projeto experimental · a todos os índios brasileiros e à vovó dica, que adorava ler e contar...
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Projeto ExperimentalCurso de JornalismoUniversidade Federal do Ceará
AutoraBárbara Rocha Barbosa Silva
OrientadorRonaldo Salgado
Banca ExaminadoraNaiana RodriguesMarco Antônio Krichanã
DiagramaçãoLivia Schramm
Fotos da CapaCacique Pequena - Bárbara RochaJuliana Alves – Bárbara RochaRaquel Alves – Gleydson Moreira
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A todos os índios brasileiros
e à vovó Dica, que adorava ler e contar
histórias, mas partiu dias antes deste livro ficar pronto.
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Agradecimentos
A Deus. Tudo com Ele e para Ele.
À minha mãe, Conceição Rocha, que me ensinou a ler e a
escrever, despertando meu interesse pelas palavras. O gosto
pelo jornalismo é também culpa dela.
Ao meu pai, Francisco de Assis Silva, que, embora não
tenha completado sequer o Ensino Fundamental pelas
adversidades da vida, esforçou-se para que eu concluísse o
Ensino Superior.
À Salete Rocha, a tia que foi minha educadora em casa,
atrás da porta do quarto, e me presenteia com livros desde
quando aprendi a lê-los.
Ao André Ítalo Rocha, que, com amor e cuidado, ofereceu
apoio, incentivo e observações a este trabalho.
Aos amigos da Comunicação Social da UFC, Camila
Aguiar, Andressa Souza, Roberta Souza, William Santos,
Raíssa Veloso, Ana Lídia Coutinho, Luana Barros, Grazi
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Barros e tantos outros, nos quais encontrei companheirismo e
afeto e com os quais compartilhei lamentos e conquistas; aos
queridos Gleydson Moreira e Luiza Carolina Figueiredo, donos
dos olhares por trás de muitas fotos deste trabalho; e à amada
Livia Schramm Feitosa, que diagramou este livro e segurou as
pontas para mim em muitos momentos na reta final do curso.
À sábia Júlia Miranda, ou Juju, que me estimulou a sair da
zona de conforto na busca pelo fio condutor deste livro-
reportagem.
Ao Melquíades Junior, uma das inspirações à jornalista que
pretendo ser. Não fosse o despertar provocado pela reportagem
“Mulheres em defesa da grande Mãe Natureza”, de sua autoria,
provavelmente meu trabalho de conclusão de curso não traria
esta temática. Grata, também, pelas imagens cedidas
gentilmente.
Ao mestre e amigo Ronaldo Salgado, que topou orientar
este livro-reportagem quando mal me conhecia, no quinto
semestre do curso. Obrigada pelos conselhos, pelas correções,
pela paciência e, especialmente, por acreditar neste projeto
comigo.
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Aos professores que me acompanharam ao longo dos
quatro anos de curso, em especial, Helena Martins, Ricardo
Jorge, Naiana Rodrigues, Larissa Cavalcante, Daniel Dantas,
Rafael Rodrigues, Edgard Patrício, Riverson Rios, Kamila
Fernandes e Mônica Mourão.
Aos jornalistas que me supervisionaram nos estágios que
fiz, Mayra Pontes, André Marinho, Daniel Praciano, Ticiana de
Castro, Mayara de Araújo e Dellano Rios.
Aos pesquisadores e profissionais engajados na causa
indígena, índios ou não, Maria Amélia Leite, Aline Furtado,
Eliakim Lucena, Leonardo Oliveira, Lucas Guerra, Weibe
Tapeba, Ceiça Pitaguary, Isabelle Braz, Marco Antônio
Krichanã (Max), Everthon Damasceno, Thaynara Martins, o
pessoal do Grupo de Estudos e Pesquisas Étnicas da UFC e
tantos outros que dedicaram um pedaço de tempo a uma leiga
curiosa para explicar particularidades desse universo tão rico e
estimular a reflexão sobre a complexidade dele.
Às Mulheres da Encantada, Cacique Pequena, Juliana
Alves e Raquel Alves, por abrirem as portas de casa e
compartilharem experiências de vida com uma completa
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desconhecida de forma tão natural e acolhedora. Este
agradecimento se estende também aos Jenipapo-Kanindé
Heraldo (Preá), Carline, Osana, Conceição (Bida), Sebastião,
Seu Chiquinho, Daniel, Daniela, João Batista, Grazi, Levy,
Cleilton, Janaína, alunos e professores da Escola Indígena
Jenipapo-Kanindé e muitos outros índios da etnia que cruzaram
meu caminho nessa jornada de um ano e meio. Este trabalho é
de vocês.
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Sumário
Apresentação..…...........................................................10
Introdução.................................................................... 16
1] A mulher na aldeia; a aldeia na mulher................... 26
2] As mulheres em Irê....................................................89
3] A menina Raquel: resistência e luta de uma jovem
índia.......................................................................;............. 148
Considerações finais.....................................................200
Referências Bibliográficas............................................203
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Apresentação
Observar e escrever. Ouvir e escrever. Sentir e escrever. Não
necessariamente nesta ordem. Para mim, mergulhar em
histórias reais é o mais envolvente no jornalismo. Talvez por
desilusões de que isso não seria possível no dia a dia da
profissão quase desisto do curso após três semestres para ir ao
encontro da psicologia. Mas esta área, infelizmente (ou
felizmente) não se estende, necessariamente, aos escritos, que
eternizam momentos e, principalmente pessoas. E é pelas
palavras e pelo ser humano – especialmente, aquele que é
esquecido no jornalismo diário – que concluo este curso, com
este trabalho.
Com o pé no pedido de transferência, durante a greve de
quatro meses pela qual passei na Universidade Federal do
Ceará (UFC), resolvi checar a programação da XXI Semana de
Comunicação, despretensiosamente, e ali estava o motivo:
Conferência de Lançamento de Livros-Reportagem - O
Cotidiano Reportado: do prazo do diário ao perene da escrita
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no Jornalismo Literário. As palavras ecoaram em mim. Dei a
chance.
Na ocasião, o professor Ronaldo Salgado – do qual, até
então, só conhecia nome (e renome) – e dois ex-orientandos
que haviam publicado livros-reportagem recentemente
conversavam sobre o processo de produção das obras.
Encantei-me de imediato e escolhi, naquele momento, que
permaneceria no curso, pelo menos, para ter a experiência de
produzir o livro-reportagem. Desde então, pensava em mil
temáticas que poderiam ser abordadas, clipava inúmeras
notícias que poderiam ser úteis ao iniciar a apuração, me
imaginava indo a campo, me perdendo em prosas com pessoas
incríveis e invisíveis nesse mundo de meu Deus. A paixão pelo
jornalismo, aos poucos, voltou a pulsar.
Desejava sair de Fortaleza, fugindo do que já é recorrente
nos periódicos, em busca de cidadezinhas, pessoas esquecidas,
histórias instigantes. Ao elencar as ideias para o pré-projeto, as
possibilidades já eram tantas que travei. Outrora, havia levado
a sério a ideia de escrever o livro-reportagem acerca de uma
temática muito ligada à minha experiência de vida, mas a
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mulher de cabelos de fogo e sabedoria inspiradora, Júlia
Miranda, me incentivou a buscar algo distante do meu
universo. Segui o conselho.
Em sete de junho de 2013, o jornalista Melquíades Junior
cutucou meu olhar adormecido. “Mulheres em defesa da
grande Mãe Natureza” era o título da reportagem assinada por
ele, integrando a série “Excluídos”, da edição do jornal Diário
do Nordeste daquela sexta-feira, sobre o protagonismo
feminino em etnias indígenas do Ceará.
As mulheres da aldeia Jenipapo-Kanindé me chamaram a
atenção logo de início não só por estarem no lide da matéria,
mas porque, entre elas, segundo a reportagem, estava a
primeira cacique mulher do Brasil. Até então, não havia pisado
em terra indígena cearense, nem sequer conversado com um
índio, muito menos descoberto que, a poucos quilômetros de
Fortaleza, encontrava-se a pioneira no cacicado feminino. De
súbito, senti vergonha; depois, a necessidade de pesquisar e,
quem sabe, tornar a temática o fio condutor do meu livro-
reportagem. Assim o fiz.
Confesso que foi arriscado e, talvez, insano de minha parte
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escrever um projeto de livro-reportagem sobre uma temática,
até então, distante do meu pequeno universo antes mesmo de
visitar a aldeia. Porém, no fundo eu tinha a certeza de que lá
encontraria elementos que poderiam saciar a minha sede de
descobrir, ouvir, observar, sentir e escrever. Era tudo novo e o
olhar estava virgem, embora alguns estereótipos necessitassem
ser desconstruídos. Mas qual beleza teria o jornalismo se não
fosse desafiador?
Foram várias conversas não só com Pequena, Juliana,
Raquel, Preá, Carline, Daniel, Daniela, Grazi, Everardo e
outros índios Jenipapo-Kanindé, mas também com
representantes de outras etnias, pesquisadores e profissionais
que atuam em órgãos voltados para a política indigenista local.
Todos foram pacientes, claros e detalhistas em meus inúmeros
questionamentos. Espero que a voz de cada um esteja impressa
neste trabalho. Nas visitas, o ouvir sempre veio antes do falar,
imergi em reflexões e permiti que os sentidos aflorassem ao
máximo para sentir a atmosfera do lugar.
Contudo, ainda não sou, nem de longe, uma profunda
conhecedora da etnia indígena Jenipapo-Kanindé, muito menos
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da complexidade na qual determinadas questões indígenas se
configuram no Brasil. Mas tenho buscado saber mais para que
a minha relação com as etnias indígenas do Ceará – e quiçá do
Brasil – não se encerre neste trabalho. Hoje, compreendo
melhor a história deste Estado que adotei como meu e que
inspira um sentimento de pertença muito maior em relação ao
meu lugar de origem. E interesso-me pela pesquisa acadêmica,
da qual fugia antes de ter contato com os estudos acerca da
temática. É importante ressaltar, também, que este trabalho está
sob o olhar subjetivo de uma repórter em formação, mas, ainda
assim, um olhar jornalístico; não de uma pesquisadora
antropológica.
Sobre a situação explanada no início deste texto, até o
momento, não desejo outra profissão se não essa, que oferece
várias histórias aos meus ouvidos, protagonizadas por gente tão
desconhecida quanto fantástica. As delícias são bem maiores
que os ardores.
Definitivamente, “Mulheres da Encantada” ressignificou o
jornalismo em mim.
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Introdução
Que índio é esse?
A tarefa do livro-reportagem pode ser vista
tanto mais complementadora dos periódicos e
do jornalismo eletrônico quanto mais se
percebe que aquela resulta, muitas vezes, do
interesse inicialmente despertado pela mídia
cotidiana, da atualização artificial que este
provoca em torno de um evento (…) ou do
vazio que a imprensa deixa, muitas vezes, por
não querer ou não poder mergulhar na
profundidade em temas para os quais existe
público interessado. Sob outra ótica, essa
complementação se dá pela tentativa do livro
em escapar da efemeridade e da
superficialidade na imprensa cotidiana. O
efêmero lhe é inerente, a superficialidade é
uma condição que pode e deve ser combatida,
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sempre que possível. (Edvaldo Pereira Lima,
Páginas Ampliadas, 2004, p.41).
Durante o período em que estive pesquisando, apurando e
escrevendo sobre os índios Jenipapo-Kanindé, colegas e
amigos que sabiam que eu estava em processo de produção do
trabalho de conclusão de curso questionavam acerca da
temática desenvolvida. Ao ouvir a resposta, muitos achavam
interessante e elogiavam a iniciativa, alguns sequer sabiam que,
no Ceará, ainda existiam índios, outros, com curiosidade quase
inocente, perguntavam se os índios moravam em ocas,
andavam nus ou eram canibais e, quando eu negava
pacientemente, poucos, mas não de forma menos dolorosa,
acrescentavam algo como: “Que índios são esses que não
possuem tais características?”.
Em tempo: não os culpo totalmente. Crescemos em uma
sociedade que ainda teima, de modo mascarado ou escrachado,
que o Brasil foi descoberto pelos europeus; que a construção de
usinas hidrelétricas em terras ocupadas por indígenas – os
transferindo a um pedaço de chão com o qual não mantêm
relação alguma – é sustentável e somente contribui para o
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desenvolvimento do País; que os índios perderam a própria
cultura e, hoje, aproveitam-se de “regalias” asseguradas pela
Constituição Federal para desfrutarem de benefícios oferecidos
a esse povo. Na escola, pouco ou nada se fala sobre as etnias
indígenas que se mantêm até hoje.
Os índios brasileiros são, muitas vezes, retratados de forma
homogeneizada. Assim, como afirma a professora Isabelle Braz
(Observatório Indígena) em um de seus discursos, temos uma
noção caricatural do ser índio, o qual achamos ser sempre
aquele nu, pintado, com vestes de palha e linguagem
desconhecida, que mora na oca e atira flechas, do Brasil
colonial ou o que vive em Estados distantes do Ceará: “(…) o
desafio que temos que enfrentar é desconstruir essa noção
caricatural do que é ser índio e por fim à insistência que temos
de querer congelar os povos indígenas no tempo e no espaço”.
A mesma professora, utilizando-se de um termo criado por
Darcy Ribeiro, salienta que os índios do Ceará podem ser
considerados “integrados”:
(…) os integrados vivem “ilhados” em meio à
população nacional, incorporados à economia
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nacional, na maioria das vezes como reserva de
mão de obra. Apesar de terem perdido a
autonomia cultural, também as suas terras e
viverem “confinados em parcelas de seu antigo
território”, em meio à população rural, ou em
alguns casos, mesmo no meio urbano,
preservam a consciência de que constituem um
povo distinto e são assim percebidos pelos seus
vizinhos, ainda que na maioria das vezes de
forma estigmatizada (Ribeiro, pp. 432 – 34 in
Braz, p. 154).
A abordagem de grande parte dos veículos de comunicação
no Brasil não contribui para a desmitificação da imagem
equivocada de índios despolitizados, submissos, aculturados e
invasores. Quando envolve etnias indígenas, a cobertura,
geralmente, abrange protestos, fatos curiosos, embates com
ruralistas, luta por demarcação de terras e divulgação de
estatísticas. Entretanto, manifestações culturais, costumes e
histórias de vida desse povo dificilmente estão presentes nos
principais cadernos, a menos que seja uma data comemorativa
ao dia do índio, tão criticado pelos próprios. Outra
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característica percebida ao longo desses meses de apuração foi
o fato de os índios do Ceará ainda ficarem distantes da
cobertura jornalística local em relação aos povos indígenas de
outros Estados.
Há, sim, reportagens que abordem de forma mais
aprofundada a situação dos índios no Ceará, como a que
transformou meu olhar e inspirou este livro-reportagem. Mas
essas, infelizmente, são raras. Não por falta de relevância!
Em 22 de abril de 1500, quando as caravelas portuguesas
chegam às terras tupiniquins para as desbravar, cerca de seis
milhões de nativos já habitavam o território há 10 mil anos.
Desde então, os indígenas conviveram com repressão,
escravidão e ofertas tentadoras do homem branco. Obedeciam,
caso não quisessem a dizimação do próprio povo, o que
aconteceu inúmeras vezes aos índios que tentaram resistir.
O Marquês de Pombal, em 1755, estabelece o Diretório
Indígena, por meio do qual incentiva o casamento entre
brancos e índios e determina a substituição da língua nativa
nheengatu pelo português. Menos de 100 anos depois, o
presidente da província do Ceará ordena a extinção de grupos
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indígenas por meio de um decreto, episódio que se repetiu em
outras regiões (GOMES, 1988, p. 23).
Anos passaram e o silêncio dos índios que não declaravam
a própria identidade devido às repressões e aos massacres que
vitimaram as gerações passadas permaneceu. Somente 294 mil
índios se assumiram como tais no levantamento do censo
demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) de 1991. Em 2000, o aumento da estatística foi de
150%, quando 734 mil índios se declararam no País. No censo
seguinte, em 2010, o aumento foi somente de 11,4%, quando
foram registrados 896.917 indígenas. Por meio do censo,
também foi comprovada a existência de índios em todos os
Estados brasileiros e no Distrito Federal.
Na região Nordeste, 232.739 índios são registrados, no
entanto, menos da metade (45,6%) vive em terras indígenas. O
Ceará é o 5º Estado da região com maior população de índios.
Atualmente, cerca de 22 mil indígenas estão divididos em 14
etnias registradas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), são
elas Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé,
Kariri, Pitaguary, Potyguara, Tabajara, Tremembé, Tapeba,
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Tapuya-Kariri, Tupiba-Tapuia e Tupinambá.
A aldeia Jenipapo-Kanindé situa-se em Aquiraz, na Região
Metropolitana de Fortaleza (RMF), às margens da Lagoa da
Encantada, próxima ao Morro do Urubu. Desde 1995, a
comunidade é liderada por cacique Pequena, que afirma ser a
primeira cacique mulher do Brasil. Entretanto, como não há um
registro oficial em relação ao título, optei por considerá-la,
neste livro – com o auxílio de profissionais envolvidos com a
política indigenista local –, a primeira cacique mulher do
Ceará.
Os índios Jenipapo-Kanindé – etnônimo atribuído aos
Cabeludos da Encantada na década de 1980, quando foram
descobertos – são reconhecidos pela Fundação Nacional do
Índio na década de 1990. A Terra Indígena (TI) Lagoa da
Encantada abrange 1734 hectares, no entanto, o processo de
demarcação aguarda homologação decretada pela presidente da
república.
O protagonismo das mulheres da aldeia Jenipapo-Kanindé
é o que salta aos olhos ao conhecer a comunidade. Trabalham,
estudam, lideram e representam a etnia com firmeza admirável,
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embora dividam as tarefas com maternidade, vida conjugal e
atividades domésticas.
Os indígenas são, geralmente, vistos como um povo
primitivo, com intenso patriarcalismo presente na organização
comunitária, devido ao preconceito enraizado naturalmente nos
que vivem distantes dessa realidade. A atuação feminina em
aldeias indígenas do Ceará e do Brasil também é desconhecida
por muitos, inclusive, na aldeia Jenipapo-Kanindé, situada a
pouco mais de 50 quilômetros da capital, liderada por uma
mulher há quase 20 anos. Ao longo da pesquisa, percebi que
mulheres à frente de movimentos indígenas estavam presentes
em outras comunidades do Ceará. Não fossem elas,
possivelmente algumas conquistas não teriam sido alcançadas e
as reivindicações estariam enfraquecidas.
Diante dessa questão, resolvi unir grupos historicamente
subjugados, trazendo aspectos da aldeia Jenipapo-Kanindé
revelados por figuras femininas. A proposta de “Mulheres da
Encantada” é perpassar por elementos da aldeia indígena
Jenipapo-Kanindé através de três gerações de mulheres,
representadas por Maria de Lourdes da Conceição Alves, a
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cacique Pequena, Juliana Alves, a cacique Irê, e Raquel Alves,
uma das lideranças jovens da etnia. As três fazem parte do clã
que atua em diversas esferas dentro e fora da Terra Indígena
Lagoa da Encantada, portanto, aqui debruço-me sobre
tradições, liderança, atividades produtivas, educação,
manifestações culturais, resgate, resistência, participação em
movimentos indígenas, dentre outras particularidades dos
Jenipapo-Kanindé.
Mas, se a ideia é, de certa forma, antropomorfizar essas
questões, personalidade, sentimentos de pertença, relações
interpessoais, estudos, conexão com a natureza e cotidiano das
três mulheres aqui apresentadas são intrínsecos a cada capítulo.
Embora Pequena, Juliana e Raquel sejam as principais vozes
desta reportagem, outras mulheres, jovens, crianças e homens
Jenipapo-Kanindé, pesquisadores e profissionais atuantes na
causa indígena foram escutados e contemplados em “Mulheres
da Encantada”, de maneiras distintas.
As falas das três protagonistas selecionadas para costurar o
texto são longas, se comparada aos espaços oferecidos aos
entrevistados nos jornais impressos. Elas me contaram a
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história e desejo que você a leia da mesma forma, assim, a
alternativa escolhida para particularizar esses trechos foi
destacá-los em itálico em todos os capítulos.
Retomando a citação do Edvaldo Pereira Lima que abre a
introdução deste trabalho, o livro-reportagem pretende-se como
complementador da abordagem tangencial dos meios de
comunicação acerca das etnias indígenas do Ceará, seja pela
rapidez ou pela indiferença, buscando desconstruir estereótipos
e tornar conhecida parte da realidade dos índios do Ceará
através dos próprios.
Assim como “Mulheres em defesa da grande Mãe
Natureza” e as demais reportagens da série “Excluídos”
despertou-me para uma situação complexa, encantadora e que
clama por visibilidade, desejo que “Mulheres da Encantada”
estimule você, leitor, a mergulhar em fragmentos da história
dos Jenipapo-Kanindé e, assim, também encontrar-se, afinal,
somos todos indígenas.
Boa leitura!
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Capítulo 1]
A mulher da aldeia; a aldeia na mulher
Foto: Arquivo Diário do Nordeste/ Helene Santos
Histórias, canções, abraços e sorrisos me arrebataram. Maria de
Lourdes da Conceição Alves, a Pequena, me encantou antes
mesmo de eu estar frente a frente com a primeira cacique
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mulher no Ceará. Inicialmente, o ineditismo do título saltou aos
olhos. Estava na reportagem que guardo comigo até hoje. Mas
foi quando conversamos pela primeira vez que descobri os
verdadeiros tesouros que a cacique carrega, e me senti
lisonjeada por poder escutá-los, vê-los, tocá-los, senti-los.
Pequena me revelou de forma pura e autêntica que quem não
registra em papel o imaterial da vida adquire uma capacidade
ainda maior de guardar tudo no “computador da cabeça”,
como chama ela a excelente memória que tem.
Construí o primeiro capítulo trilhando sobre memórias,
sentimentos e ambientes que perpassam a eterna cacique dos
Jenipapo-Kanindé. A índia de pele morena, olhos negros e
cabelos escuros e longos – os quais contrastam com alguns
poucos fios brancos que surgem na raiz – não sabia escrever
além do próprio nome, tampouco ler, até os 67 anos. Mas, ao
falar, reúne em si gerações anteriores, contemporâneas e
futuras dos índios Jenipapo-Kanindé, descortinando a riqueza
da aldeia da qual está à frente desde 1995 com sabedoria
admirável.
Não conheci Pequena em minha primeira visita à
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comunidade. O contato pessoal com o povo da Encantada foi
combinado com Juliana, a cacique Irê, e Heraldo, conhecido
como Preá, também filho de Pequena e responsável pelas
visitas à aldeia. À época, cacique Pequena havia levado uma
queda que agravou uma crise de diabetes, doença descoberta há
alguns anos e controlada de perto com o auxílio de filhos e
netos. Devido à recuperação, optaram por poupá-la de
visitantes naquele período.
O retorno aconteceu somente dois meses depois, em um
sábado de carnaval. A aldeia estava no clima do feriado mais
esperado por grande parte dos brasileiros. Já havia combinado
uma conversa com Juliana e Raquel, pois Pequena, ainda que
tivesse manifestado uma melhora, não estava preparada para
me receber. Pouco antes de o delicioso cará frito ficar pronto
para o almoço no restaurante de Osana, filha de Pequena, fui à
casa da cacique, em frente ao estabelecimento, a fim de avisar
para Raquel que em alguns minutos estaria lá para nossa
conversa. João Batista, outro filho de Pequena, me convidou
para entrar e me apresentou, finalmente, à mãe. O entusiasmo
surgiu de imediato, mas me preocupei com a aparência um
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tanto abatida da cacique, que, terminando de almoçar um dos
pratos principais nas mesas dos Jenipapo-Kanindé – peixe –,
contou-me que, naquela manhã, havia sido curada.
Pequena não apresentou o mal estar dela a um pajé de outra
aldeia – uma vez que os Jenipapo-Kanindé não possuem um
curandeiro dessa natureza; o antigo pajé da etnia se converteu
ao protestantismo e deixou a função. Também não foi a um
hospital se queixar a um médico sobre as insuportáveis dores
que sentia. No domingo de carnaval, Pequena pediu à filha,
Juliana, que a levasse de carro à Igreja Universal do Reino de
Deus. Ela contou que assistiu a um programa televisivo do
bispo da referida igreja durante a madrugada e, por meio das
palavras do sacerdote, teve a certeza de que seria curada no
templo localizado no Iguape.
No momento do culto dedicado à cura dos adoentados,
Pequena se colocou em frente ao altar, reunindo a fé de
influências diversas, da crença na força da natureza aos
ensinamentos do pastor, passando também pelo catolicismo.
Acreditou e voltou para casa aliviada. Quando nos
encontramos, ela estava cansada, mas já não sentia o mal-estar
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que a deixou distante dos afazeres durante, aproximadamente,
três meses. Antes de voltar para o restaurante de Osana, a
cacique me garantiu, de braços abertos, que me receberia com
prazer em outro momento.
No dia seis de abril de 2014, conheci a real Pequena:
saudável, disposta, reluzente e ainda mais acolhedora. Nossa
segunda conversa durou duas horas e meia, que passaram como
se fossem poucos minutos. Os relatos da índia me envolveram
de forma leve, hipnotizante e irresistível. Mergulhei neles
como em meu primeiro banho na Lagoa da Encantada. Difícil
dizer tchau. A cada conversa que tínhamos, a agenda retornava
cheia de notas para o livro-reportagem e para a vida.
Nos encontros que se seguiram, Pequena me recebeu muito
bem, com espírito maternal genuíno, permitindo que eu me
sentisse à vontade naquele novo território, embora não fosse
uma Jenipapo-Kanindé. As outras conversas permaneceram se
estendendo mais do que eu imaginava, me inspiraram e me
encorajaram a seguir com a temática até então distante do meu
universo, contudo, também me deixaram em conflito ao
escolher o que seria contemplado neste trabalho. Palavras,
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cantos, gestos e olhares não podiam escapar. Nela, é possível
adentrar a aldeia Jenipapo-Kanindé. O que é intrínseco, claro,
não se separa.
Encantada e Pequena: histórias que se
confundem
Em dia chuvoso e com o clima mais ameno, no início da Festa do Marco
Vivo, Pequena veste casaco com nome da etnia estampado nas costas Foto:
Gleydson Moreira
Chovia forte naquela manhã de quarta-feira. Acordei
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cedinho para não me atrasar para a celebração, mas a ansiedade
que ebulia há tempos esperando o dia que começava também
teve papel no meu despertar. O aguaceiro se intensificou na
CE-040 e parecia que não ia cessar tão cedo. Eu e Gleydson,
amigo que me acompanhou para registrar momentos em fotos,
ficamos receosos de continuar na estrada a caminho da
celebração do Marco Vivo e paramos no início do percurso.
Minutos depois, a chuva acalmou e seguimos devagarzinho.
O asfalto da pista dá lugar à estrada de barro, na esquina
onde se encontra uma placa indicando a direção para chegar à
aldeia Jenipapo-Kanindé. As idas e vindas anteriores ajudaram
a não me perder nas bifurcações que atrapalham os
desacostumados. A cada poça de água que podia esconder um
buraco profundo, vinha a preocupação de atolar o carro, ter de
empurrá-lo debaixo da chuva e perder parte de um dos
principais dias de apuração.
O Marco Vivo estava programado para começar às oito
horas do dia nove de abril de 2014, dez dias antes do Dia do
Índio, instituído em dois de junho de 1943, pelo então
Presidente Getúlio Vargas, por meio do Decreto-Lei nº 5.540.
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No domingo anterior, quando estive na casa de Pequena, ela já
havia falado sobre a sacralidade da data que se aproximava:
O dia do índio é todo dia. Não tem essa história de ser só
no dia 19 de abril. Quem botou isso botou errado. Temos a
nossa diferença, sim. Nove de abril é a festa do Marco Vivo,
que chama a atenção dos índios Jenipapo-Kanindé e dos
nossos outros parentes: Tapeba, Pitaguary, Kanindé de
Aratuba, Anacé, até os Tremembé de Almofala. Chama a
atenção de todos eles para nesse dia estarem nessa festa. E nós
vamos levando de ano em ano. A cacique Irê, logo que ela
entrou, queria mudar para outro dia. Ó o dedinho (faz gesto de
negação com o dedo). [Eu disse]: “Enquanto a sua mãe for
viva, a cacique Pequena for viva, vai ser nove de abril, com
chuva ou sem chuva, com comida ou sem comida, porque a
gente faz a festa.”
Pequena era cacique há quatro anos quando aconteceu a
primeira Festa do Marco Vivo, em nove de abril de 1999. A
delimitação da Terra Indígena Lagoa da Encantada, no governo
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do Presidente Fernando Henrique Cardoso, motivou a
celebração, que reúne diversas etnias indígenas do Ceará.
O toré – animado por tambores e maracas, acompanhado
pelo mocororó e pelo aroma inebriante que sai do cachimbo
dos índios e purifica o ambiente – é dançado em torno do
tronco de Yburana, adornado com plantas e flores, amparado
pelos Encantados que os indígenas invocam. Discursos das
lideranças da aldeia Jenipapo-Kanindé e de representantes de
movimentos indígenas ressaltam a luta que não finda e
aproveitam o momento para reivindicar condições melhores,
especialmente, aos órgãos responsáveis pela saúde indígena e
pela aceleração de processos carregados com morosidade,
como a homologação da Terra Indígena Lagoa da Encantada,
que necessita de decreto presidencial.
A celebração se encerra quando alguns representantes da
etnia fincam a Yburana em um dos limites do território da
aldeia. Após o replantio, essa espécie de tronco tem a
capacidade de renascer, criar raízes e frutificar. Com orações,
os índios agradecem pela terra que dá abrigo, alimenta e cura.
O Marco Vivo é também dia de celebração à natureza.
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De fato, embora a chuva demorasse a parar, assim que
aproximo o carro do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, após
cinco quilômetros sobre a terra lameada e 40 minutos do
horário previsto, vejo a líder dos Jenipapo-Kanindé
caminhando à nossa frente, em direção ao local do encontro, a
estrutura que abriga o Museu Indígena Jenipapo-Kanindé e a
Pousada, segurando uma sacola sobre a cabeça para não se
molhar. Ela está com um vestido estampado com flores e não
se caracterizou com cocar e pinturas feitas com jenipapo e
urucum naquele dia.
Aproximamo-nos da entrada já escutando o barulho de
tambores, cânticos e conversas que denunciavam que a reunião
de índios Jenipapo-Kanindé, Tapeba e Pitaguary já começara.
Heraldo nos recebe e nos convida para o café da manhã.
Sobre o balcão, há frutas (banana, maçã, melancia, rodelas de
abacaxi, mamão e laranja), mandioca, pães com queijo e
presunto, sucos, leite e outros alimentos para fortificar o corpo
de quem havia levado, principalmente, a alma para celebrar
junto aos Jenipapo-Kanindé. Na parede, atrás do balcão onde
os alimentos descansam à espera dos visitantes, um banner
35
pendurado e estampado pelas fotos do dia em que Pequena
nomeou Juliana e Conceição como caciques da aldeia, e de
uma das plantações do tronco de Yburana.
Seu Chiquinho, o marido, chega a passos curtos, calçados
por chinelos simples, calça dobrada até pouco abaixo do
joelho, uma camisa azul clara de botões e o marcante chapéu
preto, preso firmemente com a cordinha que é amarrada abaixo
do queixo.
Pouco depois, Pequena vem do corredor para nos
cumprimentar. É notório o misto de alegria e ansiedade em dia
tão marcante. Entretanto, a índia não consegue esconder um
certo desapontamento. O lançamento do CD, com 16 músicas
cantadas por ela, não estaria na programação do Marco Vivo de
2014, como havia planejado. A desculpa dada pela gravadora –
da qual ela não recordava o nome naquele momento – era de
que os 100 discos não ficaram prontos a tempo, embora a
cacique tivesse salientado a data em que desejava lançá-los. Ela
estava frustrada, afinal, cada canção é como uma cria, sejam as
de sua autoria ou as que adotou para avivar com sua voz
afinada. Para ela, foi doloroso deixar algumas de fora por falta
36
de espaço no disco. “Tirei a música da mente, as meninas
copiaram no caderno e eu cantei”.
Da cozinha, situada no final do corredor da Pousada, vem o
som da conversa entre mulheres, embora um homem esteja
auxiliando no preparo da refeição de meio-dia. Pequena diz que
gostaria que ficássemos para o almoço e mostra um sorriso
largo quando respondo que estaremos com eles até o final do
Marco Vivo.
Ela observa tudo e busca estar presente nas rodas de
conversas que se agrupam em cada ambiente do Museu e
Pousada Jenipapo-Kanindé. Alguns parentes Tapeba e
Pitaguary, que estavam na aldeia desde o dia anterior, devido à
Semana Intercultural que acontecia, se reúnem para cantar
músicas de toré e se atualizar sobre assuntos das etnias.
Pequena, claro, está entre eles. O movimento se intensifica
depois de 10 horas. Receptiva, ela preocupa-se com o
acolhimento das pessoas que chegam: indígenas, pesquisadoras
e curiosos. É, mulher, você havia saído do cacicado, mas o
cacicado sempre foi incapaz de te soltar.
37
Durante o Marco Vivo de 2014, convidados prestam atenção ao discurso
de Cacique Pequena Foto: Gleydson Moreira
Aos 69 anos, a cacique Pequena é mãe de 16: oito homens
e oito mulheres. Entretanto, os 54 netos e os 15 bisnetos
também estão sob o cuidado da índia, alguns longe, outros
perto. A comunidade, que abrange cerca de 400 pessoas, é
abraçada como filha tanto quanto os que têm o mesmo sangue
da líder. Pela aldeia, Pequena dividiu o tempo como dona de
casa, mãe de filhos e netos e cacique para ir à luta por proteção
38
à terra e aos direitos do povo Jenipapo-Kanindé. Viajou boa
parte do Brasil de ônibus ou avião, hospedando-se em pousadas
fornecidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) ou em
acampamentos, dialogando com etnias diversas, simpatizantes
e políticos, incluindo o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva,
com quem esteve em mesa-redonda para discutir a causa
indígena com outros parentes.
Com tanta intrepidez, é curioso o nome com o qual se
apresenta. Foi inevitável questioná-la sobre isso na pergunta
que abriu a primeira entrevista. Pequena não tem tal apelido
pelo tamanho, que é normal para uma senhora daquela idade.
Nascida e criada na mata, depois do Morro do Urubu, no
Grutião, a caçula de três irmãs recorda que, ainda criança, era
chamada assim pela Dona Maria Joana e o Seu Alfredo. Nos
braços do pai, Maria de Lourdes balançava e adormecia ao
ouvi-lo cantar “A fia do pai, a fia da mãe. É a pequena do pai, é
a pequena da mãe. É a pequena do pai, é a pequena da mãe...”
Ficou, não teve jeito. A alcunha se espalhou com o passar dos
anos, foi adotada pela cacique como se fosse o nome de
batismo. Agora, Lourdes só aparece em documento.
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Quando a índia nasceu, a família morava na região
conhecida como Riacho. Poucos dias depois do nascimento, o
único irmão homem de Pequena, de apenas seis anos, deixava o
mundo após ter sido acometido por catapora. Como as
condições de tratamento não eram favoráveis, o menino não
resistiu. Triste, Dona Maria Joana pediu ao esposo que fossem
embora do lugar no qual o filho havia morrido, de preferência
para a Mangabeira, onde moraram durante três anos. Após essa
temporada, se instalaram no Pacoti. Lá, ficaram por 16 anos.
Com as filhas criadas, Alfredo quis retornar para o Riacho,
onde permaneceu até a morte.
Desde muito nova, Pequena se reconhece como uma índia
dos Cabeludos da Encantada. A tribo era assim chamada devido
aos marcantes e longos fios dos habitantes da aldeia, os quais
cobriam a cabeça e, às vezes, eram também vestimentas.
Contudo, o passado que acompanhara a etnia com massacres,
escravidão e intrusão de posseiros nas terras impedia que a
família e os antepassados da cacique se autodeclarassem
indígenas. Pequena sabia que pertencia a um grupo “diferente”,
subjugado. Viveram escondidos durante longos e, muitas vezes,
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dolorosos anos, com receio do que o homem branco pudesse
fazer caso fossem encontrados.
Nós tínhamos medo de abrir a boca e dizer “somos
índios”. Nós tínhamos medo de dar o peito para o homem
branco, porque o índio foi muito massacrado, como hoje o
índio ainda é massacrado. Diziam que, no Ceará, não tinha
mais índio, que os índios daqui já tinham sido extintos. Muito
pelo contrário, os índios estavam escondidos e muito bem
escondidos.
Permaneceram Cabeludos da Encantada até a chegada dos
primeiros pesquisadores, na década de 1980. Os estudiosos
afirmavam que a etnia tinha quatro raízes indígenas. Eram os
Kanindé, Payakú, Jenipapo e Tapuia. Segundo informações do
Diário Oficial da União de 18 de agosto de 2004,
possivelmente, a língua da etnia seria o Tairariú, substituída,
posteriormente, pelo tupi. Atualmente, os Jenipapo-Kanindé
falam somente português.
A história desses povos, assim como a da família de
41
Pequena, foi marcada por intensa mudança de território,
fugindo da perseguição, em busca de um lugar onde pudessem
estar em paz, plantando e colhendo o próprio alimento,
produzindo os próprios instrumentos de caça e pesca e vivendo
em comunidade. Conduzidos, na maioria das vezes, pelo
homem branco, pela guerra ou pela manipulação, os indígenas
se espalharam em territórios do Ceará. Aos poucos, foram se
encontrando na Terra Indígena Lagoa da Encantada até
formarem um povo só.
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43
Os Kanindé eram aldeados às cabeceiras do Rio Banabuiú. Em uma guerra contra colonos em 1721,
foram vitimados ao defenderem o território. À época, o rei de Portugal ordenou que o Governador de
Pernambuco devolvesse a liberdade dos índios através da Carta Régia de 16 de outubro de 1722. Nove
anos depois, foi concedida aos Kanindé a permissão para se aldearem próximo à nascente do Rio Choró,
mais especificamente na passagem conhecida como Muxió.
Nos sertões do Alto Curu e nos rios Banabuiú e Quixeramobim, encontravam-se os Jenipapo. Com o
apoio dos índios Icó e Quixarirús, entraram em conflito com o homem branco e, em 1726, foram
mandados para o Piauí. Inconformados, os Jenipapo não atenderam as ordens do capitão-mor e sofreram
extermínio de tropas constituídas por índios Kanindé e Payakú da Ribeira do Jaguaribe até os limites
com o Piauí. Somente em 1739, os índios Jenipapo pediram aldeamento e, assim, foram viver junto com
os Kanindé.
As duas etnias se uniram em um território conhecido como Missão da Palma ou Nossa Senhora da
Palma. Tempos depois, foram transferidos para a Serra de Baturité, que, em 1858, foi elevada a cidade de
Baturité.
Pesquisas históricas apontam que os Payakú habitavam região próxima ao Rio Açu, à Serra do Apodi
e à Ribeira do Jaguaribe. A etnia era conhecida por ser inimiga de vários povos indígenas, como
Potiguara e Jaguaribara, e pelo intenso derramamento de sangue que causavam em revoltas. Para que a
Capitania ficasse em paz após inúmeros conflitos, o capitão-mor Jorge Correia da Silva ordenou o
extermínio dos Payakú em 1671. Entretanto, a etnia não esqueceu o massacre, se fortaleceu novamente e,
em 1694, organizou, junto com os índios Icó e Jandoin, um combate que quase exterminou os colonos
que se encontravam às margens dos rios Banabuiú e Jaguaribe. O aldeamento dos Payakú aconteceu em
1696, em Arará, próximo à cidade de Aracati, mas, em 1765, foram levados para a Vila de Montemor,
onde já estavam os Jenipapos e os Kanindés, que não concordaram com a chegada dos novos moradores.
Com a rejeição, os Payakú foram ordenados a ir para Messejana.
Já os Tapuias foram removidos para a Aldeia Velha, sítio localizado na cidade de Limoeiro.
Provavelmente, mais tarde foram levados para a Serra da Palma, ao sul da bacia do açude do Cedro, em
Quixadá.
Diário Oficial da União, 18 de agosto de 2004.
A prima do meu avô, pai do meu pai, o Pai do Céu já
levou, disse que era da família dos Kanindé. Quer dizer que,
na certa, nós fomos um povo “andarejo”. Entende a palavra
“andarejo”?
“Andarejo” é quando a gente se muda de um canto para
outro, de um canto para outro, de um canto para outro, de um
canto para outro. Que não tem canto certo para morar, que
nem cigano. Quando eu era mocinha, eu ouvia muito o Tio
Jorge dizer: “Olha, vocês são índios, Pequena. Vocês são
índios Payakú”.
Cacique Pequena conta que, pelo menos, três gerações
anteriores à dela habitaram a região do Riacho. O avô de
Pequena nasceu em 1845, 169 anos atrás. Sobre o bisavô,
embora a índia saiba que ele tenha nascido na aldeia, não tem
conhecimento do ano exato.
Pequena ainda propaga uma história contada pelo pai sobre
um intenso conflito que aconteceu em Aquiraz, época em que a
cidade se transformava em vila. Ela acredita que os
44
antepassados tenham sido sobreviventes da batalha.
Meus pais diziam que para o povo de Aquiraz se entregar
para os não índios, o sangue deu no meio da canela, mataram
muita gente. Botaram para correr e pediram reforço para
tomar conta do Aquiraz, e os índios botaram eles para correr
até a Paupina. Quando eles conheceram que a gente não era
gente igual a eles, voltaram com o dobro do reforço. Um
bocado foi morto, outro bocado foi levado para trabalhar nas
canas-de-açúcar, para trabalhar com gado; e outros correram,
que na certa fomos nós. Na certa, era o avô dele que contava
para o pai dele. Na certa, a família dele escapou, que somos
nós.
Os antepassados de Pequena se sustentavam a partir da
água, do alimento e de outros recursos que a mãe natureza
oferece, “da fruta do mato e do peixe do rio”. As plantações de
batata, mandioca e feijão predominavam. Na lagoa, carapeba,
camorim e curimatã nadavam em cardumes, “de fartura
mesmo, de você chegar e o peixe andar quase no pé”.
45
A cultura de troca entre os índios também era muito
presente. Ninguém dormia sem comer ou acordava preocupado
com falta de alimento para aquele dia. Na vida em comunidade,
se um tinha a massa para fazer beiju, mas não havia pescado,
fazia a troca com o índio que tinha peixes sobrando, mas não
guardara a massa para o alimento de origem indígena. Se não
cambiavam, reuniam-se com os parentes para uma
confraternização corriqueira e, ali, todos almoçavam juntos.
Quando escurecia, a fumaça da fogueira subia avisando que
naquela noite haveria encontro para comer, beber café e
conversar sobre a vida e os encantos da aldeia. Geralmente,
acontecia em frente a alguma das casas de palha espalhadas
pelo território.
Aí fazia o quê? Contavam as histórias que eles sabiam.
Meu pai contava uma história assim, outro contava outra,
outro contava outra. Pra findar a história, a dona da casa
vinha com um pote de café para tomar. Eles já tinham assado
na fogueira milho, jerimum, batata, macaxeira. Aí é só tirar a
areia de tudo aquilo, limpar, abrir – porque eles assavam com
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casca e tudo –, depois comer com café.
Foto: Bárbara Rocha
Como guardiã da memória, Pequena sempre apresenta aos
moradores e visitantes da comunidade Jenipapo-Kanindé um
dos elementos principais das conversas em volta da fogueira: o
sobrenatural da Lagoa da Encantada.
As visões e vivências que os índios diziam ter ao irem até a
água da aldeia atravessaram as gerações, mas hoje são
consideradas lendas, imergidas no imaginário dos Jenipapo-
Kanindé e da Lagoa, que não poderia receber outro nome. É
encantada.
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Ao contar as lendas, Pequena se debruça sobre o passado
dos indígenas, explicando o contexto do período em que as
histórias se passaram. Nos relatos, também são repassadas
mensagens de proteção à natureza, tão pregada entre os
Jenipapo-Kanindé.
O cacique Adorico contava muito essa lenda para nós. Um
dia, um índio da aldeia foi buscar água na lagoa. Quando ele
chegou na lagoa, ele viu um camorim. Camorim é um peixe,
aqui na lagoa tem muito, não como antes, mas ainda tem. Ele
tava pegando água no pote de barro, que antigamente a gente
só usava vaso de barro. Ninguém usava vaso de alumínio, nem
de lata, era só de barro.
Ele viu aquele camorim para lá e para cá, para lá e para
cá e disse: “Ah, vou pegar esse peixe para eu levar e comer.
Não tem nem jeito”. Correu em casa, deixou o pote, pegou o
arpão, voltou e “tchum”, aqui no cuncum do peixe (Pequena
bate nas costas).
O peixe safou do arpão da mão dele e foi embora. Ele
disse: “Olha só! Perdi esse peixe, rapaz. Era um almoço para
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eu almoçar mais meus pais. Tem nada não”. Quando ele disse
“Tem nada não” e ia embora, levantou na frente dele uma
moça bonita, bem alva, pele fina, com os cabelos batendo no
chão, que disse:
– Eu vim buscar você.
– Me buscar? Para quê?
– Para tirar aquele ferro que você botou no cuncum do
meu pai.
Aí disse que eles tiveram uma teima.
– Não! Eu arpoei foi um peixe, não foi gente.
– Vamos logo, não vamos teimar não. Sente no meu
cuncum e feche os olhos. Não abra os olhos, só abra os olhos
quando eu mandar.
E assim ele fez. Sentou no cuncum da moça, fechou os
olhos e ela “fuuuum”, entrou de água adentro e foi embora
com ele.
Com um pedacinho, ela mandou: “Abra os olhos”. Quando
ele abriu, estava dentro de um palácio, a coisa mais linda do
mundo.
– Vamos lá onde está meu pai.
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Quando chegou lá, estava o velhão em cima da cama,
gemendo, com o arpão arpoado no cuncum do velho.
– Valha-me, Deus. Eu arpoei foi uma pessoa pensando que
era um peixe.
Eu sei que ele mesmo deu um jeito, puxou o arpão, tirou
das costas do velho, lavou o sangue todinho e disse:
– Pronto! Agora eu vou embora.
– Vamos dar uma corrida aqui dentro da lavoura do meu
pai.
Foram correr na lavoura deles, tinha muita coisa bonita,
coisa banhada de ouro.
– Mas não toque. Se você tocar, você fica com nós.
Ela pegou o arpão e disse:
–Agora vamos embora. Você quer ficar aqui?
– Não, vou embora, que minha mãe tá morrendo de
saudade de mim.
– Pois faça o mesmo trabalho que eu pedi para você fazer.
Se montou no cuncum dela, fechou os olhos e ela
“fuuuum”. Quando ele viu tava na beira da Lagoa, saiu do
cuncum dela e foi agradecer. Aí dizem que no abrir e fechar de
50
olhos, quando caçou ela, o canto mais limpo.
Antes de Pequena assumir o cacicado, há registros de dois
tuchauas – nome que se dava aos líderes da aldeia –, Chico
Pixinga e Adorico.
O primeiro, avô de Seu Chiquinho, já era conhecido em
regiões próximas à comunidade, como Iguape e Aquiraz.
Quando chegava, o homem branco já anunciava: “Lá vem o
tuchaua dos Cabeludos da Encantada”.
Pequena recorda que Chico Pixinga era uma das principais
figuras da comunidade não somente pela função de líder da
aldeia, mas, especialmente, por contar as histórias surreais da
Lagoa da Encantada. Ainda menina, Pequena ouvia tudo com
atenção de criança curiosa, impressionada com os encantos que
as águas podiam carregar.
O finado Chico Pixinga via era banda de música tocando
dentro do navio em dezembro, no Natal. Em dezembro eles iam
para a Lagoa e lá ia um navio com a banda de música tocando
as coisas mais lindas do mundo. Vinha aqui e voltava no final
51
dela, vinha aqui e voltava no final dela, e assim passavam
horas e horas eles vendo aquelas belezas. Depois (bate uma
mão na outra) sumia, não sabia para onde ia. Diziam: “Ah,
meu Deus, vamos embora para casa, porque já sumiu tudo”.
Era assim, eu desse tamanhinho (mostrando que era
pequena), cansei de ver o finado Chico Pixinga contando essa
história, que era o homem que a gente chamava de tuchaoa.
Se a natureza sustentava todos, a terra também era
compartilhada. Em um mesmo terreno, cerca de dez homens
semeavam em harmonia, cada um colhia o seu plantado e
estava disposto a dividir caso o companheiro não tivesse
desfrutado a mesma sorte. Os momentos de pesca na Lagoa da
Encantada também tinham mais graça quando os índios
estavam em grupo, nas canoas feitas de gameleira. Peixes
partilhados, almoço garantido, acompanhado, é claro, do beiju
de cada dia.
O marido chegava da praia, da maré, da lagoa, com peixe,
aí a gente tratava o peixe, enchia uma panela de barro com
52
peixe, botava no fogo e seis horas da manhã o peixe já estava
cozido e fazia o pirão de beiju de caco. A gente fazia no caco a
massa da mandioca, amassava, fazia o beiju e botava dentro
da vasilha. Depois botava no prato de barro, cortava bem
miudinho, botava o caldo dentro, escaldava e comia com
peixe. Depois tomava o café, era a sobremesa. A gente comia
com todo mundo.
(...)
Minha mãe dizia que era uma união muito forte, viviam
sem dinheiro. A vida deles era aquela, não precisavam de
dinheiro, ter o que comer era o que bastava. Por isso eles
viviam no paraíso, um povo inocente, um povo sem maldade,
porque eles mesmos eram o povo de si próprios.
A vida da comunidade que Pequena ainda alcançou
mantinha pouquíssimo contato com o homem branco. Os
encontros com aqueles que permaneciam provocando suspeita
– devido ao trauma que os índios ainda carregavam –
aconteciam, principalmente, quando os mais velhos iam até a
cidade – Iguape, Aquiraz ou Fortaleza – para vender o que eles
53
mesmos produziam na aldeia, como a cera feita a partir do mel
de abelha e esteiras feitas de junco.
Antes da década de 1970, os brancos não haviam
descoberto as terras indígenas Lagoa da Encantada. Ou, se já
tinham conhecimento sobre a aldeia, não apareciam. Os
costumes indígenas eram muito preservados na comunidade,
afinal não precisavam disputar com as ofertas que o homem
branco impingia.
Da natureza, extraiam a força necessária para cada dia por
meio da contemplação do pôr do Sol do alto do Morro do
Urubu ou de um banho na Lagoa da Encantada. Também de lá
vinha o sustento para o corpo, fosse alimento ou remédio.
As doenças não se manifestavam com recorrência até a
entrada dos não-índios. Quando o mal-estar surgia, a infinidade
de raízes, ervas e frutos espalhados pela mata curava. Segundo
Pequena, os remédios naturais não falhavam, só não davam
certo quando Pai Tupã tinha de chamar um índio para a voz.
Quando nós não tínhamos contato com ninguém, nós
vivíamos melhor do que hoje. Era difícil adoecer e, quando
54
adoecia, era doença para morrer de uma hora para outra. Não
passava quatro, cinco meses doente, nem levava a vida inteira
doente, porque os remédios serviam. Se estava gripado,
tomava chá de jatobá para ficar bom, a água do jatobá, ou da
ameixa e de outros remédios que servem. Se tinha uma
inflamação, tomava um “chá da cabeça do nego”.
Você arranca a “cabeça do nego” e faz as rolinhas. É uma
batata, tipo as que vendem na feira para a gente comer.
Ralava, tirava a goma, fazia o chá e tomava, que é bom para a
inflamação.
Hoje ninguém usa mais. É todo tempo no remédio
convencional. Uns servem, outros não servem.
Isolados, porém felizes, naturalmente. A simplicidade do
cotidiano, a união e a sensação de que ali estavam protegidos
sustentavam prazeres que impediam que os Cabeludos
quisessem outra vida. Até os casamentos surgiam dentro da
aldeia e, muitas vezes, entre pessoas da mesma família. Um
dos exemplos é Pequena e Seu Chiquinho, primos casados há
52 anos. Os pais de Pequena também eram parentes, Seu
55
Alfredo era tio de Dona Maria Joana.
Embora a reclusão impedisse que os índios descobrissem
benefícios a que tinham direito, é dessa época que Pequena
sente falta. Lamenta a passagem dos anos em que havia
profunda comunhão entre os parentes, sustento totalmente
advindo da mãe-terra, encontros em volta da fogueira, e a
ausência de dinheiro – desnecessário para a sobrevivência
básica naquele período –, capaz de seduzir e cegar, em um
descuido, até mesmo os índios mais centrados nos princípios da
etnia.
56
Cabeludos à vista
Hoje, Pequena tem facilidade para falar a um público formado por
índios e não índios, mas nem sempre foi assim Foto: Luiza Carolina
Figueiredo
Quando grupos de estudantes de colégio, universitários e
pesquisadores chegam à aldeia Jenipapo-Kanindé, geralmente
procuram Pequena para recepcioná-los e compartilhar as
57
histórias que a guardiã da memória carrega consigo. A primeira
cacique mulher no Ceará faz questão de apresentar aos
visitantes da comunidade a cultura do povo dela, mesmo
durante o período em que esteve afastada do cacicado
oficialmente.
Pequena também não foge de entrevistas jornalísticas para
reportagens em quaisquer veículos de comunicação, seja na
própria comunidade ou durante encontros indígenas realizados
em todo o Brasil. Ela mesma pediu, dias antes do Marco Vivo,
que, se fosse possível, eu procurasse divulgar a celebração para
que repórteres pudessem fazer a cobertura e tornar ainda mais
conhecida a manifestação cultural tão importante para o povo
da Encantada. Entretanto, a relação entre a índia e os homens
brancos nem sempre foi harmoniosa. Os próprios Payakú, dos
quais os Jenipapo-Kanindé são descendentes, eram conhecidos
como índios agressivos que resistiam fortemente à invasão dos
brancos.
Ainda relembrando, saudosa, a vida em comunidade de
anos atrás, Pequena ressalta que as coisas começaram a mudar
quando pessoas “diferentes” entraram na aldeia, seja para
58
estudo do povo indígena, saciar a curiosidade ou tomar posse
das terras dos, até então, Cabeludos da Encantada.
Nessa época, eram só as ocas de palha. Uns faziam
comprida, outros faziam redonda, faziam aquela porta, aquele
buraco, aquele arco. A casa do meu pai era um arco, a porta.
Aí faziam dois buracos, um buraco na frente e um buraco
atrás. Não tinha janela, não tinha nada, só aqueles dois
buracos de entrar e sair. Não tinha parede, não tinha nada, era
um vão só. Se tinham outras pessoas [na casa], a gente tinha
que se trocar nos matos. Ah, muito boa nossa vida
antigamente, um paraíso. Ah, se aquela época ainda voltasse,
mas não volta. Não volta mesmo. Hoje é diferente. Quando eu
comecei a ver gente, assim, que nem você, eu já fiquei
estranha [e dizia]: “Valha-me, Deus, o que esse povo veio ver
aqui?”
Em 5 de dezembro de 1967, é criado, por meio da Lei nº
5.371, a Fundação Nacional do Índio (Funai), com a
responsabilidade de “estabelecer as diretrizes e garantir o
59
cumprimento da política indigenista” no Brasil, já
desmoralizada devido a inúmeras falhas do órgão anterior que
tinha atribuições semelhantes.
Antes de a Funai entrar em vigor, o Serviço de Proteção ao
Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) é
instalado em 1910 e, oito anos depois, passa a ser chamado
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que atuou na região
Nordeste após solicitação dos próprios indígenas.
Desde o surgimento, o SPI esteve envolvido com processos
de aculturação dos índios, promovendo o etnocídio por meio de
ações que evidentemente priorizavam apenas o
desenvolvimento nacional, dentre elas, contatos com
comunidades indígenas objetivando integrá-las à sociedade por
meio de centros que atraíam os índios isolados; povoações para
os que estavam em processo de civilização; e centros agrícolas
para os que já haviam absorvido a proposta do SPI, segundo
informações que constam no livro “Diga ao povo que avance”,
tese de doutoramento da socióloga Kelly Oliveira.
A exploração disfarçada de assistencialismo perpetuou-se
durante muitos anos, acarretando inúmeras denúncias reunidas
60
no Relatório Figueiredo, com 5.515 páginas, feito a partir de
uma Comissão de Inquérito presidida pelo Procurador-Geral
Jader Figueiredo, em 1967. De acordo com a pesquisadora
Kelly Oliveira e as referências que ela utiliza, o relatório
apontava, dentre as denúncias ao SPI, prostituição forçada,
desvio de verbas públicas e orçamentárias e falsificação de
documentos oficiais.
Com o advento da Funai, o governo federal tentou corrigir
a péssima imagem que o SPI havia deixado marcada em povos
indígenas, entretanto, o órgão também apresentou
incompetência no início, principalmente, durante a década de
1970, quando funcionários realmente preocupados com a causa
indígena eram demitidos ou pediam exoneração e outros com
pouco comprometimento eram contratados, conforme a
pesquisadora relata no livro.
A Funai também tardou a chegar à aldeia indígena de
Aquiraz e a iniciar o processo de reconhecimento da etnia e a
delimitação da terra. Antes de o órgão competente cumprir seu
papel com os Cabeludos da Encantada, estudiosos e outras
entidades envolvidas com os interesses indígenas tomaram à
61
frente da busca pela efetivação dos direitos do povo da
Encantada.
Mesmo sabendo que eram índios, a política indigenista e
sua complexidade ainda lhes era desconhecida até o final da
década de 1970. Em publicação do Diário Oficial da União do
dia 18 de agosto de 2004, é informada a existência de índios na
região da Lagoa da Encantada a partir de dados levantados pelo
Núcleo de Geografia Aplicada (Nuga), do Departamento de
Geociências da Universidade Federal do Ceará, entre setembro
de 1981 e dezembro de 1982.
62
63
Caracterização do Grupo Indígena - As notícias atuais, sobre os índios habitantes da Lagoa
Encantada foram publicadas em 19/02/84 no Jornal de Fortaleza, “O Povo”. A reportagem informava
a existência de índios que habitavam a localidade Lagoa da Encantada no município de Aquiraz, a
partir de dados levantados por uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual do Ceará - UECE,
no período de set/81 a dez/82 e coordenada pelo Núcleo de Geografia Aplicada do Departamento de
Geociências - NUGA.
Segundo esta pesquisa, a comunidade que habita na Lagoa Encantada possui “uma herança
cultural indígena, possivelmente de grupo dos Tapuios, da Tribo dos Paiacus” (NUGA,1983:568 in
Assis, 1998: 20). O Prof. José Cordeiro, participando de levantamentos realizados sob os auspícios da
Arquidiocese de Fortaleza, foi um dos interessados em pesquisar a etno-história desses índios,
identificando-os como descendente dos Jenipapo-Kanindé. Uma hipótese, baseada no livro “Os
Aborígenes do Ceará”, explica que os Jenipapo-Kanindé são remanescentes dos índios Baiacus,
também chamados Paiakú.
Mas, conforme o relatório histórico-documental, descendem dos Genipapo, Canindé e Paiakú. O
etnônimo por eles incorporado e pelo qual são conhecidos pelos regionais é “Cabeludos da
Encantada”. As conclusões das pesquisas do Prof. José Cordeiro em torno da definição do etnônimo
Jenipapo-Kanindé foram assumidas em sua totalidade por esta comunidade. Para eles, hoje, “Paiacu,
Cabeludos da Encantada ou Jenipapo-Kanindé é a mesma coisa”, assim falou a Cacique Dona
Pequena.
Diário Oficial da União, 18 de agosto de 2004.
Para os Cabeludos da Encantada, a entrada dos
pesquisadores marca o início de uma nova fase na aldeia,
certamente irreversível. Após a divulgação da pesquisa do
Nuga, o advogado José Cordeiro adentrou a comunidade como
membro da Equipe de Assessoria da Arquidiocese de Fortaleza,
alertando os índios que ali habitavam sobre a possibilidade de
desapropriação das terras deles. Pequena não esquece da
primeira conversa com o mediador.
Foi feita uma pesquisa aqui na Encantada e descobriram
que nós éramos índios, porque pegaram toda a nossa cultura,
todos os nossos costumes, nossos modelos de viver e de ser e
disseram:
– Esse povo é índio, nem que eles não queiram ser, mas
eles são índios.
Esse povo vem para fazer o estudo e entra o Cordeiro. E o
Cordeiro pergunta:
– Pequena, vocês sabiam que vocês eram índios?
– Há muitos anos. Desde pequena, meu pai disse que nós
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éramos esse povo.
– Pequena, se vocês não se organizarem, vocês vão ser
despejados, porque descobriram nas pesquisas que vocês são
índios de Aquiraz, que vocês têm cinco descendências e vão
querer colocar vocês lá onde é a descendência mais forte, que
são os Payakú.
Aí todo mundo ficou doido, começou a chorar.
Segundo Cacique Pequena, naquela época, começaram as
investidas para remover os Cabeludos da Encantada em prol da
especulação imobiliária. Receosos, os índios se uniram a
comunidades de não-índios situadas próximas à aldeia,
Trairussu e Tapuio – formando uma associação – e, ao lado de
advogados da Pastoral Indigenista da Arquidiocese de
Fortaleza, batalharam para que a intrusão não fosse
concretizada. A índia não era a cacique da aldeia, mas, ainda
assim, foi em busca de dialogar com os envolvidos a fim de
resolver o conflito, no entanto, as portas fechavam quando
Pequena chegava. Foram frustrantes inúmeras tentativas. Ela
diz que somente após dois anos de associação das três
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comunidades, o prefeito de Aquiraz finalmente aceitou um
encontro para impedir a invasão.
Chamamos o prefeito, encostamos ele no pé da parede e
perguntamos:
– O que o senhor quer de nós? O senhor está disposto a
comprar a Lagoa da Encantada, mas o senhor está disposto a
comprar um terreno muito maior que o da Lagoa Encantada
para dar para os índios? Porque o senhor só pode ficar com a
Lagoa da Encantada se o senhor matar os índios um por um,
mas se o senhor deixar uma família, já não pode, porque a
gente vai lutar pelos nossos direitos até o ponto final.
Ele disse para nós que tinha voltado atrás.
A mudança do nome da etnia foi também uma das
principais novidades após a chegada dos pesquisadores. De
Cabeludos da Encantada, passaram a ser Jenipapo-Kanindé,
etnônimo ainda questionado na Academia, principalmente,
porque a ascendência mais expressiva seria a dos Payakú.
Logo, a comunidade foi pautada em diversas reportagens da
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época, nas quais já foi identificada a partir da denominação dos
estudiosos.
Para a Cacique Pequena, os índios não deveriam ter
aceitado a nomenclatura apresentada por pessoas de fora. Ela,
que já era influente na comunidade naquele período, afirma
que, se pudesse, voltaria atrás.
Como faz? Bota Jenipapo-Kanindé ou Cabeludos da
Encantada? Eu fiquei confusa e era para eu ter dito: “Não,
nós vamos ser Cabeludos da Encantada como nascemos e nos
criamos”. Mas eu fui dar na besteira de dizer: “É, bota
Jenipapo-Kanindé”.
Com o início das pesquisas, a aldeia se tornou mais
conhecida e atraiu novos visitantes, que eram recebidos com
desconfiança pelos índios da região, afinal, assim como o
universo indígena era novo para os brancos, estes assustavam
os Cabeludos da Encantada ainda que demonstrassem gentileza
e respeito.
Hoje, Pequena rememora, entre risos, as vezes em que foi
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hostil com os curiosos que a procuravam, até mesmo se
escondendo para evitar o contato com o homem branco, sendo
apelidada de “índia braba”. O cenário atual se difere também
nesse aspecto.
Eu corria e me escondia. Chegavam, batiam na porta, e eu
tava lá escondida, dentro dos matos, fugindo. Ficava por ali,
muito assustada, e as pessoas iam embora. Depois, passado o
tempo, quando eu dava fé vinha uma pessoa [e dizia]:
– Olha, Pequena, vim aqui com essa pessoa que queria te
conhecer.
– Pronto, tá me conhecendo.
Mas eu não dava a mínima atenção como eu estou dando
aqui para você, como estou conversando com você.
Aí a pessoa:
– Ah, ela não fala não?
– Não, ela fala, é porque ela é índia braba. Ela não dá
muita atenção a ninguém, não.
Tinha uma senhora, Socorro. Ela chegava aqui, uma
pessoa tão doce, tão humilde, era rica, mas fazia um papel de
68
gente pobre. Botava o pé no chão e andava para todo canto
descalça. Aí ela chegava [e dizia]:
– Comadre Pequena, eu vim aqui para conversar com
você. Você pode conversar comigo?
– Não, eu estou muito ocupada. Tenho ali uma roupa para
lavar, não posso falar com ninguém.
Quando eu chegava na lagoa [da Encantada], tava
lavando as roupas, ela chegava:
– Oi, comadre Pequena, eu vim aqui para a gente
conversar e vim tomar banho.
Ela começava a conversar, a me fazer perguntas, ia
contando uma coisa aqui outra acolá, mas eu não contava nem
a metade, e ela tava ali, o sol começava a esquentar, ela era
alvinha e começava a se queimar. Eu dizia:
– Olha, é bom a senhora tomar seu banho e ir embora,
porque o sol tá lhe queimando (risos).
E era assim. Hoje, graças a Deus, passou todo o receio.
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Fotos: Arquivo O Povo/ Dário Gabriel
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A líder Pequena
Foto: Arquivo Diário do Nordeste/ Helene Santos
Das lembranças da infância que Pequena guarda, a música
que o pai cantava para niná-la, os banhos dados pelas irmãs
mais velhas, o gosto do beiju preparado no caco e o timbre de
cada parente jamais foram esquecidos. Audição, tato, olfato e
71
paladar são, até hoje, sentidos bem apurados. A cegueira que
durou toda a infância era o principal motivo para reconhecer
tão bem o que a cercava mesmo sem enxergar.
Pequena relata que, com um mês e meio de nascida, levou
uma chuva muito forte, extremamente prejudicial para um bebê
da idade dela. Conseguia abrir os olhos, mas só via escuridão.
A natureza estava presente em todos os outros sentidos, mas
não podia ver a beleza que mais tarde traduziu em uma de suas
canções.
Para reverter a situação de Pequena, Dona Maria Joana
tentou de tudo, inclusive uma garrafada comprada em
Fortaleza. Nesse período, a família morava bem próximo à
praia, porém não imaginava que a cura para os olhos de
Pequena pudesse estar ali, aos montes. Se outrora a água que
cai do céu havia levado o resplendor dos olhos da pequena
índia, devolveu por meio do mar as chances para que ela
pudesse concretizar o sonho de ter o sentido que lhe faltava.
Um senhor que também morava na região fez o alerta,
indicando o remédio natural para a mãe da cacique: água de
ostra.
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Ele disse: “A senhora arrume a ostra, tire a água, e dê
para ela tomar e lavar a visão, passar em cima dos olhos
dela”.
A minha mãe começou a fazer, porque tinha ostra demais,
aí eu comecei a tomar e comer. E comecei a comer, comecei a
comer. Ora, minha filha, não deu um mês e eu estava vendo
tudo.
Certo dia, aos 11 anos de idade, Pequena abriu os olhos e a
escuridão havia desaparecido. A união dos azuis do céu e do
mar compunha o primeiro cenário visto pela índia. Ao falar
dessa primeira visão, um brilho surge por trás dos óculos de
grau com armação lilás. Em uma manhã de domingo, na sala
de casa, abaixo dos três quadros com retratos da neta Carline e
dos filhos Juliana e Preá, questionei qual foi a sensação ao
enxergar pela primeira vez. Pequena abriu o sorriso,
aparentando ter retornado mentalmente para aquele dia
marcante, e contou-me:
73
A primeira coisa que eu vi foi o mar, porque a gente
morava de frente para o mar, em cima de um cabeçote de
morro. De lá, nós víamos o mar da cidade até aqui, o Iguape,
aquela coisa linda. Eu fiquei muito feliz [e disse]:
– Ah, eu quero ir naquele rio tomar um banho, mãe.
– Agora não, só quando você tiver bem boa.
Esse dia, para mim, foi tudo na minha vida, porque
conheci minhas irmãs, conheci meus pais, apesar de a
primeira coisa ter sido o mar, aquele rio imenso. Foi o céu
aberto para mim! De lá para cá, não fiquei mais cega, graças
a Deus.
Antes do início da programação de aniversário de quatro
anos do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, realizada no dia 12
de setembro de 2014, algumas canções de Pequena foram
reproduzidas precedendo o que está por vir no CD. Assim
como a luta indígena, a preservação da natureza é uma das
temáticas que Pequena musicou.
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A natureza divina/ é a beleza da vida
A natureza e a terra/ é a beleza da vida
(...)
Na natureza se vive/ tem lugar pra se morar
Preserve bem a natureza/ não deixe ninguém devorar
Nascida na mata, criada com o sustento que a terra oferece,
curada pelo mar. A natureza envolve Pequena em todas as
esferas da vida até hoje, assim, foi também uma das
motivações para que a índia se tornasse cacique dos Jenipapo-
Kanindé.
Percebendo a importância e os riscos do ambiente em que
vivia, resolveu batalhar pela comunidade, inicialmente, por
meio da atuação ao lado da Arquidiocese de Fortaleza e das
comunidades Tapuio e Trairussu. À época, a delimitação da
Terra Indígena (TI) Lagoa da Encantada tradicionalmente
ocupada era uma das reivindicações mais importantes após o
reconhecimento da etnia.
75
76
Entenda as Fases do Processo Administrativo das Terras]
Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas
De acordo com a Constituição Federal vigente, os povos indígenas detêm o direito originário e o
usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam. As fases do procedimento
demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas, abaixo descritas, são definidas por Decreto da
Presidência da República e atualmente consistem em:
Em estudo: Realização dos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e
ambientais, que fundamentam a identificação e a delimitação da terra indígena.
Delimitadas: Terras que tiveram os estudos aprovados pela Presidência da Funai, com a conclusão
publicada no Diário Oficial da União e do Estado, as quais se encontram na fase do contraditório
administrativo ou em análise pelo Ministério da Justiça, para decisão acerca da expedição de Portaria
Declaratória da posse tradicional indígena.
Declaradas: Terras que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória pelo Ministro da Justiça e
estão autorizadas para ser demarcadas fisicamente, com a materialização dos marcos e
georreferenciamento.
Homologadas: Terras que possuem os limites materializados e georreferenciados, cuja
demarcação administrativa foi homologada por decreto presidencial.
Regularizadas: Terras que, após o decreto de homologação, foram registradas em Cartório em
nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União.
Interditadas: Áreas Interditadas, com restrições de uso e ingresso de terceiros, para a proteção de
povos indígenas isolados.
Reservas indígenas
A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e
ocupação pelos povos indígenas, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao
usufruto e à utilização das riquezas naturais, garantindo-se as condições de reprodução física e
cultural.
Para constituição das Reservas Indígenas, adotam-se as seguintes etapas do processo de
regularização fundiária:
Encaminhadas com Reserva Indígena (RI): Áreas que se encontram em procedimento
administrativo visando a sua aquisição (compra direta, desapropriação ou doação).
Regularizadas: Áreas adquiridas que possuem registro em Cartório em nome da União e se
destinam à posse e ao usufruto exclusivos dos povos indígenas. * inclue-se neste item, a área
Dominial
A coragem e a propriedade para falar nos encontros
indígenas mesmo sem escrever ou ler discursos prontos e o
desejo de conquistar condições melhores para os parentes
também prepararam Pequena para a missão que se aproximava.
Quando o cacique dos Jenipapo-Kanindé, Adorico, faleceu,
em 1992, junto ao lamento pela perda veio a necessidade de
escolher outro indígena para assumir o cacicado da etnia. A
aldeia ainda ficou órfã durante três anos. Devido à luta já
notória e à firmeza com a qual a mulher buscava inserir os
direitos dos Jenipapo-Kanindé nas prioridades dos órgãos
responsáveis pela política indigenista, a comunidade se reuniu
junto a funcionários de entidades que atuavam na aldeia e
elegeu Pequena como a nova – e primeira liderança feminina –
dos Jenipapo Kanindé, no dia seis de março de 1995.
Em um encontro que iniciava em Minas Gerais e encerrava
em Brasília, a cacique teve de se apresentar aos parentes
indígenas. A data ela também não esquece: 12 de março de
1995, seis dias depois de assumir a liderança do povo da
Encantada. Embora tenha escapado de comentários machistas
na aldeia ao ser escolhida para liderar o próprio povo, o mesmo
77
não aconteceu nos Estados pelos quais passou na primeira
viagem para fora do Ceará. Pequena afirma que, à época, não
existia cacique mulher, assim, sendo pioneira na representação,
atraiu olhares e palavras preconceituosos, principalmente de
lideranças masculinas de outras regiões.
Em documentário produzido pelo Centro de Defesa e
Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza
(CDPDH), Pequena conta que, após ofensas que sofreu por
parte de alguns índios que estavam presentes no encontro em
Minas Gerais, por ser uma cacique mulher, a fizeram tomar um
líquido verde para que provasse o potencial para assumir uma
comunidade indígena. Ela temeu, pois não sabia o que era a tal
gororoba nem quais os efeitos que a bebida poderia causar.
Pediu forças a Deus, entornou o líquido goela abaixo de uma
vez só, permaneceu firme e ganhou a aprovação dos demais
para seguir a viagem até Brasília, onde fariam uma marcha
reivindicando medidas relacionadas ao Estatuto do Índio – até
hoje com revisão solicitada por etnias indígenas e organizações
não-governamentais paralisada na Câmara Federal.
78
Eles fizeram uma zoada, [disseram] que mulher não podia
ser cacique, mas eu disse:
– Eu não estou aqui para brincar, estou aqui para
trabalhar pelo meu povo.
Sofri [preconceito]. Sofri muito, muito, muito. De uns anos
desses para cá, foi que parou o preconceito, depois que eu
disse que era a primeira cacique mulher no Ceará e no Brasil,
porque para trás não existia [cacique] mulher.
Mesmo tendo de cuidar dos afazeres de casa, do esposo e
dos filhos – alguns ainda crianças –, Pequena não desistiu do
cacicado enquanto esteve saudável para assumi-lo. Viajou
quase o Brasil inteiro para participar de encontros e
manifestações, organizou reuniões e eventos na aldeia e
dialogou com autoridades a fim de obter conquistas para o
povo dela, até então à margem de uma sociedade indiferente.
Um dos primeiros desafios que surgiram na caminhada
como cacique foi a demarcação da Terra Indígena Lagoa da
Encantada. Pequena agarrou a missão para si e não sossegou
até oficializar a posse das terras dos Cabeludos da Encantada.
79
Procurou a Funai para que delimitassem o pedaço de chão e
reconhecessem a etnia.
E eu falei que tinha ido lá em Brasília, não para passear
nem a lazer, eu tinha ido lá a trabalho, que eu queria o povo
dele [funcionário da Funai] aqui na aldeia para fazer um
trabalho com a gente, pra reconhecer de verdade se a gente
era índio, se não era, porque estava sendo uma coisa muito
pesada para mim, eu precisava ir lá mesmo, ver a firmeza da
Funai. Aí ele disse:
– Nem hoje, nem amanhã, mas quando você menos esperar
eu chego lá.
De fato, quando foi em 1997, eles bateram aqui e fizeram
esse trabalho e disseram:
– Desde 1974, nós temos contato com uma pessoa nossa
que é do Ceará, mas trabalha em Brasília, que disse que em
Aquiraz tinha uma tribo de índios que estava muito
escondidinha.
Mas até hoje não sei quem é essa pessoa. Eu comecei a
juntar mesmo com “gosto de gás” e disse:
80
– Eu vou ver resultado daqui para frente, que vai dar, se
Deus me der força e coragem. Eu vou trabalhar por vocês.
Pequena começou a estudar aos 67 anos, na escola da própria
comunidade Foto: Arquivo Diário do Nordeste/ Helene Santos
O primeiro resultado da luta de Pequena como Cacique foi
em 1999, ainda no Governo de Fernando Henrique Cardoso. A
81
TI Lagoa da Encantada foi delimitada, abrangendo 1734
hectares e promovendo uma das maiores manifestações
culturais dos Jenipapo-Kanindé: a festa do Marco Vivo, que
aconteceu pela primeira vez naquele ano, em comemoração
pela conquista.
Já o reconhecimento foi oficializado no segundo ano de
governo Lula (2004), e a demarcação, sete anos mais tarde, no
primeiro ano de Dilma Rousseff como presidente (2011). No
momento, os Jenipapo-Kanindé aguardam a homologação da
terra.
Conforme os anos na liderança da comunidade passaram,
outras conquistas foram alcançadas por Pequena, trazendo
melhorias para o povo indígena.
Mesmo sem saber ler e escrever, a cacique sempre
reconheceu a importância da escola na formação dos índios.
Desde 1988, crianças e adolescentes da aldeia, a depender da
série, não precisam se deslocar até o Iguape para ter acesso à
educação, mas somente em 2000 a escola da aldeia passou a
contar com alguns professores indígenas. Inicialmente, a
Escola de Ensino Fundamental e Médio Jenipapo-Kanindé
82
localizava-se na estrutura onde hoje funciona o Museu
Indígena Jenipapo-Kanindé e a Pousada, mas em 2007 recebeu
uma estrutura em forma de cocar, desenhada por arquitetos da
Funai, e, atualmente, conta com quase todo o corpo docente
formado por indígenas, exceto os que ministram as aulas do
EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Aos 67 anos, Pequena passou a ser, também, uma aluna da
Escola Indígena Jenipapo-Kanindé e iniciou os estudos.
Atualmente, cursa o EJA 2 e, embora tenha ficado adoentada
durante um tempo e, por isso, se ausentado das aulas, retornou
neste ano, já apresentando resultados do aprendizado.
No Encontro Povos do Mar, realizado pelo Serviço Social
do Comércio (Sesc-CE) em agosto de 2014, encontrei Pequena.
Na ocasião, ela ia ministrar uma oficina de Lambedor de
Carrapicho e Pepaconha, à tarde, mas, pela manhã, estava
participando da programação nas tendas espalhadas. Em uma
oficina de horta suspensa, na qual aprendemos a plantar em
uma garrafa PET que poderia ficar pendurada em algum
ambiente da casa. Uma das etapas do processo era decorar a
garrafa onde a cebolinha ou o coentro – as sementes que nos
83
disponibilizaram – cresceriam. Ela pegou o pincel, molhou na
tinta verde e escreveu “Jenipapo-Kanindé” sobre o plástico,
lendo e mostrando orgulhosa aos que estavam próximo. Mais
tarde, falou-me sobre a satisfação de estar aprendendo a ler e a
escrever além do próprio nome e o desejo de ingressar na
Universidade.
Só vou deixar de estudar quando eu morrer. Já estou lendo
um pouco, já estou escrevendo um pouco. Meu sonho é
terminar o 2º grau e depois fazer uma faculdade de
Antropologia, para defender meu povo.
Ao entrar na aldeia indígena Jenipapo-Kanindé é possível
avistar, logo no início, o Centro de Referência de Assistência
Social Indígena (Cras Indígena) e o Posto de Saúde, conquistas
também obtidas por meio da luta de Pequena. Em 2001, chegou
água encanada e energia. O Galpão de Artesanato Tio Adorico
foi inaugurado em 2006, e o Museu Indígena Jenipapo-
Kanindé celebrou quatro anos de existência em setembro de
2014.
84
Retorno ao cacicado
Cacique Pequena esteve debilitada, quase sem forças para
liderar os Jenipapo-Kanindé, função que exigia muita energia
da índia, em 2010. Percebendo que a situação poderia se
agravar e a comunidade indígena correr o risco de ficar órfã
novamente, pediu que a filha mais nova, Juliana Alves,
assumisse a liderança da aldeia como cacique Irê, apoiada por
Conceição Alves, a cacique Jurema, também filha de Pequena.
Entretanto, a antiga cacique apresentou melhora na saúde com
o passar dos anos e, mesmo distante da liderança oficialmente,
participava dos encontros e rodas de conversas com os
visitantes, palestrava e ia à luta por direitos ainda não
alcançados.
Em agosto de 2014, Juliana anunciou que deixaria o
cacicado (detalhes no capítulo 2), retornando a função àquela
que, na prática, nunca abandonou o posto.
Todo mundo dizia que eu desistisse dessa luta. [Diziam]
que eu desistisse, que nada ia ser feito. “Besteira, isso não tem
85
futuro. Principalmente tu, que não tem leitura, não sabe de
nada, como é que tu vai lá fora falar com o povo?”
Eu não vou baixar a cabeça. Comecei a falar, reivindicar o
direito deles.
Se eu tivesse me acomodado? Talvez nem aqui existisse,
porque aqui estaria tomado por homens brancos. Tinham
comprado por uma migalha de nada e para onde nós teríamos
ido? Sofrendo, no meio do mundo, morando no canto de um,
no canto de outro.
(...)
Enquanto eu for viva, vou lutar por esse povo até a morte.
Só paro se eu tiver no fundo da rede, sem poder falar.
Ao entrar no Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, no dia da
comemoração do quarto aniversário da estrutura, deparei com
uma frase feita com pedaços de cipó do lado oposto ao da
porta: “Nós não somos povos emergentes. Nós somos povos
resistentes”.
Na semana seguinte, retornei à comunidade e Raquel Alves,
neta de Pequena, contou-me que a máxima era de autoria da
86
cacique. Foram os jovens da comunidade indígena que
marcaram a frase nas paredes que guardam fotos, instrumentos
e textos que revelam fragmentos da história da etnia. Nada por
acaso. Pequena é símbolo de resistência e inspiração para os
mais novos em uma aldeia vitimada em diversos aspectos em
prol de um “desenvolvimento” que, gradualmente, invade
terras tradicionalmente ocupadas por etnias indígenas.
Guardiã da memória dos Jenipapo-Kanindé, a cacique traz
consigo as vivências de Cabeludos da Encantada, as lendas
submersas na lagoa, as lutas de um povo inocente, porém,
determinado a defender o território.
Mas Pequena é presente porque o espírito de liderança é
perpétuo. Mesmo quando esteve afastada do cacicado e
nomeado Juliana e Conceição, não se distanciou da batalha por
condições melhores para os Jenipapo-Kanindé, recebe os
visitantes – que quase sempre chegam a fim de conhecer a
primeira cacique mulher no Brasil –, apresenta a si mesma
quando fala da aldeia e pode observar de forma atenta e
vigilante tudo que acontece na comunidade, mesmo sem tantas
condições físicas para subir o Morro do Urubu, de onde é
87
possível avistar quase todo o território.
Pequena também é futuro, pois o discurso bem sustentado,
as músicas compostas e cantadas por ela, as tradições
absorvidas e repassadas e as conquistas para a comunidade são
legados aos índios Jenipapo-Kanindé, especialmente às
lideranças jovens, que cresceram, literalmente, com a sabedoria
dessa mulher da Encantada.
88
Capítulo 2]
As mulheres em Irê
Foto: Gleydson Moreira
Das três mulheres da Encantada retratadas neste livro-
reportagem, Juliana Alves, a Irê, é quem acompanhei mais de
perto. Além de nossas conversas em dias de apuração
específicos, estive hospedada na casa dela durante quatro dias
no início do mês de maio de 2014, observando mãe, cacique,
89
diretora da escola, estudante e esposa reunidas em uma só.
Como uma mulher multifacetada, possivelmente algumas
das funções e dos estados de personalidade de Irê escaparam.
Penso isso porque o que mais me desperta curiosidade na
caçula de Pequena é o olhar cor de mel dotado de mistério.
Dificilmente arregalam, tampouco são baixos. Poderia
compará-los aos de um felino: observadores, sérios e
enigmáticos. No entanto, é possível perceber que não resistem
e inevitavelmente apertam quando ela abre sorrisos, mas de
formas diferentes. São carinhosos quando brinca com o
pequeno Levy; brincalhões quando conversa com Grazi;
apaixonados ao fixar os de Cleilton; e contemplativos ao ouvir
atentamente os discursos de Pequena.
A caçula é a primeira mulher da Encantada que conheci
pessoalmente. Heraldo nos apresentou em minha primeira
visita à aldeia. Ela estava à beira do fogão, vestida à vontade,
preparando o almoço, de olho em Levy, o filho mais novo, na
época, com apenas quatro meses.
Juliana demonstrou ter ficado contente com meu projeto.
Naquele dezembro, eu ainda não tinha decidido qual seria a
90
abordagem que seguiria para escrever a trajetória dos Jenipapo-
Kanindé, mas acredito que a Cacique Irê foi uma das maiores
inspirações para que optasse por versar sobre a etnia a partir do
universo feminino ali contido.
Entre a data do nascimento dela e a do meu, correm sete
anos e “uns quebrados”. Talvez pela pouca diferença de idade,
em alguns momentos nos permitíamos compartilhar assuntos
da vida pessoal, como relacionamentos, faculdade e futuro
profissional.
Por outro lado, acredito que o fato de ela ser pouco mais
velha que eu, mãe de uma adolescente e de um bebê, e ter
aberto as portas de casa para que eu pudesse me hospedar lhe
conferiu um sentimento de responsabilidade sobre mim. Vez
por outra ela perguntava se eu estava com fome ou se eu já
tinha ligado para minha mãe.
Assim reconheci que, embora inúmeras particularidades
nos distanciem culturalmente, guardamos mais semelhanças do
que temos em mente. Ela, da Encantada; eu, da região
metropolitana paulista: somos mulheres.
Nascida em 1985, poucos anos após a chegada dos
91
primeiros pesquisadores à aldeia Jenipapo-Kanindé, Juliana foi
escolhida para personificar aspectos da comunidade neste
projeto não somente por ter assumido o cacicado do povo dela
durante um período, mas, principalmente, por representar
muitas transformações pelas quais a etnia passou ao longo
desses quase 30 anos – de uma vida isolada à batalha por
desintrusão –, refletindo grandes processos de mudanças já
incrustadas nos índios mais jovens, mas sem perder o desejo e
a coragem movidos por ideais de alcançar a atenção do poder
público e, consequentemente, melhorias que os Jenipapo-
Kanindé ainda necessitam.
Segundo Juliana, o nome Irê foi escolhido por Pequena; é
“luz dos encantados”. Até o processo de editoração, não
consegui confirmar qual a origem e o significado da palavra
com exatidão. Mas, se a principal proposta deste trabalho é dar
voz às mulheres da Encantada para que elas mesmas falem de
si, optei por adotar o que representa à mãe e à filha. Meus
escritos compõem apenas o canal.
Com vocês, Juliana Alves, a Irê.
92
Uma cacique em formação
Irê em roda de toré durante o Marco Vivo de 2014, fumando o cachimbo
de ervas que integra o ritual da etnia Foto: Melquíades Junior
O povo Jenipapo-Kanindé se reúne para o ritual de
passagem. Juliana está parcialmente trajada com vestes
indígenas, com cocar de penas pretas e brancas e colares feitos
com sementes, mas com camiseta e calça, à direita. Conceição
está com vestes de palha, também de cocar e colares artesanais,
à esquerda. Entre as duas, Pequena chama a atenção dos
93
presentes para o momento que será introduzido. A cacique usa
vestimenta e adereços muito semelhantes aos de Conceição.
As três se abraçam enquanto Pequena segura em um dos
braços os cocares das filhas, invocando os encantados a
estarem presentes na cerimônia e fortalecerem Juliana e
Conceição na missão que lhes está reservada. Agora são Irê e
Jurema, respectivamente. Como Pequena afirma, a partir dali
“vão viver juntas, unidas como duas almas em um só corpo”.
O ritual, realizado em 2011, pode ser revisitado por meio
do documentário “Os Cabeludos da Encantada”, produzido
pelo Banco do Nordeste (BNB) em parceria com o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e
o governo federal.
Para realizar a passagem do cacicado, foi aguardado o Dia
do Marco Vivo. Entretanto, o convite para Juliana e Conceição
assumirem a liderança da etnia chegou meses antes.
Em uma aldeia indígena, não é tão comum a mudança de
cacicado não sucedida pela morte do líder anterior. No caso dos
Jenipapo-Kanindé, a substituição proposta por Pequena
aconteceu devido ao adoecimento da líder, que achava que não
94
tinha condições de seguir à frente da etnia oficialmente.
Querendo manter a tradição do cacicado feminino iniciado por
ela, convocou Juliana e Conceição, também conhecida como
Bida (ou Bidinha), para anunciar o desejo às filhas.
Ela estava debilitada, adquiriu hipertensão, teve uma crise
muito grande e achava que não ia sobreviver, então me
chamou e perguntou se eu queria. Ela disse que não queria
que essa tradição morresse:
– Eu queria dar continuidade com vocês, mulheres.
– Pois pronto! Sozinha, eu não tenho coragem de enfrentar,
mas se tiver uma outra pessoa eu enfrento.
Foram as duas que sempre se destacaram no movimento
local e estadual, eu e a Bidinha, a cacique Jurema, e aí a
Bidinha disse que aceitava, que para ela não tinha problema.
[Eu disse:]
– Embora a senhora nunca deixe de ser cacique, a gente
vai ser cacique. Mas a gente só vai atuar como cacique mesmo
no dia que a senhora for chamada para a voz.
95
À época, Juliana tinha 25 anos e temia arriscar a imagem de
líder caso falhasse como humana. No entanto, a intuição de
Pequena ao optar pela filha mulher mais nova para sucedê-la
foi, provavelmente, influenciada pelo histórico de força e
responsabilidade que Juliana carrega desde criança.
Ela não recorda por motivos óbvios, mas a mãe teve o
papel de contar que, com apenas oito meses de vida, Juliana
teve de lutar para sobreviver. Um agravamento em uma crise
de asma a levou ao hospital – naquele período, mais acessível
aos indígenas em relação à infância de sua mãe, mas bem
menos do que hoje –, onde ficou internada durante alguns dias.
Ela [Pequena] disse que eu ficava muito nos aparelhos de
oxigênio. Ela disse que olhava para mim e dizia: “Meu Deus,
eu entrego a minha filha nas tuas mãos. Se não for para ela
viver, pois então que Tu tire ela dessa situação”.
Aí ela disse que, depois, eu reagi bem.
O relato acontece em um quintal situado aos fundos da casa
de Juliana. Após sair de uma piscina de plástico, onde brincava
96
com o filho Levy, ela seca-se rapidamente, entrega o menino à
filha Grazi para sentar-se comigo e compartilhar um tanto da
própria trajetória. A casa está movimentada e vez por outra
alguém chega para cumprimentá-la ou entregar à então cacique
o caçula para que ela possa amamentá-lo.
Mesmo sendo interrompida, Juliana demonstra não ter
facilidade em perder o raciocínio. Retorna para o mesmo ponto
resgatando o passado a uma curiosa aprendiz de jornalista.
Assim, expõe um resumo da infância traçada sobre caminhos
ora leves e divertidos, ora árduos e desafiadores.
As brincadeiras entre as crianças ao ar livre na aldeia
estavam entre os passatempos preferidos de Juliana, no entanto,
os pequenos também tinham o compromisso de ajudar os mais
velhos a garantir o sustento da família.
Durante a safra do caju, do qual a castanha é fonte de renda
de muitos cearenses até hoje, era comum a família Jenipapo-
Kanindé se reunir para trabalhar na produção, embora a casa de
farinha só tenha sido instalada em 1999, quando Juliana já
tinha 14 anos.
Com propriedades nutricionais aproveitadas em diversos
97
alimentos e o potencial medicinal para curar inflamações, o
murici – que significa “árvore pequena” em tupi – também
convocava o povo da Encantada a trabalhar, o atraindo para
dentro da mata na época da safra.
Quando criança, com uns seis anos, oito anos, a gente já
tinha aquela responsabilidade de ajudar a mãe e o pai dentro
de casa. As mulheres, principalmente, nas atividades dentro de
casa e, na comunidade, a gente tem um lado – antigamente era
mais forte, hoje não – da produção de castanha de caju. Na
época do caju, na safra do murici, eu já ganhava as matas
mais as meninas atrás de castanha, atrás de murici, aí a gente
vendia. A gente vendia o quilo de castanha por cinquenta
centavos, que era um dinheirão grande. A terça [parte] do
murici, a gente vendia por um real.
A instalação da primeira instituição de ensino na aldeia
Jenipapo-Kanindé aconteceu em 1988, após solicitação de
Pequena, que recebeu a proposta de escolher entre uma igreja e
uma escola e optou pela segunda por ter o grande desejo de que
98
os curumins fossem educados na própria aldeia.
Aos quatro anos, Juliana passou a frequentar a Escola
Beneficente dos Moradores da Lagoa Encantada e Tapuio
Elcira Gurgel, que, na época, só contava com professores não-
indígenas. Assim, as danças de toré e as aulas com formações
sobre a cultura indígena, hoje semanais na Escola Indígena
Jenipapo-Kanindé, não faziam parte da rotina dos alunos.
Entretanto, os professores brancos já alertavam aos pequenos
índios sobre o reconhecimento e a valorização da etnia a qual
pertenciam. Juliana recorda muito bem as vezes em que tia
Regina prenunciava que, um dia, ela e seus colegas estariam à
frente da educação indígena na aldeia Jenipapo-Kanindé.
Até os meus dez anos, eu ainda não tinha conhecimento
sobre a questão cultural, mas na escola mesmo, as
professoras, embora não fossem indígenas, falavam. A diretora
da nossa escola dizia muito isso, a tia Regina:
– Vocês têm de aprender, vocês têm de ter essa
responsabilidade, porque aqui quem vai tomar de conta mais
na frente vão ser vocês. A gente tá aqui só para ajudar, mas
99
vocês são os nativos, vocês têm uma cultura diferente.
Embora elas não trabalhassem [a cultura indígena] –
porque como é que elas iam trabalhar o toré, se elas não eram
descendentes, não tinham nada a ver com a comunidade? –,
elas sempre alertaram que nós seríamos os novos professores
daqui, que a gente se dedicasse para a gente não desistir na
caminhada, o que a gente tivesse de enfrentar, enfrentasse,
porque, assim, seríamos nós os futuros professores.
Para estudar, os primeiros desafios a serem enfrentados fora
dos limites da aldeia surgiram quando Juliana ingressava na
oitava série. À época, a turma para esse estágio não foi
formada na escola da comunidade, pois o número de alunos era
muito pequeno. Assim, os estudantes tinham de se deslocar até
o Iguape para participar das aulas, percorrendo um longo
caminho durante aproximadamente duas horas, sob o
escaldante sol, e, ao chegar, enfrentando o pungente
preconceito que atacava os índios da Encantada
impiedosamente.
100
Quando minha mãe me matriculou no Iguape, não tinha
transporte escolar, a gente tinha de andar oito quilômetros a
pé, subindo morro, descendo morro e, mesmo assim, a gente
ia. A gente saía daqui por volta de dez horas, 10h30min da
manhã, porque eu estudava à tarde, e a gente chegava no
Iguape por volta de 12 horas.
Quando eu cheguei na escola, alguns ainda tinham
preconceito [e diziam]: “Ah, chegaram as índias, as índias
fedorentas, não sei o quê”.
Então ficavam falando, sabe? Discriminando mesmo. A
gente só baixava nossa cabeça. Como tudo aquilo era um
mundo novo, a gente nunca tinha saído daqui e, quando saía,
era para alguma atividade relacionada à questão cultural e
acompanhada de uma liderança, de repente, a gente se sentiu
acuada.
Juliana nasceu na metade da década de 1980, portanto, era
muito pequena quando a comunidade foi “descoberta” pelos
pesquisadores, Aos dez anos, viu a mãe se tornar cacique dos
Jenipapo-Kanindé e passou a acompanhá-la nos encontros
101
indígenas não somente por ser uma das filhas mais novas, mas,
especialmente, por dominar leitura e escrita.
Eu tinha uns 11 para 12 anos quando começaram as
primeiras visitas dos outros povos, as outras lideranças, como
Cacique João Venâncio, Cacique Daniel, Dourado Tapeba. A
primeira comunidade que se levantou, tendo a identificação
garantida pela Funai, foi Tapeba, depois Tremembé, Pitaguary
e Jenipapo-Kanindé, e aí começaram as articulações, um povo
ia ajudando outro. Aqui, como a gente começou a se
reconhecer na década de 1980, de 80 para os anos 1990 foi
quando começou a articulação dos outros povos. É como se
fosse assim: para tu te erguer em alguma coisa, alguém teria
de te ajudar, para promover. Do mesmo jeito, uma etnia ia
fazendo com a outra e aí vinham os momentos de reunião. E eu
lembro que eu criança, adolescente, engajada e letrada, ficava
escrevendo as coisas que o pessoal falava para a mãe. Ela
sempre pedia: “Minha filha, escreva para mim”.
Jovem, responsável, focada nos estudos, braço direito da
102
mãe na gestão da aldeia Jenipapo-Kanindé. Dificilmente,
alguém poderia pensar que uma gravidez inesperada pausaria o
caminho que Juliana seguia disciplinadamente.
Com medo da decepção que poderia causar, escondeu a
gestação enquanto foi possível, mas aos quatro meses a barriga
saliente revelou que ali se formava a primeira filha de Juliana,
Grazi. Para o povo da etnia, a notícia foi um baque. Durante a
gravidez, a caçula de Pequena teve de interromper a oitava
série, se afastar dos movimentos indígenas, morar com Paulo, o
pai da criança – dez anos mais velho –, e procurar um emprego
para auxiliar no sustento da nova família.
O primeiro emprego de Juliana com carteira assinada foi
como auxiliar de serviços gerais em uma casa de apoio em
Fortaleza voltada para o acolhimento de indígenas que
precisavam de consultas e tratamentos médicos na capital, fruto
de parceria entre a Copice (Coordenação e Organização dos
Povos Indígenas do Ceará) e a Funasa (Fundação Nacional de
Saúde).
Eu saía da aldeia por volta de quatro e meia da manhã e
103
tinha de chegar em Fortaleza antes das sete horas, porque era
eu quem preparava o café, era eu quem botava o lanche dos
pacientes, e tinha de retornar para a aldeia por volta de seis
horas, então não dava tempo de estudar nem lá nem aqui.
Na adolescência, a índia ocupara um cargo no Conselho de
Saúde da aldeia, portanto já tinha familiaridade com o novo
emprego. No entanto, o trabalho exigia dedicação em tempo
integral, impedindo Juliana de realizar o desejo que ansiava há
tempos: o retorno aos estudos. O gosto pelo conhecimento
pesou mais no momento da decisão. Mesmo com a filha
pequena para cuidar, terminou o Ensino Médio aos 22 anos,
provando à mãe que a menina que a orgulhava não havia
escapado.
Como desde pequena eu me destacava, minha mãe
começou a ver que, embora tivesse construído uma família,
embora já tivesse filho, ela disse que isso não impedia de eu
seguir o que eu queria ser.
104
Aos poucos, Juliana foi enfrentando o que a intimidava, se
revelando uma mulher firme nas escolhas. Além de voltar a
estudar e planejar especializações para auxiliar na garantia de
direitos aos indígenas, após oito anos de união desgastada com
Paulo, segundo ela, devido ao desrespeito que sofria e a
algumas irresponsabilidades do então companheiro em casa,
decidiu se separar.
O casal já passara por idas e vindas em momentos
anteriores e, segundo ela, Paulo contava com uma
reconciliação depois do anúncio de Juliana. A índia, que havia
retornado às ações dos movimentos indígenas, viajou para
Recife para participar de um encontro promovido pela Funai
sobre políticas de territórios, deixando Grazi sob os cuidados
de Pequena. Em agosto de 2009, retornou da viagem direto
para a casa da mãe, rompendo o relacionamento com o ex-
companheiro.
Apesar do parentesco, Juliana e Cleilton, neto do finado
cacique Adorico, só começaram a se aproximar um ano depois
da separação dela. Inicialmente, o ex-marido não queria aceitar
o namoro, ainda investindo em tentativas de ter Juliana de
105
volta. Mas ela já não era mais a mesma. Como costuma dizer
ao relatar algumas situações em que teve de se impor para não
perder a própria paz, “não abaixou a cabeça”. E seguiu.
Passaram alguns meses, eu comecei a me aproximar do
Cleilton, uma pessoa muito distante de mim, não tínhamos
contato. Quando assumimos o namoro, depois de um ano
separada do pai da Grazi, ele [Paulo] não aceitava. Mas
mesmo assim a gente não abaixou a cabeça. Quando foi em 17
de julho de 2011, a gente noivou. Quando foi no dia 02 de
março de 2012, a gente casou no civil, e, no dia 5 de maio de
2012, a gente casou no religioso. Depois do noivado foi
quando Paulo se conformou, viu que eu não ia voltar para ele.
A separação de Juliana e, consequentemente, o retorno à
casa da mãe aconteceram na mesma época em que a caçula foi
convocada a assumir o cacicado dos Jenipapo-Kanindé. O
período representou uma reviravolta na vida da índia, que, logo
depois, se casou com Cleilton.
O intervalo de quatro anos parece ter sido suficiente para
106
que Juliana mostrasse a determinação naturalmente dela, a qual
havia sido reprimida sem lhe dar chances de persistir em seus
objetivos. Ao tomar a frente da aldeia Jenipapo-Kanindé como
cacique Irê, batalhou não somente pelo povo dela, mas também
pela própria autonomia. Talvez esse momento marque, de fato,
a transição de menina à mulher.
De mulher para mulher
Foto: Melquíades Junior
Juliana é vaidosa com a aparência. Seja no cotidiano ou
quando se caracteriza com pinturas e adereços indígenas,
107
mostra que há uma preocupação com o exterior. Gosta de salto,
vestido, maquiagem, unhas e cabelos bem cuidados. Não
dispensa o belo cocar de penas de arara, o urucum na região
dos olhos, o brinco de filtro dos sonhos e os colares de
sementes em dias de celebrações.
Quando Juliana chega, exala beleza e seriedade. Ela sabe se
impor, atrai olhares com a presença que tem não somente pelo
visual, mas, especialmente, pelo ar político com o qual conduz
o povo Jenipapo-Kanindé.
No Dia do Marco Vivo, a então cacique chega
cumprimentando todos que já estão reunidos no alpendre do
Museu e Pousada Jenipapo-Kanindé. Pinta algumas crianças
com a tinta vermelha do urucum e, junto a Pequena e Raquel,
adorna o tronco de Yburana que carregaria mais tarde para
plantá-lo nos confins da TI Lagoa da Encantada.
Ao iniciar a festa, Juliana chama a atenção do povo para
que todos se reúnam e escutem o discurso de abertura.
– The Amb Koema! (Bom dia em tupi, segundo Juliana, que
também me mostra como escreve)
Como nem todos respondem à saudação, ela repete:
108
– The Amb Koema!
– The Amb Koema Abé! (A resposta, também ensinada a
mim por Juliana)
Em voz alta, anuncia a programação do Marco Vivo, que,
por ter começado com atraso, vai durar até o final da tarde.
Passa a palavra à Pequena e, posteriormente, convida o povo a
entrar na primeira roda de toré da manhã.
Com maraca em mãos e muita energia, cacique Irê canta
com força a luta e a tradição do povo indígena cearense. Vez
por outra, fumega o cachimbo com ervas e dá goles no
mocororó compartilhado na cuia. Ela está na roda de dentro, ao
lado dos parentes, os quais tocam instrumentos de percussão e
puxam a música seguinte.
Na Tapera, na Tapera
Onde eu fui governador
Na Tapera, na Tapera
Onde eu fui governador
Aiá eu lá, na Tapera
Aiá eu lá, na Tapera
109
Aiá eu lá, na Tapera
Aiá eu lá, na Tapera
Ao finalizar a primeira rodada de toré, Juliana intima
representantes de etnias (Anacé, Pitaguary, Tapeba, Kanindé de
Aratuba) e de entidades voltadas para a política indigenista
(Funai, Copice, CDPDH) que estão presentes no evento a se
apresentarem.
O primeiro a falar é o representante da Funai, da comissão
do Serviço Gestão Ambiental Territorial da Funai (Segat),
apontado por Juliana: “É tu, vem para cá!” Na ocasião, o
funcionário havia aparecido na aldeia por acaso a fim de
realizar um trabalho a mando do Ministério Público Federal e
deparou com a celebração do Marco Vivo.
Não se pode ter certeza se a falta de atenção da Funai com
dia tão importante para os Jenipapo-Kanindé “cutucou”
Juliana, mas ao cessar as falas dos representantes, ela desentala
injustiças engasgadas há tempos. Críticas são destinadas ao
órgão responsável pela saúde indígena e aos parentes que
esquecem o próprio povo ao assumir cargos na entidade, à
110
política de educação das etnias cearenses imposta pelo Estado,
à lentidão no processo administrativo da TI Lagoa da
Encantada e à timidez com a qual o povo Jenipapo-Kanindé se
apresenta. Porém, elogia a representatividade das jovens
lideranças da aldeia nos encontros promovidos em todo o
Ceará.
Estão lá, de paletó, engravatados, dentro do escritório da
Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), dizendo que
estão lutando pela saúde da gente, sendo que nem conhecer a
realidade do próprio povo não conhece. Essa é a grande
verdade.
A nossa questão territorial está uma ‘desgraceira’. Até
onde eu sei, o nosso processo foi embargado, nem a Funai
sabe – pergunte a nosso coordenador, que ele não sabe o que é
que está acontecendo com relação à questão territorial do
povo Jenipapo-Kanindé.
Com relação à questão da educação, até que está indo,
mas estamos deixando a Secretaria de Educação entrar de
goela abaixo, porque acabou de acontecer uma eleição para
111
gestores de escolas indígenas completamente convencional, e
isso prejudicou algumas escolas. O Estado disse: “Vamos
colocar desse jeito para ver se esses índios são organizados
como eles dizem”. Porém eles quebraram a cara, porque tem
comunidade que realmente está organizada e mostrou para
eles que a gente sabe fazer o processo.
A educação é um dos patamares que tem de ter mais
insistência, porque nós estamos lidando com futuros políticos,
futuros médicos. Claro que não tem de ser de qualquer jeito,
mas também não podemos deixar o Estado só ditar as regras e
a gente receber calado.
(...)
É pedir força ao pai Tupã, porque se desistir é pior.
É ao Pai Tupã e à Mãe Terra que os Jenipapo-Kanindé
agradecem ao final da festa do Marco Vivo, durante a plantação
da Yburana. No dia 9 de abril dos últimos quatro anos, Juliana
carrega sobre o ombro, com a ajuda de outros índios, o galho
tão simbólico para a etnia até um dos limites do território.
Após a caminhada que, em 2014, seguiu até as matas da
112
região do Tapuio, uma oração é feita aos encantados pedindo
proteção à terra. A Yburana é colhida no dia anterior para a
festa mais importante dos Jenipapo-Kanindé. É a planta
escolhida para marcar os limites da TI Lagoa da Encantada por
possuir a capacidade de florescer novamente depois do
replantio.
Infelizmente, alguns contratempos me impediram de
participar desse momento da celebração. Ao chegar, após uma
caminhada extenuante pelas entranhas da aldeia indígena
Jenipapo-Kanindé – admirei ainda mais a força de Juliana ao
saber que ela fez o percurso com o tronco sobre os ombros de
forma tão rápida –, a Yburana já havia sido plantada.
113
Em 2011, Juliana leva, sobre o ombro, o tronco de Yburana na festa do
Marco Vivo
Foto: Melquíades Junior
No extremo onde o galho estava fincado, a cacique Irê,
reunida com o pai, Seu Chiquinho, a irmã, cacique Jurema, o
irmão, Heraldo, o sobrinho, Daniel, alguns parentes de outras
etnias e pesquisadores, explica, gentilmente, o sentido do ritual.
Esse galho vai nascer, florescer, isto é, se não vier
ninguém, se não raspar, porque, se raspar, ele morre. Por isso
114
escolhemos a Yburana para ser o marco, porque nasce,
demarcando a nossa área. Como renasce, a gente não
desrespeita a natureza. Neste ano, a gente escolheu a parte do
Tapuio, que é a parte mais preservada. A gente fica muito
concentrado só na comunidade e acaba esquecendo dos lados
das matas, então vem gente de fora para desmatar, porque
como não tem nenhuma marcação da Funai, quem faz essa
marcação somos nós, com essa planta, as pessoas não sabem,
invadem território indígena sem até mesmo ter conhecimento,
desmata, retira a madeira para vender.
A Yburana é plantada em uma das extremidades da aldeia anualmente,para celebrar a delimitação da Terra Indígena Lagoa da Encantada Foto:
Melquíades Junior
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Se a Yburana sofrer degradação, os índios Jenipapo-
Kanindé retornam ao local e plantam outro tronco, reafirmando
que o território lhes pertence e mostrando que a luta não cessa
mesmo em meio à repulsa dos que não aceitam que os índios
vivam no pedaço de chão que lhes é de direito.
Em 2013, o Marco Vivo foi concluído no começo da aldeia,
próximo à ponte que sinaliza a divisão entre a TI e a
comunidade de Trairussu. Dias depois, os índios notaram que a
Yburana havia sido arrancada. Não tardaram em plantar outro
tronco para ser avistado pelos que entram na aldeia.
Se a gente vier para o lado da mata e vir que tiraram, que
rasparam, a gente planta de novo. É uma forma de insistir que
eles respeitem. A gente não está invadindo canto de ninguém, a
gente quer apenas demarcar a nossa área da nossa forma. É
uma forma de se reafirmar como Jenipapo-Kanindé.
O retorno do Marco Vivo foi mais rápido, embora o trajeto
seguido tenha sido o mesmo. Não somente pelo clima ameno,
116
mais favorável à caminhada, mas também por notar a alegria
externada entre goles de uma forte ‘pinduca’, risadas surgidas a
partir de uma brincadeira dos índios, mordidas em guajiru
colhido direto da árvore, e relatos de Juliana sobre as
impressões dela e as simbologias que eu havia conhecido
naquele dia, como a importância do mocororó em uma roda de
toré.
Cansa, viu? Não sei se vocês perceberam, mas a gente
passa o dia todo dançando, cantando.
Mocororó é uma bebida que nós temos de tomar até mesmo
para a gente se fortalecer, porque não contém álcool, embora
embriague tomando muito. Mas naquele momento ali, é uma
forma de a gente fazer oferenda aos encantados, uma bebida
que não contém álcool, que é sagrada. É feita só do caju
azedo, “apurado” no sol, não contém álcool, é apenas
fermentado. Os Jenipapo-Kanindé são os anfitriões do
mocororó. Tem comunidade que encomenda, que liga,
perguntando se tem para vender. A gente toma mais nas
celebrações. É difícil a gente sentar na roda para tomar o
mocororó
117
Quando percebi, já estávamos à beira da Lagoa da
Encantada, onde boa parte do grupo ficou para recarregar as
energias nas águas frescas e simbólicas.
No dia seguinte, Juliana teria de arranjar um jeito para
cumprir os compromissos de cacique, estudante e diretora da
Escola Indígena Jenipapo-Kanindé, da qual tinha assumido a
gestão há poucos dias. Minha próxima visita à aldeia seria
justamente para observá-la transitando em algumas dessas
ocupações, do despertar ao repouso, durante quatro dias.
Juliana despe-se do cocar ao final do Marco Vivo Foto: Melquíades Junior
118
Cotidiano compartilhado
O dia está sereno, diferente do movimento habitual até
então conhecido. A tranquilidade é deliciosa, mal chego e a
vontade de passar dias em retiro ali mesmo já surge.
Clima bom de final de tarde, silêncio de feriado no meio da
semana, vento e liberdade batendo no rosto das crianças
brincando fora de casa, sofá e novela da tarde.
No feriado do Dia do Trabalhador, 1º de maio, esse é o
cenário que a aldeia Jenipapo-Kanindé me revela. Juliana abre
a porta com os cabelos recém-lavados e uma escova em mãos,
que ela passa sobre os fios vez por outra, embora já os tivesse
desembaraçado. Estava assistindo ao “Vale a pena ver de
novo”, descansando em uma pausa na rotina agitada que
conduz diariamente.
Contudo, o transcorrer das horas traz movimento à casa.
Levy quer leite para saciar a fome, convida com sorriso
tentador alguém para brincar e ensaia os primeiros movimentos
sozinho engatinhando. Pequena entra apressadamente para
falar com Juliana, mas sai logo, pois deixou um chá de boldo
119
no fogo para João Batista. A tímida Grazi auxilia a mãe em
alguns afazeres antes de se arrumar para a festa de aniversário
que ocorrerá mais tarde. Carline, que tem quase a mesma idade
da tia, Juliana, dá apoio no cuidado do caçula enquanto ela se
produz.
Com sombra azul nas pálpebras, blush e batom, cabelos
soltos e um vestido azul justo, de uma alça só, Juliana se
aproxima do Siena, que na traseira carrega dois adesivos com
os nomes dos filhos, Levy e Grazielle (a Grazi) e outros dois
que estampam o veículo com escudos do Corinthians.
O destino é a casa de Marília, afilhada de Juliana que está
aniversariando naquela quinta-feira. Como o local é distante
para ir a pé à noite, vamos de carro com Juliana controlando o
volante, embora ela diga que não gosta muito de dirigir.
Cleilton recebe um beijo da esposa, entramos no veículo e
poucos minutos depois chegamos à comemoração.
Juliana é bastante querida pela família da afilhada. Marília
estava esperando somente a madrinha para cantar os parabéns.
O alpendre da residência está decorado com elementos das
fashion dolls Monster High. Entre os adultos, o assunto gira em
120
torno dos ornamentos, pois Juliana já se planeja para fazer a
primeira festa de aniversário de Levy, em agosto. Ela deseja
que a comemoração tenha como tema “floresta” e seja
realizada nas mangueiras do tio Adorico.
Após comes, bebes, conversas e fotos, é necessário ir
embora. A sexta-feira pós-feriado não é ponto facultativo e
exige que Juliana acorde cedo para a labuta. Chegamos em
casa, as luzes são apagadas, um “boa noite” ecoa e todos
vamos dormir. Ela, no quarto que divide com Cleilton e o
pequeno Levy. Eu, no quarto de paredes cor-de-rosa
compartilhado com Grazi e a prima Janaína.
---
Conforme havíamos combinado no dia anterior, por volta
das sete horas nos encontramos na cozinha, onde a mesa está
posta com café, leite, pão, tapiocas e bem-casados das
lembrancinhas da festa de aniversário de Marília. Somente eu e
Juliana compartilhamos os primeiros momentos da manhã na
casa dela, pois as meninas e Levy estão dormindo e Cleilton
saíra três da manhã para fazer compras nas Centrais de
Abastecimento do Ceará (Ceasa-CE), a fim de repor os
121
produtos vendidos no mercadinho que administra com o irmão.
Se Juliana não dispensa maquiagem, acessórios e roupas
escolhidas a dedo quando se apresenta em uma comemoração,
o cuidado com a aparência também não é deixado de lado
quando vai trabalhar. De maneira mais formal, veste jeans,
blusa social, brincos de bolinha dourados e uma sapatilha
florida. No rosto, a maquiagem de cores mais leves marca boca
e olhos da índia. Com a bolsa e o cocar em mãos, ela sai em
direção à escola, a poucos metros de casa. Antes mesmo de
ultrapassar o portão, uma pessoa já a cumprimenta. O episódio
se repete algumas vezes no pequeno caminho.
122
Com cocar em mãos, Juliana sai de casa cedo em direção ao trabalho, a
poucos metros de sua casa
Foto: Bárbara Rocha
O formato meia-lua estampado por índios, animais e
pinturas étnicas logo chama a atenção de quem entra pela
primeira vez na Escola Indígena Jenipapo-Kanindé, como é o
meu caso naquela manhã. Comento com Juliana sobre a beleza
do espaço e logo descubro porque a estrutura ostenta muito
bem a identidade cultural da aldeia.
123
A arquitetura da escola foi pensada com a comunidade. Os
alunos desenharam como queriam e o arquiteto Renato
Ambrósio, da Funai, projetou em formato de cocar.
Ao chegar à escola, Juliana passa de sala em sala para falar
com professores e alunos e apresentar a intrometida que a
seguia:
Pessoal, esta é a Bárbara, da UFC. Ela está fazendo um
trabalho sobre a comunidade e vai acompanhar a gente aqui,
na escola, hoje.
A sala da diretoria, onde Juliana trabalha, não é grande. Em
frente à porta há um letreiro com a saudação “Sejam bem-
vindos”, acima da escrivaninha com um computador de mesa e
um notebook. Na parede, papéis pregados com algumas
informações sobre professores, disciplinas e datas importantes
do ano letivo. A janela não tem cortina, permitindo que a luz do
sol ilumine o ambiente por inteiro. Ao lado da porta, há uma
124
mesa com alguns objetos que mostram um pouco da
personalidade de quem comanda: dois quadros muito
semelhantes de uma jangada sobre o mar durante o nascer do
sol, uma Bíblia aberta, duas maracas e o cocar de penas de
arara trazido naquela manhã.
É hora de começar o trabalho. Neste dia, é necessário
discutir o planejamento das aulas e a carga horária dos
professores junto a Carline, que é professora da escola. Juliana
está bastante concentrada e eu prefiro não interrompê-la com
minhas curiosidades naquele momento. Ela me deixa à vontade
para explorar a instituição de ensino, o que faço sem pensar
duas vezes.
---
Acima da porta de cada compartimento da escola, há um
nome indígena que pode ou não revelar o que se encontra do
outro lado. Com o auxílio de Juliana, descubro o significado de
algumas palavras que, segundo ela, possuem origem tupi. Os
banheiros masculino e feminino do corredor são identificados,
respectivamente, como kunhã (mulher) e apyara (homem), já
os do pátio possuem outra denominação: kunhatai (menina) e
125
kunumi (menino).
“Morubixaba” significa “líder”, nomeando a sala da
diretoria. A cozinha, “kunhã”, se refere ao verbo “comer”. As
portas das salas de aula também estão abaixo de nomes
indígenas: yby (terra) e taba (aldeia) são alguns lembrados por
Juliana.
A sexta-feira entre o feriado e o final de semana foi um dia
propício para que muitas carteiras das salas de aula estivessem
vazias. No Infantil III, o professor Francisco de Assis resolveu
levar os três curumins que compareceram a um passeio na
Lagoa da Encantada, porém, sem banho, a fim de retornarem
antes do intervalo.
Na sala ao lado, o professor Everardo se esforça para que
os seis alunos do 4º ano presentes compreendam tradições que
perpassam a etnia durante a aula de arte e cultura indígena,
disciplina obrigatória na escola. É lá onde me instalo durante
boa parte da manhã.
O professor traça na lousa uma lenda sobre um índio que
encontra uma moça de cabelos compridos no meio da mata e
lhe concede três desejos: a demarcação da terra, o título de
126
maior guerreiro da comunidade e um animal para protegê-lo.
“Tudo isso foi realizado e o índio e a comunidade viveram
felizes para sempre”.
A partir do texto, Everardo questiona se as crianças
conhecem pessoas que caçam e, em seguida, lança uma
pergunta mais incisiva para que reflitam: “É correto pegar uma
baladeira e sair atirando nos animais?”
A turma está dispersa. Há conversas paralelas e olhares
perdidos. O professor, ainda paciente, muda o rumo da aula
para falar do Marco Vivo como uma importante manifestação
cultural do povo Jenipapo-Kanindé. Relembrando o nove de
abril junto a Everardo, os alunos destacam o toré como o
principal elemento da festa: “O toré é um ritual sagrado, que é
para a gente dançar”, diz Emile, bisneta de Pequena; “É um
ritual sagrado que nos dá força”, completa Miguel.
As respostas dos meninos são confirmadas pelo professor
que, em seguida, explica, de forma bem simples – talvez pela
pouca maturidade que as crianças têm em compreender –, a
diferença entre o toré e o torém, esse exclusivo do povo
Tremembé, com contrastes que vão desde a forma de dançar ao
127
canto que o acompanha, sendo, também, um ato político dessa
etnia.
Os alunos, novamente, desafiam a paciência do professor
com conversas paralelas à discussão sobre a identidade cultural
dos Jenipapo-Kanindé. Curiosamente, Emile é a que mais
presta atenção ao que Everardo diz. É lançada outra pergunta:
“Quem aqui se considera índio?”
Uns respondem “sim” timidamente; outros, aparentemente
orgulhosos. Mas um menino com a farda do colégio –
dispensada por muitos naquela sexta-feira – já adianta com
propriedade: “Não me considero indígena, porque eu não nasci
aqui”.
Everardo explica que, mesmo que não tenha nascido na
aldeia, mas seja filho de índio, a criança tem direito aos
benefícios indígenas estabelecidos, aproveitando o gancho para
incentivar os alunos a pesquisarem suas próprias árvores
genealógicas: “Se você não estudar a sua história, não vai
compreender o seu presente”, alerta.
Quando o professor fica livre, o chamo no cantinho da sala
para perguntar sobre o planejamento das aulas de arte e cultura
128
indígena. Everardo confessa que, às vezes, é difícil ensinar as
crianças, pois ele mesmo não foi tão bem orientado sobre
alguns aspectos dos Jenipapo-Kanindé, principalmente no que
diz respeito ao complexo processo de demarcação das terras.
Aparentemente desestimulado, acredita que as crianças não
permanecerão no território durante muito tempo: “Acho que a
tendência é os meninos não ficarem na aldeia”.
Às nove horas da manhã, as merendeiras adentram a sala
do Infantil IV, com bandejas que suportam pratos com frango,
arroz e cuscuz e copos com suco, praticamente um almoço em
horário antecipado. Minutos antes, as crianças brincavam na
sala, sob o controle da simpática professora Lidiane.
No pátio, as crianças estão espalhadas, a maioria com o
pratinho em mãos. Próximo à sala da diretoria, alguns meninos
brincam de pular corda. Outros pequenos mal alcançam o chão
com os pés, sentados no banco enquanto observam um
funcionário aparar o gramado. Embora exista um campo de
futebol, as crianças não o ocupam naquela manhã. O professor
Francisco de Assis, que já havia retornado da Lagoa da
Encantada, senta no chão ao lado de Everardo para merendar.
129
Do lado de fora da sala de Juliana, é possível observá-la e a
Carline bastante concentradas em frente ao notebook.
Como a escola indígena Jenipapo-Kanindé foi arquitetada
em formato de meia lua, seguindo os moldes do cocar, todas as
janelas são voltadas para o mesmo terreno esverdeado. O
Morro do Urubu é cenário do aprendizado das crianças
indígenas da aldeia, o qual é possível ser visto do pátio. Ao
final do intervalo, percebo certa calmaria invadindo aquele
lugar, embora as vozes das crianças ainda ecoem, talvez pelo
prazer de observar a paisagem, ouvir o canto dos pássaros e
sentir a luz do sol adentrando o espaço sem incomodar.
Alguns alunos que faltaram à aula quebram o silêncio ao
chegarem com garrafas vazias para serem preenchidas com
água no bebedouro do colégio e levadas para suas casas.
Questionados por uma professora sobre o motivo de não terem
comparecido mais cedo, um deles responde: “Ah, professora,
ontem foi feriado. Os meninos da escola do Iguape
imprensaram”.
Espiando, mais uma vez, o outro lado das portas de
madeira, encontro algumas meninas mais velhas e um menino
130
mais novo em um compartimento semelhante a uma biblioteca,
porém, muito pequeno. Elas me explicam que estão orientando
a criança em uma espécie de reforço, que faz parte do projeto
Mais Educação, programa do Ministério da Educação que
amplia a jornada escolar sob a perspectiva da Educação
Integral em escolas das redes públicas de ensino estaduais. Pela
manhã, as crianças do Ensino Fundamental I e II que estudam à
tarde vão à escola – e os que estudam pela manhã fazem o
inverso – para aulas de pintura, agroecologia, arte e cultura,
música e artesanato, mas também para esclarecerem dúvidas
em disciplinas convencionais, como português e matemática.
Antes do ponteiro marcar 11 horas, as mães começam a
chegar para buscar os filhos no colégio. Com a ida dos poucos
alunos da manhã, retorno à sala de Juliana, que permanece
bastante ocupada. Aguardo alguns telefonemas que ela tem de
fazer antes de voltarmos para casa, onde ela irá almoçar e
descansar durante alguns minutos antes de iniciar a segunda
jornada do dia.
131
132
Fotos: Bárbara Rocha
Antes de se tornar diretora, Juliana foi professora da Escola
Indígena Jenipapo-Kanindé. Quando visitei o colégio pela
primeira vez, ela assumira a nova função há pouco mais de um
mês, através da eleição para gestores de escolas públicas,
portanto, a felicidade pela conquista ainda era notória. A então
cacique estava disposta a administrar a escola, auxiliar os
professores, incentivar os alunos, receber os pais e organizar os
eventos comemorativos.
À tarde, o ambiente escolar está mais tranquilo, assim,
pergunto como está sendo a experiência como gestora, tendo
em vista a série de burocracias que ela precisou resolver pela
manhã e os outros afazeres do dia a dia, ao que ela me
responde:
Eu estou onde eu queria estar. E chegou o grande dia.
Agora, preciso dar resultado às pessoas que me confiaram.
Aos 29 anos, Juliana deseja experimentar novas vivências,
especialmente em relação a trabalho e estudo. A gravidez
133
precoce e a falta de assistência impediram que, mais cedo, a
caçula de Pequena concretizasse sonhos de menina que
permanecem lhe inquietando. Mesmo sendo mãe muito jovem,
terminou o Ensino Médio e ingressou no magistério indígena,
que, devido ao afastamento durante alguns anos, deve concluir
em julho de 2015. Paralelamente, Juliana cursa o Missi
Pitakajá, a licenciatura indígena em nível de graduação, em
parceria com a Universidade Federal do Ceará; e a Pós-
Graduação em Gestão Escolar, que também devem ser
finalizados em 2015.
Em nossa primeira conversa, Juliana revela que, desde
criança, quando acompanhava a mãe nos encontros indígenas,
deseja cursar Direito. Segundo a índia, há uma carência de
profissionais indígenas nesse segmento, o que é necessário ser
combatido, uma vez que poderiam reivindicar por seus direitos
amparados pelo conhecimento jurídico. O sonho não para por
aí. Um amigo de Juliana que estuda em Salamanca, na
Espanha, certa vez perguntou se ela não tinha interesse em
morar no exterior para aprofundar os estudos, seja na
graduação ou em um mestrado. Ela, que nunca teve vontade de
134
morar fora das imediações da Lagoa da Encantada, revelou
que, futuramente, teria coragem de ir, mas sempre pensando em
retornar com mais experiência para a atuação na comunidade.
Nos momentos livres, ela tenta navegar na internet, que
demora bastante a carregar por conta da baixa velocidade, ou
toma o livro no canto da mesa, “Morte na cama”, do professor
Amilton Cavalcante, para ler. Ela me conta que a leitura é um
dos hobbies preferidos, inclusive, antes de dormir, prefere estar
em frente a um livro a assistir aos programas televisivos.
O Cleilton até brinca: “Não sei como tu consegue: passa o
dia na escola, trabalhando, e quando chega em casa ainda
quer ler”. Ele fica na televisão, e eu, fico lendo.
Próximo ao horário do pôr do sol, resolvo sair da escola
para conferir se o Cras Indígena e o Posto de Sáude da aldeia
estão funcionando. Chegando ao local – as duas estruturas
ficam muito próximas uma da outra –, encontro as portas
cerradas. Opto por voltar para a escola, quando encontro
Carline passeando com os cachorros em direção ao campo
135
onde acontece o “racha” de cada dia, ao lado do esposo. Nos
cumprimentamos, começamos a conversar e, quando percebo,
já estávamos sentadas sobre a areia, observando o animado
jogo entre os homens, com uma belíssima vista do sol que se
punha.
Carline é professora da Escola Jenipapo-Kanindé, filha de
Osana, neta de Pequena, sobrinha de Juliana. Naturalmente,
falei do meu trabalho e ela, da sua vida na comunidade. Dentre
os assuntos que abordamos durante aproximadamente uma
hora, ela me conta sobre a realidade da educação que
vivenciou, a juventude, o casamento com um não-índio, o
preconceito sofrido ao longo dos anos e os reflexos da
sociedade branca na comunidade: “Há pessoas que sofrem
preconceito, mas não vejo muito. Quando a gente vai para a
cidade, é como se fosse um morador comum, não tem aqui
(aponta para a testa) dizendo 'indígena'. Agora, quando a gente
vai caracterizado, a tinta do jenipapo passa dias para sair,
alguns olham, ficam assustados, perguntam; outros
parabenizam nossa cultura. Em abril, veio uma turma de alunos
pequenos, da educação infantil. Eles chegaram com uma
136
peninha aqui (apontando para o meio da cabeça) pintada
(risos). Eles perguntaram onde estavam os indígenas e nós, ali,
falando com eles. Eles querem encontrar aquele indígena de
500 anos atrás, dos livros, nus, com as ocas, mas não é esse. A
gente evoluiu também. O mundo evoluiu e nós também. Nem
por isso a gente deixa de ser índio”.
O jogo é encerrado, o céu já escurece, voltamos
caminhando juntas até a casa de Carline, onde me despeço dela
e sigo por mais alguns metros até a escola. Juliana permanece
na sala, apesar de a instituição estar vazia, aguardando os
alunos do EJA. Naquela sexta-feira, diferente do que é de
costume, não há roda de toré dos alunos.
Entre a escola e a casa de Juliana, o movimento de uma
Assembleia de Deus abrigada em uma simples casa já sinaliza
o culto que haveria naquela noite. Mais tarde, a voz do pastor
no microfone chegaria aos nossos ouvidos para confirmar.
Por volta de 19h45min, Juliana chega em casa. Embora o
dia tenha sido cansativo, ela ainda tem disposição para fazer
chapinha nos cabelos, enquanto Cleilton, que já aguardava a
esposa em casa, cuida de Levy. Juliana e o marido parecem ter
137
uma boa relação. Percebo isso nas declarações contidas em
olhares e palavras trocados; nos risos à mesa no momento das
refeições; no companheirismo natural no aperreio do dia a dia.
O dia seguinte é sábado, mas nem por isso a família poderá
dormir até tarde. Juliana tem aula da pós-graduação pela manhã
e só retorna por volta das 17 horas; Cleilton precisa estar
presente no comércio que administra; Grazi, a prima Janaína e
uma amiga da família se revezam para cuidar de Levy. Com a
ausência de uns e ocupações de outros, reservo aquele dia para
observar e sentir melhor a atmosfera da aldeia e conversar com
outros Jenipapo-Kanindé.
----
Somente à noite encontro Juliana, quando conversamos
informalmente após o jantar. Na ocasião, tocamos em um
assunto ainda não abordado: religião. Recordando a igreja
protestante próxima e o fato de Pequena frequentar a Igreja
Universal do Reino de Deus, questiono como é a relação entre
as crenças cristãs e os rituais indígenas, já que ela se diz
católica. De acordo com Juliana, o catolicismo não implica
com os costumes indígenas – inclusive, o CDPDH participa de
138
celebrações da aldeia, como o Marco Vivo. Já algumas igrejas
protestantes não têm a mesma aceitação. A caçula de Pequena
me confessa que, certa vez, a mãe concedeu uma entrevista
trajada com roupas de palha, posteriormente veiculada em rede
nacional de televisão, mas o pastor da igreja que a cacique
frequentava viu e disse que ela não poderia mais participar das
celebrações do templo. Hoje, ela frequenta outra igreja.
Enquanto eu brinco com Levy, no chão da casa, e Juliana
engoma as roupas, a índia também me fala sobre as
dificuldades que passou por ter sido mãe muito jovem,
aconselhando: “O certo é estudar, trabalhar, depois casar e ter
filhos”. No entanto, ela se mostra muito feliz com o casamento
e a maternidade, assim como os filhos e Cleilton com a mãe e a
esposa que têm, respectivamente. Mais cedo, Grazi,
timidamente, havia me falado sobre a relação com Juliana:
“Tudo que acontece comigo, eu falo para ela. Ela é muito
companheira, tudo a gente conversa, tudo ela fala para mim.
Nos movimentos indígenas, eu sempre estou dentro, com ela
sempre me aconselhando, como quando ela começou, bem
nova, acompanhando a minha avó, do mesmo jeito estou indo”.
139
Levy é o caçula de Juliana, fruto da união dela com Cleilton
Foto: Gleydson Moreira
Grazielle Alves, a Grazi, em roda de toré no Marco Vivo
Foto: Melquíades Junior
140
A renúncia
Em um intervalo da oficina de Lambedor de Carrapicho e
Pepaconha, durante o Encontro Povos do Mar, vou dizer meu
'até logo' à Cacique Pequena, mas antes, ela solta a novidade:
“Tu soube que a Juliana deixou de ser cacique?” Talvez tenha
aparentado somente uma expressão de surpresa, mas havia um
certo desespero: como dar continuidade à estrutura do livro-
reportagem já definida e aos escritos já prontos? Respondi:
– Não, não sabia. E quem está agora?
– Eu voltei.
Naquele momento, o que eu já pensava (e tinha escrito) foi
reforçado imediatamente: a mulher havia saído do cacicado,
mas o cacicado sempre foi incapaz de soltá-la. Contudo, a
preocupação sobre os motivos pelos quais Juliana havia
deixado a função é mais forte. Infelizmente, aquele não é o
momento para discutir a renúncia de Irê. Minutos depois, antes
de me despedir de Preá, ele confirmou a informação. Juliana
havia anunciado a saída do cacicado dos Jenipapo-Kanindé há,
aproximadamente, duas semanas.
141
O retorno à aldeia já estava marcado. No dia 12 de
setembro de 2014, o Museu Indígena Jenipapo-Kanindé
completou quatro anos e uma comemoração reuniu, no terreno
da estrutura, índios, representantes de entidades que atuam na
causa indígena e pesquisadores.
Juliana desceu do carro, conduzido por Cleilton, de vestido,
salto, cabelo preso e bem maquiada, com Levy nos braços.
Mais tarde, acrescentou cocar, urucum, colar de sementes e saia
de palha ao visual.
Juliana anunciou renúncia ao cacicado no aniversário de quatro anos do
142
Museu Indígena Jenipapo-Kanindé Foto: Luiza Carolina Figueiredo
O início do evento foi conduzido por ela e Raquel ao
microfone, mas, antes de passar a palavra à mãe, tornou
pública a decisão:
O meu agradecimento vai a essa mulher guerreira, à
cacique Pequena. Recebi o cacicado há quatro anos, mas neste
ano abdiquei o cacicado, porque eu já tinha outras funções.
Ser cacique de uma comunidade requer muito tempo, muita
responsabilidade, como a cacique Pequena, uma mulher de
fibra, forte, resistente na luta. Eu cheguei para ela e disse:
– Minha mãe, eu não tenho como continuar com o cargo, é
seu, tome de conta como a senhora sempre tomou.
A cacique Pequena foi e sempre será a cacique do povo
Jenipapo-Kanindé. Eu continuo como Juliana, liderança da
comunidade, ajudando meu povo, porque para isso não
precisa ter título, não precisa ter cargo, basta ter força de
vontade para lutar junto ao povo. Meu muito obrigada. E
agora a gente vai para uma roda de toré!
143
Após Juliana ser aplaudida, a festa seguiu com, toré,
mocororó – o qual provei pela primeira vez naquela noite –,
peixe, mandioca e, claro, o bolo de aniversário. Marquei uma
conversa com Juliana posteriormente, para saber os detalhes da
renúncia ao cacicado ainda não revelados, o que aconteceu
cerca de quarenta dias depois.
A roda de toré conta com grande número de mulheres. Juliana sacode a
maraca e canta com força os cantos indígenas Foto: Luiza Carolina
Figueiredo
144
As mulheres que reúne em si são muitas. Nem todas são
capturadas pelos meus olhares e ouvidos e transferidas a estas
páginas. Juliana sente as delícias, os pesos e as exigências que
cada uma traz consigo: a mãe, a esposa, a diretora, a estudante
e a cacique. Responsável como só ela, seria inaceitável não
cumprir essas funções com primazia.
Mãe é para sempre: disso, ela não tem dúvidas. Ama, cuida,
conversa, aconselha, sente as dores e as alegrias de Grazi e
Levy, por prazer. A maternidade é uma vocação.
Ao lado de Cleilton, é feliz como o sorriso revela
facilmente; o escolheu para dividir a vida e, com ele, superou
traumas e ganhou bonanças de um cotidiano a dois levemente
conduzido.
Entre idas e vindas, a relação com os estudos parece estar
se consolidando, de fato, há pouco tempo. Até o final de 2015,
Juliana pretende concretizar um dos maiores sonhos: concluir o
magistério, a licenciatura e a pós-graduação. Quem sabe, em
pouco tempo, cursará Direito no Brasil ou em outro pedaço da
terra. Para os desejos dela, o mundo é pequeno.
A gestão da Escola Indígena Jenipapo-Kanindé é conquista
145
das grandes. Ao olhar para a educação dos curumins como
professora, o desejo de assumir a direção já estava bem
guardado. Com a proximidade das eleições para gestores,
lançou nome e documentos para concorrer. Noventa e seis
votos dos pais dos alunos a levaram ao cargo que tanto quis.
Já o cacicado chegou até Juliana por mérito de uma vida
toda dedicada à comunidade, porém, não de forma planejada.
Após quatro anos à frente dos Jenipapo-Kanindé, ao lado de
Bida e da própria cacique Pequena, Irê optou por deixar o
título.
Cheguei primeiro para a mãe e para a Bida e conversei
com elas, colocando toda a situação:
– Mãe, a senhora nunca deixou de ser cacique, a senhora
sempre vai estar à frente, falando em reuniões, então estou
abrindo mão para a senhora voltar.
Estar à frente da comunidade requer muito tempo e eu não
queria deixar a desejar. Talvez um dia eu retorne para o
cacicado. Vou continuar ajudando a comunidade independente
de títulos e cargos, até estaria de braços abertos para receber
146
o cacicado em outro momento, mas não agora.
A responsabilidade naquilo que exerce é característica
pertencente à personalidade de Juliana; portanto, não
desenvolver algo que toma para si da forma que mais se
aproxima à perfeição a desaponta. No momento, outras pessoas
e funções precisam do apoio, do trabalho e da atenção de
Juliana. A comunidade tem Pequena, Bida, Preá, Raquel,
Daniel, Daniela e outras lideranças adultas e jovens. Mas
Juliana, a Irê, garante que o afastamento do cacicado não
acarreta o afastamento da luta. Essa segue, firme e sempre.
147
Capítulo 3]
A menina Raquel: resistência e luta de uma
jovem índia
Foto: Gleydson Moreira
Raquel Alves é tímida no primeiro contato, mas somente
nesse momento. Depois de trocar algumas palavras, domina a
148
conversa, despejando a sabedoria herdada daquela com quem
convive desde o primeiro ano de vida.
Quando conheci a jovem que protagoniza este capítulo, ela
falava, enquanto eu só ouvia e captava. A minha atenção
destinava-se tanto ao discurso quanto à postura dela. O tio de
Raquel, Preá, foi chamá-la para que pudesse apresentar a mim
e aos dois amigos que me acompanharam em minha primeira
visita à aldeia, Camila e Leonardo, a história da etnia guardada
no Museu Indígena Jenipapo-Kanindé. Ela possui a chave e as
palavras que permitem aos turistas conhecer um pouco da
trajetória dos índios daquele lugar. Enquanto ela não chegava,
pensei que a tal Raquel era uma adulta, com a formação para
ser monitora do museu. Chega uma jovem, um pouco mais
baixa do que eu, um tanto serelepe, de shorts, camiseta e
chinelo.
A cada foto, texto e objeto que traduz as vivências dos
Jenipapo-Kanindé, Raquel mostra, em detalhes e com muita
clareza para os leigos, o significado do elemento exposto no
espaço. Ao final da explanação, nos sentamos,
despretensiosamente, no alpendre do museu e começamos a
149
conversar sobre os estudos e as participações da jovem nos
movimentos indígenas. Eu ainda estava surpresa diante do
conhecimento da menina revelado dentro do museu. Do lado de
fora, notei fragmentos da força de vontade, do engajamento, da
responsabilidade e do orgulho de reconhecer-se como índia.
Antes mesmo de pisar na Terra Indígena Lagoa da
Encantada, tinha a certeza de que Pequena e Juliana seriam
protagonistas desta grande reportagem, até mesmo pela
liderança que assumem na comunidade. No entanto, não sabia
da resistência da juventude Jenipapo-Kanindé. Descobri
através de Raquel, com poucos minutos de conversa com a
menina, à época, nos seus 15 anos de idade. Saí da aldeia com
a neta da Cacique Pequena na cabeça, que martelava com as
palavras dela e me cutucava a inseri-la neste trabalho. Conclui
que era necessário o capítulo inteiro para falar de mais uma
mulher, a que pode representar o futuro da aldeia Jenipapo-
Kanindé.
150
O despertar da própria história
Foto: Gleydson Moreira
O ano era 1999. Pequena retornava de mais uma das
viagens para representar os Jenipapo-Kanindé ao deparar com
o choro de Sebastião, um dos oito filhos homens. Raquel e
Raniele estavam nos braços do pai, somente sob a proteção
151
dele, repentinamente. As netas da cacique são também netas de
um posseiro da TI Lagoa da Encantada e, à época em que
foram deixadas com Sebastião, a mãe, que também não é índia,
foi embora da aldeia. Pequena acalentou o filho e acolheu as
netas, embora ainda estivesse cuidando dos caçulas em casa.
Raquel, então com um ano de idade, ficou na casa da avó,
enquanto Raniele, alguns meses mais nova, foi morar com a tia
Bida.
Anos depois, Sebastião casou-se novamente, mas Raquel,
embora seja apegada ao pai, optou por ficar com a avó, onde
sempre sentiu o conforto maternal que lhe faltava pela ausência
da mãe biológica, que encontra com pouca frequência. Ela é as
“mãos e os pés” de Pequena – é assim que a cacique definiu a
menina de riso fácil e olhar atento em poucas palavras, mais de
uma vez.
Na casa que abriga oito pessoas, somente duas delas são
mulheres: a matriarca e a neta. Pela casa de Pequena, muitos
netos já passaram – principalmente, após a separação dos pais
deles –, mas somente Raquel permaneceu.
A jovem acorda e auxilia a avó nos afazeres domésticos:
152
cozinha, lava a louça e limpa a casa. Quando Pequena esteve
doente, a menina acordava de madrugada para lembrá-la de
tomar o remédio e levá-lo até o quarto da avó. Antes de tomar o
transporte para ir à escola, deixa a janta do avô Chiquinho
pronta, geralmente um mingau. Se está livre – o que parece ser
difícil de acontecer –, gosta de ler romances ou livros
religiosos e assistir às novelas televisivas. À noite estuda, na
Escola Coronel Oswaldo Studart, no Iguape, mas até o 9º ano
foi aluna da Escola Indígena Jenipapo-Kanindé, de onde sente
falta até hoje.
As aulas não eram tão convencionais como onde eu estudo
agora. Existia a questão do resgate da cultura, de ensinar os
alunos a não terem vergonha de demonstrar sua cultura. Eu
me sentia muito feliz, porque ali a gente tinha o convencional,
mas também tinha as nossas disciplinas com os professores
indígenas, as Noites Culturais, quando dançávamos o toré, a
Semana Cultural, em que pessoas mais velhas que sabiam
fazer artesanato iam à escola ensinar. Aquilo tudo resgata a
nossa origem para que nunca se perca, porque nós seremos o
153
futuro, as futuras lideranças, futuros caciques, futuros pajés.
É o futuro da aldeia, uma das maiores preocupações de
Raquel, que tece boa parte do cotidiano da jovem. Aos 12 anos
de idade, a neta de Pequena foi incentivada pela avó a
participar do projeto Historiando, desenvolvido pelos
professores Alexandre Oliveira Gomes e João Paulo Vieira
Neto, que atuam em comunidades tradicionais com o objetivo
de estimular as pessoas a pesquisarem sobre a própria história,
identificando, registrando e ressignificando os elementos
culturais. A ação foi desenvolvida na aldeia em parceria com a
Rede de Turismo Comunitário (Tucum), que propõe a interação
entre pessoas que habitam comunidades costeiras e turistas,
distante das explorações econômicas, valorizando o território e
a cultura desses povos e buscando benefícios à comunidade.
À época, Raquel era muito tímida, segundo ela, do tipo que
se escondia das pessoas desconhecidas que chegavam à
comunidade. Os conhecimentos sobre a história dos Jenipapo-
Kanindé eram absorvidos na escola, durante as aulas de arte e
cultura indígena, ou nas palavras da própria avó. Pequena
154
queria participar das ações do Historiando e incentivou a neta a
acompanhá-la para que, também, pudesse ler e escrever para
ela quando fosse necessário. Através de pesquisas, conversas,
coleta de objetos e outras atividades, a menina foi descobrindo
mais sobre a própria identidade e se envolvendo, naturalmente,
com o universo ao qual sempre pertenceu, mas, aos poucos, se
dissolvia em meio à intrusão irreversível de uma nova
sociedade às matas gradativamente ceifadas, provocando
indiferença até mesmo nos filhos daquela terra. A recuperação
histórica era urgente e necessária.
Para manter a memória dos Jenipapo-Kanindé viva, os
índios pensaram em formas de guardá-la em um espaço físico,
não somente para exibi-la e torná-la conhecida aos visitantes da
aldeia, mas, principalmente, para manifestar a ressignificação
nos indígenas que haviam esquecido os relatos dos troncos
velhos, como as pessoas da comunidade chamam os
antepassados. Já despertava em Raquel o interesse de participar
do ressurgimento dessa valorização tão desejada por Pequena,
então tornou-se parceira de um dos maiores militantes da causa
indígena dos Jenipapo-Kanindé, o tio Heraldo (Preá). Inspirada
155
pela pesquisa feita por meio do Historiando, mergulhou na
proposta de construção do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé
em um espaço onde, anos antes, funcionara a Escola
Beneficente dos Moradores da Lagoa Encantada e Tapuio
Elcira Gurgel.
Sempre existiu a ideia de ter um museu, porque a nossa
história estava indo embora junto com os mais velhos. A vó
queria que fizesse uma casa de taipa e colocasse artesanato,
mas não tinha recurso. Depois surgiu a ideia de fazer uma oca
e colocar esse material, mas também não tinha recurso. Aí
juntou eu e o tio Preá e nós pensamos em reutilizar o espaço
da escola velha. O museu veio primeiro do que a pousada.
Quando existia o projeto da Rede Tucum, a gente recebia os
visitantes no Cantinho do Jenipapo, mas não tinha 'dormida'.
Quando os visitantes vinham para cá, dormiam na casa de
famílias. Depois a gente decidiu usar o espaço da escola velha
e fazer quartos.
Em uma visita ao Museu do Ceará com a turma do
156
Historiando, Raquel se encantou pelo trabalho da monitora que
conduziu o passeio, mas ainda se sentia muito envergonhada
para exercer a mesma função no Museu Indígena Jenipapo-
Kanindé, que já estava sendo construído na aldeia. No entanto,
quando a comunidade se reuniu para escolher os monitores, ela
foi apontada junto ao primo, Daniel, também uma jovem
liderança da comunidade, como uma das pessoas com potencial
para assumir as explicações sobre os elementos que estariam
expostos. Atualmente, ela é a única, dentre os primeiros alunos
do curso, que segue mostrando aos visitantes a memória dos
Jenipapo-Kanindé contida no equipamento avistado logo no
início da aldeia.
Bom dia! Meu nome é Raquel, sou uma das monitoras do
Museu Indígena Jenipapo Kanindé. Faço parte do núcleo
educativo dos jovens monitores do museu que vocês estão
visitando. Hoje, vou falar um pouco sobre a história dos índios
Jenipapo-Kanindé.
Quem assiste à apresentação da jovem no museu não
157
consegue imaginá-la se escondendo dos visitantes quatro anos
atrás. Ao contar, é partícipe da história que não vivenciou, mas
escutou, pesquisou e ressignificou. Mostra os índios guardiões
da memória em fotos, os instrumentos utilizados nas rodas de
toré, os trajes de palha, a garrafa de mocororó, os utensílios
domésticos feitos de forma artesanal, troféus conquistados nos
Jogos dos Povos Indígenas, a panela de dona Biluquinha com
mais de 200 anos. Para ela, o trabalho voluntário lhe dá
satisfação, contudo, a entristece o fato de fazer parte de um
grupo de jovens atuantes ainda muito reduzido, tendo em vista
o desinteresse de muitos índios da idade dela em relação à
cultura do próprio povo.
Quando fazemos esse curso, as nossas lideranças abrem as
nossas cabeças, nos dão força de vontade para entrar no
movimento indígena. Eu me sinto orgulhosa por ter aprendido
sobre a história dos índios Jenipapo-Kanindé e ter a
oportunidade de ensinar às outras pessoas. Aqui, na aldeia,
são poucos os jovens que têm essa força de vontade, esse
conhecimento. Não é porque os mais velhos não querem
158
repassar, é por falta de interesse mesmo.
Raquel revela parte das tradições dos Jenipapo-Kanindé como monitora
do museu localizado na aldeia
Foto: Bárbara Rocha
Recentemente, o núcleo educativo do museu recebeu 11
jovens que desejam seguir os passos de Raquel e perpetuar a
159
memória dos Jenipapo-Kanindé. A neta da cacique Pequena é
testemunha de como o processo de aprendizado sobre o lugar
ao qual se pertence pode transformar a percepção sobre a
própria identidade e estimular a manter a cultura da etnia viva.
Ela tornou-se inspiração para outros índios, sejam os jovens
que ingressaram no movimento ou os mais velhos que estavam
adormecidos diante da necessária e arriscada luta. Nota-se que
a perseverança pela concretização do resgate da cultura aos
mais novos é uma das maiores aspirações da jovem. Ela não se
conforma com o desperdício de índios da idade dela em não
absorverem o conhecimento dos guardiões da memória por
puro desinteresse, por isso não os espera, mas sim, busca-os.
Eu participei do primeiro núcleo educativo de jovens
monitores, que estava lutando para resgatar um pouco da
nossa história e colocar no museu, e conseguimos fazer isso,
para mostrar um pouco da nossa história, do que aconteceu
antes, do que acontece agora. Também acho que uma forma de
resgate é a gente ensinar para os mais novos, mas também
para algumas pessoas que ainda têm dúvidas sobre a
160
comunidade. Acho que resgate é mais ou menos isso, a gente
aprender para ensinar. Os jovens deveriam não só tirar
conhecimentos da gente. Eu, particularmente, costumo sempre
conversar com a cacique, com o tio Preá, o tio Bão, a tia Bida,
que são pessoas mais vividas. Os jovens deveriam, para
manter a nossa cultura, escutar um pouco mais os mais velhos,
que são pessoas que têm mais sabedoria. Mas eu,
particularmente, não vejo muito isso. Às vezes, as pessoas
pensam que o museu tem o suficiente para a nossa
comunidade, mas eu costumo dizer que o museu é uma sala de
quatro paredes onde não dá para colocar toda a história da
nossa comunidade. A outra metade do museu é a memória de
outras pessoas que já viveram a nossa história, que lutaram e
continuam lutando.
161
Foto: Luiza Carolina Figueiredo
Foto: Luiza Carolina Figueiredo Foto: Bárbara Rocha
162
Nos caminhos da aldeia
Não é somente no museu que os visitantes podem ter
contato com a sabedoria de Raquel Alves. A jovem é, também,
guia das trilhas ecológicas que atravessam a TI Lagoa da
Encantada. Ao todo, são seis caminhos que deixam turistas
maravilhados com as belezas naturais da aldeia, as quais
mantêm relações simbólicas com os índios do lugar: Trilha do
Morro do Urubu; Trilha da Lagoa da Encantada; Trilha da
Sucurujuba; Trilha da Lagoa do Tapuio; Trilha dos Roçados; e
Trilha do Marisco – esta é a que Raquel mais gosta, por findar
na Praia dos Índios.
Dos seis passeios que a equipe do turismo comunitário
organiza, fiz dois: as trilhas da Sucurujuba e a do Morro do
Urubu. Nesta, Raquel nos acompanhou, por volta das 15 horas
de um domingo, quando o Sol ainda queimava a areia
intensamente.
O Morro do Urubu é uma duna vegetada com mais de 90
metros de altitude. Do topo, é possível observar a Lagoa da
Encantada, as hortas de alguns índios da comunidade que
163
vivem em regiões mais afastadas, a escola, a praia, o nascer e o
pôr do sol. Vale a pena o esforço em troca da belíssima vista.
Sim, para subir, pelo menos no horário em que resolvemos
fazer o passeio, após o banho na Lagoa da Encantada, é
necessário preparo físico – alerta já ressaltado no guia turístico
disponível no site da Rede Tucum. Contudo, Raquel sobe o
Morro como se a terra fosse plana. Enquanto eu, Roberta e
Luiza, que me acompanharam naquela visita, parávamos
devido ao cansaço, ela nos esperava sem esboçar o menor sinal
de indisposição.
Ao chegarmos ao topo, cerca de meia hora depois do início
da subida, repousamos sobre a areia, aliviadas. Ela, Daniela –
prima e melhor amiga – e Preá nos apresentaram a comunidade
vista do alto. A relação entre os índios Jenipapo-Kanindé e a
natureza que os envolve é profunda. Eles sobem o Morro do
Urubu desde que se entendem por gente, mas contemplam a
vista da terra legitimamente deles como se lá estivessem pela
primeira vez.
164
Lagoa da Encantada vista do topo do Morro do Urubu
Foto: Luiza Carolina Figueiredo
Apreciando o pôr do sol, os guias nos contaram as
tentativas de empresários em invadir o território para construir
grandes empreendimentos, como aeroporto e campo de golfe.
Lá de cima, também é possível ver a Ypióca, empresa
produtora de cachaça que, segundo os índios da comunidade,
165
suga água da Lagoa da Encantada continuamente.
Os conflitos entre os Jenipapo-Kanindé e os intrusos que
adentram a terra como se não pertencesse a ninguém somam ao
longo dos anos, poucos são os que desistem de tomar posse do
território. Preá também relembra as vezes em que teve de
correr em manifestações para não ser atingido pelas balas de
borracha; em uma das tentativas, acabou sendo vitimado,
embora não tenha sofrido danos mais graves.
A descida do Morro do Urubu é leve, rápida e termina em
frente à Lagoa da Encantada. Ao chegarmos próximo a um
olho d'água, os três guias percebem embalagens de alimentos e
bebidas espalhadas pela areia. Ainda que não seja permitido
adentrar à TI sem antes combinar com as lideranças da
comunidade, não são muitos os que respeitam a orientação.
Assim, geralmente aos finais de semana, é comum ver pessoas
que tomam posse da Lagoa da Encantada para se divertirem
sem consultar os indígenas, às vezes poluindo a região sem
consciência e respeito pelos donos da terra. Além disso,
dezenas de praticantes de motocross circulam pela aldeia
incomodando os moradores com o perturbador barulho dos
166
veículos (tanto é que parte do áudio de uma das entrevistas que
fiz ficou prejudicada). No período de campanha das eleições
para governador do Estado, também cheguei a ver um carro de
propaganda do candidato Eunício Oliveira, com o jingle às
alturas, quase em frente à casa de Pequena, desagradando
visivelmente à cacique.
A ponte
A luta é incessante, árdua e cansativa. O grupo de índios
articulados é pequeno diante das necessidades da comunidade.
Se a recuperação de elementos culturais à época do Historiando
exigiu comprometimento e pesquisa, a conquista das pessoas é
ainda mais complexa. Para tal missão, índios da etnia Jenipapo-
Kanindé contam com o apoio de entidades direcionadas a
auxiliar no aprendizado, no reconhecimento e na valorização
acerca da cultura.
Entre as pessoas da comunidade indígena Jenipapo-
Kanindé e os órgãos que promovem ações de diversas
naturezas no território, Raquel está presente, mediando
167
diálogos e incentivando o povo dela à participação, na tentativa
de recuperar o reconhecimento da identidade que, muitas
vezes, se arrasta em meio à apatia de alguns. Embora seja
menor de idade e, oficialmente, não possa estar à frente de
alguns projetos desenvolvidos na aldeia, procura envolver-se
nas atividades ou, pelo menos, mostrar-se bem informada sobre
o que acontece, ainda que os estudos, o museu e as trilhas
ecológicas a ocupem bastante.
No período em que estive hospedada na casa de Juliana,
comecei a perceber que o engajamento de Raquel, a qual
acompanhei na ausência de Irê no sábado pela manhã, superava
as minhas expectativas baseadas no que tinha visto no museu e
em uma pré-entrevista. Havia um ônibus estacionado em frente
ao Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, o qual acabara de
chegar com um grupo de alunos de mesma faixa etária que a
monitora. Os jovens observavam o artesanato produzido na
comunidade: colares feitos com sementes diversas, brincos e
prendedores de cabelo adornados com penas coloridas. A neta
de Pequena, acompanhada do priminho Luidy, é quem exibe o
trabalho recém-produzido pelas mãos dos índios. Aquela é a
168
primeira vez em que nos encontramos desde que cheguei à
comunidade, dois dias antes. Cumprimentamo-nos e questiono
se ela guiará a turma na trilha ecológica programada, mas a
missão foi atribuída ao tio Preá naquela manhã.
Ela se orgulha do artesanato exposto na mesa, fruto do
projeto Raízes Indígenas, realizado pelo Centro de Defesa e
Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza
(CDPDH) e patrocinado pela Petrobras. A iniciativa, voltada
para jovens e adultos, surgiu no intuito de promover a produção
e comercialização de artesanato indígena a partir da matéria-
prima natural, recuperando o costume dos troncos velhos de
produzirem os próprios utensílios e acessórios, fortalecendo a
economia solidária na região.
169
Os índios Jenipapo-Kanindé costumam vender o artesanato que
produzem na própria comunidade aos visitantes da aldeia ou em encontros
que participam Foto: Bárbara Rocha
Após a saída do grupo em direção à Lagoa da Encantada,
onde iniciarão a trilha ecológica, o barulho diminui e ela
propõe que eu conheça outros artesanatos dos Jenipapo-
Kanindé, convidando-me a entrar em um dos cômodos da
pousada. Aves, animais, índios e panelas feitos manualmente
estavam espalhados pelo pequeno quarto. Segundo Raquel,
além dos itens modelados durante o Raízes Indígenas, em
170
intercâmbio cultural, representantes da etnia Pitaguary
ensinaram os jovens Jenipapo-Kanindé a darem forma ao
barro, produzindo peças que, em tempos passados, não
faltavam nas ocas das aldeias, principalmente as panelas, como
a histórica peça que está exposta no museu.
Foi muito interessante, porque os mais velhos repassam o
que eles têm. Outra coisa que a gente tinha perdido, não
faziam mais aqui, era o artesanato com barro. No passado, a
gente tinha essa cultura, mas, como as pessoas mais velhas
não passavam, a gente tinha perdido o costume.
Os jovens da comunidade ainda ansiavam aprender a
confeccionar outros instrumentos legitimamente indígenas,
como as maracas e os cocares. Em conversa que Raquel teve
com amigos da aldeia, o grupo pensava em reforçar a proposta
incluindo oficinas destinadas a outros tipos de artesanato. Após
o aprendizado, atualmente, jovens Jenipapo-Kanindé já
ministram oficinas aos não-índios. No Encontro Sesc Povos do
Mar, Daniel ensinava a aproximadamente dez pessoas,
171
incluindo a autora deste livro-reportagem, como fazer colares
de sementes. Com destreza, criatividade e paciência
admiráveis, o jovem orientava-nos a confeccionar acessórios
semelhantes aos deles, o que, até o momento que acompanhei –
não consegui passar da segunda etapa – não foi possível.
Dos antepassados, o sangue parece transferir o talento que
modela colares, brincos, pulseiras, saias e tiaras com detalhes
elaborados com esmero pelos dedos durante horas a fio.
Infelizmente, ao expor o artesanato legítimo sobre a mesa
durante visitas que recebem ou encontros de que participam, os
indígenas ainda escutam os velhos “está muito caro” ou “vou
comprar só para ajudar”. A renda é importante, sim, mas, em
uma comunidade já fragilizada, deparar com a desvalorização
da cultura, também, do outro lado, muitas vezes é
desmotivador. É preciso manter-se firme, crente e disposto.
Avante, juventude!
--
A Associação das Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé
(AMIJK) era abrigada em uma estrutura no terreno onde hoje
encontra-se somente o Galpão de Artesanato Tio Adorico.
172
Ainda que não tenha mais um espaço físico onde são discutidas
iniciativas organizadas pelas índias da aldeia, o coletivo resiste.
Raquel Alves acompanha o movimento das mulheres Jenipapo-
Kanindé desde muito pequena, ao lado da avó, no entanto, não
participava das atividades até o Historiando despertá-la. A
AMIJK, presidida por Katia Alves, filha de Pequena, é
responsável não só por reforçar a representatividade feminina e
convidar as mulheres a participarem das ações comunitárias,
mas também por organizar projetos que beneficiem os
indígenas da etnia, como o núcleo educativo de jovens do
Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, a biblioteca a ser instalada
na escola da comunidade e o cineclube aldeia.
A Associação de Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé
está funcionando, sim, está até com o projeto Cineclube aldeia,
em que o Daniel e a Daniela são monitores. Estamos
trabalhando para continuar projetos que tínhamos aqui
antigamente, como a realização de rodas de conversa em
noites de lua cheia. A Associação também está dando
continuidade ao projeto de qualificação de monitores para o
173
museu indígena Jenipapo-Kanindé.
Em setembro de 2014, a AMIJK realizou a comemoração
de aniversário de quatro anos do museu. Na ocasião, Raquel
apresentou, ao lado de Juliana, a história do equipamento em
textos no telão, debruçando-se, também, sobre a própria
trajetória. A organização comunitária é protagonista no evento.
Percebo que é algo que as lideranças Jenipapo-Kanindé tentam
ressaltar no discurso, ainda que reconheçam que a articulação
dos indígenas da etnia caminha a passos lentos e é dirigida,
principalmente, pela família da cacique.
Assim como ocorreu no Marco Vivo, é aberto um espaço
para representantes do Historiando, da Adelco, das aldeias
Tapeba, Pitaguary e Kanindé de Aratuba e da Associação de
Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé discursarem. Pequena
encerra agradecendo a presença dos parentes indígenas de
outras etnias, dos idealizadores dos projetos que atuam na
comunidade e dos pesquisadores que sempre surgem na
comunidade a fim de investigarem as particularidades da
aldeia. No entanto, o que predomina em sua fala é o elogio ao
174
grupo de jovens que resiste diante das seduções da vida fora da
comunidade em prol da preservação da identidade étnica,
fortalecendo a luta que a cacique tanto ressalta. Sob aplausos e
chacoalhadas de maracas, ela conclui: “Quero parabenizar
nossos jovens Jenipapo-Kanindé, crianças entre 12 e 16 anos,
que se empenham, não medem esforços, têm vontade de
trabalhar na causa indígena. Eu fico muito maravilhada,
porque a comunidade tem tantas famílias, mas poucos são os
adultos dentro da causa indígena. Sempre convido, chamo e,
através da Juliana, que também é um braço forte ajudando
esses jovens, a gente está falando com eles e elas, que estão
atuando em cima disso aqui. Parabéns, jovens Jenipapo-
Kanindé. Parabéns mesmo!”
As jovens lideranças são convidadas a irem à frente e
falarem sobre suas funções na comunidade, em uma fila
formada majoritariamente por netos da cacique, como Raquel,
Daniel, Yuri, Yara, Daniela e Grazi. Raquel é uma das últimas a
se apresentar. Nesse momento, a vi tímida diante do público
que assistia, apesar de conhecer boa parte dos presentes, dentre
175
eles, pesquisadores e representantes de entidades que
acompanham a atuação da jovem. Entre risos envergonhados,
se expôs como monitora do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé.
Foto: Luiza Carolina Figueiredo
Poucos minutos depois, a etnia organiza-se em duas rodas
de toré. Na dança, Raquel se solta, canta e pisa com os pés
descalços na areia que sobe com a dança dos índios. É a
segunda vez que a encontro em vestes de palha e rosto pintado
com urucum, mas a tiara feita com penas de capote era
novidade.
176
Eu moro numa floresta/ Só vejo os pássaros cantar
Eu moro numa lagoa/ Só vejo os peixes nadar
Moro perto de uma duna/ Que ela emenda na lagoa
Moro perto de um lago/ Que ele sangra para o mar
É que eu vivo na mata/ Enterrada na areia/ De pé no chão
Foto: Luiza Carolina Figueiredo
A festa de aniversário finaliza com a tradicional canção de
177
parabéns, bolo e muitas comidas típicas e saborosas sobre a
mesa, no alpendre do museu. Pequena apaga as quatro velas ao
lado de jovens da comunidade, dentre eles, a neta Raquel.
---
Em uma tarde de segunda-feira pós-eleições, Raquel topa
ser minha guia em um passeio não comum aos visitantes
costumeiramente. Ela me conduz ao terreno onde estão sendo
construídos quintais produtivos e mandalas, que integram o
projeto Etnodesenvolvimento Ceará Indígena, realizado em
seis comunidades indígenas do Estado pela Associação para
Desenvolvimento Local Co-produzido (Adelco), patrocinado
pela Petrobras.
A iniciativa contempla 690 pessoas, das quais 500
participam de ações de sensibilização, intercâmbio e oficinas e
190 de cursos, plantação de hortaliças, criação de animais e
iniciativas empreendedoras. Por meio de ações de economia
solidária e turismo comunitário, o projeto objetiva melhorar a
vida das pessoas das comunidades beneficiadas e conscientizá-
178
las diante da riqueza de seus recursos naturais, proporcionando,
também, geração de renda.
Na aldeia Jenipapo-Kanindé, o projeto chama-se “Matas da
Encantada”. Em um terreno próximo ao Galpão de Artesanato
Tio Adorico e à lanchonete Cantinho do Jenipapo, ambos
desativados atualmente, Raquel me apresenta as estruturas que
abrigam composteiras, o tanque onde peixes procriarão, o
pedaço de terra para hortas e o espaço para criação de galinhas,
que compõem a mandala.
Acho que daqui para o próximo ano já estará funcionando.
Há algumas atividades pendentes, que precisam ser realizadas
para darmos continuidade aos procedimentos. Na mandala, a
gente vai trabalhar com peixes, galinha de criação, hortaliças.
As famílias que estão participando também querem plantar
mamão, banana, melancia, maxixe, porque temos um espaço
muito grande. Todo o terreno é de usufruto da comunidade.
Pensamos também em reativar o Cantinho do Jenipapo, até
para os visitantes virem lanchar aqui, mas falta recurso.
179
Os quintais produtivos estão presentes nas casas de 16
famílias. Já na mandala, oito famílias são contempladas. Agora,
essas pessoas poderão plantar e colher alimentos e criar
animais para consumo próprio ou venda.
Literalmente, Raquel veste a camisa do projeto
Etnodesenvolvimento Ceará Indígena, e, junto a outras
lideranças da comunidade, preocupa-se em incentivar a
participação dos indígenas na ação. Para ela, a mobilização dos
parentes ainda caminha lentamente, são poucas as famílias que
se interessam pelas oportunidades ofertadas.
Aconteceram várias formações, reuniões e oficinas para
falar sobre o projeto, para as famílias terem uma base de como
era. Nós trabalhamos como ponte entre a comunidade e a
Adelco, na parte da comunicação. Começamos a convidar as
pessoas da comunidade, falando do projeto da mandala do
quintal. As pessoas ficaram interessadas e vieram participar
das reuniões, então houve discussões de quem faria parte dos
quintais e quem faria parte da mandala.
Quando tiver o peixe, as hortaliças e as galinhas, as
180
famílias desse local produtivo poderão pescar, cultivar, criar e
vender, trazendo renda para as pessoas. Além desse projeto de
produtividade e renda, há atividades que reafirmam a nossa
cultura. A Adelco já realizou conosco oficinas de artesanato,
oficina de museologia.
Raquel veste a camisa do projeto da Adelco no dia do aniversário do
MIJK, antes de colocar as vestes de palha para apresentar o evento
Foto: Luiza Carolina Figueiredo
181
Porta-voz de uma etnia
Mesmo abraçando a responsabilidade de tomar conta de
Raquel ao lado de Sebastião, Pequena não pôde se desvincular
dos compromissos como cacique, como as frequentes viagens
Ceará e Brasil adentro. Quando Raquel completou nove anos,
passou a acompanhar a avó em alguns encontros fora da aldeia,
nos quais ela conheceu indígenas de outras regiões e percebeu
como a causa pela qual Pequena saía de casa, muitas vezes
durante dias, era importante. Mas o sentimento de pertença
ainda era raso. Foi preciso que ela mesma fosse incitada a ir às
reuniões a partir do envolvimento com as questões que
permeiam a comunidade. Hoje, ela perde as contas de quantos
encontros indígenas participou somente em 2014, por iniciativa
própria.
Raquel nunca saiu do Ceará, mas nesta terra já representou
a juventude Jenipapo-Kanindé inúmeras vezes. A troca de
experiências estabelecida no encontro acarreta diálogos, novas
ideias e iniciativas para a comunidade, utilizando os jovens
182
como instrumentos. Em uma tarde de outubro, Raquel retornara
há poucos dias de um encontro promovido pela Rede Tucum,
ao qual compareceu com Daniela, empolgada com a nova
pesquisa que desenvolveriam a partir das propostas lançadas
nos dois dias de reunião, como a sondagem de pessoas que
possam ingressar na equipe de turismo coordenada por Preá.
No início do primeiro semestre de 2014, foi realizado o I
Encontro da Juventude Indígena do Ceará pela garantia dos
direitos dos povos indígenas, na aldeia dos índios Pitaguary, no
município de Pacatuba. O objetivo da assembleia era reunir
jovens das comunidades indígenas do Ceará a fim de que
pudessem trocar experiências, debater sobre as dificuldades
que as etnias enfrentam e saírem mobilizados a buscar
melhorias às suas respectivas etnias. Mais uma vez, Raquel
representou a juventude Jenipapo-Kanindé, ao lado de Daniel.
Ela rememora o evento como um marco em sua formação,
onde aproximou-se de lideranças jovens de outras etnias e
refletiu acerca dos problemas que ocorrem em seu território e
se repetem em aldeias de parentes. Agora, se uma liderança
adulta não pode comparecer a um encontro estadual, Raquel é
183
indicada para levar as queixas e conquistas da comunidade às
rodas de conversas propostas nos eventos. A missão que lhe é
designada fortalece a perseverança e a batalha por uma
comunidade militante e orgulhosa da própria identidade, que,
unida, busca reconhecimento e direitos.
Nós, jovens, temos de participar desses momentos, para
conhecer não só a realidade da nossa comunidade, mas
também as condições de vida dos nossos parentes, das outras
etnias que a gente ainda não conhece. Eu só conheço as
aldeias Pitaguary e Tapeba. Então, isso que é interessante,
para a gente conhecer, partilhar, conhecer, falar como é a
nossa aldeia, ouvir as outras aldeias falando das condições de
vida e das lutas deles. A gente tem de começar a participar
disso, porque tem lideranças que não têm mais condições de ir,
não tem mais tempo, tem coisas na aldeia que devem ser
resolvidas aqui. Então nós, que estamos nos engajando nessa
luta, temos de participar, desde novinho temos de aprender,
para quando as lideranças tombarem e Pai Tupã levar para
ele, a gente tomar a frente e a aldeia ficar em boas mãos
184
Em dezembro de 2014, Raquel fará a primeira viagem para
fora do Estado. O destino é Pernambuco. Ao lado do tio Preá, a
menina participará de um encontro que reúne representantes do
turismo comunitário. Até o fechamento deste livro-reportagem,
o sentimento era de ansiedade por, mais uma vez, levar a voz
dos Jenipapo-Kanindé, no entanto, com uma visibilidade muito
maior.
A discriminação enraizada
Anos correm e o preconceito contra os indígenas ainda é
proeminente. A poucos quilômetros da aldeia, já começam a
senti-lo no olhar, de forma mais latente, ou em palavras
cruciantes. Ao sair da TI Lagoa da Encantada, Raquel percebeu
que, por ser índia, era diferente de uma maioria – ainda que
muitos compartilhassem os mesmos ascendentes da menina – e
poderia não ser aceita como já estava acostumada na
comunidade. Por outro lado, as semelhanças que têm com a
sociedade branca, como a forma de se vestir, o modelo da casa
185
e até mesmo a linguagem que utiliza para se comunicar
também motivam a discriminação.
Até hoje sofro preconceito, não é nem passado. Até hoje, as
pessoas dizem que não somos índios, porque não andamos nu,
porque não andamos caracterizados em todos os momentos e
por esses motivos não somos índios. E na escola, quando tem
festa do Marco Vivo e a gente se pinta de jenipapo (a tinta pode
permanecer por, aproximadamente, uma semana), as pessoas
passam e fazem gestos com a boca, falam: “Olha as índias.
Como é índia, andando arrumada, com roupa? Índio que é
índio anda nu”. Eu sou do tipo de pessoa que não fala nada,
costumo ficar na minha. Uma prima minha, certa vez, acabou
discutindo com um colega em sala de aula que estava dizendo
que aqui, na Encantada, não era um bom lugar de se morar,
disse: “Deus me livre de morar em um lugar onde só tem
índio, os pés de bicho, os cabeludos”.
A maior parte do círculo de amizades de Raquel é
composto por índios. Daniela, Daniel e Yure, segundo ela, além
186
de primos, são melhores amigos. Juntos, participam de
movimentos indígenas e compartilham confidências do dia a
dia. No entanto, há pessoas muito próximas que não são
indígenas, como o namorado de Raquel, Carlos Augusto, com
quem está há dois anos. Embora tenha ascendência indígena, o
rapaz, de 20 anos, não se percebe como tal. O casal se
conheceu na escola convencional, quando Raquel foi estudar
fora da aldeia. Apesar da diferença de idade de quatro anos, os
dois cursam o 3º ano do Ensino Médio, na mesma sala. Assim
como outros amigos não índios de Raquel, Carlos Augusto
respeita as manifestações culturais dos Jenipapo-Kanindé, mas
em alguns momentos estranha, cabendo à menina explicar as
simbologias dos rituais.
O avô dele é índio, alguns familiares são até cadastrados
como índios, mas ele não. A família foi morar no Barro Preto e
ele não se reconhece como índio. Às vezes eles estranham,
porque nós temos alguns rituais, e toda a questão de
espiritualidade, principalmente quando o pajé Barbosa (etnia
Pitaguary) está, que nós consideramos pajé de todas as tribos.
187
Tem pessoas que não conhecem e pensam que o toré é
macumba e a gente tem de explicar que é um ritual nosso,
quando a gente pede forças ao Pai Tupã e à Mãe Tamain, tem
toda a questão dos encantos.
A interação com jovens de outras etnias, principalmente
Tapeba, Pitaguary e Kanindé de Aratuba, a partir dos encontros
indígenas gerou forte vínculo entre eles. No dia do Marco
Vivo, quando parentes de outras aldeias estiveram prestigiando
os anfitriões da festa, era notória a diversão que garantem
quando estão juntos. Pintam uns aos outros com jenipapo, se
atualizam sobre as últimas novidades, entoam os cânticos
indígenas e registram muitas fotos, com direito a marcações no
Facebook – rede social na qual, muitas vezes, identificam a
etnia a qual pertencem, como “Quellzynha Jenipapo”.
O lazer é aqui
Duas travinhas improvisadas com quatro garrafas de vidro
estavam postas na areia. Entre elas, Raquel e algumas amigas
188
jogavam futebol em um sábado de carnaval, bem próximo à
casa de Juliana, enquanto o forró às alturas acompanhava a
diversão de alguns Jenipapo-Kanindé. As jovens montaram um
time pequeno, para se entreterem nos horários livres. Segundo
Raquel, juntas, também fazem outros programas sem precisar
sair da região onde vivem, como os passeios até a praia do
Marisco, para fazer o que eles chamam de “cabana”.
– Eu não vou muito à Lagoa da Encantada. As meninas
vão quase todo fim de semana, mas eu vou só de vez em
quando. A gente costuma mais ir à praia do Marisco, para
fazer cabana, que você vai de manhãzinha cedo e volta.
– Cabana?
– É, o que vocês chamam de piquenique nós chamamos de
cabana. Nós levamos comida e passamos o dia inteiro lá, nos
divertindo, porque lá fica a nossa praia, que nós chamamos
Praia dos Índios. A gente vai de manhã bem cedo e volta de
tardezinha.
189
Jovens Jenipapo-Kanindé pintam uns aos outros com urucum durante a
Festa do Marco Vivo Foto: Gleydson Moreira
Os ensaios dos grupos de dança Kunhã-Apyara e Abá
Mirim (pronuncia-se 'auá mirim' e, segundo Raquel, significa
“índio pequeno”) também fazem parte do cotidiano de Raquel.
O primeiro é conduzido por estudantes do curso de Educação
Física da Universidade Federal do Ceará, que firmaram
190
parceria com a comunidade a fim de ensinarem aos jovens e
adultos ritmos da cultura popular, como frevo e carimbó. No
dia do Marco Vivo, os participantes do grupo, inclusive
Raquel, apresentaram uma dança fruto do projeto desenvolvido
na aldeia. Já o Abá Mirim é voltado para o toré, dança com a
qual os índios já estão familiarizados. Vez por outra, os jovens
são convidados a se apresentar em eventos, como o Encontro
Sesc Povos do Mar, do qual Raquel e mais 11 netos de Pequena
participaram ao lado da avó e do tio Preá.
Menina de sonhos
Raquel é grata pelas oportunidades que tem hoje, muito
distantes da realidade vivenciada por Pequena e Juliana quando
essas mulheres tinham a mesma idade dela. A menina desfrutou
a chance de aprender a ler e a escrever em uma escola que não
se limitasse ao convencional, mas também preparasse o terreno
no qual ela trilharia, futuramente, os passos da militância. Ao
se matricular na escola do Iguape para fazer o Ensino Médio,
não necessitou andar quilômetros a pé, pois há um transporte
191
disponibilizado pelo governo do Estado que busca e deixa em
casa os alunos da aldeia diariamente.
Até o fechamento da editoração deste livro-reportagem,
Raquel aguardava o resultado do Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem) para lançar a nota final no Sistema de Seleção
Unificada (Sisu) e pleitear uma vaga no curso de Psicologia da
Universidade Federal do Ceará. Independentemente da
aprovação, a jovem tem uma certeza em relação à carreira: não
quer deixar o trabalho que realiza no museu.
Psicologia é algo que, além de estudar o conteúdo, você se
estuda. Eu já conversei com estudantes de psicologia que
vieram visitar a comunidade e disseram que o curso é muito
bom. Desde o Ensino Fundamental eu penso nisso e tenho
desejo de me formar nessa profissão. Também pretendo
continuar no museu, até porque foi através do Historiando que
adquiri o conhecimento que eu tenho hoje sobre a comunidade,
porque antes eu não era próxima ao movimento.
Vontade grande de Raquel é também não deixar de estudar.
192
Caso não conquiste a vaga no curso desejado, pretende
ingressar na nova turma da licenciatura indígena Missi
Pitakajá. Quando amigos confessam que estão desestimulados
a seguir na escola ou a tentar garantir uma vaga na faculdade,
de imediato a menina os aconselha a não desmotivarem. Para
ela, o estudo é fator preponderante para a concretização dos
maiores sonhos.
Hoje em dia, não somos nada sem estudo. Eu acho muito
importante, porque vejo os exemplos da minha família aqui em
casa, como a vó, o vô, os tios que não tiveram a oportunidade
de completar os estudos, só a tia Juliana. Em alguns casos,
essas pessoas trabalham em algo que não querem. Muitos não
sabem ler, só escrevem o nome e, às vezes, quando querem
resolver um problema, tem de chamar alguém. Quando
chegam documentos, às vezes leio e explico para o pessoal.
[Se for professora], queria trabalhar com educação
infantil, porque me dou tão bem com criança, que acho que
seria uma boa professora para as crianças.
193
Não é incomum os visitantes terem a mesma sensação que
tive ao conhecer Raquel. Segundo relatos da menina, ser
apontada como a futura cacique pelo discurso que sustenta
durante as apresentações é algo recorrente. A própria Cacique
Pequena revelou-me, em uma conversa informal, entre elogios
rasgados à pedra preciosa – como chamou a neta –, a crença no
potencial da menina a assumir sua função futuramente,
projetando uma líder em Raquel: “É a terceira cacique, pode-
se dizer”.
Entretanto, a jovem não se sente segura, hoje, para pensar
nessa possibilidade, talvez pelo fato de acompanhar a árdua
missão da avó desde que chegou ao mundo. Embora a luta de
Pequena seja inspiradora, ela sabe bem das dificuldades de
liderar uma aldeia indígena, principalmente tratando-se dos
Jenipapo-Kanindé, por isso tem muita cautela ao falar sobre o
assunto.
Quando o pessoal vem para o museu, turistas como você,
diz: “Ah, você é a futura cacique”. Eu penso em ser uma
liderança, mas, particularmente, eu não tenho aquela
194
expectativa de ser cacique, porque eu acho que o cargo de
cacique não é para qualquer um, é um cargo de muita
responsabilidade. Não que eu não tenha, que eu não vá ter,
mas é um cargo que você – vou dizer igual à vó – se aborrece
muito com a comunidade, porque tem pessoas que sabem
agradecer o que você faz pelo seu povo, mas tem pessoas que
não dão valor àquilo. O que a gente tem aqui foi tudo através
da luta dela, mas tem pessoas que não sabem agradecer, só
sabem criticar. É uma coisa que só sabe quem convive. Eu
penso em ser uma liderança, como eu já sou. A vó sempre diz:
“Se você já faz o que faz, já é uma liderança”. Mas cacique,
eu não sei.
Hoje tem a Cacique Irê, a Cacique Jurema e a Cacique
Pequena. Se, um dia, a Cacique Irê e a Cacique Pequena
chegarem a tombar e me derem o cargo, eu vou aceitar. Mas,
agora, eu prefiro ficar só como liderança.
Mesmo sem o anseio de tornar-se a principal líder dos
Jenipapo-Kanindé, Raquel reflete sobre as mudanças que
gostaria de ver na comunidade através de sua perseverança.
195
Para ela, o alcoolismo, de difícil controle, é um dos grandes
problemas que aflige a aldeia atualmente, algo que também
percebi em algumas de minhas andanças pela aldeia. Há venda
de bebidas alcoólicas em alguns estabelecimentos da aldeia,
assim, encontrar homens embriagados pelo caminho não é
incomum. A solução pontuada por Raquel é o fechamento da
comunidade, de modo que o vício não se propague pela etnia e
atraia outras problemas para o território.
Por mais que digam que não tem condições de acabar,
porque por mais que você acabe aqui, os índios vão em outros
lugares e compram, gostaria de minimizar. A cachaça aqui
está muito grande, tem certas pessoas que estão se acabando
na cachaça. Em relação às drogas, tem certas pessoas que vêm
de fora e vendem, tem gente que já usa...Se eu fosse cacique,
eu lutaria para colocar um portão na entrada. Não sei se você
viu a luta dos Pitaguary, mas eles estão em uma luta para
fechar a reserva Santo Antônio, porque lá estava tendo
prostituição, droga, cachaças. Mas isso tudo não eram pessoas
de lá, eram pessoas de fora que traziam para fazer dentro da
196
reserva. Eu pensaria mais nisso, porque eu acho que são
coisas que mais estão prejudicando a nossa aldeia.
Raquel sonha, projeta, anseia. No entanto, os benefícios aos
Jenipapo-Kanindé e, principalmente, os elementos essenciais à
afirmação cultural da etnia parecem ficar mais distantes à
medida que o tempo passa e a comunidade torna-se cada vez
mais desinteressada. A menina teme ficar só.
Eu me preocupo, principalmente, com os jovens, porque eu
acho a maioria muito desinteressada. Quando os troncos
velhos falecerem, tenho medo de os jovens não seguirem na
luta. Se todos estiverem juntos, é difícil de quebrar, de desistir,
mas poucas pessoas lutando por algo tão grande é mais difícil.
(...)
Tem muitos homens jovens e veteranos que não têm tanta
força de vontade como nós, mulheres. Temos muitas lideranças
mulheres, que correm atrás mesmo, mas algumas lideranças
masculinas são muito fracas.
197
Raquel estuda palavras em tupi para interpretar a avó em peça na Noite
Cultural
Foto: Gleydson Moreira
Em uma rápida visita que fiz à Escola Indígena Jenipapo-
Kanindé no início de novembro de 2014, vi Raquel se
preparando para uma peça que encenaria na Noite Cultural.
Com um dicionário de tupi em mãos, ela folheia as páginas
para saber o significado de algumas palavras desconhecidas,
pois a história será apresentada aos alunos da escola na língua
legitimamente indígena.
198
Ela diz que a peça é desenvolvida a partir das aulas de tupi
do programa de qualificação do Museu Indígena Jenipapo-
Kanindé, que conta também com aulas de história, museologia
e até mesmo inglês. Yuri ficou responsável pelo papel de
cacique Adorico e Raniele, irmã de Raquel, interpreta Dona Do
Carmo, parteira da aldeia. Coincidência ou não, a personagem
que Raquel incorpora é cacique Pequena, de quem segue os
passos disciplinadamente e toma forças para manter-se firme
na luta.
É silencioso, mas os Jenipapo-Kanindé clamam pela
batalha de Raquel. “Não desista”, grita o íntimo de cada um,
ainda que não reconheçam. Como menina ou mulher, como
cacique ou não, a etnia precisa da coragem da jovem como
exemplo e catalisador de mudanças, superando a indiferença
vigiada por ruralistas, grandes empresários e governantes.
Assim como tua avó ensinou e tu perpetuaste em paredes e
discursos, menina, vocês não são povos emergentes, mas, sim,
resistentes. Resista!
199
Considerações Finais
Acredito, sim, que o jornalismo pode ser transformador
quando existe o desejo, a atenção e o cuidado. Não fosse a
superficialidade dos meios de comunicação, a mídia poderia
contribuir, e muito, para que questões relevantes e urgentes que
permeiam a realidade dos índios do Brasil fossem levantadas
em debates mais amplos – não nas entrelinhas de blogs, redes
sociais e sites especializados na temática ou no grito dos
indígenas e ativistas forçadamente calados – e solucionadas.
A dizimação de etnias indígenas não está somente no
passado. O relatório Violência contra os povos indígenas no
Brasil 2013, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi),
divulgou dados apontando que, no ano passado, pelo menos 53
mil indígenas foram assassinados no País, em decorrência de
conflitos envolvendo disputa territorial. O documento também
mostra, com base em dados da Organização Mundial da Saúde,
que, em 2013, 693 crianças indígenas morreram em
200
consequência do deficiente sistema de saúde destinado aos
indígenas. Assim, a cada 100 índios que falecem, 40 são
crianças. Após 514 anos de invasão europeia, a demarcação de
terras indígenas segue com morosidade. Em 2013, somente
uma terra foi homologada, ainda que muitas das que aguardam
a finalização do processo não tenham impedimentos. Na
Amazônia Legal, encontram-se 98,75% das terras indígenas
regularizadas, mas dos 896.917 índios brasileiros, 554.081
vivem na minúscula parcela de 1,25% de terras indígenas
regularizadas fora daquela região.
O poder público se omite diante de tão grave situação. A
mídia não exige nem pauta.
Ao longo do processo de produção deste livro-reportagem,
muitos disseram que o trabalho deveriam abranger, também,
outras etnias indígenas do Ceará, mas com os recursos e tempo
que tinha, não seria possível. Desta vez, optei por versar sobre
os Jenipapo-Kanindé de forma mais branda, priorizando
aspectos culturais mais do que polêmicas. Entretanto, este
trabalho não tem somente o caráter documental, mas pretende,
também, ter uma função social.
201
Se, no livro-reportagem, temos a possibilidade de explorar
narrativas além do que vemos no jornalismo cotidiano, tentei
fazê-lo da melhor forma possível. Espero que, ao ler a história
de Maria de Lourdes, Juliana e Raquel, surja o olhar
diferenciado e cuidadoso aos índios do Ceará e do Brasil que
promova mudanças na dolorosa realidade das etnias. Assim, o
jornalismo cumpre seu papel, creio.
202
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