia 12

de setembro de 2014, algumas canções de Pequena foram

reproduzidas precedendo o que está por vir no CD. Assim

como a luta indígena, a preservação da natureza é uma das

temáticas que Pequena musicou.

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A natureza divina/ é a beleza da vida

A natureza e a terra/ é a beleza da vida

(...)

Na natureza se vive/ tem lugar pra se morar

Preserve bem a natureza/ não deixe ninguém devorar

Nascida na mata, criada com o sustento que a terra oferece,

curada pelo mar. A natureza envolve Pequena em todas as

esferas da vida até hoje, assim, foi também uma das

motivações para que a índia se tornasse cacique dos Jenipapo-

Kanindé.

Percebendo a importância e os riscos do ambiente em que

vivia, resolveu batalhar pela comunidade, inicialmente, por

meio da atuação ao lado da Arquidiocese de Fortaleza e das

comunidades Tapuio e Trairussu. À época, a delimitação da

Terra Indígena (TI) Lagoa da Encantada tradicionalmente

ocupada era uma das reivindicações mais importantes após o

reconhecimento da etnia.

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Entenda as Fases do Processo Administrativo das Terras]

Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas

De acordo com a Constituição Federal vigente, os povos indígenas detêm o direito originário e o

usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam. As fases do procedimento

demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas, abaixo descritas, são definidas por Decreto da

Presidência da República e atualmente consistem em:

Em estudo: Realização dos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e

ambientais, que fundamentam a identificação e a delimitação da terra indígena.

Delimitadas: Terras que tiveram os estudos aprovados pela Presidência da Funai, com a conclusão

publicada no Diário Oficial da União e do Estado, as quais se encontram na fase do contraditório

administrativo ou em análise pelo Ministério da Justiça, para decisão acerca da expedição de Portaria

Declaratória da posse tradicional indígena.

Declaradas: Terras que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória pelo Ministro da Justiça e

estão autorizadas para ser demarcadas fisicamente, com a materialização dos marcos e

georreferenciamento.

Homologadas: Terras que possuem os limites materializados e georreferenciados, cuja

demarcação administrativa foi homologada por decreto presidencial.

Regularizadas: Terras que, após o decreto de homologação, foram registradas em Cartório em

nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União.

Interditadas: Áreas Interditadas, com restrições de uso e ingresso de terceiros, para a proteção de

povos indígenas isolados.

Reservas indígenas

A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e

ocupação pelos povos indígenas, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao

usufruto e à utilização das riquezas naturais, garantindo-se as condições de reprodução física e

cultural.

Para constituição das Reservas Indígenas, adotam-se as seguintes etapas do processo de

regularização fundiária:

Encaminhadas com Reserva Indígena (RI): Áreas que se encontram em procedimento

administrativo visando a sua aquisição (compra direta, desapropriação ou doação).

Regularizadas: Áreas adquiridas que possuem registro em Cartório em nome da União e se

destinam à posse e ao usufruto exclusivos dos povos indígenas. * inclue-se neste item, a área

Dominial

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A coragem e a propriedade para falar nos encontros

indígenas mesmo sem escrever ou ler discursos prontos e o

desejo de conquistar condições melhores para os parentes

também prepararam Pequena para a missão que se aproximava.

Quando o cacique dos Jenipapo-Kanindé, Adorico, faleceu,

em 1992, junto ao lamento pela perda veio a necessidade de

escolher outro indígena para assumir o cacicado da etnia. A

aldeia ainda ficou órfã durante três anos. Devido à luta já

notória e à firmeza com a qual a mulher buscava inserir os

direitos dos Jenipapo-Kanindé nas prioridades dos órgãos

responsáveis pela política indigenista, a comunidade se reuniu

junto a funcionários de entidades que atuavam na aldeia e

elegeu Pequena como a nova – e primeira liderança feminina –

dos Jenipapo Kanindé, no dia seis de março de 1995.

Em um encontro que iniciava em Minas Gerais e encerrava

em Brasília, a cacique teve de se apresentar aos parentes

indígenas. A data ela também não esquece: 12 de março de

1995, seis dias depois de assumir a liderança do povo da

Encantada. Embora tenha escapado de comentários machistas

na aldeia ao ser escolhida para liderar o próprio povo, o mesmo

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não aconteceu nos Estados pelos quais passou na primeira

viagem para fora do Ceará. Pequena afirma que, à época, não

existia cacique mulher, assim, sendo pioneira na representação,

atraiu olhares e palavras preconceituosos, principalmente de

lideranças masculinas de outras regiões.

Em documentário produzido pelo Centro de Defesa e

Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza

(CDPDH), Pequena conta que, após ofensas que sofreu por

parte de alguns índios que estavam presentes no encontro em

Minas Gerais, por ser uma cacique mulher, a fizeram tomar um

líquido verde para que provasse o potencial para assumir uma

comunidade indígena. Ela temeu, pois não sabia o que era a tal

gororoba nem quais os efeitos que a bebida poderia causar.

Pediu forças a Deus, entornou o líquido goela abaixo de uma

vez só, permaneceu firme e ganhou a aprovação dos demais

para seguir a viagem até Brasília, onde fariam uma marcha

reivindicando medidas relacionadas ao Estatuto do Índio – até

hoje com revisão solicitada por etnias indígenas e organizações

não-governamentais paralisada na Câmara Federal.

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Eles fizeram uma zoada, [disseram] que mulher não podia

ser cacique, mas eu disse:

– Eu não estou aqui para brincar, estou aqui para

trabalhar pelo meu povo.

Sofri [preconceito]. Sofri muito, muito, muito. De uns anos

desses para cá, foi que parou o preconceito, depois que eu

disse que era a primeira cacique mulher no Ceará e no Brasil,

porque para trás não existia [cacique] mulher.

Mesmo tendo de cuidar dos afazeres de casa, do esposo e

dos filhos – alguns ainda crianças –, Pequena não desistiu do

cacicado enquanto esteve saudável para assumi-lo. Viajou

quase o Brasil inteiro para participar de encontros e

manifestações, organizou reuniões e eventos na aldeia e

dialogou com autoridades a fim de obter conquistas para o

povo dela, até então à margem de uma sociedade indiferente.

Um dos primeiros desafios que surgiram na caminhada

como cacique foi a demarcação da Terra Indígena Lagoa da

Encantada. Pequena agarrou a missão para si e não sossegou

até oficializar a posse das terras dos Cabeludos da Encantada.

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Procurou a Funai para que delimitassem o pedaço de chão e

reconhecessem a etnia.

E eu falei que tinha ido lá em Brasília, não para passear

nem a lazer, eu tinha ido lá a trabalho, que eu queria o povo

dele [funcionário da Funai] aqui na aldeia para fazer um

trabalho com a gente, pra reconhecer de verdade se a gente

era índio, se não era, porque estava sendo uma coisa muito

pesada para mim, eu precisava ir lá mesmo, ver a firmeza da

Funai. Aí ele disse:

– Nem hoje, nem amanhã, mas quando você menos esperar

eu chego lá.

De fato, quando foi em 1997, eles bateram aqui e fizeram

esse trabalho e disseram:

– Desde 1974, nós temos contato com uma pessoa nossa

que é do Ceará, mas trabalha em Brasília, que disse que em

Aquiraz tinha uma tribo de índios que estava muito

escondidinha.

Mas até hoje não sei quem é essa pessoa. Eu comecei a

juntar mesmo com “gosto de gás” e disse:

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– Eu vou ver resultado daqui para frente, que vai dar, se

Deus me der força e coragem. Eu vou trabalhar por vocês.

Pequena começou a estudar aos 67 anos, na escola da própria

comunidade Foto: Arquivo Diário do Nordeste/ Helene Santos

O primeiro resultado da luta de Pequena como Cacique foi

em 1999, ainda no Governo de Fernando Henrique Cardoso. A

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TI Lagoa da Encantada foi delimitada, abrangendo 1734

hectares e promovendo uma das maiores manifestações

culturais dos Jenipapo-Kanindé: a festa do Marco Vivo, que

aconteceu pela primeira vez naquele ano, em comemoração

pela conquista.

Já o reconhecimento foi oficializado no segundo ano de

governo Lula (2004), e a demarcação, sete anos mais tarde, no

primeiro ano de Dilma Rousseff como presidente (2011). No

momento, os Jenipapo-Kanindé aguardam a homologação da

terra.

Conforme os anos na liderança da comunidade passaram,

outras conquistas foram alcançadas por Pequena, trazendo

melhorias para o povo indígena.

Mesmo sem saber ler e escrever, a cacique sempre

reconheceu a importância da escola na formação dos índios.

Desde 1988, crianças e adolescentes da aldeia, a depender da

série, não precisam se deslocar até o Iguape para ter acesso à

educação, mas somente em 2000 a escola da aldeia passou a

contar com alguns professores indígenas. Inicialmente, a

Escola de Ensino Fundamental e Médio Jenipapo-Kanindé

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localizava-se na estrutura onde hoje funciona o Museu

Indígena Jenipapo-Kanindé e a Pousada, mas em 2007 recebeu

uma estrutura em forma de cocar, desenhada por arquitetos da

Funai, e, atualmente, conta com quase todo o corpo docente

formado por indígenas, exceto os que ministram as aulas do

EJA (Educação de Jovens e Adultos).

Aos 67 anos, Pequena passou a ser, também, uma aluna da

Escola Indígena Jenipapo-Kanindé e iniciou os estudos.

Atualmente, cursa o EJA 2 e, embora tenha ficado adoentada

durante um tempo e, por isso, se ausentado das aulas, retornou

neste ano, já apresentando resultados do aprendizado.

No Encontro Povos do Mar, realizado pelo Serviço Social

do Comércio (Sesc-CE) em agosto de 2014, encontrei Pequena.

Na ocasião, ela ia ministrar uma oficina de Lambedor de

Carrapicho e Pepaconha, à tarde, mas, pela manhã, estava

participando da programação nas tendas espalhadas. Em uma

oficina de horta suspensa, na qual aprendemos a plantar em

uma garrafa PET que poderia ficar pendurada em algum

ambiente da casa. Uma das etapas do processo era decorar a

garrafa onde a cebolinha ou o coentro – as sementes que nos

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disponibilizaram – cresceriam. Ela pegou o pincel, molhou na

tinta verde e escreveu “Jenipapo-Kanindé” sobre o plástico,

lendo e mostrando orgulhosa aos que estavam próximo. Mais

tarde, falou-me sobre a satisfação de estar aprendendo a ler e a

escrever além do próprio nome e o desejo de ingressar na

Universidade.

Só vou deixar de estudar quando eu morrer. Já estou lendo

um pouco, já estou escrevendo um pouco. Meu sonho é

terminar o 2º grau e depois fazer uma faculdade de

Antropologia, para defender meu povo.

Ao entrar na aldeia indígena Jenipapo-Kanindé é possível

avistar, logo no início, o Centro de Referência de Assistência

Social Indígena (Cras Indígena) e o Posto de Saúde, conquistas

também obtidas por meio da luta de Pequena. Em 2001, chegou

água encanada e energia. O Galpão de Artesanato Tio Adorico

foi inaugurado em 2006, e o Museu Indígena Jenipapo-

Kanindé celebrou quatro anos de existência em setembro de

2014.

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Retorno ao cacicado

Cacique Pequena esteve debilitada, quase sem forças para

liderar os Jenipapo-Kanindé, função que exigia muita energia

da índia, em 2010. Percebendo que a situação poderia se

agravar e a comunidade indígena correr o risco de ficar órfã

novamente, pediu que a filha mais nova, Juliana Alves,

assumisse a liderança da aldeia como cacique Irê, apoiada por

Conceição Alves, a cacique Jurema, também filha de Pequena.

Entretanto, a antiga cacique apresentou melhora na saúde com

o passar dos anos e, mesmo distante da liderança oficialmente,

participava dos encontros e rodas de conversas com os

visitantes, palestrava e ia à luta por direitos ainda não

alcançados.

Em agosto de 2014, Juliana anunciou que deixaria o

cacicado (detalhes no capítulo 2), retornando a função àquela

que, na prática, nunca abandonou o posto.

Todo mundo dizia que eu desistisse dessa luta. [Diziam]

que eu desistisse, que nada ia ser feito. “Besteira, isso não tem

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futuro. Principalmente tu, que não tem leitura, não sabe de

nada, como é que tu vai lá fora falar com o povo?”

Eu não vou baixar a cabeça. Comecei a falar, reivindicar o

direito deles.

Se eu tivesse me acomodado? Talvez nem aqui existisse,

porque aqui estaria tomado por homens brancos. Tinham

comprado por uma migalha de nada e para onde nós teríamos

ido? Sofrendo, no meio do mundo, morando no canto de um,

no canto de outro.

(...)

Enquanto eu for viva, vou lutar por esse povo até a morte.

Só paro se eu tiver no fundo da rede, sem poder falar.

Ao entrar no Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, no dia da

comemoração do quarto aniversário da estrutura, deparei com

uma frase feita com pedaços de cipó do lado oposto ao da

porta: “Nós não somos povos emergentes. Nós somos povos

resistentes”.

Na semana seguinte, retornei à comunidade e Raquel Alves,

neta de Pequena, contou-me que a máxima era de autoria da

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cacique. Foram os jovens da comunidade indígena que

marcaram a frase nas paredes que guardam fotos, instrumentos

e textos que revelam fragmentos da história da etnia. Nada por

acaso. Pequena é símbolo de resistência e inspiração para os

mais novos em uma aldeia vitimada em diversos aspectos em

prol de um “desenvolvimento” que, gradualmente, invade

terras tradicionalmente ocupadas por etnias indígenas.

Guardiã da memória dos Jenipapo-Kanindé, a cacique traz

consigo as vivências de Cabeludos da Encantada, as lendas

submersas na lagoa, as lutas de um povo inocente, porém,

determinado a defender o território.

Mas Pequena é presente porque o espírito de liderança é

perpétuo. Mesmo quando esteve afastada do cacicado e

nomeado Juliana e Conceição, não se distanciou da batalha por

condições melhores para os Jenipapo-Kanindé, recebe os

visitantes – que quase sempre chegam a fim de conhecer a

primeira cacique mulher no Brasil –, apresenta a si mesma

quando fala da aldeia e pode observar de forma atenta e

vigilante tudo que acontece na comunidade, mesmo sem tantas

condições físicas para subir o Morro do Urubu, de onde é

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possível avistar quase todo o território.

Pequena também é futuro, pois o discurso bem sustentado,

as músicas compostas e cantadas por ela, as tradições

absorvidas e repassadas e as conquistas para a comunidade são

legados aos índios Jenipapo-Kanindé, especialmente às

lideranças jovens, que cresceram, literalmente, com a sabedoria

dessa mulher da Encantada.

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Capítulo 2]

As mulheres em Irê

Foto: Gleydson Moreira

Das três mulheres da Encantada retratadas neste livro-

reportagem, Juliana Alves, a Irê, é quem acompanhei mais de

perto. Além de nossas conversas em dias de apuração

específicos, estive hospedada na casa dela durante quatro dias

no início do mês de maio de 2014, observando mãe, cacique,

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diretora da escola, estudante e esposa reunidas em uma só.

Como uma mulher multifacetada, possivelmente algumas

das funções e dos estados de personalidade de Irê escaparam.

Penso isso porque o que mais me desperta curiosidade na

caçula de Pequena é o olhar cor de mel dotado de mistério.

Dificilmente arregalam, tampouco são baixos. Poderia

compará-los aos de um felino: observadores, sérios e

enigmáticos. No entanto, é possível perceber que não resistem

e inevitavelmente apertam quando ela abre sorrisos, mas de

formas diferentes. São carinhosos quando brinca com o

pequeno Levy; brincalhões quando conversa com Grazi;

apaixonados ao fixar os de Cleilton; e contemplativos ao ouvir

atentamente os discursos de Pequena.

A caçula é a primeira mulher da Encantada que conheci

pessoalmente. Heraldo nos apresentou em minha primeira

visita à aldeia. Ela estava à beira do fogão, vestida à vontade,

preparando o almoço, de olho em Levy, o filho mais novo, na

época, com apenas quatro meses.

Juliana demonstrou ter ficado contente com meu projeto.

Naquele dezembro, eu ainda não tinha decidido qual seria a

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abordagem que seguiria para escrever a trajetória dos Jenipapo-

Kanindé, mas acredito que a Cacique Irê foi uma das maiores

inspirações para que optasse por versar sobre a etnia a partir do

universo feminino ali contido.

Entre a data do nascimento dela e a do meu, correm sete

anos e “uns quebrados”. Talvez pela pouca diferença de idade,

em alguns momentos nos permitíamos compartilhar assuntos

da vida pessoal, como relacionamentos, faculdade e futuro

profissional.

Por outro lado, acredito que o fato de ela ser pouco mais

velha que eu, mãe de uma adolescente e de um bebê, e ter

aberto as portas de casa para que eu pudesse me hospedar lhe

conferiu um sentimento de responsabilidade sobre mim. Vez

por outra ela perguntava se eu estava com fome ou se eu já

tinha ligado para minha mãe.

Assim reconheci que, embora inúmeras particularidades

nos distanciem culturalmente, guardamos mais semelhanças do

que temos em mente. Ela, da Encantada; eu, da região

metropolitana paulista: somos mulheres.

Nascida em 1985, poucos anos após a chegada dos

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primeiros pesquisadores à aldeia Jenipapo-Kanindé, Juliana foi

escolhida para personificar aspectos da comunidade neste

projeto não somente por ter assumido o cacicado do povo dela

durante um período, mas, principalmente, por representar

muitas transformações pelas quais a etnia passou ao longo

desses quase 30 anos – de uma vida isolada à batalha por

desintrusão –, refletindo grandes processos de mudanças já

incrustadas nos índios mais jovens, mas sem perder o desejo e

a coragem movidos por ideais de alcançar a atenção do poder

público e, consequentemente, melhorias que os Jenipapo-

Kanindé ainda necessitam.

Segundo Juliana, o nome Irê foi escolhido por Pequena; é

“luz dos encantados”. Até o processo de editoração, não

consegui confirmar qual a origem e o significado da palavra

com exatidão. Mas, se a principal proposta deste trabalho é dar

voz às mulheres da Encantada para que elas mesmas falem de

si, optei por adotar o que representa à mãe e à filha. Meus

escritos compõem apenas o canal.

Com vocês, Juliana Alves, a Irê.

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Uma cacique em formação

Irê em roda de toré durante o Marco Vivo de 2014, fumando o cachimbo

de ervas que integra o ritual da etnia Foto: Melquíades Junior

O povo Jenipapo-Kanindé se reúne para o ritual de

passagem. Juliana está parcialmente trajada com vestes

indígenas, com cocar de penas pretas e brancas e colares feitos

com sementes, mas com camiseta e calça, à direita. Conceição

está com vestes de palha, também de cocar e colares artesanais,

à esquerda. Entre as duas, Pequena chama a atenção dos

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presentes para o momento que será introduzido. A cacique usa

vestimenta e adereços muito semelhantes aos de Conceição.

As três se abraçam enquanto Pequena segura em um dos

braços os cocares das filhas, invocando os encantados a

estarem presentes na cerimônia e fortalecerem Juliana e

Conceição na missão que lhes está reservada. Agora são Irê e

Jurema, respectivamente. Como Pequena afirma, a partir dali

“vão viver juntas, unidas como duas almas em um só corpo”.

O ritual, realizado em 2011, pode ser revisitado por meio

do documentário “Os Cabeludos da Encantada”, produzido

pelo Banco do Nordeste (BNB) em parceria com o Banco

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e

o governo federal.

Para realizar a passagem do cacicado, foi aguardado o Dia

do Marco Vivo. Entretanto, o convite para Juliana e Conceição

assumirem a liderança da etnia chegou meses antes.

Em uma aldeia indígena, não é tão comum a mudança de

cacicado não sucedida pela morte do líder anterior. No caso dos

Jenipapo-Kanindé, a substituição proposta por Pequena

aconteceu devido ao adoecimento da líder, que achava que não

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tinha condições de seguir à frente da etnia oficialmente.

Querendo manter a tradição do cacicado feminino iniciado por

ela, convocou Juliana e Conceição, também conhecida como

Bida (ou Bidinha), para anunciar o desejo às filhas.

Ela estava debilitada, adquiriu hipertensão, teve uma crise

muito grande e achava que não ia sobreviver, então me

chamou e perguntou se eu queria. Ela disse que não queria

que essa tradição morresse:

– Eu queria dar continuidade com vocês, mulheres.

– Pois pronto! Sozinha, eu não tenho coragem de enfrentar,

mas se tiver uma outra pessoa eu enfrento.

Foram as duas que sempre se destacaram no movimento

local e estadual, eu e a Bidinha, a cacique Jurema, e aí a

Bidinha disse que aceitava, que para ela não tinha problema.

[Eu disse:]

– Embora a senhora nunca deixe de ser cacique, a gente

vai ser cacique. Mas a gente só vai atuar como cacique mesmo

no dia que a senhora for chamada para a voz.

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À época, Juliana tinha 25 anos e temia arriscar a imagem de

líder caso falhasse como humana. No entanto, a intuição de

Pequena ao optar pela filha mulher mais nova para sucedê-la

foi, provavelmente, influenciada pelo histórico de força e

responsabilidade que Juliana carrega desde criança.

Ela não recorda por motivos óbvios, mas a mãe teve o

papel de contar que, com apenas oito meses de vida, Juliana

teve de lutar para sobreviver. Um agravamento em uma crise

de asma a levou ao hospital – naquele período, mais acessível

aos indígenas em relação à infância de sua mãe, mas bem

menos do que hoje –, onde ficou internada durante alguns dias.

Ela [Pequena] disse que eu ficava muito nos aparelhos de

oxigênio. Ela disse que olhava para mim e dizia: “Meu Deus,

eu entrego a minha filha nas tuas mãos. Se não for para ela

viver, pois então que Tu tire ela dessa situação”.

Aí ela disse que, depois, eu reagi bem.

O relato acontece em um quintal situado aos fundos da casa

de Juliana. Após sair de uma piscina de plástico, onde brincava

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com o filho Levy, ela seca-se rapidamente, entrega o menino à

filha Grazi para sentar-se comigo e compartilhar um tanto da

própria trajetória. A casa está movimentada e vez por outra

alguém chega para cumprimentá-la ou entregar à então cacique

o caçula para que ela possa amamentá-lo.

Mesmo sendo interrompida, Juliana demonstra não ter

facilidade em perder o raciocínio. Retorna para o mesmo ponto

resgatando o passado a uma curiosa aprendiz de jornalista.

Assim, expõe um resumo da infância traçada sobre caminhos

ora leves e divertidos, ora árduos e desafiadores.

As brincadeiras entre as crianças ao ar livre na aldeia

estavam entre os passatempos preferidos de Juliana, no entanto,

os pequenos também tinham o compromisso de ajudar os mais

velhos a garantir o sustento da família.

Durante a safra do caju, do qual a castanha é fonte de renda

de muitos cearenses até hoje, era comum a família Jenipapo-

Kanindé se reunir para trabalhar na produção, embora a casa de

farinha só tenha sido instalada em 1999, quando Juliana já

tinha 14 anos.

Com propriedades nutricionais aproveitadas em diversos

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alimentos e o potencial medicinal para curar inflamações, o

murici – que significa “árvore pequena” em tupi – também

convocava o povo da Encantada a trabalhar, o atraindo para

dentro da mata na época da safra.

Quando criança, com uns seis anos, oito anos, a gente já

tinha aquela responsabilidade de ajudar a mãe e o pai dentro

de casa. As mulheres, principalmente, nas atividades dentro de

casa e, na comunidade, a gente tem um lado – antigamente era

mais forte, hoje não – da produção de castanha de caju. Na

época do caju, na safra do murici, eu já ganhava as matas

mais as meninas atrás de castanha, atrás de murici, aí a gente

vendia. A gente vendia o quilo de castanha por cinquenta

centavos, que era um dinheirão grande. A terça [parte] do

murici, a gente vendia por um real.

A instalação da primeira instituição de ensino na aldeia

Jenipapo-Kanindé aconteceu em 1988, após solicitação de

Pequena, que recebeu a proposta de escolher entre uma igreja e

uma escola e optou pela segunda por ter o grande desejo de que

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os curumins fossem educados na própria aldeia.

Aos quatro anos, Juliana passou a frequentar a Escola

Beneficente dos Moradores da Lagoa Encantada e Tapuio

Elcira Gurgel, que, na época, só contava com professores não-

indígenas. Assim, as danças de toré e as aulas com formações

sobre a cultura indígena, hoje semanais na Escola Indígena

Jenipapo-Kanindé, não faziam parte da rotina dos alunos.

Entretanto, os professores brancos já alertavam aos pequenos

índios sobre o reconhecimento e a valorização da etnia a qual

pertenciam. Juliana recorda muito bem as vezes em que tia

Regina prenunciava que, um dia, ela e seus colegas estariam à

frente da educação indígena na aldeia Jenipapo-Kanindé.

Até os meus dez anos, eu ainda não tinha conhecimento

sobre a questão cultural, mas na escola mesmo, as

professoras, embora não fossem indígenas, falavam. A diretora

da nossa escola dizia muito isso, a tia Regina:

– Vocês têm de aprender, vocês têm de ter essa

responsabilidade, porque aqui quem vai tomar de conta mais

na frente vão ser vocês. A gente tá aqui só para ajudar, mas

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vocês são os nativos, vocês têm uma cultura diferente.

Embora elas não trabalhassem [a cultura indígena] –

porque como é que elas iam trabalhar o toré, se elas não eram

descendentes, não tinham nada a ver com a comunidade? –,

elas sempre alertaram que nós seríamos os novos professores

daqui, que a gente se dedicasse para a gente não desistir na

caminhada, o que a gente tivesse de enfrentar, enfrentasse,

porque, assim, seríamos nós os futuros professores.

Para estudar, os primeiros desafios a serem enfrentados fora

dos limites da aldeia surgiram quando Juliana ingressava na

oitava série. À época, a turma para esse estágio não foi

formada na escola da comunidade, pois o número de alunos era

muito pequeno. Assim, os estudantes tinham de se deslocar até

o Iguape para participar das aulas, percorrendo um longo

caminho durante aproximadamente duas horas, sob o

escaldante sol, e, ao chegar, enfrentando o pungente

preconceito que atacava os índios da Encantada

impiedosamente.

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Quando minha mãe me matriculou no Iguape, não tinha

transporte escolar, a gente tinha de andar oito quilômetros a

pé, subindo morro, descendo morro e, mesmo assim, a gente

ia. A gente saía daqui por volta de dez horas, 10h30min da

manhã, porque eu estudava à tarde, e a gente chegava no

Iguape por volta de 12 horas.

Quando eu cheguei na escola, alguns ainda tinham

preconceito [e diziam]: “Ah, chegaram as índias, as índias

fedorentas, não sei o quê”.

Então ficavam falando, sabe? Discriminando mesmo. A

gente só baixava nossa cabeça. Como tudo aquilo era um

mundo novo, a gente nunca tinha saído daqui e, quando saía,

era para alguma atividade relacionada à questão cultural e

acompanhada de uma liderança, de repente, a gente se sentiu

acuada.

Juliana nasceu na metade da década de 1980, portanto, era

muito pequena quando a comunidade foi “descoberta” pelos

pesquisadores, Aos dez anos, viu a mãe se tornar cacique dos

Jenipapo-Kanindé e passou a acompanhá-la nos encontros

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indígenas não somente por ser uma das filhas mais novas, mas,

especialmente, por dominar leitura e escrita.

Eu tinha uns 11 para 12 anos quando começaram as

primeiras visitas dos outros povos, as outras lideranças, como

Cacique João Venâncio, Cacique Daniel, Dourado Tapeba. A

primeira comunidade que se levantou, tendo a identificação

garantida pela Funai, foi Tapeba, depois Tremembé, Pitaguary

e Jenipapo-Kanindé, e aí começaram as articulações, um povo

ia ajudando outro. Aqui, como a gente começou a se

reconhecer na década de 1980, de 80 para os anos 1990 foi

quando começou a articulação dos outros povos. É como se

fosse assim: para tu te erguer em alguma coisa, alguém teria

de te ajudar, para promover. Do mesmo jeito, uma etnia ia

fazendo com a outra e aí vinham os momentos de reunião. E eu

lembro que eu criança, adolescente, engajada e letrada, ficava

escrevendo as coisas que o pessoal falava para a mãe. Ela

sempre pedia: “Minha filha, escreva para mim”.

Jovem, responsável, focada nos estudos, braço direito da

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mãe na gestão da aldeia Jenipapo-Kanindé. Dificilmente,

alguém poderia pensar que uma gravidez inesperada pausaria o

caminho que Juliana seguia disciplinadamente.

Com medo da decepção que poderia causar, escondeu a

gestação enquanto foi possível, mas aos quatro meses a barriga

saliente revelou que ali se formava a primeira filha de Juliana,

Grazi. Para o povo da etnia, a notícia foi um baque. Durante a

gravidez, a caçula de Pequena teve de interromper a oitava

série, se afastar dos movimentos indígenas, morar com Paulo, o

pai da criança – dez anos mais velho –, e procurar um emprego

para auxiliar no sustento da nova família.

O primeiro emprego de Juliana com carteira assinada foi

como auxiliar de serviços gerais em uma casa de apoio em

Fortaleza voltada para o acolhimento de indígenas que

precisavam de consultas e tratamentos médicos na capital, fruto

de parceria entre a Copice (Coordenação e Organização dos

Povos Indígenas do Ceará) e a Funasa (Fundação Nacional de

Saúde).

Eu saía da aldeia por volta de quatro e meia da manhã e

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tinha de chegar em Fortaleza antes das sete horas, porque era

eu quem preparava o café, era eu quem botava o lanche dos

pacientes, e tinha de retornar para a aldeia por volta de seis

horas, então não dava tempo de estudar nem lá nem aqui.

Na adolescência, a índia ocupara um cargo no Conselho de

Saúde da aldeia, portanto já tinha familiaridade com o novo

emprego. No entanto, o trabalho exigia dedicação em tempo

integral, impedindo Juliana de realizar o desejo que ansiava há

tempos: o retorno aos estudos. O gosto pelo conhecimento

pesou mais no momento da decisão. Mesmo com a filha

pequena para cuidar, terminou o Ensino Médio aos 22 anos,

provando à mãe que a menina que a orgulhava não havia

escapado.

Como desde pequena eu me destacava, minha mãe

começou a ver que, embora tivesse construído uma família,

embora já tivesse filho, ela disse que isso não impedia de eu

seguir o que eu queria ser.

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Aos poucos, Juliana foi enfrentando o que a intimidava, se

revelando uma mulher firme nas escolhas. Além de voltar a

estudar e planejar especializações para auxiliar na garantia de

direitos aos indígenas, após oito anos de união desgastada com

Paulo, segundo ela, devido ao desrespeito que sofria e a

algumas irresponsabilidades do então companheiro em casa,

decidiu se separar.

O casal já passara por idas e vindas em momentos

anteriores e, segundo ela, Paulo contava com uma

reconciliação depois do anúncio de Juliana. A índia, que havia

retornado às ações dos movimentos indígenas, viajou para

Recife para participar de um encontro promovido pela Funai

sobre políticas de territórios, deixando Grazi sob os cuidados

de Pequena. Em agosto de 2009, retornou da viagem direto

para a casa da mãe, rompendo o relacionamento com o ex-

companheiro.

Apesar do parentesco, Juliana e Cleilton, neto do finado

cacique Adorico, só começaram a se aproximar um ano depois

da separação dela. Inicialmente, o ex-marido não queria aceitar

o namoro, ainda investindo em tentativas de ter Juliana de

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volta. Mas ela já não era mais a mesma. Como costuma dizer

ao relatar algumas situações em que teve de se impor para não

perder a própria paz, “não abaixou a cabeça”. E seguiu.

Passaram alguns meses, eu comecei a me aproximar do

Cleilton, uma pessoa muito distante de mim, não tínhamos

contato. Quando assumimos o namoro, depois de um ano

separada do pai da Grazi, ele [Paulo] não aceitava. Mas

mesmo assim a gente não abaixou a cabeça. Quando foi em 17

de julho de 2011, a gente noivou. Quando foi no dia 02 de

março de 2012, a gente casou no civil, e, no dia 5 de maio de

2012, a gente casou no religioso. Depois do noivado foi

quando Paulo se conformou, viu que eu não ia voltar para ele.

A separação de Juliana e, consequentemente, o retorno à

casa da mãe aconteceram na mesma época em que a caçula foi

convocada a assumir o cacicado dos Jenipapo-Kanindé. O

período representou uma reviravolta na vida da índia, que, logo

depois, se casou com Cleilton.

O intervalo de quatro anos parece ter sido suficiente para

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que Juliana mostrasse a determinação naturalmente dela, a qual

havia sido reprimida sem lhe dar chances de persistir em seus

objetivos. Ao tomar a frente da aldeia Jenipapo-Kanindé como

cacique Irê, batalhou não somente pelo povo dela, mas também

pela própria autonomia. Talvez esse momento marque, de fato,

a transição de menina à mulher.

De mulher para mulher

Foto: Melquíades Junior

Juliana é vaidosa com a aparência. Seja no cotidiano ou

quando se caracteriza com pinturas e adereços indígenas,

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mostra que há uma preocupação com o exterior. Gosta de salto,

vestido, maquiagem, unhas e cabelos bem cuidados. Não

dispensa o belo cocar de penas de arara, o urucum na região

dos olhos, o brinco de filtro dos sonhos e os colares de

sementes em dias de celebrações.

Quando Juliana chega, exala beleza e seriedade. Ela sabe se

impor, atrai olhares com a presença que tem não somente pelo

visual, mas, especialmente, pelo ar político com o qual conduz

o povo Jenipapo-Kanindé.

No Dia do Marco Vivo, a então cacique chega

cumprimentando todos que já estão reunidos no alpendre do

Museu e Pousada Jenipapo-Kanindé. Pinta algumas crianças

com a tinta vermelha do urucum e, junto a Pequena e Raquel,

adorna o tronco de Yburana que carregaria mais tarde para

plantá-lo nos confins da TI Lagoa da Encantada.

Ao iniciar a festa, Juliana chama a atenção do povo para

que todos se reúnam e escutem o discurso de abertura.

– The Amb Koema! (Bom dia em tupi, segundo Juliana, que

também me mostra como escreve)

Como nem todos respondem à saudação, ela repete:

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– The Amb Koema!

– The Amb Koema Abé! (A resposta, também ensinada a

mim por Juliana)

Em voz alta, anuncia a programação do Marco Vivo, que,

por ter começado com atraso, vai durar até o final da tarde.

Passa a palavra à Pequena e, posteriormente, convida o povo a

entrar na primeira roda de toré da manhã.

Com maraca em mãos e muita energia, cacique Irê canta

com força a luta e a tradição do povo indígena cearense. Vez

por outra, fumega o cachimbo com ervas e dá goles no

mocororó compartilhado na cuia. Ela está na roda de dentro, ao

lado dos parentes, os quais tocam instrumentos de percussão e

puxam a música seguinte.

Na Tapera, na Tapera

Onde eu fui governador

Na Tapera, na Tapera

Onde eu fui governador

Aiá eu lá, na Tapera

Aiá eu lá, na Tapera

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Aiá eu lá, na Tapera

Aiá eu lá, na Tapera

Ao finalizar a primeira rodada de toré, Juliana intima

representantes de etnias (Anacé, Pitaguary, Tapeba, Kanindé de

Aratuba) e de entidades voltadas para a política indigenista

(Funai, Copice, CDPDH) que estão presentes no evento a se

apresentarem.

O primeiro a falar é o representante da Funai, da comissão

do Serviço Gestão Ambiental Territorial da Funai (Segat),

apontado por Juliana: “É tu, vem para cá!” Na ocasião, o

funcionário havia aparecido na aldeia por acaso a fim de

realizar um trabalho a mando do Ministério Público Federal e

deparou com a celebração do Marco Vivo.

Não se pode ter certeza se a falta de atenção da Funai com

dia tão importante para os Jenipapo-Kanindé “cutucou”

Juliana, mas ao cessar as falas dos representantes, ela desentala

injustiças engasgadas há tempos. Críticas são destinadas ao

órgão responsável pela saúde indígena e aos parentes que

esquecem o próprio povo ao assumir cargos na entidade, à

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política de educação das etnias cearenses imposta pelo Estado,

à lentidão no processo administrativo da TI Lagoa da

Encantada e à timidez com a qual o povo Jenipapo-Kanindé se

apresenta. Porém, elogia a representatividade das jovens

lideranças da aldeia nos encontros promovidos em todo o

Ceará.

Estão lá, de paletó, engravatados, dentro do escritório da

Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), dizendo que

estão lutando pela saúde da gente, sendo que nem conhecer a

realidade do próprio povo não conhece. Essa é a grande

verdade.

A nossa questão territorial está uma ‘desgraceira’. Até

onde eu sei, o nosso processo foi embargado, nem a Funai

sabe – pergunte a nosso coordenador, que ele não sabe o que é

que está acontecendo com relação à questão territorial do

povo Jenipapo-Kanindé.

Com relação à questão da educação, até que está indo,

mas estamos deixando a Secretaria de Educação entrar de

goela abaixo, porque acabou de acontecer uma eleição para

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gestores de escolas indígenas completamente convencional, e

isso prejudicou algumas escolas. O Estado disse: “Vamos

colocar desse jeito para ver se esses índios são organizados

como eles dizem”. Porém eles quebraram a cara, porque tem

comunidade que realmente está organizada e mostrou para

eles que a gente sabe fazer o processo.

A educação é um dos patamares que tem de ter mais

insistência, porque nós estamos lidando com futuros políticos,

futuros médicos. Claro que não tem de ser de qualquer jeito,

mas também não podemos deixar o Estado só ditar as regras e

a gente receber calado.

(...)

É pedir força ao pai Tupã, porque se desistir é pior.

É ao Pai Tupã e à Mãe Terra que os Jenipapo-Kanindé

agradecem ao final da festa do Marco Vivo, durante a plantação

da Yburana. No dia 9 de abril dos últimos quatro anos, Juliana

carrega sobre o ombro, com a ajuda de outros índios, o galho

tão simbólico para a etnia até um dos limites do território.

Após a caminhada que, em 2014, seguiu até as matas da

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região do Tapuio, uma oração é feita aos encantados pedindo

proteção à terra. A Yburana é colhida no dia anterior para a

festa mais importante dos Jenipapo-Kanindé. É a planta

escolhida para marcar os limites da TI Lagoa da Encantada por

possuir a capacidade de florescer novamente depois do

replantio.

Infelizmente, alguns contratempos me impediram de

participar desse momento da celebração. Ao chegar, após uma

caminhada extenuante pelas entranhas da aldeia indígena

Jenipapo-Kanindé – admirei ainda mais a força de Juliana ao

saber que ela fez o percurso com o tronco sobre os ombros de

forma tão rápida –, a Yburana já havia sido plantada.

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Em 2011, Juliana leva, sobre o ombro, o tronco de Yburana na festa do

Marco Vivo

Foto: Melquíades Junior

No extremo onde o galho estava fincado, a cacique Irê,

reunida com o pai, Seu Chiquinho, a irmã, cacique Jurema, o

irmão, Heraldo, o sobrinho, Daniel, alguns parentes de outras

etnias e pesquisadores, explica, gentilmente, o sentido do ritual.

Esse galho vai nascer, florescer, isto é, se não vier

ninguém, se não raspar, porque, se raspar, ele morre. Por isso

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escolhemos a Yburana para ser o marco, porque nasce,

demarcando a nossa área. Como renasce, a gente não

desrespeita a natureza. Neste ano, a gente escolheu a parte do

Tapuio, que é a parte mais preservada. A gente fica muito

concentrado só na comunidade e acaba esquecendo dos lados

das matas, então vem gente de fora para desmatar, porque

como não tem nenhuma marcação da Funai, quem faz essa

marcação somos nós, com essa planta, as pessoas não sabem,

invadem território indígena sem até mesmo ter conhecimento,

desmata, retira a madeira para vender.

A Yburana é plantada em uma das extremidades da aldeia anualmente,para celebrar a delimitação da Terra Indígena Lagoa da Encantada Foto:

Melquíades Junior

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Se a Yburana sofrer degradação, os índios Jenipapo-

Kanindé retornam ao local e plantam outro tronco, reafirmando

que o território lhes pertence e mostrando que a luta não cessa

mesmo em meio à repulsa dos que não aceitam que os índios

vivam no pedaço de chão que lhes é de direito.

Em 2013, o Marco Vivo foi concluído no começo da aldeia,

próximo à ponte que sinaliza a divisão entre a TI e a

comunidade de Trairussu. Dias depois, os índios notaram que a

Yburana havia sido arrancada. Não tardaram em plantar outro

tronco para ser avistado pelos que entram na aldeia.

Se a gente vier para o lado da mata e vir que tiraram, que

rasparam, a gente planta de novo. É uma forma de insistir que

eles respeitem. A gente não está invadindo canto de ninguém, a

gente quer apenas demarcar a nossa área da nossa forma. É

uma forma de se reafirmar como Jenipapo-Kanindé.

O retorno do Marco Vivo foi mais rápido, embora o trajeto

seguido tenha sido o mesmo. Não somente pelo clima ameno,

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mais favorável à caminhada, mas também por notar a alegria

externada entre goles de uma forte ‘pinduca’, risadas surgidas a

partir de uma brincadeira dos índios, mordidas em guajiru

colhido direto da árvore, e relatos de Juliana sobre as

impressões dela e as simbologias que eu havia conhecido

naquele dia, como a importância do mocororó em uma roda de

toré.

Cansa, viu? Não sei se vocês perceberam, mas a gente

passa o dia todo dançando, cantando.

Mocororó é uma bebida que nós temos de tomar até mesmo

para a gente se fortalecer, porque não contém álcool, embora

embriague tomando muito. Mas naquele momento ali, é uma

forma de a gente fazer oferenda aos encantados, uma bebida

que não contém álcool, que é sagrada. É feita só do caju

azedo, “apurado” no sol, não contém álcool, é apenas

fermentado. Os Jenipapo-Kanindé são os anfitriões do

mocororó. Tem comunidade que encomenda, que liga,

perguntando se tem para vender. A gente toma mais nas

celebrações. É difícil a gente sentar na roda para tomar o

mocororó

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Quando percebi, já estávamos à beira da Lagoa da

Encantada, onde boa parte do grupo ficou para recarregar as

energias nas águas frescas e simbólicas.

No dia seguinte, Juliana teria de arranjar um jeito para

cumprir os compromissos de cacique, estudante e diretora da

Escola Indígena Jenipapo-Kanindé, da qual tinha assumido a

gestão há poucos dias. Minha próxima visita à aldeia seria

justamente para observá-la transitando em algumas dessas

ocupações, do despertar ao repouso, durante quatro dias.

Juliana despe-se do cocar ao final do Marco Vivo Foto: Melquíades Junior

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Cotidiano compartilhado

O dia está sereno, diferente do movimento habitual até

então conhecido. A tranquilidade é deliciosa, mal chego e a

vontade de passar dias em retiro ali mesmo já surge.

Clima bom de final de tarde, silêncio de feriado no meio da

semana, vento e liberdade batendo no rosto das crianças

brincando fora de casa, sofá e novela da tarde.

No feriado do Dia do Trabalhador, 1º de maio, esse é o

cenário que a aldeia Jenipapo-Kanindé me revela. Juliana abre

a porta com os cabelos recém-lavados e uma escova em mãos,

que ela passa sobre os fios vez por outra, embora já os tivesse

desembaraçado. Estava assistindo ao “Vale a pena ver de

novo”, descansando em uma pausa na rotina agitada que

conduz diariamente.

Contudo, o transcorrer das horas traz movimento à casa.

Levy quer leite para saciar a fome, convida com sorriso

tentador alguém para brincar e ensaia os primeiros movimentos

sozinho engatinhando. Pequena entra apressadamente para

falar com Juliana, mas sai logo, pois deixou um chá de boldo

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no fogo para João Batista. A tímida Grazi auxilia a mãe em

alguns afazeres antes de se arrumar para a festa de aniversário

que ocorrerá mais tarde. Carline, que tem quase a mesma idade

da tia, Juliana, dá apoio no cuidado do caçula enquanto ela se

produz.

Com sombra azul nas pálpebras, blush e batom, cabelos

soltos e um vestido azul justo, de uma alça só, Juliana se

aproxima do Siena, que na traseira carrega dois adesivos com

os nomes dos filhos, Levy e Grazielle (a Grazi) e outros dois

que estampam o veículo com escudos do Corinthians.

O destino é a casa de Marília, afilhada de Juliana que está

aniversariando naquela quinta-feira. Como o local é distante

para ir a pé à noite, vamos de carro com Juliana controlando o

volante, embora ela diga que não gosta muito de dirigir.

Cleilton recebe um beijo da esposa, entramos no veículo e

poucos minutos depois chegamos à comemoração.

Juliana é bastante querida pela família da afilhada. Marília

estava esperando somente a madrinha para cantar os parabéns.

O alpendre da residência está decorado com elementos das

fashion dolls Monster High. Entre os adultos, o assunto gira em

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torno dos ornamentos, pois Juliana já se planeja para fazer a

primeira festa de aniversário de Levy, em agosto. Ela deseja

que a comemoração tenha como tema “floresta” e seja

realizada nas mangueiras do tio Adorico.

Após comes, bebes, conversas e fotos, é necessário ir

embora. A sexta-feira pós-feriado não é ponto facultativo e

exige que Juliana acorde cedo para a labuta. Chegamos em

casa, as luzes são apagadas, um “boa noite” ecoa e todos

vamos dormir. Ela, no quarto que divide com Cleilton e o

pequeno Levy. Eu, no quarto de paredes cor-de-rosa

compartilhado com Grazi e a prima Janaína.

---

Conforme havíamos combinado no dia anterior, por volta

das sete horas nos encontramos na cozinha, onde a mesa está

posta com café, leite, pão, tapiocas e bem-casados das

lembrancinhas da festa de aniversário de Marília. Somente eu e

Juliana compartilhamos os primeiros momentos da manhã na

casa dela, pois as meninas e Levy estão dormindo e Cleilton

saíra três da manhã para fazer compras nas Centrais de

Abastecimento do Ceará (Ceasa-CE), a fim de repor os

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produtos vendidos no mercadinho que administra com o irmão.

Se Juliana não dispensa maquiagem, acessórios e roupas

escolhidas a dedo quando se apresenta em uma comemoração,

o cuidado com a aparência também não é deixado de lado

quando vai trabalhar. De maneira mais formal, veste jeans,

blusa social, brincos de bolinha dourados e uma sapatilha

florida. No rosto, a maquiagem de cores mais leves marca boca

e olhos da índia. Com a bolsa e o cocar em mãos, ela sai em

direção à escola, a poucos metros de casa. Antes mesmo de

ultrapassar o portão, uma pessoa já a cumprimenta. O episódio

se repete algumas vezes no pequeno caminho.

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Com cocar em mãos, Juliana sai de casa cedo em direção ao trabalho, a

poucos metros de sua casa

Foto: Bárbara Rocha

O formato meia-lua estampado por índios, animais e

pinturas étnicas logo chama a atenção de quem entra pela

primeira vez na Escola Indígena Jenipapo-Kanindé, como é o

meu caso naquela manhã. Comento com Juliana sobre a beleza

do espaço e logo descubro porque a estrutura ostenta muito

bem a identidade cultural da aldeia.

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A arquitetura da escola foi pensada com a comunidade. Os

alunos desenharam como queriam e o arquiteto Renato

Ambrósio, da Funai, projetou em formato de cocar.

Ao chegar à escola, Juliana passa de sala em sala para falar

com professores e alunos e apresentar a intrometida que a

seguia:

Pessoal, esta é a Bárbara, da UFC. Ela está fazendo um

trabalho sobre a comunidade e vai acompanhar a gente aqui,

na escola, hoje.

A sala da diretoria, onde Juliana trabalha, não é grande. Em

frente à porta há um letreiro com a saudação “Sejam bem-

vindos”, acima da escrivaninha com um computador de mesa e

um notebook. Na parede, papéis pregados com algumas

informações sobre professores, disciplinas e datas importantes

do ano letivo. A janela não tem cortina, permitindo que a luz do

sol ilumine o ambiente por inteiro. Ao lado da porta, há uma

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mesa com alguns objetos que mostram um pouco da

personalidade de quem comanda: dois quadros muito

semelhantes de uma jangada sobre o mar durante o nascer do

sol, uma Bíblia aberta, duas maracas e o cocar de penas de

arara trazido naquela manhã.

É hora de começar o trabalho. Neste dia, é necessário

discutir o planejamento das aulas e a carga horária dos

professores junto a Carline, que é professora da escola. Juliana

está bastante concentrada e eu prefiro não interrompê-la com

minhas curiosidades naquele momento. Ela me deixa à vontade

para explorar a instituição de ensino, o que faço sem pensar

duas vezes.

---

Acima da porta de cada compartimento da escola, há um

nome indígena que pode ou não revelar o que se encontra do

outro lado. Com o auxílio de Juliana, descubro o significado de

algumas palavras que, segundo ela, possuem origem tupi. Os

banheiros masculino e feminino do corredor são identificados,

respectivamente, como kunhã (mulher) e apyara (homem), já

os do pátio possuem outra denominação: kunhatai (menina) e

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kunumi (menino).

“Morubixaba” significa “líder”, nomeando a sala da

diretoria. A cozinha, “kunhã”, se refere ao verbo “comer”. As

portas das salas de aula também estão abaixo de nomes

indígenas: yby (terra) e taba (aldeia) são alguns lembrados por

Juliana.

A sexta-feira entre o feriado e o final de semana foi um dia

propício para que muitas carteiras das salas de aula estivessem

vazias. No Infantil III, o professor Francisco de Assis resolveu

levar os três curumins que compareceram a um passeio na

Lagoa da Encantada, porém, sem banho, a fim de retornarem

antes do intervalo.

Na sala ao lado, o professor Everardo se esforça para que

os seis alunos do 4º ano presentes compreendam tradições que

perpassam a etnia durante a aula de arte e cultura indígena,

disciplina obrigatória na escola. É lá onde me instalo durante

boa parte da manhã.

O professor traça na lousa uma lenda sobre um índio que

encontra uma moça de cabelos compridos no meio da mata e

lhe concede três desejos: a demarcação da terra, o título de

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maior guerreiro da comunidade e um animal para protegê-lo.

“Tudo isso foi realizado e o índio e a comunidade viveram

felizes para sempre”.

A partir do texto, Everardo questiona se as crianças

conhecem pessoas que caçam e, em seguida, lança uma

pergunta mais incisiva para que reflitam: “É correto pegar uma

baladeira e sair atirando nos animais?”

A turma está dispersa. Há conversas paralelas e olhares

perdidos. O professor, ainda paciente, muda o rumo da aula

para falar do Marco Vivo como uma importante manifestação

cultural do povo Jenipapo-Kanindé. Relembrando o nove de

abril junto a Everardo, os alunos destacam o toré como o

principal elemento da festa: “O toré é um ritual sagrado, que é

para a gente dançar”, diz Emile, bisneta de Pequena; “É um

ritual sagrado que nos dá força”, completa Miguel.

As respostas dos meninos são confirmadas pelo professor

que, em seguida, explica, de forma bem simples – talvez pela

pouca maturidade que as crianças têm em compreender –, a

diferença entre o toré e o torém, esse exclusivo do povo

Tremembé, com contrastes que vão desde a forma de dançar ao

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canto que o acompanha, sendo, também, um ato político dessa

etnia.

Os alunos, novamente, desafiam a paciência do professor

com conversas paralelas à discussão sobre a identidade cultural

dos Jenipapo-Kanindé. Curiosamente, Emile é a que mais

presta atenção ao que Everardo diz. É lançada outra pergunta:

“Quem aqui se considera índio?”

Uns respondem “sim” timidamente; outros, aparentemente

orgulhosos. Mas um menino com a farda do colégio –

dispensada por muitos naquela sexta-feira – já adianta com

propriedade: “Não me considero indígena, porque eu não nasci

aqui”.

Everardo explica que, mesmo que não tenha nascido na

aldeia, mas seja filho de índio, a criança tem direito aos

benefícios indígenas estabelecidos, aproveitando o gancho para

incentivar os alunos a pesquisarem suas próprias árvores

genealógicas: “Se você não estudar a sua história, não vai

compreender o seu presente”, alerta.

Quando o professor fica livre, o chamo no cantinho da sala

para perguntar sobre o planejamento das aulas de arte e cultura

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indígena. Everardo confessa que, às vezes, é difícil ensinar as

crianças, pois ele mesmo não foi tão bem orientado sobre

alguns aspectos dos Jenipapo-Kanindé, principalmente no que

diz respeito ao complexo processo de demarcação das terras.

Aparentemente desestimulado, acredita que as crianças não

permanecerão no território durante muito tempo: “Acho que a

tendência é os meninos não ficarem na aldeia”.

Às nove horas da manhã, as merendeiras adentram a sala

do Infantil IV, com bandejas que suportam pratos com frango,

arroz e cuscuz e copos com suco, praticamente um almoço em

horário antecipado. Minutos antes, as crianças brincavam na

sala, sob o controle da simpática professora Lidiane.

No pátio, as crianças estão espalhadas, a maioria com o

pratinho em mãos. Próximo à sala da diretoria, alguns meninos

brincam de pular corda. Outros pequenos mal alcançam o chão

com os pés, sentados no banco enquanto observam um

funcionário aparar o gramado. Embora exista um campo de

futebol, as crianças não o ocupam naquela manhã. O professor

Francisco de Assis, que já havia retornado da Lagoa da

Encantada, senta no chão ao lado de Everardo para merendar.

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Do lado de fora da sala de Juliana, é possível observá-la e a

Carline bastante concentradas em frente ao notebook.

Como a escola indígena Jenipapo-Kanindé foi arquitetada

em formato de meia lua, seguindo os moldes do cocar, todas as

janelas são voltadas para o mesmo terreno esverdeado. O

Morro do Urubu é cenário do aprendizado das crianças

indígenas da aldeia, o qual é possível ser visto do pátio. Ao

final do intervalo, percebo certa calmaria invadindo aquele

lugar, embora as vozes das crianças ainda ecoem, talvez pelo

prazer de observar a paisagem, ouvir o canto dos pássaros e

sentir a luz do sol adentrando o espaço sem incomodar.

Alguns alunos que faltaram à aula quebram o silêncio ao

chegarem com garrafas vazias para serem preenchidas com

água no bebedouro do colégio e levadas para suas casas.

Questionados por uma professora sobre o motivo de não terem

comparecido mais cedo, um deles responde: “Ah, professora,

ontem foi feriado. Os meninos da escola do Iguape

imprensaram”.

Espiando, mais uma vez, o outro lado das portas de

madeira, encontro algumas meninas mais velhas e um menino

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mais novo em um compartimento semelhante a uma biblioteca,

porém, muito pequeno. Elas me explicam que estão orientando

a criança em uma espécie de reforço, que faz parte do projeto

Mais Educação, programa do Ministério da Educação que

amplia a jornada escolar sob a perspectiva da Educação

Integral em escolas das redes públicas de ensino estaduais. Pela

manhã, as crianças do Ensino Fundamental I e II que estudam à

tarde vão à escola – e os que estudam pela manhã fazem o

inverso – para aulas de pintura, agroecologia, arte e cultura,

música e artesanato, mas também para esclarecerem dúvidas

em disciplinas convencionais, como português e matemática.

Antes do ponteiro marcar 11 horas, as mães começam a

chegar para buscar os filhos no colégio. Com a ida dos poucos

alunos da manhã, retorno à sala de Juliana, que permanece

bastante ocupada. Aguardo alguns telefonemas que ela tem de

fazer antes de voltarmos para casa, onde ela irá almoçar e

descansar durante alguns minutos antes de iniciar a segunda

jornada do dia.

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Fotos: Bárbara Rocha

Antes de se tornar diretora, Juliana foi professora da Escola

Indígena Jenipapo-Kanindé. Quando visitei o colégio pela

primeira vez, ela assumira a nova função há pouco mais de um

mês, através da eleição para gestores de escolas públicas,

portanto, a felicidade pela conquista ainda era notória. A então

cacique estava disposta a administrar a escola, auxiliar os

professores, incentivar os alunos, receber os pais e organizar os

eventos comemorativos.

À tarde, o ambiente escolar está mais tranquilo, assim,

pergunto como está sendo a experiência como gestora, tendo

em vista a série de burocracias que ela precisou resolver pela

manhã e os outros afazeres do dia a dia, ao que ela me

responde:

Eu estou onde eu queria estar. E chegou o grande dia.

Agora, preciso dar resultado às pessoas que me confiaram.

Aos 29 anos, Juliana deseja experimentar novas vivências,

especialmente em relação a trabalho e estudo. A gravidez

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precoce e a falta de assistência impediram que, mais cedo, a

caçula de Pequena concretizasse sonhos de menina que

permanecem lhe inquietando. Mesmo sendo mãe muito jovem,

terminou o Ensino Médio e ingressou no magistério indígena,

que, devido ao afastamento durante alguns anos, deve concluir

em julho de 2015. Paralelamente, Juliana cursa o Missi

Pitakajá, a licenciatura indígena em nível de graduação, em

parceria com a Universidade Federal do Ceará; e a Pós-

Graduação em Gestão Escolar, que também devem ser

finalizados em 2015.

Em nossa primeira conversa, Juliana revela que, desde

criança, quando acompanhava a mãe nos encontros indígenas,

deseja cursar Direito. Segundo a índia, há uma carência de

profissionais indígenas nesse segmento, o que é necessário ser

combatido, uma vez que poderiam reivindicar por seus direitos

amparados pelo conhecimento jurídico. O sonho não para por

aí. Um amigo de Juliana que estuda em Salamanca, na

Espanha, certa vez perguntou se ela não tinha interesse em

morar no exterior para aprofundar os estudos, seja na

graduação ou em um mestrado. Ela, que nunca teve vontade de

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morar fora das imediações da Lagoa da Encantada, revelou

que, futuramente, teria coragem de ir, mas sempre pensando em

retornar com mais experiência para a atuação na comunidade.

Nos momentos livres, ela tenta navegar na internet, que

demora bastante a carregar por conta da baixa velocidade, ou

toma o livro no canto da mesa, “Morte na cama”, do professor

Amilton Cavalcante, para ler. Ela me conta que a leitura é um

dos hobbies preferidos, inclusive, antes de dormir, prefere estar

em frente a um livro a assistir aos programas televisivos.

O Cleilton até brinca: “Não sei como tu consegue: passa o

dia na escola, trabalhando, e quando chega em casa ainda

quer ler”. Ele fica na televisão, e eu, fico lendo.

Próximo ao horário do pôr do sol, resolvo sair da escola

para conferir se o Cras Indígena e o Posto de Sáude da aldeia

estão funcionando. Chegando ao local – as duas estruturas

ficam muito próximas uma da outra –, encontro as portas

cerradas. Opto por voltar para a escola, quando encontro

Carline passeando com os cachorros em direção ao campo

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onde acontece o “racha” de cada dia, ao lado do esposo. Nos

cumprimentamos, começamos a conversar e, quando percebo,

já estávamos sentadas sobre a areia, observando o animado

jogo entre os homens, com uma belíssima vista do sol que se

punha.

Carline é professora da Escola Jenipapo-Kanindé, filha de

Osana, neta de Pequena, sobrinha de Juliana. Naturalmente,

falei do meu trabalho e ela, da sua vida na comunidade. Dentre

os assuntos que abordamos durante aproximadamente uma

hora, ela me conta sobre a realidade da educação que

vivenciou, a juventude, o casamento com um não-índio, o

preconceito sofrido ao longo dos anos e os reflexos da

sociedade branca na comunidade: “Há pessoas que sofrem

preconceito, mas não vejo muito. Quando a gente vai para a

cidade, é como se fosse um morador comum, não tem aqui

(aponta para a testa) dizendo 'indígena'. Agora, quando a gente

vai caracterizado, a tinta do jenipapo passa dias para sair,

alguns olham, ficam assustados, perguntam; outros

parabenizam nossa cultura. Em abril, veio uma turma de alunos

pequenos, da educação infantil. Eles chegaram com uma

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peninha aqui (apontando para o meio da cabeça) pintada

(risos). Eles perguntaram onde estavam os indígenas e nós, ali,

falando com eles. Eles querem encontrar aquele indígena de

500 anos atrás, dos livros, nus, com as ocas, mas não é esse. A

gente evoluiu também. O mundo evoluiu e nós também. Nem

por isso a gente deixa de ser índio”.

O jogo é encerrado, o céu já escurece, voltamos

caminhando juntas até a casa de Carline, onde me despeço dela

e sigo por mais alguns metros até a escola. Juliana permanece

na sala, apesar de a instituição estar vazia, aguardando os

alunos do EJA. Naquela sexta-feira, diferente do que é de

costume, não há roda de toré dos alunos.

Entre a escola e a casa de Juliana, o movimento de uma

Assembleia de Deus abrigada em uma simples casa já sinaliza

o culto que haveria naquela noite. Mais tarde, a voz do pastor

no microfone chegaria aos nossos ouvidos para confirmar.

Por volta de 19h45min, Juliana chega em casa. Embora o

dia tenha sido cansativo, ela ainda tem disposição para fazer

chapinha nos cabelos, enquanto Cleilton, que já aguardava a

esposa em casa, cuida de Levy. Juliana e o marido parecem ter

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uma boa relação. Percebo isso nas declarações contidas em

olhares e palavras trocados; nos risos à mesa no momento das

refeições; no companheirismo natural no aperreio do dia a dia.

O dia seguinte é sábado, mas nem por isso a família poderá

dormir até tarde. Juliana tem aula da pós-graduação pela manhã

e só retorna por volta das 17 horas; Cleilton precisa estar

presente no comércio que administra; Grazi, a prima Janaína e

uma amiga da família se revezam para cuidar de Levy. Com a

ausência de uns e ocupações de outros, reservo aquele dia para

observar e sentir melhor a atmosfera da aldeia e conversar com

outros Jenipapo-Kanindé.

----

Somente à noite encontro Juliana, quando conversamos

informalmente após o jantar. Na ocasião, tocamos em um

assunto ainda não abordado: religião. Recordando a igreja

protestante próxima e o fato de Pequena frequentar a Igreja

Universal do Reino de Deus, questiono como é a relação entre

as crenças cristãs e os rituais indígenas, já que ela se diz

católica. De acordo com Juliana, o catolicismo não implica

com os costumes indígenas – inclusive, o CDPDH participa de

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celebrações da aldeia, como o Marco Vivo. Já algumas igrejas

protestantes não têm a mesma aceitação. A caçula de Pequena

me confessa que, certa vez, a mãe concedeu uma entrevista

trajada com roupas de palha, posteriormente veiculada em rede

nacional de televisão, mas o pastor da igreja que a cacique

frequentava viu e disse que ela não poderia mais participar das

celebrações do templo. Hoje, ela frequenta outra igreja.

Enquanto eu brinco com Levy, no chão da casa, e Juliana

engoma as roupas, a índia também me fala sobre as

dificuldades que passou por ter sido mãe muito jovem,

aconselhando: “O certo é estudar, trabalhar, depois casar e ter

filhos”. No entanto, ela se mostra muito feliz com o casamento

e a maternidade, assim como os filhos e Cleilton com a mãe e a

esposa que têm, respectivamente. Mais cedo, Grazi,

timidamente, havia me falado sobre a relação com Juliana:

“Tudo que acontece comigo, eu falo para ela. Ela é muito

companheira, tudo a gente conversa, tudo ela fala para mim.

Nos movimentos indígenas, eu sempre estou dentro, com ela

sempre me aconselhando, como quando ela começou, bem

nova, acompanhando a minha avó, do mesmo jeito estou indo”.

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Levy é o caçula de Juliana, fruto da união dela com Cleilton

Foto: Gleydson Moreira

Grazielle Alves, a Grazi, em roda de toré no Marco Vivo

Foto: Melquíades Junior

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A renúncia

Em um intervalo da oficina de Lambedor de Carrapicho e

Pepaconha, durante o Encontro Povos do Mar, vou dizer meu

'até logo' à Cacique Pequena, mas antes, ela solta a novidade:

“Tu soube que a Juliana deixou de ser cacique?” Talvez tenha

aparentado somente uma expressão de surpresa, mas havia um

certo desespero: como dar continuidade à estrutura do livro-

reportagem já definida e aos escritos já prontos? Respondi:

– Não, não sabia. E quem está agora?

– Eu voltei.

Naquele momento, o que eu já pensava (e tinha escrito) foi

reforçado imediatamente: a mulher havia saído do cacicado,

mas o cacicado sempre foi incapaz de soltá-la. Contudo, a

preocupação sobre os motivos pelos quais Juliana havia

deixado a função é mais forte. Infelizmente, aquele não é o

momento para discutir a renúncia de Irê. Minutos depois, antes

de me despedir de Preá, ele confirmou a informação. Juliana

havia anunciado a saída do cacicado dos Jenipapo-Kanindé há,

aproximadamente, duas semanas.

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O retorno à aldeia já estava marcado. No dia 12 de

setembro de 2014, o Museu Indígena Jenipapo-Kanindé

completou quatro anos e uma comemoração reuniu, no terreno

da estrutura, índios, representantes de entidades que atuam na

causa indígena e pesquisadores.

Juliana desceu do carro, conduzido por Cleilton, de vestido,

salto, cabelo preso e bem maquiada, com Levy nos braços.

Mais tarde, acrescentou cocar, urucum, colar de sementes e saia

de palha ao visual.

Juliana anunciou renúncia ao cacicado no aniversário de quatro anos do

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Museu Indígena Jenipapo-Kanindé Foto: Luiza Carolina Figueiredo

O início do evento foi conduzido por ela e Raquel ao

microfone, mas, antes de passar a palavra à mãe, tornou

pública a decisão:

O meu agradecimento vai a essa mulher guerreira, à

cacique Pequena. Recebi o cacicado há quatro anos, mas neste

ano abdiquei o cacicado, porque eu já tinha outras funções.

Ser cacique de uma comunidade requer muito tempo, muita

responsabilidade, como a cacique Pequena, uma mulher de

fibra, forte, resistente na luta. Eu cheguei para ela e disse:

– Minha mãe, eu não tenho como continuar com o cargo, é

seu, tome de conta como a senhora sempre tomou.

A cacique Pequena foi e sempre será a cacique do povo

Jenipapo-Kanindé. Eu continuo como Juliana, liderança da

comunidade, ajudando meu povo, porque para isso não

precisa ter título, não precisa ter cargo, basta ter força de

vontade para lutar junto ao povo. Meu muito obrigada. E

agora a gente vai para uma roda de toré!

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Após Juliana ser aplaudida, a festa seguiu com, toré,

mocororó – o qual provei pela primeira vez naquela noite –,

peixe, mandioca e, claro, o bolo de aniversário. Marquei uma

conversa com Juliana posteriormente, para saber os detalhes da

renúncia ao cacicado ainda não revelados, o que aconteceu

cerca de quarenta dias depois.

A roda de toré conta com grande número de mulheres. Juliana sacode a

maraca e canta com força os cantos indígenas Foto: Luiza Carolina

Figueiredo

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As mulheres que reúne em si são muitas. Nem todas são

capturadas pelos meus olhares e ouvidos e transferidas a estas

páginas. Juliana sente as delícias, os pesos e as exigências que

cada uma traz consigo: a mãe, a esposa, a diretora, a estudante

e a cacique. Responsável como só ela, seria inaceitável não

cumprir essas funções com primazia.

Mãe é para sempre: disso, ela não tem dúvidas. Ama, cuida,

conversa, aconselha, sente as dores e as alegrias de Grazi e

Levy, por prazer. A maternidade é uma vocação.

Ao lado de Cleilton, é feliz como o sorriso revela

facilmente; o escolheu para dividir a vida e, com ele, superou

traumas e ganhou bonanças de um cotidiano a dois levemente

conduzido.

Entre idas e vindas, a relação com os estudos parece estar

se consolidando, de fato, há pouco tempo. Até o final de 2015,

Juliana pretende concretizar um dos maiores sonhos: concluir o

magistério, a licenciatura e a pós-graduação. Quem sabe, em

pouco tempo, cursará Direito no Brasil ou em outro pedaço da

terra. Para os desejos dela, o mundo é pequeno.

A gestão da Escola Indígena Jenipapo-Kanindé é conquista

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das grandes. Ao olhar para a educação dos curumins como

professora, o desejo de assumir a direção já estava bem

guardado. Com a proximidade das eleições para gestores,

lançou nome e documentos para concorrer. Noventa e seis

votos dos pais dos alunos a levaram ao cargo que tanto quis.

Já o cacicado chegou até Juliana por mérito de uma vida

toda dedicada à comunidade, porém, não de forma planejada.

Após quatro anos à frente dos Jenipapo-Kanindé, ao lado de

Bida e da própria cacique Pequena, Irê optou por deixar o

título.

Cheguei primeiro para a mãe e para a Bida e conversei

com elas, colocando toda a situação:

– Mãe, a senhora nunca deixou de ser cacique, a senhora

sempre vai estar à frente, falando em reuniões, então estou

abrindo mão para a senhora voltar.

Estar à frente da comunidade requer muito tempo e eu não

queria deixar a desejar. Talvez um dia eu retorne para o

cacicado. Vou continuar ajudando a comunidade independente

de títulos e cargos, até estaria de braços abertos para receber

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o cacicado em outro momento, mas não agora.

A responsabilidade naquilo que exerce é característica

pertencente à personalidade de Juliana; portanto, não

desenvolver algo que toma para si da forma que mais se

aproxima à perfeição a desaponta. No momento, outras pessoas

e funções precisam do apoio, do trabalho e da atenção de

Juliana. A comunidade tem Pequena, Bida, Preá, Raquel,

Daniel, Daniela e outras lideranças adultas e jovens. Mas

Juliana, a Irê, garante que o afastamento do cacicado não

acarreta o afastamento da luta. Essa segue, firme e sempre.

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Capítulo 3]

A menina Raquel: resistência e luta de uma

jovem índia

Foto: Gleydson Moreira

Raquel Alves é tímida no primeiro contato, mas somente

nesse momento. Depois de trocar algumas palavras, domina a

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conversa, despejando a sabedoria herdada daquela com quem

convive desde o primeiro ano de vida.

Quando conheci a jovem que protagoniza este capítulo, ela

falava, enquanto eu só ouvia e captava. A minha atenção

destinava-se tanto ao discurso quanto à postura dela. O tio de

Raquel, Preá, foi chamá-la para que pudesse apresentar a mim

e aos dois amigos que me acompanharam em minha primeira

visita à aldeia, Camila e Leonardo, a história da etnia guardada

no Museu Indígena Jenipapo-Kanindé. Ela possui a chave e as

palavras que permitem aos turistas conhecer um pouco da

trajetória dos índios daquele lugar. Enquanto ela não chegava,

pensei que a tal Raquel era uma adulta, com a formação para

ser monitora do museu. Chega uma jovem, um pouco mais

baixa do que eu, um tanto serelepe, de shorts, camiseta e

chinelo.

A cada foto, texto e objeto que traduz as vivências dos

Jenipapo-Kanindé, Raquel mostra, em detalhes e com muita

clareza para os leigos, o significado do elemento exposto no

espaço. Ao final da explanação, nos sentamos,

despretensiosamente, no alpendre do museu e começamos a

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conversar sobre os estudos e as participações da jovem nos

movimentos indígenas. Eu ainda estava surpresa diante do

conhecimento da menina revelado dentro do museu. Do lado de

fora, notei fragmentos da força de vontade, do engajamento, da

responsabilidade e do orgulho de reconhecer-se como índia.

Antes mesmo de pisar na Terra Indígena Lagoa da

Encantada, tinha a certeza de que Pequena e Juliana seriam

protagonistas desta grande reportagem, até mesmo pela

liderança que assumem na comunidade. No entanto, não sabia

da resistência da juventude Jenipapo-Kanindé. Descobri

através de Raquel, com poucos minutos de conversa com a

menina, à época, nos seus 15 anos de idade. Saí da aldeia com

a neta da Cacique Pequena na cabeça, que martelava com as

palavras dela e me cutucava a inseri-la neste trabalho. Conclui

que era necessário o capítulo inteiro para falar de mais uma

mulher, a que pode representar o futuro da aldeia Jenipapo-

Kanindé.

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O despertar da própria história

Foto: Gleydson Moreira

O ano era 1999. Pequena retornava de mais uma das

viagens para representar os Jenipapo-Kanindé ao deparar com

o choro de Sebastião, um dos oito filhos homens. Raquel e

Raniele estavam nos braços do pai, somente sob a proteção

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dele, repentinamente. As netas da cacique são também netas de

um posseiro da TI Lagoa da Encantada e, à época em que

foram deixadas com Sebastião, a mãe, que também não é índia,

foi embora da aldeia. Pequena acalentou o filho e acolheu as

netas, embora ainda estivesse cuidando dos caçulas em casa.

Raquel, então com um ano de idade, ficou na casa da avó,

enquanto Raniele, alguns meses mais nova, foi morar com a tia

Bida.

Anos depois, Sebastião casou-se novamente, mas Raquel,

embora seja apegada ao pai, optou por ficar com a avó, onde

sempre sentiu o conforto maternal que lhe faltava pela ausência

da mãe biológica, que encontra com pouca frequência. Ela é as

“mãos e os pés” de Pequena – é assim que a cacique definiu a

menina de riso fácil e olhar atento em poucas palavras, mais de

uma vez.

Na casa que abriga oito pessoas, somente duas delas são

mulheres: a matriarca e a neta. Pela casa de Pequena, muitos

netos já passaram – principalmente, após a separação dos pais

deles –, mas somente Raquel permaneceu.

A jovem acorda e auxilia a avó nos afazeres domésticos:

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cozinha, lava a louça e limpa a casa. Quando Pequena esteve

doente, a menina acordava de madrugada para lembrá-la de

tomar o remédio e levá-lo até o quarto da avó. Antes de tomar o

transporte para ir à escola, deixa a janta do avô Chiquinho

pronta, geralmente um mingau. Se está livre – o que parece ser

difícil de acontecer –, gosta de ler romances ou livros

religiosos e assistir às novelas televisivas. À noite estuda, na

Escola Coronel Oswaldo Studart, no Iguape, mas até o 9º ano

foi aluna da Escola Indígena Jenipapo-Kanindé, de onde sente

falta até hoje.

As aulas não eram tão convencionais como onde eu estudo

agora. Existia a questão do resgate da cultura, de ensinar os

alunos a não terem vergonha de demonstrar sua cultura. Eu

me sentia muito feliz, porque ali a gente tinha o convencional,

mas também tinha as nossas disciplinas com os professores

indígenas, as Noites Culturais, quando dançávamos o toré, a

Semana Cultural, em que pessoas mais velhas que sabiam

fazer artesanato iam à escola ensinar. Aquilo tudo resgata a

nossa origem para que nunca se perca, porque nós seremos o

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futuro, as futuras lideranças, futuros caciques, futuros pajés.

É o futuro da aldeia, uma das maiores preocupações de

Raquel, que tece boa parte do cotidiano da jovem. Aos 12 anos

de idade, a neta de Pequena foi incentivada pela avó a

participar do projeto Historiando, desenvolvido pelos

professores Alexandre Oliveira Gomes e João Paulo Vieira

Neto, que atuam em comunidades tradicionais com o objetivo

de estimular as pessoas a pesquisarem sobre a própria história,

identificando, registrando e ressignificando os elementos

culturais. A ação foi desenvolvida na aldeia em parceria com a

Rede de Turismo Comunitário (Tucum), que propõe a interação

entre pessoas que habitam comunidades costeiras e turistas,

distante das explorações econômicas, valorizando o território e

a cultura desses povos e buscando benefícios à comunidade.

À época, Raquel era muito tímida, segundo ela, do tipo que

se escondia das pessoas desconhecidas que chegavam à

comunidade. Os conhecimentos sobre a história dos Jenipapo-

Kanindé eram absorvidos na escola, durante as aulas de arte e

cultura indígena, ou nas palavras da própria avó. Pequena

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queria participar das ações do Historiando e incentivou a neta a

acompanhá-la para que, também, pudesse ler e escrever para

ela quando fosse necessário. Através de pesquisas, conversas,

coleta de objetos e outras atividades, a menina foi descobrindo

mais sobre a própria identidade e se envolvendo, naturalmente,

com o universo ao qual sempre pertenceu, mas, aos poucos, se

dissolvia em meio à intrusão irreversível de uma nova

sociedade às matas gradativamente ceifadas, provocando

indiferença até mesmo nos filhos daquela terra. A recuperação

histórica era urgente e necessária.

Para manter a memória dos Jenipapo-Kanindé viva, os

índios pensaram em formas de guardá-la em um espaço físico,

não somente para exibi-la e torná-la conhecida aos visitantes da

aldeia, mas, principalmente, para manifestar a ressignificação

nos indígenas que haviam esquecido os relatos dos troncos

velhos, como as pessoas da comunidade chamam os

antepassados. Já despertava em Raquel o interesse de participar

do ressurgimento dessa valorização tão desejada por Pequena,

então tornou-se parceira de um dos maiores militantes da causa

indígena dos Jenipapo-Kanindé, o tio Heraldo (Preá). Inspirada

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pela pesquisa feita por meio do Historiando, mergulhou na

proposta de construção do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé

em um espaço onde, anos antes, funcionara a Escola

Beneficente dos Moradores da Lagoa Encantada e Tapuio

Elcira Gurgel.

Sempre existiu a ideia de ter um museu, porque a nossa

história estava indo embora junto com os mais velhos. A vó

queria que fizesse uma casa de taipa e colocasse artesanato,

mas não tinha recurso. Depois surgiu a ideia de fazer uma oca

e colocar esse material, mas também não tinha recurso. Aí

juntou eu e o tio Preá e nós pensamos em reutilizar o espaço

da escola velha. O museu veio primeiro do que a pousada.

Quando existia o projeto da Rede Tucum, a gente recebia os

visitantes no Cantinho do Jenipapo, mas não tinha 'dormida'.

Quando os visitantes vinham para cá, dormiam na casa de

famílias. Depois a gente decidiu usar o espaço da escola velha

e fazer quartos.

Em uma visita ao Museu do Ceará com a turma do

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Historiando, Raquel se encantou pelo trabalho da monitora que

conduziu o passeio, mas ainda se sentia muito envergonhada

para exercer a mesma função no Museu Indígena Jenipapo-

Kanindé, que já estava sendo construído na aldeia. No entanto,

quando a comunidade se reuniu para escolher os monitores, ela

foi apontada junto ao primo, Daniel, também uma jovem

liderança da comunidade, como uma das pessoas com potencial

para assumir as explicações sobre os elementos que estariam

expostos. Atualmente, ela é a única, dentre os primeiros alunos

do curso, que segue mostrando aos visitantes a memória dos

Jenipapo-Kanindé contida no equipamento avistado logo no

início da aldeia.

Bom dia! Meu nome é Raquel, sou uma das monitoras do

Museu Indígena Jenipapo Kanindé. Faço parte do núcleo

educativo dos jovens monitores do museu que vocês estão

visitando. Hoje, vou falar um pouco sobre a história dos índios

Jenipapo-Kanindé.

Quem assiste à apresentação da jovem no museu não

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consegue imaginá-la se escondendo dos visitantes quatro anos

atrás. Ao contar, é partícipe da história que não vivenciou, mas

escutou, pesquisou e ressignificou. Mostra os índios guardiões

da memória em fotos, os instrumentos utilizados nas rodas de

toré, os trajes de palha, a garrafa de mocororó, os utensílios

domésticos feitos de forma artesanal, troféus conquistados nos

Jogos dos Povos Indígenas, a panela de dona Biluquinha com

mais de 200 anos. Para ela, o trabalho voluntário lhe dá

satisfação, contudo, a entristece o fato de fazer parte de um

grupo de jovens atuantes ainda muito reduzido, tendo em vista

o desinteresse de muitos índios da idade dela em relação à

cultura do próprio povo.

Quando fazemos esse curso, as nossas lideranças abrem as

nossas cabeças, nos dão força de vontade para entrar no

movimento indígena. Eu me sinto orgulhosa por ter aprendido

sobre a história dos índios Jenipapo-Kanindé e ter a

oportunidade de ensinar às outras pessoas. Aqui, na aldeia,

são poucos os jovens que têm essa força de vontade, esse

conhecimento. Não é porque os mais velhos não querem

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repassar, é por falta de interesse mesmo.

Raquel revela parte das tradições dos Jenipapo-Kanindé como monitora

do museu localizado na aldeia

Foto: Bárbara Rocha

Recentemente, o núcleo educativo do museu recebeu 11

jovens que desejam seguir os passos de Raquel e perpetuar a

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memória dos Jenipapo-Kanindé. A neta da cacique Pequena é

testemunha de como o processo de aprendizado sobre o lugar

ao qual se pertence pode transformar a percepção sobre a

própria identidade e estimular a manter a cultura da etnia viva.

Ela tornou-se inspiração para outros índios, sejam os jovens

que ingressaram no movimento ou os mais velhos que estavam

adormecidos diante da necessária e arriscada luta. Nota-se que

a perseverança pela concretização do resgate da cultura aos

mais novos é uma das maiores aspirações da jovem. Ela não se

conforma com o desperdício de índios da idade dela em não

absorverem o conhecimento dos guardiões da memória por

puro desinteresse, por isso não os espera, mas sim, busca-os.

Eu participei do primeiro núcleo educativo de jovens

monitores, que estava lutando para resgatar um pouco da

nossa história e colocar no museu, e conseguimos fazer isso,

para mostrar um pouco da nossa história, do que aconteceu

antes, do que acontece agora. Também acho que uma forma de

resgate é a gente ensinar para os mais novos, mas também

para algumas pessoas que ainda têm dúvidas sobre a

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comunidade. Acho que resgate é mais ou menos isso, a gente

aprender para ensinar. Os jovens deveriam não só tirar

conhecimentos da gente. Eu, particularmente, costumo sempre

conversar com a cacique, com o tio Preá, o tio Bão, a tia Bida,

que são pessoas mais vividas. Os jovens deveriam, para

manter a nossa cultura, escutar um pouco mais os mais velhos,

que são pessoas que têm mais sabedoria. Mas eu,

particularmente, não vejo muito isso. Às vezes, as pessoas

pensam que o museu tem o suficiente para a nossa

comunidade, mas eu costumo dizer que o museu é uma sala de

quatro paredes onde não dá para colocar toda a história da

nossa comunidade. A outra metade do museu é a memória de

outras pessoas que já viveram a nossa história, que lutaram e

continuam lutando.

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Foto: Luiza Carolina Figueiredo

Foto: Luiza Carolina Figueiredo Foto: Bárbara Rocha

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Nos caminhos da aldeia

Não é somente no museu que os visitantes podem ter

contato com a sabedoria de Raquel Alves. A jovem é, também,

guia das trilhas ecológicas que atravessam a TI Lagoa da

Encantada. Ao todo, são seis caminhos que deixam turistas

maravilhados com as belezas naturais da aldeia, as quais

mantêm relações simbólicas com os índios do lugar: Trilha do

Morro do Urubu; Trilha da Lagoa da Encantada; Trilha da

Sucurujuba; Trilha da Lagoa do Tapuio; Trilha dos Roçados; e

Trilha do Marisco – esta é a que Raquel mais gosta, por findar

na Praia dos Índios.

Dos seis passeios que a equipe do turismo comunitário

organiza, fiz dois: as trilhas da Sucurujuba e a do Morro do

Urubu. Nesta, Raquel nos acompanhou, por volta das 15 horas

de um domingo, quando o Sol ainda queimava a areia

intensamente.

O Morro do Urubu é uma duna vegetada com mais de 90

metros de altitude. Do topo, é possível observar a Lagoa da

Encantada, as hortas de alguns índios da comunidade que

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vivem em regiões mais afastadas, a escola, a praia, o nascer e o

pôr do sol. Vale a pena o esforço em troca da belíssima vista.

Sim, para subir, pelo menos no horário em que resolvemos

fazer o passeio, após o banho na Lagoa da Encantada, é

necessário preparo físico – alerta já ressaltado no guia turístico

disponível no site da Rede Tucum. Contudo, Raquel sobe o

Morro como se a terra fosse plana. Enquanto eu, Roberta e

Luiza, que me acompanharam naquela visita, parávamos

devido ao cansaço, ela nos esperava sem esboçar o menor sinal

de indisposição.

Ao chegarmos ao topo, cerca de meia hora depois do início

da subida, repousamos sobre a areia, aliviadas. Ela, Daniela –

prima e melhor amiga – e Preá nos apresentaram a comunidade

vista do alto. A relação entre os índios Jenipapo-Kanindé e a

natureza que os envolve é profunda. Eles sobem o Morro do

Urubu desde que se entendem por gente, mas contemplam a

vista da terra legitimamente deles como se lá estivessem pela

primeira vez.

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Lagoa da Encantada vista do topo do Morro do Urubu

Foto: Luiza Carolina Figueiredo

Apreciando o pôr do sol, os guias nos contaram as

tentativas de empresários em invadir o território para construir

grandes empreendimentos, como aeroporto e campo de golfe.

Lá de cima, também é possível ver a Ypióca, empresa

produtora de cachaça que, segundo os índios da comunidade,

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suga água da Lagoa da Encantada continuamente.

Os conflitos entre os Jenipapo-Kanindé e os intrusos que

adentram a terra como se não pertencesse a ninguém somam ao

longo dos anos, poucos são os que desistem de tomar posse do

território. Preá também relembra as vezes em que teve de

correr em manifestações para não ser atingido pelas balas de

borracha; em uma das tentativas, acabou sendo vitimado,

embora não tenha sofrido danos mais graves.

A descida do Morro do Urubu é leve, rápida e termina em

frente à Lagoa da Encantada. Ao chegarmos próximo a um

olho d'água, os três guias percebem embalagens de alimentos e

bebidas espalhadas pela areia. Ainda que não seja permitido

adentrar à TI sem antes combinar com as lideranças da

comunidade, não são muitos os que respeitam a orientação.

Assim, geralmente aos finais de semana, é comum ver pessoas

que tomam posse da Lagoa da Encantada para se divertirem

sem consultar os indígenas, às vezes poluindo a região sem

consciência e respeito pelos donos da terra. Além disso,

dezenas de praticantes de motocross circulam pela aldeia

incomodando os moradores com o perturbador barulho dos

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veículos (tanto é que parte do áudio de uma das entrevistas que

fiz ficou prejudicada). No período de campanha das eleições

para governador do Estado, também cheguei a ver um carro de

propaganda do candidato Eunício Oliveira, com o jingle às

alturas, quase em frente à casa de Pequena, desagradando

visivelmente à cacique.

A ponte

A luta é incessante, árdua e cansativa. O grupo de índios

articulados é pequeno diante das necessidades da comunidade.

Se a recuperação de elementos culturais à época do Historiando

exigiu comprometimento e pesquisa, a conquista das pessoas é

ainda mais complexa. Para tal missão, índios da etnia Jenipapo-

Kanindé contam com o apoio de entidades direcionadas a

auxiliar no aprendizado, no reconhecimento e na valorização

acerca da cultura.

Entre as pessoas da comunidade indígena Jenipapo-

Kanindé e os órgãos que promovem ações de diversas

naturezas no território, Raquel está presente, mediando

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diálogos e incentivando o povo dela à participação, na tentativa

de recuperar o reconhecimento da identidade que, muitas

vezes, se arrasta em meio à apatia de alguns. Embora seja

menor de idade e, oficialmente, não possa estar à frente de

alguns projetos desenvolvidos na aldeia, procura envolver-se

nas atividades ou, pelo menos, mostrar-se bem informada sobre

o que acontece, ainda que os estudos, o museu e as trilhas

ecológicas a ocupem bastante.

No período em que estive hospedada na casa de Juliana,

comecei a perceber que o engajamento de Raquel, a qual

acompanhei na ausência de Irê no sábado pela manhã, superava

as minhas expectativas baseadas no que tinha visto no museu e

em uma pré-entrevista. Havia um ônibus estacionado em frente

ao Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, o qual acabara de

chegar com um grupo de alunos de mesma faixa etária que a

monitora. Os jovens observavam o artesanato produzido na

comunidade: colares feitos com sementes diversas, brincos e

prendedores de cabelo adornados com penas coloridas. A neta

de Pequena, acompanhada do priminho Luidy, é quem exibe o

trabalho recém-produzido pelas mãos dos índios. Aquela é a

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primeira vez em que nos encontramos desde que cheguei à

comunidade, dois dias antes. Cumprimentamo-nos e questiono

se ela guiará a turma na trilha ecológica programada, mas a

missão foi atribuída ao tio Preá naquela manhã.

Ela se orgulha do artesanato exposto na mesa, fruto do

projeto Raízes Indígenas, realizado pelo Centro de Defesa e

Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza

(CDPDH) e patrocinado pela Petrobras. A iniciativa, voltada

para jovens e adultos, surgiu no intuito de promover a produção

e comercialização de artesanato indígena a partir da matéria-

prima natural, recuperando o costume dos troncos velhos de

produzirem os próprios utensílios e acessórios, fortalecendo a

economia solidária na região.

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Os índios Jenipapo-Kanindé costumam vender o artesanato que

produzem na própria comunidade aos visitantes da aldeia ou em encontros

que participam Foto: Bárbara Rocha

Após a saída do grupo em direção à Lagoa da Encantada,

onde iniciarão a trilha ecológica, o barulho diminui e ela

propõe que eu conheça outros artesanatos dos Jenipapo-

Kanindé, convidando-me a entrar em um dos cômodos da

pousada. Aves, animais, índios e panelas feitos manualmente

estavam espalhados pelo pequeno quarto. Segundo Raquel,

além dos itens modelados durante o Raízes Indígenas, em

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intercâmbio cultural, representantes da etnia Pitaguary

ensinaram os jovens Jenipapo-Kanindé a darem forma ao

barro, produzindo peças que, em tempos passados, não

faltavam nas ocas das aldeias, principalmente as panelas, como

a histórica peça que está exposta no museu.

Foi muito interessante, porque os mais velhos repassam o

que eles têm. Outra coisa que a gente tinha perdido, não

faziam mais aqui, era o artesanato com barro. No passado, a

gente tinha essa cultura, mas, como as pessoas mais velhas

não passavam, a gente tinha perdido o costume.

Os jovens da comunidade ainda ansiavam aprender a

confeccionar outros instrumentos legitimamente indígenas,

como as maracas e os cocares. Em conversa que Raquel teve

com amigos da aldeia, o grupo pensava em reforçar a proposta

incluindo oficinas destinadas a outros tipos de artesanato. Após

o aprendizado, atualmente, jovens Jenipapo-Kanindé já

ministram oficinas aos não-índios. No Encontro Sesc Povos do

Mar, Daniel ensinava a aproximadamente dez pessoas,

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incluindo a autora deste livro-reportagem, como fazer colares

de sementes. Com destreza, criatividade e paciência

admiráveis, o jovem orientava-nos a confeccionar acessórios

semelhantes aos deles, o que, até o momento que acompanhei –

não consegui passar da segunda etapa – não foi possível.

Dos antepassados, o sangue parece transferir o talento que

modela colares, brincos, pulseiras, saias e tiaras com detalhes

elaborados com esmero pelos dedos durante horas a fio.

Infelizmente, ao expor o artesanato legítimo sobre a mesa

durante visitas que recebem ou encontros de que participam, os

indígenas ainda escutam os velhos “está muito caro” ou “vou

comprar só para ajudar”. A renda é importante, sim, mas, em

uma comunidade já fragilizada, deparar com a desvalorização

da cultura, também, do outro lado, muitas vezes é

desmotivador. É preciso manter-se firme, crente e disposto.

Avante, juventude!

--

A Associação das Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé

(AMIJK) era abrigada em uma estrutura no terreno onde hoje

encontra-se somente o Galpão de Artesanato Tio Adorico.

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Ainda que não tenha mais um espaço físico onde são discutidas

iniciativas organizadas pelas índias da aldeia, o coletivo resiste.

Raquel Alves acompanha o movimento das mulheres Jenipapo-

Kanindé desde muito pequena, ao lado da avó, no entanto, não

participava das atividades até o Historiando despertá-la. A

AMIJK, presidida por Katia Alves, filha de Pequena, é

responsável não só por reforçar a representatividade feminina e

convidar as mulheres a participarem das ações comunitárias,

mas também por organizar projetos que beneficiem os

indígenas da etnia, como o núcleo educativo de jovens do

Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, a biblioteca a ser instalada

na escola da comunidade e o cineclube aldeia.

A Associação de Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé

está funcionando, sim, está até com o projeto Cineclube aldeia,

em que o Daniel e a Daniela são monitores. Estamos

trabalhando para continuar projetos que tínhamos aqui

antigamente, como a realização de rodas de conversa em

noites de lua cheia. A Associação também está dando

continuidade ao projeto de qualificação de monitores para o

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museu indígena Jenipapo-Kanindé.

Em setembro de 2014, a AMIJK realizou a comemoração

de aniversário de quatro anos do museu. Na ocasião, Raquel

apresentou, ao lado de Juliana, a história do equipamento em

textos no telão, debruçando-se, também, sobre a própria

trajetória. A organização comunitária é protagonista no evento.

Percebo que é algo que as lideranças Jenipapo-Kanindé tentam

ressaltar no discurso, ainda que reconheçam que a articulação

dos indígenas da etnia caminha a passos lentos e é dirigida,

principalmente, pela família da cacique.

Assim como ocorreu no Marco Vivo, é aberto um espaço

para representantes do Historiando, da Adelco, das aldeias

Tapeba, Pitaguary e Kanindé de Aratuba e da Associação de

Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé discursarem. Pequena

encerra agradecendo a presença dos parentes indígenas de

outras etnias, dos idealizadores dos projetos que atuam na

comunidade e dos pesquisadores que sempre surgem na

comunidade a fim de investigarem as particularidades da

aldeia. No entanto, o que predomina em sua fala é o elogio ao

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grupo de jovens que resiste diante das seduções da vida fora da

comunidade em prol da preservação da identidade étnica,

fortalecendo a luta que a cacique tanto ressalta. Sob aplausos e

chacoalhadas de maracas, ela conclui: “Quero parabenizar

nossos jovens Jenipapo-Kanindé, crianças entre 12 e 16 anos,

que se empenham, não medem esforços, têm vontade de

trabalhar na causa indígena. Eu fico muito maravilhada,

porque a comunidade tem tantas famílias, mas poucos são os

adultos dentro da causa indígena. Sempre convido, chamo e,

através da Juliana, que também é um braço forte ajudando

esses jovens, a gente está falando com eles e elas, que estão

atuando em cima disso aqui. Parabéns, jovens Jenipapo-

Kanindé. Parabéns mesmo!”

As jovens lideranças são convidadas a irem à frente e

falarem sobre suas funções na comunidade, em uma fila

formada majoritariamente por netos da cacique, como Raquel,

Daniel, Yuri, Yara, Daniela e Grazi. Raquel é uma das últimas a

se apresentar. Nesse momento, a vi tímida diante do público

que assistia, apesar de conhecer boa parte dos presentes, dentre

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eles, pesquisadores e representantes de entidades que

acompanham a atuação da jovem. Entre risos envergonhados,

se expôs como monitora do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé.

Foto: Luiza Carolina Figueiredo

Poucos minutos depois, a etnia organiza-se em duas rodas

de toré. Na dança, Raquel se solta, canta e pisa com os pés

descalços na areia que sobe com a dança dos índios. É a

segunda vez que a encontro em vestes de palha e rosto pintado

com urucum, mas a tiara feita com penas de capote era

novidade.

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Eu moro numa floresta/ Só vejo os pássaros cantar

Eu moro numa lagoa/ Só vejo os peixes nadar

Moro perto de uma duna/ Que ela emenda na lagoa

Moro perto de um lago/ Que ele sangra para o mar

É que eu vivo na mata/ Enterrada na areia/ De pé no chão

Foto: Luiza Carolina Figueiredo

A festa de aniversário finaliza com a tradicional canção de

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parabéns, bolo e muitas comidas típicas e saborosas sobre a

mesa, no alpendre do museu. Pequena apaga as quatro velas ao

lado de jovens da comunidade, dentre eles, a neta Raquel.

---

Em uma tarde de segunda-feira pós-eleições, Raquel topa

ser minha guia em um passeio não comum aos visitantes

costumeiramente. Ela me conduz ao terreno onde estão sendo

construídos quintais produtivos e mandalas, que integram o

projeto Etnodesenvolvimento Ceará Indígena, realizado em

seis comunidades indígenas do Estado pela Associação para

Desenvolvimento Local Co-produzido (Adelco), patrocinado

pela Petrobras.

A iniciativa contempla 690 pessoas, das quais 500

participam de ações de sensibilização, intercâmbio e oficinas e

190 de cursos, plantação de hortaliças, criação de animais e

iniciativas empreendedoras. Por meio de ações de economia

solidária e turismo comunitário, o projeto objetiva melhorar a

vida das pessoas das comunidades beneficiadas e conscientizá-

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las diante da riqueza de seus recursos naturais, proporcionando,

também, geração de renda.

Na aldeia Jenipapo-Kanindé, o projeto chama-se “Matas da

Encantada”. Em um terreno próximo ao Galpão de Artesanato

Tio Adorico e à lanchonete Cantinho do Jenipapo, ambos

desativados atualmente, Raquel me apresenta as estruturas que

abrigam composteiras, o tanque onde peixes procriarão, o

pedaço de terra para hortas e o espaço para criação de galinhas,

que compõem a mandala.

Acho que daqui para o próximo ano já estará funcionando.

Há algumas atividades pendentes, que precisam ser realizadas

para darmos continuidade aos procedimentos. Na mandala, a

gente vai trabalhar com peixes, galinha de criação, hortaliças.

As famílias que estão participando também querem plantar

mamão, banana, melancia, maxixe, porque temos um espaço

muito grande. Todo o terreno é de usufruto da comunidade.

Pensamos também em reativar o Cantinho do Jenipapo, até

para os visitantes virem lanchar aqui, mas falta recurso.

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Os quintais produtivos estão presentes nas casas de 16

famílias. Já na mandala, oito famílias são contempladas. Agora,

essas pessoas poderão plantar e colher alimentos e criar

animais para consumo próprio ou venda.

Literalmente, Raquel veste a camisa do projeto

Etnodesenvolvimento Ceará Indígena, e, junto a outras

lideranças da comunidade, preocupa-se em incentivar a

participação dos indígenas na ação. Para ela, a mobilização dos

parentes ainda caminha lentamente, são poucas as famílias que

se interessam pelas oportunidades ofertadas.

Aconteceram várias formações, reuniões e oficinas para

falar sobre o projeto, para as famílias terem uma base de como

era. Nós trabalhamos como ponte entre a comunidade e a

Adelco, na parte da comunicação. Começamos a convidar as

pessoas da comunidade, falando do projeto da mandala do

quintal. As pessoas ficaram interessadas e vieram participar

das reuniões, então houve discussões de quem faria parte dos

quintais e quem faria parte da mandala.

Quando tiver o peixe, as hortaliças e as galinhas, as

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famílias desse local produtivo poderão pescar, cultivar, criar e

vender, trazendo renda para as pessoas. Além desse projeto de

produtividade e renda, há atividades que reafirmam a nossa

cultura. A Adelco já realizou conosco oficinas de artesanato,

oficina de museologia.

Raquel veste a camisa do projeto da Adelco no dia do aniversário do

MIJK, antes de colocar as vestes de palha para apresentar o evento

Foto: Luiza Carolina Figueiredo

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Porta-voz de uma etnia

Mesmo abraçando a responsabilidade de tomar conta de

Raquel ao lado de Sebastião, Pequena não pôde se desvincular

dos compromissos como cacique, como as frequentes viagens

Ceará e Brasil adentro. Quando Raquel completou nove anos,

passou a acompanhar a avó em alguns encontros fora da aldeia,

nos quais ela conheceu indígenas de outras regiões e percebeu

como a causa pela qual Pequena saía de casa, muitas vezes

durante dias, era importante. Mas o sentimento de pertença

ainda era raso. Foi preciso que ela mesma fosse incitada a ir às

reuniões a partir do envolvimento com as questões que

permeiam a comunidade. Hoje, ela perde as contas de quantos

encontros indígenas participou somente em 2014, por iniciativa

própria.

Raquel nunca saiu do Ceará, mas nesta terra já representou

a juventude Jenipapo-Kanindé inúmeras vezes. A troca de

experiências estabelecida no encontro acarreta diálogos, novas

ideias e iniciativas para a comunidade, utilizando os jovens

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como instrumentos. Em uma tarde de outubro, Raquel retornara

há poucos dias de um encontro promovido pela Rede Tucum,

ao qual compareceu com Daniela, empolgada com a nova

pesquisa que desenvolveriam a partir das propostas lançadas

nos dois dias de reunião, como a sondagem de pessoas que

possam ingressar na equipe de turismo coordenada por Preá.

No início do primeiro semestre de 2014, foi realizado o I

Encontro da Juventude Indígena do Ceará pela garantia dos

direitos dos povos indígenas, na aldeia dos índios Pitaguary, no

município de Pacatuba. O objetivo da assembleia era reunir

jovens das comunidades indígenas do Ceará a fim de que

pudessem trocar experiências, debater sobre as dificuldades

que as etnias enfrentam e saírem mobilizados a buscar

melhorias às suas respectivas etnias. Mais uma vez, Raquel

representou a juventude Jenipapo-Kanindé, ao lado de Daniel.

Ela rememora o evento como um marco em sua formação,

onde aproximou-se de lideranças jovens de outras etnias e

refletiu acerca dos problemas que ocorrem em seu território e

se repetem em aldeias de parentes. Agora, se uma liderança

adulta não pode comparecer a um encontro estadual, Raquel é

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indicada para levar as queixas e conquistas da comunidade às

rodas de conversas propostas nos eventos. A missão que lhe é

designada fortalece a perseverança e a batalha por uma

comunidade militante e orgulhosa da própria identidade, que,

unida, busca reconhecimento e direitos.

Nós, jovens, temos de participar desses momentos, para

conhecer não só a realidade da nossa comunidade, mas

também as condições de vida dos nossos parentes, das outras

etnias que a gente ainda não conhece. Eu só conheço as

aldeias Pitaguary e Tapeba. Então, isso que é interessante,

para a gente conhecer, partilhar, conhecer, falar como é a

nossa aldeia, ouvir as outras aldeias falando das condições de

vida e das lutas deles. A gente tem de começar a participar

disso, porque tem lideranças que não têm mais condições de ir,

não tem mais tempo, tem coisas na aldeia que devem ser

resolvidas aqui. Então nós, que estamos nos engajando nessa

luta, temos de participar, desde novinho temos de aprender,

para quando as lideranças tombarem e Pai Tupã levar para

ele, a gente tomar a frente e a aldeia ficar em boas mãos

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Em dezembro de 2014, Raquel fará a primeira viagem para

fora do Estado. O destino é Pernambuco. Ao lado do tio Preá, a

menina participará de um encontro que reúne representantes do

turismo comunitário. Até o fechamento deste livro-reportagem,

o sentimento era de ansiedade por, mais uma vez, levar a voz

dos Jenipapo-Kanindé, no entanto, com uma visibilidade muito

maior.

A discriminação enraizada

Anos correm e o preconceito contra os indígenas ainda é

proeminente. A poucos quilômetros da aldeia, já começam a

senti-lo no olhar, de forma mais latente, ou em palavras

cruciantes. Ao sair da TI Lagoa da Encantada, Raquel percebeu

que, por ser índia, era diferente de uma maioria – ainda que

muitos compartilhassem os mesmos ascendentes da menina – e

poderia não ser aceita como já estava acostumada na

comunidade. Por outro lado, as semelhanças que têm com a

sociedade branca, como a forma de se vestir, o modelo da casa

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e até mesmo a linguagem que utiliza para se comunicar

também motivam a discriminação.

Até hoje sofro preconceito, não é nem passado. Até hoje, as

pessoas dizem que não somos índios, porque não andamos nu,

porque não andamos caracterizados em todos os momentos e

por esses motivos não somos índios. E na escola, quando tem

festa do Marco Vivo e a gente se pinta de jenipapo (a tinta pode

permanecer por, aproximadamente, uma semana), as pessoas

passam e fazem gestos com a boca, falam: “Olha as índias.

Como é índia, andando arrumada, com roupa? Índio que é

índio anda nu”. Eu sou do tipo de pessoa que não fala nada,

costumo ficar na minha. Uma prima minha, certa vez, acabou

discutindo com um colega em sala de aula que estava dizendo

que aqui, na Encantada, não era um bom lugar de se morar,

disse: “Deus me livre de morar em um lugar onde só tem

índio, os pés de bicho, os cabeludos”.

A maior parte do círculo de amizades de Raquel é

composto por índios. Daniela, Daniel e Yure, segundo ela, além

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de primos, são melhores amigos. Juntos, participam de

movimentos indígenas e compartilham confidências do dia a

dia. No entanto, há pessoas muito próximas que não são

indígenas, como o namorado de Raquel, Carlos Augusto, com

quem está há dois anos. Embora tenha ascendência indígena, o

rapaz, de 20 anos, não se percebe como tal. O casal se

conheceu na escola convencional, quando Raquel foi estudar

fora da aldeia. Apesar da diferença de idade de quatro anos, os

dois cursam o 3º ano do Ensino Médio, na mesma sala. Assim

como outros amigos não índios de Raquel, Carlos Augusto

respeita as manifestações culturais dos Jenipapo-Kanindé, mas

em alguns momentos estranha, cabendo à menina explicar as

simbologias dos rituais.

O avô dele é índio, alguns familiares são até cadastrados

como índios, mas ele não. A família foi morar no Barro Preto e

ele não se reconhece como índio. Às vezes eles estranham,

porque nós temos alguns rituais, e toda a questão de

espiritualidade, principalmente quando o pajé Barbosa (etnia

Pitaguary) está, que nós consideramos pajé de todas as tribos.

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Tem pessoas que não conhecem e pensam que o toré é

macumba e a gente tem de explicar que é um ritual nosso,

quando a gente pede forças ao Pai Tupã e à Mãe Tamain, tem

toda a questão dos encantos.

A interação com jovens de outras etnias, principalmente

Tapeba, Pitaguary e Kanindé de Aratuba, a partir dos encontros

indígenas gerou forte vínculo entre eles. No dia do Marco

Vivo, quando parentes de outras aldeias estiveram prestigiando

os anfitriões da festa, era notória a diversão que garantem

quando estão juntos. Pintam uns aos outros com jenipapo, se

atualizam sobre as últimas novidades, entoam os cânticos

indígenas e registram muitas fotos, com direito a marcações no

Facebook – rede social na qual, muitas vezes, identificam a

etnia a qual pertencem, como “Quellzynha Jenipapo”.

O lazer é aqui

Duas travinhas improvisadas com quatro garrafas de vidro

estavam postas na areia. Entre elas, Raquel e algumas amigas

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jogavam futebol em um sábado de carnaval, bem próximo à

casa de Juliana, enquanto o forró às alturas acompanhava a

diversão de alguns Jenipapo-Kanindé. As jovens montaram um

time pequeno, para se entreterem nos horários livres. Segundo

Raquel, juntas, também fazem outros programas sem precisar

sair da região onde vivem, como os passeios até a praia do

Marisco, para fazer o que eles chamam de “cabana”.

– Eu não vou muito à Lagoa da Encantada. As meninas

vão quase todo fim de semana, mas eu vou só de vez em

quando. A gente costuma mais ir à praia do Marisco, para

fazer cabana, que você vai de manhãzinha cedo e volta.

– Cabana?

– É, o que vocês chamam de piquenique nós chamamos de

cabana. Nós levamos comida e passamos o dia inteiro lá, nos

divertindo, porque lá fica a nossa praia, que nós chamamos

Praia dos Índios. A gente vai de manhã bem cedo e volta de

tardezinha.

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Jovens Jenipapo-Kanindé pintam uns aos outros com urucum durante a

Festa do Marco Vivo Foto: Gleydson Moreira

Os ensaios dos grupos de dança Kunhã-Apyara e Abá

Mirim (pronuncia-se 'auá mirim' e, segundo Raquel, significa

“índio pequeno”) também fazem parte do cotidiano de Raquel.

O primeiro é conduzido por estudantes do curso de Educação

Física da Universidade Federal do Ceará, que firmaram

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parceria com a comunidade a fim de ensinarem aos jovens e

adultos ritmos da cultura popular, como frevo e carimbó. No

dia do Marco Vivo, os participantes do grupo, inclusive

Raquel, apresentaram uma dança fruto do projeto desenvolvido

na aldeia. Já o Abá Mirim é voltado para o toré, dança com a

qual os índios já estão familiarizados. Vez por outra, os jovens

são convidados a se apresentar em eventos, como o Encontro

Sesc Povos do Mar, do qual Raquel e mais 11 netos de Pequena

participaram ao lado da avó e do tio Preá.

Menina de sonhos

Raquel é grata pelas oportunidades que tem hoje, muito

distantes da realidade vivenciada por Pequena e Juliana quando

essas mulheres tinham a mesma idade dela. A menina desfrutou

a chance de aprender a ler e a escrever em uma escola que não

se limitasse ao convencional, mas também preparasse o terreno

no qual ela trilharia, futuramente, os passos da militância. Ao

se matricular na escola do Iguape para fazer o Ensino Médio,

não necessitou andar quilômetros a pé, pois há um transporte

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disponibilizado pelo governo do Estado que busca e deixa em

casa os alunos da aldeia diariamente.

Até o fechamento da editoração deste livro-reportagem,

Raquel aguardava o resultado do Exame Nacional do Ensino

Médio (Enem) para lançar a nota final no Sistema de Seleção

Unificada (Sisu) e pleitear uma vaga no curso de Psicologia da

Universidade Federal do Ceará. Independentemente da

aprovação, a jovem tem uma certeza em relação à carreira: não

quer deixar o trabalho que realiza no museu.

Psicologia é algo que, além de estudar o conteúdo, você se

estuda. Eu já conversei com estudantes de psicologia que

vieram visitar a comunidade e disseram que o curso é muito

bom. Desde o Ensino Fundamental eu penso nisso e tenho

desejo de me formar nessa profissão. Também pretendo

continuar no museu, até porque foi através do Historiando que

adquiri o conhecimento que eu tenho hoje sobre a comunidade,

porque antes eu não era próxima ao movimento.

Vontade grande de Raquel é também não deixar de estudar.

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Caso não conquiste a vaga no curso desejado, pretende

ingressar na nova turma da licenciatura indígena Missi

Pitakajá. Quando amigos confessam que estão desestimulados

a seguir na escola ou a tentar garantir uma vaga na faculdade,

de imediato a menina os aconselha a não desmotivarem. Para

ela, o estudo é fator preponderante para a concretização dos

maiores sonhos.

Hoje em dia, não somos nada sem estudo. Eu acho muito

importante, porque vejo os exemplos da minha família aqui em

casa, como a vó, o vô, os tios que não tiveram a oportunidade

de completar os estudos, só a tia Juliana. Em alguns casos,

essas pessoas trabalham em algo que não querem. Muitos não

sabem ler, só escrevem o nome e, às vezes, quando querem

resolver um problema, tem de chamar alguém. Quando

chegam documentos, às vezes leio e explico para o pessoal.

[Se for professora], queria trabalhar com educação

infantil, porque me dou tão bem com criança, que acho que

seria uma boa professora para as crianças.

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Não é incomum os visitantes terem a mesma sensação que

tive ao conhecer Raquel. Segundo relatos da menina, ser

apontada como a futura cacique pelo discurso que sustenta

durante as apresentações é algo recorrente. A própria Cacique

Pequena revelou-me, em uma conversa informal, entre elogios

rasgados à pedra preciosa – como chamou a neta –, a crença no

potencial da menina a assumir sua função futuramente,

projetando uma líder em Raquel: “É a terceira cacique, pode-

se dizer”.

Entretanto, a jovem não se sente segura, hoje, para pensar

nessa possibilidade, talvez pelo fato de acompanhar a árdua

missão da avó desde que chegou ao mundo. Embora a luta de

Pequena seja inspiradora, ela sabe bem das dificuldades de

liderar uma aldeia indígena, principalmente tratando-se dos

Jenipapo-Kanindé, por isso tem muita cautela ao falar sobre o

assunto.

Quando o pessoal vem para o museu, turistas como você,

diz: “Ah, você é a futura cacique”. Eu penso em ser uma

liderança, mas, particularmente, eu não tenho aquela

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expectativa de ser cacique, porque eu acho que o cargo de

cacique não é para qualquer um, é um cargo de muita

responsabilidade. Não que eu não tenha, que eu não vá ter,

mas é um cargo que você – vou dizer igual à vó – se aborrece

muito com a comunidade, porque tem pessoas que sabem

agradecer o que você faz pelo seu povo, mas tem pessoas que

não dão valor àquilo. O que a gente tem aqui foi tudo através

da luta dela, mas tem pessoas que não sabem agradecer, só

sabem criticar. É uma coisa que só sabe quem convive. Eu

penso em ser uma liderança, como eu já sou. A vó sempre diz:

“Se você já faz o que faz, já é uma liderança”. Mas cacique,

eu não sei.

Hoje tem a Cacique Irê, a Cacique Jurema e a Cacique

Pequena. Se, um dia, a Cacique Irê e a Cacique Pequena

chegarem a tombar e me derem o cargo, eu vou aceitar. Mas,

agora, eu prefiro ficar só como liderança.

Mesmo sem o anseio de tornar-se a principal líder dos

Jenipapo-Kanindé, Raquel reflete sobre as mudanças que

gostaria de ver na comunidade através de sua perseverança.

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Para ela, o alcoolismo, de difícil controle, é um dos grandes

problemas que aflige a aldeia atualmente, algo que também

percebi em algumas de minhas andanças pela aldeia. Há venda

de bebidas alcoólicas em alguns estabelecimentos da aldeia,

assim, encontrar homens embriagados pelo caminho não é

incomum. A solução pontuada por Raquel é o fechamento da

comunidade, de modo que o vício não se propague pela etnia e

atraia outras problemas para o território.

Por mais que digam que não tem condições de acabar,

porque por mais que você acabe aqui, os índios vão em outros

lugares e compram, gostaria de minimizar. A cachaça aqui

está muito grande, tem certas pessoas que estão se acabando

na cachaça. Em relação às drogas, tem certas pessoas que vêm

de fora e vendem, tem gente que já usa...Se eu fosse cacique,

eu lutaria para colocar um portão na entrada. Não sei se você

viu a luta dos Pitaguary, mas eles estão em uma luta para

fechar a reserva Santo Antônio, porque lá estava tendo

prostituição, droga, cachaças. Mas isso tudo não eram pessoas

de lá, eram pessoas de fora que traziam para fazer dentro da

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reserva. Eu pensaria mais nisso, porque eu acho que são

coisas que mais estão prejudicando a nossa aldeia.

Raquel sonha, projeta, anseia. No entanto, os benefícios aos

Jenipapo-Kanindé e, principalmente, os elementos essenciais à

afirmação cultural da etnia parecem ficar mais distantes à

medida que o tempo passa e a comunidade torna-se cada vez

mais desinteressada. A menina teme ficar só.

Eu me preocupo, principalmente, com os jovens, porque eu

acho a maioria muito desinteressada. Quando os troncos

velhos falecerem, tenho medo de os jovens não seguirem na

luta. Se todos estiverem juntos, é difícil de quebrar, de desistir,

mas poucas pessoas lutando por algo tão grande é mais difícil.

(...)

Tem muitos homens jovens e veteranos que não têm tanta

força de vontade como nós, mulheres. Temos muitas lideranças

mulheres, que correm atrás mesmo, mas algumas lideranças

masculinas são muito fracas.

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Raquel estuda palavras em tupi para interpretar a avó em peça na Noite

Cultural

Foto: Gleydson Moreira

Em uma rápida visita que fiz à Escola Indígena Jenipapo-

Kanindé no início de novembro de 2014, vi Raquel se

preparando para uma peça que encenaria na Noite Cultural.

Com um dicionário de tupi em mãos, ela folheia as páginas

para saber o significado de algumas palavras desconhecidas,

pois a história será apresentada aos alunos da escola na língua

legitimamente indígena.

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Ela diz que a peça é desenvolvida a partir das aulas de tupi

do programa de qualificação do Museu Indígena Jenipapo-

Kanindé, que conta também com aulas de história, museologia

e até mesmo inglês. Yuri ficou responsável pelo papel de

cacique Adorico e Raniele, irmã de Raquel, interpreta Dona Do

Carmo, parteira da aldeia. Coincidência ou não, a personagem

que Raquel incorpora é cacique Pequena, de quem segue os

passos disciplinadamente e toma forças para manter-se firme

na luta.

É silencioso, mas os Jenipapo-Kanindé clamam pela

batalha de Raquel. “Não desista”, grita o íntimo de cada um,

ainda que não reconheçam. Como menina ou mulher, como

cacique ou não, a etnia precisa da coragem da jovem como

exemplo e catalisador de mudanças, superando a indiferença

vigiada por ruralistas, grandes empresários e governantes.

Assim como tua avó ensinou e tu perpetuaste em paredes e

discursos, menina, vocês não são povos emergentes, mas, sim,

resistentes. Resista!

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Considerações Finais

Acredito, sim, que o jornalismo pode ser transformador

quando existe o desejo, a atenção e o cuidado. Não fosse a

superficialidade dos meios de comunicação, a mídia poderia

contribuir, e muito, para que questões relevantes e urgentes que

permeiam a realidade dos índios do Brasil fossem levantadas

em debates mais amplos – não nas entrelinhas de blogs, redes

sociais e sites especializados na temática ou no grito dos

indígenas e ativistas forçadamente calados – e solucionadas.

A dizimação de etnias indígenas não está somente no

passado. O relatório Violência contra os povos indígenas no

Brasil 2013, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi),

divulgou dados apontando que, no ano passado, pelo menos 53

mil indígenas foram assassinados no País, em decorrência de

conflitos envolvendo disputa territorial. O documento também

mostra, com base em dados da Organização Mundial da Saúde,

que, em 2013, 693 crianças indígenas morreram em

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consequência do deficiente sistema de saúde destinado aos

indígenas. Assim, a cada 100 índios que falecem, 40 são

crianças. Após 514 anos de invasão europeia, a demarcação de

terras indígenas segue com morosidade. Em 2013, somente

uma terra foi homologada, ainda que muitas das que aguardam

a finalização do processo não tenham impedimentos. Na

Amazônia Legal, encontram-se 98,75% das terras indígenas

regularizadas, mas dos 896.917 índios brasileiros, 554.081

vivem na minúscula parcela de 1,25% de terras indígenas

regularizadas fora daquela região.

O poder público se omite diante de tão grave situação. A

mídia não exige nem pauta.

Ao longo do processo de produção deste livro-reportagem,

muitos disseram que o trabalho deveriam abranger, também,

outras etnias indígenas do Ceará, mas com os recursos e tempo

que tinha, não seria possível. Desta vez, optei por versar sobre

os Jenipapo-Kanindé de forma mais branda, priorizando

aspectos culturais mais do que polêmicas. Entretanto, este

trabalho não tem somente o caráter documental, mas pretende,

também, ter uma função social.

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Se, no livro-reportagem, temos a possibilidade de explorar

narrativas além do que vemos no jornalismo cotidiano, tentei

fazê-lo da melhor forma possível. Espero que, ao ler a história

de Maria de Lourdes, Juliana e Raquel, surja o olhar

diferenciado e cuidadoso aos índios do Ceará e do Brasil que

promova mudanças na dolorosa realidade das etnias. Assim, o

jornalismo cumpre seu papel, creio.

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