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Profusão de vestígios e escrita da história experiência(s) de pesquisa no arquivo da EE. Rodolfo Feuser (Vargem do Cedro Santa Catarina). CAROLINA CECHELLA PHILIPPI 1 O arquivo age como um desnudamento; encolhido em algumas linhas, aparecem não apenas o inacessível como também o vivo. Fragmentos de verdade até então retidos saltam à vista; ofuscantes de nitidez e credibilidade. FARGE, 2009, p. 15. O arquivo age como um desnudamento. Uma vez violado evidencia o vivo. A pesquisa em seu interior desenrola-se através de ida sistemática, onde os vestígios que lá habitam são questionados, retomados, e cotejados com bibliografia pertinente. É neste movimento que o historiador se coloca, elaborando hipóteses a serem ratificadas ou refutadas pelo material visitado. Apenas após tais procedimentos a escrita da história se desenrola para ser então apresentada aos pares. Mais que protagonizar este movimento cabe ao pesquisador o questionamento de tais posturas metodológicas e procedimentais de pesquisa. Como essas se deram? Por que foram eleitas em meio a demais procedimentos possíveis? Neste movimento se faz coerente a complexificação dada ao arquivo revisitado. Como este se constituiu como local de pesquisa? Em que sua representação se respalda? Como esta se sustenta? É através dela que o arquivo se edifica e institucionaliza? Para tanto é proposta uma análise processual da ida ao arquivo estudado, deixando claras suas especificidades e nuances. Mais que inseri-lo em meio a tipologias arquivísticas e análises técnicas cabe apontar as distintas subjetividades e temporalidades que lá repousam, bem como as diferentes dinâmicas de poder que se embrenham em seu interior. Este artigo tem como objetivo central a tomada do arquivo escolar da EE. Rodolfo Feuser (Distrito de Vargem do Cedro Município de São Martinho, Santa Catarina) como objeto, sendo matizados seus movimentos de edificação e sua representação em meio à comunidade. Norteia-se pela seguinte problemática: como a problematização do movimento de pesquisa em um arquivo escolar pode contribuir para a análise de sua representação? É matizada a centralidade a ele conferida como meio de acesso ao passado pela comunidade escolar, problematizando sua representação corrente na escola e no município. *Mestra em Educação Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Agência financiadora: CAPES.

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Page 1: Profusão de vestígios e escrita da história experiência(s ... · Profusão de vestígios e escrita da história – experiência(s) de pesquisa no arquivo da EE. Rodolfo Feuser

Profusão de vestígios e escrita da história – experiência(s) de pesquisa no arquivo da EE.

Rodolfo Feuser (Vargem do Cedro – Santa Catarina).

CAROLINA CECHELLA PHILIPPI 1

“O arquivo age como um desnudamento; encolhido em algumas

linhas, aparecem não apenas o inacessível como também o vivo.

Fragmentos de verdade até então retidos saltam à vista; ofuscantes de

nitidez e credibilidade”.

FARGE, 2009, p. 15.

O arquivo age como um desnudamento. Uma vez violado evidencia o vivo. A pesquisa

em seu interior desenrola-se através de ida sistemática, onde os vestígios que lá habitam são

questionados, retomados, e cotejados com bibliografia pertinente. É neste movimento que o

historiador se coloca, elaborando hipóteses a serem ratificadas ou refutadas pelo material

visitado. Apenas após tais procedimentos a escrita da história se desenrola para ser então

apresentada aos pares.

Mais que protagonizar este movimento cabe ao pesquisador o questionamento de tais

posturas metodológicas e procedimentais de pesquisa. Como essas se deram? Por que foram

eleitas em meio a demais procedimentos possíveis? Neste movimento se faz coerente a

complexificação dada ao arquivo revisitado. Como este se constituiu como local de pesquisa?

Em que sua representação se respalda? Como esta se sustenta? É através dela que o arquivo se

edifica e institucionaliza?

Para tanto é proposta uma análise processual da ida ao arquivo estudado, deixando

claras suas especificidades e nuances. Mais que inseri-lo em meio a tipologias arquivísticas e

análises técnicas cabe apontar as distintas subjetividades e temporalidades que lá repousam,

bem como as diferentes dinâmicas de poder que se embrenham em seu interior. Este artigo

tem como objetivo central a tomada do arquivo escolar da EE. Rodolfo Feuser (Distrito de

Vargem do Cedro – Município de São Martinho, Santa Catarina) como objeto, sendo

matizados seus movimentos de edificação e sua representação em meio à comunidade.

Norteia-se pela seguinte problemática: como a problematização do movimento de pesquisa

em um arquivo escolar pode contribuir para a análise de sua representação? É matizada a

centralidade a ele conferida como meio de acesso ao passado pela comunidade escolar,

problematizando sua representação corrente na escola e no município.

*Mestra em Educação – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Agência financiadora: CAPES.

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A escola que abriga o arquivo escolar, de nome EE. Rodolfo Feuser, localiza-se em

uma edificação térrea no distrito de Vargem do Cedro (Município de São Martinho – Santa

Catarina). Trata-se de vila de colonização alemã edificada sem investimento governamental

localizada a dezessete (17) quilômetros da sede do município de São Martinho

(PREFEITURA DE SÃO MARTINHO, 2013). Nos mapas que seguem assinala-se sua

localização, tendo como referência outros municípios da região catarinense.

Figura 1: Mapa físico do estado de Santa Catarina com destaque ao município de São Martinho (2015).

Disponível em http://www.cidades.com.br/cidade/sao_martinho/004125.html

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Figura 2: Mapa físico dos arredores do Distrito de Vargem do Cedro, tendo sido o mesmo assinalado em

vermelho (2015). Disponível em https://www.google.com.br/maps/place/Vargem+do+Cedro/@-28.1877517,-

49.1317795,11z/data=!4m2!3m1!1s0x952125cb3810ef8f:0x99b4cf409e6cf68b

A fundação do distrito data do ano de 1866; (HELLMANN, 2010, p. 28 – 30) a da

escola, de 18822. A instituição iniciou suas atividades com a vinda do professor Grundling da

Alemanha para o Brasil, encarregado pela administração de aulas aos habitantes locais no

idioma alemão. A escola de caráter confessional católico possuía papel importante na

comunidade sobretudo por suas funções socializadoras, capazes de integrar a criança e sua

família à comunidade que se formava e se solidificava. A instituição passa a ocupar no ano de

1928 o espaço físico da antiga Igreja local; na sequência a paróquia é assumida pelo Padre

Augusto Schwirling, que convida as Irmãs Franciscanas de São José3 para se instalarem na

cidade.

A chegada das religiosas é apontada por Josefina Hellman (Ibidem) como

transformadora da estrutura escolar, sendo a pequena escola por elas dirigida até o ano de

1997. Inicialmente as professoras eram apenas as integrantes da congregação; em 1934, a

escola passa a ter caráter público estadual, passando a ter como parte do corpo docente

professoras e professores laicos (Ibidem, p. 295 – 310). A estrutura física utilizada pela escola

a partir da década de 1930 ainda se encontra erigida, localizada em frente à Igreja da

municipalidade. Atualmente a EE. Rodolfo Feuser ocupa nova estrutura, pouco mais afastada

da praça da cidade; em sua antiga sede, hoje nomeada “Casa São José”, desempenham-se

funções comunitárias tais como catequese e clube do idoso.

2 Marco inferido no livro escrito por Josefina Hellman, tendo como fonte o livro Tombo da Paróquia de São

Sebastião de Vargem do Cedro (1921 – 1959). 3 A Irmandade foi fundada no ano de 1928 com a chegada das Irmãs Madalena Heider e Madalena Huskens da

Alemanha e da Irmã Conrada Murck, holandesa. Sua chegada deve-se ao pedido do Padre Schwirling; este

requisitou sua ajuda na prestação de serviços de Educação no Colégio Santos Anjos. Lá atuaram na Direção e na

docência, prestando serviços também na Pastoral Paroquial. Tais dados foram pesquisados no Projeto de Vida da

Irmandade, cujo acesso se deu através de visita a casa atualmente destinada a ela; o Projeto, contudo, não foi

acessado na íntegra, tendo sido consultado apenas o histórico da fraternidade.

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Foto 1: Fachada atual da EE. Rodolfo Feuser (Vargem do Cedro – Santa Catarina). Foto de Carolina Cechella

Philippi (2013).

A documentação pertence ao arquivo da EE. Rodolfo Feuser e foi acessada em esforço

de pesquisa circunscrito a escrita da dissertação de mestrado “A Escola Isolada Modelo de

Campinas (1937-1940) e a Escola Estadual Mista Desdobrada Vargem Do Cedro (1933-

1944): Culturas Escolares e Educação Comparada”, orientada pela professora Doutora Maria

Cristina Menezes, vinculada ao Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade

Estadual de Campinas. Estudou-se a escola no período circunscrito entre 1933 e 1944, quando

esta se nomeava Escola Estadual Mista Desdobrada Vargem do Cedro. A documentação

apresentada foi acessada através de visita à instituição. Foi feito contato inicial com a diretora,

a professora e a funcionária, sendo então concedida permissão para acesso e digitalização das

fontes. Estas, localizadas em meio a caixas de papelão acondicionadas na biblioteca escolar,

foram organizadas em ordem cronológica e sequencial imposta por funcionários atuais, não

possuindo marcas visíveis de danos. Na parte exterior da caixa demarcava-se período

temporal abarcado pela documentação protegida; em seu interior as diferentes espécies4 de

documentos separavam-se umas das outras através de barbantes e pastas. O cuidado de guarda

dos documentos é feito por profissionais da escola e sua organização é efetuada de acordo

com critérios que facilitem seu uso para eventuais consultas. Não há catalogação publicada,

de forma impressa ou virtual, do arquivo institucional, sendo a consulta feita através do

acesso direto ao objeto.

Para proposição de pesquisa as fontes foram digitalizadas em sua íntegra, não sendo

necessária a recorrente ida à municipalidade, nem o constante manuseio do material,.

Recentemente o arquivo foi deslocado espacialmente, ainda no interior da escola, estando

4 Entende-se como espécie documental a “forma assumida pelos documentos de acordo com a natureza e a

disposição de suas informações” (SÃO PAULO, SECRETARIA DE EDUCAÇÃO. Manual de trabalho em

arquivos escolares. São Paulo: CRE Mário Covas, 2004, p. 42).

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agora alocado em sala vizinha à biblioteca. Ele se encontra ainda dividido cronologicamente

em caixas de papelão e é utilizado quando há a necessidade de consulta a documentação de ex

alunos e professores.

Foto 2: arquivo da EE Rodolfo Feuser, 2013. Fonte: acervo pessoal.

Uma análise processual da ida aos arquivos e dos procedimentos metodológicos e de

pesquisa ali investidos se dá quando é possível vislumbrar as diferentes subjetividades e

temporalidades em seu interior, delineando as diferentes instâncias de poder que o envolvem.

Ao falar de temporalidade nos arquivos se faz necessário levar aspectos levantados por

Belloto (1991, pág. 5 – 14). A autora delineia, segundo suas interpretações, o ciclo vital dos

documentos revisitados de arquivos. Define três idades documentais: aquela dos arquivos

correntes, comumente definida em um ano; dos arquivos intermediários, assim classificados

até a idade de vinte anos; e a dos arquivos permanentes, abarcando material entre vinte e

cinco e trinta anos. De acordo com tal classificação, os arquivos retomados para escrita desta

dissertação são enquadrados na nomenclatura de arquivos permanentes. Ainda de acordo com

a autora

[...] um fundo de arquivo compreende papeis gerados e/ou recolhidos por uma

entidade pública ou privada necessários à sua criação, ao seu funcionamento e ao

exercício das atividades que justificam sua existência (Ibidem, p. 9).

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Sendo assim, o entendimento do sentido do documento se dá quando este é relacionado ao

meio que o produziu. A esse respeito retomam-se as considerações de Ducrot (1998, p. 151 -

168) acerca do sentido de proveniência. Este, tomado como forma de organização e de

acondicionamento de arquivos, foi cunhado por um historiador francês em meio ao século

XIX e prega que

[...] os documentos não devem ser tratados isoladamente segundo um quadro

metódico, e sim ficar agrupados em seus fundos de origem, sendo o fundo o conjunto

de arquivos que provêm de uma mesma entidade - repartição, órgão público, pessoa,

família, empresa etc (DUCROT, 1998, p. 154).

A autora versa acerca de sua possível aplicação em arquivos familiares e privados,

salientando ao fim ser este garantia de uma classificação clara para arquivos desta monta

(Ibidem). Cabe destacar que no que tange aos arquivos escolares, objetos desta pesquisa, tal

sentido deve ser levado também em conta como forma de uma organização clara, vantajosa

para pesquisas posteriores. Belloto e Ducrot salientam, através dos supracitados escritos,

aspectos da temporalidade do corpus arquivístico como um todo, culminando em escritos de

cunho metodológico que postulam formas de tratamentos dos fundos. Todavia, além destass

temporalidades, cabe destacar as temporalidades dos sujeitos que se embrenham no interior

destes arquivos.

A categorização dos arquivos envolvidos no exercício de pesquisa permite entendê-lo

como arquivo escolar em suas nuances e especificidades5. Mas, com fins de evidenciar demais

temporalidades e subjetividades, cabem deixar claros os aspectos da trajetória de pesquisa e

também problematiza-los, complexificando-os e entendendo-os como parte de uma

representação comum dos arquivos.

“Guardado com todo o carinho”- representações do arquivo e de sua salvaguarda

5 Em momento de escrita da dissertação de mestrado o movimento de catalogação de informações presentes no

arquivo escolar se fez com consulta da Norma Geral de Descrição Arquivística, utilizada por Maria Cristina

Menezes e grupo de pesquisa na escrita do Inventário Histórico Documental Escola Normal de Campinas (1903-

1976); de Escola Complementar a Instituto de Educação. Conferir: ISAD_G. Norma Geral de Descrição

Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional: 2000. 119 p; MENEZES, Maria Cristina. (coord.); Eva Cristina

Leite da Silva, Maria de Lourdes Pinheiro, Oscar Teixeira. Inventario histórico documental: Escola Normal de

Campinas (1903-1976); de Escola Complementar a Instituto de Educação. Campinas, SP: UNICAMP/FE, 2009.

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A pesquisadora é guiada pelo corredor escolar; no caminho vê salas de aula repletas de

alunos de todas as idades. Olhares curiosos se esgueiram a medida que o estranho passa. O

pesquisador, intruso em um ninho de vestígios, é então apresentado e entregue ao arquivo

escolar. É feita, contudo, a seguinte ressalva: cuidado, pois ele foi “guardado com todo o

carinho”.

O arquivo escolar da EE. Rodolfo Feuser foi assim apresentado no movimento de

pesquisa iniciado no ano de 2013. As visitas à instituição eram sempre acompanhadas por

alguém próximo a comunidade e precedidas de conversa com a direção. As boas vindas

sempre foram calorosas – embora o arquivo tenha mudado de localização no interior do

edifício ao longo dos anos de pesquisa de acordo com demandas institucionais, sua

organização permanecia imutável. Cronologicamente separado, etiquetado, e assim

depositado em caixas de papelão – assim permaneceu em todas as vezes que o acesso se fez

necessário. Ao longo da permanência na sala, um membro da direção ou da secretaria

permanecia junto da pesquisadora. Sempre que necessário era este membro do corpo de

funcionários que auxiliava ao descer e subir caixas e localizar determinado material.

O historiador, em sua lida diária em meio aos inúmeros “Lugares para a História”6, ama o

acontecimento. Este é festejado pelo seu maior entusiasta assim que é desentocado do arquivo

(neste caso, do arquivo escolar), permitindo ao estudioso a construção de um relato ao seu

redor. O fato eleito e isolado para estudo é relacionado a outros acontecimentos; tal

construção faz parte de uma operação encabeçada pelo historiador, especialista na busca por

um relato coeso em meio a heterogeneidade (FARGE, 2011, p. 71 – 85). Neste sentido,

[...] a existência de um ser, de um acontecimento, de uma obra ou de uma palavra

tem por estatuto ser irregular. Cabe ao historiador tentar apreender seu curso,

aceitando desregular seus raciocínios, deixar a própria irregularidade criar um

campo de análise e de apreciação. [...] O conflito, o disparate, eventualmente o erro,

a incerteza e o desregrado organizam toda origem do acontecimento, de sua

colocação em memória e, mais ainda, de sua leitura e sua enunciação futuras

(Ibidem, p. 76).

Os dados levantados nos arquivos trazem consigo a marca da descontinuidade, do vivo, do

pulsante. O conflito, o heterogêneo e o disparate compõem o dado utilizado pelo pesquisador

e precisam ser por ele abarcados em suas análises. Da mesma forma este dado, quando

utilizado como elemento a ser burilado, isolado e comparado, precisa ter tais especificidades

6 Referência ao título de livro deste nome publicado por Arlette Farge. A referência completa consta em lista ao

fim desta dissertação.

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evidenciadas. O arquivo não é fechado; trata-se de uma “totalidade destotalizada, através da

qual o passado fala ao presente” [havendo] sempre um ‘resíduo de totalidade’ que a ele não

pertence (OPHIR, 2011, pág. 80 – 81). A interação para com o fundo arquivístico faz parte

também das tradições historiográficas vigentes, sendo a escrita do historiador a mistura entre

uma ordem epistêmica passada e um arquivo que tem lugar no presente (Ibidem, p. 76 – 98).

Sendo assim a interação do pesquisador com o arquivo escolar já aqui apresentado é resultado

de interações diversas. Dá-se destaque a interação entre a representação presente do arquivo,

seu lugar para a comunidade que o abriga e a postura do pesquisador que nele investe esforços

de catalogação e análise.

Para versar acerca da representação corrente do arquivo na comunidade escolar, faz-se

necessário retomar escrito de Roger Chartier, “Defesa e ilustração da noção de representação”, onde

o autor apresenta seus diferentes usos e apropriações dentro e fora do campo da história, respondendo

a críticas epistemológica e metodológica. Para ele

“não existe história possível se não se articulam as representações das práticas e

as práticas da representação. [...] qualquer fonte documental [...] nunca terá uma

relação imediata e transparente com as práticas que designa. Sempre a

representação das práticas tem razões, códigos, finalidades e destinatários

particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória para entender as situações

ou práticas que são o objeto da representação” (CHARTIER, 2011, p. 16).

Para entender a situação de guarda e consulta é necessário identificar códigos e

finalidades, não sendo estas transparentes em relação ao arquivo que abrigam. Desta maneira

a representação do arquivo escolar como um lugar de salvaguarda de um passado comunitário

se dá de acordo com demais códigos sociais que embasam concepções acerca do ambiente

arquivístico.

A experiência de ida aos arquivos desenrolou-se em três idas pontuais à comunidade: a

primeira para apresentação dos objetivos e contato inicial com as fontes; a segunda para

requisição de autorização para digitaliza-las; a terceira para levantamento de dados que

faltavam para a conclusão da pesquisa. Em todas as idas foi acessada a direção da escola. Lá

eu era recebida pela diretora ou funcionária encarregada. É importante destacar que em todas

elas eu estava acompanhada por pessoa próxima a comunidade, responsável por fazer as

devidas apresentações. Não raramente via-me em meio a conversas sobre quem conheceu

quem, onde isto se deu, quem teve aula com quem... este contato, embora informal por tratar

de banalidades, mostrou-se importante. A apresentação de proximidade para com o distrito e a

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vizinhança da escola foi vital para que o arquivo escolar fosse acessado, sendo este passo vital

para conseguir a confiança de funcionários e direção.

Após a conversa o arquivo era enfim acessado. Nas três idas ele se deslocou no

interior da escola de acordo com as demandas de espaço da instituição. Na primeira vez

encontrava-se na biblioteca; na segunda e na terceira em sala onde se guardavam materiais de

limpeza. Independente do local, sua organização permanecia intacta: suas folhas eram presas

por barbantes e organizadas em caixas de papelão na qual eram marcados os períodos de

documentação ali salvaguardada.

A consulta as fontes é parte da experiência de ida ao arquivo. Embora muitas delas

tenham sido digitalizadas, com autorização da direção, em momento inicial de pesquisa, suas

condições de acesso compõe a análise do arquivo escolar como objeto. Os Seis Livros de

Chamada, o Livro de Matrícula e o Livro de Registro Escolar utilizados entre 1933 e 1944

compuseram o corpus de fontes da pesquisa de mestrado. Uma vez digitalizados foram

armazenados em mídia digital, sendo então catalogados segundo normativas da ISAD_G7.

Desta maneira a representação da comunidade acerca do arquivo escolar conviveu com o

tratamento metodológico conferido pelo historiador da educação. Este embate, enriquecedor

por envolver distintas experiências e representações de arquivo, abarca diferentes concepções

de arquivo e de tempo.

Segundo Huyssen (2000, p. 11-40), o que acontece é a edificação de um passado

presente, no qual a preocupação sobre a história toma corpo e proporciona um deslocamento

na experiência e na sensibilidade para com o tempo. A memória, como um dos interesses das

sociedades ocidentais, permite retornar ao passado, confrontando o medo público do

esquecimento. Contudo, o autor destaca:

[...] a memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de

esquecimento; em suma, ela é humana e social. Dado que a memória pública está

sujeita a mudanças [...] ela não pode ser armazenada para sempre, nem protegida em

monumentos; tampouco, neste particular, podemos nos fiar em sistemas de

rastreamento digital para garantir coerência e continuidade. Se o sentido de tempo

vivido está sendo renegociado nas nossas culturas de memória contemporâneas, não

devemos esquecer de que o tempo não é apenas o passado, sua preservação e

transmissão [...] (HUYSSEN, 2000, p. 37).

7Trata-se o documento de Norma Geral Internacional para Descrição Arquivística, apresentando aspectos

prescritivos, porém não normativos, considerados importantes para descrição e catalogação de documentos em

arquivo. Foi a partir desta normativa que organizou-se inventário de fontes da instituição organizado por Maria

Cristina Menezes, sendo para tanto apreendidos alguns dos aspectos apresentados no manual

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O passado que se torna presente e acalenta o medo do esquecimento torna visível a

prática de tentar salvaguardá-lo. Tais aspectos desencadeiam tentativas de guarda da memória

em seus vários suportes. Contudo, conforme Andreas Huyssen, a memória pública não pode

ser armazenada ou protegida em sua integridade. Comportamentos e medidas que intentam tal

armazenamento devem ser entendidos como parte de experiências de vivência do tempo e de

tentativas de patrimonialização de um número cada vez maior de aspectos deste passado que

se faz mais presente.

Neste viés, vale a retomada do texto de François Hartog (2006, p. 261-273), onde o

autor mapeia, por meio da percepção dos sintomas das relações atuais com o tempo, a

formação de um novo regime de historicidade. De acordo com o autor, a identidade

vislumbrada nos diversos locais de edificação e guarda do patrimônio mostra-se inquieta

frente a um presente que visivelmente se historiciza. Assim, o patrimônio deve ser entendido

como categoria de ação no presente, sendo sua valorização mais convenientemente

interpretada quando relacionada a políticas e ações atuais (Ibidem, p. 270).

A experiência de tempo e de sua tentativa de armazenamento presenciada no arquivo

escolar da EE. Rodolfo Feuser deve ser entendida como parte da representação corrente de tal

arquivo. Mais que naturalizar os cuidados para com os fundos, cabe matizá-los: por que

tamanho cuidado? O que eles representam pra comunidade? Mais que um passado comum,

estas tentativas de guarda assinalam para uma experiência social com o tempo, onde a

tentativa de armazenamento do passado se faz importante. Mais que “guardado com todo o

carinho”, o arquivo escolar é tomado como parte de um passado que cumpre ser guardado e

zelado.

Considerações Finais

Novos olhares aos arquivos, sobretudo escolares, são lançados na busca por

“novos sujeitos” desse “novo passado”. Procuram-se

[...] esses caçadores furtivos que podem fazer da necessidade virtude, que modificam

sem espalhafato e com astúcia suas condições de vida, cujas práticas são mais

independentes do que pensaram as teorias da ideologia, da hegemonia e das

condições materiais, inspiradas nos distintos marxismos. No campo desses sujeitos há

princípios de rebeldia e princípios de conservação da identidade (SARLO, 2007, p.

16).

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Esta “guinada subjetiva” permite que o passado retorne com um quadro no qual se

valorizam rebeldias e originalidades, restaurando-se a razão do sujeito e permitindo que sejam

feitas abordagens que valorizem suas falas e vivências (Idem, p. 9-22). Este movimento

defende o uso das fontes – retomadas como forma de mostrar atividades furtivas, leituras

dissonantes e ações subjetivas.

A ida ao arquivo escolar almeja o encontro destes sujeitos rebeldes, habitantes dos

cotidianos escolares de tempos passados. Da mesma forma o esforço de guarda do arquivo

mostra o cuidado para com a preservação de um passado comunitário que se torna assim

presente. .Embora a constituição do arquivo se dê, conforme conversas com membros da

direção escolar e corpo docente, com o intuito de guarda de um passado grandioso, tal

representação deve ser matizada pelo historiador da educação. Mais que o lócus de guarda de

um passado do distrito onde grandes homens se fazem ver, é o arquivo escolar reconhecido

como local de guarda do passado. Cabe, pois, ao pesquisador de história da educação sua

busca, considerando sua constituição como arquivo e objeto para a pesquisa, para assim

alcançar estes sujeitos que atuam nos cotidianos escolares.

Em apontamentos acerca do tema, Maria Cristina Menezes indica a presença de rastros

do vivido nestes arquivos, devendo ser atentada para a sua conservação e preservação.

Assinala para uma especificidade no tratamento de fundos documentais pertencentes a

escolas: a necessidade da conservação no local de origem, o que permite sua articulação com

a história da instituição e deve ser um objetivo daqueles envolvidos em trabalhos do tipo.

Desta forma, o arquivo ganha vida e organicidade, sendo comumente revisitado por diferentes

membros da comunidade escolar, para além dos pesquisadores8.

Desta forma, mais que criticar a guarda e constituição do arquivo escolar, cabe ao

historiador da educação toma-lo como objeto, entendendo sua constituição e representação na

comunidade. O tratamento recebido pelo arquivo por membros da comunidade escolar deve

ser entendido como sintoma de uma presentificação do passado que deve ser matizada,

podendo o pesquisador então buscar em seus meandros rastros de sujeitos que ocuparam os

cotidianos escolares passados.

8 São citados como exemplos de iniciativas com este norte os projetos “Preservação do Acervo Histórico da EE. Culto à Ciência” e “Patrimônio Histórico Educativo: A Biblioteca da Escola Normal de Campinas”, ambos coordenados por Maria Cristina Menezes (CIVILIS/FE/UNICAMP) e desenvolvidos com participação de bolsistas de Iniciação Científica Jr. (Pic Jr.).

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